O Paradigma Da Essencialidade - Delma Pires Pinto - 221

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 73

UNIVERSIDADE FEDERAL DE VIÇOSA

DELMA PIRES PINTO

O PARADIGMA DA ESSENCIALIDADE COMO CRITÉRIO DE CLASSIFICAÇÃO


DOS BENS E SUAS POSSÍVEIS IMPLICAÇÕES NOS CONTRATOS CIVIS À LUZ DA
TUTELA DO PATRIMÔNIO MÍNIMO

VIÇOSA – MINAS GERAIS


2012
DELMA PIRES PINTO

O PARADIGMA DA ESSENCIALIDADE COMO CRITÉRIO DE CLASSIFICAÇÃO DOS


BENS E SUAS POSSÍVEIS IMPLICAÇÕES NOS CONTRATOS CIVIS À LUZ DA TUTELA
DO PATRIMÔNIO MÍNIMO

Monografia, apresentada ao Curso de Direito da


Universidade Federal de Viçosa como requisito
para obtenção do título de bacharel em Direito.

Orientador: Alexandre Pimenta Batista Pereira

VIÇOSA – MINAS GERAIS


2012
DELMA PIRES PINTO

O PARADIGMA DA ESSENCIALIDADE COMO CRITÉRIO DE


CLASSIFICAÇÃO DOS BENS E SUAS POSSÍVEIS
IMPLICAÇÕES NOS CONTRATOS CIVIS À LUZ DA TUTELA
DO PATRIMÔNIO MÍNIMO

Monografia apresentada como trabalho final da


disciplina DIR 499 (Monografia II) e como exigência
parcial para a conclusão do curso de Direito da
Universidade Federal de Viçosa.

APROVADA: 27 DE NOVEMBRO DE 2012

Prof. Alexandre Pimenta Batista Pereira


Orientador

Prof. Guilherme Nacif de Faria Prof. Gabriel Pires


Primeiro examinador Segundo examinador
AGRADECIMENTOS

Ao meu fiel amigo, meu grande Deus,


Aos meus amados pais, por tudo que são e sempre foram,
À memória de meu irmão Robson,
Ao meu eterno orientador e amigo, professor Dr. Alexandre Pimenta Batista Pereira, a quem não
tenho palavras suficientes para agradecer, pela incomensurável contribuição intelectual e
confiança desde o primeiro ano do curso,
A todos os professores do Departamento de Direito, em especial à professora Drª Iacyr de
Aguilar Vieira, responsável por meu primeiro contato com o fascinante mundo do Direito,
Ao Dr. Luis Cláudio Fonseca Magalhães, Dr. Wilson Penin Couto e Dr. Gabriel Pereira de
Mendonça, Promotores de Justiça da Comarca de Viçosa, por todos os ensinamentos, paciência e
conselhos em quase dois anos de estágio,
Aos meus grandes amigos da Escola Estadual Effie Rolfs, do Coluni e do Curso de Direito, por
todos os momentos felizes e difíceis, mas todos inesquecíveis,
À Universidade Federal de Viçosa e cada um de seus servidores, eis que este Campus é meu lar
desde os sete anos de idade.
“Senhor! Fazei de mim um instrumento da vossa
paz.
Onde houver ódio, que eu leve o amor.
Onde houver ofensa, que eu leve o perdão.
Onde houver discórdia, que eu leve a união.
Onde houver dúvidas, que eu leve a fé.
Onde houver erro, que eu leve a verdade.
Onde houver desespero, que eu leve a esperança.
Onde houver tristeza, que eu leve a alegria.
Onde houver trevas, que eu leve a luz.
Ó Mestre, fazei que eu procure mais:
consolar, que ser consolado;
compreender, que ser compreendido;
amar, que ser amado.
Pois é dando que se recebe.
É perdoando que se é perdoado.
E é morrendo que se vive para a vida eterna”.

(São Francisco de Assis)

“Não sabendo que era impossível, ele foi lá e fez”.

(Jean Cocteau)
RESUMO

A tutela da pessoa humana, através da concretização de seus direitos fundamentais,


adquire cada vez maior importância. Neste contexto, buscou-se, através do estudo de duas
importantes obras contemporâneas, propor uma sugestão de classificação dos contratos segundo a
essencialidade do bem contratado, como forma de tutela do direito ao patrimônio mínimo
necessário à manutenção da própria pessoa. Para este fim, foram utilizados os métodos
bibliográfico, ressaltando que as principais fontes deste estudo foram obras doutrinárias; indutivo,
buscando-se provar a existência de um princípio implícito no ordenamento de tutela do
patrimônio mínimo essencial a cada pessoa; dedutivo, na defesa da aplicação deste princípio aos
contratos. Estes estudos permitiram concluir pela conveniência e existência de amparo
constitucional na fragmentação da teoria contratual, de forma que os contratos referentes a bens
essenciais disponham de uma maior proteção ao contratante que deles necessita. Até que seja
feita a alteração legislativa, consolidando a fragmentação da teoria contratual com base no bem
contratado, seria possível a atuação do aplicador do direito, sobretudo por meio das normas com
estrutura aberta – cláusulas gerais –, na tentativa de assegurar uma proteção, ainda que pequena,
aos contratantes de bens essenciais.

Palavras-chave: patrimônio mínimo, contratos, bens, essencialidade.


SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO 7
2 OS HORIZONTES ABERTOS PELOS NOVOS PARADIGMAS E PELO 9
ESTATUTO JURÍDICO DO PATRIMÔNIO MÍNIMO – PONTO DE PARTIDA
2.1 Teoria do contrato: novos paradigmas 9
2.2 Estatuto jurídico do patrimônio mínimo 12
3 A TUTELA JURÍDICA DO PATRIMÔNIO MÍNIMO NO DIREITO 15
BRASILEIRO
3.1 A proteção ao patrimônio mínimo como uma das vertentes do direito civil- 15
constitucional
3.2 A tutela do patrimônio mínimo nos diversos ramos do direito e a lacuna no que 22
tange aos contratos
3.2.1 A impenhorabilidade no Código de Processo Civil 22
3.2.2 O salário mínimo na Constituição 24
3.2.3 A essencialidade como critério de tributação 26
3.2.4 O benefício de prestação continuada 29
3.2.5 O bem de família 31
3.2.6 Doação e proibição de autorredução à miséria 33
3.2.7 A cláusula de inalienabilidade testamentária 35
3.3 Da existência de um princípio implícito de tutela do patrimônio mínimo no 36
ordenamento – a situação dos contratos
4 PANORAMA GERAL DOS CONTRATOS NO DIREITO BRASILEIRO 38
4.1 Breve histórico 38
4.2 Novos princípios e pluralidade de valores: a necessidade de novos paradigmas 46
4.3 O direito contratual: a classificação dos bens objetos dos contratos como ponto de 49
equilíbrio entre o intervencionismo estatal e a liberdade individual – os novos
paradigmas
5 O PARADIGMA DA ESSENCIALIDADE 51
5.1 O paradigma da essencialidade e a garantia do mínimo existencial à pessoa 51
5.2 O paradigma da essencialidade como diretriz de aplicação dos princípios 53
contratuais: a intervenção estatal nas relações privadas como forma de assegurar
o mínimo patrimonial
5.3 A classificação dos bens 56
5.3.1 A classificação adotada pelo Código Civil 56
5.3.2 A classificação conforme o grau de necessidade do bem 57
5.4 Aplicação do critério da essencialidade – possibilidades no direito brasileiro de 60
lege lata e de lege ferenda
6 CONCLUSÃO 66
REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS 68
LEGISLAÇÃO 72
7

1 INTRODUÇÃO

A Constituição Federal de 1988 trouxe grandes inovações na forma de interpretar o


Direito. O Neoconstitucionalismo afetou o direito privado com tamanha intensidade que fez
surgir uma corrente em defesa da releitura do Código à luz da Constituição: a corrente civil-
constitucionalista. Pode-se afirmar que o direito adquiriu um viés mais social e solidário,
exsurgindo a dignidade da pessoa humana como diretriz normativa de todo o ordenamento.
Neste contexto, releva em importância a tutela dos direitos fundamentais da pessoa
humana. Marcados pela imaterialidade, os direitos fundamentais compõem o núcleo de direitos
inerentes a toda pessoa natural, o qual não pode ser suprimido ou tangenciado. Conquanto
estejam em plano diferente daquele concernente aos direitos patrimoniais, não se pode
desconhecer a necessidade destes direitos ditos patrimoniais para a tutela daqueles, os
fundamentais.
Partindo deste princípio, Luiz Edson Fachin constroi seu “Estatuto jurídico do
patrimônio mínimo”. Através da análise de vários institutos do ordenamento brasileiro, o autor
demonstra a existência de um direito subjetivo do indivíduo a um patrimônio mínimo, capaz de
assegurar-lhe uma condição digna de vida.
Ainda no contexto das transformações oriundas da Constituição Federal de 1988, tem-
se o contrato. O modelo individualista, assentado na liberdade como direito fundamental, cedeu
espaço a uma série de princípios denominados sociais: boa-fé objetiva, função social do contrato
e equilíbrio econômico. Estes princípios, ao contrário dos princípios liberais (modelo contratual
do Estado liberal), impõem aos contratantes a obediência a deveres anexos, ou seja, deveres que,
embora não previstos contratualmente, integram os contratos e obrigam os contratantes. A forma
de se assegurar o cumprimento destes deveres é através da atuação do Estado-juiz. Nota-se,
portanto, que o Estado passou a ter uma posição mais intervencionista, com o escopo de evitar os
abusos ocorridos no período liberal.
Conquanto o surgimento destes novos princípios tenha afetado a teoria contratual, não
houve a total dissipação dos princípios individualistas do ordenamento ou mesmo da
Constituição. Com efeito, a liberdade contratual e a autonomia da vontade ainda exercem papel
fundamental no Estado Democrático de Direito, além de impulsionarem a economia nacional. O
8

que se tem hoje é a coexistência destes dois grupos de princípios, os sociais e os


liberais/individualistas.
Não obstante se reconheça referida coexistência e necessidade de harmonização, não
há diretriz legal de aplicação destes princípios. É bem verdade que em alguns contratos
específicos, como os contratos de consumo, há uma preocupação com a tutela de uma das partes,
a presumivelmente vulnerável na relação; entretanto, nos contratos civis, onde muitas vezes uma
das partes se encontra em situação de maior vulnerabilidade do que nos contratos de consumo, há
uma presunção de igualdade de condições, motivo pelo qual se pode afirmar que o direito age
indiferentemente perante a pessoa concretamente considerada. A teoria contratual civil é una,
contratos e contratantes são todos iguais perante o direito civil.
É contra esta unicidade que se insurge Teresa Negreiros em sua obra Teoria do
contrato: novos paradigmas. A autora propõe uma fragmentação da teoria contratual, em
oposição à teoria única existente.
O critério proposto para a fragmentação é o objeto do contrato. Para tanto, a autora
propõe uma classificação dos bens baseada na sua essencialidade para o contratante. Desta forma,
existiriam bens necessários ou essenciais, bens úteis e bens supérfluos. Os contratos relativos a
bens essenciais e úteis mereceriam uma tutela especial, dado que estes bens são meios para a
concretização de direitos fundamentais, constitucionalmente previstos.
Um estudo das obras de Luiz Edson Fachin, “Estatuto jurídico do patrimônio
mínimo”, e de Teresa Negreiros, “Teoria do contrato: novos paradigmas”, permite encontrar um
ponto de convergência entre elas. A teoria de um autor é complementada pela teoria do outro. A
teoria de Fachin, propondo a existência de um direito subjetivo a um patrimônio mínimo, serve
de fundamento a justificar a tutela jurídica diferenciada dos contratos, de forma a proteger o
contratante no contrato que tenha por objeto um bem essencial. A teoria proposta por Teresa
Negreiros permite, por sua vez, a tutela do patrimônio mínimo na seara contratual.
É neste fascinante mundo da relação de complementariedade entre patrimônio mínimo
e bens essenciais que se passa a aprofundar.
9

2 OS HORIZONTES ABERTOS PELOS NOVOS PARADIGMAS E PELO ESTATUTO


JURÍDICO DO PATRIMÔNIO MÍNIMO – PONTO DE PARTIDA

2.1 Teoria do contrato: novos paradigmas

A ideia deste trabalho surgiu a partir da leitura da excelente obra “Teoria do contrato:
novos paradigmas”1, de Teresa Negreiros. Nesta, a autora, através de uma leitura constitucional
do direito civil e da conciliação entre os novos princípios contratuais (boa-fé, função social e
equilíbrio das prestações) e os princípios clássicos (autonomia da vontade, relatividade dos
efeitos do contrato, obrigatoriedade contratual), propõe a essencialidade do bem objeto do
contrato como critério para uma nova classificação dos contratos, com diferentes tratamentos
jurídicos. Diante da contribuição desta obra para este trabalho, traçam-se os principais pontos
abordados pela autora.
O ponto de partida para o surgimento do novo paradigma contratual é a emergência
dos novos princípios e o caráter social adquirido pelo direito, inclusive o direito privado,
transparecido na Constituição Federal de 1988. É preciso, portanto, localizar o pensamento da
autora junto à corrente civil-constitucionalista do direito.
É nesta corrente que encontra guarida a classificação dos bens em essenciais, úteis e
supérfluos. Sinteticamente, os civil-constitucionalistas propõem uma leitura do direito civil à luz
do direito constitucional, de forma que o centro do direito privado deixa de ser o Código e passa a
ser a Constituição. Nesse sentido, uma das principais premissas dessa corrente é a de que “os
princípios e valores constitucionais conformam diretamente as relações privadas,
2
funcionalizando-as à proteção e ao desenvolvimento da pessoa Humana” .
O princípio norteador da classificação dos bens é o princípio da dignidade da pessoa
humana. Na busca de um ponto de equilíbrio entre autonomia individual e autoridade estatal,
entre liberdade e solidariedade, desponta a proteção estatal aos interesses existenciais, tidos como
essenciais à dignidade humana, como diretriz de interpretação dos contratos.

1
NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. 544 p.
2
Ibidem, p. 63.
10

A emergência de novos princípios contratuais está em perfeita consonância com os


valores e princípios constitucionais da justiça (CF/88, preâmbulo) e da dignidade da pessoa
humana (CF/88, art. 1º, III). Neste sentido, os novos princípios refletem os mandamentos
constitucionais. Assim, Teresa Negreiros procura

[...] identificar como sentido unificante das transformações sofridas na teoria do


contrato a incidência sobre a relação contratual, de princípios e valores constitucionais.
Ou seja, pretende-se construir uma ponte que articule à dogmática contratual
contemporânea – caracterizada pela formulação de princípios e valores que visam à
tutela do contratante débil e de boa-fé – a concepção trazida pela ordem constitucional
acerca da pessoa humana e de sua socialidade 3.

A emergência destes novos princípios não afastou totalmente a incidência dos


princípios clássicos, assim como o caráter social das normas constitucionais não impede a
existência de normas individualistas no diploma maior – a Constituição. Com efeito, hoje se vê a
coexistência de novos e clássicos princípios, consoante assevera Teresa Negreiros:

Vive-se hoje um momento em que novos e velhos princípios convivem


simultaneamente; vive-se um momento, nas palavras de Antônio Junqueira de Azevedo,
de “hipercomplexidade”, já que aos princípios clássicos não se pode simplesmente opor
os novos princípios, como se aqueles houvessem sido unilateralmente substituídos por
estes.4

Em meio à coexistência destes dois grupos de princípios, a autora vê na fragmentação


da teoria contratual a saída para pacificar as antinomias destes dois grupos, bem como satisfazer
os princípios constitucionais da liberdade individual e da solidariedade social. Fragmentar a
teoria contratual significa atribuir tratamento jurídico distinto aos diferentes contratos. Com
efeito, o ordenamento já procedeu a esta distinção ao regular diferentes tipos contratuais de
maneiras diversas, como o fez com os contratos de consumo e os de locação. A novidade trazida
pela autora consiste no critério utilizado para a fragmentação: o grau de necessidade do bem
objeto do contrato.
Através da classificação dos bens em essenciais, úteis e supérfluos, conforme sua
utilidade em relação à pessoa, pode-se direcionar a aplicação prevalecente ora dos novos
princípios, ora dos princípios clássicos. Assim propõe a autora:

Os contratos que tenham por função satisfazer uma necessidade existencial do


contratante devem sujeitar-se a um regime de caráter tutelar – ampliando-se,

3
NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 23.
4
Ibidem, p. 30.
11

correlatamente, o campo de aplicação dos novos princípios. Ao revés, os contratos que


tenham por objetos bens supérfluos, destinados a satisfazer preferências que não
configuram necessidades básicas da pessoa, tais contratos são compatíveis com uma
disciplina mais liberal, o que vale dizer que devem sofrer maior influência dos princípios
clássicos5.

Desta forma, contratos referentes a bens essenciais à existência humana teriam um


tratamento diferenciado, de forma a garantir ao sujeito o acesso a tais bens, sobretudo através do
papel mais atuante do Estado. Já contratos relativos a bens supérfluos não carecem de grande
tutela estatal, deixando-se maior espaço de atuação para a autonomia privada.
Segundo Teresa Negreiros, é a dignidade da pessoa humana o ponto de convergência
entre a liberdade individual e os princípios coletivos, como a justiça e a solidariedade, valores em
constante choque no contexto constitucional.6 Sendo o critério da essencialidade apto a assegurar
esta dignidade mínima, tem-se que o ponto de equilíbrio entre a liberdade individual e os valores
coletivos pode ser encontrado na aplicação do critério da essencialidade do bem contratado.
É de se perguntar como aplicar o critério da essencialidade diante da ausência de uma
norma específica no ordenamento que autorize tal utilização. A autora transfere tal
responsabilidade ao intérprete. Com efeito, diante dos postulados da corrente
neoconstitucionalista, é possível ao intérprete, na criação da norma jurídica para o caso concreto,
utilizar-se de elementos e valores não resguardados pela norma, tendo em vista a justiça do caso
concreto7. Neste sentido, afirma Teresa Negreiros:

Embora o direito civil não disponha de uma cláusula geral neste sentido, sob o influxo
dos princípios constitucionais o intérprete possui elementos suficientes para a construção
do paradigma da essencialidade, à luz do qual a intervenção no domínio contratual seja
seletiva e, portanto, à luz do qual se realize a ponderação, na esfera negocial, entre
liberdade e solidariedade8.

Sintetizando, com fundamento no princípio constitucional da dignidade da pessoa


humana e objetivando a busca desta dignidade, a autora propõe como critério direcionador do
conjunto de princípios a serem aplicados ao contrato o critério da essencialidade do bem. Nas
palavras da própria Teresa Negreiros:
5
NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 31-32.
6
Cf. NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 37-38.
7
Sobre a interpretação na corrente neoconstitucionalisara, cf. SARMENTO, Daniel. O neoconstitucionalismo no
Brasil: riscos e possibilidades. In: SARMENTO, Daniel (coord.). Filosofia e teoria constitucional
contemporânea. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 113-146; BARROSO, Luis Roberto. O Direito
Constitucional e a efetividade de suas normas: limites e possibilidades da Constituição brasileira. 7. ed. Rio de
Janeiro: Renovar, 2003, p. 283-327.
8
NEGREIROS, op. cit., p. 39.
12

Defende-se, pois, uma diferenciação dos contratos conforme a medida da utilidade


existencial do bem ou do serviço cuja aquisição ou utilização seja contratada. O contrato
não mais se compadece com análises monolíticas, presas à identificação de seus aspectos
formais; antes, sob a ótica funcionalista e socializada, a análise dos contratos deve
admitir certas diferenciações, às quais correspondam diferenciações em termos da
principiologia aplicável. [...]
Não se trata de subordinar ou mesmo de opor em termos dicotômicos o individual e o
social, o privado e o público, e demais pares conceituais que tradicionalmente refletem
na teoria contratual tendências ideológicas opostas. Trata-se, sempre com vista a um
ponto de equilíbrio, de reconhecer que os contratos não compõem uma categoria
homogênea, e, a partir desta premissa, estruturar critérios de diferenciação conforme os
quais o conflito entre liberdade e solidariedade seja composto ora em um sentido mais
liberalizante, ora em um sentido mais socializante, abandonando-se a ideia de ordenar
toda a matéria contratual em torno de um único e absoluto paradigma 9.

2.2 Estatuto jurídico do patrimônio mínimo

A obra do professor da UFPA, Luiz Edson Fachin, intitulada “Estatuto Jurídico do


Patrimônio Mínimo”10, é o segundo alicerce doutrinário deste estudo. Suas ideias fornecem o
mais relevante suporte teórico à necessidade de uma nova classificação dos contratos, a qual
assegure a maior aproximação entre o contrato e os princípios constitucionais.
Com invejável maestria, Fachin traça as diretrizes teóricas para a construção de seu
pensamento jurídico e defesa da existência, em favor da pessoa natural, de uma garantia
patrimonial mínima, a qual integra a sua esfera jurídica, não podendo ser dela expropriada ou
desapossada11.
Apegando-se às mais modernas correntes teóricas, defensoras da repersonalização e
da despatrimonialização do direito privado, o professor lança, em sua obra, uma série de novas
ideias, voltadas à valorização da pessoa, mas não propõe os meios necessários à concretização
dos princípios de sua teoria, limitação esta reconhecida pelo próprio autor12. É na busca destes
meios que se visualiza a pertinência da importante obra de Teresa Negreiros.
Um primeiro aspecto abordado pelo autor para a construção de sua teoria que merece
destaque é a desvinculação entre pessoa e patrimônio.

9
NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 40.
10
FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. 326 p.
11
Cf. FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 1.
12
Cf. FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 20.
13

Fachin tece severa crítica à concepção clássica de patrimônio uno, projeção ou


atributo da personalidade. Segundo esta concepção, o patrimônio compreenderia todas as relações
jurídicas de caráter patrimonial da pessoa, sendo, assim, uma universalidade indivisível,
verdadeira ramificação da personalidade. Criticando a vinculação entre patrimônio e
personalidade, aduz o autor:

[...] o patrimônio não pode ser tomado como a personalidade mesma do homem,
considerada em sua relação com os objetos exteriores. Não seria, portanto, espécie de
recipiente no qual aquelas relações jurídicas (de conteúdo econômico) se encaixariam.13

Afastando as ideias de patrimônio e personalidade, o professor defende a


possibilidade de divisão do patrimônio, de forma que uma mesma pessoa possua diferentes
massas patrimoniais distintas e coexistentes entre si:

[...] Assim, seria possível uma pluralidade de patrimônios de titularidade de uma mesma
pessoa. Haveria, pois, um patrimônio geral, em que a coesão dos elementos se dá pela
relação subjetiva comum com a pessoa, e os patrimônios autônomos, especiais ou
separados. Estes podem atender a critérios diversos: especial destinação de certa massa
de bens, administração separada e a responsabilidade por dívidas, na lição de MOTA
PINTO.
Este último critério separa um patrimônio para servir ao fim desejado, qual seja, a
responsabilidade por dívidas. Diz-se, então, que o patrimônio especial está afetado
àquele fim. Rompe-se, pois, com a visão de universalidade vinculada à personalidade, de
modo que, sendo possível a uma pessoa ter mais de um patrimônio, não há que se falar
em atributo ou projeção da personalidade.14

Para ilustrar a coerência de sua tese, bem como a aplicação prática da mesma, Fachin
afirma que seria impossível conceber a existência de um patrimônio de afetação, o qual não
possui um titular exclusivo, negando-se a possibilidade de coexistência entre diversos
patrimônios.15
Um segundo aspecto a ser destacado é a abrangência do conceito de patrimônio
adotado pelo professor. Entendendo, como o faz a doutrina pátria, que a ideia de patrimônio
abrange não os bens em si mesmos, mas os direitos, estariam compreendidos neste conceito os
direitos de apropriação de um modo geral (direitos reais), os direitos de crédito e a herança.16

13
FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 40.
14
Ibidem, p. 41.
15
Cf. FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 42.
16
Cf. FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 60-
61.
14

A partir destes dois aspectos, Fachin passa a demonstrar a existência, na própria


codificação civil, de um novo olhar sobre o patrimônio, pautado na repersonalização do direito
civil trazida pela Constituição Federal de 1988.
Um dos maiores reflexos da tutela da pessoa a partir de seu patrimônio é a proibição
de doação de todos os bens, sem reserva do suficiente para a sobrevivência do doador, norma
estampada no artigo 548 do CC/0217. Da mesma forma, a cláusula de inalienabilidade
testamentária poderá estar diretamente relacionada à tutela do patrimônio mínimo, o que ocorre
quando é instituída com o fim de assegurar a subsistência do donatário.18
Já no fim de sua obra, o autor faz interessantes considerações acerca do conceito de
mínimo patrimonial a se assegurar à pessoa. Repudiando os conceitos de mínimo e máximo
como extremos que, quando ultrapassados, descaracterizam o objeto de estudo, Fachin sobrepõe
o aspecto qualitativo ao quantitativo. Nesta perspectiva, o conceito de mínimo é axiológico,
passível de valoração, e não de metrificação, como salienta:

Bem se vê que, nessa visão diversa, captada pela lente da pluralidade, o mínimo não é
referido por quantidade, e pode muito além do número ou da cifra mensurável. Tal
mínimo é valor e não metrificação, conceito aberto cuja presença não viola a ideia de
sistema jurídico axiológico. O mínimo não viola a ideia de sistema jurídico axiológico.
O mínimo não é menos nem ínfimo. É um conceito apto à construção do razoável e do
justo ao caso concreto, aberto, plural e poroso ao mundo contemporâneo.19

Assim, o autor encerra sua obra ressaltando o fim último de tutela da dignidade
humana, pretendido por seu estatuto jurídico do patrimônio mínimo.
A obra de Fachin se mostra uma rica fonte para outros estudos, sobretudo aqueles
relacionados ao direito civil-constitucional. A pretensão esboçada de tutela do patrimônio
mínimo, entendido este mínimo em seu aspecto qualitativo, remete à interessante obra de Teresa
Negreiros, Teoria do contrato: novos paradigmas, a qual fornece um meio engenhoso de tutela
deste mínimo necessário à dignidade humana, qual seja, o tratamento jurídico diferenciado aos
bens essenciais e seus reflexos diferenciados na seara contratual.

17
Cf, FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 94-
113.
18
Cf. FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p.
118- 119.
19
FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 280-
281.
15

3 A TUTELA JURÍDICA DO PATRIMÔNIO MÍNIMO NO DIREITO BRASILEIRO

3.1 A proteção ao patrimônio mínimo como uma das vertentes do direito civil-
constitucional

O modelo paradigmático do direito civil, como ramo autônomo do direito e centro do


ordenamento jurídico, pode ser encontrado no Código Napoleônico. Neste, Jean Domat, pela
primeira vez, operou a separação entre as normas civis e as normas públicas, modelo que serviu
de parâmetro para as grandes codificações do século XIX20.
Neste modelo, o direito civil foi identificado com o próprio Código Civil, havendo
uma distinção nítida entre direito público e direito privado. Aquele se compunha das normas
emanadas pelo Estado e era voltado à tutela dos interesses gerais da população, mas sempre com
o objetivo de assegurar os direitos individuais de cada cidadão. Por outro lado, o direito privado,
ou direito civil, inserido no âmbito dos direitos naturais, destinava-se a assegurar a ampla
liberdade do indivíduo nas relações com os outros indivíduos.
As leis civis e as leis públicas eram impermeáveis21. Era clara a distinção entre os dois
campos e o Estado não podia intervir, salvo casos extremos, na seara privada.
O sujeito de direito era marcado pela abstração. Esta abstração do sujeito é fruto das
concepções iluministas do século XIX, sobretudo da universalização e da igualdade entre todos
os homens, o que permitia concluir que todo o sujeito poderia ser enquadrado em um conceito
único: sujeito22. O alicerce principal deste sujeito era a sua liberdade. Pode-se dizer, com Paulo

20
Cf. MORAES, Maria Celina Bodin de. A Caminho de um direito civil constitucional. Disponível em:
http://www.fae2009.kit.net/CaminhosDireitoCivilConstitucional_-_Maria_Celina_B_Moraes.pdf. Acesso em 08
mar. 2011.
21
Cf. MORAES, Maria Celina Bodin de. A Caminho de um direito civil constitucional. Disponível em:
http://www.fae2009.kit.net/CaminhosDireitoCivilConstitucional_-_Maria_Celina_B_Moraes.pdf. Acesso em 08
mar. 2011.
22
“É que do sujeito medieval remetido somente a uma essência teocêntrica, apta a conferir-lhe universalidade,
instaura a moderna razão da igualdade formal entre todos os seres humanos a partir dos conceitos. O conceito de
sujeito passa a ocupar esse lugar de universal, deixando para o singular o concreto do indivíduo. Liberdade e
igualdade formal, mesmo iluminadas por tal racionalidade, fundam, na associação humana e no exercício das
autonomias individuais, um novo medievo, projetando-se, para o Direito, bases do positivismo jurídico”
(FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 82).
16

Luiz Netto Lôbo, que a igualdade (formal) e a liberdade incorporavam o catálogo de direitos da
pessoa humana.23
Por serem livres e iguais, as partes, nas relações jurídicas, eram tidas como detentoras
dos mesmos poderes, contratantes em iguais condições24. O sujeito é encarado, abstratamente,
apenas como uma parte da relação. Qualquer circunstância concreta é renegada, como ensina
Fachin:

A formulação do conceito de relação jurídica, e a própria palavra relação, fornece o


conceito de presença jurídica de pessoas. No entanto, essa idéia de pessoa não recolhe
uma informação a partir de um sujeito em concreto, ou seja, a partir das considerações
concretas desse ou daquele sujeito, pois a relação jurídica, classicamente moldada, leva
em conta uma noção abstrata e genérica das pessoas. A própria pessoa é que se coloca in
abstrato, perfil jurídico não definido a partir de suas condições concretas; compreende
imensa gama, independentemente de sua condição econômica, social ou histórica, noção
que tem a pretensão de inscrever a todos ao mesmo tempo 25.

É esta abstração e desconsideração dos sujeitos concretamente considerados, alvo das


críticas da doutrina,26 que impulsionará a busca de uma nova ótica para se olhar a relação
privada.
Este cenário começou a se transformar com as constantes intervenções do Estado na
economia, sobretudo a partir do surgimento dos contratos de adesão e os abusos permitidos pelos
mesmos. Foi a Constituição a responsável pela concretização do sujeito, ou seja, o sujeito, a
pessoa humana a qual o diploma maior se refere passou a ser pessoa em concreto27.
A partir deste momento surgiu o mito da publicização do direito privado. Acreditou-se
que o direito público estava se sobrepondo ao privado, eliminando-o, como se fossem duas
esferas antagônicas.
Houve, de fato, uma reviravolta na leitura do direito civil, entretanto, este fato não
deve ser visto como diminuição da esfera do privado e nem como decorrente exclusivamente da
23
LÔBO, Paulo Luiz Netto. Constitucionalização do direito civil. Revista de informação legislativa, Brasília, a. 36,
n. 141, p. 99-109, jan./mar. 1999, p. 101.
24
Para uma explicação de como a teoria clássica colocava fora da relação jurídica as considerações do fato concreto,
cf. FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 101-102.
25
FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 88.
26
“Não sem sentido, nesses quadrantes, o sujeito não “é” em si, mas “tem” para si titularidades. É menos pessoa real
e concreta (cujas necessidades fundamentais como moradia, educação e alimentação não se reputam direitos
subjetivos porque são demandas de “outra ordem”), e é mais um “indivíduo patrimonial”. Tal percepção garante o
status quo patrimonial presente ou cria restritos mecanismos de acesso à dimensão do pólo ativo dessas
titularidades. Serve, pois, essa relação jurídica (com seus elementos) para conferir, por meio da instancia jurídica,
uma refinada modalidade instrumental de preservação e autoconservação” (FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica
do direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 90).
27
Cf. FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p.189.
17

interferência do Estado na economia. Maria Celina Bodin de Moraes atribui esta reviravolta a
uma mudança interna ocorrida na própria estrutura do direito privado, mudança esta que
acarretou alterações nas suas relações com o direito público28. Uma das mudanças ocorridas,
neste sentido, foi a substituição da noção de homem individual pela noção de homem inserido em
uma sociedade. O que ocorreu, em síntese, não foi a eliminação da esfera privada da pessoa, mas
sim a sua garantia por meio de mecanismos de direito público:

O intervencionismo estatal e, na sua esteira, o papel que a regulamentação jurídica


passou a desempenhar na economia e, de uma forma geral, na vida civil podem, então,
ser encarados como elemento integrante – ao invés de razão primordial – das profundas
mudanças ocorridas no direito privado. O novo peso dado ao fenômeno importa em
rejeitar a idéia de invasão da esfera pública sobre a privada, para admitir, ao revés, a
estrutural transformação do conceito de direito civil, ampla o suficiente para abrigar, na
tutela das atividades e dos interesses da pessoa humana, técnicas e instrumentos
tradicionalmente próprios do direito público como, por exemplo, a aplicação direta das
normas constitucionais nas relações jurídicas de caráter privado29.

Assim, segundo a autora, não houve uma publicização do direito privado, ou a


eliminação da esfera privada da pessoa. Passou-se, isso sim, a uma nova ótica de leitura do direito
privado, tendo por foco os valores constitucionais, até mesmo como forma de assegurar aos
indivíduos a liberdade pretendida pelo direito civil.
Para a doutrina civil-constitucionalista, todo ato de autonomia (autonomia privada),
independentemente de seu fundamento, possui um denominador comum: a tutela de interesses
socialmente úteis30. Estes interesses socialmente úteis assumem a posição de valores, deixando de
ser um interesse individual, subjetivo, para integrar um conjunto de valores. Neste contexto, seria
papel do direito fazer a mediação entre interesses e valores.
Integrariam a classe de valores os direitos personalíssimos, que são uma série de
direitos arrolados constitucionalmente como direitos e garantias individuais e coletivos. Entre

28
Cf. MORAES, Maria Celina Bodin de. A Caminho de um direito civil constitucional. Disponível em:
http://www.fae2009.kit.net/CaminhosDireitoCivilConstitucional_-_Maria_Celina_B_Moraes.pdf. Acesso em 08
mar. 2011.
29
Cf. MORAES, Maria Celina Bodin de. A Caminho de um direito civil constitucional. Disponível em:
http://www.fae2009.kit.net/CaminhosDireitoCivilConstitucional_-_Maria_Celina_B_Moraes.pdf. Acesso em 08
mar. 2011.
30
Cf. PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. Tradução de Maria Cristina de Cicco. 2. ed. Rio de Janeiro:
Renovar, 2002, p. 18.
18

estes direitos merece destaque a cláusula geral de tutela da dignidade da pessoa humana (art. 1º,
III)31.
Além da eficácia direta dos princípios constitucionais, os civil-constitucionalistas
também demonstram uma preocupação em aproximar o direito e a moral no âmbito do direito
privado:

É necessário que, com força, a questão moral, entendida como efetivo respeito à
dignidade da vida de cada homem e, portanto, como superioridade deste valor em
relação a qualquer razão política da organização da vida em comum, seja reposta ao
centro do debate na doutrina e no Foro, como única indicação idônea a impedir a vitória
de um direito sem justiça32.

Assentado que a releitura do direito civil à luz da Constituição traz para o direito
privado toda a carga valorativa presente na Constituição e evidenciada pela corrente
neoconstitucionalista, é de se buscar uma justificativa lógica para tal releitura, além da
justificativa moral,33 já evidenciada.
Maria Celina Bodin de Moraes apresenta, como fundamentos lógicos, a hierarquia das
normas e a coerência do ordenamento. Estando a Constituição no ápice da pirâmide normativa do
ordenamento brasileiro, e sendo o ordenamento um conjunto de normas hierarquicamente
harmônicas, ou cuja harmonia deve ser buscada, haja vista a existência de normas conflitantes, é
de se impor ao intérprete que busque a homogeneização normativa. Explica a autora:

Acolher a construção da unidade (hierarquicamente sistematizada) do ordenamento


jurídico significa sustentar que seus princípios superiores, isto é, os valores propugnados
pela Constituição, estão presentes em todos os recantos do tecido normativo, resultando,
em consequência, inaceitável a rígida contraposição direito público - direito privado. Os
princípios e valores constitucionais devem se estender a todas as normas do
ordenamento, sob pena de se admitir a concepção de um "mondo in frammenti"(24),
logicamente incompatível com a ideia de sistema unitário34.

31
Cf. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, v.1. 22. ed. rev. e atual. por Maria Celina Bodin
de Moraes. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 240.
32
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. Tradução de Maria Cristina de Cicco. 2. ed. Rio de Janeiro:
Renovar, 2002, p. 23.
33
Vale dizer, a proteção da pessoa humana em sua dignidade, da vida com ao menos o mínimo de dignidade
necessário.
34
MORAES, Maria Celina Bodin de. A Caminho de um direito civil constitucional. Disponível em:
http://www.fae2009.kit.net/CaminhosDireitoCivilConstitucional_-_Maria_Celina_B_Moraes.pdf. Acesso em 08
mar. 2011.
19

Independentemente do fundamento, moral ou lógico, o fato é que os ramos do direito,


não só o civil, vêm passando por uma releitura em busca da eticização das relações e da
satisfação das necessidades básicas de cada pessoa, de sua realização enquanto pessoa.
O direito civil-constitucional se preocupa em tutelar os direitos da personalidade,
sobrepondo estes aos interesses puramente patrimoniais individuais, quando com estes
incompatíveis. Apesar de os valores constitucionais, em sua grande maioria, referirem-se a
direitos imateriais e inapreciáveis economicamente, não raras as vezes a forma de tutelar estes
valores depende de bens apreciáveis economicamente e, sobretudo, de bens materiais, como
remédios, alimentos, moradia... Nesta perspectiva, os interesses patrimoniais existenciais
assumem a posição de valores:

Mesmo interesses materiais e suscetíveis de avaliação patrimonial, como instrumentos


de concretização de uma vida digna, do pleno desenvolvimento da pessoa e da
possibilidade de libertar-se das necessidades [...] assumem o papel de valores35.

Os direitos subjetivos existenciais, neste aspecto, fazem parte da estrutura do ser do


homem, e não do ter. Explica Perlingieri que: “Na categoria do “ser” não existe a dualidade entre
sujeito e objeto, porque ambos representam o ser, e a titularidade é institucional, orgânica”36.
Desta forma, as relações e os bens existenciais são aqueles imprescindíveis à própria constituição
do ser enquanto pessoa humana, aqueles que extrapolam o simples desejo de ter, a constituição
do patrimônio, e integram a constituição da pessoa.
Fachin vai mais além nesta distinção. O autor discorda da posição, predominante na
doutrina, de que o patrimônio é um atributo da personalidade, bem como de que é uno37. No
entanto, reconhece e defende a existência de uma garantia patrimonial mínima integrante da
esfera jurídica do indivíduo, ainda que esta não seja projeção da sua personalidade:

A pessoa natural, ao lado de atributos inerentes à condição humana, inalienáveis e


insuscetíveis de apropriação pode ser também, à luz do Direito Civil brasileiro
contemporâneo, dotada de uma garantia patrimonial que integra sua esfera jurídica.
Trata-se de um patrimônio mínimo mensurado consoante parâmetros elementares de
uma vida digna e do qual não pode ser expropriada ou desapossada. Por força desse
princípio, independente de previsão legislativa específica instituidora dessa figura
jurídica, e, para além de mera impenhorabilidade como abonação, ou inalienabilidade

35
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. Tradução de Maria Cristina de Cicco. 2. ed. Rio de Janeiro:
Renovar, 2002, p. 32.
36
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. Tradução de Maria Cristina de Cicco. 2. ed. Rio de Janeiro:
Renovar, 2002, p. 155.
37
Cf. FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 40.
20

como gravame, sustenta-se existir essa imunidade juridicamente inata ao ser humano,
superior aos interesses dos credores38.

Desta distinção entre relações e bens que compõe o próprio ser e aqueles que
simplesmente integram o ter, Perlingieri defende a distinção de tratamento jurídico, no que
concerne à propriedade, conforme o bem qualitativamente e quantitativamente considerado:

Em geral, com base nas razões de ordem qualitativa, propõe-se uma distinção entre os
vários regimes de propriedade em relação ao diverso bem que é seu objeto. Esse é um
perfil que pode ser aceito, mas deve ser correlacionado, integrado com outro de natureza
quantitativa39.

Neste sentido, o autor faz uma crítica à lei Italiana que prevê privilégios para a
propriedade destinada a uso não residencial40, uma vez que o direito à moradia, por ser direito
personalíssimo, aponta, ao contrário, para a concessão de privilégios para a propriedade destinada
a uso residencial.
O fundamento da tutela deste mínimo necessário é a pessoa humana, ou melhor, a
dignidade da pessoa humana. Mas, o que seria esta dignidade da pessoa humana?
Abstratamente considerada, a dignidade da pessoa humana é uma expressão (conceito)
indeterminada. Ao ser inserida como fundamento do Estado Democrático de Direito, configura-se
em norma jurídica da espécie princípio41, a ser concretizada em todo o ordenamento
infraconstitucional.
Segundo Antonio Junqueira de Azevedo, hoje existem duas concepções principais
acerca do conceito de dignidade da pessoa humana. A primeira delas, denominada concepção
insular, funda a dignidade do homem na razão e vontade deste, ou seja, o homem deve ter sua
dignidade preservada porque é um ser dotado de razão e de vontade e é a estas que a tutela da
dignidade humana visa a proteger42. A segunda concepção funda a dignidade humana “na
capacidade do homem de sair de si, reconhecer no outro um igual, usar a linguagem, dialogar e,

38
FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 1.
39
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. Tradução de Maria Cristina de Cicco. 2. ed. Rio de Janeiro:
Renovar, 2002, p. 218.
40
Ibidem, p. 199.
41
Cf. AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Caracterização jurídica da dignidade da pessoa humana. Revista
trimestral de direito civil. Rio de Janeiro, v. 9, a. 2, p. 03-24, jan./mar. 2002, p. 3.
42
Fachin localiza a concepção insular do sujeito na ideia do contrato social na Declaração dos Direitos do Homem:
“A observação desse fenômeno pode ter como ponto de partida a compreensão clássica do sujeito no contrato
social e na Declaração dos direitos do homem. Ali está em exposição o produto mais acabado da razão humana,
que se encerra em si mesmo: o sujeito hipoteticamente livre e senhor de sua circunstância goza de formal
dignidade jurídica” (FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 16).
21

ainda, principalmente, na sua vocação para o amor, como entrega espiritual a outrem”43. Em
síntese, a primeira concepção relaciona o conceito de dignidade ao conceito de autonomia
individual, enquanto a segunda a relaciona à qualidade de ser vivo, capaz de dialogar e chamado
à transcendência44.
A concepção insular foi invocada para justificar o liberalismo contratual. Hoje há uma
forte tendência a identificar a dignidade com a tutela de valores éticos, voltados muito mais à
tutela da pessoa em si considerada que à sua liberdade de escolha, sobretudo no que tange ao
direito privado. Antônio Junqueira de Azevedo explica a decadência da concepção insular com
fundamento na biologia, na etologia e na primatologia45.
Além da fragilidade dos fundamentos, a teoria insular também padece de
insuficiências. Antonio Junqueira de Azevedo lembra que:

O desconhecimento do valor da natureza, inclusive da natureza no homem, é, assim, a


primeira grande insuficiência da concepção insular. A segunda é, justamente, seu caráter
fechado, subjetivista. Quer como razão e vontade quer como autoconsciência, a
concepção insular age com redução da plenitudo hominis, retirando do ser humano
justamente o que ele tem de realmente específico: seu reconhecimento do próximo, com
a capacidade de dialogar, e sua vocação espiritual 46.

Ao indagar sobre as formas de concretização da dignidade humana, o mesmo autor,


além da vida e da integridade física e psíquica, defende a necessidade de um mínimo material
necessário à vida, deixando claro que a tutela da dignidade humana não depende apenas de bens
não patrimoniais, mas, muito pelo contrário, necessita do acesso a bens patrimoniais existenciais:

Além da vida em si e da integridade física e psíquica, a concretização da dignidade


humana exige também o respeito às condições mínimas de vida[...]. Trata-se aqui das
condições materiais de vida. A obtenção da casa própria e a sua proteção, por exemplo,
são decorrências da dignidade humana 47.

Cumpre salientar, portanto, que a tutela de um patrimônio mínimo não está atrelada à
tutela exacerbada do indivíduo e de seu direito de propriedade. Muito além, o direito ao

43
AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Caracterização jurídica da dignidade da pessoa humana. Revista trimestral de
direito civil. Rio de Janeiro, v. 9, a. 2, p. 03-24, jan./mar. 2002, p. 5.
44
Cf. AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Caracterização jurídica da dignidade da pessoa humana. Revista
trimestral de direito civil. Rio de Janeiro, v. 9, a. 2, p. 03-24, jan./mar. 2002, p. 5.
45
Para um melhor aprofundamento do tema, ver AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Caracterização jurídica da
dignidade da pessoa humana. Revista trimestral de direito civil. Rio de Janeiro, v. 9, a. 2, p. 03-24, jan./mar.
2002, p. 8-13.
46
AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Caracterização jurídica da dignidade da pessoa humana. Revista trimestral de
direito civil. Rio de Janeiro, v. 9, a. 2, p. 03-24, jan./mar. 2002, p. 6.
47
Ibidem, p. 18.
22

patrimônio mínimo visa a tutelar o indivíduo numa concepção social, solidária e


contemporânea48. Nesta perspectiva, a tutela do patrimônio não é fim do direito, mas sim meio de
tutela da dignidade humana.

3.2 A tutela do patrimônio mínimo nos diversos ramos do direito e a lacuna no que tange
aos contratos

3.2.1 A impenhorabilidade no Código de Processo Civil

O artigo 649 do Código de Processo Civil traz um rol de bens não passíveis de
responder pelas dívidas do devedor, ou seja, bens impenhoráveis49.
À exceção do inciso I, que determina a impenhorabilidade de bens em decorrência da
vontade, os demais bens impenhoráveis estão relacionados à manutenção de um mínimo
patrimonial essencial à dignidade da pessoa, como bem pondera Didier Jr.: “O principal
fundamento é, sem dúvida, a proteção da dignidade do executado. Busca-se garantir um
patrimônio mínimo do executado que lhe permita sobreviver com dignidade”50.
Alguns autores colocam o direito à tutela executiva como um direito fundamental do
credor51. Nesta linha, o direito fundamental à execução forçada sofreria limitações políticas em
razão da necessidade de tutela de alguns direitos fundamentais do devedor. Não se deve,
entretanto, confundir direitos patrimoniais, como os direitos do credor, com direitos fundamentais
de ordem existencial, como o direito à saúde, integridade física e dignidade52. Tanto é assim que

48
“A proteção do patrimônio mínimo não está atrelada à exacerbação do indivíduo. Não se prega a volta ao direito
solitário da individualidade suprema, mas sim do respeito ao indivíduo numa concepção solidária e contemporânea
[...]” (FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p.
167).
49
“A restrição à penhora de certos bens chama-se impenhorabilidade” (DIDIER JR., Fredie et al. Curso de direito
processual civil, v. 5. Salvador: Jus PODIVM, 2009, p. 541).
50
DIDIER JR., Fredie et al. Curso de direito processual civil, v. 5. Salvador: Jus PODIVM, 2009, p. 548.
51
Cf. DIDIER JR., Fredie et al. Curso de direito processual civil, v. 5. Salvador: Jus PODIVM, 2009, p. 541.
52
Para Fachin, a maior evidência da separação entre pessoa e patrimônio (portanto, da cisão entre patrimônio e
direitos fundamentais existenciais, relacionados à pessoa) é a possibilidade de existência de patrimônio de afetação
(cf. FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p.
43/44).
23

a tutela do patrimônio mínimo, na verdade, não é ao patrimônio, mas à pessoa, ou seja, é apenas
meio para a tutela de direitos fundamentais existenciais.
Conquanto a premissa seja questionável, a conclusão a que se chega é válida. Segundo
Didier, por ser o direito do credor um direito fundamental, é necessária a ponderação, no caso
concreto, para que se aplique o instituto da impenhorabilidade, ou seja, para se restringir o direito
fundamental. Veja-se a lição do ilustre processualista:

Exatamente por se tratar de uma técnica de restrição a um direito fundamental, é preciso


que sua aplicação se submeta ao método da ponderação, a partir da análise das
circunstâncias do caso concreto. As regras de impenhorabilidade devem ser aplicadas de
acordo com a metodologia de aplicação das normas de direitos fundamentais. O
legislador estabelece a priori o rol dos bens impenhoráveis (art. 649 do CPC), já
fazendo, portanto, um prévio juízo de ponderação entre os interesses envolvidos,
optando pela mitigação do direito do exeqüente em favor da proteção do executado. Não
obstante isso, as hipóteses de impenhorabilidade podem não incidir em determinados
casos concretos, em que se evidencie a desproporção /desnecessidade/inadequação entre
a restrição a um direito fundamental e a proteção do outro. Ou seja, é preciso deixar
claro que o órgão jurisdicional deve fazer o controle in concreto da aplicação das regras
de impenhorabilidade, e, se a sua aplicação revelar-se inconstitucional, porque não
razoável ou desproporcional, deve afastá-la, construindo a solução devida para o caso
concreto53.

Didier Jr defende a possibilidade de flexibilização das normas de impenhorabilidade,


de forma que sempre se satisfaça, ao máximo possível, as duas garantias fundamentais. Desta
forma o autor defende, por exemplo, a possibilidade de penhora de bem de família de alto valor,
quando 40% do valor do bem seja suficiente para satisfazer o crédito, com os 60% restantes
devolvidos ao devedor, para investimento em outro imóvel de menor valor54.
Esta conclusão também pode ser tida por correta quando se entende que os bens e
direitos de valor econômico somente estão relacionados aos direitos da personalidade, como
meios de tutela destes, na proporção do indisponível para a existência digna. O que extrapola este
mínimo necessário, portanto, é perfeitamente passível de penhora para a satisfação do direito
subjetivo do credor. Assim, em um primeiro momento, tem-se a contraposição entre direito
fundamental do devedor e direito subjetivo do credor; onde prevalece aquele. Em um segundo
momento, há um embate entre o direito subjetivo de propriedade do devedor e o direito subjetivo
de crédito do credor, onde deve prevalecer este.

53
DIDIER JR., Fredie et al. Curso de direito processual civil, v. 5. Salvador: Jus PODIVM, 2009, p. 541-542.
54
Cf. DIDIER JR., Fredie et al. Curso de direito processual civil, v. 5. Salvador: Jus PODIVM, 2009, p. 542.
24

Nessa toada, necessário destacar que a jurisprudência, na concretização do rol das


impenhorabilidades, não se prende tanto à literalidade da lei quanto à sua finalidade. Assim é que
se torna possível a invocação de um aspecto subjetivo, em busca da essencialidade do bem para
aquele sujeito, nas circunstâncias em que se encontra, como afirma Alexandre Pimenta B.
Pereira: “[...] Ao passo que o código parece concentrar-se em uma criteriologia real, a
jurisprudência finca o pressuposto da impenhorabilidade com base em um atributo subjetivo,
arraigado na subsistência cotidiana.”55 Assim, a própria jurisprudência reafirma e acentua ainda
mais o concretizado pelo legislador: a tutela da pessoa por meio da garantia do acesso aos bens
essenciais.

3.2.2 O salário mínimo na Constituição

Dispõe o artigo 7º, IV da Constituição sobre o direito do trabalhador ao salário


mínimo, nestes termos:

Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à
melhoria de sua condição social:[...]
IV - salário mínimo , fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas
necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação,
saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos
que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim;

No mesmo sentido, dispõe o artigo 76 da Consolidação das Leis Trabalhistas:

Art. 76 - Salário mínimo é a contraprestação mínima devida e paga diretamente pelo


empregador a todo trabalhador, inclusive ao trabalhador rural, sem distinção de sexo, por
dia normal de serviço, e capaz de satisfazer, em determinada época e região do País, as
suas necessidades normais de alimentação, habitação, vestuário, higiene e transporte.

Nestes dois dispositivos está consagrado o direito ao salário mínimo legal, que não se
confunde com o salário mínimo profissional, o normativo ou o convencional56.

55
PEREIRA, Alexandre Pimenta Batista. Bens acessórios: acessões, partes integrante e pertenças. Curitiba: Juruá,
2010, p. 199.
56
Para um aprofundamento sobre as diferenças entre os salários mínimos profissional, normativo convencional e
legal, cf. SUSSEKIND, Arnaldo. Direito constitucional do trabalho. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p.
163; NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Iniciação ao direito do trabalho. 29.ed. São Paulo: LTr, 2003, p. 380;
DELGADO, Maurício Godinho. Curso de direito do trabalho. 10. ed. São Paulo: LTr, 2011, p. 735.
25

O salário mínimo legal, conforme conceito fornecido por Arnaldo Sussekind é aquele
que: “[...] corresponde, assim, ao patamar abaixo do qual não pode prevalecer a vontade dos
contratantes, sendo nula de pleno direito qualquer estipulação em contrário, mesmo advindo de
instrumento da negociação coletiva”.57 Este é nacionalmente unificado e de aplicação cogente.
A principal diferença entre o salário mínimo legal e os demais, além da amplitude de
aplicação, é a finalidade. O objetivo do salário mínimo legal é assegurar um mínimo patrimonial
necessário à satisfação dos direitos básicos do trabalhador e de sua família, como alimentação,
saúde, educação, lazer. Já os demais visam a assegurar um salário mínimo condizente à
“dignidade profissional”, como ensina Amauri Mascaro Nascimento:

A diferença se faz, primeiramente, pela amplitude, porque o salário mínimo é geral e o


salário profissional não. Alcança apenas a profissão em razão da qual foi instituído.
Segundo, pelos fins: no salário mínimo, a manutenção de um nível econômico abaixo do
qual não podem ser satisfeitas as mais elementares necessidades de alimentação,
habitação etc.; no salário mínimo profissional, o resguardo da dignidade profissional58.

Conquanto o autor tenha se referido apenas ao salário profissional, não se pode negar
que a fixação do salário mínimo normativo e do convencional também têm por parâmetro a
“dignidade profissional”.
Os dispositivos constitucional e celetista supracitados referem-se ao salário mínimo
legal. Este é o patamar mínimo salarial geral, irrenunciável e intransacionável. É geral porque se
aplica a toda relação empregatícia, ou seja, é percebido por todo empregado; é irrenunciável
porque é nulo qualquer ato de empregado que implique em renúncia a este direito; é
intransacionável porque nem mesmo o ato bilateral tem força para reduzir o salário mínimo a que
faz jus o trabalhador59.
O constituinte pretendeu que o salário mínimo fosse fixado para atender às
necessidades primárias do trabalhador e de sua família: moradia, alimentação, educação, saúde,
lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social”. Observa-se que a Constituição
transferiu a obrigação de prover o mínimo patrimonial ao particular empregador. Este tem a
obrigação de fornecer ao trabalhador o capital necessário à aquisição de todos os bens e

57
SUSSEKIND, Arnaldo. Direito constitucional do trabalho. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 163.
58
NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Iniciação ao direito do trabalho. 29. ed. São Paulo: LTr, 2003, p. 380.
59
Ibidem, p. 379.
26

contratação de todos os serviços essenciais60. Não se pode negar, portanto, que a fixação de um
valor salarial mínimo é reflexo da tutela do patrimônio mínimo.

3.2.3 A essencialidade como critério de tributação

Um dos poderes que o Estado possui como ente supraindividual é o poder de cobrar
tributos do cidadão. O Código Tributário Nacional, em seu artigo 3º, fornece um conceito
didático do que seja tributo: “Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo
valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada
mediante atividade administrativa plenamente vinculada”.
Várias são as espécies de tributos cobradas. Entre as mais correntes estão os impostos,
as taxas e as contribuições de melhoria. O artigo 16 do mesmo diploma conceitua imposto:
“Imposto é o tributo cuja obrigação tem por fato gerador uma situação independente de qualquer
atividade estatal específica, relativa ao contribuinte”.
61
A Constituição Federal, no artigo 145, § 1º , institui o princípio da capacidade
contributiva como norteador do cálculo dos impostos, ou seja, o imposto deve ser cobrado
conforme a capacidade econômica de cada pessoa para suportar o encargo tributário. Carrazza
ensina que o princípio da capacidade contributiva está estreitamente ligado ao princípio da
igualdade (material):

O princípio da capacidade contributiva hospeda-se nas dobras do princípio da igualdade


e ajuda a realizar, no campo tributário, os ideais republicanos. Realmente, é justo e
jurídico que quem, em termos econômicos, tem muito pague, proporcionalmente, mais
imposto do que quem tem pouco. Quem tem maior riqueza deve, em termos
proporcionais, pagar mais imposto do que quem tem menor riqueza. Noutras palavras,

60
“É interessante observar que o texto da nova Constituição parece querer inquestionavelmente incorporar, quanto ao
salário mínimo, a característica da suficiência do salário, que é a qualidade de ser a parcela salarial hábil a atender
a um conjunto de necessidades ou valores tidos como relevantes em certo momento histórico” (DELGADO,
Maurício Godinho. Curso de direito do trabalho. 10. ed. São Paulo: LTr, 2011, p. 732-733).
61
“Art. 145 [...] § 1º - Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a
capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir
efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os
rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte”.
27

deve contribuir mais para a manutenção da coisa pública. As pessoas, pois, devem pagar
impostos na proporção dos seus haveres, ou seja, de seus índices de riqueza 62.

Ocorre que é impossível, no âmbito prático, variar o percentual do imposto de pessoa


a pessoa, de forma que cada uma pague conforme sua real capacidade econômica. O que o
legislador faz, a fim de concretizar o princípio da capacidade contributiva, é instituir o imposto
conforme o bem sobre o qual incide; a capacidade contributiva é, portanto, objetiva, e não
subjetiva, como ensina o já citado Carrazza:

[...] A lei deve tratar de modo igual os fatos econômicos que exprimem igual capacidade
contributiva e, por oposição, de modo diferençado os que exprimem capacidade
contributiva diversa.
A capacidade contributiva à qual alude a Constituição e que a pessoa política é obrigada
a levar em conta ao criar, legislativamente, os impostos de sua competência é objetiva, e
não subjetiva. É objetiva porque se refere não às condições econômicas reais de cada
contribuinte, individualmente considerado, mas às suas manifestações objetivas de
riqueza (ter um imóvel, possuir um automóvel, ser proprietário de jóias ou obras de arte,
operar em bolsa, praticar operações mercantis etc.)63 (grifos do autor).

Posto isto, é possível concluir que o princípio da seletividade, previsto nos artigos
153, § 3º, I e 155, § 2º, III da Constituição Federal, guarda estreita relação com o princípio da
capacidade contributiva64.
O artigo 153, §3º, I da Constituição Federal, tratando do IPI, prevê: “Art. 153 [...] § 3º
- O imposto previsto no inciso IV: [...] I - será seletivo, em função da essencialidade do
produto”. No mesmo sentido, dispõe o artigo 48 do CTN: “Art. 48. O imposto é seletivo em
função da essencialidade dos produtos.” Já o artigo 155, § 2º, III determina a seletividade no
ICMS: “Art. 155 [...] § 2.º O imposto previsto no inciso II atenderá ao seguinte: [...] III - poderá
ser seletivo, em função da essencialidade das mercadorias e dos serviços”.
Observe-se que, enquanto na cobrança do IPI o critério da essencialidade foi imposto
pelo constituinte (será), para a cobrança do ICMS a seletividade é critério facultativo (poderá)65.
Não obstante, ressalte-se que há doutrina que defende a obrigatoriedade de utilização do critério

62
CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. 17. ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p.
74.
63
CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. 17. ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p.
77.
64
Cf. LOPES, Mauro Luís Rocha. Direito tributário brasileiro. Rio de Janeiro: Ímpetus, 2009, p. 79-80.
65
Neste sentido, cf. BORBA, Cláudio. Direito tributário: teoria e 1000 questões. 17. ed. Rio de Janeiro: Ímpetus,
2004, p. 89.
28

da seletividade em razão da essencialidade do produto tanto no cálculo do ICMS quanto no


cálculo do IPI66.
Impõe a Constituição, portanto, adotando-se a segunda corrente, que as alíquotas do
IPI e do ICMS variem conforme a essencialidade do bem sobre o qual incidem. Esse é o sentido
do termo seletividade no CTN, como ensina Baleeiro:

Seletividade, no art. 48 do CTN, quer dizer discriminação ou sistema de alíquotas


diferenciais por espécies de mercadorias [...] Quanto mais sejam elas necessárias à
alimentação, ao vestuário, à moradia, ao tratamento médico e higiênico das classes mais
numerosas, tanto menores devem ser 67.

A seletividade se dá, então, em razão da essencialidade do bem, ou seja, do grau de


necessidade do bem para a pessoa humana. Neste conceito, ganham destaque os conceitos de
bens necessários, úteis e supérfluos. Indispensáveis, neste sentido, as lições de Carrazza:

Em relação a estas duas últimas normas constitucionais [artigos 153, § 3º, I e 155, § 2º,
III], temos que elas exigem que as operações com os produtos ou gêneros de primeira
necessidade venham a receber tratamento tributário mais brando do que o dispensado às
operações com produtos ou gêneros menos essenciais [...].
Estamos confirmando, destarte, que o IPI e o ICMS devem ser utilizados como
instrumentos de ordenação político-econômica, estimulando a prática de operações (com
produtos industrializados ou mercadorias) ou serviços havidos por necessários, úteis ou
convenientes à sociedade e, em contranota, onerando outros que não atendam tão de
perto ao interesse coletivo. Exemplificando, é por isso que em algumas operações com
produtos industrializados supérfluos as alíquotas aplicadas ao IPI são extremamente
elevadas, e em outras, com produtos industrializados essenciais, não há incidência da
exação (isenção ou alíquota zero), ou, quando pouco, as alíquotas baixam para
patamares mínimos68.

O CTN também não define o conceito de bem essencial ou necessário. Referindo-se


ao conceito de essencialidade, Baleeiro explica: “A palavra, no citado artigo 48, refere-se à
adequação do produto à vida do maior número de habitantes do país [...] [supérfluos] geralmente
são os artigos mais raros e, por isso, mais caros”69.

66
“Portanto, a seletividade, no IPI e no ICMS, é obrigatória. Ou, seguindo a trilha constitucional, estes tributos
devem ser seletivos, em função da essencialidade do produto industrializado (IPI) ou das mercadorias ou serviços
(ICMS)”- Grifos do autor (CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. 17. ed. São
Paulo: Malheiros, 2002, p. 82).
67
BALEEIRO, Aliomar. Direito tributário brasileiro. 10. ed. rev. e atual. por Flávio Bauer Novelli. Rio de Janeiro:
Forense, 1991, p. 206.
68
CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. 17. ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p.
82.
69
BALEEIRO, Aliomar. Direito tributário brasileiro. 10. ed. rev. e atual. por Flávio Bauer Novelli. Rio de Janeiro:
Forense, 1991, p. 206.
29

Produto ou serviço essencial, para o autor, é aquele necessário a um grande número de


pessoas. Já os supérfluos são os mais raros, nem tão necessários. Esta regra, entretanto, comporta
exceções. Existem certos equipamentos de tratamentos médicos ou fisioterápicos, e até mesmo
remédios, por exemplo, que, embora raros e não necessários à grande maioria, para outros são
vitais, por sua própria razão de ser: a cura ou tratamento de doenças. Não se hesita, portanto, em
afirmar que o conceito de essencialidade/ necessidade é relativo, motivo da dificuldade de se
conceituar ou arrolar bens essenciais.

3.2.4 O benefício de prestação continuada

O benefício de prestação continuada foi instituído pela lei nº 8742 (Lei Orgânica da
Assistência Social – LOAS). Não se trata de um benefício previdenciário, posto que não carece
de qualquer contribuição por parte do beneficiário, ou seja, independe da condição de segurado 70,
muito embora seja concedido e administrado pelo próprio INSS. Assim dispõe o artigo 20 da
LOAS: “O benefício de prestação continuada é a garantia de 1 (um) salário mínimo mensal à
pessoa portadora de deficiência e ao idoso com 70 (setenta) anos ou mais e que comprovem não
possuir meios de prover a própria manutenção e nem de tê-la provida por sua família”.
Este benefício foi anteriormente previsto na Constituição Federal do 1988:

Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente
de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos: [...]
V - a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de
deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria
manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei.

O benefício de prestação continuada, o qual substituiu a renda mensal vitalícia, é


conferido à pessoa não amparada por nenhum sistema da Previdência social71. Ibrahim fornece
uma noção dos requisitos para a concessão do benefício de prestação continuada:

O benefício assistencial corresponde à garantia de um salário mínimo, na forma de


benefício de prestação continuada, devido à pessoa portadora de deficiência e ao idoso

70
IBRAHIM, Fábio Zambitte. Curso de direito previdenciário. 4. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2004, p. 12.
71
Cf. IBRAHIM, Fábio Zambitte. Curso de direito previdenciário. 4. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2004, p. 13.
30

com 65 anos ou mais, que comprovem não possuir meios de prover a própria
manutenção e esta também não possa ser provida por sua família [...] 72

Assim, extraem-se quatro requisitos para a concessão do benefício de prestação


continuada: a) renda familiar mensal per capita inferior a ¼ do salário mínimo; b) comprovação
da deficiência ou idade mínima de 65 anos; c) não vinculação a nenhum regime da Previdência
Social; d) não receber benefício de espécie alguma73.
A idade mínima de 65 anos para o idoso veio prevista no artigo 34 da lei nº
10741/2003:

Art. 34. Aos idosos, a partir de 65 (sessenta e cinco) anos, que não possuam meios para
prover sua subsistência, nem de tê-la provida por sua família, é assegurado o benefício
mensal de 1 (um) salário-mínimo, nos termos da Lei Orgânica da Assistência Social –
Loas.

O benefício, por ser fundamentado na manutenção da vida digna do próprio


beneficiário, é intransferível74.
As exigências feitas pela lei para a concessão do benefício deixam transparecer a
intenção do legislador de somente concedê-lo em ultima ratio, como último recurso que o
ordenamento utiliza a fim de assegurar um mínimo patrimonial existencial à pessoa. Com efeito,
exige a lei não somente que a pessoa não tenha como prover seu sustento, mas também que esteja
impossibilitada, pela deficiência ou idade, de fazê-lo. Neste sentido é a súmula nº 29 da turma
nacional de uniformização dos Juizados Especiais Federais:

29- Para os efeitos do art, 20, § 2º, da Lei n. 8742, de 1993, incapacidade para a vida
independente não só é aquela que impede as atividades mais elementares da pessoa, mas
também a impossibilidade de prover ao próprio sustento.

A vinculação da concessão do benefício à miserabilidade do pretendente pode ser


retirada da própria discussão jurisprudencial acerca do limite de renda familiar per capita de ¼
do valor do salário mínimo, instituída pelo artigo 20 § 3º da Lei nº 8742/93, como definidor da
miserabilidade75.

72
IBRAHIM, Fábio Zambitte. Curso de direito previdenciário. 4. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2004, p. 13.
73
Cf. CASTRO, Carlos Alberto Pereira de; LAZZARI, João Batista. Manual de direito previdenciário. 11. ed.
Florianópolis: Conceito Editorial, 2009, p. 664.
74
Cf. IBRAHIM, Fábio Zambitte. Curso de direito previdenciário. 4. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2004, p. 14.
75
Dizia a súmula nº 11 da turma nacional de uniformização dos Juizados Especiais Federais: “A renda mensal, per
capita, familiar, superior a ¼ do salário mínimo não impede a concessão do benefício assistencial previsto no art.
20, § 3°, da lei n. 8742 de 1993, desde que comprovada, por outros meios, a miserabilidade do postulante”,
31

Por tudo é possível concluir que o beneficio de prestação continuada é uma forma de
assegurar à pessoa que não pode ter meios de providenciar, com seu trabalho, o mínimo
patrimonial necessário à sua dignidade, nem tem quem o providencie. É, em resumo, mais um
reflexo da tutela do mínimo patrimonial existencial no ordenamento.

3.2.5 O bem de família

Anderson Schreiber eleva a habitação a condição do status de pessoa76, uma vez que a
proteção à pessoa depende da proteção aos meios materiais necessários à uma existência digna.
Conquanto tenha um fundo patrimonial, este é apenas meio para se atingir o fim de tutela da
pessoa.
Este fundo patrimonial é mais acentuado no instituto do bem de família voluntário,
instituído pelos artigos 1711 a 1722 do atual Código, sendo que no bem de família legal, regido
pela lei 8.009/90, percebe-se um caráter predominantemente existencial.
A impenhorabilidade, nos termos do artigo 1º, parágrafo único, da lei n. 8.009/90
abrange o imóvel sobre o qual se assentam a construção, as plantações, as benfeitorias de
qualquer natureza e todos os equipamentos, inclusive os de uso profissional, ou móveis que
guarnecem a casa, desde que quitados, excluindo-se, nos termos do artigo 2º da mesma lei, os
veículos de transporte, obras de arte e adornos suntuosos.
Nota-se que a linha de divisão entre os bens que podem e os que não podem ser
penhorados encontra-se no grau de necessidade do bem para a subsistência dos integrantes da
família. Os móveis que guarnecem a casa são, em regra, indispensáveis. Entretanto, o mesmo não
se pode dizer dos ditos adornos suntuosos, das obras de arte e do veiculo de transporte (em certas
situações), bens de uso dispensável.

Posteriormente, em 2006, esta súmula foi cancelada, permanecendo serias divergências entre os tribunais sobre sua
aplicação.
76
“A não-habitação ou habitação das ruas representa não apenas a perda da moradia, mas a perda da própria
condição de pessoa. De fato, todo indivíduo tende naturalmente a delimitar um espaço de ocupação que lhe possa
servir de referência à sua própria identidade” (SCHREIBER, Anderson. O direito à moradia como fundamento
para a impenhorabilidade do imóvel residencial do devedor solteiro. In: RAMOS, Carmen Lúcia Silveira et al.
Diálogos sobre direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 81).
32

Vê-se também, nesta norma, que o objetivo não é prejudicar ao credor, deixando-o
desprotegido legalmente. O objetivo é tão somente não permitir que o devedor perca o mínimo
necessário à sua subsistência na satisfação de um crédito. Por óbvio, o conceito de adorno
suntuoso é aberto, dependendo da análise valorativa do caso concreto, sobretudo porque bens não
essenciais a uma pessoa são essenciais a outras. O conceito de essencialidade também é relativo e
deve ser considerado na valoração do caso concreto.
Para a compreensão do instituto, é necessário entender o que seja a família no atual
contexto jurídico-social. A família do Estado liberal, ou seja, aquela composta por pai, mãe e
filhos, onde a união dos entes é assentada no casamento civil, deixa, cada vez mais, de ser
modelo exclusivo de família. A constitucionalização que atingiu os contratos e a propriedade
atingiu também a família. Vê-se surgirem famílias, juridicamente consideradas, com
arquiteturas77 distintas daquela do modelo clássico, destacando-se a família monoparental e a
união estável: “A Constituição adotou a concepção plural de família, não havendo apenas a
assentada no casamento, mas também reconheceu como família aquela derivada de união estável
e a monoparental, formada por um dos pais e seus filhos”.78
Não bastasse esta interpretação ampliativa do conceito de família, a doutrina e a
jurisprudência vêm estendendo a tutela do instituto às pessoas solteiras79, como preceitua a
sumula 364 do STJ: “O conceito de impenhorabilidade de bem de família abrange também o
imóvel pertencente a pessoas solteiras, separadas e viúvas”.
Segundo Anderson Schreiber, a proteção ao devedor solteiro é indicativo de que a
jurisprudência busca tutelar a pessoa componente da família, e não propriamente a família como
estrutura social:

O esforço doutrinário é válido pelo seu só intuito de ampliar a proteção conferida pela
lei. Todavia, a questão da impenhorabilidade do imóvel residencial do devedor solteiro
parece menos relacionada a uma “super-extensão” do conceito de entidade familiar, que
à identificação de um novo fundamento de proteção, de uma nova função para o
instituto. Com efeito, o art. 1º da lei 8009/90 deve ser reinterpretado sob a ótica do
direito constitucional à moradia, expressão e requisito da dignidade humana. Não se trata
mais de proteger a entidade familiar, mas a pessoa, integre ela ou não uma família80.

77
A expressão é de FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 52.
78
FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 76.
79
Cf. FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 145-146.
80
SCHREIBER, Anderson. O direito à moradia como fundamento para a impenhorabilidade do imóvel residencial
do devedor solteiro. In: RAMOS, Carmen Lúcia Silveira et al. Diálogos sobre direito civil. Rio de Janeiro:
Renovar, 2002, p. 93.
33

Nesse sentido é possível perceber uma evolução na jurisprudência do STJ, passando


da tutela a família em sentido estrito, do modelo liberal econômico, à família monoparental e à
união estável e atingindo, finalmente o devedor solteiro81.
Percebe-se, com isto, o intento de tutelar a pessoa, independentemente de seu status
jurídico ou fático.

3.2.6 Doação e proibição de autorredução à miséria

Trazendo preceito semelhante ao contido no artigo 1.175 do Código Civil de 1916,


dispõe o artigo 548 do atual Código: “É nula a doação de todos os bens sem reserva de parte, ou
renda suficiente para a subsistência do doador”. Reluz a intenção normativa de proibir a
autorredução à miséria.
Trata-se de norma impositiva e, portanto, inafastável pela vontade particular82, de
forma que a doação da qual resulte a redução à miséria do doador é, ex vis legis, nula.
O objetivo da restrição à disposição do próprio patrimônio é a proteção à pessoa
humana, a sua dignidade. É tutelar, portanto, valores transcendentes ao patrimônio83, como ensina
Fachin:

Em meio a uma série de normas que objetivam a proteção do patrimônio e a regulação


do trânsito jurídico dos bens, mediante contratos, o legislador inseriu regra que pode
tutelar, de alguma forma, a pessoa do doador. Ao afirmar nula a doação universal dos
bens, sem reserva de parte ou de renda que garanta a subsistência do doador, a lei pode
ter como objetivo a proteção da pessoa84.

Fachin salienta que a maior evidência de que a preocupação da norma é com a pessoa
e não com o patrimônio em si encontra-se na parte final do dispositivo: “suficiente para a
subsistência do doador”. Segundo o autor:

81
Sobre a evolução do STJ, cf. SCHREIBER, Anderson. O direito à moradia como fundamento para a
impenhorabilidade do imóvel residencial do devedor solteiro. In: RAMOS, Carmen Lúcia Silveira et al. Diálogos
sobre direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 88-92.
82
Neste sentido: FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar,
2006, p. 94-95.
83
Cf. FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 94.
84
FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 96.
34

Outro aspecto ainda a sublinhar, denotativo do sentido da norma inserta no artigo 548,
diz respeito ao qualificativo da parte ou renda como “suficiente para a subsistência do
doador”. Fosse essa uma tutela patrimonial, como observa Ronaldo da Cunha CAMPOS,
“o suficiente para a subsistência” não se apresentaria como limite. No direito
patrimonial não há espaço para este tipo de apreciação85.

Esta consideração traz algumas consequências importantes. A primeira delas é que a


doação, ainda que de todos os bens, será válida se feita a reserva de usufruto destes bens86. Com
efeito, tendo por objetivo a tutela da pessoa, e não de seu direito de propriedade, a doação
universal dos bens, sem que esta doação atinja a pessoa e seus valores fundamentais, é válida.
Esta é a interpretação teleológica da norma.
Portanto, duas são as condições para que se configure a nulidade da doação: “a)
doação universal, isto é, da totalidade dos bens do doador; b) não ter havido reserva de parte dos
bens doados ou renda suficiente para a subsistência do doador”87. Caio Mário, com o brilho que
lhe é peculiar, explica:

É nula a doação universal, sem reserva de usufruto ou renda suficiente para a


subsistência do doador. Este não pode reduzir-se à miséria ou sujeitar-se à condição de
viver da caridade pública ou a expensas alheias, dispondo de todos os seus bens. E,
como se trata de proibição rigorosa, punida a contrariedade com a pena de nulidade, não
valerão considerações outras que a justifiquem. O doador não tem a liberdade de realizá-
la sob pena expressa de nulidade, e, se infringe o preceito, o ato invalida-se (Código
Civil, art. 548)88.

A reserva de usufruto, portanto, torna válida a doação universal.


Outra consequência interessante é que somente serão nulas as doações que privem o
doador dos meios necessários à sobrevivência, de tal sorte que as demais serão válidas, já que não
atingem o feixe de valores tutelados pela norma89. Além disto, é de se concluir que a norma do
atual art. 548 não se presta de fundamento ao pedido de declaração de nulidade de doação feita
por credor do doador, com o fim de receber o que lhe é devido90.

85
FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 99.
86
Cf. FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 96-
97.
87
LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de direito civil: fontes das obrigações: contratos, v. III. 7. ed. rev. por
José Serpa de Santa Maria. Rio de Janeiro: Freitas Bastos: 2001, p. 399.
88
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. v. 3. 11. ed. rev. e atual. por Regis Fichtner. Rio de
Janeiro: Forense, 2004, p. 262.
89
Cf. FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 98.
90
Cf. FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p.
105-106.
35

Não se deve confundir a doação universal com a doação inoficiosa91. Esta é prevista
no artigo 549 do Código Civil, que assim dispõe: “Nula é também a doação quanto à parte que
exceder à de que o doador, no momento da liberalidade, poderia dispor em testamento”. Para a
doação inoficiosa, a solução jurídica é a redução, ou seja, o “decote” do excesso, consoante
previsto no artigo 2007 do mesmo diploma: “São sujeitas à redução as doações em que se apurar
excesso quanto ao que o doador poderia dispor, no momento da liberalidade”. A proibição do
negócio inoficioso ocorre em atenção à tutela patrimonial dos herdeiros, não à pessoa do
proprietário.

3.2.7 A cláusula de inalienabilidade testamentária

A interpretação a contrario do artigo 1848 do atual Código Civil leva a concluir pela
possibilidade de aposição de cláusula de inalienabilidade aos bens deixados em testamento e,
havendo justa causa, esta inalienabilidade pode atingir até mesmo os bens da legítima.
Segundo Fachin, existem duas razões fundamentais que podem levar uma pessoa a
estabelecer cláusula de inalienabilidade sobre um bem: a primeira é impedir que um bem,
adquirido com muito esforço ou de alto valor sentimental para o testador, saia do patrimônio de
sua família. A segunda é a preocupação do testador em deixar ao beneficiário um patrimônio
mínimo ou uma fonte de renda para que possa suprir suas necessidades em caso de perda dos
demais bens de sua propriedade92. Neste último caso, afirma o autor: “há um valor maior a ser
protegido, qual seja, a dignidade da pessoa humana [...]”93. Nesse último caso, é possível
visualizar uma proteção a um patrimônio mínimo capaz de assegurar a dignidade humana.
A interpretação teleológica desta norma leva a concluir que em algumas hipóteses a
cláusula de inalienabilidade pode ser afastada. Desta forma, mesmo quando interposta com o fim
de assegurar ao beneficiário um mínimo patrimonial para a sua subsistência, ou seja, quando
estabelecida em razão da pessoa e não do bem em si mesmo, a cláusula poderá ser afastada para

91
Para um aprofundamento sobre os negócios jurídicos inoficiosos, cf. PEREIRA, Alexandre Pimenta Batista.
Negócio jurídico inoficioso: contributo à teoria da redução do negócio jurídico. São Paulo: Pillares, 2010.
92
Cf. FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p.
118-119.
93
FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 119.
36

suprir necessidades veementes94. Segundo Fachin, o afastamento depende de análise cautelosa e


serenidade na valoração do caso concreto:

Atento à vontade do disponente, sendo esta a de conferir proteção ao beneficiado, o juiz,


no caso concreto, vendo que não há qualquer outra fonte de renda para o proprietário,
permite a alienação do bem sem que seja necessária a sub-rogação do bem, eis que a
quantia proveniente da sua alienação será destinada a conferir meios de subsistência ao
proprietário. Tem-se, nesse caso, hipótese de interpretação teleológica da cláusula de
inalienabilidade e assim não poderia deixar de ser, pois, nesse caso, a dignidade da
pessoa humana será mais bem atendida com a alienação do que com a manutenção do
patrimônio mínimo do beneficiado95.

Obviamente que a análise do caso concreto deve considerar não somente a


necessidade de alienar o bem, mas também a consequência desta alienação. A possibilidade de
alienação, havendo justa causa, foi expressamente prevista no artigo 1848, § 2º, do Código Civil.

3.3 Da existência de um princípio implícito de tutela do patrimônio mínimo no


ordenamento – a situação dos contratos

Diante das evidências mostradas é possível concluir pela existência de um principio


implícito de não redução da pessoa à miséria ou de tutela do patrimônio mínimo. Com efeito,
referido princípio não pode ser dito expresso, uma vez que não foi expressamente contemplado
em nenhuma norma do ordenamento brasileiro. Nada obstante, apresenta-se como um elo de
ligação, um fator comum entre vários institutos jurídicos.
Podem-se considerar os princípios gerais como aqueles que estruturam o sistema,
conferem razão de ser à norma, sem a necessidade se apresentarem de forma escrita, ou nas
precisas lições de Ferraz Jr. “não são elementos do repertório do sistema, mas fazem parte de sua
regras estruturais [...], dizem respeito à relação entre as normas no sistema, ao qual conferem
coesão.”96 Partindo-se deste conceito, é possível afirmar que o fator comum aos institutos

94
Este é o entendimento de FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo. 2. ed. Rio de Janeiro:
Renovar, 2006, p. 124.
95
FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 126.
96
FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 5. ed. São Paulo:
Atlas, 2007, p. 247.
37

estudados constitui um princípio geral de direito e, assim sendo, apto a atuar sobre o legislador,
na edição de normas, e sobre o intérprete, na aplicação das mesmas.
Como o objeto deste trabalho centra-se nos contratos, antes do estudo específico das
possibilidades de incidência deste princípio na seara contratual, necessário um estudo acerca do
atual modelo.
38

4 PANORAMA GERAL DOS CONTRATOS NO DIREITO BRASILEIRO

4.1 Breve histórico

No direito romano, conforme classificação proposta por Justiniano (Institutas, III, 13,
2), o contrato figurava como uma das quatro fontes de obrigações, aparecendo ao lado dos quase-
contratos, dos delitos e dos quase-delitos97 98.
O contrato, fonte que interessa a este trabalho, era marcado pelo formalismo,
característica que se destacou, sobretudo, no período clássico. Assim, o contrato romano era o
acordo de vontades acrescido do elemento objetivo – a formalidade.
Era este elemento objetivo o mais significativo diferencial entre contrato e pacto. O
pacto era o simples acordo de vontades, o qual não exigia, para sua constituição, nenhuma
formalidade, e nem gerava obrigações, embora pudesse ser invocado como exceção (matéria de
defesa). A forma era condição do contrato, como sintetiza José Reinaldo de Lima Lopes: “Seja no
processo, seja nos negócios, a validade dos atos vincula-se ao uso correto da fórmula.”99
No período clássico romano só se reconhecia a existência de alguns tipos específicos
de contratos, os quais possuíam suas respectivas formalidades. Em regra, a vontade não era
suficiente para originar um contrato e, como decorrência, vasto era o número de pactos, os quais
se constituíam com o simples acordo de vontades.100
Ainda no período clássico e, sobretudo, no pós-clássico, a rigidez do formalismo
sofreu algumas atenuações, sendo duas de maior relevância. A primeira delas ocorreu por meio
da atividade do pretor e da jurisprudência, os quais passaram a atribuir actio a alguns pactos,
tornando-os obrigações exigíveis.

97
Cf. ALVES, José Carlos Moreira. Direito romano. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 29.
98
Além desta classificação de Justiniano, há ainda duas classificações propostas por Gaio. Nas Institutas (III, 88), as
obrigações se classificam em oriundas de contratos ou de delitos. No libro secundus aureorum (D. XLIV, 7,1), as
obrigações são classificadas em originárias de contratos, de delitos ou das várias figuras de causas. Os delitos
capazes de originar obrigações eram aqueles descritos em suas Institutas. As várias figuras de causas eram atos
lícitos ou ilícitos que, não se enquadrando nas demais figuras, originavam obrigações. (Cf. ALVES, José Carlos
Moreira. Direito romano. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 28-29).
99
LOPES, José Reinaldo de Lima. O direito na história: lições introdutórias. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2008, p. 33.
100
Cf. ANDRADE, Darcy Bessone de Oliveira. Do contrato: teoria geral. Rio de Janeiro: Forense, 1987, p. 8.
39

A segunda atenuação configurou-se no surgimento de uma nova categoria contratual:


os contratos consensuais, os quais somente apareceram após os contratos reais (aqueles cuja
efetivação se dava com a entrega efetiva da coisa), os verbais (aqueles cuja constituição se dava
por meio da prolação de palavras solenes) e os literais (aqueles que originavam obrigações por
meio da forma escrita). O contrato consensual foi um grande passo rumo à supremacia da
vontade como fonte das obrigações, em detrimento do formalismo supervalorizado.
O modelo de contrato clássico ou moderno é aquele que elevou ao mais alto grau de
importância a vontade das partes e ao grau mínimo a intervenção Estatal. O modelo clássico de
contrato somente se consolidou com as grandes codificações do século XIX, sobretudo na França
e na Alemanha. Entretanto, os fatores que contribuíram para seu surgimento podem ser
encontrados na Idade Moderna.
Segundo Cláudia Lima Marques101, quatro fatores foram de fundamental importância
para a consolidação da autonomia da vontade, maior pilar de sustentação do modelo clássico
contratual. O primeiro deles foi o direito canônico, que conferiu validade aos simples acordos de
vontades, independentemente de qualquer formalidade, como era exigido na formação do
contrato romano. O segundo fator destacado pela autora foi a teoria do direito natural que,
concebendo o homem como ser dotado de razão, via neste capacidade para, por sua simples e
livre vontade, vincular-se às regras por ele mesmo criadas: se cada um for livre para decidir por si
próprio, decidirá sempre em seu próprio interesse.
O terceiro fator de influência na teoria clássica do contrato são as teorias de ordem
política e a Revolução Francesa. Quanto às teorias de ordem política, merece destaque a teoria
do Contrato Social de Rousseau. Segundo Rousseau, o Estado retira sua força e poder dos
próprios cidadãos que, por um ato próprio de autonomia da vontade, renunciam a uma parte de
sua liberdade em favor de um ente superior: o Estado. A obrigatoriedade do respeito às leis do
Estado, portanto, é legitimada pelos próprios cidadãos. Com os contratos de direito civil
aconteceria algo semelhante: o indivíduo, por um ato de liberdade, vincular-se-ia às leis por ele
criadas, a elas se submetendo. Outro fator importante foi a Revolução Francesa que,
consolidando os ideais da burguesia mercantil (liberdade, igualdade formal), os positivará no

101
Cf. MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações
contratuais. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 40-44.
40

Código Napoleônico de 1804, servindo de modelo a diversas nações européias, e produzindo


reflexos diretos no Código Civil Brasileiro de 1916.
O quarto fator de influência são as teorias econômicas e o liberalismo. Em resumo, as
teorias econômicas daquele período sinalizavam para a total liberdade individual e
abstencionismo Estatal nas relações privadas. Quanto ao liberalismo, este estava relacionado ao
surgimento do crédito e da moeda fiduciária. Com efeito, enquanto o contrato era a simples troca
de bens entre presentes, não era necessária uma segurança e confiança tão grandes quanto as
exigíveis com o surgimento da moeda e do crédito. Assim, sintetiza José Reinaldo de Lima
Lopes:

Para que haja segurança é preciso retirar do crédito uma série de variáveis antes aceitas
normalmente na teoria dos contratos. Por exemplo, torna-se necessário que a promessa
não possa ser desfeita. No regime pré-liberal, alguém, por condições adversas, ou por ter
mudado de ideia poderia arrepender-se do negócio e não concluí-lo, ou desfazê-lo, ou
alegar algum motivo justo e razoável. Assim fazendo, o sistema anterior colocava em
perigo a segurança jurídica, esta garantia normativa de que o futuro será como se
prometeu ou se imaginou. O contrato deixa aos poucos de ser um tipo para transformar-
se numa promessa exigível com a coação organizada do Estado102 (grifos do autor).

Neste contexto, o contrato passou a ser máxima da manifestação livre de vontade das
partes. O homem é um ser dotado de racionalidade e, portanto, livre para celebrar os contratos da
forma e com o conteúdo que deseje. A liberdade e o individualismo o impediriam de celebrar um
negócio que o prejudicasse, que fosse injusto para ele mesmo. Disso se concluiu que os contratos
eram naturalmente justos.103
Outra característica do contrato clássico é o afastamento do Estado da regulação dos
negócios privados. O contrato era fruto da vontade de homens livres e racionais, não cabendo ao
Estado interferir no acordo de particulares104. No que se refere às leis, estas visavam tão somente
preencher as lacunas das omissões contratuais e assegurar o fiel cumprimento do pactuado 105. As

102
LOPES, José Reinaldo de Lima. O Direito na história: lições introdutórias. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2008, p.
369.
103
Cf. ANDRADE, Darcy Bessone de Oliveira. Do contrato: teoria geral. Rio de Janeiro: Forense, 1987, p. 31.
104
“A omissão da lei na determinação do conteúdo dos contratos justificava-se diante do princípio que assegurava a
liberdade dos contratantes na sua formação. Partes iguais e livres não precisavam da interferência legislativa para
impedir a estipulação de obrigações onerosas ou vexatórias.” (GOMES, Orlando. Contratos. 7.ed. Rio de Janeiro:
Forense, 1979, p. 30).
105
José Reinaldo de Lima Lopes pondera que, em realidade, o chamado Estado Liberal não se caracterizou pela
intervenção Estatal mínima, mas sim pela intervenção, no sentido de fazer cumprir os pactos, cf. LOPES, José
Reinaldo de Lima. O Direito na história: lições introdutórias. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2008, p. 369.
41

normas de ordem pública eram poucas e tinham por objetivo exatamente proporcionar a
segurança do cumprimento dos pactos106.
Os únicos óbices à obrigatoriedade dos contratos eram as normas de ordem pública, os
bons costumes107 e os vícios da vontade108; a injustiça do conteúdo do contrato não era óbice à
sua execução109. Na prática, entretanto, estes óbices pouco efeito produziam, uma vez que a
atividade do juiz era muito restrita110, reflexo do afastamento do Estado do conteúdo das relações
privadas.
O contrato, no atual ordenamento, caracteriza-se pela obediência a certos princípios e
valores sociais. Além do intervencionismo estatal por meio de leis de ordem pública, há ainda a
intervenção por meio do Judiciário, uma vez que a este é permitido interferir no conteúdo dos
contratos, até mesmo quando não haja norma específica autorizando, por meio das cláusulas
gerais111 112
, como a da boa-fé objetiva (Código Civil, art. 422) e a da função social do contrato
(Código Civil, art.421). Nestes casos, o juiz pode criar para as partes deveres anexos 113 aos
contratos, cujo desrespeito implica em resposta jurídica, também criada pelo aplicador.
Historicamente, a necessidade de intervenção estatal nas relações privadas está
relacionada à Revolução Industrial e ao surgimento da chamada sociedade de massas.

106
Cf. MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações
contratuais. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 46.
107
Cf. ANDRADE, Darcy Bessone de Oliveira. Do contrato: teoria geral. Rio de Janeiro: Forense, 1987, p. 31-32.
108
Cf. LOPES, José Reinaldo de Lima. O Direito na história: lições introdutórias. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2008, p.
367.
109
Nesse sentido: “Um contrato, desde que livremente aceito, seria válido independentemente das regras de justiça”
(LOPES, José Reinaldo de Lima. O Direito na história: lições introdutórias. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2008, p.
369).
110
Afirma Bessone que: “Nos dissídios que acaso se formem, a missão do juiz terá de se circunscrever à apuração da
vontade dos contratantes, em um processo de pura reconstituição.” (ANDRADE, Darcy Bessone de Oliveira. Do
contrato: teoria geral. Rio de Janeiro: Forense, 1987, p. 33-34).
111
Cláusula Geral, na definição de Fredie Didier Jr. é: “[...] uma espécie de texto normativo, cujo antecedente
(hipótese fática) é composto por termos vagos e o consequente (efeito jurídico) é indeterminado”. (DIDIER JR.,
Fredie. Cláusulas gerais processuais. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 14 ª região, Porto Velho,
v.6, n. 1, p. 15-34, jan./jun. 2010. Disponível em: www.trt14.jus.br. Acesso em 13 out. 2010, p. 16).
112
Para um estudo mais aprofundado sobre as cláusulas gerais, indica-se a excelente obra: MARTINS-COSTA,
Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1999. 544 p.
113
Sobre os deveres anexos, aduz Couto e Silva, referindo-se à cláusula geral da boa-fé objetiva contida no § 242 do
BGB: “Começava-se a reconhecer no princípio da boa fé uma fonte autônoma de direitos e obrigações;
transforma-se a relação obrigacional manifestando-se no vínculo dialético e polêmico, estabelecido entre devedor e
credor, elementos cooperativos necessários ao correto adimplemento”. (COUTO E SILVA, Clóvis do. O princípio
da boa-fé no direito brasileiro e português. In: COUTO E SILVA, Clóvis do et al. Estudo de direito civil
brasileiro e português. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980, p. 47).
42

A Revolução Industrial do século XIX possibilitou a produção em massa, através da


inserção das máquinas no processo produtivo. As indústrias cresceram e se multiplicaram e a
situação dos trabalhadores foi se tornando cada vez mais crítica:

[...] Na locação de prédio, quando haja crise de habitações, o inquilino cederá às


exigências do proprietário, ainda que desproporcionais. Na aquisição de gêneros
alimentícios e utilidades em geral, o comerciante imporá o preço sempre que houver
falta no mercado. No mútuo, o mutuário, de ordinário, deixar-se-á explorar, premido por
invencíveis dificuldades do momento. Nos contratos com poderosas organizações de
transporte e fornecimento de luz, água, gás, telefone, a clientela dispersa não terá meios
de se resguardar de condições porventura demasiado rigorosas. Em todos estes casos,
como em muitos outros, a liberdade será de um só dos contratantes e facilmente se
114
transformará em tirania.

Neste contexto, surgem movimentos de proteção aos trabalhadores, aos aderentes e,


de forma geral, aos menos favorecidos115. Começa-se a perceber a insuficiência dos esquemas
privados para resolver os choques de interesses entre os particulares. Com efeito, a igualdade
formal não se traduzia em igualdade material, e a liberdade contratual, a autonomia da vontade,
possibilitava a exploração da parte vulnerável, sobretudo no referente às contratações em massa,
onde os contratos eram pré-elaborados unilateralmente. Esses desníveis eram claros e não podiam
ser ignorados; caem por terra, neste momento, os princípios da igualdade e da justiça intrínseca
do contrato, como ensina Humberto Theodoro Júnior:

De outro lado, falso também é o princípio da igualdade de todos na prática dos contratos.
Os contratantes, em grande número de vezes, e até na maioria das vezes, encontram-se
em posições de notório desequilíbrio, seja moral, seja econômico, seja técnico, seja
mesmo de compreensão e discernimento. Soa fictícia, portanto, a afirmação de que é
sempre justo o contrato porque fruto da vontade livre das partes iguais juridicamente.
Não há, realmente, como ignorar os desníveis, não raro absais, entre patrões e
empregados, locadores e inquilinos, estipulantes e aderentes, profissionais e leigos,
aproveitadores e necessitados, fornecedores e consumidores. Não há como recusar, no
plano jurídico e econômico, a existência do forte e do débil.116

Como lembra Carlos Alberto Bittar, esses choques de interesses e esses desníveis
sociais trouxeram situações incômodas até mesmo para os governos, inclusive conflitos

114
ANDRADE, Darcy Bessone de Oliveira. Do contrato: teoria geral. Rio de Janeiro: Forense, 1987, p. 42.
115
“A indignação da maioria foi, aos poucos, sendo exteriorizada, e movimentos reivindicadores dos direitos dos
aderentes e dos menos favorecidos economicamente foram se fortalecendo, influenciando de forma decisiva o
legislador em adotar novos paradigmas e soluções mais eficientes de tutela jurídica dos aderentes dos contratos
padronizados existentes na sociedade da época.” (LISBOA, Roberto Senise. Manual de direito civil, v. 3. 5. ed.
São Paulo: Saraiva, 2010, p. 67).
116
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Direito do consumidor: a busca de um ponto de equilíbrio entre as garantias
do Código de Defesa do Consumidor e os princípios gerais do direito civil e do direito processual civil. 6. ed. Rio
de Janeiro: Forense, 2009, p. 10.
43

armados.117 Diante desta situação, o Estado passou a ter uma posição mais ativa perante as
relações privadas. Leis supletivas tornaram-se imperativas; surgem novos princípios
direcionadores da atividade privada ao mesmo passo em que se quebra a rigidez dos princípios
clássicos, enfim, nas palavras de Humberto Theodoro Júnior: “A justiça contratual deixou de ser
problema apenas da esfera dos próprios contratantes para tornar-se preocupação efetiva também
do direito positivo.”118
Várias alterações ocorreram a fim de socializar o direito privado119, principalmente o
contrato, através do intervencionismo estatal. No Brasil, os novos princípios contratuais – boa-fé
objetiva, função social e equilíbrio das prestações – passam a direcionar a atividade do juiz.
Todas estas alterações tem por objetivo a busca da justiça, a proteção à parte mais fraca da
relação. Os antigos princípios contratuais – autonomia da vontade, obrigatoriedade contratual e
eficácia relativa do contrato – passam a ser relidos na perspectiva social do contrato, como ensina
Darcy Bessone: “Cumpre, portanto, entender os princípios da liberdade e da igualdade em uma
compreensão mais larga das necessidades sociais, certo que é na harmonia entre a autonomia
individual e a solidariedade social que repousa o grande ideal da sociedade humana”.120
A justiça passa a ser buscada, portanto, no equilíbrio, na correta e oportuna aplicação
destes princípios.
Esta passagem do Estado abstencionista ao Estado Social trouxe, além das mudanças
formais, como a criação de novos diplomas legais e a abertura do ordenamento através das
cláusulas gerais, os novos princípios de regência dos negócios jurídicos – equilíbrio das
prestações, boa-fé objetiva e função social dos contratos121.
A evolução contratual culminou com a subdivisão dos contratos em duas espécies: os
civis e os de consumo. Os primeiros são regulamentados, principalmente, pelo Código Civil,
enquanto os contratos de consumo têm no Código de Defesa do Consumidor seu principal

117
Cf. BITTAR, Carlos Alberto. O dirigismo econômico e o direito contratual. Revista de informação legislativa.
Brasília, a. 17, n. 66, p. 240-255, abr./jun. 1980, p. 242.
118
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Direito do consumidor: a busca de um ponto de equilíbrio entre as garantias
do Código de Defesa do Consumidor e os princípios gerais do direito civil e do direito processual civil. 6. ed. Rio
de Janeiro: Forense, 2009, p. 11.
119
Sobre estas alterações, cf. BITTAR, Carlos Alberto. O dirigismo econômico e o direito contratual. Revista de
informação legislativa. Brasília, a. 17, n. 66, p. 240-255, abr./jun. 1980, p. 245-250.
120
ANDRADE, Darcy Bessone de Oliveira. Do contrato: teoria geral. Rio de Janeiro: Forense, 1987, p. 43.
121
Para um estudo sobre os novos princípios contratuais, ver LÔBO, Paulo Luiz Netto. Princípios sociais dos
contratos no Código de Defesa do Consumidor e no Novo Código Civil. Revista de direito do consumidor, São
Paulo, a. 11, n. 42, p. 187-195, abr./jun. 2002; GOMES, Orlando. Contratos. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1979,
p. 45-48.
44

diploma normativo. Quanto aos primeiros, são celebrados presumidamente entre iguais, ou seja,
entre partes com igual poderio econômico, jurídico e cognitivo sobre o contrato e o bem ou
serviço contratado, enquanto os contratos de consumo são, presumidamente, celebrados entre
uma parte vulnerável e outra em superior condição.
O fundamento fático do CDC é a disparidade constantemente verifica entre fornecedor
e consumidor. Com efeito, na grande maioria das relações de consumo, uma das partes mostra-se
em situação de grande desvantagem perante a outra. Desta disparidade surgiria a necessidade de o
Estado atuar protegendo uma das partes, de forma a equilibrar a situação de desigualdade.
Pensando nisto, o legislador criou um modelo de consumidor e um modelo de fornecedor que
representariam as partes em toda relação de consumo. Adalberto Pasqualotto descreve esses
modelos de consumidores e fornecedores:

De um lado, situa-se o fornecedor de bens e serviços, geralmente materializado numa


empresa, estruturada não somente para atender à sua finalidade precípua, como apta a
promover o resguardo dos seus interesses comerciais, seja através de ações
adrendemente concebidas, inseridas na sua própria estratégia mercadológica, seja através
de recursos diversos, que vão desde o poder de barganha até departamentos jurídicos
especializados. De outro lado, o consumidor, geralmente uma pessoa física isolada,
desconhecedora dos seus próprios direitos ou impossibilitada de acioná-los, impotente
diante da lesão aos seus interesses legítimos, confrontada com a necessidade de
consumir bens imprescindíveis à sua própria existência e dignidade.122

O CDC é considerado um marco do Estado Social, uma vez que mostra claramente a
preocupação do Estado com a justiça material, o equilíbrio real do contrato. Em verdade, o CDC
proporcionou a criação de duas categorias abstratas de sujeitos contratuais, a de consumidores e a
de fornecedores, contrapondo-se, neste aspecto, ao modelo clássico, onde havia apenas uma
categoria, a de contratantes. Assim, consumidores têm normas específicas de proteção diante dos
fornecedores. O problema desta superproteção surge quando se considera a heterogeneidade entre
os componentes da classe dos consumidores e da classe dos fornecedores. Neste sentido, leciona
Teresa Negreiros:

É certo que as desigualdades entre os contratantes tendem a assumir uma dimensão


coletiva, traduzindo-se em desigualdades entre categorias econômicas. No caso do
consumidor, porém, esta categoria é por demais ampla numa sociedade caracterizada,
precisamente, pela onipresença do consumo. Por outras palavras, não parece
constitucionalmente consistente tratar todos os consumidores de forma igual. Afinal, isto
representaria, sob o pretexto de uma maior justiça, um verdadeiro retrocesso da teoria

122
PASQUALOTTO, Adalberto. Conceitos fundamentais do Código de Defesa do Consumidor. Revista dos
Tribunais, São Paulo, a. 80, v. 666, p. 48-53, abr. 1991, p. 49.
45

contratual, um retorno à mística das categorias abstratas e redutoras. Hoje, ao contrário,


avulta a importância da criação de padrões de diferenciação 123.

Com efeito, a doutrina reconhece que nem toda relação de consumo é marcada pela
vulnerabilidade e boa-fé do consumidor124 125
. Assim, pelo fato de proteger um papel social, e
não a pessoa consumidor concretamente considerada126, diz-se que o direito do consumidor,
marco do Estado Social, não pode se opor à teoria clássica do contrato. Assim como no modelo
clássico, o direito, tal qual se apresenta hoje, não é isento das abstrações. Embora não possa se
opor, também não é totalmente compatível com a teoria clássica, na medida em que reconhece
tratamento diferenciado às partes pertencentes às diferentes categorias. Mais uma vez, conclui
corretamente Teresa Negreiros: “Assim, embora o conceito de consumidor, por si só, não se
possa diretamente opor à teoria clássica, a lógica que preside à sua sistematização é, sim,
incompatível com a lógica liberal[...]”.127
Se o problema apresenta-se evidente, nem tão visível é a solução. Com efeito, se é
cediço que a construção de categorias abstratas é passível de gerar injustiças fáticas e jurídicas,
estas últimas considerando-se os princípios jurídicos, sobretudo os de ordem constitucional, nem
tão simples se mostra a solução deste impasse. O CDC foi um avanço em relação à situação
anterior à sua vigência, entretanto, não solucionou por completo o problema das desigualdades,
apenas o minimizou.
Neste contexto surge como proposta inovadora a classificação dos bens objetos dos
contratos segundo o grau de utilidade. O deslocamento do foco dos sujeitos para o objeto do
contrato, como proposto por Teresa Negreiros128, surge como alternativa à classificação dos
contratos, propondo uma nova classificação com os respectivos tratamentos jurídicos, como se
verá em momento oportuno.

123
NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 200.
124
Sobre os três tipos de vulnerabilidade que podem atingir o consumidor, ver: CALIXTO, Marcelo Junqueira. O
princípio da vulnerabilidade do consumidor. In: MORAES, Maria Celina Bodin de (coord.). Princípios do direito
civil contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 323-324.
125
Neste sentido, ver: LISBOA, Roberto Senise. Manual de direito civil, v. 3. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p.
76-77 e PASQUALOTTO, Adalberto. Conceitos fundamentais do Código de Defesa do Consumidor. Revista dos
Tribunais, São Paulo, a. 80, v. 666, p. 48-53, abr. 1991, p. 51.
126
Cf. NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 327.
127
NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 328.
128
NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. 544.
46

4.2 Novos princípios e pluralidade de valores: a necessidade de novos paradigmas

A existência ou não de um paradigma único de contrato está relacionada à crença de


que somente um grupo de princípios têm espaço no cenário contratual. Quem defende a busca de
um direito contratual único, de uma teoria geral do contrato, defende também a aplicação
homogênea dos princípios contratuais, independentemente dos casos concretos, das situações
envolvendo diferentes grupos de contratantes. É contra a unidade de parâmetro contratual que se
insurge Teresa Negreiros.
Neste sentido, a autora critica as teorias clássica e moderna do contrato: ambas
pretendem construir uma teoria unitária do contrato, cada uma baseada em seus próprios e únicos
valores, em seus próprios e únicos princípios. Ensina a brilhante autora que:

Eleito como ponto de referência para a teoria crítica, o modelo tradicional acaba por
determinar que a metodologia contemporânea padeça das mesmas limitações que
pretende superar. Assim é que em ambos os modelos de contrato – o clássico e o que a
este se contrapõe – há em comum a crença na eficácia de uma teoria geral capaz de, a
partir de um único valor – seja a liberdade, seja a solidariedade, seja o interesse privado,
o interesse público, o indivíduo ou a sociedade –, abarcar indistintamente toda e
qualquer espécie de contrato.129

Diante da extrema abstração do contrato clássico, não havia qualquer distinção entre
os diversos tipos contratuais, seja em relação aos sujeitos contratantes ou em relação ao objeto. A
teoria contratual era única. Ensina a autora que a preocupação, hoje, não deve ser com a
construção de uma teoria contratual, no que se refere aos princípios norteadores das atividades
legislativa e judiciária. A preocupação deve se voltar para a busca de critérios diferenciadores
dos contratos, critérios que permitam aplicar a cada contrato específico os princípios mais
convenientes e condizentes com as diretrizes constitucionais, capazes de realizar os valores
constitucionalmente previstos:

[...] em razão precisamente da fragmentação conceitual, a teoria contratual não deve


preocupar-se com a unidade, seja esta unidade consentânea com o modelo clássico, seja
dele discrepante. Ao invés, a teoria contratual deve voltar-se para o estabelecimento de
critérios de diferenciação, de forma a compor adequadamente os princípios
constitucionais130.

129
NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 299.
130
Ibidem, p. 303.
47

Assim, os critérios de classificação dos contratos devem ser aptos a concretizar os


valores constitucionais. É tarefa da teoria contratual estabelecer critérios de classificação que
possibilitem que cada contrato seja visualizado sob a ótica de seu correspondente grupo de
princípios131. Sendo estes critérios compatíveis com a tábua de valores constitucionais, a
classificação será meio hábil à concreção destes valores.
Neste ponto é possível questionar: quais seriam estes valores constitucionais? Diante
de toda a onda constitucionalista voltada à solidarização do direito, pode-se chegar à falsa
conclusão de que a Constituição somente abarca valores sociais. Na verdade, a constituição
abarca valores sociais, incluídos aqui tanto os valores sociais propriamente ditos quanto os
valores individuais de caráter social, como a vida, a integridade física, a saúde, entre outros, mas
também valores e interesses individuais, inclusive patrimoniais.
Ao usar-se a denominação “interesses individuais” não se está a falar daqueles direitos
fundamentais de índole individual descritos no capítulo I do título II da CF/88. Na verdade, estes
direitos devem ser assegurados não somente como direitos individuais, mas também como
vertentes de concreção dos direitos sociais, na medida em que a proteção ao mínimo existencial
de cada pessoa é interesse da sociedade como um todo, requisito de desenvolvimento social,
político e econômico. Interesse individual, na relação contratual, está relacionado à ideia de
liberdade, de livre iniciativa.
É erro pensar que a Constituição não tutela a liberdade, na qual se pode inserir a
vertente liberdade contratual. Com efeito, já no preâmbulo, o constituinte atribuiu ao Estado a
tarefa de assegurar a liberdade dos cidadãos. O artigo 1º coloca como um dos fundamentos da
República “os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa” (inciso IV). O artigo 170 coloca
como um dos fundamentos da ordem econômica a livre iniciativa (caput).
Assim, pode-se dizer que a Constituição consagra tanto valores de ordem social
quanto valores de ordem individual132. Nestes termos, embora se tenha dado enfoque aos
princípios sociais, devido à sua grande importância na Constituição, necessário se faz reconhecer
a existência, também, de princípios de liberdade individual na Constituição. Por isto, os novos

131
Cf. NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 303-
304.
132
Sobre a tensão entre liberdade individual e solidariedade social na CF/88, ver NEGREIROS, Teresa. Teoria do
contrato: novos paradigmas. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 286-295.
48

princípios contratuais não extinguiram – nem poderiam extinguir – os princípios clássicos133. A


vontade ainda tem grande importância no cenário contratual contemporâneo, como ensina
Humberto Theodoro Júnior:

Isto [a sujeição aos princípios éticos da boa-fé e da lealdade], porém, não se deu com o
fito de enfraquecer a força do vínculo contratual nem de eliminar a presença da vontade
individual na sua formação. Apenas se agregou ao princípio da autonomia da vontade a
responsabilidade social traduzida no princípio da boa-fé objetiva. [...]
Ao dar agora mais valor ao exterior da declaração, evitando concentrar-se na pura
indagação da vontade, e ao ensejar enfoque dos elementos éticos do negócio, o novo
instituto do contrato não está, de forma alguma, negando sua função de fonte de direitos
e obrigações com ‘força de lei’ na esfera privada dos contratantes 134.

Reconhecendo a existência destes dois grupos de princípios, imperioso aceitar que o


ordenamento tutela a ambos e a jurisprudência e a doutrina devem conciliar sua aplicação. Neste
sentido se posiciona Tereza Negreiros:

Não existe no sistema normativo civil-constitucional homogeneidade axiológica que


pudesse unificar a teoria contratual em torno de um único e absoluto valor – seja a
liberdade individual, seja a solidariedade social. A realidade caracteriza-se, antes, pela
alternância entre tendências individualistas e socializantes, ora predominando a
liberdade clássica, enaltecida pela eficiência econômica do livre mercado, ora se
buscando, através da imposição de normas cogentes, um controle heterônomo sobre o
conteúdo e os efeitos do contrato em vista do ideal de construção de uma sociedade mais
justa e solidária135.

Considerando que a ordem Constitucional impõe valores sociais e individuais, cabe ao


sistema privado atuar de forma a assegurar a efetivação dos mesmos. Por isso, é tão importante a
conciliação entre os princípios clássicos – protetores da liberdade individual – e os princípios
solidários – protetores da solidariedade social136. Neste sentido, Netto Lobo, confrontando os
incisos XXII e XXIII do artigo 5º da Constituição Federal, que tratam, respectivamente, do

133
Neste sentido, Cf. LÔBO, Paulo Luiz Netto. Princípios sociais dos contratos no Código de Defesa do Consumidor
e no Novo Código Civil. Revista de direito do consumidor, São Paulo, a. 11, n. 42, p. 187-195, abr./jun. 2002,
p.189.
134
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Direito do consumidor: a busca de um ponto de equilíbrio entre as garantias
do Código de Defesa do Consumidor e os princípios gerais do direito civil e do direito processual Civil. Rio de
Janeiro: Forense, 2009, p. 12-13.
135
NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 285-286.
136
Anderson Schreiber critica a posição da atual jurisprudência de utilizar o princípio da boa-fé como meio de
efetivação dos princípios constitucionais: “[...] o que se nota, observando a produção mais recente dos tribunais
brasileiros, é que a boa-fé objetiva vai assumindo, na sua aberta generalidade, a insólita função de veículo de
aplicação dos princípios constitucionais nas relações privadas. Neste sentido, a jurisprudência tem associado, de
forma indevida, a violação à boa-fé objetiva e a lesão à dignidade humana.” (SCHREIBER, Anderson. O princípio
da boa-fé objetiva no direito de família. In: MORAES, Maria Celina Bodin de (coord.). Princípios do direito civil
contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 448-449).
49

direito de propriedade e da função social que lhe é acometida propõe a ponderação de interesses
como solução ao impasse de valores pelos mesmos assegurados: “O caminho indicado para a
superação do impasse é a utilização do critério hermenêutico do princípio da proporcionalidade,
largamente adotado pelos teóricos da interpretação constitucional e pelas cortes constitucionais
[...]”137.
Os critérios de classificação de contratos devem, portanto, ser capazes de conciliar a
aplicação destes dois grupos de princípios, atuando como parâmetros para o legislador, o
aplicador e o doutrinador. Neste sentido, cada contrato deve ser regido por um grupo de
princípios próprios, quebrando o mito da existência de um paradigma contratual único.

4.3 O direito contratual: a classificação dos bens objetos dos contratos como ponto de
equilíbrio entre o intervencionismo estatal e a liberdade individual – os novos
paradigmas

Impende reconhecer, depois de tudo o que foi dito, que o direito passou e ainda passa
por grandes transformações, sobretudo na seara contratual e seus “inseparáveis companheiros”,
os bens.
Essas mudanças, ocorridas sobretudo em razão da humanização do direito após a
Segunda Guerra, estão relacionadas a um fato maior: a funcionalização do mercado à dignidade
humana. Pode-se, dessa forma, dizer que se passa a exigir que o mercado mude seu foco da
busca do lucro a qualquer custo para a satisfação das necessidades da pessoa, principalmente as
necessidades primordiais. O centro do ordenamento passa a ser, então a pessoa, como afirma
Mattietto:

Não o mercado, mas a pessoa é o valor de vértice do sistema jurídico. Como expressão
de uma lógica econômica e patrimonial, o mercado deve ficar em posição subordinada e

137
LÔBO, Paulo Luiz Netto. Constitucionalização do direito civil. Revista de informação legislativa, Brasília, a.
36, n. 141, p. 99-109, jan./mar. 1999, p. 106.
50

funcionalizada ao respeito pela dignidade da pessoa humana e pelas situações jurídicas


não-patrimoniais138.

Apegando-se a esta nova ótica do direito, sobretudo do direito obrigacional, o autor


critica a atual configuração do negócio jurídico139, incapaz de satisfazer as necessidades básicas
da pessoa: “À vista de tudo quanto se expõe, parece historicamente inoportuna, politicamente
inconveniente e cientificamente inadequada a inclusão, no novo Código Civil, da categoria
dogmática de negócio jurídico[...]”140
A proposta deste trabalho é buscar meios para contornar este problema e tornar o
direito mais condizente com estas novas exigências sociais, sem abrir mão dos valores
individuais, também consagrados constitucionalmente. Condicionar o contrato à satisfação das
necessidades primordiais da pessoa humana, sem descuidar dos valores de liberdade e autonomia
privada, significa dar atenção especial aos contratos que versam sobre bens essenciais, deixando
um maior campo de liberdade para aqueles contratos cujo objeto não são bens de primeira
importância. A possibilidade de tratamento distinto, conforme o grau de necessidade do bem, dá-
se em razão da necessidade de harmônica convivência entre os princípios de ordem social e os
princípios de liberdade individual, ambos coexistentes tanto na Constituição quanto no
ordenamento como um todo.

138
MATTIETTO, Leonardo de Andrade. O papel da vontade nas situações jurídicas patrimoniais: o negócio jurídico
e o novo Código Civil. In: RAMOS, Carmen Lúcia Silveira et al. Diálogos sobre direito civil. Rio de Janeiro:
Renovar, 2002, p.31.
139
Segundo o autor: “O princípio da autonomia privada, com as suas variantes de autodeterminação e
autovinculação, cedeu lugar a um novo direito obrigacional, que acolhe no seu próprio âmago os princípios
constitucionais da dignidade da pessoa humana e da boa-fé objetiva.” (MATTIETTO, Leonardo de Andrade. O
papel da vontade nas situações jurídicas patrimoniais: o negócio jurídico e o novo Código Civil. In: RAMOS,
Carmen Lúcia Silveira et al. Diálogos sobre direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 31).
140
MATTIETTO, Leonardo de Andrade. O papel da vontade nas situações jurídicas patrimoniais: o negócio jurídico
e o novo Código Civil. In: RAMOS, Carmen Lúcia Silveira et al. Diálogos sobre direito civil. Rio de Janeiro:
Renovar, 2002, p. 39.
51

5 O PARADIGMA DA ESSENCIALIDADE

5.1 O paradigma da essencialidade e a garantia do mínimo existencial à pessoa

Uma das principais funções do patrimônio na atualidade ainda é servir de garantia aos
créditos de terceiros141. Com vistas à proteção da pessoa titular, a doutrina recente vem
alimentando a tese de que o patrimônio deve servir à pessoa, seu titular, no sentido de assegurar-
lhe os mínimos direitos personalíssimos, tudo com fundamento na cláusula da dignidade da
pessoa humana e em um princípio implícito no ordenamento de não redução da pessoa à miséria
ou de tutela do patrimônio mínimo.
Dessa forma, existe um direito a um patrimônio mínimo, que, embora não seja direito
integrante da personalidade, está no mesmo plano de importância desta, uma vez que os bens
mínimos tutelados por este direito encontram-se funcionalizados à própria personalidade. A
garantia do mínimo patrimonial existencial, portanto, é uma condição para a própria satisfação da
dignidade da pessoa humana.
É de se questionar, então, acerca da relação entre o mínimo existencial patrimonial e a
existência de um paradigma da essencialidade, norteador das relações privadas. E mais, é de se
indagar ainda a respeito da relação entre o paradigma da essencialidade e a relação que este
possui com o moderno direito contratual.
Acerca destas indagações, responde Teresa Negreiros que o paradigma da
essencialidade encontra seu fundamento no princípio constitucional da primazia das situações
existenciais (decorrência da tutela geral da pessoa humana) e nos deveres impostos pelo principio
geral de solidariedade social142. Quanto ao primeiro, pode-se dizer que a proteção à pessoa impõe
uma proteção jurídica especial aos contratos relativos a bens essenciais, ou seja, uma das formas
de se proteger a pessoa é proteger, de forma diferenciada, os contratantes nos contratos
respeitantes a bens essenciais.

141
Cf. FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p.
42-43.
142
Cf. NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 23-
24.
52

No que tange aos deveres impostos pelo princípio da solidariedade social como
fundamento do paradigma da essencialidade, tem-se uma maior exigência de condutas
compatíveis com os novos princípios contratuais – função social, boa-fé, equilíbrio econômico–,
bem como a maior limitação da autonomia privada, muitas vezes incompatível com a
solidariedade social. Desta forma, o paradigma da essencialidade é o ponto de convergência entre
os princípios constitucionais e a teoria contratual. É a essencialidade como critério de
classificação dos bens e dos correlativos contratos o critério mais apto a concretizar, no direito
privado, os princípios constitucionais. Sintetiza Teresa Negreiros:

O paradigma da essencialidade – a servir para distinguir os contratos em razão do grau


de imprescindibilidade do bem contratado – traduz adequadamente a metodologia civil-
constitucional, na medida em que é deduzido de uma releitura, à luz da Constituição, de
categorias dogmáticas consagradas (como é o caso da classificação dos bens, que passa a
levar em conta o critério da utilidade existencial, em lugar da utilidade exclusivamente
patrimonial). Ademais, a inovação no sistema de diferenciação dos contratos, por meio
da classificação dos bens contratados em essenciais úteis e supérfluos, traduz ainda a
metodologia especificamente contratual, que, atualmente, se caracteriza por uma
crescente fragmentação. Com efeito, a unidade e o formalismo do direito contratual
clássico são incompatíveis com a concepção social do contrato, em que certas
características das partes contratantes, entes inteiramente desconsideradas, ganham
relevância jurídica143.

A essencialidade como critério de classificação dos bens e dos respectivos contratos,


seguida do tratamento jurídico diferenciado aos contratos relativos a bens essenciais, permite a
tutela, também em nível contratual, da dignidade da pessoa humana. O maior intervencionismo
nos contratos relativos a bens essenciais, inclusive exigindo-se comportamentos por parte dos
contratantes e deixando à autonomia um maior espaço nos contratos relativos a bens supérfluos, é
uma forma de assegurar a toda pessoa o mínimo patrimonial existencial. Ensina Teresa Negreiros
que:

[...] o paradigma da essencialidade proporciona instrumentos e conceitos que permitem


tratar os problemas sociais como problemas a serem enfrentados também pelo direito
contratual, constituindo ao mesmo tempo uma expressão e um expoente do compromisso
do estudioso com o saber jurídico com a tutela da dignidade essencial da pessoa
humana[...]144.

Uma premissa a ser considerada para a aplicação do paradigma da essencialidade é a


situação de fragilidade e vulnerabilidade na qual se encontra toda pessoa, independentemente da

143
NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 29.
144
Ibidem, p. 388-389.
53

posição financeira, diante da necessidade de um bem ou serviço. Com efeito, quando um bem ou
serviço é essencial à dignidade da pessoa, a sua liberdade de contratar se tolhe de tal forma que
somente lhe resta aceitar qualquer condição, por mais gravosa que seja, para não ver ao chão sua
dignidade. É o que se passa, por exemplo, nos contratos celebrados com hospitais ou
fornecedores de remédios. Também os gêneros alimentícios são passíveis de proporcionar muitos
abusos, diante da sua necessidade vital para o homem. Nestes contratos relativos a bens
essenciais é evidente a situação de fragilidade da parte que deles necessita.
É bem verdade que o CDC, no âmbito dos contratos de consumo, promove uma ampla
proteção ao consumidor. Entretanto, esta proteção é indistinta, baseada na categoria abstrata de
consumidor, o que leva à desnecessária proteção de pessoas que não se encontram em real
situação de vulnerabilidade, muitas vezes em detrimento de um pequeno fornecedor, até mesmo
mais vulnerável que o consumidor. Ademais, também nos contratos civis, onde há uma presunção
de igualdade de condições entre as partes, muitas vezes é necessária uma tutela especial diante da
fragilidade daquele contratante que necessita de um bem, como ocorre, por exemplo, no contrato
de locação celebrado entre o proprietário do imóvel, que conta com a ampla proteção da Lei de
Locações, e o locatário, que necessita do imóvel (bem essencial) para morar.
Conclui-se, portanto, que o paradigma da essencialidade e a consequente tutela
jurídica diferenciada dos contratos relativos a bens essenciais é amplamente apta à tutela da
dignidade humana.

5.2 O paradigma da essencialidade como diretriz de aplicação dos princípios contratuais: a


intervenção estatal nas relações privadas como forma de assegurar o mínimo
patrimonial

Assentado que a utilização do critério da essencialidade é um meio apto a assegurar o


mínimo patrimonial existencial à pessoa, no que tange à seara contratual, resta estudar a forma
pela qual se aplica o paradigma na teoria contratual.
Uma das premissas básicas para a aplicação do paradigma da essencialidade é a
fragmentação da teoria contratual. Por fragmentação da teoria contratual entende-se o tratamento
54

jurídico diferenciado aos diferentes tipos de contratos. Para este trabalho, o qual utiliza o critério
da essencialidade, a diferenciação dos contratos se dá em função dos diferentes bens seus objetos.
Segundo Teresa Negreiros, a heterogeneidade de valores tutelados pelo ordenamento
– e aqui merecem destaque os valores da livre iniciativa e da proteção ao vulnerável – torna
impossível a unificação da teoria contratual. São palavras da autora:

Não existe no sistema normativo civil-constitucional homogeneidade axiológica que


pudesse unificar a teoria contratual em torno de um único e absoluto valor – seja a
liberdade individual, seja a solidariedade social. A realidade caracteriza-se, antes, pela
alternância entre tendências individualistas e socializantes, ora predominando a
liberdade clássica, enaltecida pela eficiência econômica do livre mercado, ora se
buscando, através da imposição de normas cogentes, um controle heterônomo sobre o
conteúdo e os efeitos do contrato em vista do ideal de construção de uma sociedade mais
justa e solidária145.

Embora adepta direito civil-constitucional, a autora não desconhece a grande


importância da liberdade individual,146 inclusive para os contratos. Neste contexto de
harmonização entre princípios individualistas e socializantes emerge a fragmentação da teoria
contratual, ou seja, a necessidade de conceder tratamento diferenciado aos diversos tipos de
contratos. A fragmentação é, portanto, resultado de exigências sociais, como a proteção ao
vulnerável.
Esta fragmentação exige, portanto, um tratamento diferenciado aos diversos contratos.
Sabe-se que hoje convivem dois grupos distintos de princípios no direito contratual:
os princípios clássicos, centrados na ideia de autonomia da vontade, e os princípios sociais,
centrados na ideia de função social, boa-fé e equilíbrio, impondo grandes restrições à liberdade e
autonomia da vontade.
A liberdade contratual, ou autonomia da vontade, foi cedendo espaço à solidariedade
social, em parte, como resultado das novas exigências constitucionais147. Com efeito, não poderia
a ordem constitucional proteger a dignidade humana, a justiça, a garantia mínima de um

145
NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 285-286.
146
“É fundamental não permitir que a invocação da cláusula geral de tutela da dignidade da pessoa humana, ao
acentuar a dimensão social dos valores existenciais, ponha em risco a liberdade individual, da qual uma das
expressões é, sem dúvida, a autonomia negocial. A tutela da dignidade da pessoa humana certamente não se basta
com o mero assegurar do livre exercício da prerrogativa de autodeterminação da vontade individual; tampouco,
porém, poderá prescindir da garantia da liberdade, sem o que, afinal, a existência humana carece de sentido.”
(NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 38).
147
“O processo de constitucionalização do direito civil implica a substituição do seu centro valorativo – em lugar do
indivíduo surge a pessoa. E onde dantes reinava, absoluta, a liberdade individual, ganha significado a força jurídica
da solidariedade social” NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas. 2. ed. Rio de Janeiro:
Renovar, 2006, p. 11).
55

patrimônio essencial à pessoa e, ao mesmo tempo, permitir o abuso, sobretudo por parte das
grandes empresas, dos menos favorecidos. Com efeito, impossível seria assegurar a saúde sem a
interferência Estatal nos contratos de plano de saúde, assegurar o direito à alimentação sem a
intervenção nos contratos de consumo de produtos alimentícios, o direito aos serviços essenciais,
sem a intervenção nos contratos de prestação destes serviços.
A solidariedade social impõe condutas de boa-fé, função social e equilíbrio contratual
aos contratantes. A intenção de obter lucro exorbitante em aproveitamento à situação do
contratante menos favorecido na relação, o abuso da boa-fé do contratante, a utilização do
contrato desvinculada da sua função social de circulação de bens e serviços, enfim, práticas
incompatíveis com os mandamentos constitucionais de solidariedade, são fortemente repelidos
pelos princípios sociais dos contratos. Estes princípios sociais objetivam, sobretudo, a proteção
da pessoa, daí poder-se afirmar que são reflexos dos princípios constitucionais. Sobre esta relação
entre a solidariedade social e a dignidade da pessoa humana ensina Teresa Negreiros:

Com efeito, à tutela da dignidade da pessoa humana correspondem não apenas os


tradicionais direitos individuais, mas igualmente os chamados “direitos sociais”, que
reordenam as relações entre o Estado e a sociedade, impondo a todos o ônus de tornar a
sociedade mais justa. [...]
A dignidade da pessoa humana não é apreendida, pois, como um pólo de irradiação de
direitos, somente, mas também de deveres. No campo do direito civil, como já referido,
esta mudança valorativa deriva para a construção de uma nova ética em termos de
relações privadas.148

Apesar da grande importância dos princípios sociais, ainda permanecem os princípios


individuais. Não só permanecem, como possuem enorme importância prática. Com efeito, a
iniciativa privada também é tutelada constitucionalmente (art. 1º, IV); o Estado não pode coibir
totalmente a autonomia, dado que esta é inerente a um Estado Democrático, requisito
fundamental para o progresso e desenvolvimento humano e econômico.
A conjugação destas assertivas conduz à conclusão de que o Estado deve sim intervir
nas relações privadas, porém de forma limitada149. Assim, é plenamente plausível a intervenção
estatal para a tutela dos direitos fundamentais, através da proteção ao contratante de bens

148
Cf. NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p.
19-20.
149
Teresa Negreiros faz um estudo interessante acerca de algumas teorias sobre a intervenção estatal na economia,
concluindo, ao fim, que o Brasil adota a teoria do minimal welfare, segundo a qual ao Estado são atribuídos
deveres relativos ao suprimento de necessidades primárias. Assim, a intervenção estatal é legítima apenas para
assegurar a satisfação de necessidades básicas dos contratantes. (Cf. NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato:
novos paradigmas. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 413-421).
56

essenciais, e somente destes, deixando aos contratos relativos a bens não essenciais um maior
campo de autonomia.
Destarte, a essencialidade do bem objeto do contrato deve servir de norte para a
aplicação dos princípios contratuais. Não só: a atuação do aplicador e do legislador deve se voltar
à proteção do contratante de serviço ou adquirente de produto essencial. Esta intervenção seletiva
do Estado nestes contratos específicos permite encontrar o ponto de equilíbrio entre liberdade
individual e solidariedade social, consoante assevera nossa brilhante autora:

Embora o direito civil não disponha de uma cláusula geral neste sentido, sob o influxo
dos princípios constitucionais o intérprete possui elementos suficientes para a construção
do paradigma da essencialidade, à luz do qual a intervenção no domínio contratual seja
seletiva e, portanto, à luz do qual se realiza a ponderação, na esfera negocial, entre
liberdade e solidariedade150.

5.3 A classificação dos bens

A classificação dos bens presta-se a determinar os princípios e as normas às quais


estão submetidas as relações jurídicas.151 Antes de adentrar no estudo da proposta de
classificação segundo a essencialidade, importante visualizar a classificação feita pelo Código
Civil.

5.3.1 A classificação adotada pelo Código Civil

No tocante à classificação dos bens tal como proposta pelo legislador de 2002, Caio
Mário a distribui em três grupos: a) bens considerados “em si mesmos” (móveis e imóveis;
fungíveis e infungíveis; consumíveis e inconsumíveis; divisíveis e indivisíveis; singulares e

150
NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 39.
151
Cf. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, v.1. 22. ed. rev. e atual. por Maria Celina Bodin
de Moraes. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 405.
57

coletivos); b) bens “reciprocamente considerados” (principais e acessórios); c) bens “em relação


com as pessoas seus titulares (públicos e privados; disponíveis e indisponíveis)152.
Após um estudo sobre as classificações adotadas pelo legislador de 2002 é possível
concluir que os critérios clássicos se fundam no ponto de vista do sujeito153, ou melhor, do
interesse (e não da necessidade), preponderantemente econômico, do bem para os sujeitos
abstratos das relações jurídicas. Dizer que a classificação se funda no sujeito significa dizer que
acima da regulação jurídica, ou melhor, determinando a regulamentação jurídica, está o interesse
econômico do homem, como forma de promover o trânsito dos bens. Neste sentido, aduz Fachin
que:

Contudo, a divisão básica dos bens não é jurídica, e sim econômica. O jurídico apenas
comparece para dar cobertura aos bens de produção, de uso e de consumo, de acordo
com concepção política, e para se estabelecer o regime dos mesmos 154.

A classificação conforme o grau de necessidade do bem para a pessoa não foi


contemplada pelo legislador, de forma que a sua utilização somente poderia ocorrer pela
atividade jurisprudencial. Conquanto não tenha orientado o legislador na classificação atual,
norteou-o na classificação das benfeitorias, não sendo a essencialidade, portanto, totalmente
estranha ao ordenamento.

5.3.2 A classificação conforme o grau de necessidade do bem

O paradigma da essencialidade surge da ideia de necessidade. Segundo Jean


Carbonier, a necessidade é um estado de fato que, em algumas situações, origina um direito155.
Teresa Negreiros lembra o exemplo do instituto da passagem forçada: a necessidade de acesso a
algum ponto pelo morador do prédio encravado origina para este o direito de obter a passagem de

152
Cf. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, v.1. 22. ed. rev. e atual. por Maria Celina Bodin
de Moraes. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 409.
153
Cf. FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 166-167.
154
FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 168.
155
JEAN CARBONIER apud NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas. 2. ed. Rio de Janeiro:
Renovar, 2006, p.32-33.
58

um prédio serviente (artigo 1285, Código Civil)156. O mesmo raciocínio pode ser aplicado ao
estado de necessidade, cláusula geral constante no artigo 188, II do Código Civil, que afasta a
ilicitude de um ato em razão da necessidade de sua prática.
Alain Sayag defende a teoria de que a satisfação de certas necessidades constitui uma
categoria de direito subjetivo, sendo uma fonte criadora destes direitos, independentemente de
previsões legais157.
A ideia de essencialidade não é estranha ao direito civil pátrio158. Conquanto a
classificação dos bens não considere a essencialidade como critério, o Código Civil dele se
utilizou na classificação das benfeitorias. Os artigos 1219 e 1220 conferem tratamento
diferenciado às benfeitorias necessárias, úteis e voluptuárias. Segundo a doutrina, as benfeitorias
necessárias são aquelas essenciais, que visam à conservação da coisa principal; as benfeitorias
úteis são aquelas que aumentam ou facilitam o uso da coisa principal; as voluptuárias são as de
mero luxo ou deleite159.
Assentada a necessidade de tutela diferenciada aos bens essenciais como forma de se
assegurar a cada pessoa o essencial à manutenção de sua dignidade humana, impõe-se a pergunta:
o que seriam, ou quais seriam os bens essenciais? Existe um critério objetivo apto a demarcar a
essencialidade do bem?
A ideia de bem essencial está correlacionada à de mínimo existencial ou essencial à
tutela da dignidade humana. Bem essencial é, portanto, aquele bem imprescindível e em
quantidade imprescindível à tutela da dignidade da pessoa concretamente considerada.
Para Fachin, a noção de mínimo não está ligado à noção de quantidade, como extremo
– mínimo e máximo – mas, sim, à noção de qualidade:

“Mínimo” e “máximo” podem não ser duas espécies do gênero “extremo”. São as
barreiras que fixam a essência de cada coisa e delimitam o seu poder e as propriedades.
A sustentação do mínimo não quantifica e sim qualifica o objeto.160

Segundo o autor, a noção de mínimo não está, portanto, ligada à noção de extremo,
mas sim à noção de razoável, de justo. Apesar desta concepção, o autor reconhece que os textos

156
Cf. NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 34.
157
ALAIN SAYAG apud NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas. 2. ed. Rio de Janeiro:
Renovar, 2006, p. 33.
158
A classificação dos bens segundo sua utilidade é comum na ciência econômica. Cf. NEGREIROS, Teresa. Teoria
do contrato: novos paradigmas. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 393-400.
159
Cf. TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil. São Paulo: Método, 2011, p. 774.
160
FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 271.
59

legais, ao fazerem referência a um mínimo, cogitam de uma análise quantitativa, e não


qualitativa. Cita, por exemplo, a norma constitucional do salário mínimo, que assegura ao
trabalhador o menor salário capaz de atender as suas necessidades básicas161.
Na concepção de Fachin, a ideia de mínimo, atrelada à de razoável, está ligada a
valores, e não à metrificação. É o respeito aos valores socialmente cultivados a linha delimitadora
do mínimo:

Bem se vê que, nessa visão diversa, captada pela lente da pluralidade, o mínimo não é
referido por quantidade, e pode muito além do número ou da cifra mensurável. Tal
mínimo é valor e não metrificação, conceito aberto cuja presença não viola a ideia de
sistema jurídico axiológico. O mínimo não é menos nem é ínfimo. É um conceito apto à
construção do razoável e do justo ao caso concreto, aberto, plural e poroso ao mundo
contemporâneo162.

Lado outro, clara e sintética é a definição de Teresa Negreiros ao definir o mínimo


existencial, ou bem essencial, como a “linha de separação entre a humanidade e a
desumanidade”163.
Logo se vê que somente diante do caso concreto se pode averiguar a essencialidade ou
não de um bem. A essencialidade é característica relativa. As necessidades também são variáveis
conforme a pessoa. Neste contexto, ganha destaque a consideração das pessoas concretamente
consideradas, em detrimento das clássicas categorias do direito clássico.
Através da classificação dos bens conforme o grau de necessidade para a pessoa, o
critério da essencialidade permite a classificação dos contratos e seus tratamentos jurídicos
diferenciados, conforme ensina Teresa Negreiros:

O paradigma da essencialidade consubstancia um modelo de pesquisa contratual,


segundo o qual o regime do contrato deve ser diferenciado em correspondência com a
classificação do bem contratado. Esta classificação divide os bens em essenciais, úteis e
supérfluos, levando em conta a destinação mais ou menos existencial conferida pelo
sujeito contratante ao bem contratado164.

Assim, os contratos relativos a bens essenciais merecem uma maior proteção do


Estado, no sentido de tutelar a parte que, diante de sua necessidade em relação ao objeto ou ao

161
Cf. FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p.
274-275.
162
FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 280-
281
163
NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 401.
164
Ibidem, p. 342.
60

serviço, mostra-se em situação de fragilidade. É importante ressaltar, diante do exposto, que o


deslocamento do foco do sujeito para o objeto não significa a desconsideração do sujeito e de
suas peculiaridades. Significa, muito além, a valorização e maior relevância de sua situação como
contratante diante do objeto contratado. Se este objeto for essencial, o contratante já estará em
posição de vulnerabilidade, decorrente da dependência do bem para a manutenção de sua
dignidade.
Teresa Negreiros atribui ao critério da essencialidade a qualidade de ser objetivo, e,
portanto, previsível, enquanto os critérios assentados nos sujeitos são abstratos, presumidos.
Afirma a autora:

A explicitação do referido paradigma da essencialidade permite, pois, uma maior


previsibilidade e uma maior clareza à atuação jurisprudencial que, a partir do modelo
assim proposto, ganhará maior consistência, sem contudo se privar de uma certa
flexibilidade, indispensável à apreciação casuística das reais necessidades em jogo165.

Em verdade, como ressalta a autora ao final do trecho supracitado, embora objetivo,


este critério não abandona a subjetividade, porquanto o próprio conceito de essencialidade é
dependente de elementos subjetivos, sendo, portanto, flexível.

5.4 Aplicação do critério da essencialidade – possibilidades no direito brasileiro de lege lata


e de lege ferenda

Conquanto o atual Código Civil tenha consagrado valores e princípios constitucionais,


sobretudo a boa-fé nos negócios privados, como se infere da cláusula geral do artigo 422, a
doutrina civil-constitucional ainda vê no diploma civil o reflexo de uma sociedade liberal,
sobrepondo os interesses patrimoniais aos existenciais. Segundo Gustavo Tepedino:

O recém aprovado Projeto de Código Civil, concebido anteriormente à Constituição de


1988, inspira-se em movimentos legislativos ultrapassados, que conheceram seu auge na
Europa Continental dos anos posteriores à Segunda Guerra Mundial [...]
O novo Código nascerá velho principalmente por não levar em conta a historia
constitucional brasileira e a corajosa experiência jurisprudencial, que protegem a

165
NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 345.
61

personalidade humana mais do que a propriedade, o ser mais do que o ter, os valores
existenciais mais do que os patrimoniais. 166

Também Luiz Edson Fachin tece severa crítica ao Código Civil de 2002, sobretudo
por seu caráter individualista, reminiscência do antigo Código de 1916:

Disto não discrepa, todavia, o novo CCB de 2002, também assentado num contexto que
não o atual, mas sim nos valores imanentes do passado e alguns do começo desse século;
é, pois, um Código coerente com o sentido do individualismo jurídico, ou seja, um tipo
cuja preocupação é a de dar conta do indivíduo, ou ainda, do sujeito de direito em
relação a cada um desses três pilares [o contrato, a família, o patrimônio] 167.

A Constituição de 1988 promoveu o que se costuma chamar funcionalização dos


institutos de direito privado. Isto significa que os institutos de direito privado não mais têm seu
fim em si próprios, mas sim objetivam a realização do princípio fundamental da dignidade
humana. Esta – a dignidade da pessoa humana – seria a responsável pela remodelação do direito
civil com base em valores e princípios antes encobertos pela autonomia da vontade.
Neste sentido, Gustavo Tepedino afirma que o sujeito de direito, abstrato e neutro168,
cedeu lugar à pessoa humana, centro do ordenamento jurídico privado. Se antes o fim dos
institutos jurídicos era a sua própria concretização, a partir de 1988 estes institutos passam a
existir para realizar a dignidade da pessoa humana169. Assim é que Fachin coloca o direito civil a
serviço da vida, afastando-o do tecnicismo, do neutralismo170 e do conceitualismo171.
Não acreditando que a lei civil seria capaz de concretizar esta funcionalização e,
consequentemente, sobrepor aos interesses patrimoniais os interesses existenciais da pessoa
humana, o mesmo autor já atribuía à jurisprudência a tarefa de fazê-lo. Antes da sanção do atual
Código, escreveu o autor:

Do Presidente da República espera-se o gesto nobre, que o fará entrar para a História
como um grande estadista: o veto integral ao projeto. Se isto não acontecer, ao Judiciário

166
TEPEDINO, Gustavo. O novo Código Civil: duro golpe na recente experiência constitucional brasileira
(editorial). Revista trimestral de direito civil, Rio de Janeiro, a. 2, v. 7, p. III-V, jul./set. 2001, p. III-IV.
167
FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 81.
168
A ideia de sujeito abstratamente considerado é característica do Estado Liberal, no qual se situa o sistema clássico
de Direito Civil. Cf. FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 59.
169
Cf. TEPEDINO, Gustavo. Do sujeito de direito à pessoa humana (editorial). Revista trimestral de direito civil,
Rio de Janeiro, a. 1,v. 2, p. V-VI, abr./jun. 2000, p. VI.
170
Cf. FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 18.
171
Cf. FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 32.
62

incumbirá a espinhosa tarefa de temperar o desastre, aplicando diretamente o Texto


Constitucional, seus valores e princípios, aos conflitos de direito civil [...]172

O Código não sofreu o veto integral. Portanto, é de se dizer que, de lege lata, ou seja,
no ordenamento tal como se apresenta hoje, o aplicador possui importante papel na interpretação/
aplicação da lei. É por isto que se pode dizer que o tratamento diferenciado dado pela
jurisprudência, mesmo na ausência de norma específica, aos contratos que tenham por objetos
bens essenciais, muito ao contrário de ferir o ordenamento, concretiza os preceitos fundamentais
constitucionais.
O importante papel da jurisprudência está ainda relacionado ao caráter histórico do
direito e, principalmente, à crise do reducionismo conceitual.
Uma das maiores contribuições Neoconstitucionalistas ao direito civil é o
reconhecimento do caráter histórico do direito, da necessidade que este tem de se aproximar das
exigências sociais dos casos concretos, impondo uma solução conforme suas necessidades. É este
reconhecimento, aliado à necessidade de tutela de certos valores supraindividuais, o responsável
pela queda do modelo tradicional de direito privado, assentado no contrato, na família e na
propriedade, muitas vezes, se esquecendo da pessoa humana. Afirma Fachin que:

A crise do sistema antigo do Direito Civil suscita, antes de mais nada, questões
concernentes à sua historicidade, à análise da inter-relação entre Direito e Sociedade, e
ao princípio de dinamismo que impinge ao Direito seu eterno diálogo com o meio social,
seu tempo e seu espaço. Tampouco se distancia da análise dos conceitos frente à
concretude dos fatos que a eles se apresentam173.

Neste aspecto, é possível fazer uma crítica ao reducionismo conceitual, que, muitas
vezes, homogeneíza situações concretamente distintas porque estas apresentam pólos
conceitualmente idênticos. É o caso do igual tratamento dispensado a todos os consumidores, a
todos os fornecedores, a todos os credores, a todos os devedores....sem se ater ao caso concreto. É
neste sentido que Fachin busca, para seu estudo,

Uma perspectiva que, na tentativa de campear emancipações de sentido, intenta


transcender o limite das conceituações reducionistas e dos procedimentos didáticos
secionados por saberes que não se comunicam.

172
TEPEDINO, Gustavo. O novo Código Civil: duro golpe na recente experiência constitucional brasileira
(editorial). Revista trimestral de direito civil, Rio de Janeiro, a. 2, v. 7, p. III-V, jul./set. 2001, p. V.
173
FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 26.
63

Pessoas, sujeitos e vínculos perpassam obrigações, coisas, famílias e sucessões. Se deve


o comprador pagar o preço e o locatário pagar o aluguel, credor e devedor são mais que
conceitos e integram um sistema e um tipo de organização econômica e política 174.

Desta feita, enquanto não se procede à feitura de um Código capaz de tutelar


amplamente os valores da dignidade humana, bem como capaz de considerar as circunstâncias do
caso concreto, substituindo assim o mero reducionismo conceitual, se é que seja possível um
Código nestes moldes, a atividade jurisprudencial releva em importância. Com efeito, diante das
necessidades dos casos concretos, só o bom senso, a razoabilidade da jurisprudência podem
suprir uma lei inexistente: “Entre a resistência à transformação e as necessidades que se impõem
pelos fatos, o papel a ser exercido, nesse campo, pelos operadores do direito, poderá antecipar,
em parte, aquilo que virá”175, afirma Fachin.
Luiz Edson Fachin, em sua clássica obra Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo,
após defender a existência de um direito subjetivo ao patrimônio mínimo, propõe a existência de
uma exceção de estado de necessidade social como forma processual de se tutelar o patrimônio
mínimo176. A exceção do estado de necessidade social seria um óbice à execução forçada e os
bens componentes deste patrimônio mínimo estariam assegurados contra a execução de forma
semelhante àqueles bens arrolados pelo Código de Processo Civil. A aplicação concreta deste
estado de necessidade social seria um exemplo de atuação jurisprudencial na tutela do patrimônio
mínimo.
Este conceito de estado de necessidade social estaria relacionado às concepções
sociais do direito. Com efeito, não é no vício de consentimento que tal estado de necessidade
encontra guarida, mas sim num vício social de desigualdade e de desrespeito às condições
mínimas de dignidade, o qual o ordenamento vem tentando corrigir. Nessa tentativa de correção é
de se destacar, por exemplo, a colocação da justiça social como diretriz da atividade econômica,
no artigo 170 da Constituição, além dos demais princípios constitucionais, como a dignidade da
pessoa humana177.

174
FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 32.
175
Ibidem, p. 19.
176
Cf. FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p.
169.
177
Segundo Fachin, a dignidade humana condiciona a ordem econômica: cf. FACHIN, Luiz Edson Estatuto
jurídico do patrimônio mínimo. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 182.
64

Fachin defende a possibilidade de migração da concepção formal de estado de


necessidade para uma conformação econômico-social do mesmo178. Concepção formal está aqui
relacionada ao estado de necessidade previsto no Código Civil, ao passo que o estado de
necessidade econômico-social está relacionado a situações fáticas não previstas em lei, mas
decorrentes de situações concretas e fundamentadas pelo direito, como o direito a uma vida
digna, como se vê no furto famélico179.
De lege ferenda, ou seja, no direito a ser criado, poderia se esperar a tutela
diferenciada dos bens essenciais, sobretudo com a inserção, no Código, de um critério de
classificação baseado na essencialidade do bem. Este critério permitiria a classificação dos
respectivos contratos, tendo por foco seu objeto.
A fragmentação da teoria contratual, ou seja, a tutela jurídica diferenciada dos
contratos, de forma a permitir uma maior intervenção estatal nos contratos referentes a bens
essenciais seria o próximo passo. Esta tutela permitiria assegurar, com maior eficiência, o mínimo
patrimonial existencial a cada pessoa. Nos demais contratos, ou seja, naqueles não relativos a
bens essenciais, restaria um maior campo de autonomia às partes.
Obviamente, deve-se enfatizar que a intervenção estatal aqui proposta não visa a
proteger o contratante necessitado do bem a qualquer custo. Toda intervenção encontra limites
nas raias do bom senso e dos próprios princípios constitucionais.
Uma solução plausível ao que se propõe é uma cláusula geral atinente à
essencialidade, sobretudo em decorrência da flexibilidade e maior aptidão na consideração das
circunstâncias dos casos concretos. Ademais a técnica de normatização por cláusula geral permite
a maior efetivação dos valores constitucionais180, o que se objetiva com a proposta de
consideração da essencialidade do bem contratado.
A técnica das cláusulas gerais permite o combate à desigualdade real, uma vez que a
participação judicial na construção da norma para o caso concreto permite a valoração específica
de cada caso:

178
Cf. FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p.
176-177.
179
Cf. FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p.
176.
180
Sobre a relação entre as cláusulas gerais e a efetivação dos valores constitucionais, ver ALBUQUERQUE,
Ronaldo Gatti de. Construção e codificação: a dinâmica atual do binômio. In: MARTINS-COSTA, Judith (org.). A
reconstrução do direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 81.
65

A falsa comutatividade e a desigualdade real são combatidas por normas flexíveis,


denominadas cláusulas gerais de contratação, mais adequadas que as outrora normas
jurídicas de ordem pública, cuja rigidez de conteúdo desvaloriza a atividade jurisdicional
de interpretação e aplicação do contrato181.

Portanto, de lege lata, considerando a inexistência de uma norma legal apta a tutelar a
diferenciação de regime jurídico entre contratos conforme o bem contratado, tem importância
fundamental a atividade jurisprudencial. De lege ferenda, acreditando que referida diferenciação
não encontra óbice jurídico, vê-se a necessidade de criação de institutos jurídicos diferenciados
para reger os contratos relativos a bens essenciais, permitindo nestes uma maior intervenção
Estatal. Lado outro, os contratos relativos a bens supérfluos prescindem desta proteção, podendo-
se deixar maior espaço de atuação para a autonomia privada.

181
LISBOA, Roberto Senise. Manual de direito civil, v. 3. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 78.
66

6 CONCLUSÃO

O direito civil-constitucional impulsionou uma releitura dos institutos de direito


privado, baseada na ótica axiológica. O contrato passa a ser visto não somente como instrumento
de circulação de riquezas, mas, sobretudo, como meio de concretização de direitos
constitucionalmente consagrados. Neste contexto, resta ao operador do direito tomar as medidas
necessárias para a adequação dos institutos ao novo modelo constitucionalmente previsto, o qual
consagra tanto valores de liberdade individual quanto de solidariedade social.
Estreitamente ligada ao contrato de modelo liberal, a classificação dos bens encontra
seu fundamento na clássica visão patrimonialista do direito, tendo seu alicerce um viés
amplamente econômico. Este objetivo de atender ao interesse privado dificulta a utilização das
classificações como objeto de concretização dos interesses sociais, de forma que se faz necessária
uma nova proposta de classificação.
A proposta aventada neste trabalho mostra-se condizente com a necessária
reestruturação do contrato e conciliação entre os interesses individuais e sociais. A essencialidade
como critério de classificação não seria novidade no ordenamento pátrio, uma vez que o
legislador dela se utilizou na classificação das benfeitorias (necessárias, úteis e voluptuárias).
Ademais, vários institutos, tanto de direito público quanto de direito privado, contemplam a
essencialidade de certos bens e a imprescindibilidade de se lhes assegurar à pessoa.
O objetivo fundamental da utilização do critério da essencialidade é permitir que o
contrato sirva de meio à concretização de ambos os grupos de princípios e valores
constitucionais.
Note-se que a proposta de releitura e tutela do contratante não abrange todos os
contratos, mas somente aqueles relativos a bens essenciais. Desta forma, os contratos relativos a
bens supérfluos permanecem, dentro dos limites razoáveis, regidos pela autonomia da vontade. É
somente nos contratos relativos a bens essenciais, por estarem estreitamente vinculados à tutela
de direitos fundamentais e, portanto, indisponíveis, que se vislumbra a necessidade de uma maior
intervenção, tanto do Estado-juiz quanto do Estado-legislador.
Assim, conclui-se pela necessidade de se conceder tratamento jurídico diferenciado
aos contratos referentes a bens essenciais. No ordenamento jurídico atual, a aplicação do critério
da essencialidade depende da atividade do aplicador que, ao interpretar o contrato, pode conceder
67

uma maior proteção à uma das partes contratantes, quando o bem objeto do contrato for essencial.
Para o ordenamento futuro, espera-se do legislador que, revendo os institutos do contrato e da
classificação dos bens, conceda uma tutela especial ao contratante de bem essencial,
concretizando e compatibilizando, desta forma, alguns dos mais importantes preceitos
constitucionais: a tutela da pessoa humana, no âmbito da solidariedade social, sem descuidar da
autonomia privada, força motriz da economia.
68

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS

ALBUQUERQUE, Ronaldo Gatti de. Construção e codificação: a dinâmica atual do binômio. In:
MARTINS-COSTA, Judith (org.). A reconstrução do direito privado. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2002, p.72-86.

ALVES, José Carlos Moreira. Direito romano. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001. 510 p.

ANDRADE, Darcy Bessone de Oliveira. Do contrato: teoria geral. Rio de Janeiro: Forense, 1987.
342 p.

AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Caracterização jurídica da dignidade da pessoa humana.


Revista trimestral de direito civil. Rio de Janeiro, v. 9, a. 2, p. 03-24, jan./mar. 2002.

BALEEIRO, Aliomar. Direito tributário brasileiro. 10. ed. rev. e atual. por Flávio Bauer
Novelli. Rio de Janeiro: Forense, 1991. 667 p.

BARROSO, Luis Roberto. O Direito Constitucional e a efetividade de suas normas: limites e


possibilidades da Constituição brasileira. 7. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. 369 p.

BITTAR, Carlos Alberto. O dirigismo econômico e o direito contratual. Revista de informação


legislativa. Brasília, a. 17, n. 66, p. 240-255, abr./jun. 1980.

BORBA, Cláudio. Direito tributário: teoria e 1000 questões. 17. ed. Rio de Janeiro: Ímpetus,
2004. 866 p.

CALIXTO, Marcelo Junqueira. O princípio da vulnerabilidade do consumidor. In: MORAES,


Maria Celina Bodin de (coord.). Princípios do direito civil contemporâneo. Rio de Janeiro:
Renovar, 2006, p. 315-356.

CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. 17. ed. São Paulo:
Malheiros, 2002. 913 p.

CASTRO, Carlos Alberto Pereira de; LAZZARI, João Batista. Manual de direito
previdenciário. 11. ed. Florianópolis: Conceito Editorial, 2009. 912 p.

COUTO E SILVA, Clóvis do. O princípio da boa-fé no direito brasileiro e português. In:
COUTO E SILVA, Clóvis do et al. Estudo de direito civil brasileiro e português. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1980, p. 43-72.

DELGADO, Maurício Godinho. Curso de direito do trabalho. 10. ed. São Paulo: LTr, 2011.
1403 p.
69

DIDIER JR., Fredie. Cláusulas gerais processuais. Revista do Tribunal Regional do Trabalho
da 14 ª região, Porto Velho, v.6, n. 1, p. 15-34, jan./jun. 2010. Disponível em: www.trt14.jus.br.
Acesso em 13 out. 2010.

DIDIER JR., Fredie et al. Curso de direito processual civil, v. 5. Salvador: Editora Jus
PODIVM, 2009. 784 p.

FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo. 2. ed. Rio de Janeiro:
Renovar, 2006. 326 p.

FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. 365 p.

FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação.
5. ed. São Paulo: Atlas, 2007. 385 p.

GOMES, Orlando. Contratos. 7.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1979. 635 p.

IBRAHIM, Fábio Zambitte. Curso de direito previdenciário. 4. ed. Rio de Janeiro: Impetus,
2004. 722 p.

LISBOA, Roberto Senise. Manual de direito civil, v. 3. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. 477 p.

LOPES, José Reinaldo de Lima. O direito na história: lições introdutórias. 3. ed. São Paulo:
Atlas, 2008. 452 p.

LÔBO, Paulo Luiz Netto. Constitucionalização do direito civil. Revista de informação


legislativa, Brasília, a. 36, n. 141, p. 99-109, jan./mar. 1999.

LÔBO, Paulo Luiz Netto. Princípios sociais dos contratos no Código de Defesa do Consumidor e
no Novo Código Civil. Revista de direito do consumidor, São Paulo, a. 11, n. 42, p. 187-195,
abr./jun. 2002.

LOPES, Mauro Luís Rocha. Direito tributário brasileiro. Rio de Janeiro: Ímpetus, 2009. 502 p.

LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de direito civil: fontes das obrigações: contratos, v. III.
7. ed. rev. por José Serpa de Santa Maria. Rio de Janeiro: Freitas Bastos: 2001. 430 p.

MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime


das relações contratuais. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998. 668 p.

MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo


obrigacional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. 544 p.

MORAES, Maria Celina Bodin de. A Caminho de um direito civil constitucional. Disponível
em: http://www.fae2009.kit.net/CaminhosDireitoCivilConstitucional_-
_Maria_Celina_B_Moraes.pdf. Acesso em 08 mar. 2011.
70

MATTIETTO, Leonardo de Andrade. O papel da vontade nas situações jurídicas patrimoniais: o


negócio jurídico e o novo Código Civil. In: RAMOS, Carmen Lúcia Silveira et al. Diálogos
sobre direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 23-41.

NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Iniciação ao direito do trabalho. 29.ed. São Paulo: LTr,
2003. 716 p.

NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar,
2006. 544 p.

PASQUALOTTO, Adalberto. Conceitos fundamentais do Código de Defesa do Consumidor.


Revista dos Tribunais, São Paulo, a. 80, v. 666, p. 48-53, abr. 1991.

PEREIRA, Alexandre Pimenta Batista. Bens acessórios: acessões, partes integrante e pertenças.
Curitiba: Juruá, 2010. 248 p.

PEREIRA, Alexandre Pimenta Batista. Negócio jurídico inoficioso: contributo à teoria da


redução do negócio jurídico. São Paulo: Pillares, 2010. 94 p.

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, v.1. 22. ed. rev. e atual. por Maria
Celina Bodin de Moraes. Rio de Janeiro: Forense, 2008. 718 p.

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. v. 3. 11. ed. rev. e atual. por Regis
Fichtner. Rio de Janeiro: Forense, 2004. 604 p.

PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. Tradução de Maria Cristina de Cicco. 2. ed. Rio
de Janeiro: Renovar, 2002. 359 p.

SARMENTO, Daniel. O neoconstitucionalismo no Brasil: riscos e possibilidades. In:


SARMENTO, Daniel (coord.). Filosofia e teoria constitucional contemporânea. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 113-146.

SCHREIBER, Anderson. O direito à moradia como fundamento para a impenhorabilidade do


imóvel residencial do devedor solteiro. In: RAMOS, Carmen Lúcia Silveira et al. Diálogos sobre
direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 77-98.

SCHREIBER, Anderson. O princípio da boa-fé objetiva no direito de família. In: MORAES,


Maria Celina Bodin de (coord.). Princípios do direito civil contemporâneo. Rio de Janeiro:
Renovar, 2006, p. 437-458.

SUSSEKIND, Arnaldo. Direito constitucional do trabalho. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar,


2001. 518 p.

TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil. São Paulo: Método, 2011. 1384 p.

TEPEDINO, Gustavo. Do sujeito de direito à pessoa humana (editorial). Revista trimestral de


direito civil, Rio de Janeiro, a. 1,v. 2, p. V-VI, abr./jun. 2000.
71

TEPEDINO, Gustavo. O novo Código Civil: duro golpe na recente experiência constitucional
brasileira (editorial). Revista trimestral de direito civil, Rio de Janeiro, a. 2, v. 7, p. III-V,
jul./set. 2001.

THEODORO JÚNIOR, Humberto. Direito do consumidor: a busca de um ponto de equilíbrio


entre as garantias do Código de Defesa do Consumidor e os princípios gerais do direito civil e do
direito processual civil. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009. 526 p.
72

LEGISLAÇÃO

Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988. Publicada no


D.O.U de 5 de outubro de 1988.

Brasil. Lei n. 3.071, de 1º de janeiro de 1916. Publicada no D.O.U de 5 de janeiro de 1916.

Brasil. Lei n.10.406, de 10 de janeiro de 2002. Publicada no D.O.U de 11 de janeiro de 2002.

Brasil. Lei n. 5.869, de 11 de janeiro de 1973. Publicada no D.O.U de 17 de janeiro de 1973.

Brasil. Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá


outras providências. Publicada no D.O.U de 12 de setembro de 1990.

Brasil. Lei. n. 5.172, de 25 de outubro de 1966. Dispõe sobre o Sistema Tributário Nacional e
institui normas gerais de direito tributário aplicáveis à União, Estados e Municípios. Publicada no
D.O.U de 27 de outubro de 1966 e retificada no D.O.U de 31 de outubro de 1966.

Brasil. Lei n. 8.009, de 29 de março de 1990. Dispõe sobre a impenhorabilidade do bem de


família. Publicada no D.O.U de 30 de março de 1990.

Brasil. Lei n. 8.742, de 7 de dezembro de 1993. Dispõe sobre a organização da Assistência Social
e dá outras providências. Publicada no D.O.U de 8 de dezembro de 1993.

Brasil. Lei n. 10.741, de 1º de outubro de 2003. Dispõe sobre o Estatuto do Idoso e dá outras
providências. Publicada no D.O.U de 3 de outubro de 2003.

Brasil. Decreto-lei n. 5.452, de 1º de maio de 1943. Aprova a Consolidação das Leis do Trabalho.
Publicada no D.O.U de 9 de agosto de 1943.

Você também pode gostar