Clovis - Moura - Racismo e Luta de Classes No Brasil

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Retirado de: Arquivo Marxista da Internet: Clóvis Moura


(https://www.marxists.org/portugues/moura/index.htm)

MOURA, Clóvis. Atritos entre a História, o Conhecimento e o Po-


der. Revista Princípios, n. 19. Novembro de 1990.
MOURA, Clóvis. População e Miscigenação no Brasil. Revista
Princípios, n. 80. Agosto/Setembro de 2005.
MOURA, Clóvis. O Racismo como Arma Ideológica de Domina-
ção. Revista Princípios, n. 34. Agosto/Outubro de 1994.

Atribuição-CompartilhaIgual 4.0 Internacional (CC


BY-SA 4.0). Esta licença permite que outros remi-
xem, adaptem e criem a partir do seu trabalho, mes-
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termos idênticos.

© Clóvis Moura, 2020

Editora Terra sem Amos


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Projeto Gráfico:
Alexandre Wellington dos Santos Silva

Revisão:
Franciso Raphael Cruz Maurício

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)


M929 MOURA, Clóvis (1925-2003).
Racismo e luta de classes no Brasil - textos escolhidos de
Clóvis Moura. Editora Terra Sem Amos: Brasil, 2020.
48p.
ISBN: 978-65-990958-9-4
1. Racismo 2. Luta de classes 3. Brasil. I. Clóvis Moura.
II. Título
CDD: 305.80981

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Sumário

ATRITOS ENTRE A HISTÓRIA,


O CONHECIMENTO E O PODER................................05
A história oficial decreta Caxias como herói
e Zumbi como anti-herói........................................................... 07
O conceito de Pátria se torna uma ficção manipulada
pelos poderosos.............................................................................. 08
Exemplos do poder em luta constante contra
o saber e a História verídica..................................................... 10

POPULAÇÃO E MISCIGENAÇÃO NO BRASIL...............13

O RACISMO COMO ARMA IDEOLÓGICA


DE DOMINAÇÃO......................................................................... 19
Civilizados que mandam e bárbaros que obedecem..............24
A questão racial é essencialmente política
e não apenas científica............................................................... 28
O racismo brasileiro quer um país “eugênico”.......................30
Já se quis uma reforma “eugênica” dos salários:
maiores para os brancos, menores para os negros.................31
Da derrota do nazismo ao aparecimento
da Guerra Fria............................................................................. 33
Racismo e determinismo genético.............................................37
A Europa ergue um muro contra não-brancos e pobres......41
O racismo como ideologia neocolonial.....................................44

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ATRITOS ENTRE A HISTÓRIA,
O CONHECIMENTO E O PODER

Fazer história no Brasil, fora dos marcos oficiais, é uma prova


de coragem. São muitos os assuntos proibidos e muitos os heróis
sagrados das classes dominantes. Difícil é resgatar as raízes dos
verdadeiros construtores do País

A História no Brasil é um ramo problemático das ciências so-


ciais. Não por imprecisão conceituai ou metodológica, mas pelas
barragens culturais e políticas que a pressionam e dificultam a sua
legitimidade. Há uma distância imensa entre a verdade histórica
que cabe ao historiador registrar e a necessidade e exigências que
as classes dominantes impõem aos historiadores “oficiais”, ideólogos
dos valores, interesses e necessidades do atual tipo de sociedade.
Durante a época do Império escravista, que vai da nossa Inde-
pendência até 1889, temos uma historiografia orgânica desse modo
de produção (o escravismo), produzindo uma história que defendia
e/ou justificava os privilégios da classe senhorial, afirmava que o
escravismo era um modo de produção eterno, imutável e de acordo
com as leis divinas. A partir do segundo Imperador, esses historia-
dores passam a auferir benesses e privilégios desse tipo de socieda-
de. Essa produção era a munição que o Instituto Histórico e Geo-
gráfico do Brasil distribuía, como verdade inapelável, sendo todos
os seus membros, ou, pelos menos, os mais influentes, respaldados
generosamente por D. Pedro II.

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Para uma rápida compreensão do que estamos afirmando, veja-
mos o seguinte quadro do status social dos principais historiadores
daquela época: Domingos Gonçalves de Magalhães era Visconde
de Araguaia; Manuel de Araújo Porto Alegre era o Barão de Santo
Ângelo e Francisco Adolfo Vamhagen, o pontífice da historiografia
da época, era Visconde de Porto Seguro.
Não apenas pelos títulos de nobreza esses historiadores eram
chamados de os áulicos da corte, mas também por vantagens que
auferiam para poder realizar suas pesquisas proporcionadas pelo
governo monárquico-escravista.
Se não vejamos: Vamhagen foi adido de primeira classe de nos-
sa diplomacia em Lisboa, nomeado em 18 de maio de 1842 por
sugestão de Vasconcelos de Drummond e influência do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, tendo, depois, viajado pela Europa
e outras regiões através de comissões e outros recursos do governo
imperial; Gonçalves Dias foi incumbido, pelo mesmo governo im-
perial, em 1851, de copiar documentos em estados brasileiros e, em
1854, encarregado de estudar a educação primária e secundária na
Europa, onde pesquisou em vários arquivos; João Francisco Lisboa,
em 1856, assumiu a responsabilidade de pesquisar os arquivos de
diversos países; Joaquim Caetano da Silva é encarregado da legação
brasileira em Haia, onde fez pesquisas em arquivos holandeses; Ra-
miz Galvão é comissionado pelo governo imperial para estudar a
organização das bibliotecas europeias; José Higino também é envia-
do para pesquisar arquivos, isto sem nos referirmos a outros como
Oliveira Lima e Norival de Freitas, todos financiados pelo governo
imperial de diversas maneiras, inclusive através de verbas particu-
lares do próprio imperador, que as repassava ao Instituto Histórico
e Geográfico.
Nunca o axioma “quem tem o poder dá o saber” foi tão ajustado a
uma realidade como no Brasil imperial, equiparando-se, no particu-
lar, à realidade montada por Frederico II na Alemanha e Catarina II
na Rússia. O “rei filósofo”, como era chamado o Imperador D. Pedro
II, através de mecanismos algumas vezes sutis, outros abertamente
impositivos, controlava a intelligentsia da época, especialmente os
historiadores. Era uma visão política, na área cultural, que devemos

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reconhecer como maquiavelicamente eficiente em D. Pedro II.
Sabedor de que os historiadores plasmam o ethos cultural de uma
nação, centrou sua atividade de controle e desenvolvimento dessa
produção historiográfica, condicionando-a à ideologia do Império
escravista, através da concessão de facilidades aos seus produtores.
No particular, o historiador Geraldo M. Coelho escreve:

“acredito poder situar, dentro dessa perspectiva, o Instituto His-


tórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). A instituição e o papel que
ocupou na sociedade brasileira do século XIX, assim como o tipo
de história que elaborou, operou no sentido de produzir e repro-
duzir uma fração da ideologia da classe dominante brasileira e, a
partir do conceito de ideologia, a história integraria uma forma
mais ampla de como a classe dominante explicava sua posição no
sistema de classes. Assim, os intelectuais que se organizavam em
tomo do IHGB, atuando em nível de superestrutura, produziram
um modelo de historiografia - a história oficial - que consagrava
o sistema de dominação existente no Brasil, fazendo com que essa
produção intelectual exercesse uma ação de retomo sobre a estru-
tura. (...) O IHGB, na condição de aparelho ideológico do Estado,
desenvolveria uma atividade intelectual - a produção da história
integrada na ideologia da classe dominante dos proprietários rurais
do Brasil do século XIX”1.

A história oficial decreta Caxias como herói e


Zumbi como anti-herói
Proclamada a República, esse polo único e centralizador de do-
minação ideológica irá se diversificar, mas, de qualquer maneira, os
polos de dominação da produção historiográfica, embora havendo
novos elementos que irão permear essa dominação, continuarão nas
mãos do Estado, no fundamental.
Os cargos burocráticos passam a ser distribuídos entre o Itama-
rati e outros departamentos do estamento burocrático, magistério
ou sinecuras políticas ocasionais. Com isto, a produção histórica
se diversifica, com João Ribeiro, Euclides da Cunha, Sílvio Rome-
1 COELHO, Geraldo M. História e ideologia, o IHGB e a República, Universidade
Federal do Pará, 1981, p. 10-11.

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ro, mas o caráter elitista continua, mesmo havendo algumas vozes
que não aceitavam a condição passiva de intelectuais orgânicos do
sistema. Daí por que o julgamento de valor de quase todos eles em
relação aos fatos e heróis continuará sendo o mesmo estabelecido
pelos historiadores do Império. Esses heróis “oficiais” continuam
sendo Duque de Caxias, Domingos Jorge Velho, Pedro I, Pedro II,
Princesa Isabel, Barão de Cotegipe, Feijó, Barão do Rio Branco e,
também, Deodoro da Fonseca e os demais participantes do golpe
militar republicano.
Por outro lado, continuam a ser anti-heróis Zumbi, os heróis da
Revolta dos Alfaiates na Bahia de 1798 (Luís Gonzaga das Virgens,
Lucas Dantas, João de Deus do Nascimento e Manuel Faustino dos
Santos Lira), assim como, também, outros heróis populares como
frei Caneca, Elesbão Dandará, Luís Sanim, Pacífico Licutã e os de-
mais líderes do movimento insurrecional de 1835 em Salvador, além
de Borges da Fonseca, Pedro Ivo, Padre Roma, Preto Cosme, Padre
Miguelinho, Sóror Joana Angélica e todos aqueles que constituem o
grande painel de heróis sem monumentos, mas que desarticularam
as estruturas de poder em vários momentos da nossa história. Eles
não são considerados heróis porque o seu heroísmo passa pela ás-
pera estrada dos derrotados.
A nossa “história oficial” seleciona como heróis os vencedores,
e não aqueles que foram derrotados nos diversos momentos de re-
belião, rebeldia ou projeto de mudança social. Daí a história ser
feita através de um processo seletivo no qual as classes dominantes
estabeleceram o critério de quem é herói ou anti-herói. Com isto,
os produtores dessa historiografia fazem-na ter uma visão elitista e
marcial do nosso desenvolvimento.

O conceito de Pátria se toma uma ficção mani-


pulada pelos poderosos
O conceito de Pátria é, por isto, manipulado constantemente por
esses produtores da história. Mas, para eles, defender a Pátria é
defender o status quo em toda a sua plenitude e através de todos
os meios. Defender a Pátria é, historicamente, esmagar a República

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de Palmares; é esmagar a República Pernambucana de 1817; a In-
confidência Baiana; a Sabinada; a Cabanagem; a Balaiada; Canudos
e Contestado; os Mukers; as revoltas escravas; a Revolução Praieira;
o movimento da Aliança Nacional Libertadora e os guerrilheiros do
Araguaia.
Este conceito de Pátria é, portanto, abstrato e não se concretiza
em uma visão política nas camadas populares que o desconhecem.
Em um programa na TV Cultura de São Paulo, do qual participa-
mos, o repórter de rua perguntou a uma criança “o que era Pátria”.
Ela respondeu: - a parada do dia, os soldados marchando...
Ora, de fato, para uma criança do Brasil, carente de educação,
alimentação, família estável, bem-estar e lazer, a Pátria somente se
materializa no dia 7 de setembro, através de uma demonstração de
força militar. Porque ela inexiste, não se materializa, não se corpora-
liza e se manifesta para o cidadão em qualquer outro nível. É apenas
uma ficção, pois os seus indicadores concretos são concedidos aos
privilegiados, ficando para os pobres apenas uma pátria simbólica.
Para manter esse conceito marcial de pátria, as classes dominan-
tes e os grupos militares, como estamentos de sustentação política,
criam “áreas proibidas da história” com limitações, fronteiras e san-
ções para quem as transgredir.
Há, sub-repticiamente, uma institucionalização da história. A
produção dos historiadores deve ser condicionada a diversos pa-
drões de julgamento para ser aprovada. Não vamos nos estender,
aqui, como essa produção é preconceituosa em relação aos heróis
da transformação, às mulheres, aos negros e a outras camadas e seg-
mentos ou minorias da nossa sociedade. Vários trabalhos já foram
feitos nesse sentido e não é este o momento para uma análise exaus-
tiva dos mesmos. O certo é que aqueles que obedecem ao grande
projeto institucional conseguem circular, enquanto outros, que têm
a coragem de transpor a fronteira do proibido, sofrem as sanções
dos controladores do saber histórico no Brasil.
Os assuntos proibidos mais recentes, ou a revisão radical, por
parte dos historiadores, dos heróis do passado e a participação da
plebe como agente dinâmico no processo de mudança estrutural

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são sistematicamente congelados pelos detentores do poder-saber
no Brasil.
Exemplos: a Guerra do Paraguai, a atuação de Caxias na mesma.
Outros exemplos poderiam ser acrescentados, mas em um pequeno
artigo estes são suficientes. Quando os fatos são mais próximos, esse
complexo de elementos inibidores fica mais atuante e fatos como o
movimento “constitucionalista” em São Paulo, de 1932, a chamada
“intentona comunista” de 1935, afirmações de técnicos estrangeiros
de que no Brasil não havia petróleo, e outros, também significativos,
são esquecidos ou negados pelos historiadores oficiais.

Exemplos do poder em luta constante contra


o saber e a História verídica
No particular, queremos nos reportar a alguns fatos relacionados
com autores que escreveram fora da bitola oficial sobre alguns pro-
blemas que deviam ser silenciados. Um deles é a revolta dos mari-
nheiros liderados por João Cândido em 1911. Como se sabe, esses
marinheiros lutavam contra as condições iníquas, impostas a eles,
na sua esmagadora maioria composta de negros; lutavam contra os
castigos corporais por indisciplina, isto é, serem chibateados como
nos tempos da escravidão. Não vamos narrar, aqui, a epopeia desses
marinheiros, mas as conseqüências para aqueles que escreveram so-
bre o fato, não ao lado da Marinha, mas dos marinheiros.
Vamos nos referir a três exemplos dos que se arriscaram a escre-
ver sobre a Revolta da Chibata. Edmar Morei, na década de 1950,
publicou um livro-documentário mostrando o código disciplinar
desumano da Marinha, dando razão aos marujos que contra ele se
insurgiram. O livro alcançou repercussão internacional e o autor
teve os seus direitos civis cassados com o golpe militar de 1964.
Outro que tentou escrever sobre o mesmo assunto foi Aparício
Torelli (Barão de Itararé), político e humorista que dirigia no Rio
de Janeiro o jornal A Manhã. O seu artigo foi considerado ofensivo
à honra da Marinha e alguns dos seus membros o sequestraram e
o espancaram barbaramente, sem que houvesse nenhuma punição
para os criminosos. No dia seguinte ao sequestro-espancamento,

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Aparício Torelli afixou um cartaz no lado exterior da porta do seu
escritório onde se lia: “Entre sem bater...”
Finalmente temos o caso do poeta francês Benjamin Peret. Che-
gando ao Brasil, entusiasmou-se com o episódio da revolta da Arma-
da, liderada pelo marinheiro João Cândido. Em conseqüência, levou
tempos pesquisando sobre o assunto e escreveu um livro narrando
fielmente os acontecimentos. Foi o bastante para que elementos da
Marinha invadissem a tipografia onde o livro estava sendo impresso,
destruíssem os originais e a composição e, em seguida, prendessem
o seu autor. Peret ficou encarcerado até que a intelectualidade bra-
sileira procurou interceder por elejunto ao governo de Juscelino.
Mesmo assim, foi expulso do país como subversivo e agitador.
Por outro lado, na década de 1960, os historiadores Joel Rufino
dos Santos, Maurício Martins de Mello, Nélson Werneck Sodré,
Pedro de Alcântara Figueira, Pedro C. Uchoa Cavalcanti Neto e Ru-
bem Cesar Fernandes elaboraram e executaram o projeto História
Nova do Brasil. Não era sequer uma obra marxista, mas procurava
inverter certos julgamentos alienados da história marcial do poder.
Com o golpe militar de 1964, não só a obra foi recolhida, como os
seus autores presos, pois todos eles eram subversivos, no pensamen-
to dos milicos que compunham o IPM encarregado do processo. E
como subversivos foram julgados. E ridículo o episódio se não fosse,
também, uma violência ao direito de a Inteligência criar e informar.
Nas circunstâncias político-institucionais do Brasil, fazer, ou me-
lhor, refazer a história implica, também, um ato de coragem. Por
exemplo, a História Militar do Brasil de Nelson Werneck Sodré foi
recolhida porque registrava fatos que a nossa história marcial não
permite. Tanto esse livro como a História Nova do Brasil estão “in-
terditados para todo o território nacional”.
Há, como vemos, uma instituição invisível que censura, castra,
reprime ou inibe a publicação de livros ou artigos que procuram
repor, em primeiro plano, a ação dos oprimidos como agentes dinâ-
micos do processo social.
Exemplo disto foi a sanção sofrida da parte das elites militares
pelo cronista Lourenço Diaféria, por haver escrito uma crônica le-

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vemente irônica em relação à estátua do Duque de Caxias, existente
em São Paulo. Foi condenado à prisão sem que o direito à liberdade
de imprensa e de expressão pudesse defendê-lo da truculência po-
lítico-militar.
Tudo isto mostra — de forma muito sintética, mas, ao que nos
parece, convincente — que fazer história e, por extensão, ciências
sociais fora dos quadros institucionais e da visão marcial do poder,
é um ato de coragem, também.

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POPULAÇÃO E MISCIGENAÇÃO NO BRASIL

Vamos agora situar historicamente o problema que decorreu em


consequência dessa situação da Metrópole colonizadora e o Brasil e,
em seguida, analisar as ideologias de rejeição étnica e social criadas
pelo aparelho de dominação aqui implantado, que era uma extensão
daquele existente em Portugal. Procuraremos, também, demonstrar
como esse aparelho de dominação determinou e influiu poderosa-
mente sobre a situação onde essas populações descendentes desses
segmentos étnicos historicamente dominados estão situadas atual-
mente, imobilizadas ou semi-imobilizadas no sistema sociocultural
existente no Brasil.
O problema de uma nação-país ou área que se formou após a
expansão do sistema colonial e teve como componente demográfico
membros de diversas etnias na composição de sua estrutura sócio-
-racial — ou seja, da população nativa, da dominadora-colonizadora
e daquela compulsoriamente trazida para o trabalho escravo — deve
ser estudado levando-se em consideração o sistema de dominação/
subordinação que foi estrategicamente montado; os elementos de
controle social e de repressão organizados pelo grupo populacional
dominante/colonizador como aparelho repressivo/organizador; e a
ideologia justificatória que essa estrutura de denominação produziu.
Nos países poliétnicos, formados em consequência dessa expan-
são do colonialismo, essas populações foram alocadas inicialmente
em espaços sociais delimitados rigidamente pelas forças domina-
doras que estabeleceram o papel, o status e a função de cada uma
no processo de trabalho e o seu nível de valorização social e étnica.
Dessa forma, não houve uma distribuição populacional horizontal,

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igualitária, mas ela foi verticalizada socialmente à medida que as
sociedades dominadas pelo colonialismo se diversificavam interna-
mente e ficavam estruturalmente mais complexas. Essa distribuição
populacional realizou-se dentro de padrões normativos étnicos im-
postos pelas metrópoles.
Houve, portanto, uma imbricação entre etnia e status, etnia e va-
lores sociais e etnia e papéis sociais e culturais. Estabeleceram-se
critérios que determinaram a posição de cada grupo ou segmento ét-
nico nos diversos níveis de estratificação, com barreiras e fronteiras
que impediam o processo de mobilidade social em nível de igualdade
de cada etnia dominada em direção ao cume da pirâmide social.
Podemos dizer que, com isto, ficou estabelecido que na sua base
estava a população escrava inicialmente das etnias nativas e poste-
riormente das populações trazidas da África e os seus descendentes.
Nas camadas intermediárias as diversas formas de mestiçagem e,
finalmente, a população composta dos colonizadores que ocupavam
o seu cume.
Em segundo lugar, queremos demonstrar como essas popula-
ções etno dominadas iriam praticamente ser imobilizadas e ainda
como foram estabelecidos mecanismos imobilizadores e inibidores
para essas camadas etnicamente inferiores que, ao mesmo tempo, se
multiplicavam via miscigenação. Por outro lado, todo o sistema ad-
ministrativo, militar e religioso era também estruturado para ser a
reprodução daqueles valores de dominação étnica que a cada grupo
miscigenado era concedido pelo colonizador.
Contudo, a miscigenação (fato biológico) não criou uma democra-
cia racial (falo sociopolítico). Ela estava subordinada a mecanismos
sociais de dominação, estruturas e técnicas de barragem e sanções
religiosas e ideológicas. Esse conjunto de elementos e estratégias
inibidoras determinava o imobilismo ou semimobilismo social, cul-
tural e político das vastas camadas, isto porque os espaços sociais
que davam status econômicos ou de prestígio social ou cultural lhes
eram vedados, pois esses mecanismos de seleção étnica compulsórios
reproduziam os níveis de poder econômico, social e cultural das
estruturas de poder dominadoras que representavam os interesses
da classe senhorial local e da Corte e o poder do Estado português.

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No Brasil historicamente podemos dizer que a população do co-
lonizador, ou seja, portuguesa, foi sempre até o século XIX menor
do que as etnias dominadas (índias e africanas e seus descendentes)
e, em consequência, o aparelho de dominação quer militar, quer
ideológico teria de ser violento, porque era uma simples continua-
ção do aparelho do Estado português. O Brasil não possuía Estado
próximo. Isso, portanto, fazia pane da mecânica defensiva do siste-
ma colonial escravista, dirigido, em última instância, pelo Estado de
Portugal. Por isso mesmo, essa minoria conseguia dominar. Quanto
à população portuguesa inicial e o seu desdobramento demográfico
posterior, escreve Artur Ramos:

“Na sua viagem ao Brasil Spix e Martius conseguiram que antes da


chegada do rei, a população do Rio de Janeiro podia ser calculada
em 50.000 almas, sendo o número de habitantes de cor superior à
dos brancos. De 1808 a 1817 vieram da Europa 24.000 portugue-
ses, além de bom número de franceses, suecos, alemães e italianos,
aqui estabelecido depois da abertura dos portos, como negociantes,
técnicos e artesões ou simples operários. A população total do país
podia ser calculada em mais de quatro milhões de habitantes pelas
alturas de 1819”.

Esse fluxo lusitano que representava a estrutura de poder domi-


nante inicial — ainda segundo Artur Ramos — sempre em minoria
étnica, detinha, no entanto, o controle sobre a população poliétnica
numericamente superior. De acordo com ele, “segundo dados do De-
partamento Nacional de Imigração, de 1884 a 1944 apenas 1.227.304
indivíduos de nacionalidade portuguesa entraram no Brasil”.
A população branca inicial — minoritária em relação ao contin-
gente demográfico de índios, negros e mestiços, conforme veremos
depois, mais politicamente dominante — é que se miscigenará com
essas etnias não-brancas, majoritárias mas dominadas. O seu sta-
tus de dominação quer no setor administrativo, que representava
o poder da Metrópole dominadora, quer no militar e econômico,
patrimonial ou social, constituía a estrutura de poder. Essa estru-
tura exerceu os mecanismos de dominação selecionadores, criou
barreiras de dominação étnica, estabeleceu as formas de julgamento

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de brancos e não brancos, de homens livres e escravos, conseguiu
evitar que existisse qualquer forma significativa de ascensão dos es-
cravos (índio e negros) que não fosse extralegal, através das guerras
dos índios contra os invasores e dos quilombos negros, insurreições
e guerrilhas por parte destes últimos. As alforrias não chegavam a
compor uma variável ponderável nesse contexto. Por outro lado, a
Metrópole privilegiou os dominadores via estratégia de concessão
de terras. Até hoje, através dessa estratégia do monopólio inicial
da terra e de poder os descendentes das suas linhagens não sofrem
nenhum processo significativo e desarticulador, nenhum processo
de compreensão jurídica, social e cultural capaz de desarticulá-los
estruturalmente de modo substancial, permanecendo quase todos
com patrimônio e status quase inalteráveis no polo dominador”.
Quanto ao índio, particularmente, o primitivo habitante, a sua
trajetória é bem diferente do grupo português que chegou como
dominador. Se fizemos uma estimativa de 4 milhões de índios na
descoberta — há quem estime em muito mais — o processo foi o
inverso. Segundo Darcy Ribeiro, depois da fase genocídica da ocu-
pação, de 1900 até 1957 extinguiram-se 87 grupos tribais como
comunidades étnicas. Mais de 30% das tribos desaparecidas perten-
cem a zonas que foram conquistadas pela economia pastoril e 45%
pela economia extrativa (grupos caucheiros, seringueiros, castanhei-
ros e outros coletores de produtos florestais).
Atualmente esse extermínio prossegue através de grupos de ga-
rimpeiros representantes de empresas transnacionais. Os índios
destribalizados que se incorporaram aos camponeses pobres tam-
bém são perseguidos, expulsos das terras ou assinados.
A partir da época assinalada por Darcy Ribeiro uma política de-
senvolvimentista e de modernidade fez com que as coisas se agravas-
sem ainda mais. As fronteiras avançam, vão ocupando terras in-
dígenas, assassinando caciques e procurando, muitas vezes, incluir
os índios em projetos econômicos predatórios e antiecológicos que
objetivam extrair as riquezas do subsolo daquelas terras.
Sobre essa situação escreve Dalmo de Abreu Dallari:

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“A invasão de terras indígenas e a passividade do órgão governa-
mental de proteção ao índio estão ligadas à visão desenvolvimentis-
ta, que não dá qualquer valor à pessoa humana, não leva em conta
que os índios têm direitos de cidadãos e jamais admitiu a hipótese
de fazer o desenvolvimento econômico com o índio e não contra
o índio. Os invasores de terras são, às vezes, meros aventureiros
audaciosos que pretendem obter riqueza rápida de qualquer modo.
Outras vezes são empresas de aparência respeitável, com amplos
recursos técnicos e cálculos muito precisos quanto ao proveito eco-
nômico que poderiam tirar do solo ou do subsolo da terra dos
indígenas. Mas em todos os casos a invasão é estimulada pela quase
certeza, baseada na experiência, de que não haverá grandes obstácu-
los, pois o índio não dispõe de recursos para agir sozinho e a Funai
tem autonomia limitada, estando limitada aos objetivos do governo”.

A essa expansão civilizadora, para Darcy Ribeiro,

“três são as reações possíveis dos indígenas. A fuga para territórios


ermos, com o que apenas adiam o enfrentamento. A reação hos-
til aos invasores, que transtorna toda a vida tribal pela imposição
de um estado de guerra permanente em que o funcionamento de
muitas instituições se toma inviável e outras têm de ser dramatica-
mente redefinidas. A saída final é a aceitação do convívio porque
este representa efetivamente, uma fatalidade inelutável. Nela cairá
necessariamente cada tribo, seja ao fim de longos períodos de fuga
ou de prolongada resistência afinal tomada impraticável, assente na
esperança de controlar a situação”.

Sem querermos fazer uma análise estrutural e dinâmica do as-


sunto, desejamos destacar como, hoje, os mecanismos de inferiori-
zação étnica criados pelos primeiros colonizadores ainda exercem
a sua estratégia através de outras formas de controle e sujeição ca-
pazes de manter a população indígena lesada e inferiorizada. Com
isto, aquilo que se chamou processo civilizatório e que antes se chamava
catequese e evangelização dos povos pagãos manteve os remanescen-
tes das antigas populações indígenas reduzidos a apenas 185 mil
(1982), marginalizados e subalternados.
Queremos salientar, porém, que as tribos sobreviventes estão, no
momento, reavivando a sua identidade étnica, fato que determina

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um nível de consciência dos seus direitos etnopolíticos bem mais
dinâmicos e abrangentes. Contudo, esse renascimento da consciên-
cia será combatido e possivelmente neutralizado por estratégias de
controle das atuais estruturas de poder e oligarquias territoriais. A
chacina ocorrida em 28 de março de 1988 de 14 índios em Ticuna,
no Igarapé Capacete, através de uma ação organizada pelo madei-
reiro Oscar Castelo Branco, mostra como a estratégia genocídica
do tempo do descobrimento, embora modernizada continua no seu
dinamismo. A Funai, ao invés de tomar medidas de proteção e pu-
nição, demitiu os professores índios que denunciaram a chacina.
Em agosto de 1988 os criminosos foram postos em liberdade por
sentença do tribunal de Recursos.

18
O RACISMO COMO ARMA IDEOLÓGICA
DE DOMINAÇÃO

Ao longo da história, o racismo foi a justificação dos privilégios


das elites e dos infortúnios das classes subalternas. Agora ele se
renova como instrumento de dominação.

Sobre o racismo, um dos temas mais polêmicos, instigantes e


inesgotáveis do mundo moderno, concentram-se opiniões contra-
ditórias, que discutem, em vários níveis, as consequências de sua
prática. A discussão sobre as diversas formas de sua atuação, signi-
ficado e função vem sempre acompanhada de uma carga emocio-
nal, o que demonstra como a polêmica que se monta em torno de
seu significado transcende em muito as questões acadêmicas, para
atingir um significado mais abrangente, de ideologia de dominação.
Somente admitindo-se o papel social, ideológico e político do racis-
mo poderemos compreender sua força permanente e seu significado
polimórfico e ambivalente.
Apenas desta forma poderemos compreender por que se trata
de um conceito tão polêmico e, também, por que em determina-
dos contextos políticos e momentos históricos o racismo adquire
tanta vitalidade e se desenvolve com tanta agressividade: ele não é
uma conclusão tirada dos dados da ciência, de acordo com pesqui-
sas de laboratório que comprovem a superioridade de um grupo
étnico sobre outro, mas uma ideologia deliberadamente montada
para justificar a expansão dos grupos de nações dominadoras sobre
aquelas áreas por eles dominadas ou a dominar. Expressa portanto
uma ideologia de dominação, e somente assim pode-se explicar a

19
sua permanência como tendência de pensamento. Vê-lo como uma
questão científica cuja última palavra seria dada pela ciência é plena
ingenuidade, pois as conclusões da ciência condenam o racismo e
nem por isso ele deixa de desempenhar um papel agressivo no con-
texto das relações locais, nacionais e internacionais.
O racismo tem, portanto, em última instância, um conteúdo de
dominação, não apenas étnico mas, também, ideológico e político.
É por isso ingenuidade, segundo pensamos, combatê-lo apenas atra-
vés do seu viés acadêmico e estritamente científico, uma vez que ele
transcende as conclusões da ciência e funciona como mecanismo de
sujeição e não de explicação antropológica. Pelo contrário, superpõe-
-se a essas conclusões com todo um arsenal ideológico justificatório
de dominação. Lapouge, um dos teóricos, dizia: “Estou convencido
de que no próximo século milhões de homens se matarão por um
ou dois graus do índice cefálico”. Isto foi escrito em 1880. O que
este teórico do racismo queria expressar eufemisticamente é que a
humanidade travaria a maior guerra de sua história e que as diferen-
ças raciais seriam um dos pretextos ideológicos de que os agressores
lançariam mão para justificar a conquista de territórios colonizáveis.
É uma constante o traço antropológico estar embutido na crista
da ofensiva racista de dominação. Com isto não queremos dizer que
toda antropologia é racista. Pelo contrário. Mas o que acontece é que
a divulgação que se faz desta ciência, especialmente para a opinião
pública leiga, é neste sentido. A expressão de Lapouge teve contesta-
dores, mas o que se viu foi a florescência progressiva desta posição
no final do século XIX e início do XX, a ponto de fazer com que
milhões de pessoas dela compartilhassem. O racismo é um multipli-
cador ideológico que se nutre das ambições políticas e expansionistas
das nações dominadoras e serve-lhe como arma de combate e de
justificativa para os crimes cometidos em nome do direito biológico,
psicológico e cultural de “raças eleitas”. Há também o racismo inter-
no em várias nações, especialmente nas que fizeram parte do sistema
colonial, através do qual suas classes dominantes mantêm o sistema
de exploração das camadas trabalhadoras negras e mestiças.
Com a montagem do antigo sistema colonial e a expansão das
metrópoles colonizadoras, esse racismo se desenvolveu como arma

20
justificadora da invasão e domínio das áreas consideradas “bárba-
ras”, “inferiores”, “selvagens”, que por isso mesmo seriam beneficia-
das com a ocupação de seus territórios e a destruição de suas popu-
lações pelas nações “civilizadas”.
O racismo larval que encontramos em todos os povos antes da
aventura colonialista passa a revestir-se de uma roupagem científica
e ser manipulado como se ciência fosse. No particular podemos
dizer que o racismo moderno nasceu com o capitalismo. Referimo-
-nos ao racismo como o entendemos modernamente, o qual procura
justificar a dominação de um povo, nação ou classe sobre outra
invocando argumentos “científicos”. Antes do aparecimento do ca-
pitalismo,

“...as tentativas que foram feitas para justificar a dominação euro-


peia sobre os indígenas eram fundadas em crenças sobrenaturais.
Como os europeus eram cristãos, ao contrário dos povos submeti-
dos, nada mais lógico e natural de que o Deus todo-poderoso dos
cristãos recompensasse os seus adeptos. Os donos de escravos ne-
gros podiam inclusive justificar a escravidão em uma passagem do
Velho Testamento, no qual se lê que os filhos de Cam foram con-
denados a ser lenhadores e aguadeiros. Obviamente, essas razões
sobrenaturais logo começaram a perder seu valor e em seguida
os brancos imaginaram outras justificativas mais de acordo com a
natureza. A doutrina da seleção natural e da sobrevivência do mais
apto foi um argumento que veio a calhar. A rapidez com que este
conceito puramente biológico chegou a dominar em todos os cam-
pos e atividades do pensamento europeu nos dá a ideia da neces-
sidade urgente que se precisava para justificar a dominação. Nessa
teoria universalmente aceita, a dominação europeia encontrou a
forma de justificar-se que estava procurando. Já que os brancos
haviam conseguido mais êxito que as outras raças, tinham de ser,
per si, superiores a elas. O fato de que esta dominação tinha data
muito recente foi justificado alegando-se que o europeu médio não
tinha perspectiva mundial, assim como os outros argumentos que
procuravam demonstrar que as raças restantes ocupavam na reali-
dade uma posição inferior na escala da evolução física”1.

É exatamente nesta confluência do capitalismo com as doutrinas


biológicas da luta pela vida e a sobrevivência do mais apto que o
1 Linton, R Estudio del hombre. México. Fondo de Cultura Econômica, 1942, p. 59.

21
racismo se apresenta como corrente “cientifica”. Surge então a ideia
de raça como chave da história. Ela aparece exatamente na Inglaterra
com Robert Knox (Races of Men, 1850) e na França com Arthur de
Gobineau (Essai sur l ’inégalilé des races humaines). Para Alan Davies,

“...do primeiro surgiu o mito do gênio racial saxão — mais tarde


anglo-saxão — e do último surgiu o mito do gênio racial ariano;
mas ambos os mitos eram variantes do tema geral da superiorida-
de branca europeia sobre os não-brancos. Sua gênese foi política.
Knox procurava provar que o homem saxão era ‘democrata por
natureza’ e por isto o futuro dominador da terra. Gobineau, por
outro lado, não gostava da democracia e procurou provar que o
seu surgimento era um sinal certo de decadência e da morte imi-
nente da civilização. Em ambos os casos as raças não-brancas eram
relegadas a uma posição inferior como símbolos dos elementos
primitivos e não-criativos na natureza humana”2.

Deduz-se, portanto, sem muito esforço, que o racismo pode ser


considerado — da forma como o entendemos atualmente — um
dos galhos ideológicos do capitalismo. Não foi por acaso que ele
nasceu na Inglaterra e na França e depois desenvolveu-se tão dina-
micamente na Alemanha. O racismo é atualmente uma ideologia de
dominação do imperialismo em escala planetária e de dominação de
classes em cada país particular.
Desta forma explica-se o sistema colonial e o pilar de seu êxito:
de um lado exterminar as populações autóctones das áreas ocupa-
das e, de outro, justificar o tráfico negreiro com a África, um dos
fatores mais importantes da acumulação capitalista nos países euro-
peus. As populações autóctones não tinham direito aos territórios
onde viviam por serem primitivas; e às africanas, que já sofriam
a maldição bíblica de Cam, juntava-se agora seu atraso biológico,
sua semelhança e proximidade com os mais primitivos espécimes
da raça humana, quer dizer, eram antropoides que se desviaram de
sua árvore genealógica. Com isto, o chamado processo civilizatório
tinha o respaldo da ciência. A afro-América, que compreendia, no
2 Daves. Alain “A ideologia do racismo’, in A Igreja e o racismo. Rio de Janeiro,
Vozes, 1982, pp 18-19.

22
século XVIII. o Caribe (Antilhas, Guianas), e grande parte da Amé-
rica espanhola continental (costa do Peru, partes do que são hoje a
Venezuela e a Colômbia) já estavam inteiramente dominadas, e a
justificativa para sua dominação era a mesma: a incapacidade inata
(biológica) que os nativos tinham para se civilizarem.
Toda essa população nativa ou compulsoriamente trazida da Áfri-
ca fazia parte de uma massa sem história, sem máscara, sem cultura,
sem moral e sem perspectiva civilizatória. Já no início do século XIX
os teóricos racistas substituíram as explicações um pouco vagas por
explicações “científicas”, como já foi dito, enquanto as demais áreas
da Ásia. África e Oceania eram ocupadas com o mesmo pretexto.
Foi a época áurea da antropometria, quando Gobineau, Ammon,
Broca, Levi e Quatrefages desenvolviam pesquisas no sentido de sa-
ber se os habitantes das cidades eram superiores (por questões bio-
lógicas) aos camponeses pela sua capacidade craniana; se os nórdicos
eram superiores aos alpinos ou, como queria Levi, se os mediterrâneos
eram superiores a outras “raças” europeias. Tais conclusões eram
baseadas em pesquisas históricas: na mensuração de crânios e es-
queletos; na medição de índices cefálicos; e na capacidade craniana
de cada grupo pesquisado. Tudo isto, no entanto, representava, em
última instância, as contradições e os conflitos das nações europeias
em luta pela dominação continental. Convém notar que alguns de-
les, como é o caso de Gobineau, chegaram às suas conclusões antes
de terem lido A origem das espécies, de Darwin, que surgiu em 1859
e deu novo alento a essas hipóteses com sua teoria da “sobrevivên-
cia do mais apto”, criando a escola do darwinismo social. Como diz
uma antropóloga. “havia-se descoberto uma razão ‘cientifica’ que
santificava o velho axioma ‘o poder faz o direito’”.
Por outro lado. entrava-se na época aguda do colonialismo e das
disputas pelos territórios conquistados ou a serem conquistados.
Afirmou Ruth Benedict:

“O racismo converteu-se em grito de guerra durante este período


nacionalista. A pátria, que necessitava de uma palavra de ordem
aglutinadora, se outorgou um pedigree e um vínculo que levava
a que qualquer homem podia compreender e sentir-se orgulhoso

23
dele. O racismo foi, a partir dai, uma babel de vozes diferentes. Os
franceses, os alemães, os eslavos, os anglo-saxões, todos produzi-
ram literatos e políticos consagrados a demonstrar que, desde o
principio da história europeia, os triunfos da civilização devem-se
exclusivamente à sua ‘raça’”3.

Como se vê, essa antropossociologia era reflexo e rescaldo de


uma competição sociopolítica entre as nações da Europa. Era, por
isso mesmo, uma ciência eurocêntrica. Com a instalação e o dina-
mismo do sistema colonial e seu desdobramento imperialista, ela se
estende ao resto do mundo e aí procura ter uma visão mais abran-
gente e sistemática, unindo todas as diferenças étnicas europeias em
um bloco compacto — o branco que passa a se contrapor ao restante
das populações não-civilizadas, dependentes e racialmente diversas
das matrizes daquele continente. Não se cogita mais nas diferenças
entre o nórdico, o alpino, o mediterrâneo, que passam a ser, de modo
genérico, componentes da raça branca. E esta raça tinha por ques-
tões de superioridade biológica o direito de tutelar os demais povos.
A partilha da África, feita por Bismarck na Alemanha, entre 15
de novembro de 1884 e 26 de fevereiro de 1885, criou uma trégua
entre as nações conquistadoras, e com isso o mundo ficou dividido
entre os brancos civilizados europeus e os povos não-brancos “bár-
baros” e “selvagens”.

Civilizados que mandam


e bárbaros que obedecem
Ordenado o colonialismo, através do racismo, as nações domi-
nantes sentiram-se à vontade para o saque às colônias e para as
razias mais odiosas nas reuniões da Ásia, América Latina, Africa e
Oceania e para agir contra todos os que compunham a multidão
de desamparados e anônimos da história. Não só roubaram-lhes
as riquezas, mas suas culturas, crenças, costumes, língua, religião,
sistemas de parentesco e tudo o que durante milênios esses povos
construíram, estruturaram e dinamizaram.
3 Benedici. Ruth. Raza: ciência y politica. México. Fondo de Cultura Econômica,
1941, p. 26.

24
As explicações eram fáceis e já vinham pré-fabricadas pela so-
ciologia antropológica desenvolvida na Europa para dar aparência
de verdade científica ao crime. A própria opinião pública liberal ou
pretensamente humanista europeia achava essa espoliação natural e
defendia o direito dos ditos civilizados de tutelarem os povos colo-
nizados. Renan, neste sentido, escreveu:

“A regeneração das raças inferiores pelas raças superiores está den-


tro da ordem providencial da humanidade. O homem do povo é
quase sempre, entre nós, um nobre renegado, sua mão pesada é
mais acostumada ao manejo da espada do que ao utensílio servil.
Prefere bater-se a trabalhar, isto é, regressa ao seu primeiro estado.
Regem império populos, eis a sua vocação. Derramai esta devorante
atividade sobre os países que, como a China, concitam a conquista
estrangeira. Dos aventureiros que desinquietam a sociedade euro-
peia, fazei um versacrum, um enxame como dos francos, dos lom-
bardos, dos normandos, e cada qual estará no seu papel. A natureza
gerou uma raça de operários — é a raça chinesa — duma mara-
vilhosa destreza de mão e quase nenhum sentimento de honra;
governai-a com justiça, cobrando-lhe pelo benefício de tal governo
um amplo erário em proveito da raça conquistadora, e ela ficará
satisfeita; uma raça de trabalhadores da terra é o negro, sede para
ele bom e humano e tudo estará em ordem; uma raça de senhores e
soldados é a raça europeia. Que se reduza esta nobre raça a traba-
lhar no ergástulo como os negros e os chineses e ela revolta-se. En-
tre nós todo o revoltado é, mais ou menos, um soldado que errou
de vocação, um ser feito para a vida heroica e que constrangeram a
uma tarefa contrária à sua raça, mau operário, soldado bom demais.
Ora, a vida que revolta os nossos trabalhadores faria a felicidade de
um chinês, dum fellah, seres de maneira alguma militares. ‘Que cada
um faça aquilo para que nasceu e tudo correrá bem”’4.

Os europeus — arianos, mediterrâneos, alpinos etc. — neste con-


texto eram os brancos. A grande massa de povos colonizados era a
população indistinta, e o denominador que as igualava era a vocação
de servir, trabalhar para os brancos, que tinham o dom divino e bio-
lógico de governá-la.
Com a passagem do colonialismo para o imperialismo (neoco-
lonialismo), o racismo é remanejado na sua função instrumental.
4 Citado por Aimé Césaire in Discurso sobre o colonialismo. Lisboa, Sá da Cosia, 1974

25
As metrópoles passam a ver as áreas coloniais como habitadas por
povos indolentes. incurável mente incapazes de criar uma poupança
interna que os elevasse ao nível dos países brancos, que tinham estes
predicados e se desenvolveram, ao contrário do mundo não-branco,
que por esta razão permanece subdesenvolvido.
A teoria do pensamento pré-lógico desses povos, criada por L.
Levy Bruhl, condenava-os a uma posição de dependência circular,
porque eram atrasados em consequência de sua própria estrutura
psicológica. sendo refratários e impermeáveis à experiência e à ra-
zão e essencialmente religiosos. Estabelecia-se, assim, uma divisão
estanque entre os povos dominados e os dominadores, pois esse
pré-logismo impedia-os de passar da economia natural para a eco-
nomia monetária (lógica) levada pelos dominadores5. Neste sentido,
K. Marx e F. Engels escreveram, em 1848:

5 Aceitando a teoria de L. Levy Bruhl como científica, o escritor Jamil Halmansur


Hadad assim procura caracterizar o homem brasileiro ‘...o caráter primitivo do (bra-
sileiro) aparece às vezes com outros nomes, porém ao primitivismo podem ser re-
conduzidos muitos dos sestros e taras nacionalmente citados. (...) Acabamos por
verificar no Brasil e pelos tempos afora um dos traços da mentalidade primitiva
classicamente apontados em Levy Bruhl a dificuldade de acreditar no invisível. O
próprio Deus se viabiliza como as almas dos familiares: daí a difusão extrema do
espiritismo, principalmente prestigiadas as sessões de materialidade (...) O mesmo
conceito poderia ter sido formulado por um Anchieta entre os nossos selvagens. Daí
que desde os primórdios da nacionalidade, os elementos religiosos passaram a hi-
bridar-se poderosamente de estratos profanos. E não só com os índios antropófagos
como com brasileiros urbanos e civilizados. (...) Aponta Levy Bruhl no primitivo: a
ausência em principio de qualquer sentido de ligação causal profunda. Aí a gênese
de todo o nosso tremendo repositório de superstições e milagres: as salas cober-
tas de ex-votos feitos de cera, pernas, pescoços e olhos às vezes sangrando, outras
com tumores. (...) Manifestações de primitivismo no predomínio do exterior sobre
a essência: o sestro do fog de artifício, do aparato, do farol. (...) O que impressiona
fundamentalmente a Ewbank são os nossos fogos de artificio. Rojões e buscapés
num esplendor ígneo de fazer o norte-americano babar. (...) Imaginemos que, se se
disser que somos realmente o país do farol, isto corresponderá a uma validade das
mais estranhamente arraigadas da nossa psique mais intima e mais tradicional. Pre-
ponderância do acessório em relação ao substancial. E do exterior em detrimento
do profundo. Da cortiça em detrimento da medula... Amor portanto ao esplendor
efêmero da fascinação inteiramente rápida, ofuscante mas transitória. E que marca
todas as vicissitudes de nossa vida nacional’ (Hadad, Jamil Halmansur “Ewbank e a
sua descoberta do Brasil”, in Anhembi, ano VII. n° 78, maio de 1957 pp. 496-504.)

26
“...devido ao rápido desenvolvimento dos instrumentos de produção
e dos meios de comunicação, a burguesia arrasta na corrente da
civilização até as nações mais bárbaras. Os baixos preços de seus pro-
dutos são a artilharia pesada que destrói todas as muralhas da China
e faz capitular os bárbaros mais tenazmente hostis aos estrangeiros.
Sob pena de morte, ela obriga todas as nações a adotar o modo bur-
guês de produção. Numa palavra, modela o mundo à sua imagem.6”

O imperialismo multiplica as formas do racismo, “moderniza-


-o” na medida em que há necessidade de uma arma de dominação
mais sofisticada. Segundo a teoria de L. Levy Bruhl, como éramos
pré-lógicos, os movimentos de libertação que se dinamizavam nas
regiões colonizadas ou dependentes não eram políticos, mas etno-
cêntricos, chauvinistas, xenófobos, nacionalistas ou messiânicos,
ou seja, eram movimentos pré-políticos. Embora o conceito de
movimentos pré-políticos tenha sido cunhado por um historiador
grandemente ligado ao pensamento marxista — E.J. Hobsbawm —
acreditamos que ele seja eurocêntrico, elitista e uma forma neoli-
beral de analisar e interpretar a dinâmica social. Se o aceitarmos,
seriam excluídos como políticos todos os movimentos do chamado
Terceiro Mundo: a luta de Zapata e Pancho Villa, no México; a de
Sandino, na Nicarágua; o movimento camponês de Pugachov, na
Rússia: todos os movimentos de libertação da África, como o kin-

6 Marx. K e Engels. F. Le manifeste communiste. Paris, Alfred Costes, 1935. p. 62.


Evidentemente, quando Marx e Engels usam o termo ‘bárbaro” não há nenhum
julgamento de valor na expressão. Referem-se a uma fase de periodização da ci-
vilização segundo o marxismo. É uma fase pré-capitalista, que Engels dividiu em
três períodos: barbárie inferior, que se inicia com a introdução da cerâmica; a fase
média, que começa com a domesticação de animais e, no Oeste da Europa, com
o cultivo de hortaliças por meio de irrigação e pelo emprego do tijolo (secado ao
sol) e da pedra nas construções: e a fase superior, que se inicia com a fundição do
minério de ferro e passa à civilização com a invenção da escrita alfabética e seu em-
prego nos registros literários. Nada tem a ver, portanto, com a conotação pejorativa
que as nações capitalistas colonizadoras davam àqueles povos que eram por ela
colonizados. Era uma classificação objetiva baseada na etapa do desenvolvimento
cultural. Uma das etapas pré-capitalistas da evolução da humanidade. ( Ver Engels,
F: ‘A origem da família, da propriedade privada e do Estado’, in Marx. K. e Engels,
F., Obras escolhidas. São Paulo. Alfa-Omega. s/d; e Terry. Emmanuel: O marxismo
diante das sociedades ‘primitivas”. Rio de Janeiro. Graal. 1979.)

27
ganbista, incluindo os Mau Mau e o de Lumumba. Tudo seria en-
globado sob o rótulo de milenarismo, salvacionismo ou messianis-
mo, e seria descartada sua essência política. Os povos “inferiores”
não tinham condições de entrar no sentido universal da história,
eram a-históricos. Com isto justificava-se a repressão contra eles e
os seus líderes. Fora dos padrões normativos dos valores políticos
europeus, civilizados e “normais”, não existiam movimentos que
pudessem ser enquadrados como aceitos pelas nações dominado-
ras, como continuadores do “sentido” da civilização. As próprias
lutas de libertação nacional eram (como acontece até hoje) consi-
deradas revoltas intertribais, movimentos atípicos e perturbadores
do processo civilizatório. Não tínhamos acesso à história, à civili-
zação e à igualdade de direitos. A nossa inferioridade congênita e
inapelável — biológica e psicológica — nos reduzia a satélites do
processo civilizatório.

A questão racial é essencialmente política


e não apenas científica
Tudo isto era respaldado por uma intelectualidade que se apre-
sentava como tutora do conhecimento, do saber e, ao mesmo tempo,
assessora dos mentores metropolitanos.
Como vemos, a chamada “questão racial’’ não pode ser com-
preendida se a interpretarmos como uma questão meramente
científica, cuja solução será encontrada pelos antropólogos entre
as quatro paredes de um laboratório ou nas salas de congressos
de especialistas. Pelo contrário. Devemos partir de uma posição
crítica radical, através da reformulação política, da modificação
dos polos de poder, especialmente das áreas do chamado Terceiro
Mundo. E uma situação que ficará sempre inconclusa se não a
analisarmos como um dos componentes de um aparelho de domi-
nação econômica, política e cultural.
No caso da América Latina, o racismo, como ideologia do colonia-
lismo, penetrou fundo no pensamento da elite intelectual colonizada.
Todo o arsenal “científico” que vinha da Europa sobre a questão
racial era aqui repetido sem ser filtrado, não porque fosse a “ulti-

28
ma palavra da ciência”, mas porque já vinha com o julgamento das
metrópoles. No lado oposto expressava-se uma visão democrática
e não racista do problema; esta corrente progressista era desacre-
ditada pela intelligenzia colonizada. O cientista russo Tchernichévis-
ki, por exemplo, escreveu que “os escravistas eram pessoas da raça
branca, os cativos eram negros; por isso a defesa da escravidão nos
tratados científicos tomou a forma da teoria da diferença radical
entre as diferentes raças humanas”. E Jean Finot, em seu livro O
preconceito racial, declarou que “as raças como categorias irredutí-
veis existem somente como ficções nos nossos cérebros”. E mais: “as
diferenças culturais existem e foram assinaladas neste livro, porém
somente são produtos transitórios, como resultado de circunstân-
cias externas, e desaparecerão do mesmo modo”7.
No entanto, essas conclusões anti-racistas eram consideradas he-
resias científicas. Sílvio Romero, depois de citar o antropólogo ale-
mão Lapouge, endossando-lhe a tese da superioridade do alemão em
relação ao francês, escreve sobre o pensamento de Finot:

“Fugir das tolices do russo que se assina Finot, e cujo nome antigo
é João Finkelhaus, literato de segunda ordem, ignorantíssimo em
antropologia e ciência em geral”8.

Mas não era somente Sílvio Romero quem endossava o racismo


no Brasil da época. E convém esclarecer que estávamos em ple-
no processo abolicionista e os escravistas e senhores de escravos
tinham, como um dos suportes que legitimava a escravidão, a in-
ferioridade biológica e cultural do africano. Euclides da Cunha, ou-
tro importante representante de nossa cultura dominante, repetia o
mesmo pensamento racista. Sua posição em relação ao mestiço e ao
negro não deixa dúvidas. Estuda o negro afirmando que “a raça do-
minada (negra) teve aqui dirimidas, pela situação social, as facilida-
des de desenvolvimento. Organização potente afeita à humanidade

7 Sobre a obra de Finot ver Benedict. R.. op. cit


8 Romero. Sílvio. História da literatura brasileira. Rio de Janeiro. José Olympio,
1943. vol 5. p 671.

29
extrema, sem as rebeldias do índio, o negro teve, sobre os ombros,
toda a pressão da vida colonial”9.
Para ele o negro é a “besta de carga”, o “filho das paisagens adus-
tas e bárbaras”; Palmares é “grosseira odisseia” e por isto a ação dos
bandeirantes destruindo-o foi um beneficio à nossa civilização; são
“vencidos e infelizes”: o escravo negro é “humilde”, mesmo sendo
quilomba, “temeroso”, “aguilhoado à terra”: são “foragidos”, a raça é
“humilhada e sucumbida”. Para ele a desigualdade racial era um fato
provado “ante as conclusões do evolucionismo”. O negro, como ve-
mos, era o componente de uma raça inferior. O índio, por seu lado,
não tinha a capacidade de “se afeiçoar às mais simples concepções
do mundo”. E, quanto ao mestiço desses cruzamentos, no seu “pa-
rêntesis irritante” não há lugar para ele, é um desequilibrado, de um
desequilíbrio incurável, pois “não há terapêutica para este embate de
tendências antagonistas”10.
A ideologia do colonialismo era e ainda é alimentada por toda uma
literatura racista que nos vinha, ou nos vem, das metrópoles coloni-
zadoras, para nos interiorizar através da nossa própria autoanálise.

O racismo brasileiro quer um país “eugênico”


Passada a fase da abolição, com sua conclusão negativa para a
população negra, e concluído o golpe militar republicano, com a
persistência das oligarquias agrárias, o racismo brasileiro procura
novas roupagens “científicas”. Na Europa o racismo entra em ascen-
são e transforma-se em força agressiva, agressividade que terá a sua
conclusão na vitória do nazismo na Alemanha. No Brasil há uma
recomposição ideológica do mesmo sentido. Essa tendência racista-
-elitista de nossa intelectualidade tradicional se revigora.
Na época da ascensão do nazismo e do fascismo, houve aqui no
Brasil um trabalho ideológico racista feito pela nossa intelectualida-
de. Essa divulgação e essa prática concentraram-se na Liga da Higie-
ne Mental, que congregou grandes nomes da ciência. Jurandir Freire

9 Cunha. Euclides da. Os sertões. Rio de Janeiro. Francisco Alves. 1933. passim.
10 Cunha. Euclides da. cp. cit

30
Costa, autor do livro História da psiquiatria no Brasil, afirmou que o
programa dessa entidade tinha como objetivo a intolerância e o obs-
curantismo. Fundada em 1923 e dedicada à prevenção de doenças
mentais, longe de estabelecer uma abordagem cientifica de doença
mental, adotava e enfatizava posições nitidamente ideológicas, ela-
borando propostas no sentido da adoção apaixonada e integral do
arianismo, da superioridade racial, justamente as que prevaleceram
na Alemanha nazista. Seus membros mais conspícuos passaram a
defender na área profissional, e publicamente, a esterilização e a
segregação perpétua de todos os indivíduos considerados loucos ou
desequilibrados, segundo os critérios de sua avaliação; daí passaram
a pregar o mesmo destino para as pessoas de “raça inferior”, ainda
segundo os padrões que adotavam e que definiam como tais os não-
-brancos puros11.

Já se quis uma reforma “eugênica” dos salá-


rios: maiores para os brancos, menores para
os negros
A pregação da Liga concentrou seus fogos particularmente na
imigração: o Brasil deveria, nesse campo, adotar rigorosos critérios
seletivos, em que se inseria a condenação à entrada de negros e
asiáticos em nosso país — “rebotalho de raças inferiores” alegando
que “já nos bastavam os nordestinos, os híbridos e os planaltinos
miscigenados com negros”. Xavier de Oliveira, um dos membros
da Liga, partidário do que entendia por eugenia, manifestava sua
satisfação pela decadência incontestável e pela “extinção não muito
remota” dos índios da Amazônia. A condenação ao fim próximo
alcançava, também, os mestiços, cuja proibição de entrada no Brasil
era recomendada pela liga em 1928. Outra de suas reivindicações:
a reforma eugênica dos salários, privilegiando os brancos. Reivindi-
cava também concessão de benefícios econômicos e financeiros às
famílias que procriassem indivíduos “superiores”. A mais audaciosa
foi a criação de Tribunais de Eugenia, que decidiriam sobre a esteri-
lização e confinamento de membros das raças inferiores. Em 1934
11 Este capítulo é resumo de um trabalho de Nelson Werneck Sodré: O fascismo
cotidiano. Belo Horizonte. Oficina de Livros, 1990

31
a revista Arquivos Brasileiros de Higiene Mental, editada pela Liga,
publicava a lei alemã de esterilização dos “doentes transmissores de
taras”, com entusiástica introdução ao seu texto. “O mundo culto”,
dizia a publicação, “tomava conhecimento da nova e grande lei ale-
mã de esterilização dos degenerados”. A citada lei, de 14 de julho de
1933 era assinada por Hitler, além de Frick e Gurther, ministros do
Interior e da Justiça, respectivamente.
Outro artigo esclarecedor dos Arquivos foi aquele no qual o seu
autor procurava demonstrar que a Inquisição operara a partir de
uma “filosofia eugênica”, pois as suas torturas e sacrifícios “tiveram
uma consequência benéfica para a raça”. Em 1934, conta ainda Ju-
randir Freire Costa, a Liga associava-se à policia em ações “sempre
caracterizadas pela truculência”; a polícia fornecia, confidencial-
mente, nomes e endereços de alcoólatras, que eram, então, procu-
rados pelos psiquiatras da Liga e internados em hospitais e centros
ditos de saúde mental; ali eram submetidos a tratamentos de acordo
com os métodos da Liga, que funcionou, ostensivamente, durante
três décadas. Nela pontificavam médicos de renome, particularmen-
te psiquiatras: representavam a ciência oficial, isto é, a ciência das
classes dominantes, numa época em que o nazismo já se manifestava
e apresentava a raça alemã como “raça eleita”.
Entre esses nomes famosos, figuravam Renato Kelil, presidente
da Sociedade de Eugenia em 1929: Alberto Farani, presidente da
Seção de Estudos de Cirurgia e Sistema Nervoso da Liga de Higiene
Mental e chefe do serviço dos ambulatórios de Prolaxia Mental do
Hospital Rivadávia Correia; Xavier de Oliveira, docente de Clínica
Psiquiátrica da Faculdade Nacional de Medicina da Universidade do
Rio de Janeiro e médico do Hospital Nacional de Psicopatas.
A época da Liga de Higiene Mental, a década de 20 e a primeira
metade da década de 30, surgiram e se ampliaram consideravelmen-
te em nosso país, no campo quase virgem das ciências sociais, as
teses de Oliveira Vianna, com uma obra toda ela de cunho racista,
elitista e neocolonialista. Assim como aconteceu na época de Silvio
Romero, a produção cultural dominante espelhava a alienação social
e, consequentemente. cultural a qual estava submetida.
A obra de Oliveira Vianna, em particular, é um marco significativo

32
de como a intelectualidade brasileira deixava-se vergar ideologica-
mente e refletia em sua produção uma rejeição à sua própria condição
de ser humano e social. Esta atitude representava, e atualmente ainda
representa, uma negação e/ou fuga de nosso ser étnico, cultural e
politico, expressa através de uma produção estimulada pelo neocolo-
nialismo; em outras palavras, o imperialismo tecnocrático.

Da derrota do nazismo ao aparecimento


da Guerra Fria
Derrotado o nazismo, o pensamento de direita e especialmente
o racismo entraram em recesso, e no âmbito das ciências biológicas
e sociais houve toda uma rearticulação contra tais ideias. Foi o mo-
mento dos grandes pronunciamentos dos antropólogos e sociólogos,
que repuseram a questão racial em termos científicos. Em 1950 di-
vulgou-se uma declaração redigida na casa da Unesco por oito dos
maiores nomes da antropologia e da sociologia mundiais, entre eles:
Juan Comas, do México; Levi-Strauss, da França; Morris Ginsberg,
da Inglaterra; A. Montagu (relator), dos Estados Unidos, e L.A. Costa
Pinto, do Brasil. Nas suas Conclusões diziam:

os antropólogos só podem estabelecer classificação racial sobre ca-


racterísticas puramente físicas e fisiológicas. No estado atual dos
nossos conhecimentos, não foi ainda provada a validade da tese
segundo a qual os grupos humanos diferem uns dos outros pelos
traços psicologicamente inatos, quer se trate da inteligência ou do
temperamento. As pesquisas cientificas revelam que o nível de ap-
tidões mentais é quase o mesmo em todos os grupos étnicos. Os
estudos históricos e sociológicos corroboram a opinião segundo a
qual as diferenças genéticas não têm importância na determinação
das diferenças sociais e culturais existentes entre diferentes gru-
pos da espécie Homo sapiens, e as mudanças sociais e culturais
no seio de diferentes grupos foram, no conjunto, independentes
das modificações na sua constituição hereditária. Vimos produzi-
rem-se transformações sociais consideráveis que não coincidem de
maneira alguma com as alterações de tipo racial. Nada prova que
a mestiçagem, por si própria, produza maus resultados no plano
biológico. No plano social, os resultados, bons ou maus, que alcan-
çou são devido a fatores de ordem social. Todo indivíduo normal

33
é capaz de participar da vida em comum, compreender a natureza
dos deveres recíprocos e respeitar as obrigações e os compromissos
mútuos. As diferenças biológicas que existem entre os membros de
diversos grupos étnicos não afetam de maneira nenhuma a organi-
zação política ou social, a vida moral ou as relações sociais.
Enfim, as pesquisas biológicas vêm escorar a ética da fraternidade
universal; pois o homem é, por tendência inata, levado à coopera-
ção e, se este instinto não encontra em que se satisfazer, indivíduos
e nações padecem igualmente por isso. O homem é por natureza
um ser social, que só chega ao pleno desenvolvimento de sua per-
sonalidade por trocas com os seus semelhantes. Toda recusa de
reconhecer este laço social entre os homens é causa de desintegra-
ção. É neste sentido que todo homem é o guardião de seu irmão.
Cada ser humano é apenas uma parcela da humanidade, à qual está
indissoluvelmente ligado.

Depois deste documento saiu a Declaração de 1951, assinada


por um grupo de antropólogos e geneticistas, que ampliava mais
analiticamente o texto do primeiro, com as mesmas conclusões. Ou-
tro documento da Unesco, e nos parece que o último, redigido em
Moscou, ainda é mais enfático na condenação ao racismo.
No Brasil a reação não é diferente. Em 1935 surge o Manifesto
dos intelectuais contra o preconceito racial, em que se enfatiza o racis-
mo como anticientífico:

“O movimento contra o preconceito racial visa apenas combater as


influências estranhas a que nos querem arrastar para o turbilhão
dos racismos truculentos, como também contribuir por todos os
meios para o estudo dos problemas surgidos na própria formação
étnica, tendo sempre em mira promover maior harmonia e mais
fraternal cordialidade entre os elementos que se vão caldeando na
etnia brasileira”.

Assinam o documento, entre outros, Roquete Pinto, Maurício de


Medeiros, Artur Ramos, Gilberto Freyre, Hermes Lima, Leônidas de
Rezende e Joaquim Pimenta. Em seguida podemos citar o Manifesto
contra o racismo, da Sociedade Brasileira de Antropologia e Etnolo-
gia, que foi aprovado por aclamação no dia 3 de setembro de 1942.
O documento terminava nos seguintes termos:

34
“...queremos oferecer a todo o mundo civilizado a nossa magnífica
filosofia no tratamento das raças como o maior protesto científico
e humano e a maior arma espiritual contra as ameaças sombrias
da concepção nazista da vida, este estado patológico de espírito
que pretende envolver a humanidade numa espessa e irrespirável
atmosfera de luto”.

Era a volta, também no Brasil, de uma ciência social que repu-


diava os postulados nazistas no julgamento das raças e a sua função
e papel no processo civilizatório.
Já havia se realizado, nossa ocasião, dois congressos afro-brasi-
leiros: o primeiro em Recife, em 1934, por iniciativa de Gilberto
Freyre; e o segundo em Salvador, por iniciativa de Edson Carneiro,
em 1937. Nos anais de ambos podemos ver a preocupação de muitos
congressistas em relação ao problema racial e o seu dilema no Brasil.
Dos anais do primeiro podemos destacar as comunicações de Mario
de Andrade, Alfredo Brandão, Gilberto Freyre, Adhemar Vidal. Jo-
velino M. de Camarno Jr., Mário Melo, Rui Coutinho, Rodrigues de
Carvalho e outros. Nesses autores nota-se a preocupação de descartar
a inferiorização do negro, via fatores biológicos (inatos), e ressaltar a
escravidão como causa de nosso atraso. No segundo congresso ve-
mos a preocupação de Edson Carneiro, Artur Ramos, Donald Pierson,
Aydano do Couto Ferraz, Alfredo Brandão e Jorge Amado, cada um a
seu modo procurando encaminhar o tema no mesmo sentido.
No terceiro congresso, realizado em 1982, as intervenções de
Décio Freitas, Raimundo de Souza Dantas, Clóvis Moura, Gilberto
Freyre e outros vão na direção de reabilitar o processo miscigenató-
rio e destacar a participação social do negro em nossa história, po-
sição contrária à dos eugenistas da década de 30, que consideravam
este fenômeno um fator de degenerescência da sociedade brasileira.
A postura democrática em relação ao problema racial, que teve nos
antropólogos e sociólogos da Unesco a expressão mais lúcida, come-
ça, em determinado momento, a ser contestada12.
12 Ver Estudos afro-brasileiros, prefácio de Roquete Pinto. Rio de Janeiro. Ariel.
1935, Novos estudos afro-brasileiros, Gilberto Freyre et alli. Rio de Janeiro, Civiliza-
ção Brasileira. 1937; O negro no Brasil (vários autores). Rio de Janeiro. Civilização
Brasileira, 1940; Os afro-brasileiros. Roberto Motta (org). Recife. Massangana, 1985.

35
No plano político internacional, por outro lado, saía-se da po-
lítica de colaboração dos quatro grandes vencedores da II Guerra
Mundial — Inglaterra, França, União Soviética e Estados Unidos
— para o confronto da Guerra Fria. Assistia-se, ao mesmo tempo,
os movimentos de libertação da África, dentro do processo de des-
colonização que se dinamizava. Nesse contexto político iniciam-se
os ataques às conclusões dos cientistas da Unesco.
O mais relevante sintoma deste protesto e o que mais repercus-
são alcançou foi o de Arthur Jensen, professor de psicologia educa-
cional da Universidade de Bekerley. Ele combate as conclusões da
Declaração da Unesco de 1951 e a de 1964. Afirma textualmente:

“O fato de que diferentes grupos raciais neste pais tenham origens


geográficas largamente diferenciadas e tenham tido histórias larga-
mente diferentes, o que os submeteu a diferentes pressões seletivas
econômicas e sociais, faz com que seja altamente provável que seus
acervos genéticos difiram em algumas caraterísticas comportamen-
tais geneticamente condicionadas, inclusive inteligência ou capa-
cidade de raciocínio abstrato. Quase todo o sistema anatômico,
fisiológico e bioquímico investigado apresenta diferenças raciais.
Por que seria o cérebro uma exceção?”

Já o professor de psicologia da Universidade de Londres e entu-


siasta de Jensen, H.J. Eysenck, baseando-se em testes de QI de jovens
negros americanos, conclui pela existência de diferenças que, dentro
da estrutura social atual (julgamentos de valor) significam inferio-
ridade. Este cruzamento de resultados de testes com resultados de
pesquisas de geneticistas é uma forma deliberada de confundir os
fatos e chegar-se a uma conclusão preestabelecida. Por outro lado,
todos sabem que as técnicas de medir a inteligência pelo nível do Ql
são cada vez mais contestadas.
A antropóloga Ruth Benedict, antes dos professores citados, já pu-
nha em dúvida essas técnicas, especialmente quando aplicadas sem os
diferenciais culturais e sociais. Cita o exemplo de uma comparação
feita entre brancos do Mississípi, Kentucky e Arkansas com negros
de Nova York, Illinois e Ohio. O QI dos brancos do Sul é inferior ao
QI dos negros do Norte. Os resultados foram os seguintes:

36
Brancos Negros

Mississípi 41,25 N. York 45,02


Kentucky 41,50 Illinois 47,35
Arkansas 41,55 Ohio 49,50
Fonte: Raza: ciência y política. Ruth Benedict.
México. Fondo de Cultura Econômica, p. 97

Contra estes dados, H.J. Eyscnck conclui um de seus livros dizendo:

“...o reconhecimento da natureza biológica do homem e o reconhe-


cimento da desigualdade geneticamente determinada, associados
inevitavelmente ao seu desenvolvimento, é um começo absoluta-
mente necessário a qualquer tentativa de utilizar os métodos da
ciência e a razão, num esforço destinado a nos salvar dos perigos
(sic) efetivamente reais com que nos defrontamos”13.

Racismo e determinismo genético


É exatamente em continuação a essa biologização da história e
da sociedade que, na década de 70, surge uma nova ciência: a so-
ciobiologia, sistematizada por Edward Wilson, da Universidade de
Harvard, e assim definida:

“...uma ideologia biológica que, empenhada em provar que todo o


comportamento humano é determinado geneticamente, como nos
animais, deu uma roupagem moderna ao velho darwinismo social.
A partir daí a bibliografia só faz aumentar a lista iniciada com
o Macaco nu e a História natural da monogamia, do adultério e
do divórcio, da antropóloga norte-americana Helen Fischer, para
quem há uma lei natural, inscrita em nossos genes, que molda o
relacionamento afetivo e o acasalamento entre os seres da espécie

13 Eysenck, H J. A desigualdade do homem Rio de Janeiro. Zahar, 1979. p 252.

37
humana. Outro livro deste gênero é Personas sexuais, de Camille
Paglia, que considera os papeis sexuais, o machismo e a feminili-
dade decorrentes apenas de nossa natureza biológica e não, tam-
bém, das relações culturais, históricas, estabelecidas entre homens
e mulheres; relações condicionadas pelas peculiaridades das épocas
e dos lugares onde ocorreram”14.

Poderíamos citar mais de uma centena de obras da nova so-


ciobiologia, mas o que se viu dá para perceber o renascimento do
racismo via genética. O preocupante é que essas ideias não se ex-
primem apenas através de livros, mas de uma prática universitária
na direção da dominação ideológica do conhecimento. Neste sen-
tido estava prevista, na Universidade de Maryland, a realização da
conferência intitulada “Fatores Genéticos no Crime: Descobertas,
Usos e Implicações”, cujo prospecto referia-se ao “aparente fracasso
do enfoque social para o crime” e sugeria a realização de pesquisas
genéticas para o desenvolvimento de métodos capazes de identificar
— e tratar quimicamente — criminosos em potencial. A Academia
Nacional de Ciência dos Estados Unidos, por sua vez, publicou em
novembro de 1992 o relatório Compreender e Prevenir a Violência,
sugerindo a realização de mais pesquisas desse tipo e na mesma
direção, com investigações sobre marcadores bioquímicos e trata-
mento com drogas para comportamentos violentos e antissociais,
embora admitindo a escassez de evidências substantivas para uma
propensão ao crime de per si. Como se pode ver é a volta disfarçada
aos métodos eugênicos dos cientistas do III Reich. Analisando tal
situação, escreveu Patrick Bateson:

“...as diferenças existentes entre as pessoas são muitas vezes pen-


sadas como adaptações, como produtos da evolução darwiniana,
e, portanto, como atribuíveis a diferenças genéticas. Para o não
biólogo, ‘diferença genética’ é sinônimo de inevitabilidade — o pro-
blema começa ai. Às pessoas claramente exploradas ou oprimidas
é dito que devem aceitar essa situação porque nada podem fazer
para alterar os seus genes. Esse tipo de ideias, que penso não se-
rem geralmente partilhadas pelos cientistas que parecem dar-lhes

14 Ruy. José Carlos e Bercht, Verônica: ‘A busca infrutífera do gene de Caim’. in


PRINCÍPIOS n° 29. maio/junho de 1993.

38
credibilidade, é agora parte de nossa vida política. Por esta razão,
e talvez injustamente, o determinismo genético tomou-se o grande
tema de muitas discussões públicas sobre sociobiologia. (...) A ênfa-
se no egoísmo e na luta pela existência na evolução biológica teve
um efeito de continuação insidiosa na opinião pública (Bateson,
1989). A competição foi encarada como o motor da atividade hu-
mana. A experiência nas universidades e nas artes é avaliada pelos
mesmos parâmetros que supostamente resultam tão bem no campo
do esporte ou na feira. Os indivíduos prosperam compelindo e
vencendo. Esta visão da natureza humana, popular entre os políti-
cos de direita, foi justificada pelo recurso à biologia, e os próprios
biólogos foram, por sua vez, algo influenciados pelo movimento
de opinião pública. (...) Nenhum de nós sabe tudo, e a nossa ten-
dência para as generalizações tolas está sujeita à rápida correção
por outros cuja experiência tenha sido diferente. (...) Tal como as
coisas estão, o apelo à biologia feito pela Nova Direita não se dirige
tanto ao corpo coerente de ideias científicas como a um mito con-
fuso. Pensa-se na biologia como tratando da competição — e isso
significa luta. O conceito darwiniano da sobrevivência diferencial
nutre-se da crença na importância do individualismo15.

Discutindo o lado ético da aplicação da sociobiologia ou da bio-


logia em particular, escreveu Hilton Japiassu:

“...aliás, nos dias de hoje, parece inegável o impacto social na biolo-


gia sobre a vida de cada um de nós. Ela não constitui apenas uma
pesquisa sem freios da verdade, isenta de toda e qualquer crítica
política ou moral. Já se foi o tempo em que se podia declarar,
como H.R. Oppenheimer, um dos responsáveis pela construção das
primeiras bombas atômicas, que ‘...nosso trabalho mudou as con-
dições da vida humana; mas a utilização feita dessas mudanças é
uma questão dos governos, não dos cientistas’. Ora, a palavra de
ordem ‘a verdade pelo amor à verdade’ torna-se hoje insustentável.
Porque a ciência não é mais e tampouco pode ser considerada um
domínio da exclusiva competência dos cientistas. Os trabalhos dos
microbiologistas, por exemplo, que decodificaram as moléculas de
ADN, dão-nos a esperança de um controle genético de numerosos
males surgidos no nascimento. Mas essas pesquisas já foram uti-
lizadas, como testemunham os cientistas americanos Zimmerman,

15 Bateson. Patrick ‘Sociobiologia e política humana’. in Rose. Steven e Appigna-


nese (org.), Para uma nova ciência. Lisboa. Gradina. 1989, pp. 105-106. 112-113.

39
Radinsky, Rothemberg e Mayers, pelo governo dos Estados Unidos,
para cultivar micróbios violentos destinados à guerra bacteriológi-
ca: ‘Essa pesquisa conduz a uma produção genética capaz de gerar
subpopulações variadas, que poderão ser utilizadas pelos que detêm
o controle tecnológico. Essas subpopulações poderão compreender
soldados combativos, robôs resistentes para executar as tarefas físi-
cas peníveis, ou filósofos-reis aos quais seriam transmitidos pode-
res hereditários’”. (Autocritique de la Science, Seuil, 1975)16.

Estamos nas fronteiras do Admirável mundo novo, de Aldous


Huxley, quando um dos seus personagens define felicidade:

“E esse, acrescentou sentenciosamente o Diretor, é o segredo da


felicidade e da virtude — gostar daquilo que se tem de fazer. Este
é o propósito de tudo: fazer as pessoas amarem o destino social do
qual não podem escapar”.

Estaríamos plenamente na era do determinismo genético.


O mundo apresentado por Huxley pode ser o objetivo desses
cientistas. Mas a biologia genética, via engenharia genética, tem ob-
jetivos ainda mais seletivos e ideologicamente racistas. Sobre a vi-
são de radicalismo epistemológico dessa postura científica, escreveu
Hílton Japiassu:

“...os gigantescos progressos da biologia e da engenharia genética já


tornaram possível uma outra forma de neo-eugenismo, desta feita
bastante mais sofisticado. Diria que um neo-eugenismo fundado
nas ciências biogenéticas já se anuncia, sem que possamos predizer
de modo seguro quais serão as grandes opções para o futuro. O
fato é que, nesse domínio, já exitem sofisticados métodos permi-
tindo a detecção dos ‘maus genes’, vale dizer, dos genes que, direta
ou indiretamente, são responsáveis por certas doenças. Como nos
lembra P. Tuiller, “...quaisquer que sejam os limites atuais da ciência
médica em matéria de diagnóstico e de terapêutica, criou-se uma
situação nova; doravante é possível concebermos a longo prazo um
gigantesco empreendimento de purificação do capital genético da

16 Japiassu Hilton. “A origem pseudocientífica do racismo”, in As paixões da ciên-


cia. São Paulo. Letras e Letras, 1991. p. 255.

40
humanidade (ou de certas populações). O que levanta numerosas
questões ao mesmo tempo técnicas e éticas’”. (Les passions du sa-
voir, Fayard, 1988, p. 15-1)17

Em outras palavras, os detentores dessa sofisticada tecnologia po-


dem programar, por exemplo, a cor da humanidade ou de alguns gru-
pos ou populações (de acordo com os seus critérios de valor étnicos)
considerados de “maus genes”. Se considerarmos a ideologia de quem
monopoliza essa tecnologia, os negros e os não-brancos serão o obje-
tivo desse projeto e tentarão projetar um mundo branco e de robôs.

A Europa ergue um muro contra


não-brancos e pobres
Além deste racismo, há aquele que está se disseminando de forma
crescente e cada vez mais agressiva. Em todo o chamado Primeiro
Mundo (capitalismo imperialista central) ele vem se afirmando, quer
por legislações que tornam indesejáveis no seu território membros
de determinadas etnias, quer pela incorporação por parte de parti-
dos políticos que endossam essa ideologia e, finalmente, pelo com-
portamento irracional de grande parte da população desses países.
Na Inglaterra, na França, na Áustria e especialmente na Alemanha,
o racismo vem aumentando assustadoramente, especialmente neste
último país, onde se manifesta através do neonazismo, cuja violência
tem feito desaparecer centenas de vidas e cujos métodos de ação são
idênticos aos de Hitler.
Esses países começam a proteger-se dos “genes maus”, represen-
tados pelas populações não-brancas em geral, que procuram “inva-
dir” o recinto intocável das nações brancas. Esta ideologia racista
cresce juntamente com a ideia da unificação da Europa. Há movi-
mentos de extrema direita por toda parte, como a Frente Nacional
da França e os republicanos e neonazistas da Alemanha. Nos países
nórdicos, como a Noruega, há parlamentares de extrema direita os-
tensivamente racistas. Segundo Harlen Désir, para alguém eleger-se
basta dizer: “Chega de árabes, jamaicanos e turcos!” Na França, se-

17 Japiassu, Hilion. op. cit. p. 257.

41
gundo ele, parte da população não aceita a fusão e a formação de
uma nação plurinacional e sem barreiras. Esta resistência é sentida
principalmente nas regiões fronteiriças, onde o discurso de Jean-
-Marie Le Pen, líder da Frente Nacional, tem forte penetração.
Na Alemanha e na Suécia estão virando moda videogames dis-
tribuídos pela extrema direita britânica, com os sugestivos nomes
Jogar em Treblinka ou Quando o Gás Tiver Terminado o Trabalho Você
Terá Ganho18. O jogador consegue pontos matando judeus, turcos,
homossexuais e ecologistas ao som de Deutshland über Alles (Alema-
nha acima de tudo), estrofe glorificada por Hitler e depois da guerra
suprimida do hino nacional alemão.
Os ataques racistas se multiplicam e a ultradireita ganha terreno.
Os governos da Comunidade Europeia mantêm leis discriminató-
rias contra os imigrantes dos países não-europeus, apesar de lá se
encontrarem há mais de 15 anos. Não é de estranhar que os jovens
transformem o videogame em propaganda racista, pois não e apenas
na Alemanha e na Suécia que a juventude assim se diverte. Na Áus-
tria o fato se repete: Auschwitz Total... Hitler Superditador... Antiturcos
à Prova... Segundo Sandra Lacut, da France Press, de Viena:

“...as escolas da Áustria e de outros países europeus foram invadi-


das por uma série de jogos de computador racistas e neonazistas,
nos quais as crianças ‘dirigem’ campos de extermínio de judeus ou
‘compram’ gás para matar os imigrantes turcos. (...) Um estudo rea-
lizado pelo Ministério de Educação revela que na cidade austríaca
de Lintz, onde Hitler passou parte de sua juventude, 39% dos jovens
sabem que existem esses jogos neonazistas e 22% já os jogaram. Em
Salzburgo, um em cada cinco jovens que tem um computador já
viu publicidade neonazista em sua tela. Os videogames trivializam
o Holocausto (assassinato em massa de judeus, ciganos, homosse-
xuais, comunistas e dissidentes durante o nazismo) e incitam ao
ódio contra os judeus e turcos. O jogo Administrador de Campo de
Concentração consiste em dirigir o campo de Treblinka (Polônia) e
conseguir bastante dinheiro — por exemplo, arrancando os dentes
de ouro dos judeus mortos — para adquirir o gás necessário para
aniquilar os turcos. Outro, chamado Prova Ariana, coloca perguntas

18 Lacut. Sandra. ‘Videogames racistas e neonazistas viram mania em escolas da


Áustria’. FSP, 17-8-91.

42
que revelam ao jogador seu grau de pureza racial. Aquele que for
apenas ‘meio ariano’ pode se desforrar ‘matando comunistas’. De
acordo com o grau de ‘impureza do sangue’, o jogador pode ser
varredor ou limpador de privadas. E o ‘judeu’ é automaticamente
atirado na câmara de gás”.

O que à primeira vista parece ser apenas um detalhe vem de-


monstrar até que nível a propaganda neonazista está se aprovei-
tando da nova tecnologia e da comunicação avançada nos mesmos
moldes de Hitler. Segundo El País, os alemães e os belgas, de acordo
com pesquisas feitas pela Comunidade Europeia, são os cidadãos
europeus que mais admitem os seus sentimentos racistas. Mas é na
França e na Grã-Bretanha que a xenofobia e a violência racial se
mostram mais intensas. Nos últimos quatro anos (a pesquisa vai até
1990) houve 20 assassinatos motivados por racismo na França. As
vítimas eram norte-africanos de nacionalidade ou de origem.
Seis jovens cabeças raspadas (skinheads) mataram a pontapés um
tunisiano pai de quatro filhos. O policial que os deteve contou que
aquilo que mais o chocou foi o fato de eles terem a sensação de nada
terem praticado de condenável. Outros três jovens mataram a tiros
um jovem harki (francês de origem argelina) “para se divertir”. Cer-
ca de 76% das pessoas entrevistadas depois do assassinato dos três
norte-africanos declararam: “O comportamento deles pode justificar
as reações racistas”
Em 1989 ocorreram, em Londres, em média seis incidentes ra-
cistas por dia. O Instituto de Estudos da Policia estimou em sete
mil os casos conhecidos de racismo no país, mas sugeriu que a cifra
poderia ser dez vezes superior. Isto porque as vitimas temiam de-
nunciar as agressões “por falta de confiança na polícia”. Uma mãe
asiática suportou que seus filhos fossem esfaqueados e apedrejados
— “Pensei que fosse um comportamento normal em relação aos
estrangeiros.” — e não procurou ajuda.
Na Itália, os ataques a estrangeiros estão adquirindo uma sequên-
cia e um furor inesperados, acalentados por uma crescente onda de
imigrantes clandestinos. Na Espanha, a fúria contra marroquinos,
portugueses e africanos é uma reação social em alta, mas a discrimi-

43
nação elege como presa também uma minoria espanhola: os ciganos.
Estes últimos são hoje na Espanha cerca de meio milhão de pessoas
e, como no caso dos negros nos Estados Unidos, sua dança e sua
música são muito apreciadas.
Longe de melhorar, as coisas pioraram, assinala o volumoso estu-
do de oito capítulos elaborado e aprovado pela Comissão de Inves-
tigação do Racismo e Xenofobia criado pelo Parlamento Europeu,
presidido pelo eurodeputado Glyn Ford. Nem a Comunidade Euro-
peia, nem os governos dos seus estados-membros tomaram medidas
para corrigir a situação alarmante, já denunciada em 1986. O mito
da Europa como terra de asilo caiu por terra.
A Alemanha é o país onde os sentimentos racistas são mais clara-
mente expressos. Em 1989 (e daí para cá este sentimento aumentou),
cerca de 75% dos alemães ocidentais achavam que havia estrangeiros
demais no país e 93% eram favoráveis a reduzir o número de tra-
balhadores imigrantes. Cerca de 60% da população da ex-Alemanha
Ocidental admitem ter sentimentos antissemitas. As pesquisas reve-
lam, também, que um quinto dos alemães tem ódio racial contra afri-
canos e asiáticos e opiniões muito negativas sobre os turcos.

O racismo como ideologia neocolonial


Falta agora nos referirmos ao racismo político dos países do cha-
mado Primeiro Mundo (capitalismo central) contra os países de-
pendentes que fizeram parte do antigo sistema colonial, que não foi
desmontado até hoje. Uma das particularidades é que são, em sua
totalidade, países que têm populações não-brancas.
À medida que se aguçava a luta entre os Estados Unidos e a
ex-União Soviética, os norte-americanos concentraram suas ativi-
dades de dominação nas áreas incluídas em seu leque de influências.
Com o pretexto de combater a subversão, estabeleceram governos
subalternos externamente e ditatoriais internamente. Como norma,
ditaduras militares. Com isso consolidaram sua dominação neoco-
lonial. Mas, por uma série de circunstâncias, na América Latina,
Ásia, Oriente Médio e África houve movimentos que conseguiram
se afastar de sua órbita. Por coincidência, movimentos de países que

44
haviam participado da aventura colonial como dominados. Em ou-
tras palavras: surgiram principalmente em territórios onde houve o
tráfico negreiro, a escravidão ou outras formas de trabalho compul-
sório típicas do sistema colonial. Grande parte de suas populações,
ou melhor, de sua composição demográfica, é esmagadoramente
não-branca.
Com a crise estrutural do sistema capitalista, na fase de impe-
rialismo tecnocrático, houve a necessidade de uma reciclagem no
processo e nas táticas de dominação. De um lado para consolidar o
seu domínio econômico e, de outro, como manifestação de racismo.
A primeira manifestação mais aguda deste comportamento foi
a operação que os Estados Unidos organizaram contra a Líbia em
1981. Foi preparada uma operação de terrorismo de listado para
assassinar seu líder. Depois de várias operações de agressão mili-
tar, nas quais foram abatidos dois aviões líbios (em território líbio),
constatou-se que um dos filhos de Kadafi havia sido assassinado.
Isto porém não sensibilizou a opinião pública mundial. A mídia
criou para consumo internacional a imagem de que Kadafi era o
líder do terrorismo internacional, o que os fatos desmentiram.
Depois veio a invasão da ilha de Granada. A pretexto de obe-
decer aos apelos de uma entidade fantasma, os norte-americanos
ocuparam a ilha, assassinaram seu presidente e centenas de seus ha-
bitantes. A opinião internacional não se mobilizou nem denunciou
o crime, possivelmente por se tratar de um país de negros.
Registramos também a invasão do Panamá, com o pretexto de
combater o narcotráfico. Em 1989 a 82ª Divisão Aero-transporta-
dora dos Estados Unidos invadiu seu território, prendeu o presiden-
te Noriega, sequestrou-o e levou-o para ser condenado pelos tribu-
nais norte-americanos. A intervenção norte-americana destruiu a
economia do pais, tentou extinguir o Exército e colocou um de seus
representantes como chefe de Estado. Mas a opinião pública não se
emocionou. Pelo contrário. Toda a imprensa mundial teceu elogios
ao ato. O Panamá é também um pais de negros, mestiços e índios.
Por fim, os casos mais recentes: a Guerra do Golfo contra o
Iraque, a invasão da Somália, a tentativa (que persiste) de ocupar o

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Haiti e os massacres de Ruanda passam como acontecimentos sem
relevância. As razões apresentadas são de “ação humanitária”, “res-
tauração da democracia” “combate ao narcotráfico”, pois não cola
mais o “perigo comunista’.
É uma reciclagem hipócrita do antigo sistema colonial, que se
reestrutura no neo-colonialismo tecnocrático, racista. Para justificá-
-lo utilizam-se não só da sociobiologia, da engenharia genética e das
hipóteses que procuram demostrar a existência de raças inferiores,
mas também de canhões, aviões e tanques de guerra.
Estamos às véspera do terceiro milênio. Vamos entrar numa épo-
ca em que as ordenações sociais serão radicalmente reformuladas.
Nesse processo as atuais nações atrasadas, dependentes e espoliadas,
vindas do antigo sistema colonial, assumirão um papel novo, resga-
tando o passado de dominação. E o realinhamento social também
será étnico, pois as raças não-brancas habitam por herança desse
sistema as regiões espoliadas. Este é o desafio do milênio que se
avizinha e que não será outro senão a realidade do socialismo em
dimensão planetária.

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Sobre o Autor
Clóvis Steiger de Assis Moura (Amarante, 1925 — São Pau-
lo, dezembro de 2003), mais conhecido como Clóvis Moura, foi um
sociólogo, jornalista, historiador e escritor brasileiro. Nasceu na ci-
dade de Amarante, no Piauí. Foi influenciado pelo marxismo, tendo
desenvolvido a Sociologia da Práxis Negra. Clóvis Moura questionou
a visão de Gilberto Freyre sobre a passividade do negro no Brasil,
destacando a resistência à escravidão dos quilombos. Em suas pes-
quisas tratou da rebelião dos escravos e da formação dos quilombos.
Apoiando-se na teoria de Marx, analisou a luta de classes no sistema
escravista. Para Clóvis Moura, a sociedade escravista brasileira era
subdividida em duas classes antagônicas: os senhores de escravos
(classe dominante) e os escravos (classe dominada). Os escravos pro-
duziam os bens materiais e as riquezas enquanto os senhores de
escravos detinham a propriedade e os meios de produção. Após a
abolição, os escravos, apesar de terem produzido as riquezas que ali-
cerçaram a economia brasileira, não tiveram direito à propriedade.
Militou pelo PCB e, em 1962, na cisão do partido, migrou para o PC-
doB. Destacou-se pela militância pioneira no movimento negro bra-
sileiro. Colaborou com artigos para jornais da Bahia e de São Paulo.

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