Ishtar
Ishtar
3, 2006]
ISSN 1807-8222
Monika Ottermann•
Resumo
Abstract
The comparison of the versions of the “Descent of Inana to the Netherworld” and of
the “Descent of Ištar to the Netherworld”, in their socio-historical and religious-
historical contexts, focuses on the aspects of “death” and “resurrection” that are key
elements of their structures. This focus allows to overcome old concepts of fertility
divinities that die and rise in the cycles of nature, and to interpret the events
narrated in the context of historical processes. According to this interpretation,
1
Uma versão abreviada deste ensaio foi apresentada no III Seminário Internacional Archai, “Morte e
Vida às Origens do pensamento ocidental”, na Universidade Estadual de Rio de Janeiro, no dia 9 de
dezembro de 2005.
•
Monika Ottermann é assessora do CEBI (Centro de Estudos Bíblicos) e doutoranda em Ciências da
Religião pela Universidade Metodista em São Paulo, área de Literatura e Religião no Mundo Bíblico,
pesquisadora CAPES e integrante do projeto Oracula: Grupo de Pesquisas em Apocalíptica Judaica e
Cristã, apoiado pela FAPESP na qualidade de Projeto Regular.
Oracula, v. 2, n. 3, 2006
Inana-Ištar’s loss of power which originally was universal reflects processes of the
patriarchalization of religion, and Dumuzi-Tamuz’s loss of power reflects processes
of the rise and fall of the Sargonic dynasty.
Keywords: Descent of Inana / Ištar; Death of Dumuzi / Tamuz; Divinities that die
and rise; Great Goddess; Patriarchalization of religion; Sargonic Empire;
Structuralist comparison of myths.
Resumen
Introdução
O mito da “Descida ao Inferno”, empreendida por uma deusa cujo nome sumério é
“Inana” e cujo nome acádico (assírio-babilônico) é “Ištar” foi, ao longo de milhares
de anos, um dos mitos centrais da religião mesopotâmica. A deusa Inana, na
Suméria2 do 3o milênio a.C. uma das representações da “Grande Deusa”, é
sucessivamente transformada em uma deusa guerreira-patriarcal que fornece uma
legitimação religiosa das políticas imperialistas de conquistadores acádicos,
assírios e babilônicos até os meados do 1o milênio aEC. Neste processo de
transformação, ela sofre transformações essenciais de seu perfil e restrições
significantes de suas funções e atribuições, ou seja, de seu poder.
2
A Suméria era uma região próxima ao Golfo Pérsico, ou seja, a parte meridional da Antiga
Mesopotâmia, a terra “entre os rios” Eufrates e Tigre. A Mesopotâmia em sua extensão total
corresponde aproximadamente ao atual Iraque.
2
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A cultura mais antiga que deixou vestígios materiais (não escritos) no sul da
Mesopotâmia, a cultura ubaída (cerca de 7000 a 4000 aEC, época neolítica),
mostra que também nesta região do mundo a religião mais antiga era uma religião
em torno da representação feminina do divino.5 Este tipo de religião é chamado em
geral “Religião da Deusa Mãe” ou, mais corretamente, “Religião da Grande Deusa”,
pois as funções vitais e vivificantes desta deusa não se limitaram apenas a
aspectos maternais. Os achados ubaídas e sua interpretação correspondem, neste
aspecto, aos achados contemporâneos da Europa Antiga e de outras regiões do
Antigo Oriente e à interpretação que estes têm recebido desde os anos 70 do
século passado, especialmente no âmbito da pesquisa feminista.6
7
SAGGS, pp. 20.25. Cf. também minha abordagem de uma parte destes aspectos em:
OTTERMANN, Monika. Vida e prazer em abundância: a Deusa Árvore. In: Mandrágora: O Imaginário
Feminino da Divindade, n. 11. São Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo, 2005,
pp. 40-56.
8
BEYERLIN, Walter. Religionsgeschichtliches Textbuch zum Alten Testament. Göttingen:
Vandenhoeck & Ruprecht, 1975, p. 96.
9
Resumos sobre os dados conhecidos a respeito de Enheduana encontram-se, por exemplo, em:
WESTENHOLZ, Joan Goodnick. Enheduanna, En-priestress, hen of Nanna, spouse of Nanna. In:
BEHRENS, Hermann, LODING, Darlene, ROTH, Martha Tobi. (eds.). DUMU-E2-DUB-BA-A: Studies
in honor of Ake W. Sjöberg. Philadelphia: University Museum, 1989, pp. 539-556; KRAMER, Samuel
Noah. Poets and psalmists: goddesses and theologians. In: SCHMANDT-BESSERAT, Denise ( ed.).
The legacy of Sumer: invited lectures on the Middle East at the University of Texas at Austin. Malibu:
Undena, 1976, pp. 3-21; MEADOR, Betty De Shong. Inanna, lady of the largest heart: poems of the
Sumerian high priestess Enheduanna. Austin: University of Texas Press, 2000. Também vários sites
científicos contêm resultados de pesquisas recentes a respeito de Enheduanna, por exemplo, os sites
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Este fato representou a maior dificuldade na recuperação do mito e fez com que a
reconstrução dos primeiros dois terços do texto se estendesse até 1951. Em 1963
foram localizados no Museu Britânico em Londres quatro tabletes provenientes da
escavação britânica em Ur (1923-1933) que continham a maioria do material que
estava faltando, mas sua avaliação e publicação demoraram até 1975. Apenas
neste ano o fim do mito tornou-se publicamente conhecido: a insurreição de
Dumuzi contra Inana e a sua conseqüente entrega ao Mundo Inferior pela deusa.
No entanto, continuavam faltando as 20 linhas finais do mito. Posteriormente foi
Estes dados históricos mostram que existe uma diferença de pelo menos 1000
anos entre as duas versões aqui comparadas. A importância teológica e política
deste espaço de tempo é esboçada em seguida, mas convém alertar já aqui sobre
dois aspectos centrais:
14
Cf. o relato de Samuel Noah Kramer, o principal sumeriólogo responsável pela decifração, tradução
e publicação deste mito, em: WOLKSTEIN, Diane, KRAMER, Samuel Noah. Inanna: Queen of
heaven and earth: her story and her hymns from Sumer. Nova Iorque: Harper & Row, 1983, pp. 127-
135. A edição crítica mais recente do texto reconstruído (transliteração do sumério e tradução
inglesa) encontra-se em: BLACK, Jeremy A., CUNNINGHAM, Graham, EBELING, Jürgen,
FLÜCKIGER-HAWKER, Esther, ROBSON, Eleanor, TAYLOR, John, ZÓLYOMI, Gábor. The
Electronical Text Corpus of Sumerian Literature. 2 ed Oxford: Oriental Institute, 2003. www-
etcsl.orient.ox.ac.uk, item: “ETCSL 1.4.1: Inana's descent to the nether world”.
15
Tradução inglesa: SPEISER, E. A. Akkadian Myths and Epics: the descent of Ištar into the
netherworld. In: PRITCHARD, James Bennett (ed). Ancient Near East texts relating to the Old
Testament: third editon with supplement. New Jersey: Princeton University Press, 1969, pp. 106-108.
A tradução mais antiga foi publicada em 1915.
16
Cf. MÜLLER, Gerfrid G. W. Akkadische Unterweltsmythen: 1. Ischtars Höllenfahrt. In: HECKER,
Karl et al. (ed.). Texte aus der Umwelt des Alten Testaments: Band III,4. Gütersloh: Güterloher
Verlagshaus, 1994, pp. 760-761.
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Como mostrei no parágrafo anterior, os dois mitos da Descida (de Inana e de Ištar)
não são versões aproximadamente contemporâneas que poderiam ser
comparadas segundo o esquema estruturalista de Lévi-Strauss. São versões que
foram desenvolvidas ao longo de séculos, ou talvez melhor, de milênios, e que
mostram claramente os interesses religiosos e sócio-históricos que estão por trás
das modificações que sofreram ao longo deste processo. Também Kirk, no seu
ensaio da aplicação do método de Lévi-Strauss a mitos sumérios, exige um mínimo
de contemporaneidade das versões comparadas. Ele destaca a importância disto
no caso da Mesopotâmia (Suméria versus Assíria e Babilônia) e afirma que o fato
de a sociedade desta região ter mudado radicalmente entre 2300 e 1700 aEC
impossibilita uma comparação estruturalista conjunta de mitos de épocas
17
Para a figura de Dumuzi-Tamuz, cf., por exemplo: JACOBSEN, Thorkild. Toward the image of
Tammuz. In: IDEM. Toward the image of Tammuz and other essays on Mesopotamian history and
culture. Cambridge: Harvard University Press, 1970, pp. 73-103; NEUENFELDT, Elaine Gleci.
Práticas e experiências religiosas de mulheres no antigo Israel. Um estudo a partir de Ez 8.14-15 e
13.17-23. São Leopoldo: Tese de doutorado da Escola Superior de Teologia, 2004; NEUENFELDT,
Elaine Gleci. Inanna/Ištar – uma deusa de simultâneas formas. In: Mandrágora: O Imaginário
Feminino da Divindade, n. 11. São Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo, 2005,
pp. 57-63.
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diferentes.18 Para a análise de mitos de regiões onde temos que contar com tais
mudanças, Kirk prefere um processo mais abrangente que ele não recomenda ou
sistematiza explicitamente, mas que pode ser deduzido de sua interpretação dos
centauros e ciclopes da mitologia grega: fazer uma análise e interpretação de
conjunto, a partir de todos os dados disponíveis da cultura literária, artística e
material – mitos, hinos, notícias em obras da época, dados iconográficos e
observáveis em outros artefatos.19
De maneira análoga, uma análise mais completa e mais proveitosa do que apenas
uma análise estrutural-literária dos mitos da Descida de Inana e de Ištar deve
considerar e aproveitar todos os dados disponíveis a respeito destes mitos e das
culturas de sua proveniência. Tendo oferecido um esboço resumido destes dados,
proponho como chave de estruturação e de interpretação das modificações
observadas a questão do “poder divino abrangente”, mais concretamente, a “posse
de poder” antiga de Inana e a sucessiva “perda de poder” que ela sofreu (e, na
parte que diz respeito a Dumuzi-Tamuz, a questão análoga acerca de poderes
humanos). Esta “perda” já pode ser percebida em detalhes do próprio mito da
Descida de Inana e fica inteiramente óbvia na sua comparação com a versão
encontrada depois de 1000 anos de crescente patriarcalização da religião
mesopotâmica. Ao mesmo tempo, esta chave tem a vantagem inestimável de se
aplicar também aos motivos principais na figura divina (e humana) de Dumuzi: à
“posse de poder” temporária, devido sua “subida” ao trono na ausência de Inana, e
à “perda de poder” ao ser lançado por ela para o Mundo Inferior. Em linguagem
mais mitológica e religiosa, esta posse e perda de poder podem ser designadas
também como “morte” e “ressurreição” das duas divindades, uma variante que
permite incluir o aspecto muito discutido de elas serem representações de
divindades “que morrem e ressuscitam”, ou seja, de divindades vinculadas à
fertilidade humana, animal e vegetal.
18
KIRK, pp. 85-86. É por isso que ele, no capítulo III desta obra, analisa e comenta mitos sumérios e
mitos assiro-babilônicos (acádicos) separadamente. Veja os parágrafos 2-4 (pp. 90-117) sobre os
mitos sumérios e o parágrafo 5 (pp. 118-131) sobre os acádicos.
19
KIRK, pp. 152-171.
20
Esquema comparativo em anexo.
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21
Como resposta provisória a este questionamento pode-se apontar o fato de que este motivo é
característico apenas de mitos que envolvem Inana; cf., por exemplo, os mitos “Inana e Enki”,
“Gilgameš e a Árvore Hulupu”, “Inana e Šukaletuda”. Por isso recomenda-se a conclusão de que ele é
atrelado especificamente à perda de poder de Inana.
10
Oracula, v. 2, n. 3, 2006
É significativo que a Descida de Ištar cortou esta parte integralmente: aqui, já não é
mais a deusa que detém tais poderes sobre o universo e sobre a vida e a morte.
11
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Além disso, o fato de Inana se sentar ao trono de Eriškigal, tomando assim posse
do governo do Mundo Inferior, é provavelmente uma reminiscência de uma versão
mais antiga da Descida de Inana, onde sua conquista do Mundo Inferior foi bem-
sucedida, e é sintomático que este elemento seja suprimido na Descida de Ištar.
Este topos, por sinal o elemento central, revela (na Descida de Inana) o amplo
alcance do poder de Inana: suas ordens dadas à Ninšubura são obedecidas e,
embora inicialmente não efetuassem o encaminhamento da solução (um fato
previsto pela deusa), revelam o motivo verdadeiro da sua entrada no Mundo
Inferior: possuindo os poderes divinos sobre céu e terra, Inana “almejou” também
os poderes divinos do Mundo Inferior. Muito provavelmente estamos aqui diante da
justificação narrativa de um primeiro passo estratégico na patriarcalização da
religião: dividir e assim enfraquecer o poder de uma divindade feminina. Estamos
12
Oracula, v. 2, n. 3, 2006
22
Cf. nota 19.
13
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feita, embora este fato possa apontar justamente para uma transformação do
elemento “água da vida” que perdeu, ao longo dos séculos, sua coerência.
Também este detalhe pode ser entendido novamente na linha geral da perda de
poder da deusa e de suas conseqüentes reações, classificadas como agressivas e
vingativas. Enquanto a pesquisa moderna ignorava este papel ativo de Inana, por
14
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não conhecer o tablete que contém esta parte do mito, foi construída a hipótese de
que Dumuzi foi violentamente arrancado pelos galla e levado como substituto de
Inana, contra a vontade dela. Assim, certas correntes da pesquisa confirmaram a
idéia pré-concebida de uma divindade de fertilidade, desta vez masculina, cuja
estadia no Mundo Inferior causaria fases de infertilidade na terra.
A Descida de Inana, por sua vez, acrescenta o motivo do luto de Inana por Dumuzi
que é conhecido de vários outros mitos, nos quais Dumuzi sofre uma morte
violenta e prematura por forças alheias e Inana procura resgatá-lo ou, ao menos,
vingá-lo. A relação deste motivo com o mito da Descida precisa ainda de pesquisas
melhores, mas uma possível hipótese é que sua introdução se deve igualmente a
outros fenômenos já mencionados, ao processo da patriarcalização deste mito que
procurou amenizar o irado exercício de poder de Inana e sua clara deliberação
acerca da entrega que ainda podem ser percebidos na antepenúltima linha do texto
preservado: “Assim Santa Inana deu Dumuzi como substituto”...23
Devemos lembrar que as 20 linhas finais que seguem são tão mal preservadas que
não podem ser reconstruídas, a ponto de que eventuais considerações finais sobre
esta deliberação estão perdidas, provavelmente para sempre.
Considerações Finais
23
Cf. ALSTER, Bendt. Inanna Repenting: The Conclusion of Inanna's Descent. In: Acta Sumerologica,
18. Tóquio: Middle Eastern Center in Japan, 1996, pp. 1-18.
24
Cf. a tipologia das funções de mitos em KIRK, pp. 253-261, especialmente p. 256.
15
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justificando esta destituição de poder, ele não consegue esconder do olho atento e
treinado por análises feministas que esta deusa era originalmente a detentora de
um poder muito mais amplo que pode ser caracterizado como “poder cósmico
todo-abrangente”.
25
Para um panorama desta questão, cf.: METTINGER, Tryggve N. The "dying and rising God": a
survey of research from Frazer to the present day. In: Svensk exegetisk årsbok, 63. Lund: Gleerup,
1998, pp. 111-123.
26
Cf. para estes aspectos, por exemplo: NISSEN, Hans J. The Early History of the Ancient Near East.
Chicago: University of Chicago Press, 1988, pp. 165-197; DALLEY, Stephanie. Ancient
Mesopotamian military organization. In: SASSON, Jack M. (ed.). Civilizations of the Ancient Near
East. Vol 1. New York: Scribner, 1995, pp. 413-441.
16
Oracula, v. 2, n. 3, 2006
Com este aspecto combina bem um outro que pergunta pelo possível pano de
fundo histórico-político da insurreição e irreverência de Dumuzi. Ele, o protegido
especial de Inana, o regente pela graça dela, seu “marido”, a trai. Ele se aproveita
da ausência da deusa para subir ao trono que compete somente a ela e na volta
dela, ele não cai aos seus pés. Este traço, reforçado ainda mais na Descida de
Ištar, pode refletir a hybris, a arrogância de governantes que, divinizando-se a si
mesmos, esqueceram a quem eles deviam seus sucessos e seu poder. Como
mostra o lamento sobre a queda da dinastia sargônica, a “Maldição sobre Acad”,28
um candidato que se encaixaria bem nesta constelação seria o último governante
desta dinastia, Naramsin (2254-2218), um neto de Sargão I.29
27
BALZ-COCHOIS, Helgard. Inanna: Wesensbild und Kult einer unmütterlichen Göttin. Gütersloh:
Mohn, 1992, pp. 112-129.
28
Cf. o texto em ETCSL 2.1.5: “The cursing of Agade”.
29
Cf. FRANKE, Sabina. Kings of Akkad: Sargon and Naram-Sin. In: SASSON, Jack M. (ed.).
Civilizations of the Ancient Near East. Vol. 2. New York: Scribner, 1995, pp. 831-84.
17