Clovis - Moura - Racismo e Luta de Classes No Brasil
Clovis - Moura - Racismo e Luta de Classes No Brasil
Clovis - Moura - Racismo e Luta de Classes No Brasil
Projeto Gráfico:
Alexandre Wellington dos Santos Silva
Revisão:
Franciso Raphael Cruz Maurício
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Sumário
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ATRITOS ENTRE A HISTÓRIA,
O CONHECIMENTO E O PODER
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Para uma rápida compreensão do que estamos afirmando, veja-
mos o seguinte quadro do status social dos principais historiadores
daquela época: Domingos Gonçalves de Magalhães era Visconde
de Araguaia; Manuel de Araújo Porto Alegre era o Barão de Santo
Ângelo e Francisco Adolfo Vamhagen, o pontífice da historiografia
da época, era Visconde de Porto Seguro.
Não apenas pelos títulos de nobreza esses historiadores eram
chamados de os áulicos da corte, mas também por vantagens que
auferiam para poder realizar suas pesquisas proporcionadas pelo
governo monárquico-escravista.
Se não vejamos: Vamhagen foi adido de primeira classe de nos-
sa diplomacia em Lisboa, nomeado em 18 de maio de 1842 por
sugestão de Vasconcelos de Drummond e influência do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, tendo, depois, viajado pela Europa
e outras regiões através de comissões e outros recursos do governo
imperial; Gonçalves Dias foi incumbido, pelo mesmo governo im-
perial, em 1851, de copiar documentos em estados brasileiros e, em
1854, encarregado de estudar a educação primária e secundária na
Europa, onde pesquisou em vários arquivos; João Francisco Lisboa,
em 1856, assumiu a responsabilidade de pesquisar os arquivos de
diversos países; Joaquim Caetano da Silva é encarregado da legação
brasileira em Haia, onde fez pesquisas em arquivos holandeses; Ra-
miz Galvão é comissionado pelo governo imperial para estudar a
organização das bibliotecas europeias; José Higino também é envia-
do para pesquisar arquivos, isto sem nos referirmos a outros como
Oliveira Lima e Norival de Freitas, todos financiados pelo governo
imperial de diversas maneiras, inclusive através de verbas particu-
lares do próprio imperador, que as repassava ao Instituto Histórico
e Geográfico.
Nunca o axioma “quem tem o poder dá o saber” foi tão ajustado a
uma realidade como no Brasil imperial, equiparando-se, no particu-
lar, à realidade montada por Frederico II na Alemanha e Catarina II
na Rússia. O “rei filósofo”, como era chamado o Imperador D. Pedro
II, através de mecanismos algumas vezes sutis, outros abertamente
impositivos, controlava a intelligentsia da época, especialmente os
historiadores. Era uma visão política, na área cultural, que devemos
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reconhecer como maquiavelicamente eficiente em D. Pedro II.
Sabedor de que os historiadores plasmam o ethos cultural de uma
nação, centrou sua atividade de controle e desenvolvimento dessa
produção historiográfica, condicionando-a à ideologia do Império
escravista, através da concessão de facilidades aos seus produtores.
No particular, o historiador Geraldo M. Coelho escreve:
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ro, mas o caráter elitista continua, mesmo havendo algumas vozes
que não aceitavam a condição passiva de intelectuais orgânicos do
sistema. Daí por que o julgamento de valor de quase todos eles em
relação aos fatos e heróis continuará sendo o mesmo estabelecido
pelos historiadores do Império. Esses heróis “oficiais” continuam
sendo Duque de Caxias, Domingos Jorge Velho, Pedro I, Pedro II,
Princesa Isabel, Barão de Cotegipe, Feijó, Barão do Rio Branco e,
também, Deodoro da Fonseca e os demais participantes do golpe
militar republicano.
Por outro lado, continuam a ser anti-heróis Zumbi, os heróis da
Revolta dos Alfaiates na Bahia de 1798 (Luís Gonzaga das Virgens,
Lucas Dantas, João de Deus do Nascimento e Manuel Faustino dos
Santos Lira), assim como, também, outros heróis populares como
frei Caneca, Elesbão Dandará, Luís Sanim, Pacífico Licutã e os de-
mais líderes do movimento insurrecional de 1835 em Salvador, além
de Borges da Fonseca, Pedro Ivo, Padre Roma, Preto Cosme, Padre
Miguelinho, Sóror Joana Angélica e todos aqueles que constituem o
grande painel de heróis sem monumentos, mas que desarticularam
as estruturas de poder em vários momentos da nossa história. Eles
não são considerados heróis porque o seu heroísmo passa pela ás-
pera estrada dos derrotados.
A nossa “história oficial” seleciona como heróis os vencedores,
e não aqueles que foram derrotados nos diversos momentos de re-
belião, rebeldia ou projeto de mudança social. Daí a história ser
feita através de um processo seletivo no qual as classes dominantes
estabeleceram o critério de quem é herói ou anti-herói. Com isto,
os produtores dessa historiografia fazem-na ter uma visão elitista e
marcial do nosso desenvolvimento.
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de Palmares; é esmagar a República Pernambucana de 1817; a In-
confidência Baiana; a Sabinada; a Cabanagem; a Balaiada; Canudos
e Contestado; os Mukers; as revoltas escravas; a Revolução Praieira;
o movimento da Aliança Nacional Libertadora e os guerrilheiros do
Araguaia.
Este conceito de Pátria é, portanto, abstrato e não se concretiza
em uma visão política nas camadas populares que o desconhecem.
Em um programa na TV Cultura de São Paulo, do qual participa-
mos, o repórter de rua perguntou a uma criança “o que era Pátria”.
Ela respondeu: - a parada do dia, os soldados marchando...
Ora, de fato, para uma criança do Brasil, carente de educação,
alimentação, família estável, bem-estar e lazer, a Pátria somente se
materializa no dia 7 de setembro, através de uma demonstração de
força militar. Porque ela inexiste, não se materializa, não se corpora-
liza e se manifesta para o cidadão em qualquer outro nível. É apenas
uma ficção, pois os seus indicadores concretos são concedidos aos
privilegiados, ficando para os pobres apenas uma pátria simbólica.
Para manter esse conceito marcial de pátria, as classes dominan-
tes e os grupos militares, como estamentos de sustentação política,
criam “áreas proibidas da história” com limitações, fronteiras e san-
ções para quem as transgredir.
Há, sub-repticiamente, uma institucionalização da história. A
produção dos historiadores deve ser condicionada a diversos pa-
drões de julgamento para ser aprovada. Não vamos nos estender,
aqui, como essa produção é preconceituosa em relação aos heróis
da transformação, às mulheres, aos negros e a outras camadas e seg-
mentos ou minorias da nossa sociedade. Vários trabalhos já foram
feitos nesse sentido e não é este o momento para uma análise exaus-
tiva dos mesmos. O certo é que aqueles que obedecem ao grande
projeto institucional conseguem circular, enquanto outros, que têm
a coragem de transpor a fronteira do proibido, sofrem as sanções
dos controladores do saber histórico no Brasil.
Os assuntos proibidos mais recentes, ou a revisão radical, por
parte dos historiadores, dos heróis do passado e a participação da
plebe como agente dinâmico no processo de mudança estrutural
9
são sistematicamente congelados pelos detentores do poder-saber
no Brasil.
Exemplos: a Guerra do Paraguai, a atuação de Caxias na mesma.
Outros exemplos poderiam ser acrescentados, mas em um pequeno
artigo estes são suficientes. Quando os fatos são mais próximos, esse
complexo de elementos inibidores fica mais atuante e fatos como o
movimento “constitucionalista” em São Paulo, de 1932, a chamada
“intentona comunista” de 1935, afirmações de técnicos estrangeiros
de que no Brasil não havia petróleo, e outros, também significativos,
são esquecidos ou negados pelos historiadores oficiais.
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Aparício Torelli afixou um cartaz no lado exterior da porta do seu
escritório onde se lia: “Entre sem bater...”
Finalmente temos o caso do poeta francês Benjamin Peret. Che-
gando ao Brasil, entusiasmou-se com o episódio da revolta da Arma-
da, liderada pelo marinheiro João Cândido. Em conseqüência, levou
tempos pesquisando sobre o assunto e escreveu um livro narrando
fielmente os acontecimentos. Foi o bastante para que elementos da
Marinha invadissem a tipografia onde o livro estava sendo impresso,
destruíssem os originais e a composição e, em seguida, prendessem
o seu autor. Peret ficou encarcerado até que a intelectualidade bra-
sileira procurou interceder por elejunto ao governo de Juscelino.
Mesmo assim, foi expulso do país como subversivo e agitador.
Por outro lado, na década de 1960, os historiadores Joel Rufino
dos Santos, Maurício Martins de Mello, Nélson Werneck Sodré,
Pedro de Alcântara Figueira, Pedro C. Uchoa Cavalcanti Neto e Ru-
bem Cesar Fernandes elaboraram e executaram o projeto História
Nova do Brasil. Não era sequer uma obra marxista, mas procurava
inverter certos julgamentos alienados da história marcial do poder.
Com o golpe militar de 1964, não só a obra foi recolhida, como os
seus autores presos, pois todos eles eram subversivos, no pensamen-
to dos milicos que compunham o IPM encarregado do processo. E
como subversivos foram julgados. E ridículo o episódio se não fosse,
também, uma violência ao direito de a Inteligência criar e informar.
Nas circunstâncias político-institucionais do Brasil, fazer, ou me-
lhor, refazer a história implica, também, um ato de coragem. Por
exemplo, a História Militar do Brasil de Nelson Werneck Sodré foi
recolhida porque registrava fatos que a nossa história marcial não
permite. Tanto esse livro como a História Nova do Brasil estão “in-
terditados para todo o território nacional”.
Há, como vemos, uma instituição invisível que censura, castra,
reprime ou inibe a publicação de livros ou artigos que procuram
repor, em primeiro plano, a ação dos oprimidos como agentes dinâ-
micos do processo social.
Exemplo disto foi a sanção sofrida da parte das elites militares
pelo cronista Lourenço Diaféria, por haver escrito uma crônica le-
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vemente irônica em relação à estátua do Duque de Caxias, existente
em São Paulo. Foi condenado à prisão sem que o direito à liberdade
de imprensa e de expressão pudesse defendê-lo da truculência po-
lítico-militar.
Tudo isto mostra — de forma muito sintética, mas, ao que nos
parece, convincente — que fazer história e, por extensão, ciências
sociais fora dos quadros institucionais e da visão marcial do poder,
é um ato de coragem, também.
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POPULAÇÃO E MISCIGENAÇÃO NO BRASIL
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igualitária, mas ela foi verticalizada socialmente à medida que as
sociedades dominadas pelo colonialismo se diversificavam interna-
mente e ficavam estruturalmente mais complexas. Essa distribuição
populacional realizou-se dentro de padrões normativos étnicos im-
postos pelas metrópoles.
Houve, portanto, uma imbricação entre etnia e status, etnia e va-
lores sociais e etnia e papéis sociais e culturais. Estabeleceram-se
critérios que determinaram a posição de cada grupo ou segmento ét-
nico nos diversos níveis de estratificação, com barreiras e fronteiras
que impediam o processo de mobilidade social em nível de igualdade
de cada etnia dominada em direção ao cume da pirâmide social.
Podemos dizer que, com isto, ficou estabelecido que na sua base
estava a população escrava inicialmente das etnias nativas e poste-
riormente das populações trazidas da África e os seus descendentes.
Nas camadas intermediárias as diversas formas de mestiçagem e,
finalmente, a população composta dos colonizadores que ocupavam
o seu cume.
Em segundo lugar, queremos demonstrar como essas popula-
ções etno dominadas iriam praticamente ser imobilizadas e ainda
como foram estabelecidos mecanismos imobilizadores e inibidores
para essas camadas etnicamente inferiores que, ao mesmo tempo, se
multiplicavam via miscigenação. Por outro lado, todo o sistema ad-
ministrativo, militar e religioso era também estruturado para ser a
reprodução daqueles valores de dominação étnica que a cada grupo
miscigenado era concedido pelo colonizador.
Contudo, a miscigenação (fato biológico) não criou uma democra-
cia racial (falo sociopolítico). Ela estava subordinada a mecanismos
sociais de dominação, estruturas e técnicas de barragem e sanções
religiosas e ideológicas. Esse conjunto de elementos e estratégias
inibidoras determinava o imobilismo ou semimobilismo social, cul-
tural e político das vastas camadas, isto porque os espaços sociais
que davam status econômicos ou de prestígio social ou cultural lhes
eram vedados, pois esses mecanismos de seleção étnica compulsórios
reproduziam os níveis de poder econômico, social e cultural das
estruturas de poder dominadoras que representavam os interesses
da classe senhorial local e da Corte e o poder do Estado português.
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No Brasil historicamente podemos dizer que a população do co-
lonizador, ou seja, portuguesa, foi sempre até o século XIX menor
do que as etnias dominadas (índias e africanas e seus descendentes)
e, em consequência, o aparelho de dominação quer militar, quer
ideológico teria de ser violento, porque era uma simples continua-
ção do aparelho do Estado português. O Brasil não possuía Estado
próximo. Isso, portanto, fazia pane da mecânica defensiva do siste-
ma colonial escravista, dirigido, em última instância, pelo Estado de
Portugal. Por isso mesmo, essa minoria conseguia dominar. Quanto
à população portuguesa inicial e o seu desdobramento demográfico
posterior, escreve Artur Ramos:
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de brancos e não brancos, de homens livres e escravos, conseguiu
evitar que existisse qualquer forma significativa de ascensão dos es-
cravos (índio e negros) que não fosse extralegal, através das guerras
dos índios contra os invasores e dos quilombos negros, insurreições
e guerrilhas por parte destes últimos. As alforrias não chegavam a
compor uma variável ponderável nesse contexto. Por outro lado, a
Metrópole privilegiou os dominadores via estratégia de concessão
de terras. Até hoje, através dessa estratégia do monopólio inicial
da terra e de poder os descendentes das suas linhagens não sofrem
nenhum processo significativo e desarticulador, nenhum processo
de compreensão jurídica, social e cultural capaz de desarticulá-los
estruturalmente de modo substancial, permanecendo quase todos
com patrimônio e status quase inalteráveis no polo dominador”.
Quanto ao índio, particularmente, o primitivo habitante, a sua
trajetória é bem diferente do grupo português que chegou como
dominador. Se fizemos uma estimativa de 4 milhões de índios na
descoberta — há quem estime em muito mais — o processo foi o
inverso. Segundo Darcy Ribeiro, depois da fase genocídica da ocu-
pação, de 1900 até 1957 extinguiram-se 87 grupos tribais como
comunidades étnicas. Mais de 30% das tribos desaparecidas perten-
cem a zonas que foram conquistadas pela economia pastoril e 45%
pela economia extrativa (grupos caucheiros, seringueiros, castanhei-
ros e outros coletores de produtos florestais).
Atualmente esse extermínio prossegue através de grupos de ga-
rimpeiros representantes de empresas transnacionais. Os índios
destribalizados que se incorporaram aos camponeses pobres tam-
bém são perseguidos, expulsos das terras ou assinados.
A partir da época assinalada por Darcy Ribeiro uma política de-
senvolvimentista e de modernidade fez com que as coisas se agravas-
sem ainda mais. As fronteiras avançam, vão ocupando terras in-
dígenas, assassinando caciques e procurando, muitas vezes, incluir
os índios em projetos econômicos predatórios e antiecológicos que
objetivam extrair as riquezas do subsolo daquelas terras.
Sobre essa situação escreve Dalmo de Abreu Dallari:
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“A invasão de terras indígenas e a passividade do órgão governa-
mental de proteção ao índio estão ligadas à visão desenvolvimentis-
ta, que não dá qualquer valor à pessoa humana, não leva em conta
que os índios têm direitos de cidadãos e jamais admitiu a hipótese
de fazer o desenvolvimento econômico com o índio e não contra
o índio. Os invasores de terras são, às vezes, meros aventureiros
audaciosos que pretendem obter riqueza rápida de qualquer modo.
Outras vezes são empresas de aparência respeitável, com amplos
recursos técnicos e cálculos muito precisos quanto ao proveito eco-
nômico que poderiam tirar do solo ou do subsolo da terra dos
indígenas. Mas em todos os casos a invasão é estimulada pela quase
certeza, baseada na experiência, de que não haverá grandes obstácu-
los, pois o índio não dispõe de recursos para agir sozinho e a Funai
tem autonomia limitada, estando limitada aos objetivos do governo”.
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um nível de consciência dos seus direitos etnopolíticos bem mais
dinâmicos e abrangentes. Contudo, esse renascimento da consciên-
cia será combatido e possivelmente neutralizado por estratégias de
controle das atuais estruturas de poder e oligarquias territoriais. A
chacina ocorrida em 28 de março de 1988 de 14 índios em Ticuna,
no Igarapé Capacete, através de uma ação organizada pelo madei-
reiro Oscar Castelo Branco, mostra como a estratégia genocídica
do tempo do descobrimento, embora modernizada continua no seu
dinamismo. A Funai, ao invés de tomar medidas de proteção e pu-
nição, demitiu os professores índios que denunciaram a chacina.
Em agosto de 1988 os criminosos foram postos em liberdade por
sentença do tribunal de Recursos.
18
O RACISMO COMO ARMA IDEOLÓGICA
DE DOMINAÇÃO
19
sua permanência como tendência de pensamento. Vê-lo como uma
questão científica cuja última palavra seria dada pela ciência é plena
ingenuidade, pois as conclusões da ciência condenam o racismo e
nem por isso ele deixa de desempenhar um papel agressivo no con-
texto das relações locais, nacionais e internacionais.
O racismo tem, portanto, em última instância, um conteúdo de
dominação, não apenas étnico mas, também, ideológico e político.
É por isso ingenuidade, segundo pensamos, combatê-lo apenas atra-
vés do seu viés acadêmico e estritamente científico, uma vez que ele
transcende as conclusões da ciência e funciona como mecanismo de
sujeição e não de explicação antropológica. Pelo contrário, superpõe-
-se a essas conclusões com todo um arsenal ideológico justificatório
de dominação. Lapouge, um dos teóricos, dizia: “Estou convencido
de que no próximo século milhões de homens se matarão por um
ou dois graus do índice cefálico”. Isto foi escrito em 1880. O que
este teórico do racismo queria expressar eufemisticamente é que a
humanidade travaria a maior guerra de sua história e que as diferen-
ças raciais seriam um dos pretextos ideológicos de que os agressores
lançariam mão para justificar a conquista de territórios colonizáveis.
É uma constante o traço antropológico estar embutido na crista
da ofensiva racista de dominação. Com isto não queremos dizer que
toda antropologia é racista. Pelo contrário. Mas o que acontece é que
a divulgação que se faz desta ciência, especialmente para a opinião
pública leiga, é neste sentido. A expressão de Lapouge teve contesta-
dores, mas o que se viu foi a florescência progressiva desta posição
no final do século XIX e início do XX, a ponto de fazer com que
milhões de pessoas dela compartilhassem. O racismo é um multipli-
cador ideológico que se nutre das ambições políticas e expansionistas
das nações dominadoras e serve-lhe como arma de combate e de
justificativa para os crimes cometidos em nome do direito biológico,
psicológico e cultural de “raças eleitas”. Há também o racismo inter-
no em várias nações, especialmente nas que fizeram parte do sistema
colonial, através do qual suas classes dominantes mantêm o sistema
de exploração das camadas trabalhadoras negras e mestiças.
Com a montagem do antigo sistema colonial e a expansão das
metrópoles colonizadoras, esse racismo se desenvolveu como arma
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justificadora da invasão e domínio das áreas consideradas “bárba-
ras”, “inferiores”, “selvagens”, que por isso mesmo seriam beneficia-
das com a ocupação de seus territórios e a destruição de suas popu-
lações pelas nações “civilizadas”.
O racismo larval que encontramos em todos os povos antes da
aventura colonialista passa a revestir-se de uma roupagem científica
e ser manipulado como se ciência fosse. No particular podemos
dizer que o racismo moderno nasceu com o capitalismo. Referimo-
-nos ao racismo como o entendemos modernamente, o qual procura
justificar a dominação de um povo, nação ou classe sobre outra
invocando argumentos “científicos”. Antes do aparecimento do ca-
pitalismo,
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racismo se apresenta como corrente “cientifica”. Surge então a ideia
de raça como chave da história. Ela aparece exatamente na Inglaterra
com Robert Knox (Races of Men, 1850) e na França com Arthur de
Gobineau (Essai sur l ’inégalilé des races humaines). Para Alan Davies,
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século XVIII. o Caribe (Antilhas, Guianas), e grande parte da Amé-
rica espanhola continental (costa do Peru, partes do que são hoje a
Venezuela e a Colômbia) já estavam inteiramente dominadas, e a
justificativa para sua dominação era a mesma: a incapacidade inata
(biológica) que os nativos tinham para se civilizarem.
Toda essa população nativa ou compulsoriamente trazida da Áfri-
ca fazia parte de uma massa sem história, sem máscara, sem cultura,
sem moral e sem perspectiva civilizatória. Já no início do século XIX
os teóricos racistas substituíram as explicações um pouco vagas por
explicações “científicas”, como já foi dito, enquanto as demais áreas
da Ásia. África e Oceania eram ocupadas com o mesmo pretexto.
Foi a época áurea da antropometria, quando Gobineau, Ammon,
Broca, Levi e Quatrefages desenvolviam pesquisas no sentido de sa-
ber se os habitantes das cidades eram superiores (por questões bio-
lógicas) aos camponeses pela sua capacidade craniana; se os nórdicos
eram superiores aos alpinos ou, como queria Levi, se os mediterrâneos
eram superiores a outras “raças” europeias. Tais conclusões eram
baseadas em pesquisas históricas: na mensuração de crânios e es-
queletos; na medição de índices cefálicos; e na capacidade craniana
de cada grupo pesquisado. Tudo isto, no entanto, representava, em
última instância, as contradições e os conflitos das nações europeias
em luta pela dominação continental. Convém notar que alguns de-
les, como é o caso de Gobineau, chegaram às suas conclusões antes
de terem lido A origem das espécies, de Darwin, que surgiu em 1859
e deu novo alento a essas hipóteses com sua teoria da “sobrevivên-
cia do mais apto”, criando a escola do darwinismo social. Como diz
uma antropóloga. “havia-se descoberto uma razão ‘cientifica’ que
santificava o velho axioma ‘o poder faz o direito’”.
Por outro lado. entrava-se na época aguda do colonialismo e das
disputas pelos territórios conquistados ou a serem conquistados.
Afirmou Ruth Benedict:
23
dele. O racismo foi, a partir dai, uma babel de vozes diferentes. Os
franceses, os alemães, os eslavos, os anglo-saxões, todos produzi-
ram literatos e políticos consagrados a demonstrar que, desde o
principio da história europeia, os triunfos da civilização devem-se
exclusivamente à sua ‘raça’”3.
24
As explicações eram fáceis e já vinham pré-fabricadas pela so-
ciologia antropológica desenvolvida na Europa para dar aparência
de verdade científica ao crime. A própria opinião pública liberal ou
pretensamente humanista europeia achava essa espoliação natural e
defendia o direito dos ditos civilizados de tutelarem os povos colo-
nizados. Renan, neste sentido, escreveu:
25
As metrópoles passam a ver as áreas coloniais como habitadas por
povos indolentes. incurável mente incapazes de criar uma poupança
interna que os elevasse ao nível dos países brancos, que tinham estes
predicados e se desenvolveram, ao contrário do mundo não-branco,
que por esta razão permanece subdesenvolvido.
A teoria do pensamento pré-lógico desses povos, criada por L.
Levy Bruhl, condenava-os a uma posição de dependência circular,
porque eram atrasados em consequência de sua própria estrutura
psicológica. sendo refratários e impermeáveis à experiência e à ra-
zão e essencialmente religiosos. Estabelecia-se, assim, uma divisão
estanque entre os povos dominados e os dominadores, pois esse
pré-logismo impedia-os de passar da economia natural para a eco-
nomia monetária (lógica) levada pelos dominadores5. Neste sentido,
K. Marx e F. Engels escreveram, em 1848:
26
“...devido ao rápido desenvolvimento dos instrumentos de produção
e dos meios de comunicação, a burguesia arrasta na corrente da
civilização até as nações mais bárbaras. Os baixos preços de seus pro-
dutos são a artilharia pesada que destrói todas as muralhas da China
e faz capitular os bárbaros mais tenazmente hostis aos estrangeiros.
Sob pena de morte, ela obriga todas as nações a adotar o modo bur-
guês de produção. Numa palavra, modela o mundo à sua imagem.6”
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ganbista, incluindo os Mau Mau e o de Lumumba. Tudo seria en-
globado sob o rótulo de milenarismo, salvacionismo ou messianis-
mo, e seria descartada sua essência política. Os povos “inferiores”
não tinham condições de entrar no sentido universal da história,
eram a-históricos. Com isto justificava-se a repressão contra eles e
os seus líderes. Fora dos padrões normativos dos valores políticos
europeus, civilizados e “normais”, não existiam movimentos que
pudessem ser enquadrados como aceitos pelas nações dominado-
ras, como continuadores do “sentido” da civilização. As próprias
lutas de libertação nacional eram (como acontece até hoje) consi-
deradas revoltas intertribais, movimentos atípicos e perturbadores
do processo civilizatório. Não tínhamos acesso à história, à civili-
zação e à igualdade de direitos. A nossa inferioridade congênita e
inapelável — biológica e psicológica — nos reduzia a satélites do
processo civilizatório.
28
ma palavra da ciência”, mas porque já vinha com o julgamento das
metrópoles. No lado oposto expressava-se uma visão democrática
e não racista do problema; esta corrente progressista era desacre-
ditada pela intelligenzia colonizada. O cientista russo Tchernichévis-
ki, por exemplo, escreveu que “os escravistas eram pessoas da raça
branca, os cativos eram negros; por isso a defesa da escravidão nos
tratados científicos tomou a forma da teoria da diferença radical
entre as diferentes raças humanas”. E Jean Finot, em seu livro O
preconceito racial, declarou que “as raças como categorias irredutí-
veis existem somente como ficções nos nossos cérebros”. E mais: “as
diferenças culturais existem e foram assinaladas neste livro, porém
somente são produtos transitórios, como resultado de circunstân-
cias externas, e desaparecerão do mesmo modo”7.
No entanto, essas conclusões anti-racistas eram consideradas he-
resias científicas. Sílvio Romero, depois de citar o antropólogo ale-
mão Lapouge, endossando-lhe a tese da superioridade do alemão em
relação ao francês, escreve sobre o pensamento de Finot:
“Fugir das tolices do russo que se assina Finot, e cujo nome antigo
é João Finkelhaus, literato de segunda ordem, ignorantíssimo em
antropologia e ciência em geral”8.
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extrema, sem as rebeldias do índio, o negro teve, sobre os ombros,
toda a pressão da vida colonial”9.
Para ele o negro é a “besta de carga”, o “filho das paisagens adus-
tas e bárbaras”; Palmares é “grosseira odisseia” e por isto a ação dos
bandeirantes destruindo-o foi um beneficio à nossa civilização; são
“vencidos e infelizes”: o escravo negro é “humilde”, mesmo sendo
quilomba, “temeroso”, “aguilhoado à terra”: são “foragidos”, a raça é
“humilhada e sucumbida”. Para ele a desigualdade racial era um fato
provado “ante as conclusões do evolucionismo”. O negro, como ve-
mos, era o componente de uma raça inferior. O índio, por seu lado,
não tinha a capacidade de “se afeiçoar às mais simples concepções
do mundo”. E, quanto ao mestiço desses cruzamentos, no seu “pa-
rêntesis irritante” não há lugar para ele, é um desequilibrado, de um
desequilíbrio incurável, pois “não há terapêutica para este embate de
tendências antagonistas”10.
A ideologia do colonialismo era e ainda é alimentada por toda uma
literatura racista que nos vinha, ou nos vem, das metrópoles coloni-
zadoras, para nos interiorizar através da nossa própria autoanálise.
9 Cunha. Euclides da. Os sertões. Rio de Janeiro. Francisco Alves. 1933. passim.
10 Cunha. Euclides da. cp. cit
30
Costa, autor do livro História da psiquiatria no Brasil, afirmou que o
programa dessa entidade tinha como objetivo a intolerância e o obs-
curantismo. Fundada em 1923 e dedicada à prevenção de doenças
mentais, longe de estabelecer uma abordagem cientifica de doença
mental, adotava e enfatizava posições nitidamente ideológicas, ela-
borando propostas no sentido da adoção apaixonada e integral do
arianismo, da superioridade racial, justamente as que prevaleceram
na Alemanha nazista. Seus membros mais conspícuos passaram a
defender na área profissional, e publicamente, a esterilização e a
segregação perpétua de todos os indivíduos considerados loucos ou
desequilibrados, segundo os critérios de sua avaliação; daí passaram
a pregar o mesmo destino para as pessoas de “raça inferior”, ainda
segundo os padrões que adotavam e que definiam como tais os não-
-brancos puros11.
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a revista Arquivos Brasileiros de Higiene Mental, editada pela Liga,
publicava a lei alemã de esterilização dos “doentes transmissores de
taras”, com entusiástica introdução ao seu texto. “O mundo culto”,
dizia a publicação, “tomava conhecimento da nova e grande lei ale-
mã de esterilização dos degenerados”. A citada lei, de 14 de julho de
1933 era assinada por Hitler, além de Frick e Gurther, ministros do
Interior e da Justiça, respectivamente.
Outro artigo esclarecedor dos Arquivos foi aquele no qual o seu
autor procurava demonstrar que a Inquisição operara a partir de
uma “filosofia eugênica”, pois as suas torturas e sacrifícios “tiveram
uma consequência benéfica para a raça”. Em 1934, conta ainda Ju-
randir Freire Costa, a Liga associava-se à policia em ações “sempre
caracterizadas pela truculência”; a polícia fornecia, confidencial-
mente, nomes e endereços de alcoólatras, que eram, então, procu-
rados pelos psiquiatras da Liga e internados em hospitais e centros
ditos de saúde mental; ali eram submetidos a tratamentos de acordo
com os métodos da Liga, que funcionou, ostensivamente, durante
três décadas. Nela pontificavam médicos de renome, particularmen-
te psiquiatras: representavam a ciência oficial, isto é, a ciência das
classes dominantes, numa época em que o nazismo já se manifestava
e apresentava a raça alemã como “raça eleita”.
Entre esses nomes famosos, figuravam Renato Kelil, presidente
da Sociedade de Eugenia em 1929: Alberto Farani, presidente da
Seção de Estudos de Cirurgia e Sistema Nervoso da Liga de Higiene
Mental e chefe do serviço dos ambulatórios de Prolaxia Mental do
Hospital Rivadávia Correia; Xavier de Oliveira, docente de Clínica
Psiquiátrica da Faculdade Nacional de Medicina da Universidade do
Rio de Janeiro e médico do Hospital Nacional de Psicopatas.
A época da Liga de Higiene Mental, a década de 20 e a primeira
metade da década de 30, surgiram e se ampliaram consideravelmen-
te em nosso país, no campo quase virgem das ciências sociais, as
teses de Oliveira Vianna, com uma obra toda ela de cunho racista,
elitista e neocolonialista. Assim como aconteceu na época de Silvio
Romero, a produção cultural dominante espelhava a alienação social
e, consequentemente. cultural a qual estava submetida.
A obra de Oliveira Vianna, em particular, é um marco significativo
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de como a intelectualidade brasileira deixava-se vergar ideologica-
mente e refletia em sua produção uma rejeição à sua própria condição
de ser humano e social. Esta atitude representava, e atualmente ainda
representa, uma negação e/ou fuga de nosso ser étnico, cultural e
politico, expressa através de uma produção estimulada pelo neocolo-
nialismo; em outras palavras, o imperialismo tecnocrático.
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é capaz de participar da vida em comum, compreender a natureza
dos deveres recíprocos e respeitar as obrigações e os compromissos
mútuos. As diferenças biológicas que existem entre os membros de
diversos grupos étnicos não afetam de maneira nenhuma a organi-
zação política ou social, a vida moral ou as relações sociais.
Enfim, as pesquisas biológicas vêm escorar a ética da fraternidade
universal; pois o homem é, por tendência inata, levado à coopera-
ção e, se este instinto não encontra em que se satisfazer, indivíduos
e nações padecem igualmente por isso. O homem é por natureza
um ser social, que só chega ao pleno desenvolvimento de sua per-
sonalidade por trocas com os seus semelhantes. Toda recusa de
reconhecer este laço social entre os homens é causa de desintegra-
ção. É neste sentido que todo homem é o guardião de seu irmão.
Cada ser humano é apenas uma parcela da humanidade, à qual está
indissoluvelmente ligado.
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“...queremos oferecer a todo o mundo civilizado a nossa magnífica
filosofia no tratamento das raças como o maior protesto científico
e humano e a maior arma espiritual contra as ameaças sombrias
da concepção nazista da vida, este estado patológico de espírito
que pretende envolver a humanidade numa espessa e irrespirável
atmosfera de luto”.
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No plano político internacional, por outro lado, saía-se da po-
lítica de colaboração dos quatro grandes vencedores da II Guerra
Mundial — Inglaterra, França, União Soviética e Estados Unidos
— para o confronto da Guerra Fria. Assistia-se, ao mesmo tempo,
os movimentos de libertação da África, dentro do processo de des-
colonização que se dinamizava. Nesse contexto político iniciam-se
os ataques às conclusões dos cientistas da Unesco.
O mais relevante sintoma deste protesto e o que mais repercus-
são alcançou foi o de Arthur Jensen, professor de psicologia educa-
cional da Universidade de Bekerley. Ele combate as conclusões da
Declaração da Unesco de 1951 e a de 1964. Afirma textualmente:
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Brancos Negros
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humana. Outro livro deste gênero é Personas sexuais, de Camille
Paglia, que considera os papeis sexuais, o machismo e a feminili-
dade decorrentes apenas de nossa natureza biológica e não, tam-
bém, das relações culturais, históricas, estabelecidas entre homens
e mulheres; relações condicionadas pelas peculiaridades das épocas
e dos lugares onde ocorreram”14.
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credibilidade, é agora parte de nossa vida política. Por esta razão,
e talvez injustamente, o determinismo genético tomou-se o grande
tema de muitas discussões públicas sobre sociobiologia. (...) A ênfa-
se no egoísmo e na luta pela existência na evolução biológica teve
um efeito de continuação insidiosa na opinião pública (Bateson,
1989). A competição foi encarada como o motor da atividade hu-
mana. A experiência nas universidades e nas artes é avaliada pelos
mesmos parâmetros que supostamente resultam tão bem no campo
do esporte ou na feira. Os indivíduos prosperam compelindo e
vencendo. Esta visão da natureza humana, popular entre os políti-
cos de direita, foi justificada pelo recurso à biologia, e os próprios
biólogos foram, por sua vez, algo influenciados pelo movimento
de opinião pública. (...) Nenhum de nós sabe tudo, e a nossa ten-
dência para as generalizações tolas está sujeita à rápida correção
por outros cuja experiência tenha sido diferente. (...) Tal como as
coisas estão, o apelo à biologia feito pela Nova Direita não se dirige
tanto ao corpo coerente de ideias científicas como a um mito con-
fuso. Pensa-se na biologia como tratando da competição — e isso
significa luta. O conceito darwiniano da sobrevivência diferencial
nutre-se da crença na importância do individualismo15.
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Radinsky, Rothemberg e Mayers, pelo governo dos Estados Unidos,
para cultivar micróbios violentos destinados à guerra bacteriológi-
ca: ‘Essa pesquisa conduz a uma produção genética capaz de gerar
subpopulações variadas, que poderão ser utilizadas pelos que detêm
o controle tecnológico. Essas subpopulações poderão compreender
soldados combativos, robôs resistentes para executar as tarefas físi-
cas peníveis, ou filósofos-reis aos quais seriam transmitidos pode-
res hereditários’”. (Autocritique de la Science, Seuil, 1975)16.
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humanidade (ou de certas populações). O que levanta numerosas
questões ao mesmo tempo técnicas e éticas’”. (Les passions du sa-
voir, Fayard, 1988, p. 15-1)17
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gundo ele, parte da população não aceita a fusão e a formação de
uma nação plurinacional e sem barreiras. Esta resistência é sentida
principalmente nas regiões fronteiriças, onde o discurso de Jean-
-Marie Le Pen, líder da Frente Nacional, tem forte penetração.
Na Alemanha e na Suécia estão virando moda videogames dis-
tribuídos pela extrema direita britânica, com os sugestivos nomes
Jogar em Treblinka ou Quando o Gás Tiver Terminado o Trabalho Você
Terá Ganho18. O jogador consegue pontos matando judeus, turcos,
homossexuais e ecologistas ao som de Deutshland über Alles (Alema-
nha acima de tudo), estrofe glorificada por Hitler e depois da guerra
suprimida do hino nacional alemão.
Os ataques racistas se multiplicam e a ultradireita ganha terreno.
Os governos da Comunidade Europeia mantêm leis discriminató-
rias contra os imigrantes dos países não-europeus, apesar de lá se
encontrarem há mais de 15 anos. Não é de estranhar que os jovens
transformem o videogame em propaganda racista, pois não e apenas
na Alemanha e na Suécia que a juventude assim se diverte. Na Áus-
tria o fato se repete: Auschwitz Total... Hitler Superditador... Antiturcos
à Prova... Segundo Sandra Lacut, da France Press, de Viena:
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que revelam ao jogador seu grau de pureza racial. Aquele que for
apenas ‘meio ariano’ pode se desforrar ‘matando comunistas’. De
acordo com o grau de ‘impureza do sangue’, o jogador pode ser
varredor ou limpador de privadas. E o ‘judeu’ é automaticamente
atirado na câmara de gás”.
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nação elege como presa também uma minoria espanhola: os ciganos.
Estes últimos são hoje na Espanha cerca de meio milhão de pessoas
e, como no caso dos negros nos Estados Unidos, sua dança e sua
música são muito apreciadas.
Longe de melhorar, as coisas pioraram, assinala o volumoso estu-
do de oito capítulos elaborado e aprovado pela Comissão de Inves-
tigação do Racismo e Xenofobia criado pelo Parlamento Europeu,
presidido pelo eurodeputado Glyn Ford. Nem a Comunidade Euro-
peia, nem os governos dos seus estados-membros tomaram medidas
para corrigir a situação alarmante, já denunciada em 1986. O mito
da Europa como terra de asilo caiu por terra.
A Alemanha é o país onde os sentimentos racistas são mais clara-
mente expressos. Em 1989 (e daí para cá este sentimento aumentou),
cerca de 75% dos alemães ocidentais achavam que havia estrangeiros
demais no país e 93% eram favoráveis a reduzir o número de tra-
balhadores imigrantes. Cerca de 60% da população da ex-Alemanha
Ocidental admitem ter sentimentos antissemitas. As pesquisas reve-
lam, também, que um quinto dos alemães tem ódio racial contra afri-
canos e asiáticos e opiniões muito negativas sobre os turcos.
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haviam participado da aventura colonial como dominados. Em ou-
tras palavras: surgiram principalmente em territórios onde houve o
tráfico negreiro, a escravidão ou outras formas de trabalho compul-
sório típicas do sistema colonial. Grande parte de suas populações,
ou melhor, de sua composição demográfica, é esmagadoramente
não-branca.
Com a crise estrutural do sistema capitalista, na fase de impe-
rialismo tecnocrático, houve a necessidade de uma reciclagem no
processo e nas táticas de dominação. De um lado para consolidar o
seu domínio econômico e, de outro, como manifestação de racismo.
A primeira manifestação mais aguda deste comportamento foi
a operação que os Estados Unidos organizaram contra a Líbia em
1981. Foi preparada uma operação de terrorismo de listado para
assassinar seu líder. Depois de várias operações de agressão mili-
tar, nas quais foram abatidos dois aviões líbios (em território líbio),
constatou-se que um dos filhos de Kadafi havia sido assassinado.
Isto porém não sensibilizou a opinião pública mundial. A mídia
criou para consumo internacional a imagem de que Kadafi era o
líder do terrorismo internacional, o que os fatos desmentiram.
Depois veio a invasão da ilha de Granada. A pretexto de obe-
decer aos apelos de uma entidade fantasma, os norte-americanos
ocuparam a ilha, assassinaram seu presidente e centenas de seus ha-
bitantes. A opinião internacional não se mobilizou nem denunciou
o crime, possivelmente por se tratar de um país de negros.
Registramos também a invasão do Panamá, com o pretexto de
combater o narcotráfico. Em 1989 a 82ª Divisão Aero-transporta-
dora dos Estados Unidos invadiu seu território, prendeu o presiden-
te Noriega, sequestrou-o e levou-o para ser condenado pelos tribu-
nais norte-americanos. A intervenção norte-americana destruiu a
economia do pais, tentou extinguir o Exército e colocou um de seus
representantes como chefe de Estado. Mas a opinião pública não se
emocionou. Pelo contrário. Toda a imprensa mundial teceu elogios
ao ato. O Panamá é também um pais de negros, mestiços e índios.
Por fim, os casos mais recentes: a Guerra do Golfo contra o
Iraque, a invasão da Somália, a tentativa (que persiste) de ocupar o
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Haiti e os massacres de Ruanda passam como acontecimentos sem
relevância. As razões apresentadas são de “ação humanitária”, “res-
tauração da democracia” “combate ao narcotráfico”, pois não cola
mais o “perigo comunista’.
É uma reciclagem hipócrita do antigo sistema colonial, que se
reestrutura no neo-colonialismo tecnocrático, racista. Para justificá-
-lo utilizam-se não só da sociobiologia, da engenharia genética e das
hipóteses que procuram demostrar a existência de raças inferiores,
mas também de canhões, aviões e tanques de guerra.
Estamos às véspera do terceiro milênio. Vamos entrar numa épo-
ca em que as ordenações sociais serão radicalmente reformuladas.
Nesse processo as atuais nações atrasadas, dependentes e espoliadas,
vindas do antigo sistema colonial, assumirão um papel novo, resga-
tando o passado de dominação. E o realinhamento social também
será étnico, pois as raças não-brancas habitam por herança desse
sistema as regiões espoliadas. Este é o desafio do milênio que se
avizinha e que não será outro senão a realidade do socialismo em
dimensão planetária.
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Sobre o Autor
Clóvis Steiger de Assis Moura (Amarante, 1925 — São Pau-
lo, dezembro de 2003), mais conhecido como Clóvis Moura, foi um
sociólogo, jornalista, historiador e escritor brasileiro. Nasceu na ci-
dade de Amarante, no Piauí. Foi influenciado pelo marxismo, tendo
desenvolvido a Sociologia da Práxis Negra. Clóvis Moura questionou
a visão de Gilberto Freyre sobre a passividade do negro no Brasil,
destacando a resistência à escravidão dos quilombos. Em suas pes-
quisas tratou da rebelião dos escravos e da formação dos quilombos.
Apoiando-se na teoria de Marx, analisou a luta de classes no sistema
escravista. Para Clóvis Moura, a sociedade escravista brasileira era
subdividida em duas classes antagônicas: os senhores de escravos
(classe dominante) e os escravos (classe dominada). Os escravos pro-
duziam os bens materiais e as riquezas enquanto os senhores de
escravos detinham a propriedade e os meios de produção. Após a
abolição, os escravos, apesar de terem produzido as riquezas que ali-
cerçaram a economia brasileira, não tiveram direito à propriedade.
Militou pelo PCB e, em 1962, na cisão do partido, migrou para o PC-
doB. Destacou-se pela militância pioneira no movimento negro bra-
sileiro. Colaborou com artigos para jornais da Bahia e de São Paulo.
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