Modernidade Periferica Brasileira Jorge Amado

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

FACULDADE DE CIÊNCIAS ECONÔMICAS


CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISAS EM ADMINISTRAÇÃO

MODERNIDADE PERIFÉRICA BRASILEIRA:


ENTRE A LITERATURA, A HISTÓRIA E OS ESTUDOS ORGANIZACIONAIS

Fabiane Louise Bitencourt Pinto

Belo Horizonte
2020
2

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS


FACULDADE DE CIÊNCIAS ECONÔMICAS
CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISAS EM ADMINISTRAÇÃO

MODERNIDADE PERIFÉRICA BRASILEIRA:


ENTRE A LITERATURA, A HISTÓRIA E OS ESTUDOS ORGANIZACIONAIS

Fabiane Louise Bitencourt Pinto

Tese apresentada ao Curso de Doutorado em Administração


do Centro de Pós-Graduação e Pesquisas em Administração
da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade
Federal de Minas Gerais como Requisito Parcial à Obtenção
do Título de Doutor em Administração.
Orientador: Prof. Dr. Luiz Alex Silva Saraiva.

Linha de pesquisa: Estudos Organizacionais e Sociedade

Belo Horizonte
2020
3

Ficha catalográfica

Pinto, Fabiane Louise Bitencourt.


P659m Modernidade periférica brasileira [manuscrito]: entre a
2020 literatura, a história e os estudos organizacionais. / Fabiane Louise
Bitencourt Pinto. – 2020.
262 f.

Orientador: Luiz Alex Silva Saraiva.


Tese (doutorado) – Universidade Federal de Minas Gerais,
Centro de Pós-Graduação e Pesquisas em Administração.
Inclui bibliografia (f. 243-262).

1. Modernidade. – Teses. 2. Desenvolvimento organizacional


– Teses. 3. Literatura brasileira – Teses. 4. Amado, Jorge, 1912-
2001 I. Saraiva, Luiz Alex Silva. II. Universidade Federal de
Minas Gerais. Centro de Pós-Graduação e Pesquisas em
Administração. III. Título.

CDD: 658
Elaborada por Rosilene Santos CRB6-2527
Biblioteca da FACE/UFMG. – RSS 46/2021
11/12/2020 SEI/UFMG - 0468307 - Ata

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS


FACULDADE DE CIÊNCIAS ECONÔMICAS
CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISAS EM ADMINISTRAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ADMINISTRAÇÃO

ATA DE DEFESA DE TESE

ATA DA DEFESA DE TESE DE DOUTORADO EM ADMINISTRAÇÃO da Senhora FABIANE LOUISE BITENCOURT PINTO, REGISTRO Nº
258/2020. No dia 09 de dezembro de 2020, às 09:00 horas, reuniu-se remotamente, por videoconferência, a Comissão Examinadora
de Tese, indicada pelo Colegiado do Centro de Pós-Graduação e Pesquisas em Administração do CEPEAD, em 23 de novembro de
2020, para julgar o trabalho final in tulado "Modernidade periférica brasileira: entre a literatura, a história e os estudos
organizacionais", requisito para a obtenção do Grau de Doutora em Administração, linha de pesquisa: Estudos Organizacionais e
Sociedade. Abrindo a sessão, o Senhor Presidente da Comissão, Prof. Dr. Luiz Alex Silva Saraiva, após dar conhecimento aos presentes
o teor das Normas Regulamentares do Trabalho Final, passou a palavra à candidata para apresentação de seu trabalho. Seguiu-se a
arguição pelos examinadores com a respec va defesa da candidata. Logo após, a Comissão se reuniu sem a presença da candidata,
para julgamento e expedição do seguinte resultado final:
(X) APROVAÇÃO
( ) REPROVAÇÃO
O resultado final foi comunicado publicamente à candidata pelo Senhor Presidente da Comissão. Nada mais havendo a tratar, o
Senhor Presidente encerrou a reunião e lavrou a presente ATA, que será assinada por todos os membros par cipantes da Comissão
Examinadora. Belo Horizonte, 09 de dezembro de 2020.

Prof. Dr. Luiz Alex Silva Saraiva


ORIENTADOR (CEPEAD/UFMG)

Profª. Drª. Mônica de Aguiar Mac-Allister da Silva


NPGA/UFBA

Profª. Drª. Adriane Aparecida Vidal Costa


PPGH/UFMG

Profª. Drª. Eliana Mara Pellerano Kuster


IFES

Profª. Drª. Maria Zilda Ferreira Cury


POSLIT/UFMG

Documento assinado eletronicamente por Luiz Alex Silva Saraiva, Presidente de comissão, em 10/12/2020, às 12:41, conforme
horário oficial de Brasília, com fundamento no art. 6º, § 1º, do Decreto nº 8.539, de 8 de outubro de 2015.

Documento assinado eletronicamente por Monica de Aguiar Mac Allister da Silva, Usuário Externo, em 10/12/2020, às 14:20,
conforme horário oficial de Brasília, com fundamento no art. 6º, § 1º, do Decreto nº 8.539, de 8 de outubro de 2015.

Documento assinado eletronicamente por Adriane Aparecida Vidal Costa, Professora do Magistério Superior, em 10/12/2020, às
14:46, conforme horário oficial de Brasília, com fundamento no art. 6º, § 1º, do Decreto nº 8.539, de 8 de outubro de 2015.

Documento assinado eletronicamente por Eliana Mara Pellerano Kuster, Usuário Externo, em 10/12/2020, às 15:15, conforme
horário oficial de Brasília, com fundamento no art. 6º, § 1º, do Decreto nº 8.539, de 8 de outubro de 2015.

Documento assinado eletronicamente por Maria Zilda Ferreira Cury, Professora do Magistério Superior, em 11/12/2020, às 10:11,

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conforme horário oficial de Brasília, com fundamento no art. 6º, § 1º, do Decreto nº 8.539, de 8 de outubro de 2015.

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Referência: Processo nº 23072.242536/2020-12 SEI nº 0468307

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Para o Prof. Pereira, por nos mostrar a


importância da história local e dos saberes
amadianos.

Para Fátima e Vap, pelo amor e dedicação sem


medidas. Por tudo, enfim.
7

AGRADECIMENTOS

Ao meu orientador, Prof. Luiz Alex Silva Saraiva, pelo acolhimento, parceria, estímulo,
ensinamentos e trocas, que ficam no coração, para além das formalidades da academia.

A Profa. Mônica Mac-Allister, pelas orientações antes e durante o curso no CEPEAD.

Aos colegas de turma do CEPEAD, especialmente Alice Cardoso e Clara Oliveira, pelas
vivências e amizade, que seguem comigo.

Aos membros do Núcleo de Estudos Organizacionais e Sociedade da Universidade Federal


Minas Gerais, pelas construções, ideias e afetos compartilhados, em especial, a Elisangela
Furtado e Fabiana Domingues.

A Érika Lage, pela solicitude em todos os momentos.

A toda equipe SMA/DAM/SEPLAN, especialmente Lúcia Carvalho, Maria Presídio, Jamille


Lima, Alexandre Junqueira e Lenaldo Azevedo, pela compreensão e apoio.

A Rogério Portela, pelo acolhimento e suporte nas muitas idas e vindas de Belo Horizonte.

A Fellipe Faria com a amizade que foi se edificando pelos caminhos de Bêagá e das Gerais.

A Laerson Lopes, pela parceria na construção da Azienda com seus discos antigos e livros
(ainda) não lidos; pela escuta ativa nos tempos do projeto, mas não apenas.

A Simone Carvalho, pelo companheirismo sereno de sempre.

A Edileusa Bezerra, Tatiana Doin, Luciana Veras, Pollyana Borges, Juliana Souza e Elcy Reis,
pela sororidade e doçura, na miudeza dos dias.

Aos amigos e familiares pelo apoio, afeto e torcida.

Ao meu irmão Fabrício, pelos auxílios todos, inclusive os financeiros.

A Fabrício e Juliana, por cuidarem de quem eu amo na minha ausência.

A Fátima e Valdir, pelos ensinamentos sobre a vida, pelas mãos dadas incondicionalmente e
pelo amor genuíno.

A todos os “nós” que construíram comigo essa caminhada.

A Universidade pública, que me trouxe até aqui.

A Deus, pelas oportunidades em superar dificuldades e realizar sonhos.


8

RESUMO

A construção de agendas emergentes de pesquisa em Estudos Organizacionais prima por


“conversações” que permitam um conhecimento organizacional produzido a partir de diversos
locais, leitores e intérpretes. Diante de novos contextos sociais e vozes alternativas, esse campo
amplia o debate sobre o que seria a natureza da organização e as possibilidades de abordagens
dos seus fenômenos plurais, dando margem, a uma série de discursos dissidentes e novas
contribuições ao campo. Encontramos na Literatura uma valiosa possibilidade de diferentes
conversações na elaboração de conhecimento válido nos Estudos Organizacionais. Nosso
estudo se debruça sobre os modos de vida socialmente organizados e as relações socialmente
estabelecidas que emergem do discurso literário de Jorge Amado sobre a Ilhéus de início do
Século XX. O lócus de enunciação de Amado nos permite “aprender com” e sobre a diferença
colonial manifestada no tempo físico e no tempo imaginário daquelas histórias locais de Ilhéus.
Tomamos por fonte de pesquisa, dois títulos de sua literatura engajada sobre o ciclo do cacau
na Bahia: Terras do Sem Fim (1943) e São Jorge dos Ilhéus (1944), definidos pelo próprio
Jorge Amado enquanto literatura proletária. Apresentam-se, portanto, uma possibilidade de
tradução sensível do real, com a centralidade de relações de dependência e assimetria entre
coronéis e subalternos trabalhadores do cacau. Exploramos o contexto de elaboração do
discurso amadiano, o contexto de ambiência das suas narrativas e buscamos não perder de vista
o seu discurso que é literário, mas sobretudo sócio-histórico numa percepção descolonial de
escrita. Entendemos que a literatura configura um espaço privilegiado para refletir sobre o
sistema mundo moderno/colonial, suas peculiaridades, contradições e implicações nas histórias
e relações locais. Para nós, a relação entre as abordagens descoloniais e a Análise Crítica do
Discurso se apresenta profícua na análise e recontextualização de nossas fontes de pesquisa,
visto que a perspectiva de ambas tangencia as relações de poder enquanto disputas refletidas de
modo declarado ou sutil. A ACD se alinha nesta pesquisa aos estudos de descolonialidade, os
quais se interessam, numa perspectiva subalterna, pela promoção de condições dialógicas para
uma enunciação fraturada. Interessa-nos descobrir de que forma a modernidade se apresenta
em contextos periféricos, e o discurso de Jorge Amado emerge, assim, como possibilidade de
conhecimento que ressignifica e altera outras formas dominantes de conhecimento sobre aquele
mesmo espaço-tempo e nos revela o lado obscuro da Modernidade na Rainha do Sul: a
colonialidade nas terras do sem fim.

Palavras-chave: Modernidade. Cidade. América Latina. Sul da Bahia. Jorge Amado. Estudos
organizacionais. Literatura.
9

ABSTRACT

The construction of research agendas in Organizational Studies excels in "conversations" that


allow an organizational knowledge produced from various locations, readers and interpreters.
Faced with new social contexts and alternative voices, this field broadens the debate on what
would be the nature of the organization and the possibilities of approaching its plural
phenomena, giving rise to a series of dissenting discourses and new contributions to the field.
We find in Literature a valuable possibility of different conversations in the elaboration of valid
knowledge in Organizational Studies. Our study focuses on socially organized ways of life and
socially established relationships that emerge from Jorge Amado's literary discourse on Ilhéus
at the beginning of the 20th Century. Amado's enunciation locus allows us to "learn from" and
about the colonial difference manifested in the physical time and imaginary time of those local
stories of Ilhéus. We take as a source of research two titles of his engaged literature on the cocoa
cycle in Bahia: Terras do Sem Fim (1943) and São Jorge dos Ilhéus (1944), defined by Jorge
Amado himself as proletarian literature. There is, therefore, a possibility of a sensitive
translation of the real, with the centrality of relations of dependence and asymmetry between
colonels and subaltern cocoa workers. We explore the context of the elaboration of Amadian
discourse, the context of the ambience of his narratives, and we try not to lose sight of his
discourse that is literary, but above all socio-historical in a decolonial perception of writing.
We understand that literature configures a privileged space to reflect on the modern/colonial
world system, its peculiarities, contradictions and implications in local stories and relationships.
For us, the relationship between decolonial approaches and Critical Discourse Analysis is
fruitful in the analysis and recontextualization of our research sources, since the perspective of
both tangents power relations as disputes reflected in a declared or subtle way. The ACD aligns
itself in this research to the studies of decoloniality, which are interested, in a subaltern
perspective, in the promotion of dialogic conditions for a fractured enunciation. We are
interested in discovering how modernity presents itself in peripheral contexts, and Jorge
Amado's discourse thus emerges as a possibility of knowledge that refreshes and changes other
dominant forms of knowledge about that same space-time and reveals the dark side of us of
Modernity in the Queen of the South: coloniality in the lands of the endless.

Keywords: Modernity. City. Latin America. South of Bahia. Jorge Amado. Organizational
studies. Literature.
10

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 12

CAPITULO 1. PONTOS DE ACESSO: ESTUDOS ORGANIZACIONAIS, 19


LITERATURA E CIDADE LATINA

1.1 Questões norteadoras e um percurso possível 25

CAPITULO 2. A GEOPOLÍTICA DO CONHECIMENTO E AS 37


DIFERENÇAS COLONIAIS EPISTÊMICAS

2.1 O pensamento social brasileiro e as epistemologias do norte – cenas de 44


um breve contexto

2.1.1 Convênio da Universidade de Columbia com o Estado da Bahia 47


– a diferença colonial e a região cacaueira

2.2 Fazendo o caminho de volta: as epistemologias do Sul e o saber 52


literário de um poeta antropólogo

2.3 Literatura amadiana – memória, imaginário e as histórias locais 56

2.4 A cidade em Jorge Amado, uma cidade periférica 61

CAPÍTULO 3. CIDADES LATINAS POR ENTRE IDEIAS, LETRAS E 65


FORMAS

3.1 Colonialismo e a ideia de cidade na América Latina, o planejado e o 71


vivenciado

3.2 Brasil, modernidade ou morte? Republicanar-se, urbanizar-se: eis a 75


questão

3.3 Ilhéus - De capitania à Rainha do sul: cidade patrícia, mestiça e 87


burguesa?

3.3.1 De todas as cidades, uma cidade: Ilhéus, os frutos de ouro e o 93


desejo tropical de ser Europa
11

CAPÍTULO 4. TERRAS DO SEM FIM E SÃO JORGE DOS ILHÉUS SOB A 104
ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO

4.1 Espaço original e o desejo de posse: violência e territorialização no 107


novíssimo mundo sul-baiano

4. 2 Das riquezas, das venturas e falácias – rumo ao sul, caminhos se 140


cruzam e nem tudo que reluz é ouro

4. 3 Organização da vida urbana – Ilhéus, o cacau e o ideário de 149


progresso

4.4 Coronelismo do cacau e suas histórias 167

4.5 Caminhos pro mundo e as relações de poder: por entre coronéis, 183
exportadores, tradicionalismo, modernidade

4. 6 Organização social do trabalho subalterno (a culpa é do visgo do 206


cacau?)

CONSIDERAÇÕES FINAIS. O LADO OBSCURO DA MODERNIDADE NA 229


RAINHA DO SUL: A COLONIALIDADE NAS TERRAS DO SEM FIM

REFERÊNCIAS 243
12

INTRODUÇÃO

A escrita tem seus limites representacionais; e toda produção cultural tem um limite,
além do qual não pode ser desmaterializada, transladada, sob o risco de se pulverizar.
A estética desterritorializada, universalizada, sem corpo, do escrito e do lido, embora
tenha seu ponto forte da difusão da informação e no estímulo da imaginação, encontra
aqui seus limites estéticos, sensuais e, naturalmente, políticos.

Gustavo Remedi
13

A construção de agendas emergentes de pesquisa em Estudos organizacionais (EOS) a partir


das margens se faz necessária quando reconhecemos a existência da colonialidade epistêmica,
presente em nosso fazer acadêmico. Então, ao passo que os EOS são definidos por
“conversações”, sugere-se que o conhecimento organizacional produzido emana justamente de
locais, leitores e intérpretes, diversos. Essa característica central, entretanto, oferta aos EOS
uma identidade precária, sujeita a negociações (RODRIGUES; CARRIERI, 2001). Assim,
frente a novos contextos sociais e vozes alternativas, haverá de se incrementar o debate sobre o
que seria a natureza da organização, a compreensão dos Estudos organizacionais enquanto um
campo de pesquisa historicamente contestado e as possibilidades de abordagens dos seus
fenômenos plurais, dando margem, portanto, a uma série de discursos dissidentes e novas
contribuições ao campo (REED, 2010).

Inquietados com as compreensões interpretativas vindas de autores como Walter Mignolo,


Aníbal Quijano e Enrique Dussel; que nos convidam a pensar as particularidades das ciências
sociais em seus diferentes contextos de origem, e não numa perspectiva cêntrica, inadequada
para o Brasil com suas circunstâncias periféricas; somos levados a questionarmos sobre a
colonialidade que se manifesta nas relações sociopolíticas e econômicas, mas também na
estruturação do nosso conhecimento numa perspectiva de subalternidade epistêmica. Isso
acontece, sobretudo, nos EOS, área a qual ainda apresenta uma preponderância do
conhecimento anglo-saxão como base dos estudos brasileiros (RODRIGUES; CARRIERI,
2001; SARAIVA; CARRIERI, 2009; WANDERLEY, 2015),

De modo diferenciado, entretanto, encontram-se os estudos que adotam Cidades nos EOS como
ponto de partida para análises, com perspectivas e recortes críticos dos mais diversos, conforme
nos mostra o levantamento realizado por Saraiva (2019). As cidades especialmente na América
Latina guardam inúmeras singularidades e sequer podem ser comparadas entre si como
definidoras umas das outras (GORELIK, 2015), pois, em cada estrutura urbana, a vida
socialmente organizada se promoveu com bases, propósitos e dinâmicas, distintas. Nas cidades,
encontramos a centralidade de seus agentes histórico-sociais, os quais se desdobram em ações
e formas próprias de sociabilidade (LEFEBVRE, 2001).

Mignolo (1992), quando ressalta a produção vinda de estudiosos “literários”, que a partir da
produção de “testemunhos” — a exemplo do inspirador trabalho de Ángel Rama em A cidades
das Letras — , nos revela detalhes sobre a América Latina e suas cidades; nos reforça o interesse
14

pela constituição de uma pesquisa interdiciplinar que permita contribuições inéditas da


Literatura para os EOS no Brasil. Mas, ao mesmo tempo que a adoção da literatura como fonte
de pesquisa nos alegra, o seu uso, pela dificuldade na eliminação de fronteiras epistemicas, nos
traz inseguranças por não se saber exatamente como lidar com seu corpus (MIGNOLO, 1993).

Encontramos, portanto, na Literatura um desafio e uma possibilidade de contribuição


significativa para as conversações na elaboração de conhecimento válido nos EOS. Assim,
conduzidos pelo farol dos estudos organizacionais, nosso estudo se debruça sobre os modos de
vida e as relações socialmente estabelecidas — seja sob formas organizadas e perceptíveis, seja
através de sociabilidades veladas e institucionalmente ignoradas ou mesmo naturalizadas —,
que emergem do discurso literário de Jorge Amado sobre a Ilhéus de início do Século XX.

Os eventos e fenômenos expressos no discurso Amadiano retratam contradições que moveram


toda uma sociedade, na qual o campo protagonizava as vivências, e a cidade florescia como um
prolongamento do campo. Aquela Ilhéus de “fin de siècle” nos apresenta suas singularidades
construídas a partir de uma fronteira tênue entre rural e urbano; nos apresenta suas concepções,
valores e práticas sociais estabelecidas no sul da Bahia junto com a organização produtiva da
lavoura de cacau.

Jorge Amado, que desde as primeiras letras esteve imerso no território discursivo fortemente
ligado à identidade nacional (DUARTE, 2002), dessacralizou em seu discurso as relações de
poder patriarcais da pujante Rainha do sul, fazendo emergir o “outro” em suas narrativas. A
escrita amadiana, baseada em memórias e imaginário, aqui nos apresenta uma possibilidade de
tradução sensível do real, com a centralidade de relações de dependência e assimetria entre
coronéis e subalternos trabalhadores do cacau (SOUSA, 2001).

Nos romances do ciclo do cacau, Jorge Amado se adensa no movimento migratório, que se
sucedeu no sul da Bahia diante daquele “sonho dourado da zona próspera do cacau” (LUCAS,
1997, p. 105). Ilhéus, portanto, compreendeu um espaço social de confluência das relações de
poder que se estruturam em torno da cultura do cacau e palco da urbanização que se acelera no
início do Século XX e apresenta, no discurso amadiano em Terras do Sem Fim e São Jorge dos
Ilhéus, elementos que nos permitem conhecer e reconhecer as lógicas colonialistas naquele
processo de urbanização.
15

Ilhéus e a região sul da Bahia com sua sociedade, política, cultura, economia são tratadas em
variados estudos sob diversas perspectivas, e, entre eles, relembramos alguns: Santos (1957),
que observa a zona do cacau na ótica da geografia política e afirma que a região mais nova na
escala de produção nacional era também a menos conhecida; Pang (1979), que situa o
coronelismo diante do sistema de domínio político oligárquico na Bahia na Primeira República.
Com destaque, o estudo lembra que a oligarquia regional brasileira não é monolítica e que a
organização oligárquica é versátil e se manifestou de modos diversos nas mais variadas regiões
do país, dialogando, assim, com o coronelismo na zona cacaueira; Falcón (1983; 2010), que se
debruça sobre as origens de classes das elites políticas na sociedade regional do cacau, com
suas relações e vínculos entre o poder político e econômico extralocal; no segundo estudo,
ganham destaque as relações sociopolíticas vinculadas ao mandonismo dos coronéis; Pontes
(2018), que discute o binômio porto-ferrovia no processo de escoamento da produção do cacau,
com a identificação das contradições, permanências e transformações ligadas ao processo de
desenvolvimento econômico da emergente sociedade sul-baiana; Guerreiro de Freitas (1979),
que aponta para a inegável ação modificadora da cultura do cacau, sobretudo para o interior da
região produtora, mas não somente, com influências para todo o estado e efeito social e político
para a história da Bahia como um todo; Guerreito de Freitas e Paraíso (2001), que mergulham
em detalhes da historiografia da região, tendo Ilhéus como centro desse movimento e das
análises, desde sua fundação como capitania, passando pela história social da pujante Rainha
do Sul, até os anos iniciais do debacle da cultura do cacau; Barbosa (2013), trazendo diversos
temas da cultura e sociedade, organizados a partir de notícias históricas de Ilhéus; Carvalho
(2015), que analisa a relação entre os trabalhadores, o associativismo e a política no sul da
Bahia – Ilhéus e Itabuna, entre os anos de 1918 e 1934 – e nos afirma que, em busca de
reconhecimento social e interlocução com os poderes públicos, trabalhadores das mais diversas
categorias buscaram se mostrar, para além de cidadãos honestos e laboriosos, distinguir-se
daquela população pobre e tida de modo pejorativo pelas autoridades, enquanto classes
perigosas. O estudo investigou, portanto, a organização daqueles trabalhadores que atuaram nas
franjas de uma República oligárquica, coronelista e excludente, buscando defender seus
interesses e direitos de classe; Dias e Carrara (2016) situam, a partir da história social nos
diversos textos reunidos, a capitania e comarca de Ilhéus antes da emergência da cultura do
cacau; com destaque para a presença da escravização de negros na região. Já em Mahony
(2007), encontramos uma reflexão sobre o desenvolvimento da tradição narrativa, baseada no
pioneirismo heroico dos desbravadores no sul da Bahia, e , com o passar do tempo, tal discurso
se transformou em memória coletiva e em história, o que a autora chama de paradigma
16

dominante da história regional, excluindo, por isso, outras possibilidades de saberes sobre a
mesma região.

Entre tantos estudos sobre o sul baiano, aquele que mais se assemelha à nossa proposta de
pesquisa e também nos serve de inspiração é o texto de Sousa (2001), que se colocou a entender
a saga resultante do desbravamento daquelas terras para o plantio do cacau, com reflexões sobre
a teia social, conflitos e demais entendimentos que se formaram naquele espaço. Para tanto,
recorreu à literatura amadiana como fonte de pesquisa e à História Social como esteio de suas
análises.

Nossa opção por Terras do Sem fim (1943) e São Jorge dos Ilhéus (1944), portanto, se baseia
na certeza de que, reunidos, nos apresentam a essência dos temas, aprofundam nuances daquela
sociedade, economia, política, cultura; e deles emergem personagens centrais à escrita
amadiana ligadas a toda produção do que Araújo (2003) trata por escrita do ciclo do cacau.

Os demais títulos do ciclo do cacau foram preteridos aqui por razões diversas: Cacau (1933)
carrega os primeiros momentos do jovem Amado e de sua escrita, nele emerge uma narrativa
caprichada em tons panfletários de seus tempos de juventude comunista; definido pelo próprio
autor na fase madura, como uma espécie de caderno de anotações da juventude. Já Gabriela,
Cravo e Canela (1958) representa o oposto do Amado nas escritas de juventude — pois fora
construído quando do desencantamento e afastamento do Partido Comunista, e, assim, Amado
revela traços mais fluidos nas narrativas com a presença de novos temas e aspectos da vida
cotidiana, para além da luta de classes.

Embora Gabriela pudesse formar uma tríade perfeita com os nossos dois títulos selecionados,
teríamos dificuldades metodológicas nesta articulação, uma vez que se passam quase 15 anos
por entre a escrita dos três livros — o que nos remete a tempo histórico e momento do autor
bastante diversos e, por ora, inexequíveis. Em Tocaia Grande: a face obscura (1984),
encontramos simultaneamente uma espécie de ramake e blend dos demais títulos. Já a obra A
descoberta da América pelos turcos (1992) foi considerada pouco representativa do ponto de
vista do conjunto das teias socioeconômicas daquela estrutura, uma vez que a narrativa explora
a ótica e atuações de árabes na região.
17

Entendemos que o discurso de Jorge Amado, emerge como possibilidade de conhecimento que
ressignifica e altera outras formas dominantes de conhecimento sobre aquele mesmo espaço-
tempo. Adotamos o discurso de Amado, pois acreditamos que ele parte de outras racionalidades,
não eurocêntricas ou não totalmente eurocêntricas; uma vez que, ao emergir subjetividades
subalternas em suas narrativas, permite-nos pensar a partir dessas novas formas e lugares, de
epistemologias de fronteira (MIGNOLO, 2020). O lócus de enunciação de Amado nos permite
“aprender com” sobre a diferença colonial manifestada no tempo físico e no tempo imaginário
daquelas histórias locais de Ilhéus.

Aqui ensaiamos dizer que Jorge Amado nos apresenta uma convivência social que está para
muito além da ideia de democracia racial que imperava nos estudos sociológicos do tempo de
sua escrita, e que ele também se vinculava em alguma medida, mas falar de convivência, neste
caso, não significa negar o conflito. A convivência ordenada não significa necessariamente
inexistência de dissenso, desigualdade e tensões, e a Ilhéus de Amado é prova disto. A literatura,
portanto, configura um espaço privilegiado para refletir sobre o sistema mundo
moderno/colonial, suas peculiaridades, contradições e implicações nas histórias e relações
locais.

E assim, diante do exposto, o problema de pesquisa que mobiliza este estudo compreende: de
que forma a modernidade se apresenta em contextos periféricos?

Nesse sentido, assumo na tese, portanto, que Ilhéus estava “contemplada” na Modernidade
dentro do padrão colonial de poder a partir do que nos apresenta o discurso amadiano em Terras
do Sem Fim e São Jorge dos Ilhéus. O sistema mundo moderno/colonial permeava todas as
práticas sociais daquele espaço-tempo narrado por Jorge Amado. O caráter subalterno das
relações de trabalho no campo, na rica lavoura de cacau, traduz, de diversas formas, o quanto
Ilhéus estava implicada pelo colonialismo em suas variadas ordens do pensar e do viver,
revelando suas faces mais obscuras nas terras do cacau no sul da Bahia. A ideia de progresso e
de modernização, portanto, remetia a mais uma faceta empreendida pelo colonialismo.

Nossa tentativa de desvelar subalternidades como face oculta da modernidade apregoada em


nosso país e manifestada de modo diferenciado em cada região, exige-nos o esforço da
contextualização de categorias de análise que se apresentam de modo único no sul da Bahia.
18

Aqueles subalternizados na ordem vigente vivenciaram as permanências e as alternâncias das


operações de exclusão e desumanização ligadas à sempre presente diferença colonial.

Este texto que, por enquanto, apresenta apenas seus primeiros sinais e aspectos, está organizado
em cinco capítulos além desta introdução. No primeiro capítulo, apresentamos a problemática
da tese, os pilares sob os quais ela se articula, as lacunas que motivam a pesquisa, suas questões
norteadoras e o percurso metodológico possível para sua elaboração.

No segundo capítulo, fazemos alguns apontamentos teóricos, abordando a literatura como fonte
de pesquisa na perspectiva assumida na tese: a da geopolítica do conhecimento e das diferenças
epistêmicas. Em seguida, discutimos de modo breve as vinculações do pensamento social
brasileiro com as epistemologias do Norte, e, por fim, apresentamos o saber literário de Jorge
Amado com as características de seu discurso — que contribuem para o pensamento liminar.

No terceiro capítulo, destacamos compreensões que apresentam as cidades latinas como


valiosos e dinâmicos lócus de pesquisa para as ciências sociais, seja qual for o recorte e forma
de abordagem. Partindo de algumas reflexões sobre a construção das cidades na América Latina
com suas peculiaridades, assumimos essas cidades com o palco onde se consubstancia a ideia
de modernidade e as relações sociais que derivam do sistema mundo colonial/moderno. E de
todas as cidades da América Latina, destaca-se uma cidade, Ilhéus — na sequência nos
aproximamos daquela que é a cidade que ocupa o discurso de Jorge Amado de modo central na
sua produção literária sobre o cacau no sul da Bahia. Daí, apresentamos um breve panorama
sócio-histórico daquela que nasceu junto com a capitania de São Jorge dos Ilhéus e que, no
Século XX, ficou conhecida nacionalmente como Rainha do sul.

No quarto capítulo, são as categorias de análise que entram em cena: refletimos a partir de seis
categorias que emergiram de nossas fontes — Terras do Sem Fim e São Jorge dos Ilhéus; dentro
de uma abordagem histórico-discursiva e com o auxílio da Análise Crítica do Discurso (ACD),
sobre as nuances de modernidade/colonialidade na vida socialmente organizada em Ilhéus
quando da estruturação da lavoura do cacau. Este capítulo precede breves considerações finais,
que retomam, pontualmente, aspectos da análise e formulam algumas abstrações conclusivas.
Na sequência, são indicadas as nossas referências.
19

Capitulo 1
PONTOS DE ACESSO: ESTUDOS ORGANIZACIONAIS, LITERATURA E CIDADE
LATINA

O livro a meu ver tem data – na concepção, na escrita, no conteúdo, na criação artística
e humana – data que corresponde à personalidade do autor quando o elaborou e
escreveu. Delimita a experiencia adquirida até então, a posição perante o mundo e a
vida, a maneira de ver e de pensar, os ideais, a ideologia, as limitações, as aspirações,
designa um homem em tempo e circunstância que já não se repetirá.

Jorge Amado
20

A percepção da ainda atual preponderância do conhecimento anglo-saxão como base da


produção dos Estudos organizacionais (EOS) na América Latina e especialmente no Brasil
(RODRIGUES; CARRIERI, 2001; SARAIVA; CARRIERI, 2009; WANDERLEY, 2015),
provoca-nos a refletir quanto às deficiências contextuais dos EOS latinos diante da posição
hegemônica da produção científica de base europeia e norte-americana, pois há uma tendência
à assimilação acrítica por parte de nossos pesquisadores no que se refere exatamente ao
mainstream — numa autoimposição da colonialidade de acordo com Ibarra-Colado (2008,
2006, 2006a). Assim, diante da compreensão da colonialidade epistêmica enquanto imposição
de conhecimentos gerados a partir de outras realidades — que muitas vezes (na grande maioria
delas) não são similares às nossas e, ao contrário, acabam sobrepondo práticas e conhecimentos
locais com a subalternização destes, por fim (IBARRA-COLADO, 2006; MIGNOLO, 2020)
— faz-se urgente a construção de agendas emergentes de pesquisa em Estudos organizacionais
visando a um conhecimento capaz de pensar a alteridade de outras realidades com um ponto de
vista descentrado, a partir das margens.

Essa abertura do campo dos Estudos organizacionais se mostra mais que pertinente, uma vez
que deveria incorporar essas novas perspectivas e dinâmicas de pensamento como parte de seu
processo natural de construção teórica, justamente por este assumir como elemento definidor
do seu campo, a ideia de conversações. Conforme nos indicam Clegg e Hardy (2012), embora
não signifique tarefa fácil sua definição, os Estudos organizacionais compreendem a reunião de
uma série de conversações de pesquisadores que ajudam a constituir organizações por meio de
paradigmas, métodos e suposições; conversações progressistas, com vocábulos e termos
gramaticais emergentes e com variados graus de descontinuidades. Trata-se, na prática, de lugar
marcado por disputas teóricas, em que o conhecimento se constrói num terreno contestado
(REED, 2010), numa disputa sobre a verdade inerente a conceitos e esquemas referenciais
(RODRIGUES; CARRIERI, 2001).

Os Estudos organizacionais têm suas origens históricas num conjunto de trabalhos que ganhou
expressão na segunda metade do Século XIX, quando organizacionistas viam a sociedade
enquanto um arranjo de funções, enquanto uma construção utilitária e integrada de atividades
ou como um meio de potencializar de modo combinado, esforços humanos (REED, 2010).
Todavia, o progresso material e social prometido num continuum, de modo pragmático e
prescritivo pela organização racional da ordem coletiva e da liberdade individual, foi perdendo
sua força e coerência analítica.
21

As compreensões do campo se afastaram das generalizações científicas universais e dos


princípios de organização e gestão, os quais desempenharam papel dominante na formação
histórica e intelectual da teoria da organização; estas compreensões passaram a ser rejeitadas
dando espaço para concepções mais relativistas e políticas da produção e difusão do
conhecimento (REED, 2005).

As conversações na composição dos estudos organizacionais, portanto, que identificam de


modo central o seu processo de construção social do conhecimento, induzem-nos a concebê-los
como lugar de trocas, da participação e de pluralidade, carregando um significado de inclusão
em sua definição. Incluir novas perspectivas e novos participantes no centro dos debates e
compreender a vida socialmente organizada com as particularidades de cada local,
consequentemente, permitiria a superação das deficiências vindas do exagerado etnocentrismo
(RODRIGUES; CARRIERI, 2001).

Todas essas provocações ecoaram não somente quanto às escolhas teórico metodológicas desta
tese, mas, sobretudo, quanto à possibilidade de contribuição no processo de evolução dos
Estudos organizacionais como um campo independente, com conhecimentos baseados nas
realidades produzidas na América Latina e a partir dela, e que muitas vezes têm dificuldade de
emergir em virtude das imposições do conhecimento hegemônico do Norte (LANDER, 2005;
DUSSEL, 2005; CORONIL, 2005).

Desse modo, engajamo-nos na perspectiva descolonial de produção de saberes e encontramos


bases discursivas que guiarão compreensões centrais ao nosso estudo nos escritos do argentino
Walter Mignolo e em outros autores latino-americanos de variadas áreas das Ciências Sociais
como Aníbal Quijano, Enrique Dussel e demais, inseridos no projeto que discute a lógica da
colonialidade existente nas relações sociais, políticas e econômicas que se estabeleceram com
o início da colonização na América no Século XVI e se desdobram até os dias atuais, inclusive
manifestada enquanto colonialidade do conhecimento e colonialismo no pensamento. Esse
grupo de teóricos da descolonialidade, que se debruça sobre a investigação Modernidade-
Colonialidade, apresenta-nos uma valiosa perspectiva crítico-analítica que nos alerta, inclusive,
para a necessária transformação das formas de produção e de percepção do conhecimento
produzido. Os autores nos convidam ao chamado pensamento de fronteira, assumindo, assim,
aquilo que Mignolo (2008a) trata por desobediência epistêmica.
22

Como proposta central do pensamento descolonial, a ideia de desobediência epistêmica surge


diante da necessidade de descolonizar o conhecimento e do reconhecimento da face oculta da
modernidade — a colonialidade (MIGNOLO, 2008a; 2017). O encobrimento dessa face oculta
tem relação direta com a leitura eurocêntrica da modernidade, visto que a consolidação da
dominação colonial europeia se constituiu como um complexo cultural traduzido enquanto
racionalidade de modernidade europeia (QUIJANO, 1992, 2002). Ademais, estabeleceu-se
como um paradigma universal de conhecimento racional, não de modo acidental, mas associado
à emergência de relações sociais urbanas e capitalistas que não teriam, de outro modo, se
explicado à margem dos processos de colonialismo, sobretudo na América Latina: “eis
exatamente por que estou argumentando aqui a favor da opção descolonial como desobediência
epistêmica” (MIGNOLO, 2008a, p. 289).

Desse modo, relações de poder assimétricas influenciaram diretamente a posição de


subordinação de diversos grupos em determinados contextos sociais; marginalizados quanto às
suas próprias histórias, modos de se organizar, sua língua, arte e demais expressões do viver.
Mignolo (1992) ressalta que justamente estudiosos ditos “literários” e que produzem
“testemunhos” revelam-nos esses detalhes na América Latina, pois trazem para o primeiro
plano o que foi sempre relegado ou silenciado pela historiografia desta região, compreendendo
um rico campo de práticas semióticas em situações coloniais, mas, ao mesmo tempo, são textos
que, embora nos gerem alegria, pela eliminação de fronteiras, trazem-nos a angústia de não
saber exatamente como lidar com seu corpus (MIGNOLO, 1993). Assim, “‘Romance-
testemunho’, ‘literatura-testemunho’ são algumas das variadas expressões sintomáticas do
difuso das fronteiras entre a ficção, a história, a antropologia e a literatura (ao menos) nesse
conjunto ou família de textos” (MIGNOLO, 1993, p. 128).

No romance contemporâneo, houve uma espécie de imitação do discurso historiográfico e


antropológico que provém da oposição que tais discursos “científicos” tenham estruturado
sobre a história e a marginalização de comunidades; assim, o romancista chama pra si a tentativa
de corrigir tais imagens ou mesmo confrontar e enfrentar tais discursos (MIGNOLO, 1993). E
as Ciências Humanas, de um modo geral, tem estreitado fronteiras, o que tem permitido a
produção de discursos cada vez mais complexos, mais flexíveis e mais dúcteis, e se valem da
literatura, da poesia, para darem conta de testemunhos e vozes nem sempre valorizados nos
discursos científicos ocidentais.
23

Se, de acordo com Mignolo (2008a), encontramos na literatura uma contribuição significativa
para mudar as percepções quanto ao mundo colonial com suas vozes silenciadas, a Literatura
poderia participar também das conversações e da elaboração de conhecimento válido nos
estudos organizacionais? A resposta inicial é sim e não. Vejamos.

Lembramo-nos, de partida, de Alvesson & Karreman (2000), quando estes destacam que os
estudos do campo da linguagem estão se ampliando, pois cada vez mais são compreendidos
como acessíveis e importantes para a investigação empírica pela pesquisa social em geral e
também na pesquisa organizacional. O interesse pelos discursos enseja para esses autores,
entretanto, uma preocupação central no que diz respeito ao tipo de discurso ao qual os analistas
organizacionais devem prestar atenção e também quanta atenção se deve dedicar a tal discurso.

Na sequência, Mignolo (1993) nos lembra que se convencionou, por muito tempo, atrelar a
literatura ao sistema das Artes e a História, ao sistema científico, bem como pensar literatura e
ficção como sinônimos, percebendo essas nuanças, uma expressão consciente se forja e nossa
percepção se amplia. Afinal, “(...) a convenção de ficcionalidade não é, ao que parece, uma
condição necessária da literatura, ao passo que a adequação à convenção de veracidade, ao que
parece, é condição necessária para o discurso historiográfico” (MIGNOLO, 1993, p. 125). E o
emprego de uma linguagem que pudesse estar de acordo com convenções sejam de
ficcionalidade sejam de veracidade é uma discussão da ordem semântica e referencial, e não da
ordem cognitiva ou pragmática; e, para além, é uma questão de ordem ontológica (MIGNOLO,
1993). Ou seja, haveríamos de nos aproximar de uma política das semelhanças com a
mobilidade das fronteiras genéricas entre as distintas práticas especializadas da História, da
Literatura e das demais Ciências Sociais, promovendo, conversações. Porém, não se trata de
tarefa simples ou nem que seja fácil lidar de modo diferenciado com as preconizadas fronteiras
e configurações discursivas de cada campo.

Semelhanças e diferenças, assim, constroem-se a partir de pressupostos que guiam tanto a


produção discursiva quanto a análise desses discursos, daí que a História, a Literatura, a
Antropologia, a ficção não são entidades nem concretas e nem abstratas, mas sim
conhecimentos compartilhados e heterogêneos entre aqueles que produzem e interpretam
discursos; práticas discursivas próprias se assemelham ou diferenciam nessa perspectiva
(MIGNOLO, 1993). A ampliação dessas percepções do que estaria dentro e fora de um
conhecimento disciplinar ou mesmo cientifico, do que compreenderia centro ou periferia numa
24

escala valorativa de produção, diz respeito aos loci da enunciação, pois, na produção discursiva
do conhecimento, não há dentro e fora, centro e periferia, “o que realmente existe é a fala de
agentes que afirmam ou negam essas oposições dentro da colonialidade do poder, da
subalternização do conhecimento e da diferença colonial” (MIGNOLO, 2020, p. 444). E por
isso, a resposta ao questionamento para a literatura integrar as conversações com os Estudos
organizacionais é sim e não: depende das bases nas quais se assentam o olhar e o fazer do
pesquisador. Isso porque, diante de bases teórico-metodológicas que castram a imaginação e
encerram o espaço de um texto do gênero literário como sendo uma obra de arte ou obra de
ficção, algo, portanto, não admitido como ciência, terminaria por engessar e estatizar seus
significados, num claro colonialismo do saber (MIGNOLO; MORA, 1971). Talvez, sejam
exatamente essas percepções menos abertas que motivem as preocupações de Alvesson &
Karreman (2000, p. 1134) quando tratam do “tipo” de discurso a ser considerado e analisado
nos estudos organizacionais, pois, inclusive, esses autores alertam os interessados em estudar
de perto os discursos numa escala micro de que este é, de fato, um assunto local, “e não
principalmente uma expressão do imperialismo”. Discordamos de tal posicionamento, pois,
embora os autores destaquem que as investigações sobre a construção local do discurso tratem
o discurso como um fenômeno emergente e localmente construído, segundo eles, há uma tensão
entre o nível micro e macro de compreensões e, por isto, quando se evoca o nível macro, os
detalhes do discurso localmente construído se perdem nas grandes explicações. Em nossa
compreensão, todavia, embora concordemos que discursos são localmente construídos, cremos
que ele não somente é construído localmente, mas o contexto amplo tem total influência nos
fenômenos e relações que emergem localmente.

Fundante para as compreensões de nosso trabalho, portanto, é a noção de “Colonialidade” em


Mignolo (2017) e equivale ao que ele trata por matriz ou padrão colonial de poder. Refere-se
ao complexo de relações que se encontram escondidas por detrás da eloquente ideia de
modernidade (que se expande amplamente desde o relato da salvação e do progresso, até ideais
de felicidade), e, para tal, justifica as diversas formas de violência da colonialidade.
Encontramos exatamente na descolonialidade a resposta para as falácias do prometido
progresso que a modernidade contempla, bem como a saída para as diversas formas de violência
que a colonialidade empreende. Daí, pensar a América Latina na perspectiva do pensamento
descolonial se evidencia enquanto uma opção de coexistência ética, política, epistêmica; uma
coexistência guiada pela reexistência nas variadas ordens do pensar e do viver (MIGNOLO,
2008).
25

Todavia, o privilégio epistêmico da modernidade ainda continua negando a opção de pensar e


intervir do pensamento descolonial, seja em termos políticos ou epistêmicos. Ao rejeitar uma
única maneira de ver e ler a realidade, seja ela cristã, liberal ou mesmo marxista, a opção
descolonial, na fronteira, propõe a coexistência com esses pensamentos totalizantes — e frente
a tais compreensões uni-versais, com suas maneiras únicas de ler a realidade, propõe um espaço
de diálogo pluri-versal (MIGNOLO, 2007; 2008; 2008a; 2020).

1.1 Questões norteadoras e um percurso possível

Diante de uma compreensão de pluriversalidade é que o escopo de nossa pesquisa ganha


formas. Pensar de modo pluriverso sintetiza-se na percepção de um mundo em que vários
mundos possam coexistir, inclusive encontrando-se nesse bojo as teorias e narrativas
totalizantes (MIGNOLO, 2020; QUIJANO, 1992). O que se faz necessário não é rejeitar toda
ideia de totalidade a fim de nos livrarmos das imagens e ideias que o conceito de totalidade
criou dentro da perspectiva de modernidade europeia; necessário mesmo é liberar (ou libertar)
a produção do conhecimento das formas de reflexão e dos resquícios da
modernidade/racionalidade excludente europeia (QUIJANO, 1992), pois totalidade se opõe,
neste caso, a alteridade; e o reconhecimento e a aceitação do outro, do plural, é o contrário da
lógica da totalidade; a totalidade aliena e coisifica o outro, construindo fundamentos para a
diferença, exclusão e negação das culturas ditas periféricas (DUSSEL, 2016).

Dentro da ordem colonizadora, as letras compreendem uma função especial na estrutura de


poder das cidades latino-americanasi. À cidade das letras coube desde sempre a força operativa
do grupo letrado (leia-se elite dirigente), transmitir sua mensagem persuasiva a vastos públicos
e sua concepção organizativa sistemática (RAMA, 2015), configurando o poder de quem pode
usar a linguagem e, assim, determinar e definir semelhanças e diferenças (WODAK, 2012).
Para Ángel Rama, portanto, devemos observar a literatura e a cultura na América Latina com
suas ligações e heranças da cultura europeia e ocidental, que seguiu gerando inflexões,
mecanismos, respostas criativas, estando, logo, em permanente contato, fora se apoiando nos
próprios pés e formando um corpus próprio, original (PIZARRO, 1993).

i
Aqui não temos a pretensão de esgotar a discussão sobre peculiaridades sócio-históricas das cidades citadas ao
longo do texto, mas sim, as cidades latino-americanas citadas compreendem para nós, exemplos de diversidade
em seus processos de formação sócio-histórica e nos modos de se organizar socialmente.
26

Nosso esforço de construção deste trabalho, portanto, tomando fontes literárias como
fontes de pesquisa, ampara-se na ideia de que para enfrentar esta aproximação entre
formas de conhecimento ou discursos sobre o mundo, é preciso assumir, em uma
primeira instância, posturas epistemológicas que diluam fronteiras e que, em parte,
relativizem a dualidade verdade/ficção, ou a suposta oposição real/não-real, ciência
ou arte (PESAVENTO, 2006, p. 2).

Encontramos nos Estudos Descoloniais esse amparo e, assim, diante da pertinência e


importância da ampliação das conversações junto aos Estudos organizacionais, tomamos como
fontes principais de pesquisa a literatura do escritor baiano Jorge Amado, com os romances
Terras do Sem Fim (1942) e São Jorge dos Ilhéus (1944) — títulos que seguem uma lógica de
continuidade entre um e outro, títulos que, dentro da trajetória do autor, refletem sua escrita já
na fase madura, e títulos que são bastante substanciais e densos diante dos demais livros do
ciclo do cacauii.

Terras do Sem fim e São Jorge dos Ilhéus, para aqueles que os tomam enquanto fonte de
pesquisa, apresentam muito mais que materialidade em seu texto: ofertam-nos ricas nuances de
textualidade dos seus objetosiii, pois nos remete ao período de expansão da lavoura cacaueira e,
junto com ela, fez emergir as suas típicas relações, práticas sociais e modos de vida socialmente
organizados em torno da cultura do cacau. O sul da Bahia deixou de ser apenas uma referência
geográfica a partir de fins do Século XIX e tornou-se simplesmente a zona cacaueira da Bahia
e, para além das questões simbólicas, um espaço social produtor de riqueza econômica que
impactou positivamente por mais de meio século a balança comercial brasileira e influenciou
de modo significativo a sociedade local.

Para nós, a relação entre as abordagens descoloniais e a Análise Crítica do Discurso (ACD) se
apresenta como uma relação profícua na análise e recontextualização de nossas fontes de
pesquisa, visto que a perspectiva de ambas tangencia as relações de poder enquanto disputas
refletidas de modo declarado ou sutil. A Análise Crítica do Discurso nos apresenta como
interesse principal explicitar a forma como a ideologia e as relações de poder se produzem,

ii
Os livros do ciclo do cacau conforme Araújo (2003) são: Cacau (1933), Terras do sem fim (1943), São Jorge
dos Ilhéus (1944), Gabriela, cravo e canela (1958), Tocaia Grande: a face obscura (1984) e A descoberta da
América pelos turcos (1992).
iii
CHARTIER, Roger. Os desafios da escrita. São Paulo: UNESP, 2002.
27

reproduzem-se, negociam ou mesmo contestam práticas sociais e, a partir daí, se expressam.


ACD se alinha nesta pesquisa aos estudos de descolonialidade, os quais se interessam, numa
perspectiva subalterna, pela promoção de condições dialógicas para uma enunciação fraturada,
“como reação ao discurso e à perspectiva hegemônica” (MIGNOLO, 2020, p. 11), pois as
relações sociais são atravessadas pela noção de Modernidade-Colonialidade, originando
relações de poder assimétricas em diversos contextos sócio-históricos na América Latina.

O pensamento liminar, em fins do Século XX, oferece novos horizontes críticos diante de
pensamentos e sistemas hegemônicos, e se apresenta como uma saída à colonialidade. Como
afirma Mignolo (2020), é possível nos inscrever também neste diálogo aderindo à perspectiva
das sensibilidades de determinados locais históricos na formação e transformação do mundo
colonial/moderno.

Desse modo, nossa análise combinou a Abordagem Histórico-Discursiva, através das


compreensões vindas da Análise Crítica do Discurso (ACD) em estudos, sobretudo, de Ruth
Wodak (1986; 1990; 2002a; 2003; 2004; 2012; 2015), vinculando tais análises à percepção
conceitual dos Estudos Descoloniais, numa pretensão, em certa medida, àquilo que Mignolo
(2008a) trata por desobediência epistêmica. O pluriverso estará presente em nossa pesquisa,
uma vez que não pretende exclusivismo entre as possibilidades do saberiv e, por isso, não toma
para si a deslegitimação de ideias críticas europeias; ao contrário, percebe-se enquanto
coexistência em situações dialógicas. Desse modo, não haveria qualquer empecilho ou
incongruência na combinação entre ACD estruturado por um grupo de estudiosos europeus e
nosso recorte de pesquisa, enunciado numa perceptiva subalterna, diante da diferença colonial.

A riqueza da abordagem histórico-discursiva se dá, inclusive, diante da ideia de passado que se


apresenta sob diversas versões e, por isso, nunca deve ser totalmente silenciado — os muitos
passados carregam detalhes específicos e novas informações, assim, novos discernimentos e
compreensões podem acontecer diante da descoberta de outros estudos ou de novas fontes
históricas, que trazem à tona novos debates (WODAK, 2009). Devemos reconhecer sua
validade, até mesmo, diante do fato dos atuais acontecimentos sociopolíticos serem
influenciados justamente por esses muitos passados; daí, para que práticas sociais na atualidade

iv
Diante desta compreensão, em nossa escrita e na estruturação de nossa metodologia, de modo lógico e consciente,
transitaremos entre autores de tradições diversas.
28

sejam compreendidas em profundidade, é necessário considerar e ponderar acontecimentos


passados.

Embora a escrita de Amado ambicionasse nos primeiros anos estar à disposição de uma causa
— das utopias libertárias que moveram o Século XX e expuseram os dilemas sociais que
vivemos: ao falar de Ilhéus, fala da Bahia, do Nordeste, do Brasil e de modo relacional, de
outras tantas realidades coloniais na América Latina — ela nos oferta, para além de seu
discurso, indícios da vida socialmente organizada de uma cidade latina e as particularidades das
relações de poder entre uns — vinculados ao poder socioeconômico hegemônico — e outros –
embora numericamente maior, subalternos à ordem hegemônica local.

Os textos de Jorge Amado ocupam lugar de destaque na produção de novos temas, formas de
expressão e apreensão do mundo, sentimentos e lugares, que traduzem a “paisagem humana e
social do Nordeste, particularmente da Bahia, seu Recôncavo, sul e sertão” (ARAÚJO, 2003,
p. 9), tamanho é o potencial que uma quantidade enumerável de reflexões, análises e estudos
com os mais variados recortes já se estruturaram a partir da vasta, densa, valiosa e contraditória
obra amadiana.

Acreditamos que a escrita de Jorge Amado opera na fronteira entre ficção e história, exatamente
no ponto em que a literatura apresenta uma potência inestimável, onde narrativa e argumento
se completam realçando traços, fenômenos e vivências que outras formas de saber não
traduzem, por vezes, de modo tão aplicado às nuances simbólicas do cotidiano com suas
sociabilidades numa determinada cidade, num espaço e tempo específico. De modo
surpreendente, portanto, a literatura amadiana e seu discurso, tomada como fonte, assumem
categorizações em termos de estudos organizacionais, de história, de sociologia, de
antropologia, entre outras possibilidades.

Aquelas terras do sem fim, suas gentes e suas práticas, na década de 1940, eram ainda quase
que totalmente desconhecidas. Os dois títulos, portanto, revelaram as nuances daquele recorte
de Nordeste para o mundo, ajudando a transpor o abismo entre os centros urbanos e o interior
do país, tido como exótico e incivilizado. Para nós, Terras do sem fim e São Jorge dos Ilhéus
compreendem, simultaneamente, uma fonte histórica e uma narrativa literária realista, pois
ainda hoje figuram como trabalhos de fôlego que reúnem em suas narrativas uma série de
elementos vinculados às vivências e acontecimentos no sul baiano, na transição republicana e
29

anos iniciais do Século XX. A despeito de numerosas pesquisas científicas sobre aquele espaço
e temporalidade, os títulos ainda se apresentam como fontes com grande potência e
profundidade de análise.

Seja nos estudos históricos, seja na narração literária, há presença do pensamento e da


linguagem, logo, do discurso, levando à formação de categorias alheias ao fato estudado, a sua
periodização, aos recortes a serem narrados — sim, pois “(...) sem recursos ficcionais não é
possível tornar evidente e plausível uma época, uma classe social, um acontecimento, uma
pessoa. Sem empréstimos literários, não há plasticidade nem subjetividade” (ZILLY, 1993, p.
38). A história, nessa perspectiva, utiliza de possibilidades figurativas para construir-se
enquanto material histórico. Todavia, não se quer, com isto, afirmar que não existam diferenças
fundamentais entre historiografia e literatura; ao contrário e de modo fundante, a primeira se
baseia de modo sistemático em suas fontes, já a segunda prescinde da comprovação de fatos
referidos. O caráter literário da historiografia, assim, assemelha-se ao caráter literário da
narrativa, literária.

Esse diálogo de Amado com a história repousa na concepção de um projeto sociopolítico


substitutivo de mundo, a partir do qual se condensam e se julgam, no mundo narrativo, conflitos
explícitos ou implícitos. Portanto, a perspectiva poética e o discurso literário daquela fase
amadiana, embora assumam características de seu próprio tempo e memórias, possuem um
caráter postulativo, num plano utópico, das ambições do vir a ser social que vislumbra. A busca
de um mundo melhor está na genética deste tipo de narrativa na qual contextualmente se
interroga e se tenciona a história, numa nitidez incomum (CORONEL, 1993).

A ambiência dos dois romances transcorre por meio de postulados essenciais que não são
alheios a outras regiões do Nordeste, do país, da América Latina, e, assim, imersas na história
imediata e das possíveis reivindicações sociais do tempo do autor, as obras tomam forma,
estruturam-se internamente e tecem pontes com os elementos exteriores à narrativa. O que se
percebe em textos como estes é que o projeto social pelo qual o escritor percebe a realidade
material e espiritual aspira à revolução daqueles subalternos à ordem dominante — denotando
emancipação e libertação; assim, o passado e o presente do autor fundem-se numa possibilidade
de construção do novo, e isso dá encaminhamentos aos textos em nossa análise. Sua filiação
inicial, que é testemunhal, produz um reconhecimento do passado e, junto com ela, emergem
nos textos os elementos em formação da escala de valores éticos e políticos, na perspectiva
30

ideológica do autor. Soluções para tais contradições ficam evidentes (ou subliminares) no plano
argumental, discursivo de textos que apresentam a revolução como pano de fundo (CORONEL,
1993).

Nas narrativas, Jorge Amado resgata aqueles trabalhadores subalternos ao ordenamento


socioeconômico da pujante cultura do cacau e desloca, ao final do segundo texto, a continuidade
histórica dos oprimidos, agora potencializada enquanto luta social organizada. Ao promover o
exame de uma realidade histórica bastante específica — realidade social e humana, com seus
pressupostos ideais bastante específicos — Amado visibiliza, com a estética adotada, as
nuances de realidades históricas próximas na temporalidade, mas distantes do foco das
tendências sociais hegemônicas de então, por isso encontramos pertinência na análise e
recontextualização de Terras do sem fim e São Jorge dos Ilhéus.

Lutas pelo poder nem sempre são visíveis, permanecendo subjacentes aos próprios discursos
(WODAK, 2012), e, por isto, o fato de Jorge Amado encampar a internacionalização dos seus
textos figura para nós mais como uma estratégia positiva que um demérito, pois universalizar
os títulos mediam aquela realidade que é única e enuncia seus localismos por entre ideais de
cosmopolitismos. Aliás, o autor simbolicamente referencia uma identidade latino-americana e
sua inflexão ideológica, que também é histórica, geográfica, e, em plena década de 1940, fez
emergir as especificidades do sul frente às hegemonias do norte — com publicações justamente
na instância de legitimação literária num sistema periférico, no qual o Norte é o centro.

Terras do sem fim e São Jorge do Ilhéus, textos aqui tomados por fontes, com efeito,
compreendem Literatura? Ficção? História? Antropologia? Do que se tratam esses títulos?
Como enquadrá-los? Coadunados com a política das semelhanças de Mignolo (1993), a
resposta, então, é que se trata de todas essas categorias e, ao mesmo tempo, de nenhuma
exatamente, pois o significado de um relato ou narrativa não se encontra na maneira como ele
representa os acontecimentos, mas dentro de uma epistemologia construtivista, pelas estratégias
utilizadas e pelo que motiva a construção de suas imagens. Nesses títulos, esses campos
simbólicos se imbricam, se estreitam, se confundem e, mais que isso, contam-nos, através do
discurso amadiano, sobre o viver socialmente organizado naquela Ilhéus de início do Século
XX.
31

A linguagem, assim, unifica aquilo que é real com o que é imaginário numa narrativa literária,
ou seja, a escrita de um romancista não necessita passar por qualquer teste convencional de
verificação; logo, a literatura é um campo de possibilidades expressivas, maior que a história.
Nesse sentido, as fontes literárias têm muito a nos dizer, e a América Latina configura um
espaço privilegiado para desafiar os imperativos da cultura ocidental, pois, em situações
coloniais, possui não uma história por contar, mas várias histórias vindas de seus sujeitos de
enunciação. Então, “se isso é ou não história, evidentemente, depende de quem e de onde está
o sujeito da enunciação, qual é o contexto de descrição, onde esse texto torna-se história ou
literatura ou antropologia. Quer dizer, não há, para mim, questões determinadas fora de um
contexto de descrição” (MIGNOLO, 1993, p. 159).

Alvesson e Kärreman (2011) apontam que, necessariamente, os aspectos relevantes de um


fenômeno em estudo não se decidem, exclusivamente, por meio de suas origens ou como o
acessamos; para os autores, eles são decididos, em última instância, pela forma como o
fenômeno desafia nossos entendimentos. E, novamente, somos incitados em concordar, apenas
em parte, com os seminais estudiosos do campo organizacional, uma vez que, num duplo
movimento, aqui nos importamos com a origem e as vinculações externas ao próprio fenômeno
estudado, pois essas instâncias dizem tanto quanto o fenômeno em si.

Diante das perspectivas apresentadas, nossa pesquisa se estrutura a partir dos seguintes
pressupostos:

• O discurso amadiano, do gênero literário, é tão valioso quanto as visões de outros discursos
das ciências sociais;
• O discurso amadiano, com suas narrativas em Terras do Sem Fim e São Jorge dos Ilhéus,
revela-nos preciosos indícios da vida socialmente organizada na Ilhéus de fins do Século
XIX;
• A identidade de seus grupos de personagens foi recriada em contextos específicos, ou seja,
foram coconstruídas de modo interativo por Amado, a partir de suas memórias, visão de
mundo, alinhamento ideológico e contexto de produção das obras;
• A construção da identidade de seus grupos de personagens implica processos tanto de
inclusão quanto de exclusão, ou seja, são compreensões fragmentadas e parciais daquelas
32

múltiplas e dinâmicas identidades produzidas, reproduzidas e manifestadas simbolicamente


pelo discurso amadiano.

Nesta pesquisa, trataremos, em detalhe, as seis categorias que emergiram das fontes enquanto
enunciados do campo, o que nos permitirá estabelecer relacionamentos complexos entre o texto
amadiano e o contexto sócio-histórico, pois é essencial a compreensão do contexto para a
análise deste tipo de discurso.

Apresentaremos, em destaque, excertos que são de particular interesse para nós, em virtude de
seu significado dentro de cada categoria de análise. Assim, um analista de discurso crítico, para
minimizar o risco de ser tendencioso, deve buscar, de forma metódica, pelo recurso da
triangulação (WODAK, 2015); portanto, como característica diferencial da abordagem
histórico-discursiva, encontramos, justamente, o seu esforço para trabalhar com abordagens
diferentes, multimetodologicamente e a partir de uma base variada de informações prévias e
dados empíricos (WODAK, 2003). A Pesquisa empírica é valorizada neste tipo de análise
(WODAK, 1990). A possibilidade crítica está, portanto, essencialmente em tornar visível a
interconectividade das coisas (FAIRCLOUGH, 1992).

E ainda, baseado em Wodak (2012) e Holzscheiter (2005), partimos da compreensão de que


três dimensões diferentes de poder são possíveis em nosso estudo: poder no discurso — como
Jorge Amado concebe e nos apresenta as práticas sociais de seus grupos de personagens; poder
sobre o discurso — percepção ideológica da hegemonia de epistemologias do Norte em sua
perspeciva discursiva; e poder do discurso — diante do locus de enunciação de Amado,
buscamos uma reconstextualização do seu discurso numa perpectiva pluriversa de fronteira. Tal
qual Fairclough (1992), cremos que a prioridade da Análise Crítica do Discurso na sociedade
atual é perceber como discursos se conectam com processos mais amplos de mudança social e
cultural. Para tanto, a contextualização e a recontextualização são essenciais.

Sobre as relações sociais contextualizadas, Holzscheiter (2005) acrescenta, ainda, que os dados
contextuais das relações de poder envolvem não somente os detalhes macrocontextuais, a
exemplo das circunstâncias históricas e sociopolíticas, mas incorpora também as facetas da
estrutura situacional, em outras palavras, o contexto local. É necessário desenvolver essa dupla
noção de contexto para melhor percepção das assimetrias de poder produzidas pela estrutura
institucional, as assimetrias de conhecimento ou mesmo a força local de normas globais que
33

possam ser exploradas pelos atores materialmente menos poderosos. Daí, a importância da
análise de discursos com suas possibilidades de investigação, que nos apresentam “uma riqueza
de conceitos, categorias analíticas e quadros metodológicos que permitem investigar a interação
entre o material e o não material (ou dimensões ideativas) de influência, relações sociais
contextualizadas e dinâmicas (HOLZSCHEITER, 2005, p. 735).

A identificação da ACD como valiosa para o corpus desta pesquisa se deu pelos aspectos
centrais que van Dijk (2015) aponta como elementares da ACD, tais como: i) ACD trata de
problemas sociais; ii) compreende-se nas análises que as relações de poder são sempre
discursivas; iii) o discurso se constitui e é constituído pela sociedade e cultura; iv) o discurso
desempenha papel ideológico; v) o discurso é histórico; vi) a análise do discurso é sempre
interpretativa e explicativa; e vii) o discurso é uma forma de ação social.

Seguindo essa perspectiva, dentro da abordagem histórico-discursiva, o componente da ACD


de nosso projeto foi baseado centralmente nos estudos de Ruth Wodak e colaboradores desse
grupo de pesquisa da Universidade de Viena e se dá em virtude de a autora considerar a ACD
como um paradigma não unificado e, portanto, multifacetado em termos de abordagens teóricas
e metodológicas. Em linhas gerais, a ACD em Wodak (1990; 2002a; 2003; 2004; 2012; 2015;
2020) compartilha a visão da linguagem como uma prática social a exemplo de van Dijk (2015)
e tem o objetivo de produzir emancipação, ampliando a consciência nos agentes sociais quanto
às suas próprias necessidades e interesses. Para Wodak, o poder é entendido como condição
central da vida social que se manifesta e também se desafia na linguagem, seus estudos nos
inspiram o interesse nas interseções entre poder, história e ideologia, quando a autora busca em
alguma medida analisar processos de produção, naturalização e contestação de poderes
desiguais que emergem nas relações e práticas discursivas.

ACD, portanto, não é vista como um método (BAKER et al., 2008), nem há métodos
específicos e exclusivamente associados a esta; ao contrário, em suas análises, adota-se
qualquer método que seja mais adequado para a realização dos objetivos específicos da pesquisa
inspirada em ACD, ou seja, a escolha dos métodos é variada (WODAK, 1990). Geralmente, a
maioria dos pesquisadores tendem a usar técnicas qualitativas e levam em consideração a
análise dos contextos sociais, políticos, históricos, intertextuais, que estão para além da análise
(BAKER et al., 2008). Nas análises de Wodak e Forchtner (2014) encontramos o uso de
quadrinhos de mensagens políticas, admitindo-se também relatórios de jornais e entrevistas na
34

televisão (WODAK, 1990; 2015); pôsteres, grupos focais e entrevistas (DE CILLIA; REISIGL;
WODAK, 1999).

Nesta visão, para uma análise de ACD, é necessária a compreensão do discurso como
socialmente constituído e socialmente condicionado — à proporção que ele mesmo constitui
situações, objetos de conhecimento, identidades sociais, bem como relações entre pessoas e
grupos; o discurso é também constitutivo, visto que ajuda a sustentar, reproduzir ou transformar
o status quo social (PÉREZ-MILANS, 2013; WODAK, 2002a). O discurso, assim, é tão
socialmente consequente que dá origem a importantes questões de poder, enquanto suas práticas
discursivas, através da forma como representam coisas e pessoas, produzem e reproduzem
relações desiguais de poder (WODAK, 2002a).

Rodrigues-Júnior (2009) reconhece que a ACD tem sido considerada uma potencial teoria para
o entendimento das relações de poder e das ideologias presentes no discurso e reuniu em seu
estudo algumas das críticas internacionais mais contundentes sobre pesquisas que se baseiam
na ACD, entre as quais citamos algumas que buscamos atentar-nos na condução de nosso
estudo. A primeira crítica se baseia na argumentação de que a ACD seria uma abordagem
circular, pois os dados que os pesquisadores apresentam refletem ideologias estabelecidas,
buscando apenas pelos dados que representem essas ideologias. Desse modo, tais análises
utilizam-se de fragmentos de textos sem maiores explicações quanto aos motivos que
permitiram aquela seleção e sua organização, e, assim, a ACD e seus estudiosos não apontam
caminhos possíveis para a superação de discursos hegemônicos. Outra crítica é que a ACD deve
apresentar mecanismos de análise que demandem dos textos, a investigação de uma quantidade
maior de categorias analíticas para que se evidenciem a dominação e hegemonia, superando
dicotomias simplistas nas relações de poder pesquisadas.

Nesse sentido, pensar os discursos como materializações dessas relações implica


compreender a vida social também como um fenômeno híbrido, no qual novas formas
de dominação emergem à medida que novas e variadas formas textuais surgem para
representá-las materialmente (RODRIGUES-JÚNIOR, 2009, p. 110).

Somente é possível ampliar as visões sobre a vida social com seus fenômenos híbridos e o
discurso como uma de suas expressões (e um de seus condicionamentos), a partir da experiência
da intertextualidade, que, segundo Fairclough (1992), baseado em Kristeva (1986), implica
35

a inserção da história em um texto, visto que o texto absorve e é construído a partir de outros
textos e artefatos que constituem a história. Intertextualidade implica, também, a inserção do
texto na história, dado que o texto retrabalha textos anteriores fazendo história e contribuindo
para processos mais amplos de mudança. Existe uma historicidade inerente aos textos, e essa
característica permite que eles desempenhem papéis centrais nas mudanças sociais e culturais
na sociedade contemporânea.

Ademais, Fairclough (1992) assume a posição de que a intertextualidade e as relações


intertextuais que estão em constante mudança no discurso são centrais, inclusive, para a
compreensão dos processos de constituição do sujeito, seja individualmente para a
percepção numa escala de tempo biográfica, seja na constituição ou reconstituição de
grupos sociais, de comunidades.

Acreditamos, por fim, que a intertextualidade deva assumir um foco principal na análise do
discurso (FAIRCLOUGH, 1992), com análises que possam ajustar os diversos elementos de
um texto, formando, por meio da análise, um todo coerente, embora nem sempre possa
compreender um todo unitário, determinado ou não ambivalente. Por isto, a análise do
discurso, junto a nossas fontes, apresenta-se aqui a partir da estruturação de categorias de
análise que emergiram do campo e foram elaboradas de modo contextual, intertextual e
dialógico, sobretudo, junto a conhecimentos ofertados pela historiografia, pela Crítica Literária,
Sociologia, Antropologia Urbana, Ciência Política, em conversações possíveis que nos
permitam ampliar os Estudos organizacionais através do discurso literário de Jorge Amado.

Imprescindível, portanto, é empreender a interdisciplinaridade em estudos como este, que,


vinculados a ACD, partem de várias perspectivas analíticas, definindo contextos e
possibilidades de recontextos, com a oferta assim irrestrita quanto às possibilidades de
abordagens interdisciplinares (WODAK, 2002a). Isso porque um discurso dentro desta
perspectiva de análise — quando descontextualizado de seu contexto original e inserido de
modo recontextualizado noutro contexto — permite que seu elemento discursivo possa ganhar,
mesmo que parcialmente, novo significado (WODAK; FORCHTNER, 2014).

Considerando todos os elementos e questionamentos levantados até aqui, a pesquisa se


estruturou buscando construir, necessariamente, regras próprias de compromisso e assume,
centralmente, o discurso de Jorge Amado como inquestionável fonte que nos revela as relações
36

de poder e outras importantes nuances da vida social daquela Ilhéus em plena urbanização no
início do Século XX.

Buscando percorrer um circuito que não haveria de ser sintético — pelas características da
pesquisa ambicionada ou mesmo que ambiciona ser reveladora — pela amplitude desejada
(RHEINDORF; WODAK, 2019; 2019a), o esforço de um simultâneo processo de
desconstrução e reconstrução interdisciplinar exige-nos aqui tentar mediar a trajetória do
literato, suas aspirações, visões de mundo e tempo histórico do momento da escrita, com a
contextualização de elementos da ambiência sócio-histórica que referenciam o tempo de suas
narrativas. Para além, de modo colaborativo, intertextual e interdiscursivo, buscaremos
promover uma análise que considera em seu bojo o desenvolvimento histórico das práticas
discursivas, suas diferenciações, similaridades e contrapontos diante da perspectiva de
recontextualização do discurso junto aos Estudos Descoloniais.
37

Capitulo 2
A GEOPOLÍTICA DO CONHECIMENTO E AS DIFERENÇAS COLONIAIS
EPISTÊMICAS

Assim como somos mais brasileiros consumindo Guaraná ao invés de


Coca-Cola, tecidos Bangu ao invés de tecidos ingleses, devemos
produzir e consumir nossa sociologia ao invés de consumir a dos outros.

Alberto Guerreiro Ramos


38

Naturalmente que, ao nos aproximarmos da literatura como fonte de pesquisa, tenhamos nos
deparado com uma antiga dicotomia que existe quanto ao caráter científico e o caráter literário
de uma obra. O fato de obras de “ficção” terem se tornado, muito frequentemente, objeto da
história, segundo Chartier (2011), tem levado historiadores a se interrogarem quanto às relações
entre história e verdade, mas que estas se ligam diretamente ao seu contrário — sua relação
com a ficção. A compreensão, portanto, de que o texto historiográfico apresenta elementos
ficcionais não é recente e é cada vez mais ampla através da colaboração de Hayden White, Paul
Ricoueur, Roland Barthes, Reinhart Kosellek, Hans Robert Jauss, Michael Foucault e outros
(ZILLY, 1993).

A história científica numa suposta e desejada ruptura com uma história ligada aos
acontecimentos e com as “seduções perigosas da narrativa” (CHARTIER, 2011, p. 218) reuniu,
para tanto, três elementos: opor entidades abstratas manejadas pela história aos personagens das
antigas narrativas; opor o tempo das estruturas e conjunturas ao tempo da consciência
individual; e opor o controle, a verificação autoexplicativa da narrativa (CHARTIER, 2011).
Mas “a história, qualquer que seja, mesmo a mais quantificada, mesmo a mais estrutural, mesmo
a mais conceitual, permanece sempre dependente das formas que governam a produção das
narrativas, sejam de história ou de ficção” (CHARTIER, 2011, p. 218). Chartier (2011) nos
lembra ainda que Hayden White defende que qualquer ficção produz conhecimento e nos conta
verdades sobre o mundo social.

Todavia, a partir de Mignolo (1993), a relação que se busca construir (ou perceber) entre o
ficcional e a verdade não deveria se estabelecer necessariamente pelo viés da negativa — uma
vez que, pela natureza das convenções, o ficcional não implica mentira; ou seja, as regras
abertas na convenção de ficcionalidade são isentas das condições postas pela convenção de
veracidade.

No entanto, quando no romance (que implica a convenção de ficcionalidade) imita-se


o discurso antropológico ou historiográfico (que implica a convenção de veracidade),
estamos diante de um duplo discurso: o ficcionalmente verdadeiro do autor (porque,
ao enquadrar-se na convenção de ficcionalidade, não mente) e o verdadeiramente
ficcional do discurso historiográfico ou antropológico imitado (porque, ao invocar a
convenção de veracidade, está exposta ao erro e há a possibilidade da mentira)
(MIGNOLO, 1993, p. 133).
39

A questão da verdade na ficção, portanto, se apresenta quando esse discurso, que é ficcional,
recorre à “imitação” do discurso antropológico ou historiográfico; do contrário, ficção não
assume, de fato, exatamente compromissos com a verdade; por isso o autor prefere mencionar
mais as diferenças que atuar a partir de semelhanças. Mignolo (1993) nos diz ainda que Hayden
White, ao apontar “a ficção das representações factuais” ou “a história como artefato literário”,
induz a compreensão de que ficção é sinônimo de literatura. Esta abordagem “justifica-se antes
por relações da ordem da política, que marca as semelhanças, do que por relações da ordem da
lógica, que analisa as diferenças” (MIGNOLO, 1993, p. 115).

E como solução ao aparente dilema da ficcionalidade da história e da veracidade da ficção,


Certeau (1982), ao estruturar a operação historiográfica, esforça-se por definir uma grafia com
as dimensões de um conhecimento específico da história. Para o autor, a história é um discurso
que produz enunciados científicos, e a definição de regras que permitam o controle dessas
operações, portanto, inclusive com técnicas do oficio de historiador, levaria à produção de
objetos determinados; assim, regras que permitam esse controle inscrevem a história no regime
de saber verificável. E potencialmente universal.

A premissa de que certa tradição epistêmica é mais válida para se alcançar a verdade e a
universalidade nos faz refletir justamente sobre eurocentrismo e sobre hegemonia epistêmica.
E assim nos aproximamos de compreensões que exercem críticas a toda expressão de
fundamentalismo e colonialismo epistêmicos, seja ele eurocêntrico ou não (GROSFOGUEL,
2008a).

Para tanto, em Grosfoguel (2008a), encontramos que a constituição de outro pensamento, o


pensamento de fronteira, demanda a reunião de três aspectos: i) a perspectiva do epistêmico
descolonial requer um modelo de pensamento amplo, para além deste, ocidental; 2) pensar o
descolonial verdadeiramente universal teria que emergir do diálogo crítico entre projetos
epistêmicos, éticos e políticos voltados para um mundo pluriversal em oposição ao mundo
universal; 3) a descolonização do conhecimento agregaria também as perspectivas, as
cosmologias e as percepções dos pensadores do Sul — a partir de seus espaços, corpos e
conhecimentos subalternizados.

Assim, compreendemos a importância de colocamos a diferença colonial no centro dos


questionamentos quanto ao processo de produção de conhecimento, pois a superioridade e
40

centralidade atribuídas ao conhecimento europeu em muitas áreas compreendem um aspecto


importante da colonialidade do poder no moderno/colonial (MIGNOLO, 2007; 2020). Pois,
dentro desse processo, conhecimentos subalternos foram excluídos, omitidos e silenciados;
conhecimentos subalternos são aqueles que se encontram na interseção do tradicional e do
moderno, são formas híbridas e transculturais que operam de modo subversivo contra o sistema;
formas que ressignificam e alteram formas dominantes de conhecimento a partir de outras
racionalidades, não eurocêntricas; a partir de subjetividades subalternas que nos levam a pensar
a partir dessas novas formas e lugares, de epistemologias de fronteira (MIGNOLO, 2020).

Não se trata apenas dos valores sociais na produção de conhecimento ou do fato de produzir
um conhecimento considerado parcial, mas trata-se do lócus de enunciação do sujeito estar
socialmente localizado — e não dissociado de sua localização étnica, racial, de gênero, sexual
do sujeito que fala; e assim, perspectivas epistêmicas subalternas produzem outras perspectivas,
críticas ao conhecimento hegemônico (GROSFOGUEL, 2008a). Considera-se que a existência
da hierarquia entre conhecimentos superiores e inferiores, entre pessoas igualmente superiores
e inferiores, foi, desde sempre, estratégias epistêmicas de crucial importância para os projetos
globais (GROSFOGUEL, 2008a; MIGNOLO, 2020).

Durante o Século XVI, ressalta Mignolo (2020), missionários espanhóis tomaram como medida
de julgamento e forma de hierarquização dos povos nativos, mensurando sua inteligência e
civilização, o fato de dominarem, ou não, a escrita alfabética. Esse teria sido o primeiro
momento e elemento na construção da diferença colonial e do imaginário atlântico que viria a
embasar o imaginário do mundo colonial/moderno — neste século, essa diferença se articulava
espacialmente. Já nos séculos XVIII e XIX, a diferença colonial se afastou da escrita como
critério de avaliação e voltou-se para a história. Estariam então, unidirecional e universalmente,
aqueles “povos sem história” situados num tempo “anterior” ao “presente”; eis que os povos
“com história” eram os que saberiam escrever a história dos povos que não a possuíam. E a
partir do Século XX é o mote da democracia que sobressai dentro do sistema mundo
colonial/moderno, inclusive está franqueado uso da violência na inserção desses povos não
democráticos nesta nova fase do sistema (MIGNOLO, 2020).

Dussel (2016) nos aponta que tudo surgiu de modo simultâneo com a origem e com o
desenvolvimento do capitalismo, “ou seja, a Modernidade, o colonialismo e o sistema-mundo
denotam aspectos de uma mesma realidade simultânea e mutuamente constitutiva” (DUSSEL,
41

2016, p. 58). E na América Latina se estabeleceram, por conta da construção de tais elementos
no tempo e no espaço, variadas hierarquias globais que na prática se apresentam indistintas e,
do mesmo modo, emaranhadas (GROSFOGUEL, 2008a). Algumas dessas hierarquias se
fundamentam a partir da: coexistência de uma diversidade de formas de trabalho que reúnem
desde a escravidão ao trabalho assalariado, e que redundam sempre em lucro pela produção de
excedentes; divisão internacional do trabalho entre centro e periferia — em que o trabalho se
organiza em torno de formas coagidas e autoritárias; sistemas internacionais de organizações
político-militares; hierarquia racial que privilegia europeus diante dos não europeus; hierarquia
de gênero que privilegia homens e não mulheres; hierarquia de orientação sexual que privilegia
heterossexuais sobre homossexuais; hierarquia espiritual que privilegia cristãos sobre crenças
não cristãs; hierarquia epistêmica que privilegia o conhecimento o ocidental sobre os não
ocidentais, e que está institucionalizado em todo o sistema acadêmico; uma hierarquia
linguística entre as línguas europeias e as não europeias, com a subalternização das não
europeias como produtores válidos de folclore ou cultura, mas não de conhecimento
(GROSFOGUEL, 2008ª; MIGNOLO, 2007; 2020; QUIJANO, 1992).

Portanto, em Mignolo (2020), encontramos que “a diferença colonial é o espaço onde emerge
a colonialidade do poder” (MIGNOLO, 2020, p. 10); é o espaço onde histórias locais recebem
o que fora inventado ou implementado por projetos e hierarquias globais; é o espaço onde
projetos globais adaptam-se, integram-se e são adotados, ou mesmo rejeitados e ignorados
(MIGNOLO, 2020). A diferença colonial, assim, compreende simultaneamente o tempo físico
e o imaginário em que age a colonialidade do poder — lugar de múltiplas confrontações de dois
tipos de histórias locais que assim desafiam as dicotomias.

Desse modo, o discurso colonial e o pós-colonial não compreendem apenas um novo campo de
estudo, mas uma condição possível de constituição de novos loci de enunciação e construção
de conhecimento, além das existentes compreensões acadêmicas buscar pelo conhecimento a
partir do “aprender com” (MIGNOLO, 2020). Isso porque, inclusive, intelectuais do terceiro
mundo geram teoria e refletem a partir de suas próprias histórias e culturas (MIGNOLO, 1993),
o que permite produzir compreensões subdimensionadas ou subalternizadas pelo conhecimento
eurocêntrico autorreferenciado.

Enquanto os europeus letrados tinham os seus saberes valorizados, o mesmo não se dava com
a diversidade e variedade de saberes indígenas e africanos. O eurocentrismo não se definiu
42

apenas em termos geográficos, mas, sobretudo, em termos epistêmicos e históricos com o


controle do conhecimento e da subjetividade. Foi através da colonialidade do saber e do ser que
se fez possível controlar a economia, a autoridade, os corpos, em resumo, a subjetividade
(MIGNOLO, 2008). Portanto, as construções intersubjetivas como produto da dominação
colonial europeia, como nos mostra Quijano (1992), foram assumidas inclusive como
categorias científicas e objetivas na significação histórica dos fenômenos naturais e de poder;
na produção e nos produtos do conhecimento, bem como na direção e perspectivas de se poder
conhecer.

O pensamento liminar, então, é concebido a partir da compreensão e do reconhecimento dessa


diferença colonial, e incorpora justamente a perspectiva do que considera uma forma subalterna
de conhecimento. O pensamento liminar nos possibilita pensar nas e a partir das margens,
reavendo as contradições diacrônicas das fronteiras de cosmovisões das diversas épocas
(MIGNOLO, 2020).

Durante a construção do sistema colonial/moderno, de acordo com Mignolo (2020),


colonizaram-se e enrijeceram-se fronteiras epistêmicas e territoriais. Diante disto, a razão
subalterna deve ser colocada em primeiro plano com a força e a criatividade de seus próprios
saberes, os quais foram subalternizados durante esse extenso processo de colonização, processo
através do qual, simultaneamente, se construíram a modernidade e a razão moderna
(MIGNOLO, 2007; 2017a; 2020).

Ao longo do tempo mudaram-se os conteúdos, mas a lógica da colonialidade continuou a


mesma, daí que, no Século XVI, o salvacionismo da modernidade ligava-se à conversão ao
cristianismo; no Século XVIII, a salvação voltou-se para conversão à civilização (secular); já
em meados do após a segunda Guerra Mundial, a retórica salvacionista da modernidade primou
pela ideia de desenvolvimento como condição da modernização. Desse modo, aquilo que
Aníbal Quijano chama de padrão colonial de poder, Mignolo (2017, 2008, 2005) trata por
matriz de poder colonial e se refere basicamente à apropriação de terras e de recursos naturais;
a exploração do trabalho e o controle da autoridade de metrópoles hegemônicas sobre outros
espaços, colonializados e subalternizados.

Mesmo com a mudança na retórica em cada período, nada se alterou quanto à matriz colonial
de poder, em que a acumulação e a autoridade vêm em primeiro lugar e submetem a economia,
43

o gênero, a sexualidade, o conhecimento e a subjetividade diante de um controle do


conhecimento que é, ao mesmo tempo, racista e patriarcal. O produto dessas discriminações,
conforme Quijano (1992), vindas da estrutura colonial de poder, se multiplicaram enquanto
discriminações sociais e seguiram codificadas pelas diferenças raciais, étnicas e antropológicas;
espraiando uma sistemática de repressão através do campo de crenças específicas; de ideias,
imagens, conhecimentos simbólicos que aguçaram e permitiram manutenção da dominação
colonial. Nesse sentido, o que se percebe é um “diálogo” assimétrico, de dominação, de
exploração e mesmo de aniquilação das culturas outras, culturas “periféricas” (DUSSEL, 2016).

Uma cultura do centro, em detrimento das “periféricas” culturas vindas da América Latina,
África, Ásia e da Europa Oriental, se formou e se reproduziu no papel das elites científicas
locais, que “repetiam como eco o que tinham aprendido em Paris ou Londres; elites ilustradas
neocoloniais, leais aos impérios, que se distanciavam de seu próprio ‘povo’ e o utilizavam como
refém de sua política dependente” (DUSSEL, 2016, p. 52).

Diferente disto, aqui nossa intenção é colocar a diferença colonial em questão e, a partir de tais
percepções, buscar meios de colaborar com o pensamento liminar e com um processo de
produção de conhecimento pluriverso. É da perspectiva das humanidades, portanto, que nossa
pesquisa, através do fio condutor dos Estudos organizacionais, se aproxima desta possibilidade
de diálogo das ciências sociais no pensamento latino-americano de autores como Anibal
Quijano, Enrique Dussel, Ramón Grosfoguel, Walter Mignolo, Ángel Rama e José Luis
Romero.

Em fins dos anos de 1960 no Brasil, uma mesma noção de saberes subalternos foi articulada
pelos estudos de Darcy Ribeiro, quando destaca a diferença colonial entre aqueles antropólogos
do Primeiro Mundo que se debruçavam a “estudar” o Terceiro Mundo e entre os
“antropologianos” do Terceiro Mundo, os quais refletiam sobre suas próprias condições
geoistóricas e coloniais (MIGNOLO, 2020). Era necessária, para Ribeiro (1968), portanto, a
ruptura com essa consciência “ingênua” da intelectualidade brasileira para dar lugar a uma
consciência crítica acerca da realidade colonial dependente.

Os movimentos de renovação do pensamento social brasileiro a nível de uma consciência crítica


se restringiam, segundo Ribeiro (1968), ainda em fins dos anos de 1960, a uma produção
intelectual meramente diagnóstica ou impulsionada por superficiais preocupações reformistas;
44

com a repetição no geral, por parte dessa intelectualidade, de consignas liberais voltadas a uma
falsa democratização do país e que somente serviam aos projetos norte-americanos no sentido
de uma recolonização (RIBEIRO, 1968).

A almejada (e necessária) ruptura da intelectualidade brasileira com a consciência ingênua, de


acordo com Ribeiro (1968), teve lugar, de início, com o surgimento da literatura regionalista,
em virtude, sobretudo, de suas dimensões de crescente denúncia social. Este e outros aspectos
do pensamento social brasileiro, diante da matriz de poder colonial, veremos nos próximos
itens.

2.1 O pensamento social brasileiro e as epistemologias do norte – cenas de um breve


contexto

Os anos de 1930 no Brasil foi um período de intensa produção intelectual com a multiplicação
de debates e interpretações sobre as questões nacionais, emergindo diretrizes para possíveis
soluções de problemas do país; sobretudo, produziam-se novas formas de se interpretar o Brasil
com seus dilemas e peculiaridades. Entre os múltiplos e influentes trabalhos que apresentam
novos horizontes para o pensamento brasileiro deste período, destacamos alguns que

simbolizam pontos de inflexão da história e do pensamento: Sérgio Buarque de


Holanda, Raízes do Brasil; Caio Prado Júnior, Evolução política do Brasil; Gilberto
Freyre, Casa-Grande & Senzala; Roberto Simonsen, A Evolução Industrial do Brasil;
Manoel Bonfim, Brasil Nação; Nestor Duarte, A Ordem Privada e a Organização
Política Nacional; Azevedo Amaral, A Aventura Política do Brasil (...). Ainda na
década de 30 republicam-se escritos já conhecidos em décadas anteriores, passando a
ser relidos em outra perspectiva: Alberto Torres, O Problema Nacional Brasileiro;
Tavares Bastos, A Província (Estudos sobre a descentralização no Brasil); Oliveira
Viana, Evolução do Povo Brasileiro. Ao fim dos anos 30 e começo de dos 40
continuaram as publicações destinadas a retomar, discutir ou inovar o que se havia
proposto anteriormente (...) (IANNI, 1990, p. 28).

O encantamento do país no início da República e suas perspectivas de modernidade encerram


os anos de 1920 com a intelectualidade se situando entre a angústia e a ansiedade na elaboração
sobre a “brasilidade”, com a busca pelo reconhecimento do passado e projeções de um diferente
futuro para a nação. “Parecia ter chegado a hora de buscar modelos de identidade nacional,
45

construídos a partir do sementeiro da especificidade” (SCHWARCZ & STARLING, 2018, p.


350).

Nessa perspectiva, de modo pujante, entre as décadas de 1920 e 1950, as desigualdades raciais,
as relações inter-raciais e a formação de uma identidade brasileira permearam de modo
profundo os debates do incipiente campo das ciências sociais no país; para além de tornar
inteligível o cenário racial no Brasil, havia o desafio de responder à inquietante e fervilhante
questão da incorporação à modernidade, de segmentos sociais específicos (MAIO, 1999). E
nesse sentido, inclusive, a ideia de Brasil moderno tem algo de caricato, pois resulta, nas
diversas áreas, justamente, de uma apressada imitação de outras realidades históricas com
diferentes implicações teóricas, conceituais; uma caricatura que mescla de modo inconsistente
múltiplas realidades, compreensões, temas e ciclos históricos, muitas vezes de modo
descontextualizado (IANNI, 1990).

Mesmo sociólogos, antropólogos e economistas estavam sujeitos à “consciência ingênua”;


segundo Ribeiro (1968), estes intelectuais, ao se converterem porta-vozes de concepções
racistas e do “darwinismo” social, refletem muito mais sua capacidade de emitir impressões
ligadas a visões alheias sobre a sociedade brasileira que uma própria disposição na observação
direta do modo como esses fenômenos aqui se manifestam e traduzem.

Assim, as ciências sociais nasceram e se desenvolveram nos primeiros tempos no Brasil,


desafiadas pela compreensão das possibilidades de um país moderno frente a suas raízes
anteriores (IANNI, 1994). Vale ressaltar que esse fascínio pela modernidade como ideia, forma
ou mesmo ilusão ganhou ressonância por aqui sem maiores questionamentos ou contrapontos
à origem desses discursos; os quais são provenientes dos centros culturais dominantes, europeus
e norte-americano (IANNI, 1994).

Na primeira metade do Século XX, em se tratando de estudos na Bahia e sobre a Bahia, Maio
(1999; 2000) nos afirma que havia uma vinculação direta e pela qual não era possível
desassociar o projeto de pesquisa da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência
e Cultura (Unesco) e também do convênio de Columbia University, com o estado da Bahia.
Isso porque, desde final da década de 1930, “o antropólogo Charles Wagley esteve ligado a
temas brasileiros, (...) foi um ator fundamental no estreitamento das relações acadêmicas entre
46

o Brasil e os EUA, seja como professor da Universidade de Columbia e da Flórida, seja como
pesquisador da Unesco” (MAIO, 2000, p. 120).

A Bahia, neste período, figurou como um lócus que atraiu estudos acadêmicos por variados
motivos; no caso do projeto Unesco, na linha interpretativa concebida por Gilberto Freyre e
com a intenção de ofertar ao mundo o exemplo brasileiro de cooperação entre as raças (MAIO,
2000), no início dos anos de 1940, identificou-se (e justificou-se) a Bahia como o estado
preferencial para receber seus pesquisadores em virtude da longa tradição dos estudos sobre o
negro em Salvador, cidade brasileira sob grande influência da cultura africana; vista como
exemplo positivo no convívio inter-racial. Portanto, Salvador seria importante para os estudos
urbanos diante da existência ou não de tensão racial, configurando um laboratório
socioantropológico (MAIO, 1999).

Alfred Métraux, chefe do Setor de Relações Raciais do Departamento de Ciências Sociais da


Unesco e responsável pelo Projeto Unesco para o Brasil, esteve no país para identificar quais
seriam as instituições e pesquisadores que pudessem integrar o programa. O antropólogo
apontou também que a questão racial no país se alterava conforme a região e que, portanto,
além da Bahia, seria pertinente que outras regiões fizessem parte daquele estudo sistemático da
situação racial brasileira para formar um quadro válido. Daí, sobretudo através do suporte de
pesquisadores da Universidade de São Paulo, o então programa de pesquisa da Unesco se
estendeu com sondagens também em Brasília, São Paulo, Rio de Janeiro e Florianópolis,
embora a Bahia tenha recebido esforços de modo concentrado. Este programa de pesquisa se
desdobrou em outros projetos locais nas universidades e centros de pesquisa associados; e
ajudou a “preservar o legado de Gilberto Freyre” (MAIO, 1999, p. 120).

Guerreiro Ramos, inclusive, sugeriu ao projeto Unesco (MAIO, 1999), que, diante daquele seu
importante papel institucional no processo de integração junto às minorias raciais, em países
onde se encontravam de algum modo discriminadas, que pudesse inserir, no projeto, sugestões
práticas para que tais estudos não se situassem apenas na ordem acadêmica ou simples
descritivos que denotassem uma falsa consciência quanto aos processos de discriminação. Mas
a proposta de Guerreiro Ramos não contemplou as perspectivas da Unesco, pois, apesar de
propor uma ação política contra o racismo, não previa exatamente a investigação piloto, de
perfil acadêmico (MAIO, 1999).
47

Já a Universidade de Columbia firmou convênio para realizar estudos em diferentes


comunidades na Bahia, com destaque para as diferenças históricas e na dimensão econômica
de cada região escolhida. Mas, também, essas pesquisas tinham por finalidade contribuir para
os estudos das relações raciais do projeto da Unesco — visto que sua abrangência era estadual
— e para a formação de estudantes brasileiros que integraram o projeto, além de colaborar com
o fortalecimento das ciências sociais na Bahia (VIANA, 2014). A equipe de pesquisadores
itinerantes da Universidade de Columbia passou no Brasil apenas o tempo suficiente para a
coleta de campo de suas investigações; e uma das regiões contempladas deste convênio foi a
região sul da Bahia, como veremos de modo mais ampliado no próximo subitem.

2.1.1 Convênio da Universidade de Columbia com o Estado da Bahia – a diferença colonial e


a região cacaueira

O estado da Bahia como vimos, recebeu, durante a década de 1950, dois grandes projetos
estrangeiros de pesquisa, um da Unesco — que ficou mais localizado na capital e no Recôncavo
do estado — e outro, da Universidade de Columbia em convênio com a Fundação para o
Desenvolvimento da Ciência na Bahia. Neste convênio, cada pesquisador deveria atuar numa
determinada área produtiva: Região do Cacau no sul do estado, Região do Gado no Nordeste
do estado, com o Açúcar no Recôncavo, e das Lavras na Chapada Diamantina. Segundo os
idealizadores do projeto, o critério de escolha dessas regiões foi a sua importância e sua
projeção econômica (LIMA e VIANA, 2018).

Antes da chegada dos doutorandos vindos de Columbia, houve uma série de preparativos para
recebê-los. Nos anos de 1949 e 1950, aqueles que trabalhariam como assistentes nas pesquisas
tiveram de reunir os dados disponíveis nos órgãos públicos setoriais, a exemplo do Instituto do
Cacau, do IBGE e do Moinho da Bahia (CONSORTE; PEREIRA e TORRES, 2010). Tais
assistentes participaram de curso de inglês intensivo, de viagens preparatórias ao campo de
atuação dos pesquisadores, bem como enviaram cartas de apresentação dos pesquisadores às
autoridades locais onde seriam realizados os trabalhos de campo. “Havia uma preferência em
se contratar mulheres para serem assistentes de pesquisa pelo fato de ficarem encarregadas de
pesquisar o comportamento reprodutivo e o processo de socialização das crianças” (VIANA,
2014, p. 53).
48

O antropólogo americano Antony Leeds, no início da década de 1950, veio ao Brasil realizar
seus estudos de doutoramento pela Universidade de Columbia e desenvolveu pesquisa na Zona
do Cacau da Bahia (LEEDS, 1957). A escolha de Leeds muito provavelmente se deu por ser
aluno e orientando de Charles Wagley, que estruturou programa para estudos em comunidades
folk em geral e para estudos em comunidades brasileiras (especialmente as do Nordeste) de
modo específico; lembremos que Wagley também fazia parte do programa de estudos da
Unesco no Brasil (MAIO, 1999).

Nos seminários realizados por Wagley na Universidade de Columbia, havia a orientação quanto
à definição dos métodos e do escopo de um estudo em comunidade, ou mesmo de qualquer
estudo de base etnográfica. Wagley defendia que diferentes métodos e escopos deveriam ser
combinados para conduzir estudos com problemas similares, uma vez que, embora tais
comunidades folk tenham características similares, elas apresentam diferentes conteúdos
culturais (VIANA, 2014). Sociedades folk no Brasil, então, naquele programa de estudos de
Columbia, eram comunidades entre 500 e 3000 pessoas racialmente misturadas, que
apresentavam

distinções sociais mais fortes que distinções raciais, agricultura de queima e corte,
pastagem, plantas da floresta tropical; que têm ênfase da família patriarcal sobre
afiliações de parentesco; que apresentam laços cerimoniais ou sistema de compadrio,
baixo padrão de vida, religião católica com procissão e culto de santos, irmandade
religiosa, crenças arcaicas de origem ibérica, africana ou indígena; que têm ênfase na
vizinhança além da comunidade; que apresentam nacionalidade brasileira, aqui
entendida em termos de comemorações nacionais, tais como futebol, carnaval e
independência; que possuem sistema comercial (VIANA, 2014, p. 55).

Uma das perspectivas do programa de pesquisa de Columbia na Bahia era que os estudos
daquele grupo deveriam apontar as potencialidades de mudanças e indicar possíveis direções
da mudança cultural, bem como as reações esperadas frente à aproximação progressiva da
ciência moderna, da tecnologia e da ideologia junto a essas comunidades, observando se essas
influências foram direcionadas ou espontâneas, e como se processou a aceitação das mudanças
por parte da comunidade folk. No escopo do projeto que foi realizado pelos doutorandos de
Columbia áreas socioprodutivas da Bahia, estavam, portanto, as diretrizes que levassem à
“introdução de métodos de subsistência mais eficientes, medicina moderna e saúde pública,
49

educação formal adequada, melhores técnicas de transporte e comunicação, habitação e etc”


(VIANA, 2014, p. 55).

Assim, a tese de Leeds no Doutorado em Filosofia da Faculdade de Ciência Política da


Universidade de Columbia, intitulada Economic cycles in Brazil: the persistence of a total
culture-pattern: cacao and other cases, teve seus trabalhos de campo iniciados em junho de
1951; reunindo, além do trabalho escrito, gráficos, mapas e fotografias, e uma série de notas de
campo sobre o sul baiano e a cultura do cacau. Leeds desenvolveu trabalho de campo de quase
um ano na zona cacaueira da Bahia, morando no município de Uruçuca, que fica a 36 km de
Ilhéus.

O extenso estudo que ficou pronto em 1957 possui cerca de 600 páginas; e ainda hoje trata-se
de obra não publicada seja em livro, revistas especializadas ou anais de congresso. O
antropólogo nos coloca, que: “em 1951-1952, fui à região do cacau para estudar as inter-
relações de uma cultura econômica com sua matriz cultural” (LEEDS, 1957, p. 11), e, nas
observações do seu texto, encontramos, em outras palavras, que aquelas relações tratavam-se
da influência dita provocadora do conceito de colonização interna na relação entre classe alta e
classe baixa na realidade brasileira.

Em relatório apresentado após a realização dos trabalhos de campo (VIANA, 2014), Leeds
afirma que seu estudo se relacionava ao sistema de estrutura de classes, de mobilidade social e
cultural; ressaltou aspectos quanto à relação de adaptação do homem a questões ligadas à terra
propriamente, assim como a demais condições externas àquelas comunidades. Segundo ele,
havia uma necessária adaptação do homem à terra, mas também a outras esferas, visto que “o
cacau precisava de um mercado estrangeiro, coloca que a zona, por sua vez, deveria se adaptar
às condições existentes no mundo, tais como guerra, condições de mercado, ciclos de negócios,
etc” (VIANA, 2014, p. 58). Desse modo, a zona cacaueira da Bahia não se encontrava isolada;
ao contrário, afirmava com isso que, ao adaptar-se à cultura daquela terra, aquelas pessoas
estavam, tanto nos aspectos socioeconômicos quanto no tecnológico, ligadas diretamente ao
resto do mundo. E assim apontou, em seu relatório de campo, os problemas de ordem
tecnológica que a zona do cacau possuía, “tais como o tratamento botânico e agronômico do
cacau em si e da lavoura, a negligência na pesquisa sobre a técnica de produção do cacau, a
falta de educação agrícola entre os fazendeiros, a falta de tecnologia em arboricultura, além de
50

problemas no próprio processamento do cacau – colheita, fermentação e secagem” (VIANA,


2014, p. 58).

E como era de se esperar dentro dos propósitos do seu programa de pesquisa conveniado com
o estado da Bahia, Leeds, após a realização da tese e a partir da perspectiva de sua antropologia
holística (SANJEK, 1994), registra as maiores necessidades para aquela região produtiva. Foi
recomendado, entre outras coisas, que o Instituto de Cacau devia por função atuar e suprir tais
lacunas, sendo indicada a realização de pesquisa que pudesse compreender as variações das
atitudes de fazendeiros quanto à inserção de processos de mudanças tecnológicas, e, que de
modo combinado, houvesse um recenseamento de checagem. Igualmente, foi pontuado que se
verificasse o custo de produção para os vários tipos de fazendas, pois, segundo Leeds, os
pequenos fazendeiros não contavam com linhas de crédito para reinvestimento nas propriedades
e, com isto, permaneciam em desvantagem contínua pelo fato de não dispor de acumulação de
capitais para novos investimentos (VIANA, 2014). “Desse modo, para Leeds só era possível
entender uma localidade a partir dessa complexidade de demandas e a partir das relações
estabelecidas com as outras localidades” (VIANA, 2014, p. 59). Ou seja, para Leeds (1957),
após seus estudos na região cacaueira da Bahia, entre outras conclusões, está a compreensão de
que as demandas de uma localidade envolveriam também variáveis, sempre em maior número,
e sempre mais complexas para dar conta de entender um determinado local ou sistema
(SANJEK, 1994).

Mas somente através da Unesco ou da Universidade de Columbia — com seus pesquisadores


internacionais e suas epistemologias eurocêntricas e autorreferenciadas — que haveríamos de
conhecer a nós mesmos, com a indicação de formulações válidas para os grandes problemas da
filosofia, da sociologia, da antropologia e da história em nosso país? O contexto dos estudos de
Antony Leeds e seus achados sobre a região sul da Bahia de modo específico nos põem a
refletir.

Esse tipo de reflexão que nos ocorre, em alguma medida, motivou aquele que configuraria uma
das poucas exceções (junto com Darcy Ribeiro), de intelectuais dessa fase; e, no início da
década de 1950, encontramos os estudos de Guerreiro Ramos (1995) com uma crítica
contundente à perspectiva que se desenvolvia nas ciências sociais no Brasil de então (LYNCH,
2015).
51

Pensar as particularidades das ciências sociais em seus diferentes contextos de origem, e não
na perspectiva cêntrica, inadequada para o Brasil com suas circunstâncias periféricas (MAIA,
2011), foi desde sempre um dos focos de atenção do sociólogo baiano Alberto Guerreiro
Ramos. Embora tenha ganhado destaque por seus estudos no campo da Administração Pública
e lançado as bases para uma nova ciência das organizações, possui, sobretudo nos anos de 1950,
uma produção intelectual que, de modo mais diretivo, primava por um projeto orientado na
perspectiva contextual da América Latina, onde, a exemplo do Brasil, reproduziam-se o
semicolonialismo e a dependência cultural (MAIA, 2011).

Nesse sentido, encontramos de modo objetivo em Guerreiro Ramos (1995) que a formação do
pesquisador brasileiro ou latino-americano estava, via de regra, baseada no adestramento e no
conformismo diante das teorias. Ao analisar questões de seus próprios ambientes, esses
pesquisadores buscavam soluções em receitas alheias e se tornavam repetidores de pressupostos
e conteúdos prontos; acrescenta ainda que, que diante de métodos e trabalhos do exterior, esse
pesquisador se coloca numa posição idólatra e apologética, dispostos na maioria das vezes a
uma sociologia enlatada. Desse modo,

É francamente desaconselhável que o trabalho sociológico, direta ou indiretamente,


contribua para a persistência, nas nações latino-americanas, de estilos de
comportamento de caráter pré-letrado. Ao contrário, no que concerne às populações
indígenas ou afro-americanas, os sociólogos devem aplicar-se no estudo e na
proposição de mecanismos de integração social que apressem a incorporação desses
contingentes humanos na atual estrutura econômica e cultural dos países latino-
americanos (GUERREIRO RAMOS, 1995, p. 106).

Uma das significativas rupturas dessas persistências indicadas por Guerreiro Ramos (1995) —
a primeira de todas as rupturas diante da consciência ingênua da intelectualidade brasileira —
se deu exatamente através da literatura regionalista, segundo Ribeiro (1968).

Assim, no campo das expressões literárias, antes da década de 1930, sobressaía, nas narrativas
das obras que retrataram o Nordeste, o foco nas questões geográficas e o flagelo cíclico das
secas (CANDIDO, 2006). A presença de compreensões quanto ao latifúndio e à propriedade de
terra como fatores de desigualdade naquele contexto se firma enquanto motivação literária junto
ao grupo de escritores que ficou conhecido como romancistas do Nordeste: José Américo de
Almeida, Rachel de Queiroz, Jorge Amado, Graciliano Ramos, José Lins do Rego e Amando
52

Fontes; autores que, nas décadas de 1930 e 1940, abordam as disparidades sociais com mesclas
das perspectivas geográficas e históricas — formando uma multifacetada produção literária
(ARAÚJO, 2003).

O que se percebe é que Jorge Amado desde sempre esteve inscrito no território discursivo do
qual emergem expressões quanto à identidade e realidade nacional (DUARTE, 2002). Fruto das
expressões de uma época, o autor esteve alinhado aos questionamentos sociais e da
intelectualidade daqueles anos de transição política da velha República para o que se expectava
enquanto Estado Novo, assim, expressos no estilo e conteúdo de sua escrita. Dessa forma o
literato ganha destaque entre os “ícones da literatura brasileira, como a estética da fome ou o
realismo mágico de Graciliano Ramos ou o tropicalismo de um Jorge Amado tiveram um peso
importante nas literaturas anticolonial e pós-colonial” (SCHWARCZ e THOMAZ, 2014, p. 17).

Ao contrapor-se a fundamentações estilísticas de feições ainda lusitanistas, Amado torna-se um


marco para a literatura nacional, pois optou por enunciados simples, de tons populares que
norteiam as narrativas e introduzem problemas cruciais da vida brasileira sob a forma de
compreensões contextualizadas de processos históricos, os quais redundam em miséria,
desigualdade e opressão. Com uma narrativa, “sempre voltada para o outro, permite por isso
mesmo estabelecer uma ponte entre a figuração das lutas da mulher, do negro e dos espoliados
em geral” (DUARTE, 1997, p. 88).

Daí, encontramos em Schwarcz (2003) que Jorge Amado nunca se definiu antropólogo, mas
sempre o foi, mesmo sem querer ou sem saber. Aquele que viria a ser, mais tarde, um dos
maiores narradores do país (DUARTE, 2002), o que talvez justifique os múltiplos estudos
acadêmicos sob os mais variados prismas que se debruçaram em sua vasta e diversa obra, pode
ser “bom” para se pensar sobre a nação, sua identidade e sua mestiçagem (GOLDSTEIN, 2003).

2.2 Fazendo o caminho de volta: as epistemologias do Sul e o saber literário de um poeta


antropólogo

O primeiro filho de Eulália e João, Jorge Amado, nasceu em agosto de 1912 na Fazenda
Auricídia, em Ferradas, distrito de Itabuna. A família mudou-se para Ilhéus dois anos após, e,
em 1917, novamente retomaram a experiência de cultivo do cacau, agora em Itajuípe. Os anos
53

inicias de Amado e sua família oscilaram entre a vida no campo e em cidades sempre da zona
cacaueira (INSTITUTO MOREIRA SALES, 1997).

A educação formal nos primeiros anos de vida de Jorge e seus irmãos aconteceu em Ilhéus,
mas, aos 10 anos, ingressa como interno, em colégio jesuíta em Salvador. E em 1931, já no Rio
de Janeiro, começa os estudos na Faculdade de Direito da Universidade do Rio de Janeiro
(AGUIAR, 2018).

O paradoxo governo Vargas, de início, atraiu admiração de Amado, mas, ao opor-se ao Estado
Novo, o literato foi preso, e seu livros, queimados (GOLDSTEIN, 2003). É nesse contexto que
Amado iniciou as primeiras letras como escritor e foi enquadrado dentro do grupo de escritores
regionalistas, do romance de 30 (ARAÚJO, 2003). Este grupo de escritores tinha, por ideal,
desaristocratizar o acesso à cultura (GOLDSTEIN, 2003) num momento em que se estimava
ter o país 80% de analfabetos (AGUIAR, 2018); uma de suas influências foram os trabalhos de
Gilberto Freyre, como já comentado, tendo a perspectiva freiriana sobre a mestiçagem
tangenciado, de algum modo, o discurso de Amado durante toda a sua obra. Uma identidade
nacional vinculada à mestiçagem foi matéria-prima para as narrativas amadianas
(GOLDSTEIN, 2003).

A Constituição de 1934 instituiu o ensino fundamental obrigatório, ampliando o número de


escolas e leitores. E a estruturação do campo literário no país se deu de modo gradual entre
1930 e 1945, impulsionando o crescimento da indústria editorial e a crítica organizada
(GOLDSTEIN, 2003).

Durante a década de 1930, atuou como redator de jornais e militante político, e foi eleito
deputado federal em 1946, quando aprova emendas parlamentares que tratam da liberdade de
culto religioso e de direitos autorais. O mandato, cassado dois anos após com o cancelamento
do Partido Comunista, leva Amado a exilar-se inicialmente em Paris (AGUIAR, 2018). “O
preço a ser pago é o da própria liberdade de pensamento, e este é fato que extrapola o mundo
literário para se inscrever na história do século. Submetidas às estratégias de partido ou às
razões nem sempre visíveis do estado autoritário, a obra de intenção revolucionária vê
comprometida sua autonomia” (DUARTE, 2005, p. 25). Nesse sentido, poucos são os escritores
brasileiros que assumem de forma tão ampla a polêmica relação entre literatura e política; de
54

militante comunista a deputado federal pelo Partido Comunista, assumidamente, Amado viveu
por mais de vinte anos a condição de intelectual de partido (DUARTE, 2002).

Porém, embora Jorge Amado tivesse uma atuação político-partidária de modo efetivo inclusive
nos anos em que esteve vinculado ao Partido Comunista, compreendendo uma espécie, por
assim dizer, de revolucionário profissional — figura original e característica de nossa época,
mesmo que se tratasse de um radical de ocasião, que não apresenta qualquer compromisso com
a revolução; ainda assim, em algum momento da vida ele colaborou de alguma forma com a
mudança social, quer seja com uma palavra, com um artigo ou com o auxílio a um perseguido
(CÂNDIDO, 1980).

Há, nas narrativas de Amado, a presença central e permanente dos explorados e marginalizados
do sistema, seja no campo ou na cidade — homens, mulheres, pretos, brancos, mestiços,
proletários —, e devemos nos atentar à forma como esses personagens são representados por
Amado, além da linguagem que empregam (DUARTE, 1997). Outro ponto marcante do modo
como o autor conduz sua escrita está vinculado às sincronias históricas que permeiam os
personagens e suas vivências nas margens do espectro social (DUARTE, 1997).

Um dos destaques da escrita amadiana, para Cândido (1980), é que a maioria dos escritores
burgueses, sejam filhos ou acolhidos de camadas não populares, teriam grande dificuldade de
narrar situações para além do seu círculo de vivências. Mas é o povo comum que faz parte do
processo de criação e análise em Amado; essas pessoas comuns com suas opressões e injustiças,
portanto, não compreendem o assunto de suas narrativas, mas seus atores centrais (ARAÚJO,
2003).

Podemos, em realidade, dizer que o correto é, se tratando de Amado, que de sua escrita
emergiram, ao longo do Século XX, projetos de nação no plural, dada a sua vasta obra, dada as
alternativas propostas em seus discursos e dada a sua caminhada ideológica e intelectual. Ou
seja, os percursos e sentidos percorridos pela escrita amadiana passam pela formulação de
nossas feições enquanto povo e de uma literatura que lê o país sem mitigar suas mazelas
(DUARTE, 2002).

Não se permite, entretanto, diante de uma vasta escrita, que aponta fraturas históricas, diante de
personagens que operam nas margens e relações sociais dissonantes, a formulação de
55

significado unívoco sobre a obra de Jorge Amado, o que representaria problema de recepção
literária (DUARTE, 2002), inclusive porque o próprio discurso amadiano opera em fases ao
longo de sua trajetória (ROSSI, 2009).

Da obra amadiana, em todas as suas fases emergem socialmente vozes de classe, de gênero e
de etnia; na perspectiva de sua abordagem, as narrativas estão sempre voltadas para o outro, o
que nos permite fazer pontes quanto à figuração das lutas de mulheres, de negros e espoliados
em geral; com o predomínio de falas originadas “da periferia social e econômica do país, não
importa se das ruelas escuras de Salvador ou das terras onde se plantava no sul do Estado a
civilização do cacau” (DUARTE, 1997, p. 93).

Tributário das teses de Gilberto Freyre quanto à democracia racial, independente das polemicas
que envolvem esse conjunto de compreensões (DUARTE, 1997), elas representam uma forte
expressão de uma época — mas a ideia de mestiçagem freiriana se reflete com maior densidade
nas narrativas de Amado a partir da década de 1950, quando rompe com o Partido Comunista
e lança Gabriela, Cravo e Canela (ROSSI, 2004; 2009).

De modo mais geral, com narrativas focadas na exploração econômica e personagens centrais
pertencentes aos estratos sociais subalternos, os textos de Amado testemunham que o
pensamento de esquerda atravessou fronteiras geográficas e sociais, instalando-se em países
periféricos; enquanto fenômeno cultural, influenciou talvez muito mais que aquela exercida
pelo comunismo na política e economia (DUARTE, 2002). E assim, como ressalta Cândido
(1993),

Um traço saliente das literaturas latino-americanas é o cunho militante do escritor,


levando-o com frequência a participar da vida política e dos movimentos sociais, em
boa parte porque as condições do meio o empurram neste sentido. Isso produz duas
consequências. A primeira é que a atividade intelectual se torna em si mesma, pelo
simples fato de existir, um ato de participação, por vezes quase de militância, na
medida em que a produção intelectual, em particular a literária, se torna (numa
perspectiva “ilustrada” que vem de longe) contribuição para construir a nação, dando-
lhe um timbre de grandeza. A segunda consequência é o que o intelectual tende com
frequência a se politizar no sentido estrito, mais do que nos países cuja sociedade e
cultura estão sedimentadas de longa data, como na Europa, ou nos países que
transpuseram com maior fidelidade aos padrões metropolitanos, como os Estados
Unidos (CANDIDO, 1993, p. 264–265).
56

Candido (1993) complementa que, mesmo com a militância dos escritores, a América Latina
fazendo parte do que Ángel Rama se refere como fenômeno civilizatório ocidental, muitas
vezes aquilo que consideramos próprios de nossa literatura, na verdade, é comum à literatura
ocidental, ainda que com nossas próprias marcas diferenciais. Um exemplo disto é a escrita dos
literatos voltada para os setores médio e alto da sociedade (segmentos dos quais geralmente
eles mesmos tinham origem na primeira metade do Século XX), e não para os extratos populares
e para o operariado. Mas, especificamente no caso brasileiro, de acordo com Lucas (1997), o
problema social se evidenciou de modo nítido entre os romancistas pelos anos de 1930, pois,
antes disto, o que se percebia entre as classes pensantes era a incapacidade de desenvolver o
problema anticolonial em suas produções, fato que denunciaria a própria condição subalterna
da nossa literatura. E o que fica daquele compromisso político e partidário de Amado para as
gerações seguintes? Seus escritos nos contemplam e nos desafiam (DUARTE, 2005).

2.3 Literatura amadiana – memória, imaginário e as histórias locais

As memórias daquele menino grapiúnav presumem uma temporalidade que tem como síntese a
história vivida. Para muitos, a validade dessa história vivida se encontra no arquivo, no registro
oficial e no fato em si; mas, para outros, a história emerge de múltiplas basesvi, abordagens e
aspectos de uma mesma realidade. Assim, encontram-se na lembrança, na oralidade, em
fotografias, nos sentimentos idos, em cartas, diários pessoais, registros de viagem e cadernos
de campo; registros em papel ou não; relatam experiências que se mantêm conservadas nos seus
mais variados problemas e pontos de vista. Amado é, sem dúvida, um exímio narrador daqueles
modos de viver produzidos no espaço social que se constituiu enquanto zona cacaueira da Bahia
—– quiçá o mais cirúrgico e crítico, ácido e, ao mesmo tempo, descontraído —, talvez o mais
amplo e profundo narrador que aquelas terras do sem fim tenham conhecido.

A cultura baiana sem dúvida é o grande tema da obra de Jorge Amado, e o contexto
sociopolítico é o fio que conduz as narrativas (CÂMARA, 2013); o literato “é, ao mesmo tempo,
o homem da terra, menino que nasceu e cresceu concomitantemente com a nação grapiúna, e o

v
Neste “(...) pequeno livro, (...) são contadas as peripécias dos primeiros anos de vida do autor, mas, para além
das aventuras de um menino, há o relato de um homem amadurecido, ciente da sua importância como escritor e
como cidadão” (REIS, 2014, p. 01). Ver, AMADO, Jorge. O menino grapiúna. São Paulo: Companhia das Letras,
2010.
vi
Burke, Peter (org). A escrita da história. novas perspectivas. São Paulo: UNESP; 1992.
57

escritor engajado que viajou por diversas partes do mundo e pôde vivenciar e partilhar
experiências que se somaram às suas memórias” (REIS, 2014, p. 2).

Memória, portanto, embora pareça ser um fenômeno individual, íntimo, deve ser entendida,
sobretudo, como fenômeno social e coletivo; tem sido assim percebida desde os anos 1920–
1930 por Maurice Halbwachs (POLLAK, 1992). Essa memória, que é individual, mas também,
coletiva, é constituída pelos acontecimentos pessoalmente vividos e outros, “vividos por
tabela”, acontecimentos vivenciados pelo grupo ou coletividade em que a pessoa está inserida
e dos quais nem sempre ela participou efetivamente, mas que fazem parte do seu espaço-tempo
de identificação; socializados por meio da socialização política ou histórica (POLLAK, 1992).

A memória é constituída por estes acontecimentos, mas também é constituída por pessoas,
encontradas ao longo da vida; estes são os personagens dessas memórias, conhecidos
diretamente ou não, que não necessariamente pertenceram ao espaço-tempo vivenciado.
Somando-se aos acontecimentos e aos personagens da memória, temos finalmente os lugares
da memória; lugares ligados a uma lembrança pessoal ou social, apoiados no tempo cronológico
ou no tempo histórico da comunidade de pertença (POLLAK, 1992). Haveremos de ressaltar,
todavia, “que todos em todos os níveis, a memória é um fenômeno construído social e
individualmente” (POLLAK, 1992, p. 204).

E assim, os fatos vivenciados e sentidos por Jorge Amado em sua infância no sul baiano se
transformam em experiência narrável (REIS, 2014), pois fazer parte daquele quadro social
permitiu que se produzissem significações das imagens, relacionamentos e vivências
registrados na memória e compartilhados socialmente por seu grupo (SOUSA, 2001). Jorge
Amado inclusive assume: “Eu me lembro de meu pai saindo à noite, à frente de seus jagunços,
para proteger as eleições em Itabuna. É algo que eu conto, principalmente baseado em
informação, em O Menino Grapiúna, onde evoco minhas memórias de infância” (RAILLARD,
1990, p. 187–188).

O autor, ao responder à crítica quando o classificava ou identificava seu estilo com uma corrente
literária determinada, dizia, entretanto, que ele era, em verdade, um contador de histórias —
alguém que se colocava à disposição de suas memórias. Memorias vindas das histórias que
ouvia à beira do cais da Bahia, de velhos marinheiros, de mestres saveiros do recôncavo, nas
feiras, do povo de Iemanjá, de estivadores em Ilhéus — contador das histórias, de saberes e
58

canções dessas gentes. Além da escuta ativa com a absorção de discursos da oralidade, sua
escrita teve, por suporte e inspiração também, poemas, canções, receitas culinárias, cartas,
notícias de jornais (CÂMARA, 2013).

Literatos como Jorge Amado nos fazem relembrar aquela ampla discussão paradigmática
quanto ao próprio caráter da história como uma forma de literatura, ou seja, como narrativa
portadora de ficção!vii Seria, portanto, o inverso, e todos os historiadores são simplesmente uma
espécie de narradores de um segmento da realidade escolhida (e recontada) a partir de seus
próprios pontos de vista e valores? Entre as lógicas das diferenças e a política das semelhanças
entre literatura e aquilo que parece história ou antropologia, e vice-versa (MIGNOLO, 1993),
aqui compreendemos que o saber literário não necessita de outros saberes que a submetam,
validem, tangenciem ou corroborem. Portanto, a literatura é uma janela capaz de nos ofertar
imagens, sentimentos, expressões e vivências de tempos passados, todo o seu componente
imaginário vigora como mais um elemento contributivo diante dos estilhaços do real — o saber
literário carrega em si formas de acesso ao passado e possibilidades de compreensão da
realidade vivida — tanto através das memórias quanto do imaginário (LEENHARDT e
PESAVENTO, 1998).

Em Zilly (1993), encontramos que imaginário pode ser percebido simplesmente como um
conjunto de ideias e imagens, tratando-se de uma realidade sui generis; de algum modo é
autônoma e convincente, e até mesmo fascinante; que talvez traduza perfeição e coerência no
que elabora; e de modo não arbitrário, “que apela para as expectativas emocionais e intelectuais
do homem, ou pelo menos, de um grupo social” (ZILLY, 1993, p. 38).

Os estudos sobre o imaginário, portanto, nos dizem que ele compreende um sistema produtor
ligado à “atividade do espírito que extrapola as percepções sensíveis da realidade concreta,
definindo e qualificando espaços, temporalidades, práticas e atores, o imaginário representa
também o abstrato, o não-visto e não experimentado” (PESAVENTO, 2006, p. 1). Mas de tão
potente, ele se apresenta como elemento organizador e como sistema de representações sobre o
mundo, que identifica, classifica e valoriza o real. E então, seria possível dizer que o imaginário

vii
PESAVENTO, Sandra Jatahy et al. História & literatura: uma velha-nova história. Nuevo mundo mundos
nuevos, v. 6, p. 11–27, 2006.
59

é “um real mais real que o real concreto (...). O mundo passa a ser tal como nós o concebemos,
sentimos e avaliamos (...)” (PESAVENTO, 2006, p. 1).

Nesse sentido, a estetização de fatos ou narrativa da realidade responde à temporalidade de sua


produção, atende às compreensões e imaginários de país naquele dado momento. Do mesmo
modo, ocorrem as leituras realizadas dessas mesmas narrativas, a seu turno, são também
tributárias do seu próprio tempo, do tempo da leitura com seus horizontes de expectativas e
possíveis novas indagações da época. E como as ideias não possuem raízes e atravessam o
tempo e o espaço, permitindo novas apropriações e historicizações, eis a importância da
releitura de autores que revelam ou desvelam aspectos da realidade sob diversas perspectivas
(PESAVENTO, 2002).

Duarte (1997) nos diz que a escrita amadiana é marcada pelas temáticas e desafios de seu tempo,
que cada fase de vida lhe apresenta. Nas narrativas, ele reflete e referencia, portanto, o “(...)
sinal dos tempos e traços de uma escrita permanentemente demarcada pelo relógio da história
(DUARTE, 1997, p. 97). E assim, a literatura produzida por Jorge Amado, tal qual a
historiografia, a antropologia e a sociologia, por exemplo, tem o real como referente; e diante
de um recorte e um ponto de vista selecionado, também constrói e apresenta esse fragmento do
real. Fragmentos encarados por nós, como versões igualmente valiosas sobre o real vivido; a
literatura amadiana aqui, com suas memórias e imaginário, assume o lugar de discurso
privilegiado que nos auxilia com sua versão e possibilidades apresentadas — não a discutir se
existiu ou se existe dominação, pois ninguém nega isto (CARVALHO, 1997), mas a detectar a
natureza da dominação e das diferenças que “faz com quê o Brasil e a América Latina não sejam
os Estados Unidos ou a Europa, que sejam o Outro Ocidente” (CARVALHO, 1997, p. 5).

Nos lembra Ribeiro (2012), que a figura de Jorge Amado é presente e atuante no campo
literário, mas somente nele, com influência no mundo lusófono por décadas. Inclusive Bergamo
(2020), aponta que esta influência dos escritos amadianos em solo Africano junto à literatos e
jornalistas se deu no sentido da ruptura com o padrão colonial de poder, pois o

imaginário amadiano, reconhecível em obras que dão a ver os impactos do


subdesenvolvimento econômico, da modernização incompleta e dos conflitos sociais
acirrados, aspectos contraditórios da formação histórica e cultural do Brasil, cujas
incongruências principais atinentes à classe e à raça são faces da mesma problemática:
60

a opressão exacerbada do trabalhador do campo e da cidade proporcionada por um


sistema de superexploração caracterizado como capitalismo monopolista de ranço
colonial (BERGAMO, 2020, p. 118-119).

Curiosamente, o autor da escrita engajada, também é o autor brasileiro recordista em vendas.


Amado se tornou um autor do tipo best seller, tendo seus mais de 40 títulos publicados em 39
idiomas; e somente no Brasil, estima-se ter vendido, até os anos 2000, 30 milhões de exemplares
(GOLDSTEIN, 2003).

Desses títulos, sete estão ambientados no sul da Bahia e narram a vida na região cacaueira,
fazendo parte do ciclo de escrita sobre o cacau conforme nos mostra Araújo (2003). Jorge
Amado declara, inclusive, que são as coisas que conheceu e ouviu na infância que estão na base
do que criou e recriou, sendo a vida na região cacaueira essencialmente o que lhe formou
enquanto literato (RAILLARD, 1990).

As memórias de Amado, portanto, promoveram uma tradução ainda mais sensível do real, e
deslocando do ambiente propriamente urbano, nos mostra o outro lado dos processos de
urbanização Ilhéus; pois suas narrativas deram centralidade às relações de dependência e
assimetria entre coronéis e subalternos trabalhadores do cacau (SOUSA, 2001). Jorge Amado
primou pelo realce daquelas vozes dissonantes do sistema hegemônico local, que, nas terras do
sem fim, se organizou de modo sui generis. O literato contribui para a compreensão do
fenômeno da urbanização brasileira, pois traz à cena uma cidade do interior do Nordeste, com
profundas implicações entre a ordem urbana e a vida rural. “No enlace entre história e ficção,
poesia e documento, as memórias, individual e coletiva, desvelam outras verdades, filtradas
pela perspectiva de quem testemunhou fatos e se sensibilizou, de alguma forma, com a violência
desencadeada por eles (REIS, 2014, p. 09).

Lembremos ainda que seu estilo de escrita, sua forma de contar histórias têm muito da tradição
da oralidade nordestina; o que representa a ideia de alma comunitária de uma estética que se
declarava comprometida com os problemas sociais e encontrou as cidades da Bahia como
cenário preferencial (CÂMARA, 2013).

A cidade como o lugar privilegiado diante da “modernidade” e da experiência urbana tornou-


se uma paisagem inevitável para os literatos (GOMES, 1999), pois, em virtude de sua força
61

simbólica e seu potencial de experiência, a cidade real está sempre presente na literatura
(SARLO, 2007). E desse modo, naquela sociedade em transição de fins da República Velha, o
contraste entre o rural e urbano compreende um dos principais universos temáticos da literatura
amadiana (LUCAS, 1997). Isso porque, diante da complexidade de determinados objetos
teóricos construídos pela diferença colonial, a exemplo da ideia de modernidade, nos lembra
Mignolo (2020), faz-se indispensável a demolição de fronteiras disciplinares; com a elevação
de intercâmbios substanciais entre os teóricos da literatura e os cientistas sociais, de modo
especial entre os campos da antropologia e da história.

2.4 A cidade em Jorge Amado, uma cidade periférica

Antes de seguirmos, é preciso ressaltar que “nunca se deve confundir uma cidade com o
discurso que a descreve, contudo existe uma relação entre elas” (GOMES, 1999, p. 26), por
isso aqui entendemos que a Ilhéus referenciada em nossas fontes pode ou não tangenciar os
estudos científicos de base historiográfica, sociológica, geográfica e antropológica da Ilhéus
daquele início de Século XX; a Ilhéus e suas relações sociais em que nos debruçamos aqui é a
Ilhéus de Jorge Amado, do discurso amadiano.

De modo amplo, cabe esclarecer que, quando nos referimos ao discurso de Jorge Amado, no
sentido aqui empregado, nós nos referimos assim como em Souza Pinto e Mignolo (2015), que
discurso transcende obviamente o pronunciamento oral ou escrito e refere-se ao conjunto de
percepções de si e do mundo que Amado, enquanto sujeito, elaborou interativamente; e que,
nesse contexto, também é sinônimo de imaginário, de narrativa por se tratar de discurso
orientado à persuasão de leitores (SOUZA PINTO E MIGNOLO, 2015).

Nesse sentido, é central buscarmos compreender de que cidade o autor fala; a perspectiva que
o autor adota em sua ideia de cidade e como a cidade poderia ser compreendida em seu discurso.
Levando em consideração, portanto, seu engajamento político ideológico com o Partido
Comunista de base marxista na sua primeira fase de escrita (ROSSI, 2009), onde se situam os
títulos que aqui tomamos por fonte; Amado reuniu elementos do romance social, aquele em que
o elemento coletivo ocupa o primeiro plano e apresenta, como técnica, o contraponto e o
processo social em marcha; com o romance proletário, que destaca o ponto de vista do
trabalhador nas relações sociais, e, de modo central, evidencia a luta de classes (LUCAS, 1997).
62

Freitag (2012) nos apresenta, como sendo teoria sobre cidade numa tradição alemã, a reunião
de temas e compreensões de influência marxista que reúne de modo vital os elementos terra,
mais valia, propriedade privada e questão operária, ao debate quanto à origem das cidades e sua
expansão urbana, bipartida entre ricos e pobres.

A autora segue nos lembrando que Simmel contribui para tal escola com reflexões quanto à
grande cidade como o lugar da mais alta divisão econômica e social do trabalho, portanto, nesse
sistema, a cidade desponta como o lugar do insensível e do indiferente frente àqueles citadinos
tidos como invisíveis. Para Simmel, realça Freitag (2012), as cidades são formações históricas
e, como tal, reserva cada uma sua individualidade e reflete a cultura muito específica de seu
próprio tempo.

Ainda dentro da escola de tradição alemã, Weber, com suas visões sobre cidade, aponta-nos
que, para que haja cidade, é necessário conjugar fatores da economia, do poder e da propriedade
de terra, e que estes sejam regulamentados pelo grupo (FREITAG, 2012); a noção de cidade
encontrada no conjunto weberiano de traços definidores corresponde a um tipo de cidade e não
classifica como “incompleta” tantas quantas cidades possam não se identificar com aquelas
características apresentadas por Weber (1999). Numa perspectiva multidisciplinar, portanto, os
autores alemães “(...) descobriram a cidade como um tema central da sociologia, por ser a
‘cidade’ um objeto de estudo privilegiado da modernidade” (FREITAG, 2012, p. 17).

Já no Brasil, a literatura sobre cidades entre autores marxistas não focalizou o problema urbano
propriamente, mas as relações de trabalho que se desenvolvem nas cidades e centros industriais.
E assim, a partir das reflexões de Freitag (2012), encontramos similaridades entre a tradição da
escola alemã sobre cidades com a escrita amadiana; com as compreensões expressas por Jorge
Amado em sua literatura do ciclo do cacau. Teria, em alguma medida, o literato compartilhado,
inclusive, de preceitos como os de Marx, que denunciam “a miséria, a dor, o desamparo e a
incomunicabilidade entre os seres humanos nas cidades modernas do ocidente” (RISÉRIO,
2012, p. 177).

As experiências intelectuais, ideológicas e políticas de Jorge Amado e o modo como se


materializavam na sua escrita — em sua primeira fase de discurso (ROSSI, 2009) que vai até o
lançamento de Gabriela, Cravo e Canela (1954), fase de grande engajamento nas atividades
político-partidárias do Partido Comunista — refletem justamente o seu projeto que a um só
63

tempo era político e literário, e com uma literatura declaradamente proletária como o próprio
autor assumia (ROSSI, 2009; RAILLARD, 1990). E do socialismo utópico esse período do
discurso de Amado herdou o tom de denúncia das condições sociais de miséria, da crise de
moradia, da segregação dos pobres, da opressão da classe trabalhadora e a oposição entre cidade
e campo, dilemas que não encontrariam uma saída fora da revolução; portanto, a revolução
social que alteraria o sistema capitalista seria a real solução para todas as mazelas que se via
nas cidades modernas, urbanizadas (CHOAY, 2018).

O sentido de cidade em Jorge Amado, portanto, reúne as características da tradição alemã


apresentadas por Freitag (2012), quando observamos, sobretudo a partir do seu segundo livro,
o realismo socialista almejado por Amado, de modo muito evidente em Cacau (1933); que nos
apresenta uma estética marxista ligada ao objetivo e a uma reprodução do enredo de modo mais
fiel a uma perspectiva revolucionária de propósitos pedagógicos; bem como nos oferta uma
narrativa marcada pelo maniqueísmo muito evidente entre as classes. Cacau tem sua
importância reconhecida, pois foi a partir daí que Amado estreia no cenário dos romances do
Nordeste, com os embates da zona cacaueira do sul da Bahia enquanto temática. Tal título
marca também o ingresso do autor na crítica social, que passou a ser a tônica de seus romances.
Inclusive o próprio Amado afirma que Cacau (1933) e Suor (1934) são os cadernos de um
romancista aprendiz, com a introdução do espaço rural no primeiro, e o urbano, no segundo,
sendo que, com força, “a cidade ingressa num dos vetores da ficção de Jorge Amado” (LUCAS,
1997, p. 111).

Nos romances do ciclo do cacau, portanto, o autor aborda o movimento migratório, em que
sertanejos seguem para o sul da Bahia em busca de subsistência e alimentam a realização diante
do “sonho dourado da zona prospera do cacau” (LUCAS, 1997, p. 105). Ilhéus é um espaço
social de confluência das relações de poder que se estruturam em torno da cultura do cacau e
palco da urbanização que se acelera no início do Século XX e apresenta, no discurso amadiano
em Terras do Sem Fim e São Jorge dos Ilhéus, justamente os elementos de uma estética
marxista de cidade, alinhados à tradição alemã que Freitag (2012) nos ilustra. Amado reúne
centralmente os elementos terra, trabalho com sua mais valia e o capital, que Ilhéus se viu
desdobrar em duas fases: a primeira, com a hegemonia dos coronéis; e a segunda fase, quando
a terra muda de mãos e passa para representantes do capital internacional.
64

Embora a territorialização da dimensão política das relações dos coronéis esteja vinculada de
modo contundente ao espaço rural e suas fazendas — aqueles campos de força (SOUZA, 2018a)
—, é naquela cidade que aspira à modernidade que esse poder social e político se reforça; o
literato não faz diferenças entre o campo e a cidade, transitando entre um espaço e outro como
um continuum. Todavia, tanto campo quanto cidade colocam ênfase em estilos de vida e
promovem elaborações ideológicas; ambos são lugar de uma ideologia (ROMERO, 2009).

Embora fosse na urbanização de Ilhéus que se refletisse a potência econômica e os dilemas


sociais que emergiram na região junto com o cacau, é no campo onde acontecem as relações
que estruturam toda aquela sociedade sul-baiana. Assim, o que se percebe em Amado é que, se
o campo gera a cidade, esta, por sua vez, controla e domina o campo, do ponto de vista social,
político, militar (RISÉRIO, 2012).

A construção da ideia de cidade por Amado, em nossas fontes, reserva um lugar central nas
narrativas para a vida que socialmente se organizou em torno, e para além, daquelas existências
subalternas na Ilhéus do início do Século XX. Amado nos apresenta a filiação ao lugar e a
conexão dos sujeitos ditos comuns, com aquele espaço material que é sobretudo um espaço
social (SOUZA, 2018a). Isso porque muitos registros existem sobre os coronéis e seus feitos
naquela Ilhéus da virada do século, mas muito pouco foi dito por outros saberes de modo
problematizado e contextual, sobre a lida de trabalhadores no sul baiano.

O discurso amadiano sobre aquela cidade do sul da Bahia, portanto, nos apresenta a sociedade
grapiúna, ilheense em fins do Século XIX que se urbanizou e se integrou ao mercado
internacional de modo acelerado na virada do século; uma sociedade que se organizou desigual;
com alta concentração de poder e renda. Tais narrativas desse passado de uma cidade localizada
na periferia da periférica América Latina, com suas peculiaridades e particularidades, se
constroem a partir e por entre memórias, imaginário e sentido de cidade para o autor. Essa
cidade periférica, que não é mimética, justamente por responder a lógicas internas, levou alguns
cientistas sociais e literatos em especial a expressar como suas sociedades, suas cidades
reproduziriam aquela dinâmica de sociedades urbanas modernas (MORSE, 1995); e esse foi o
caso da Ilhéus de Jorge Amado.
65

Capítulo 3
CIDADES LATINAS POR ENTRE IDEIAS, LETRAS E FORMAS

A capital-cidade, a cidade-porto ou cidade-fronteiriça – zona de


desembarque, pilhagem e extração, uma praia militar, uma zona de
choque, uma zona de contato entre duas ou mais culturas – torna-se
assim uma borda, uma fronteira, um muro, uma vitrine – nem sempre
de dupla face – entre duas culturas: uma interior, regional, rural,
provinciana, vilarejo, e outra exterior, metropolitana, avassaladora,
babilônica, global e universal (ou falsamente universal). Habitante
dessa cidade lugar e não lugar, espaço e borda, moradia e lugar de
trânsito, o agente transcultural transformará a cidade borda, muro,
vitrine em: cabo, tubo, ponte, chave, válvula, artéria, conexão,
transmissão - encontro na rua, sala de aula, palco, praça, bordel, café.

Gustavo Remedi
66

As singularidades são muitas. Assim poderíamos começar a falar sobre as cidades na América
Latina. Cidades fundadas com funções preestabelecidas sob o arbítrio do velho, branco e
hegemônico mundo. Cidades que submeteram, segregaram e excluíram os grupos originários
de seus espaços sob a justificativa de edificar seu plano de ação na periferia dos impérios.
Cidades tangenciadas pela mentalidade conquistadora de povos colonialistas do Norte. Cidades
fidalgas, criollas, patrícias, burguesas: todas facetas das cidades importadas, forjadas e híbridas
da América Latina. “Mesmo levando em consideração que a história da América Latina é, por
sua vez, urbana e rural, a cidade é o foco dinâmico dessa história (...)” (ROMERO, 2009, p.
13).

Cada estrutura urbana comportou em si, suas próprias ideias de cidade e esteve à mercê dos
impactos das ideias nelas produzidas. Na mesma proporção, essas cidades ao longo do tempo
foram percebidas, apropriadas e problematizadas sob diversos modos, sob diversas perspectivas
e com aspectos epistemologicamente distintos. Então, como haveríamos de planificar a
compreensão quanto às cidades na América Latina? Nesse sentido, o que define uma delas,
dificilmente, serviria para definir uma outra (GORELIK, 2005).

Se cada uma dessas cidades apresenta características e qualidades distintas, o que dificulta sua
integração numa categoria mais abrangente, seria absurdo, portanto, buscar definir a cidade
latino-americana, diversa que é, através de uma representação categorizada a partir de um tipo
ideal, Pois “(...) a ‘cidade latino-americana’ existe, mas de outra forma: não como uma
ontologia, mas como uma construção cultural (GORELIK, 2005, p. 112). Definir nossas cidades
a partir de referenciais europeus de cidade, as quais possuem suas próprias trajetórias, formação,
disputas, ciclos migratórios, características naturais e geopolíticas, e enumeráveis outros
aspectos, aqui nos parece inconcebível.

A ideia de continente vazio, e, portanto, laboratório de novos ensaios daquele velho e experiente
mundo; o qual, por isso, configurou para alguns um novo mundo moderno de nascençaviii
justamente por ser produto da inovação e do progresso fomentado por seus colonizadores;

viii
Aqui fazemos referência ao título que reúne ensaios quanto às imagens e aos imaginários de uma nação,
prospectadas e “motivadas pelo desejo das elites brasileiras em nos matizar de modernidade, desde os tempos
coloniais” (p. 8). Ver ABDALA JÚNIOR, Benjamin; CARA, Salete de Almeida (Orgs.). Moderno de nascença:
figurações críticas do Brasil. São Paulo: Boitempo, 2006.
67

configura, em verdade, uma violência cultural e uma violência per si, para com todas as formas
de organização da vida que nas Américas preexistiam ao colonialismo, ou que aqui aconteceu
por opressão desse mesmo sistema (DE SOUZA PINTO e MIGNOLO, 2015). E tão violento
quanto é o movimento, que preconiza a invenção de tradições e novas realidades que se instituiu
na América ao Sul, que, ao invés de realçar o hibridismo fruto dessas sociabilidades, primou
por mitigá-lo, desconstruí-lo e descaracterizá-lo.

De modo inverso, mas como uma face desse mesmo processo hegemônico de poder que
concebe a América Latina enquanto um projeto, Bosi (1992) nos indaga:

A petrificação do conceito de colônia não seria responsável por essa obsessão do


descompasso que às vezes empana a nitidez do olhar? Metrópole e colônia: haveria
sempre e forçosamente duas linhas temporais paralelas – uma, longa, que já fez um
percurso considerável em direção ao desenvolvimento, merecendo, portanto, o selo
da modernidade; e a outra, mais curta, cujo ritmo lento a impediria de alcançar jamais
a extensão da primeira? (BOSI, 1992, p. 361).

Compreender os processos de construção das cidades na América Latina nos auxilia exatamente
a trilhar questões como esta, sugerida por Bosi (1992); auxilia-nos, sobretudo, em possíveis
respostas ou mesmo novas perguntas. “Quando a ideia de Brasil foi inventada e como essa
invenção se tornou o fundamento de uma história territorial que apagou outras memórias e
territorialidades?” (DE SOUZA PINTO e MIGNOLO, 2015, p. 382). O imaginário de
modernidade estaria condicionado, portanto, à vontade preditiva que antecedia sua existência
real, porém é na convivência cotidiana entre representações e realidades, que estas cidades,
histórica, social e culturalmente se produzem. Dessa forma,

(...) nos últimos anos desenvolveu-se uma importante quantidade de estudos


(históricos, sociológicos, antropológicos, urbanísticos) sobre cidades particulares da
América Latina, que vêm demonstrando a impossibilidade ou, pelo menos, a
esterilidade das comparações e das generalizações (GORELIK, 2005, p. 114).

A cidade como possibilidade de reflexão para além dos convencionais campos da


Administração Pública, da Geografia ou do Urbanismo nos apresenta através de outras
compreensões vindas da História Social, Literatura, da Antropologia Urbana, da Sociologia e
das Artes, por exemplo diferentes horizontes de estudos interdisciplinares. Diante deste
68

horizonte interdisciplinar, no Brasil vem crescendo o número de qualificados estudos que


lançam olhares diferenciados sobre a cidade guiados pela perspectiva dos Estudos
Organizacionais como um fio condutor de discussões plurais. Entre esses estudos, podemos
citar alguns, tais como: Fantinel (2019), Fantinel e Cavedon (2010), Fantinel e Fischer (2012),
Fischer (1997), Honorato e Saraiva (2016), Ipiranga (2016), Lacerda, Ipiranga e Thoene (2020),
Mac-Allister (2001; 2004; 2019), Pinto e Domingues (2020), Saraiva e Carrieri (2012; 2014),
Saraiva (2017; 2019) e Saraiva e Ipiranga (2020). “(...) Olhar para a vivência das cidades com
a lente dos Estudos Organizacionais, a partir de perspectivas diversas, se mostra urgente ou, em
outras palavras, é ‘um debate necessário’” (BALTAZAR, 2019, p. 07).

De modo crescente, a cidade se destaca enquanto valioso objeto de pesquisa, pois se constitui
a partir e através da preciosa confluência de pessoas, de saberes, das diferenças e de tantas
outras possibilidades dialógicas de conhecimento inclusive para os estudos organizacionais
(FISCHER, 1997). Cada cidade com seus elementos históricos, culturais e sociopolíticos é
única. Tal qual Gorelik (2005), que se deteve em Caracas com intuito de melhor entender (e
traduzir) o significado da simultaneidade de processos de definição de uma cidade latina a partir
de suas próprias particularidades, é exatamente a partir desta compreensão de unicidade que
nos lançamos à percepção da Ilhéus do início do Século XX. Isso se deve ao fato de que o
conjunto de seus elementos destaca a singularidade do núcleo urbano diferenciado que se
organizou aceleradamente entre 1880 e 1940, o qual ficou conhecido como Rainha do Sul
(GUERREIRO DE FREITAS; PARAÍSO, 2001).

Esse modo de interpretação de cidades é relativamente recente para as Ciências Sociais, pois o
pensamento que imperou até os anos de 1960 esteve enlaçado inadvertidamente, de acordo com
Gorelik (2005), a um modelo de urbanização clássico europeu — vinculado a uma miríade de
cidades de pequeno e médio porte, paralelamente distribuídas num território homogêneo,
planificação conceitual que não condiz com a realidade da cidade latina.

Nesse sentido, se “(...) uma cidade é expressão do povo que a constitui, habita e vivifica”
(RISÉRIO, 2012, p. 117), diante da trajetória sócio-histórica das cidades na América Latina,
percebemos o quanto nossas cidades carregam, em sua estruturação, espaços forçosamente
determinados para o outro, como um reflexo direto da exclusão social na segregação do espaço.
No Brasil, contraditoriamente, embora na cidade barroca não se percebesse uma absoluta
separação espacial — apesar do escravagismo e de toda a violência institucionalizada deste
69

sistema —, é com o crescimento dos núcleos urbanos em fins do Século XIX que a
diferenciação e a marginalização se acentuam e se tornam nítidas de modo nada consensual,
pois não haveremos de nos afastar da compreensão de que

É nesse momento que a cidade pode aparecer como máquina de tração de pautas
modernas de vida em regiões que prescindiam delas (os famosos “pólos de
desenvolvimento”) e a América Latina como uma região privilegiada para a mudança,
campo de provas na medida da hipótese modernizadora: porque, diferente de outras
regiões do Terceiro Mundo, se tratava de um continente incorporado ab initio à
modernidade ocidental, e por que nessa incorporação originária a cidade,
possivelmente pela primeira vez na história humana nessa escala, cumpre o papel de
ponta de lança em um território hostil (GORELIK, 2005, p. 118).

Em Quijano (2014), encontramos que a dependência dos países, regiões e cidades na América
Latina são componentes de um sistema de dependência que se origina com seu nascimento,
com sua formação sócio-histórica, e se organiza a partir da interdependência do sistema
capitalista em suas diversas fases, assumindo, portanto, muitas formas: a dependência
colonialista cede lugar à dependência imperialista e assim sucessivamente. Logo, a dependência
compreende um elemento constituidor da sociedade e das cidades latino-americanas. Sendo a
dependência econômica a mais evidente, porém a dependência histórica seria a mais
determinante ou preponderante, visto que as estruturas sociais específicas que norteiam as
relações em cada período estão relacionadas às alterações nos interesses dominantes
hegemônicos de sociedades colonialistas e metropolitanas. Daí, enquanto não houver mudança
na natureza desta estrutura de poder, não será possível alterar o próprio sentido e a natureza de
tais relações (QUIJANO, 2014).

Encontramos em Gorelik (2001) que os estudos de José Luis Romero reunidos em América
Latina, as cidades e as ideias abarcam um título único justamente para a compreensão da
dinâmica fundada nas sociedades urbanas latino-americanas. Romero (2009) nos conta, através
da história urbana da América Latina, a história ideológica da própria América Latina, pois
ideologia nesse sentido, vale ressaltar, é compreendida como forma social que se encontra no
corpo de crenças, ideias, valores e estilos de vida encarnados pelos variados grupos sociais em
seus múltiplos espaços de atuação e influência. Assim, a cidade latina desde o Século XVI
compreende uma projeção do mundo europeu — mercantil e burguês, que em nosso continente
70

buscou se organizar à sua imagem e semelhança neste enorme, estranho e desconhecido


território (ROMERO, 2009).

E, desse modo, Romero (2009) nos relata que as cidades latinas deram origem a novas
realidades com uma mútua influência produzida dialeticamente e sempre gerando situações
novas, nunca vistas. A cidade projetada e a realidade que a circunda vão se modificando
mutuamente, em alguns momentos, de forma bastante hostil e conflituosa, definindo, a partir
de tais relações, a história social e política na América Latina, o que permitiria a compreensão
tanto das teorias de aculturação quanto de transculturação. Romero (2009) procura identificar
na convivência tensa por entre representações e realidades aquilo que de desígnio e de
incompleto se percebe nas sociedades urbanas latino-americanas.

Nesse sentido, Gorelik (2001) esclarece que, em Romero (2009), o conflito entre
desenvolvimento autônomo e heterogêneo teria sido, de algum modo, em virtude da ofensiva
do campo sobre a cidade, reproduzindo na cidade aspectos do enclave rural. Daí, a cidade figura
na América Latina como o resultado de contínuas combinações e compromissos entre as muitas
facetas da sempre indeterminada emergência do novo, levando a uma dinâmica social que
perpassa o contato, a troca, a tensão e a fricção, e desagua na possibilidade de uma via de
conciliação: a ambicionada cultura comum, sendo a cidade um lugar para tal. Por outro lado,
encontraremos, para além das compreensões de Romero (2009), em Rama (2015), essa mesma
cidade, não somente das ideias, mas a cidade das letras, como bastião e ruína de uma
modernidade opressora (GORELIK, 2001).

Diversos são os modos de sentir e pensar cidades; múltiplos são os seus conceitos; polissêmicas
são as suas vozes e expressões. Compreendemos, aliás, que cidade não se trata de um mero
produto material, e havendo a produção da cidade, “é a obra de uma história, isto é, de pessoas
e de grupos bem determinados que realizam essa obra nas condições históricas. As condições,
que simultaneamente permitem e limitam as possibilidades, não são suficientes para explicar
aquilo que nasce delas, nelas, através delas” (LEFEBVRE, 2001, p. 52). Se comparássemos a
realidade cultural de uma cidade a um livro, teríamos a noção de que seus fenômenos não
compreendem objetos imediatos do cotidiano — como se a cidade estivesse dada —, pois assim,
como num livro, perceber as formas, as estruturas mentais e sociais dependem da mediação
daquele que narrou, e mesmo daquele que se debruça sobre a leitura dessa cidade. O contexto
dessa cidade, portanto, poderá ser atingido a partir do seu texto, “mas este não é dado. Para
71

atingi-lo, impõem-se operações intelectuais, trabalhos de reflexão (dedução, indução, tradução


e transdução)” (LEFEBVRE, 2001, p. 54).

Assim, a cidade nos convida a descobrir seus níveis de realidade que não transparecem, ou que,
por definição, não são exatamente transparentes, pois esta cidade escrita e prescrita tal qual um
livro é permeada por ideologias e reflete essas ideologias. Têm centralidade esses seus
“agentes” históricos e sociais, os quais se desdobram em ações e como resultado dessas ações,
nem seus mais variados grupos e formas de relações sociais (LEFEBVRE, 2001).

Neste estudo, portanto, assumimos, de modo interdisciplinar, a busca por ler, refletir e abordar
a cidade com suas complexas dimensões, sobretudo destas que se situam na América Latina,
pelo prisma organizacional, “o que abre a possibilidade para a observação da vida social
organizada” (SARAIVA e CARRIERI, 2012, p. 548).

3.1 Colonialismo e a ideia de cidade na América Latina, o planejado e o vivenciado

A América Latina, pensada desde o início do Século XVI como uma espécie de Nova Europa,
com, sobretudo, portugueses e espanhóis se debruçando a inventar o novo mundo à luz do
arquétipo do modelo europeu, ou, mesmo, dedicando-se à materialização da vida a partir de
uma adaptação desse modelo milenar às novas circunstâncias como uma espécie de ponto de
partida, lançou-se à primeira possibilidade, transplantando para as Américas os modos, padrões
e formas da vida europeia. Assim, “as cidades ibéricas nas Américas foram construídas e deram
seus primeiros passos no tempo em que Lisboa e Madri resplandeciam” (RISÉRIO, 2012, p.
63). A Coroa portuguesa implantou no Novo mundo seu projeto de cidade refletida na cidade
de São Salvador, capital da América portuguesa, para “(...) Stuart Schwartz, em Segredos
Internos: o Brasil foi criado não para transformar ou transcender, mas para reproduzir Portugal”
(RISÉRIO, 2012, p. 65).

Nessa perspectiva, o Novo Mundo e a América compreendem invenções europeias e cristãs


instadas no período monárquico e após pelos Estados Nacionais no Atlântico, estabelecendo-se
uma relação de dominação política, social e cultural a todos os continentes conquistados. A essa
dominação chamamos de colonialismo (QUIJANO, 1992). O mundo moderno-colonial seguiu
com sua formação histórica permeada por ações e narrativas produzidas, sobremaneira, em
72

quatro línguas modernas (e imperiais): o português, o castelhano, o francês e o inglês


(MIGNOLO, 2008).

E assim, os primeiros núcleos coloniais foram conformados a partir de processos adaptativos,


associativos e ideológicos refletidos na estrutura sociopolítica, nas tecnologias europeias, na
língua portuguesa e no controle social via Igreja e Estado. Portanto, “(...) as inovações
tecnológicas, as novas formas de ordenação da vida social e o novo aparato ideológico
proporcionaram as bases sobre as quais se edificaram a sociedade e a cultura brasileiras como
uma implantação colonial europeia” (RISÉRIO, 2012, p. 65). Todavia, embora Salvador
estivesse no centro desse processo e tanto lusos quanto espanhóis intencionassem a reprodução
de todas as suas instituições locais nas Américas, o mesmo fenômeno não ocorreu com a forma
urbana das cidades peninsulares fundadas naquele período. O espírito de geometria e da
racionalidade encarnado no urbanismo vitruviano e renascentista imperava enquanto projeção
a ser transplantada, ao menos teoricamente, mas esta disposição não vingou (RISÉRIO, 2012).

A cidade de Salvador foi um passo decisivo de Portugal para a estrutura político-administrativa


do Brasil, e, de modo planejado, o Governo geral centralizaria sua ação colonizadora. No
exercício de geometria e simetria, o traçado de Salvador reflete na planta daquela cidade-
fortaleza, a princípio, as ideias extraídas da compreensão vitruviano-renascentista de cidade,
com a geometria do traçado adaptando-se à topografia. A intensão simétrica e a projeção
racional do traçado de um tabuleiro dos movimentos iniciais da cidade não se sustentaram para
além de seu perímetro primeiro. O terreno acidentado e a ausência de disciplina das instâncias
superiores levaram à desconcentração, a irregularidade e ao emaranhado de variações orgânicas
no projeto original. Assim, o ideal de transplantação cultural das formas da vida europeia nos
trópicos não se cumpriu por inteiro, fora construída uma sociedade estruturalmente europeia,
mas as formas lusas de vida social não permaneceriam idênticas no novo continente em virtude
das relações sociais, ainda que assimétricas com indígenas e africanos, e também das
características ambientais brasileiras (RISÉRIO, 2012).

A princípio, a Coroa portuguesa previu a colonização do Brasil nos moldes africanos,


replicando aqui no litoral a mesma pratica de implantação de fortes e feitorias (RISÉRIO, 2012),
entretanto, na iminência do risco de perder territórios empreendeu-se uma colonização à
espanhola materializada na urbanização — com a ocupação das novas terras e a construção de
vilas e cidades. Na América lusa, portanto, convencionou-se, de modo planejado, fundar
73

cidades e vilas, e partir destas definir e gerar o campo. Mas esta é apenas uma tese genérica, de
natureza mais geral, e, quando a realidade urbana se torna corriqueira, alargam-se as
considerações e compreensões do processo de formação da urbe, processo que se configura a
partir de múltiplas formas, pois, é possível falar de diferenças entre a cidade europeia e a cidade
ibérica da América, cabe falar, inclusive, das diferenças das cidades latino- americanas entre si,
visto que são distintas em vários aspectos, desde o histórico ao urbanístico.

Nas cidades clássicas de domínio espanhol nas Américas, procurou-se estabelecer não o
convívio indisciplinado, íntimo e aberto às mestiçagens, mas sim um distanciamento, a rigor,
mantendo da ordem social à ordem urbana com uma constituição física da cidade e a
organização formal do espaço urbano de modo a espelhar e conservar a ordem social (RISÉRIO,
2012). O controle do desenvolvimento da ação colonizadora por parte da Coroa espanhola
estava na ordem do dia, e, para que não houvesse imprevistos, aconteceu uma série de
prescrições da política social e cultural objetivando que não ocorresse qualquer diferenciação
ou contingência nos planos designados. Assim, os espanhóis não pensaram em constituir nas
Américas sociedades inter-raciais. A geometria das suas cidades prezava por traços que
permitissem a distribuição hierárquica do espaço e fosse contra a mistura e a mestiçagem, em
especial, configurando a princípio um modelo segregacionista geométrico entre a cidade dos
espanhóis e os núcleos dos índios.

Já com relação aos portugueses, o que se coloca é que foram mais flexíveis e pragmáticos
(RISÉRIO, 2012) em seu projeto colonizador e na construção de suas cidades nos trópicos, pois
não tiveram a segregação como elemento central e, assim, não preconizaram a separação como
princípio da vida cotidiana tal qual ocorreu na América espanhola; emergiram, portanto, cidades
com menos regras, mais flexíveis e, de algum modo, mais conviviais. “Aqui as divisões nunca
se fixaram com tal nitidez. As coisas foram sempre mais atenuadas, ambíguas e confundíveis”
(RISÉRIO, 2012, p. 97). Não se trata de não haver preconceitos, perseguições ou violências,
mas o tecido urbano não foi formado a partir de diretrizes oficiais de seccionamento ou rigoroso
isolamento socio racial.

No Brasil, enquanto o regime escravagista distinguia de modo ríspido, imediato e brutal os


indivíduos, paradoxalmente, do ponto de vista das premissas de integração na urbe, as antigas
cidades do período colonial e imperial eram menos exclusivistas do ponto de vista das
sociabilidades, independentemente do modo como ocorriam tais sociabilidades. Embora não
74

fossem democráticas a sociedade e o sistema social nas cidades barrocas, o território urbano era
experienciado de modo mais aberto, e a cidade era palco do convívio mais amplo e da codivisão
mais igualitária dos espaços centrais citadinos entre senhores e escravizados, pois, até então,

(...) a gente mais pobre morava de um lado; a gente mais rica, de outro. Mas bastava
dar alguns passos para ir de um a outro lado. Todos se viam e, de alguma forma,
interagiam. E diversamente do que acontecia na Cidade do México, todos partilhavam
a zona central da cidade (RISÉRIO, 2012, p. 99).

As vidas se embaralhavam nas cidades justamente por não existir, a princípio, uma reprodução
rigorosamente desenhada da ordem social para o ordenamento urbano, o que, até certo ponto,
dava às nossas cidades a ideia de partilha e convivência democrática, ao menos no espaço
público, mesmo diante da segregação espacial de base socioeconômica e racial. A nossa
dinâmica urbana, com suas formas e relações, produziu limites e sociabilidades urbanas
tensionadas para além da alteridade forjada entre formas culturais europeias e expressões
africanas e ameríndias. E assim se organizou uma sociedade, dadas as devidas reservas, ao
mesmo tempo, hierárquica e informal, classista e gregária, excludente e convivial, cenário que
se inverte e se acirra gradualmente após os primeiros anos de República, fenômenos que
percebemos também em Ilhéus nos próximos itens de nosso texto.

Eis que nossa pesquisa se constrói a partir do aguçado olhar literário sobre o urbano, e este vai
por meio de nossas fontes, transmudando-se, articulando e se desdobrando em olhares
antropológicos, sociológicos, históricos da vida socialmente organizada, o que nos permite
compreender a urbanização na Ilhéus do nosso recorte temporal — tal qual em outras cidades
da América Latina — como um processo pendente, e dependente (QUIJANO, 2014). É
importante, nessa perspectiva, além de estudar os processos históricos mais gerais do processo
de urbanização da América Latina, abordar igualmente as dimensões específicas desses
processos em seus mais variados países e regiões, com suas interdependências externas e
internas. Afinal, não devemos estudar apenas algumas manifestações mais concretas do
processo de urbanização nas cidades latino-americanas, mas o processo conjunto de seus
significados, sem reduzi-los a qualquer de suas dimensões distintas e nem tampouco
desmembrar os fenômenos urbanos de suas relações de interdependência com o rural
(QUIJANO, 2014).
75

Assumimos, portanto, que, em se tratando de cidades na América Latina, há um sistema de


relações de dependência que igualmente interage com as singularidades sócio-históricas de cada
sociedade, e, dependentes que são, tendências e mudanças por este motivo orbitam em torno
desse sistema de relações que mencionamos. Voltaremos em breve a esse ponto.

3.2 Brasil, modernidade ou morte? Republicanar-se, urbanizar-se: eis a questão

A ocupação do território brasileiro desde os primeiros tempos, seja através do estímulo da


Coroa portuguesa à iniciativa privada, seja ao domínio religioso, promoveu, no tocante às
questões sociais, desde muito, profundas negatividades, pois permitiu grande distanciamento
da população em relação a sua estrutura político-administrativa, tendo o poder privado exercido
ao longo dos primeiros 400 anos de história do país um domínio inconteste. Os desdobramentos
dessas cenas iniciais de nossa história promoveram ausência de efetivo domínio público e de
garantias dos direitos civis com igualdade de todos perante a lei. O descaso da administração
colonial portuguesa pela educação primária, por exemplo, compreendeu outro grande
empecilho na formação de uma consciência de direitos, e encontramos, justamente na
escravidão, o fator mais negativo à cidadania. Ao fim do período imperial, o país estava dotado
de uma unidade territorial, linguística, cultural e religiosa, ao passo que se organizou, por entre
uma população analfabeta, uma sociedade escravocrata de economia monocultora e
latifundiária, e um estado de perfil absolutista (CARVALHO, 2002).

O Império brasileiro se realizou a partir de uma combinação de variados elementos importados:


na política, teve por inspiração o constitucionalismo inglês de Constant; na administração, a
influência centralizadora de Portugal e França; no direito administrativo, o viés francês, mas na
iminência de pressões, lançava mão de algumas das fórmulas anglo-americanas no tocante, por
exemplo, à justiça de paz e à limitada descentralização provincial. Do mesmo modo, no período
subsequente, houve inspirações de múltiplas bases, havendo, assim, alguns modelos e
percepções de República à disposição dos republicanos brasileiros (CARVALHO, 2017).
Como uma saída para aquele estado de coisas, o positivismo difuso no Brasil começou a dar
seus sinais nos anos de 1830, passando a tangenciar, de algum modo, o pensamento social
76

brasileiro desde então. Daí, compreendemos o imaginário que envolve a instalação de um


modelo a ser adotado de Repúblicaix.

Em diversos aspectos e segmentos, empreendeu-se um esforço persistente e reiterado no


impulsionamento das condições possíveis para a modernização nacional, de modo que a
sociedade, Estado e suas instituições sociais, econômicas, políticas e culturais pudessem se
reconhecer e exorcizar peculiares elementos de sua formação social como o escravismo, a
diversidade racial, a mestiçagem, e, assim, assemelhar-se aos padrões estabelecidos pelos países
capitalistas (IANNI, 1990). Nessa perspectiva, o fenômeno do poder opera por meio da co-
presença de três elementos permanentes — dominação, exploração e conflito —, formando um
complexo estrutural de caráter histórico e muito específico, ou seja, a existência social está
sempre vinculada a um determinado padrão histórico de poder (QUIJANO, 2002). Assim, havia
os que preconizavam a modernização com moldes democráticos; outros, numa base
conservadora ou mesmo em caráter simplesmente autoritário (IANNI, 1990).

Vale ressaltar, todavia, que a nação estava, em grande medida, controlada por grupos ligados à
economia de exportação-importação, ao tráfico de escravos, às grandes propriedades rurais, e,
nesse contexto, não havia ampla abertura e adesão à ideologia burguesa. Esse elemento é mais
uma peculiaridade que se soma à nossa realidade sociopolítica. Ademais, a maior parcela da
população se comprimia nos grandes domínios de terras e vivia na completa dependência dos
senhores rurais, sendo este, portanto, mais um traço da economia colonial (PRADO JÚNIOR,
2007). O sistema de relações sociais que emergiu do poder dos grandes proprietários rurais no
período subsequente ao fim do sistema escravagista, até certo ponto, explica o modo como o
trabalho livre foi conduzido, sobretudo em locais distantes dos grandes ou tradicionais centros,
mesmo em tempos de República, pois refletiam, em suas crenças e práticas,

(...) O conceito de dignidade do trabalho, a crença no trabalho como fonte de riqueza


e a fé na mobilidade social pareciam incongruentes, numa sociedade rigidamente

ix
Entre as variadas influências possíveis, ver Carvalho (2017, p. 23), que nos indica que “havia, assim, pelo menos
três modelos de república à disposição dos republicanos brasileiros. Dois deles, o americano e o positivista, embora
partindo de premissas totalmente distintas, acabavam dando ênfase a aspectos de organização do poder. O terceiro
colocava a intervenção popular como fundamento do novo regime, desdenhando os aspectos de
institucionalização. É verdade que a ideia de ditadura republicana era usada pelos dois modelos franceses, mas, na
versão jacobina, ela permanecia vaga, ao passo que os positivistas detalhavam o papel do ditador, do congresso,
as normas eleitorais, a política educacional etc. (...) Que ideias adotar, como adotá-las, que adaptações fazer, tudo
isso pode ser revelador das forças políticas e dos valores que predominam na sociedade importadora”.
77

hierárquica, onde o trabalho era identificado com a escravidão e a mobilidade social


era limitada (COSTA, 2007, p. 193).

Os últimos anos do Século XIX foram bastante movimentados do ponto de vista institucional,
político, econômico, todavia, as questões sociais apenas se acirravam e reiteravam-se ali a
diferenciação e a exclusão social. O Brasil inaugura o novo século desaguando em uma série
de empecilhos a ideia de modernidade tão almejada, e uma das principais fronteiras forjadas
diz respeito aos muitos poréns à cidadanização daqueles milhares de egressos do sistema
escravagista, sendo o problema social da escravidão um mal nunca reparado (CARVALHO,
2017).

Os prenúncios de um Brasil moderno traduziam o povo enquanto coletividade, mas essa


compreensão fazia parte ali, de uma espécie de ficção política (IANNI, 1990). Tem-se, portanto,
que, neste sentido, seria um país descolado de suas práticas tradicionais e arcaicas que, em tese,
esbarravam nas heranças sócio-político-culturais, por exemplo, vindas do escravismo, do
autoritarismo, do coronelismo e do clientelismo; com linhas bastante demarcadas nas relações
sociais e de trabalho, nos modos de ser e pensar a sociedade. Nesse contexto, vinculavam-se,
como lados de uma mesma moeda, atraso e progresso, colonialidade e modernidade, e núcleos
intelectuais e políticos se multiplicam buscando explicar o presente, exorcizar o que passou e
imaginar futuros, todos preocupados com essa relação oposta entre tradição e modernidade
(IANNI, 1994). Todavia, percebido de outro modo, é possível compreender que, na perspectiva
das Américas, a colonialidade é justamente constitutiva da modernidade (MIGNOLO, 2020).

Os núcleos urbanos, em sua maioria ligados a cidades litorâneas, funcionaram, ainda no início
do Século XX, reduzidos às funções político-administrativas e comerciais, com alguma
atividade cultural, educacional e religiosa, pois, numa sociedade essencialmente agrária,
escravagista e exportadora, as áreas urbanas, nesse período, compreendiam, sobremaneira, uma
extensão do domínio dos proprietários rurais, e, excetuando as cidades que atuavam como
portos exportadores, os demais núcleos urbanos, em sua grande maioria, viveram na órbita de
potentados rurais. Logo, o fenômeno urbano no Brasil no Século XIX nos fornece elementos
de um modelo de urbanização característico de uma economia colonial e periférica, e não dos
modelos clássicos de urbanização (COSTA, 2007).
78

Quando da Proclamação da República, forjou-se uma rés pública, visto que, até fins do Século
XIX, não haviam se constituído compreensões sobre sociedade política e cidadania: os direitos
civis eram benefício de poucos, os direitos políticos acessíveis a pouquíssimos e os direitos
sociais, inexistentes; até mesmo a assistência social estava a cargo da Igreja e da filantropia
(CARVALHO, 2002).

Lembremos, ainda, que, num período subsequente, o controle de acesso ao voto com suas
inúmeras restrições, bem como fenômenos como o coronelismo e o mandonismo,
permaneceram como impedimentos centrais à cidadanização. Portanto, nem mesmo uma
concepção de cidadania mais estreita e formal ligada à manifestação política dentro de um
sistema legal, foi possível até 1930. Pouco se cogitava quanto à existência de uma legislação
trabalhista ou à proteção ao trabalhador, tendo inclusive um retrocesso na Constituição
Republicana de 1891, quando se retirou a obrigação do Estado em fornecer educação primária,
que estava prevista na Constituição de 1824. Predominava o liberalismo ortodoxo, e a primeira
Constituição Republicana proibia o governo federal de interferir na regulamentação do
trabalho, sendo essa interferência considerada como uma violação à liberdade do exercício
profissional (CARVALHO, 2017).

Essa ideia de liberdade, que convinha aos novos tempos e vinculava-se à ideia mais ampla de
modernidade, era a liberdade voltada ao homem privado e ao seu direito de ir e vir, de
propriedade, de opinião, de religião. O Brasil, ao seu modo e mesmo diante de condições
históricas preexistentes adversas, importou ideias e instituições típicas de outros modelos de
República — especialmente as dos Estados Unidos e da França, que serviriam de referência
constante aos brasileiros (CARVALHO, 2017). Tais elementos são observados, especialmente,
quanto aos proprietários rurais paulistas, para os quais a centralização monárquica havia se
tornado asfixiante, sendo a República um modelo então ideal para estes, uma República
assemelhada ao modelo americano na qual convinha uma definição individualista do pacto
social. O darwinismo social, portanto, ganhou terreno diante desse contexto. Outro aspecto que
republicanos de São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul buscavam no novo regime era a
organização do poder inspirado no federalismo americano como solução para a ordem social e
política de então (COSTA, 2007; SCHWARCZ; STARLING, 2018).

Desse modo, a perspectiva positivista de República foi uma compreensão estruturante para a
nascente República no país, com a condenação do anacronismo monárquico em nome dos ideais
79

de progresso. A separação, portanto, entre a Igreja e o Estado era igualmente defendida em


nome da ordem social vinculada à família, pátria e humanidade. A ideia de povo deixa de ser
um apelo abstrato e se torna, para a proposta positivista, viável diante da incorporação formal
do proletariado a esta nova sociedade moderna, ainda que seja via proletariado estatal.
Preparou-se, assim, o clima para uma República positivista com seu cientificismo e tácito
evolucionismo, e, “por trás das alusões aos partidos e das acusações concernentes ao
escravismo, a retórica republicana trazia consigo estes pressupostos doutrinários”
(SALDANHA, 2011, p. 218).

Entretanto, a solução liberal ortodoxa não atraiu aqueles que buscavam perpetuar suas
vantagens e de seu grupo no controle de recursos de poder econômico e social; por conseguinte,
o sistema de livre competição figurou, como um entrave às antigas práticas cultivadas. Eis uma
peculiaridade da nossa formação sócio-histórica, e, assim, os apelos quanto à liberdade,
igualdade e participação foram operados apenas no nível da abstração, inclusive, a própria ideia
de povo era abstrata, e muitas das referências defendidas eram somente válidas no campo do
simbólico (CARVALHO, 2017). O liberalismo “pós-colonial”, desse modo, assentou suas
raízes num movimento que defendeu, conservou e franqueou a ideia de emancipação, todavia,
sem estendê-la ou reparti-la, de fato, com grupos subalternos (BOSI, 1992). O país seguiu
caracterizando-se pelas profundas desigualdades sociais, raciais, regionais e, de modo paralelo,
pela concentração de poder. O liberalismo, nesse contexto, consagrou as desigualdades do
período anterior e, somando-se ao presidencialismo, ao darwinismo republicano, reuniu
instrumentos político-ideológicos de um regime profundamente autoritário (CARVALHO,
2017; SCHWARCZ, 2019).

Assim, em Quijano (2002), encontramos que a força e a violência enquanto requisitos de toda
dominação, na sociedade moderna, não são exercidas de forma explícita e direta, ao menos não
de modo contínuo, mas camufladas por entre as estruturas institucionalizadas pelo poder
público ou, digamos, legitimadas por ideologias que embasam relações intersubjetivas entre os
variados segmentos de interesse entre o Estado e a população. Sendo a colonialidade do poder
a argamassa legitimatória mais profunda de tais relações (QUIJANO, 2002), não à toa que, no
Brasil, a República foi se conformando por entre uma sociedade profundamente desigual e
hierarquizada tanto do ponto de vista social quanto do aspecto econômico e político regional,
enquanto o interesse público naquele contexto, no geral, não representava a soma dos interesses
individuais.
80

Nesse sentido, a repressão e violência contra movimentos sociais no campo e na cidade, a


exemplo de Canudos, da Revolta da Vacina e do Contestado, revelam as formas mais extremas
de reação de uma República que se configurava, ao mesmo tempo, como liberal e patrimonial
(IANNI, 1994), pois o estado central brasileiro, durante toda a República Velha, dentro de um
projeto fundamentado na ciência e na técnica, tomou por atividade central a incorporação de
terras mais distantes e suas respectivas populações. Assim, expandiria o controle estatal que
conduziria a transformação daquela gente em brasileiros modernos — o pragmatismo
cientificista entrava em cena no Brasil (RISÉRIO, 2012).

Enquanto isso, encontramos o decênio de 1920 como uma sementeira para grandes mudanças
que não haviam ganhado fermento intelectual e social até ali. A extrema desigualdade social
que prevalecia foi deixando de ser vista com naturalidade, a partir de 1930, e esse florescimento
cultural de maior significado ocorreu em vários setores: na instrução pública, nas Artes e
Literatura, nos estudos históricos e sociais (IANNI, 1990). Outras ideias e novas formas de ver,
organizar e expressar o país emergem nesse período. Surgem o tenentismo, o movimento de
católicos do Centro Dom Vital, funda-se o Partido Comunista (FAUSTO, 1999), e, entre outros
acontecimentos, realiza-se a Semana de Arte Moderna em São Paulo. Enfim, o Brasil parece
inaugurar o seu Século XX e prenunciar um novo ciclo em sua história (IANNI, 1994).
Perguntavam-se, de algum modo, sobre os dilemas e contradições sociais do imenso país.
Esboçando crítica ou mesmo buscando reforçar determinados padrões sob nova roupagem, o
pensamento brasileiro, na primeira metade do Século XX, ocupou-se centralmente com a
questão nacional e sua multiplicidade de facetas.

Foram muitos e de diversos segmentos os interessados em compreender, explicar e forjar


elementos formadores e de transformação da nação, com suas forças sociais, valores culturais,
suas tradições, com suas diversidades sociais, regionais e étnicas:

Meditam sobre as três raças tristes, explicam a mestiçagem, imaginam a democracia


racial. (...) Olham no espelho das europas procurando modelos ideais para se
vangloriarem ou estranharem. (...) Fascinam ou assustam muitos dos que se miram
em espelhos franceses, ingleses, alemães, norte-americanos (IANNI, 1990, p. 26).
Tudo isso foi refletido e se expressou com desdobramentos significativos para a vida nas
cidades brasileiras. A materialidade do espaço urbano sofreu visíveis intervenções ao longo dos
81

primeiros anos do regime republicano, quando, imbuídos do discurso modernizador em nome


do progresso civilizatório, médicos, engenheiros, arquitetos, urbanistas levaram a cabo tal
processo. Era preciso racionalizar, embelezar e sanear as cidades no sentido de afastá-las do
passado e das heranças coloniais, modernizando-as. O copismo, com projetos de modernização
de cidades europeias, intensificou-se e tomou como exemplo, em muitos aspectos, a reforma de
Haussmannx — identificando Paris como parâmetro para as alterações empreendidas — , e,
desse modo, o processo de segregação socioespacial da vida nas cidades brasileiras foi se
acentuando. Paris assume, enquanto ideário de cidade, tanto a nível histórico quanto simbólico,
o paradigma da modernidade, e isto se dá, em certo sentido, em virtude das inéditas e extensas
intervenções urbanísticas realizadas na cidade — Paris passa a ser assimilada por todo o
Ocidente, enquanto capital civilizacional (VECCHI, 2002).

Na América Latina, Argentina e Brasil não ficaram de fora dessa espécie de “concerto”
recomendado para as grandes cidades: foi preciso então providenciar mudanças em Buenos
Aires e no Rio de Janeiro. O Rio, que era não apenas a capital do país, mas também o seu maior
porto e cidade, tornou-se vitrine das mudanças: modernizá-la e afrancesá-la seria indispensável:
“a capital precisava caminhar com o progresso. Fazer parte da civilização” (RISÉRIO, 2012, p.
195). Ações arquitetônicas, viárias e saneadoras geraram no Rio de Janeiro a desapropriação de
habitações populares que ganharam a alcunha de cortiços, além de pequenos comércios na
região central da cidade (CHALHOUB, 1996). E, no espaço reformado, o custo de vida se
ampliou por meio da valorização imobiliária, da alta dos alugueis, da cobrança de novos
impostos e taxas públicas. As reformas desaguaram numa crise habitacional proletária sem
precedentes (RISÉRIO, 2012). A assimetria social, portanto, foi se reproduzido também de
forma desigual na ocupação do espaço urbano. A República, com seus ideais de progresso
econômico e de uma ordem burguesa, imprimiu a disciplinarização do espaço nas cidades
(PESAVENTO, 1994).

x
Embora em Paris já houvesse projetos e esforços práticos que visavam à renovação urbana, foi durante a gestão
do prefeito Haussmann que se atribuem as principais alterações na planta da cidade. A modernização de Paris
atendeu a propósitos bonapartistas e materialmente se deu através do alargamento de avenidas, reconstrução do
sistema viário, construção de bulevares entre outros. Mas o que a gestão de Haussmann traz consigo, também e
sobretudo, é a construção do mito da ruptura radical em torno dele e do imperador, denotando que tudo que havia
antes deles era mesmo irrelevante: “criava-se um mito inovador (essencial a qualquer novo regime) e ajudava a
garantir a ideia de que não havia alternativa para o autoritarismo benevolente do Império. As propostas e os planos
republicanos, democráticos e socialistas das décadas de 1830 e 1840 eram impraticáveis e não mereciam
consideração. Haussmann criou a única solução factível, e era factível porque estava incorporada na autoridade do
Império (...)” (HARVEY, 2015, p. 23).
82

As reformas urbanas desse período foram chamadas de projeto de regeneração das cidades,
baseado, inclusive, na compreensão dos mestiços e população pobre como condenados à
degeneração pela ciência determinista que imperava na época (SCHWARCZ; STARLING,
2018). Era preciso dar um jeito naqueles ares provinciais e “degenerados” das grandes cidades
brasileiras. Como inaugurar-se junto aos preceitos da modernidade diante de cidades que em
tudo destoavam daquela Paris de Haussmann? Aquelas

cidades feias, sujas, escuras, apertadas, sem plano ou traçadas de forma


irregular, ocupadas ao acaso, confusas, tortuosas, com seus becos estreitos e
seus imundos cortiços, elas foram alvo de acirrados debates e violentos
ataques por parte de uma nova elite urbana, interessada em implantar no país
a cidade moderna, ordenada, higiênica, bela, tecnicamente resolvida
(PESAVENTO, 2006, p. 208).

O embelezamento no plano urbanístico trazia consigo embutida a ideia de embranquecimento


das áreas centrais, embranquecimento no sentido cultural e da paisagem humana, pois a cidade
que ali se afrancesava tinha com uma de suas pautas a ideologia do branqueamentoxi.
Europeizar-se vinculou-se também à ideia de se branquear, enquanto “a expressão “carioca” é
tupi (cary-oca), significando casa do branco. Diante da reforma do Rio, isto ganha um sentido
perverso. Mas a segregação que ali se promoveu foi social” (RISÉRIO, 2012, p. 201). O intuito
“civilizatório” do presidente Rodrigues Alves (1902–1906) de tornar o Rio uma vitrine para
interesses estrangeiros, como contrapartida de uma sociedade mestiça e, por isso, degenerada,
inaugurou o conjunto de ações tratado por eles como período de regeneração (SCHWARCZ;
STARLING, 2018).

Chalhoub (1996) nos apresenta que a demolição de cortiços e o afastamento dos pobres das
áreas centrais daquele Rio de Janeiro que se urbanizava, no bojo de suas reformas, elevou
discursos que identificavam de algum modo — e sob vários vieses — as classes pobres como
perigosas. E, assim, a legitimação das intervenções se organizou com a medicina higienista,

xi
“Faz parte de um certo modelo brasileiro negar e camuflar o conflito antes mesmo que ele se apresente de forma
evidente. Em 1900, por exemplo, diante da constatação de que este era mesmo um país mestiço e negro, preferiu-
se simplesmente retirar o quesito ‘cor’ do censo demográfico. Dessa maneira, embora os censos tenham sido
realizados no Brasil em 1872, 1890, 1900, 1920, 1940, 1950, 1970 e 1980, o item ‘cor’ não foi utilizado pelo
menos em três momentos: 1900, 1920 e 1970” (SCHWARCZ, 2012, p. 97).
83

cientificista e pretensamente neutra, alegando que, nos cortiços, havia promiscuidade e que isto
representava um perigo para a ordem pública. Aquelas habitações eram consideradas um foco
potencial da irradiação de epidemias e propagação de vícios, por isso, era necessário sanar
corpos de vícios pouco saudáveis. Esse processo, com seus movimentos pendulares, define
posições sociais do uso dos espaços a partir do enquadramento sócio-cultural-racial de
indivíduos. Desse modo, uma série de medidas de natureza política, jurídica, administrativa
marcam o nascedouro de cidades em princípios da República no Brasil, impondo a imagem do
que seria adequado do ponto de vista estético, moral e ético aos indivíduos sob pena de serem
subjugados ou postos à margem de todo o ordenamento social.

Classes pobres passaram a ser vistas como perigosas tanto por representar, por conta do estigma
da ociosidade, um problema na organização do trabalho e da manutenção da ordem pública,
mas também porque pobres ofereciam o perigo de contágio no caso das doenças transmissíveis
(CHALHOUB, 1996). A ideia de pobreza enquanto perigo social foi se ampliando no
imaginário e no discurso político brasileiro de fins do Século XIX. Na medida em que a
dinâmica dos aglomerados urbanos ganha novos contornos, o discurso racista reverbera com
novos elementos. E sobre esse discurso racista nos ensina Van Dijk (1997) que, em nível macro,
esses sistemas se organizam de modo complexo, social, político e culturalmente, por meio do
texto, da fala. Tais sistemas incluem temáticas específicas, tópicos recorrentes ou mesmo
preferenciais, retóricas de grupos, de organizações ou culturas inteiras, entre outras práticas.

Portanto, imagens da mestiçagem enquanto representação de classe perigosa denotam, de


maneira polar e antagônica, papéis sociais fundados sob a enunciação das ausências e valores
subjacentes, além de práticas sociais não explícitas, porém pejorativas, nas quais negros e
mestiços são associados diretamente à vagabundagem, logo, a contravenções. Imagens
estereotipadas ou discursos, deste modo, buscam ter aparência de realidade a fim de
convencerem que aquela é, de fato, uma faceta da realidade (PESAVENTO, 1994).
Classificações que instauram no país a legitimação das diferenças são frutos de muitos fatores,
que passam pela biologia até a estratificação do comportamento social. Essas classificações,
simbolicamente, ganham lugar e força, induzindo exclusões e inclusões no que se refere a
funções, papéis e valores (PESAVENTO, 2001).

Como explicações possíveis para a marginalização do negro para além da cor de sua pele,
encontramos em Souza (2018) que, no Brasil, houve a reprodução de um habitus precário ao
84

qual os ex-escravizados foram lançados no período pós-escravagista, somando-se a


precondições de socialização assimétricas e à disseminação de concepções morais e políticas
que passaram a atuar como ideias-força no início da República, além da sistematização da vida
produtiva e suas exigências formais e técnicas, que ampliaram a marginalização de negros no
país. O autor acrescenta que discursos relativos à correção dessas desigualdades, por meio de
variáveis meramente econômicas, somente contribuíram para a permanência da marginalização
e naturalização desta condiçãoxii.

Determinadas representações sociais foram construídas com vínculo direto com e a partir da
urbanização das cidades. Dessa forma, “(...) a cidadania e a exclusão são designações que
devem ser pensadas uma em relação a outra ou, até mesmo, só existem como significado
mediante essa relação” (PESAVENTO, 2001, p. 7). E, em comum, pobres, populares e
invisibilizados têm o fato de serem habitantes dessa urbe, mas sua inserção nos espaços das
cidades se dá de modo inferior na escala social e econômica, gerando subalternidades.

Economicamente, são pobres, e seu acesso ao consumo é limitado. Mais que isto, não
tem meios de subsistência, e, para eles, a moradia se configura como um dos maiores
problemas, logo abaixo da subsistência. Desempenham as tarefas menos qualificadas
e podem engajar-se ou não no mercado formal de trabalho. Ora são empregados de
alguém, tendo, pois, um patrão e dele recebendo o seu sustento, pelo desempenho de
uma tarefa regulamentada e controlada, ora são “avulsos”, free-lancers, que vivem de
“expedientes”, biscates, pequenas tarefas. Politicamente, são os tais cidadãos de
segunda ordem, pouco ouvidos pelas autoridades em suas reclamações e sendo
considerados suspeitos aos olhos da polícia.

O discurso racista, segundo podemos perceber no contexto aqui dimensionado, não


compreendeu um simples evento comunicativo específico, ou uma forma oral ou escrita de
interação verbal ou uso da linguagem em particular, mas sim um tipo de discurso que remete a
uma coleção de discursos “(...) quando falamos de ‘discurso médico’, de ‘discurso político’ ou

xii
Jessé de Souza aponta que a naturalização da desigualdade social no Brasil com a produção de “subcidadãos”
foi um fenômeno de massa resultante “de um efetivo processo de modernização de grandes proporções que se
implanta paulatinamente no país a partir de inícios do Século XIX” (SOUZA, 2006, p. 23). Argumenta o autor,
inclusive, que a desigualdade e a naturalização desta na vida cotidiana é um fenômeno moderno, visto a eficácia
de valores e instituições modernas em seu movimento de importação de padrões de fora para dentro, sendo que a
impessoalidade apregoada em detrimento da então personalização das relações é o que torna opaca e de difícil
percepção a desigualdade na vida cotidiana e urbana.
85

mesmo de ‘discurso racista’(...)” (VAN DIJK, 2001, p. 192), coleções de discursos, portanto,
que se vinculam ao sistema sociopolítico hegemônico de início do Século XX. Nesse sentido,
ao longo da história, encontramos discursos que reduzem, categorizam, estratificam,
hierarquizam diante de certos padrões, infantilizando e menosprezando, assim, seus
protagonistas; discursos invariavelmente aplicados com a devida ciência do seu poder
reducionista e destrutivo (KUSTER, 2014). Desse modo, inclusive do ponto de vista dos
discursos, a “(...) a subalternidade leva a pensar em relações de subordinação e de dominação,
em exclusão política, em inserção por baixo na estrutura social, em ausência ou presença pouco
significativa de direitos frente ao grande acúmulo de deveres” (PESAVENTO, 1994, p. 13).

Nas grandes cidades brasileiras nas primeiras décadas do Século XX, encontramos que em São
Paulo, a política de transformação urbana pautou também sua modernização à luz da
europeização, buscando a valorização da área central como espaço de prestígio e poder —
potencializando e centralizando funções de dominação urbana e regional, com o
embelezamento dos espaços públicos voltados à estética e ao equipamento dessas zonas. A
estruturação do centro urbano paulista foi projetada, assim, para que protagonizasse suas
funções comerciais, culturais e institucionais — espaços de prestígio e poder simbólico. A
cidade caminhou a passos largos com seus preceitos de segregação socioespacial e geográfica.
Diante do predomínio da propriedade imobiliária e fundiária em nossa realidade, as concepções
de urbanismo europeu no campo habitacional não encontraram viabilidade e assimilação, assim,
o corpus conceitual do urbanismo foi mobilizado no Brasil de modo seletivo e parcial
(RISÉRIO, 2012).

Já Belo Horizonte, que nasceu planejada e organizada dentro desse sentido de modernidade,
fora especialmente projetada para sediar o governo do estado; encontrando-se dentro dos novos
arranjos do projeto político republicano e moderno, conviveu do mesmo modo, com inclusão e
exclusão, com o avanço tecnológico e com repressão social (SCHWARCZ; STARLING, 2018).

Embora a urbanização fosse um processo sem volta e alterasse de modo acelerado o cenário de
grandes cidades brasileiras, o país continuou eminentemente agrário durante a primeira
República. No censo de 1920, 69,7% da população vivia no campo, cerca de 6,3 milhões de
pessoas (SCHWARCZ; STARLING, 2018). Diante das nuances apresentadas, compreendemos
melhor a natureza do processo de desenvolvimento urbano brasileiro e percebemos que as
matrizes fundantes da economia do Século XIX mantiveram-se praticamente intactas nas
86

primeiras décadas do Século XX, com a predominância, embora em tempos republicanos, dos
valores da dominação e comportamentos conservadores que em nada se diferenciavam da
sociedade tradicional, inclusive com a preponderância da população rural sobre a urbana. Tal
processo de urbanização, como se deu, colaborou para o distanciamento e reforçou a imagem
distinta entre o habitante do interior e o da capital, entre o emancipado morador da cidade e o
tabaréu do campo (COSTA, 2007).

Obviamente que cada cidade brasileira apresenta suas peculiaridades diante dos elementos mais
gerais apresentados até aqui. Com o processo de urbanização de Ilhéus não foi diferente.
Embora a colonização europeia nas Américas tenha primado por cidades fundadoras do campo,
veremos no próximo tópico que, no sul da Bahia, pelas nuances de sua longa trajetória sócio-
histórica, antes de se tornar um centro urbano de projeção internacional, Ilhéus era uma vila
sem expressão, e o lócus rural, com o desenvolvimento da cultura cacaueira, é que potencializou
a cidade e sua urbanização.

Sendo Ilhéus a cidade de maior expressão no sul baiano e cenário preferencial da inspiração
para as narrativas de Jorge Amado sobre o ciclo do cacau; narrativas estas aqui tomadas por
fontes, o próximo subitem deste capítulo nos apresenta justamente alguns elementos e
especificidades da formação sócio-histórica daquela cidade.
87

3.3 Ilhéus - De capitania à Rainha do sul: cidade patrícia, mestiça e burguesaxiii?

A capitania doada em 1534 por D. João III a Jorge de Figueiredo Correia tinha densa cobertura
de florestas e era habitada, sobretudo, por Tupis, Grên e Botocudos. A sede da capitania, de
início, foi a ilha de Tinharé, mas o local foi considerado inadequado para a defesa e expansão
do povoado. Assim, o novo espaço escolhido foi o que sedia, até os dias atuais, a cidade de
Ilhéus. Engenhos foram construídos de imediato em seus arredores, visando à inserção da
Capitania nos negócios da economia colonial (GUERREIRO DE FREITAS; PARAÍSO, 2001).

Nos primeiros anos, o projeto açucareiro na capitania de São Jorge dos Ilhéus teve como base
o trabalho escravo indígena, porém os mecanismos de dominação ali impressos pelos colonos
logo provocaram insatisfação e revoltas. Conta-nos Guerreiro de Freitas e Paraíso (2001) que
havia constantes violações dos territórios indígenas com a ampliação de canaviais, dos
engenhos de açúcar e com a construção dos povoados, bem como a imposição de trabalho
escravo aos prisioneiros de guerra, o que fez romper os termos da aliança tácita estabelecida,
com ameaça ao projeto de colonização na região.

A hostilidade do indígena do litoral e mesmo dos que habitavam os sertões juntamente com a
inabilidade dos colonos às novas condições de vida e trabalho levaram a Coroa portuguesa a
outras intervenções frente não somente aos ataques indígenas, mas à ação de franceses na costa,
o que tornou vulnerável muitos de seus empreendimentos em várias das capitanias naquelas
décadas iniciais do projeto colonizador. “(...) No caso do primeiro governador, sequer sua visita
a Ilhéus, em 1552, quando autorizou a construção de obras destinadas à defesa dos povoados e
dos engenhos, resultou em alteração significativa nos conflitos” (GUERREIRO DE FREITAS;
PARAÍSO, 2001, p. 16). Ao contrário, em anos subsequentes, há uma série de relatos de

xiii
Aqui fazemos uma breve referência ou correlação ao modo como o historiador argentino José Luis Romero
estrutura em América Latina: as cidades e as ideias, de 1976, e nos apresenta pelo ângulo das cidades na América
Latina um estudo que vai da colonização da América, até o sistema capitalista no Século XX. Para o autor, existe
uma estreita relação entre o desenvolvimento das cidades e determinadas formas de vida e mentalidade que vai se
elaborando, ganhando formas e influenciando de modo decisivo tais cidades, tendo a mentalidade urbana
representado uma verdadeira ideologia para as cidades latino-americanas, ordenando tendências socioeconômicas
e políticas associadas ao espaço e à vida social de cada grupo. Neste livro, Romero se debruça sobre a literatura
viajante, sobre romances, jornais e outros; e nos convida a conhecer a história das cidades como um meio
insubstituível de compreender o sentido mais amplo da história geral da América Latina. Portanto, ao nos
apresentar as cidades fidalgas nas Índias, as cidades criollas, as cidades patrícias, as cidades burguesas e as cidades
massificadas, Romero nos ensina sobre o papel das cidades na expansão para a periferia, sobre o ciclo de fundações
de cidades e os estilos que essas cidades seguiram desenvolvendo; ademais, sua leitura nos inspira na construção
deste trabalho.
88

confrontos diretos e cada vez mais violentos, a exemplo do ocorrido em uma das visitas do
governador, quando as tropas da Coroa destruíram todas as aldeias que se opuseram à sua
presença e, enfileirados na praia de Olivença, a quantidade de corpos somava perto de uma
légua. O aldeamento indígena, portanto, foi a única alternativa para a sobrevivência dos
derrotados. A partir daí, estreitou-se a aliança entre Jesuítas e o governo da colônia, com atuação
da Cia. de Jesus em Ilhéus, admitindo o uso de força extrema para formação de aldeamentos
compulsórios, promovendo, inclusive, a conversão desses índios ao cristianismo.

Todavia, as epidemias de febre e de varíola dizimaram um terço da população de índios


aldeados no litoral, e, novamente, colonos se lançaram agora pelos sertões, incrementando o
apresamento na busca por substituição e subordinação de maior número de trabalhadores
indígenas. Isso dificultou ainda mais a administração da Capitania, pois as várias tentativas de
apresamento de índios e busca por minerais, por meio das entradas, não surtiram efeitos
esperados. Nem mesmo a aquisição de quatrocentos escravos vindos da Guiné para os trabalhos
nos engenhos de Ilhéus apresentou os resultados desejados (GUERREIRO DE FREITAS;
PARAÍSO, 2001).

Por volta de 1580, a Capitania de Ilhéus se encontrava em decadência produtiva e marginalizada


no circuito comercial da colônia, com engenhos sendo abandonados ou com baixa atividade por
falta de mão de obra e suas gentes fugindo rumo à Bahia. A geografia da capitania também
configurou um elemento do insucesso da Ilhéus dos primeiros tempos: as naus grandes ficavam
a uma légua de distância do porto, grande empecilho ao desenvolvimento dos projetos
agroexportadores dos donatários (GUERREIRO DE FREITAS; PARAÍSO, 2001). Desse
modo, a falência da Capitania de Ilhéus levou à migração de grande parte de seus moradores e
colonos, sobretudo, para a capitania da Bahia, ocorrendo considerável despovoamento da
região.

Em virtude do alegado estado de abandono administrativo por parte dos donatários, a capitania
de Ilhéus foi incorporada à Coroa, passando a ser subordinada, como comarca, à Capitania da
Bahia. Assim, a vila de São Jorge dos Ilhéus e seus cerca de 2 mil habitantes, durante o período
colonial e até meados do Século XIX, produzia madeira, aguardente, açúcar e mandioca. A
maior parte do que era produzido seguia para o mercado consumidor de Salvador e uma
pequena parte dessa produção, exportada para a Europa (MAHONY, 2007).
89

Muitos naturalistas visitaram a Comarca de Ilhéus e a região do rio Pardo interessados em


conhecer, em tese, os índios Botocudos que, naquele período, eram tidos como os mais arredios
e selvagens, mas também os financiadores europeus dessas expedições aguardavam por
informações de base social, econômica e geográfica. Em referência às qualidades da região,
“Varnhagen diz que ‘todo o país vizinho era abundantíssimo de mananciais, sendo as chuvas
mui frequentes; e o terreno montuoso e coberto de vegetação vigorosa prometia a este distrito,
quando bem cultivado, toda a sorte de riqueza e prosperidade’” (SANTOS, 1957, p. 40).

O estímulo a concessões para ação de investidores particulares nas Comarcas do sul (Ilhéus e
Porto Seguro) durante os oitocentos, perdurou como uma saída à baixa atuação do governo
central na região. Para Spix, Martius e o Príncipe Maximiliano — brasilianistas que também
exploraram a região — a ocupação local mal sucedida, o isolamento e o estado lastimoso da
vila se deviam, para além dos conflitos e ataques indígenas, à indolência e falta de educação de
seus moradores pouco afeitos ao trabalho (GUERREIRO DE FREITAS; PARAÍSO, 2001).

A partir de 1808, incrementaram-se políticas de fomento para exploração de novas áreas e


introdução de novos produtos tanto para exportação quanto para ampliação de um mercado
interno. A segunda metade do Século XIX foi marcada por grandes mudanças na estrutura
política-administrativa da colônia, e o Rio de Janeiro desponta como grande polo consumidor
diante do crescimento demográfico e com diferentes hábitos de consumo que se apresentaram
junto ao perfil dos novos habitantes. Daí, “(...) tornar essa região um novo recôncavo parecia
ser um sonho possível” (MATTOSO, 1992, p. 65).

Nesse mesmo período, como vimos em Mahony (2001), as primeiras mudas de cacau foram
trazidas da África para a Bahia, por mulheres e homens escravizados, com evidências de que
os escravizados do sul da Bahia foram essenciais ao estabelecimento da economia cacaueira e
de toda uma sociedade que se organizou ali com a ampliação da lavoura do cacau. A comarca
de Ilhéus, pelos anos de 1880, compreendia ainda um território com predominância de mata
nativa, com cerca de quinhentas propriedades agrícolas de variados tamanhos, e sua população
entre escravos e pessoas livres somava, aproximadamente, 10.000 habitantes (MAHONY,
2007). Nesses momentos iniciais, havia ainda uma pulverização das roças de cacau, e a maioria
estava nas mãos de pessoas pobres, somando pouco menos de mil cacaueiros. Entretanto,
grandes proprietários já haviam conseguido plantar cerca de duzentos mil pés de cacau na região
(MAHONY, 2007).
90

Devido às restrições ao tráfico de escravizados, reforçou-se a intenção de formar colônias


agrícolas como saída para a crença de que, com a ausência da mão de obra negra, haveria o
colapso na agricultura brasileira. Na segunda metade do Século XX, portanto, a escassez ou a
“raridade de braços” preocupava o governo da província da Bahia em virtude da crise que se
prenunciava na economia baiana (LYRA, 2016). A lei de terras viria promover, inclusive, a
formação de efetivas colônias agrícolas, como veremos adiante.

Esse cenário começa a se alterar apenas a partir de 1850 com a Lei de Terras, quando a aquisição
de terras públicas passou a ser exclusivamente através de compra, pondo fim aos tradicionais
acessos à terra através da posse e doações pela Coroa portuguesa. Aqueles que obtiveram
propriedades de modo ilegal, ocupando-as nos anos que antecederam a lei, e aqueles que as
receberam em doação, mas que não preencheram exigências para legitimar tais propriedades,
puderam, desde que tivessem de fato as ocupado e as explorado, recolher taxas e legalizar seus
títulos. Assim, criou-se um sistema burocrático em torno do controle das terras públicas, e o
produto das vendas de terras e taxas de regularização seriam convertidas na organização dessa
demarcação e na importação de colonos livres. Entre os parlamentares da época, existiam duas
visões conflitantes na concepção da propriedade da terra, da política de terra e trabalho — de
modo tradicional, terra era concebida como de domínio da Coroa, e, na perspectiva moderna, a
terra deveria tornar-se de domínio público. Essa transição começou no Século XVI e perdurou
até o Século XX, alterando-se significativamente em sua concepção. De acordo com Costa
(2007), a terra doada compreendia uma recompensa aos serviços prestados à Coroa, acessível,
entretanto, apenas àqueles que pudessem explorá-las lucrativamente. Essa terra passou a ser
compreendida enquanto mercadoria, potencializando prestígio social e poder econômico aos
que pudessem acessá-la.

De modo mais amplo, antes da Lei de terras, a doação real direcionava as condições de uso e
limitava o tamanho do lote, mas conferia prestígio social e reconhecimento de méritos ao
beneficiário; posteriormente, quando a terra passou a ser franqueada enquanto propriedade
privada, as decisões quanto à sua utilização passaram ao crivo do indivíduo, o que inverteu uma
lógica secular, pois, no começo da colonização, a terra compreendia patrimônio da Coroa e sua
concessão estava vinculada à avaliação do pretendente observando-se seu status social,
qualidades pessoais e boas relações mantidas com a Coroa, ou seja, havia o arbítrio real, e não
um direito inerente ao seu pleiteante e ao domínio público (COSTA, 2007).
91

Ilhéus, portanto, vivenciou ambas as formas de acesso à terra, sendo que a migração intensa
para a região sul da Bahia se deu justamente após a Lei de Terras de 1850, quando, de início,
numa espécie de situação anárquica no sistema de propriedade rural (COSTA, 2007), as posses
de terra se ampliaram de forma descontrolada, com a ocupação de grandes extensões com
demarcações indefinidas de seus limites, e, mesmo sem possuírem o estatuto legal da terra, elas
foram avaliadas, compradas, vendidas, negociadas, especuladas, disputadas entre pretensos
posseiros. “A situação agravou-se com a expansão das plantations em razão da crescente
demanda de produtos tropicais no mercado internacional” (COSTA, 2007, p. 178).

Em se falando de plantationxiv, longe de ser um elemento natural, o cacau, embora sua


pertinência junto àquelas especificidades ecológicas, passou a figurar para o sul da Bahia como
um elemento central e agente da história. Todas as tentativas ao longo de quatro séculos na
ocupação e desenvolvimento produtivo da Capitania de São Jorge dos Ilhéus não surtiram os
efeitos desejados em nenhuma das épocas que antecederam a cultura do cacau. O sul da
província da Bahia, do ponto de vista agrícola, realmente se desenvolveu em fins do Século
XIX (MATTOSO, 1992), quando a zona do estado que passou a se definir e ser definida a partir
do cacau foi conformada a partir de três elementos sócio-históricos: a monocultura exportadora,
o latifúndio e o trabalho subalterno.

A paisagem socialxv colonial se modificou, pois a chegada do cacau alterou significativamente


relações e espaços. O cenário foi propício à instalação de colonos estrangeiros, e, em 1857, foi
criada a Associação Baiana de Colonização, que contava com acionistas brasileiros e
estrangeiros, e englobava, também, a Província de Sergipe. O objetivo dessa companhia era
promover a imigração de famílias camponesas que pudessem se instalar seja em terras
devolutas, seja em terras de domínio público ou particular, compradas ou mesmo aforadas pela
associação (GUERREIRO DE FREITAS; PARAÍSO, 2001). As colônias agrícolas formadas
por nacionais também datam da mesma época e foram criadas sete delas no sul da Bahia, com

xiv
Plantation via de regra se refere ao sistema que combina a exploração do trabalho, seja escravo, compulsório
ou mesmo assalariado; e o uso de grandes extensões de terra para produção de item agrícola central e voltado para
o mercado exportador. Essa noção encontramos, por exemplo, nos escritos de Caio Prado Jr., Celso Furtado e
Sérgio Buarque de Holanda.
xv
“A paisagem social é também, como o nome indica, interação. É humanização de um horizonte, é natureza
perpassada pela ação do homem. É contato, troca, simbiose, enfrentamento, acomodação, sociabilidade, enfim. É
com a cidade, produto do social, afirmação de uma humanidade que busca dominar a natureza, que se tem uma
modificação da paisagem, dadas não somente pela transformação do espaço e do meio como pela diversificação e
proliferação das relações sociais” (PESAVENTO, 2006, p. 209).
92

assentamento de mais de duas mil pessoas, que, em sua maioria, eram migrantes oriundos do
centro e do norte da província. Colônias de nacionais na segunda metade do Século XIX
surgem, inclusive, como uma medida para os problemas sociais citadinos, diante da ampliação
do fluxo de populações rurais em migração, às quais se atribuíam a mendicância, a ignorância,
furtos e a miséria (LYRA, 2016).

Neste período em que a comarca de Ilhéus passou a verdejar como o possível novo celeiro da
província, tanto a colonização nacional quanto a estrangeira passaram a ser fomentadas, cada
uma com características próprias: “No entanto, não parece que os dirigentes da Província
estavam apenas interessados em resolver um problema social. O direcionamento desse
contingente pobre para a região Sul da Bahia deveria estar ligado a razões econômicas” (LYRA,
2016, p. 249).

A Ilhéus colonial não despontou economicamente e não reuniu atrativos que potencializassem
o crescimento populacional como ambicionavam as autoridades da época. O mesmo fenômeno
se repetiu durante a maior parte do governo imperial. Portanto, a segregação espacial respaldada
na estratificação social não foi mesmo evidente no sul da Bahia até a estruturação da lavoura
cacaueira. Como em outras cidades, de modo agudo, foi a Ilhéus do período republicano e com
ares de urbanização que passou a segregar nitidamente seus habitantes, seja na área rural, seja
na área urbana (RISÉRIO, 2012).

Com destaque, o campo em Ilhéus extrapola o sentido do rural e se inscreve num movimento
sócio-histórico condensado a partir de suas vivências e do hibridismo de suas relações, não
como um espaço periférico se comparado à cidade, mas um espaço social tão central quanto o
urbano; assim, aquela Ilhéus que se urbaniza de modo acelerado e a partir do campo apresenta-
se a nós nos seus espaços sociais que foram apropriados, transformados e produzidos pela sua
sociedade (SOUZA, 2018a). E, a exemplo de tantas outras cidades da América Latina, em
Ilhéus, essas formas sociais novas foram se inscrevendo num espaço prioritariamente definido
nem tanto pelo rural e nem tanto pelo urbano, mas pelas novas relações engendradas a partir
das novas articulações entre cidade e campo (LEFEBVRE, 2000).

As relações sociais e os modos de se organizar a vida que ali se desenvolveram, ao mesmo


tempo reproduziram elementos centrais do tradicional modelo latifundiário, com forte
93

hierarquização e exclusão social, ao mesmo tempo nos revelam outros aspectos enunciados
daquela realidade particular como veremos mais adiante.

3.3.1 De todas as cidades, uma cidade: Ilhéus, os frutos de ouro e o desejo tropical de ser
Europa

A segunda metade do Século XIX se configurou no país como um período de conjugação de


novos embates internos e externos. Com a extinção do tráfico de escravos, houve a consequente
redução da força de trabalho, ao mesmo tempo que se ampliava o mercado interno, além da
crescente urbanização e imigração. Um período assim, fecundo a mudanças e busca por
soluções para as novas dinâmicas, levou, no caso da Bahia, ao plantio do cacau no sul do Estado
como uma solução promissora à histórica estagnação da região de Ilhéus. Daí, a vocação
daquele ambiente natural, juntamente com os excedentes de mão de obra das zonas açucareiras,
algodoeiras e da pecuária, encontrou, no sul da Bahia, um ambiente propício para indução de
sua expansão.

Em termos comerciais, por exigir longo período de aclimação e produção — de quatro a oito
anos do plantio até o início da colheita —, a atividade ficou inicialmente restrita e marginal na
região sul da Bahia. Entre as características que tornou tal atividade inviável nos primeiros
tempos, podemos citar a descapitalização dos agricultores na vila de Ilhéus e o tipo do produto,
que não era de subsistência e, portanto, não tinha absorção imediata no mercado nacional. Aliás,
a inserção da comercialização do cacau internamente se apresenta como um empecilho à parte,
visto que não existia tradição do seu consumo no país e tampouco indústrias de beneficiamento
para transformação da amêndoa em chocolate. Desse modo, a sua produção em escala dependeu
efetivamente do estímulo do mercado externo (GUERREIRO DE FREITAS; PARAÍSO, 2001).
Por estes motivos, o plantio do cacau esteve bastante restrito a quintais até 1860, aos
aldeamentos de índios e às colônias estrangeiras. Assim, o cacau passou a ter lenta e crescente
escala de produção e exportação, e, favorecida pelos preços internacionais, a cultura do cacau
se ampliou na segunda metade do Século XIX, atraindo para aquelas terras devolutas grande
leva daqueles que buscavam se tornar pequenos proprietários. Esse quase campesinato
(FALCÓN, 2010) se configurou inicialmente pela posse, e não pelo direito à propriedade,
gerando vínculos instáveis com a terra.
94

Nesse período, os intermediadores, na maioria franceses, é que cuidavam da comercialização


para o mercado externo. Tais agentes, inclusive, financiaram a expansão da lavoura e a estrutura
viária para escoamento da produção. Com a introdução de mais duas novas espécies, o
Forasteiro e o Pará, potencializou-se o cultivo em terrenos mais distantes do leito dos rios, e,
nesse contexto, ocorreu a extinção dos aldeamentos indígenas para viabilização das futuras
roças de cacau. Por decreto, o Ministério dos Negócios da Agricultura, Comércio e Obras
Públicas, em 1860, passou a ser o responsável por administrar a catequese indígena. Dois anos
após, os governos provinciais foram autorizados a extinguir os aldeamentos em definitivo, uma
vez que os índios passaram a estar na condição de confundidos com os nacionais. Sendo assim,
os espaços dos antigos aldeamentos puderam ser vendidos aos interessados nas terras públicas,
diante da nova lei de terras, como já vimos. Daí, o incremento populacional na região do cacau
da Bahia se intensificou a partir de 1877, quando do agravamento das secas no norte da Bahia
e Sergipe, bem como da decadência da produção açucareira e de sua redução na pauta de
exportação para 1/3 do habitual, o que levou milhares de pessoas à situação de penúria e ao
agravamento do problema social no interior da província da Bahia. O empobrecimento na zona
rural das regiões próximas se ampliava, e, com a população “vagante” tornando-se cada vez
mais numerosa, a preocupação de dirigentes locais recaiu no temor quanto à proliferação do
banditismo entre aquela camada de “desocupados” e “miseráveis” (LYRA, 2016).

A publicidade oficial, quanto às possibilidades de progresso individual para aqueles que se


dispusessem na conquista de terras intocadas e promissoras naquela região, foi largamente
realizada pelo governo provincial, estimulando grandes levas populacionais a se deslocar para
a nascente zona cacaueira. Para os trabalhadores rurais, assalariados ou não, projetarem-se em
um empreendimento pioneiro como aquele representava, em potencial, uma grande
oportunidade de ascender social e economicamente, libertar-se da opressão do trabalho em
grandes propriedades ou mesmo superar as condições de vida em regiões inóspitas do Nordeste:
“a sociedade baiana era a um só tempo aberta e fechada, a riqueza e a ascensão social eram
inteiramente possíveis no Século XIX” (MATTOSO, 1992, p. 648). Daí, o governo enxertou
jornais com o estímulo à migração para o sul baiano, difundindo a ideia de facilidade na posse
de amplas faixas de terra, acesso a lotes, financiamentos e custeio de passagens e despesas
iniciais. A propaganda oficial veiculava informações quanto às possibilidades de ascensão
social, por meio da conquista de terras virgens e ricas “a qualquer pessoa que se dispusesse a
trabalhá-las” (GUERREIRO DE FREITAS; PARAÍSO, 2001, p. 85).
95

A Vila de São Jorge dos Ilhéus foi elevada à categoria de cidade em 1881, e, exatamente nesse
período, a lavoura de cacau foi substituindo o açúcar na escala de exportação do Estado da
Bahia. Como vimos, fluxos migratórios de vários locais do país destinaram-se ao sul do estado,
buscando vinculações com aquela região cacaueira em formação. O incremento da lavoura do
cacau representava, ao mesmo tempo, uma saída econômica, social e política, por absorver
trabalhadores ociosos de regiões próximas, os quais poderiam se vincular a uma atividade
econômica direcionada ao mercado externo. “Daí o investimento das elites econômicas e do
Governo Provincial no sentido de estimular o deslocamento de grandes contingentes
populacionais para a nascente zona produtora de cacau” (GUERREIRO DE FREITAS;
PARAÍSO, 2001, p. 84).

No tocante às colônias produtoras, às experiências das colônias de nacionais, que eram


numericamente maiores que as de estrangeiros, mesmo tendo alcançado relativo grau de
desenvolvimento — como a Cachoeira e a Comandatuba —, a posse da terra pelo colono não
se concretizou, e o descaso colonial acelerou o desfazimento desses núcleos rurais, o que
converteu essa população de ex-colonos sem-terra também em força de trabalho disponível para
a lavoura do cacau. Fenômeno parecido ocorreu com as colônias estrangeiras, pois, de início,
os imigrantes se instalaram em terras devolutas com a expectativa de terem sua situação
fundiária regularizada; todavia, a falta de acesso ao crédito, a uma rede de comercialização e a
demora na efetivação da primeira colheita levaram os imigrantes também a se tornarem
assalariados com a incorporação de suas pequenas roças de cacau às grandes propriedades
(GUERREIRO DE FREITAS; PARAÍSO, 2001). Até 1904, o número de registros de vendas
de terras é ainda insignificante, e esse fato evidencia-se para Falcón (2010), justamente, em
virtude da precariedade na legalização das glebas e também pela rotatividade de seus ocupantes.

O cacau se tornou o principal produto baiano de exportação, a partir dos anos de 1900, quando
superou o fumo e assim se manteve até a década de 1970. Em média, contribuiu com 40% do
total das exportações baianas durante a primeira República e, em 1927, alcançou seu momento
mais expressivo, com de 53,5% dos valores exportados pela Bahia (GUERREIRO DE
FREITAS; PARAÍSO, 2001). Embora o cacau figurasse com destaque na balança comercial do
Estado e gerasse receitas, antes dos anos de 1920 não se ouvia falar em políticas de apoio ao
cacau por parte dos entes públicos. Variações climáticas, pragas e formas de manejo para
diminuir as perdas na produção eram preocupações recorrentes entre os produtores, todavia,
não se mobilizavam para uma melhoria efetiva dos serviços agrícolas com a introdução, por
96

exemplo, de novas tecnologias. Faltava à região, portanto, nos primeiros anos,


representatividade e reconhecimento de suas limitações e dificuldades. Nos primeiros anos da
República, momento inicial da estruturação da zona cacaueira, sobressaía, inclusive, uma série
de deficiências infraestruturais, administrativas e sociais na região, a exemplo do precário
ensino público, da insuficiente manutenção de estradas, da diminuta iluminação, da limpeza e
calçamento públicos, além da inadequada estrutura portuária marítima e de navegação de seus
rios. Medidas e melhorias de interesse regional por parte do setor público demoraram anos para
se concretizarem (GUERREIRO DE FREITAS; PARAÍSO, 2001).

Após a Primeira Guerra, as exportações foram deixando de ter a Europa como principal destino,
e os Estados Unidos se tornaram o maior comprador do cacau brasileiro. Além de se tornar o
principal parceiro comercial, os EUA passaram a interferir diretamente nas transações que
envolviam o cacau, sobretudo após 1925, quando passou a ser operado na Bolsa de Nova York.
O Reino Unido, a seu turno, com o aumento da produção em suas antigas colônias africanas,
privilegiou essa relação comercial com tarifas alfandegárias especiais e influenciou outros
países europeus para que fizessem o mesmo. Com tais mudanças no cenário internacional,
reclamações quanto à irregular qualidade das amêndoas vindas do sul da Bahia intensificaram-
se, e, em 1925, regulamentou-se, para compra e venda de cacau, a classificação com base em
cinco tipos de amêndoas: superior, sepfixo, bom, regular e restolho (GUERREIRO DE
FREITAS, 1979). O que se percebeu, a partir dos anos de 1930, foi o crescente
intervencionismo estatal em diversos aspectos daquele sistema produtivo, com a criação do
Instituto do Cacau da Bahia (1931) e, posteriormente, com a Comissão Executiva do Plano da
Lavoura Cacaueira – CEPLAC (1957), órgão executivo vinculado à recuperação da lavoura por
parte do governo federal. Essas entidades tinham por função dar suporte ao desenvolvimento
da cacauicultura e fomentar novas condições técnicas para o produto final (GUERREIRO DE
FREITAS; PARAÍSO, 2001).

O aumento na produção interessava ao poder público, em virtude, inclusive, do aumento na


arrecadação de impostos, por meio da cobrança, por exemplo, de direitos de exportação e de
serviços agronômicos e estatísticos. A ampliação das exportações também beneficiava o então
banco de crédito da Lavoura da Bahia (GUERREIRO DE FREITAS, 1979). Uma estrutura
administrativa, jurídica, política e creditícia completa se formou ao redor dos negócios do
cacau.
97

Mesmo com as grandes levas de interessados que chegavam a Ilhéus, no início da década de
1920, a região demandava mais mão de obra que conseguia dispor para a colheita da safra,
levando a Associação dos Agricultores de Cacau a publicar novas chamadas em jornal,
divulgando oportunidade de trabalho na zona cacaueira, ofertando aos interessados passagem
gratuita em segunda classe para desembarque em Ilhéus, Canavieiras e Belmonte. A região
cacaueira registrou taxa média de crescimento de 6% ao ano entre 1890 e 1920, e de 3% entre
1920 e 1940 (GUERREIRO DE FREITAS; PARAÍSO, 2001).

As precárias condições de trabalho eram um dos fatores atribuídos ao nomadismo daqueles


trabalhadores do cacau: toda forma de exploração a todo tempo se materializava através da falta
de regulação e uniformidade dos salários, de uma remuneração insuficiente diante do elevado
custo da moradia e alimentação, de precárias condições de trabalho, da ausência de moradias
dignas, da ameaça de dispensa do trabalhador a qualquer sinal de instabilidade no mercado
(GUERREIRO DE FREITAS; PARAÍSO, 2001). Na lavoura de cacau, prevaleciam formas
compulsórias de trabalho, formas precárias, como o trabalho alugado e de safra, cujas
remunerações instáveis e baixas eram absorvidas pelo microuniverso não monetizado dos
armazéns das fazendas (FALCÓN, 2010).

Diante deste cenário, a Sociedade Baiana de Agricultura, em 1924, mesmo sendo uma
associação patronal, recomendou aos fazendeiros que oferecessem aos seus auxiliares melhores
remunerações, moradias higiênicas, oferta de alimentos em bom estado de conservação e preços
módicos, lazer e educação nas fazendas, entre outras recomendações que potencializassem o
bem estar, e, assim, o trabalho no campo poderia se tornar mais atrativo para fixação do
trabalhador.

Num outro extremo, encontramos uma pequena parcela daqueles de origem humilde que
participaram da frente pioneira que se lançou ao espaço sul baiano, impulsionados pela
ocupação das terras e ambição pelo cultivo do cacau, e que, rapidamente, enriqueceram e
deixaram para trás seus gostos simples, lançando-se ao supérfluo e à ostentação da riqueza
pessoal, inclusive, transferindo seus investimentos para outros centros urbanos como Salvador
e Rio de Janeiro. A burguesia cacaueira se formou, inicialmente, a partir de uma estrutura
socioeconômica respaldada nas relações de poder e significação social de comerciantes e
produtores de cacau, centralmente vinculados à cidade de Ilhéus (FALCÓN, 2010).
98

Teatro municipal, cabaré com casa de jogos, cinema, cafés tornaram a vida social em Ilhéus
cada vez mais ativa, e isso era motivo de grande orgulho para seus moradores e de curiosidade
para os visitantes. Para além dos negócios do cacau propriamente, a cidade fervilhava dia e
noite, recebia exposições de artistas nacionais e estrangeiros, vitrines com as últimas novidades
da estação, exposições de automóveis e mobiliário de luxo. Em Ilhéus havia uma ampla oferta
de bens de consumo sofisticados, mas que estava acessível a uma pequena minoria
(GUERREIRO DE FREITAS; PARAÍSO, 2001).

Os novos ricos oriundos da região do cacau eram facilmente identificados em Salvador, quando,
na Rua Chile — uma das principais artérias sociais e de consumo do início do Século XX —
passeavam com seus peculiares trajes de linho e casimira, fumando e bebendo itens importados,
chamando atenção de modo diferenciado por seus hábitos de consumo. Em 1916, quando a
Navegação Bahiana estabeleceu viagens regulares entre Ilhéus e Rio de Janeiro, o centro de
atração desses novos ricos deslocou-se para a capital da República, fato que preocupou
inclusive comerciantes de Salvador pela queda nas receitas. A elite local encontrava no Rio de
Janeiro canais de descoberta e divulgação de novos hábitos, os quais, para eles, marcavam sua
diferença, expressando riqueza e poder diante da sociedade regional, e, embora as questões sul-
baianas chegassem de modo mais direto à capital da República, esse fato enfraqueceu, de algum
modo, os vínculos políticos dos interesses regionais junto ao governo do Estado da Bahia.

A formação da elite cacaueira se organizou em torno de dois grandes grupos: dos proprietários
de terras — fazendeiros que lucravam com a produção — e dos exportadores, que lucravam
com a comercialização das amêndoas; contudo, as estruturas social, econômica, política e
cultural da região se assentaram na propriedade da terra. Exportadores ambicionaram em se
tornarem, também, fazendeiros. A integração e a identificação naquele mundo grapiúna se
definiam pela relação com o domínio de produção do cacau. A monocultura dos frutos de ouro
constitui-se como um império e tangenciou o ritmo daquelas relações. Quando observadas de
modo pontual, as questões econômicas podem até levar simplicidade à sua compreensão,
entretanto, quando ampliamos nosso olhar e compreendemos suas implicações, perceberemos
como se manifestam de forma complexa na realidade da vida social, cultural, política, pois “a
passagem do econômico ao político suscita inúmeras questões que, embora quase sempre
referidas aos interesses mais imediatos das classes dominantes regionais, requerem outro tipo
de ‘sensibilidade’ e esforço para seu entendimento” (FALCÓN, 2010, p. 16).
99

Falar da formação da chamada burguesia cacaueira, portanto, é imprescindível para a


compreensão de toda a dinâmica social que se estruturou na região. Com interesses díspares,
produtores e comerciantes formaram um grupo misto, mas que passou a desempenhar funções
comuns e se construir como uma só classe. O desenvolvimento da cacauicultura, com sua
peculiar dinâmica (visada fronteira agrícola, alto contingente populacional, interesses
múltiplos, infraestrutura precária etc.), permitiu que uma elite produtora e comercial
centralizasse os lucros produzidos pelas atividades econômicas de toda a região, o que não
significou, entretanto, autonomia diante dos interesses e mercados exportadores. Os produtores,
como não possuíam acesso ao processo de comercialização (FALCÓN, 2010), mantinham-se
dependentes dos intermediários comerciais, sobretudo nos trâmites do comércio exterior. Os
principais agentes comerciais atuantes em Ilhéus estavam subordinados a empresas europeias e
norte-americanas, de modo que parte significativa do excedente econômico da produção do
cacau não ficava na região (FALCÓN, 2010; GUERREIRO DE FREITAS; PARAÍSO, 2001),
o que inviabilizou o desenvolvimento regional com autonomia e autossustentação. A tese de
que a lavoura do cacau se autofinanciava, portanto, é parcialmente verdadeira.

Os grandes produtores exerceram domínio sobre pequenos e médios produtores regionais, mas
a dependência do mercado internacional, com suas exigências e determinações, impediu-os de
exercer o domínio pleno dos processos econômicos do cacau, pois se subordinavam à suspensão
ou devolução de compras em virtude da suspeição da qualidade, à pressão pela queda de preços
nas bolsas de valores, à elevação dos custos de frete internacional e a demais externalidades
alegadas pelos compradores. “O Sindicato dos Agricultores de Cacau, veículo dos interesses
comerciais baianos, manifestou seguidamente suas preocupações quanto às exigências dos
importadores, solicitando a intervenção dos governos estadual e federal” (GUERREIRO DE
FREITAS; PARAÍSO, 2001, p. 119).

Quando inexistia agência de banco na região, casas exportadoras desempenhavam múltiplas


funções, desde o agenciamento de créditos, sociedade em serviços e atividades locais, passando
pela representação comercial e funções diplomáticas. Embora diante do volume de negócios na
região, era rarefeita a presença dos bancos oficiais; além disso, eram complexas as exigências
na realização de operações comerciais e financeiras (GUERREIRO DE FREITAS; PARAÍSO,
2001). Desse modo, mesmo após a instalação das agências dos bancos públicos, os serviços de
crédito ofertados pelas casas exportadoras permaneceram. O crédito agrícola baseado na
carteira de crédito tomando o cacau por garantia se tornou corriqueiro: a safra servia como
100

caução de empréstimos e financiamentos, bem como a hipoteca das terras com a frequente
ausência de formalidades na transação, inclusive com juros e multas exorbitantes; o que
permitiu que fazendas inteiras pudessem mudar de mãos.

Entre fazendas, passaram a se estabelecer relações de compra e venda de amêndoas, sobretudo


com as pequenas propriedades que não dispunham de qualquer possibilidade de instalação de
beneficiamento próprio do cacau, a exemplo das operações de secagem e fermentação que
interferiam diretamente no resultado das amêndoas para comercialização nos padrões exigidos
de qualidade. Daí, os produtores maiores dispunham desta e de outras vantagens, inclusive no
transporte da produção de modo seguro e rápido até os portos de escoamento. Assim, “(...) o
pequeno produtor se transformava em tributário da grande propriedade, cujo dono detinha os
meios que ajudavam a multiplicar sua capacidade de explorar” (GUERREIRO DE FREITAS;
PARAÍSO, 2001, p. 126). A adequação às exigências do mercado internacional competitivo e
seletivo, portanto, passou se refletir localmente e de modo crescente no comportamento dos
produtores pequenos e médios, inclusive quanto à produtividade, modernização e ao
aparelhamento de instalações para maior qualidade do produto final.

Ilhéus, todavia, era também uma terra de contrastes evidentes — aos sinais de riqueza, de modo
crescente, havia os sinais de pobreza, da violência física e simbólica. Muitos não conseguiam
sequer um emprego. Para estes, as aventuras do cacau e seus ares de bonança não passavam de
ilusão, inclusive porque, naquela princesa do sul, até os alimentos mais essenciais vinham de
outros locais e custavam preços incomuns, acima da média (GUERREIRO DE FREITAS;
PARAÍSO, 2001). Diante do custo de vida na região e da ausência de produção local, o preço
de alimentos básicos era elevado e pesava ainda mais nos armazéns das fazendas — locais onde
os trabalhadores normalmente adquiriam seus itens essenciais, pois as fazendas, enquanto
unidades produtivas e localizadas normalmente em pontos distantes dos povoados e do centro
da cidade, dedicavam-se quase exclusivamente à produção do cacau.

Comumente a dívida mensal do trabalhador ultrapassava a sua remuneração, pois as dívidas


com os armazéns da fazenda eram perenes; esse era um dos modos que o produtor encontrava
de reduzir os custos com mão de obra e criar uma dependência do trabalhador, por causa da
dívida adquirida, àquela fazenda. A liberdade do trabalhador em deixar a fazenda estava
condicionada ao pagamento das contas (FALCÓN, 1983).
101

Em Lefebvre (2001), encontramos o que Ilhéus nos mostra de algum modo, que a cidade e o
urbano não podem ser compreendidos sem as instituições oriundas das relações entre classe e
propriedade; essa cidade que se transforma não apenas em razão de processos mais globais e
contínuos, mas também se modifica em função de alterações nas relações cidade-campo, suas
descontinuidades históricas, sua projeção ou sua refração na cidade e em sua realidade urbana
diante de seu contexto, mais global.

Percebemos até aqui que Ilhéus vivenciava, de modo muito peculiar, em todos os segmentos,
as questões daquela transição entre os séculos XIX e XX. Todo esse movimento que se deu
numa cidade na periferia da periférica América Latina foi também narrado por Jorge Amado
em Terras do Sem Fim e São Jorge do Ilhéus. Nesses títulos, aqui tomados por fontes,
encontramos essa Ilhéus que configura no espaço sul-baiano o centro de todo o movimento
sócio-histórico, político, cultural e econômico que emergiu com a ampliação da lavoura de
cacau e inaugurou novas implicações entre campo e cidade, diferentes modos do viver
socialmente organizado, diversas práticas que simbolicamente destacam aquela região de
outras, relações de poder que se inauguram ou se ressignificam localmente e tudo o mais que
foi possível forjar para além da vida sacrificada e subalternizada à ordem hegemônica daquela
grande massa de trabalhadores que lidava diretamente com o cultivo dos frutos de ouro. Em
virtude das contradições desse processo e de suas práticas é que, nesses espaços, são
dissimuladas, implicadas e contidas relações sociais das mais variadas (LEFEBVRE, 2000),
sendo que a literatura amadiana nos mobiliza, de modo singular, na compreensão dessas
contradições e práticas, pois “Ilhéus era, sem nenhuma dúvida, o principal centro da região
cacaueira. Ela era um tipo de espelho, sobre o qual refletia um pouco de tudo o que acontecia
por toda a região” (GUERREIRO DE FREITAS; PARAÍSO, 2001, p. 137).

Essas mudanças profundas da virada do século no Brasil, que movimentaram todos os setores
da vida brasileira, foram mudanças que se transformaram, sobremaneira, em pano de fundo para
a própria literatura nacional (SEVCENKO, 2003). São mudanças percebidas a partir das
cidades, com suas dimensões, memórias e práticas se apresentando por meio do “desenho das
ruas e das casas, das praças e dos templos, além de conter a experiência daqueles que os
construíram, denota seu mundo”; cidades, nesse sentido, “podem ser lidas e decifradas, como
se lê e decifra um texto” (ROLNIK, 1995, p. 18). Daí, cada cidade nos conta detalhes sobre si;
basta prestar atenção.
102

Cada cidade nos conta detalhes sobre si, inclusive pela literatura. Sim, muitas destas percepções
e representações sobre cidade são construídas a partir da cena escrita pela literatura: desde
pegadas que o tempo se encarregou de apagar até as vivências contemporâneas em cenas
cotidianas; a cidade, portanto, é compreendida enquanto um discurso. E muitos são os discursos
sobre cidade, o que nos permite ampliar o olhar e os modos de compreensão dessas cidades,
pois nesta nossa perspectiva é plausível

ler textos que leem a cidade, considerando não só os aspectos físico-


geográficos (a paisagem urbana), os dados culturais mais específicos, os
costumes, os tipos humanos, mas também a cartografia simbólica, em que se
cruzam o imaginário, a história, a memória da cidade e a cidade da memória
(GOMES, 1999, p. 24).

A literatura amadiana em Terras do Sem Fim e São Jorge dos Ilhéus, portanto, carrega em si o
potencial de desmistificar, de flexibilizar e alargar a compreensão sobre a ideia de cidade, pois,
embora Weber (1999) nos lembre que não há relação de cidade com o campo que seja unívoca,
ao mesmo tempo espaços sociais como a Ilhéus revelada por Jorge Amado em suas narrativas
não figuram entre os conceitos e as categorias que o sociólogo concebe para cidade, como
veremos a seguir. Risério (2012) evidencia que Weber (1999) conceitua cidade pelo ponto de
vista prioritariamente econômico, quando aponta que os habitantes da cidade, em grande
maioria, não se mantêm da agricultura, mas sim da indústria e/ou comércio, estando, assim, a
cidade ligada à satisfação regular cotidiana de necessidades, por meio da comercialização de
ativos em geral, bem como por sediar seu complexo político-administrativo. Esse
desencantamento weberiano no centro é que, inclusive, gerou as bases para uma reabilitação
teórica nas bordas (MORSE, 1995).

Havíamos, portanto, de compreender a ideia de cidade por outros prismas e ângulos, uma vez
que nem toda cidade apresentaria todos os traços weberianos esperados para uma cidade, e
ainda assim, ela não se constituirá como uma cidade incompleta. Ao contrário, existem,
portanto, realidades que as compreensões do conceito ocidental moderno não alcançam; afinal
a realidade histórica é surpreendentemente variada, conforme nos lembra Williams (1989). E
tão logo a literatura passou a registrar o complexo significado da cidade latino-americana,
desempenhando a mediação incerta entre o seu interior “e as Londres e Paris de além-mar”
103

(MORSE, 1995, p. 214), a literatura e a história na América Latina, portanto, nos convidam a
refletir sobre as diferenças e contextos específicos da América Latina (MIGNOLO, 1993).
104

Capítulo 4
TERRAS DO SEM FIM E SÃO JORGE DOS ILHÉUS SOB A ANÁLISE CRÍTICA DO
DISCURSO

De vez em quando pego um trecho de alguma tese, algumas páginas, os


americanos adoram fazer esse tipo de coisa. Eles dizem algo, e eu me
pergunto: será que eu pensei isto mesmo? Quem sabe? Eu lhe respondo:
quem sabe? Eu não sei. Você entende, você é quem sabe. Eu não. Seu
dever é saber, é o seu papel, é a sua profissão. Não é a minha. A minha
é de não saber isto. Se eu o soubesse, atrapalharia o meu trabalho, me
impediria de fazer um romance. Nunca pensei nisto. É engraçado. É
uma ideia estranha. Nunca me passou pela cabeça.

Jorge Amado
105

As categorias discursivas que emergiram ao longo da leitura adensada de nossas fontes se


apresentam de modo articulado, imbricadas e internamente conectadas. Tal análise exigiu
teorização e descrição de processos e estruturas sociais, as quais deram origem ao texto
produzido, como vimos nas seções anteriores, bem como ao significado dessas estruturas e aos
processos sociais de indivíduos ou grupos para os sujeitos históricos nos textos.

A Análise Crítica do Discurso (ACD) em Terras do Sem Fim e São Jorge dos Ilhéus, de Jorge
Amado, não busca uma relação determinística simples, postulada entre os textos e o social, mas
compreende que discurso se estrutura vinculado à dominância de poder e se legitima em termos
ideológicos, e que ele se situa no tempo e espaço. Sendo assim, existe aqui uma possibilidade
de analisar o discurso amadiano que expressa nas fontes selecionadas suas relações assimétricas
de poder e resistência de modo contextual para a indispensável compreensão das noções de
poder, de história e de ideologia sempre contidas e fundantes nos discursos (WODAK, 2002;
2004). A ACD, ao conceber o discurso como prática social, torna imprescindível a compreensão
do contexto percebendo criticamente a natureza interligada das coisas (WODAK, 2004). A
intertextualidade, que dá ênfase à heterogeneidade dos textos e aos fios diversos, e por vezes
contraditórios, que constituem um texto (FAIRCLOUGH, 1992), também nos auxiliou nas
análises.

Cientes de que toda prática social compreende articulação dos diversos elementos sociais, entre
os elementos encontramos: as atividades, os sujeitos e suas relações sociais, os instrumentos,
os objetos, o tempo e lugar, as formas de consciência, os valores e o discurso (CHIAPELLO;
FAIRCLOUGH, 2002). A natureza dessas articulações varia entre instituições e organizações
conforme também o tempo e lugar, e tudo isso deve ficar estabelecido por meio da análise
(FAIRCLOUGH, 2013).

O discurso já compreende uma categoria estabelecida na pesquisa social, e múltiplas são as


formas de analisá-lo. Porém, entre os cientistas sociais, reside a percepção de que tal categoria
muitas vezes é vaga ou mal definida, pois inclusive existem múltiplas definições de discurso na
teoria social e tradições acadêmicas. Muitos textos identificam discursos no material analisado
sem, contudo, indicar quais particularmente os caracterizam, ou mesmo sem indicar como
reconhecer a presença daquele discurso. Outros estudos reduzem toda a vida social negando a
possibilidade da análise integrativa do discurso, por exemplo, junto às estruturas sociais
106

(FAIRCLOUGH et al., 2004). Por isso, já na década de 1990, van Dijk (1990) definiu discurso
enquanto texto em contexto.

Na tentativa de melhor refletir e organizar compreensões, apresentamos seis categorias de


análise em separado, mas que se complementam e em muitos momentos extrapolam a dinâmica
à qual momentaneamente aqui foram condicionadas. Isso porque, tal como as complexas
relações que se estruturaram no sul-baiano em fins do Século XIX, intrinsecamente todas as
categorias se relacionam: falar de trabalho subalterno é também falar de relações de poder e
mando; falar de espaço social é também falar do fenômeno coronelista. As categorias se
pertencem e se produzem, intimamente.

A Análise Crítica do Discurso, a qual propomos aqui, exige de nós, diante desta complexidade
de inter-relações da sociedade com os discursos produzidos, a busca de uma análise coerente,
melhor fundamentada e crítica (WODAK; WEISS, 2005). A intertextualidade e a
interdiscursividade permitir-nos-ão novos campos de ação (WODAK, 2001). Para tanto, a
análise se realiza por meio da sua combinação com conhecimentos das ciências sociais a partir
de uma abordagem histórico-discursiva, reunindo variadas informações prévias e dados
empíricos (WODAK, 2003). Seguimos, portanto, com uma análise que nos permita
compreender as relações sociais por entre aquele espaço e tempo, sua historicidade.

Entendemos que os textos de Jorge Amado não podem ser reduzidos à discussão de temas e
estilos, pois eles transgridem em sua prática escrituralxvi compreensivas limitações do seu
tempo, escrita e vinculações ideológicas. Em nossa perspectiva, inclusive, Amado diz muito
mais que seu discurso à época ambicionou ou pode traduzir, atuando amplamente “como reação
ao discurso e à perspectiva hegemônica” (MIGNOLO, 2020, p. 11); e por isso mesmo, de uma
perspectiva subalterna, o seu privilegiado e qualificado lócus de enunciação que contribui
diante da possibilidade de recontextualização do seu discurso com o pensamento liminar.

O discurso amadiano emerge em nossas análises como uma reação à diferença colonial, e seu
pensamento, aqui revisitado enquanto liminar, portanto, mais que uma enunciação híbrida por
todos os detalhes que nos apresenta, compreende uma enunciação fraturada em situações
dialógicas (MIGNOLO, 2020). Nos textos aqui selecionados, nós nos deparamos com os

xvi Tal qual Mignolo e Mora (1971) veem a escrita de um outro Jorge, o escritor argentino Jorge Luis Borges.
107

componentes desumanizadores do mundo do trabalho capitalista, miséria, exploração,


reificação; e muitos exemplos em suas narrativas demonstram a objetificação do humano como
uma característica desses tempos ditos modernos (DUARTE, 2005). O pensamento liminar
então, concebido a partir da compreensão e do reconhecimento da diferença colonial, incorpora
justamente a perspectiva do que considera uma forma subalterna de conhecimento. O
pensamento liminar nos possibilita pensar nas e a partir das margens e repensar as contradições
diacrônicas das fronteiras das cosmovisões de diversas épocas (MIGNOLO, 2020).

A partir de Terras do Sem Fim e de São Jorge dos Ilhéus, portanto, apresentam-se as seguintes
categorias de análise: a) Espaço original e o desejo de posse: violência e territorialização no
novíssimo mundo sul-baiano; b) Das riquezas, das venturas e falácias – rumo ao sul, caminhos
se cruzam, e nem tudo que reluz é ouro; c) Organização da vida urbana – Ilhéus, o cacau, e o
ideário de progresso; d) Coronelismo do cacau e suas histórias; e) Caminhos pro mundo e as
relações de poder: por entre coronéis, exportadores, tradicionalismo e modernidade; e f)
Organização social do trabalho subalterno (a culpa é do visgo do cacau?).

4.1 Espaço original e o desejo de posse: violência e territorialização no novíssimo mundo


sul-baiano

Ilhéus, que somente após três séculos da sua fundação como capitania hereditária desponta
enquanto potência econômica, seguiu ao longo dos últimos anos do Século XIX revelando a
vocação de suas características, sobretudo, naturais, reuniam para o cultivo do cacau — este
que permitiu emergir a especialidade que veio definir toda uma região. Para Guerreiro de Freitas
(1979), inclusive, a questão do distanciamento do centro provincial quando da origem da
cacauicultura compreende uma marca decisiva nas relações que se desenvolveriam ali
posteriormente, tanto na formação da classe dominante local quanto nas relações desta, com a
classe hegemônica estadual — mais centrada nos interesses canavieiros e no comércio
exportador.

As narrativas amadianas se inauguram num contexto no qual “a região Sul da Bahia


apresentava-se, durante todo o Século XIX, como uma área pouco povoada e com abundância
de terras, portanto, uma área em potencial para a expansão agrícola” (LYRA, 2016, p. 253).
Nesse período, a inspetoria de Terras Públicas, com relação às Comarcas do Sul do estado,
108

afirmou que havia grande montante de terras devolutas com quase inexistentes contestações,
essas terras ficavam próximas do litoral e o domínio do Estado normalmente não era disputado.

O espaço original ainda pouco desbravado, para além de suas lendas, assombrações e desafios
naturais a serem domados na ânsia de terras agricultáveis para ampliação da cultura do cacau
representaria não somente o poder econômico de quem conseguisse conquistar a vigorosa mata
do Sequeiro Grande, mas também triunfo político e social. Tornar-se donos das terras não
desbravadas, portanto, às quais ainda não se atribuía posse a ninguém mobilizava esforços e
ações dos que ambicionavam conquistarem e se assenhorem daquele pedaço intocado do que
mais parecia um novo mundo; estes seriam reconhecidos como os donos da terra.

Assim, a mata intocada fora cobiçada por dois grupos que protagonizam a disputa na narrativa
amadiana e desponta de modo central em Terras do Sem Fim com os primeiros tempos da
ocupação da região, da gestação de cidades e de um processo crescente de urbanização. Isso
porque, ali nas terras do sem fim também, “a cidade que irrompe numa ostensiva artificialidade
aquilo que seria o jardim da natureza, é uma criação humana por excelência e representa (...)
um culto idolátrico coletivo que exige o domínio da Natureza, do Destino, do Saber e da
Riqueza” (RISÉRIO, 2012, p. 174).

Os homens a cavalo ou a pé cortavam, por vezes, para atalhar a estrada real,


pequenos trechos da mata. Eram os que iam de fazenda em fazenda, de roça
em roça, nos convites para as conversações do dia que se avizinhava. Em
torno da mata a ambição dos homens acendia luzes, cortava as estradas num
galope. Mas nem as luzes, nem o passo dos homens acordava a mata de
Sequeiro Grande que dormia seu sono de centenas de anos pelos galhos e
pelos troncos. Repousavam as onças, as cobras e os macacos. Ainda não se
haviam despertado os pássaros para saudar a madrugada. Somente os vaga-
lumes, lanternas de assombrações, iluminavam com sua verde luz o verde
espesso das árvores. A mata de Sequeiro Grande dormia, em torno dela os
homens ávidos de dinheiro e de poder concertavam planos para conquistá-
la. E, no coração da mata, no mais fechado da floresta, iluminado somente
pela luz incerta e inconstante dos vaga-lumes, dorme Jeremias, o feiticeiro.
Como as árvores e os animais também ele não se deu ainda conta de que a
mata está ameaçada, de que a ambição dos homens a cercou, de que os dias
109

das grandes árvores, dos animais ferozes e das assombrações chegaram ao


fim. Na sua cabana miserável ele dorme junto com as árvores e os animais.
Quantos anos terá esse negro Jeremias, de carapinha branca, de olhos que
já perderam o brilho, quase cegos, de corpo curvado, seco de carnes, de rosto
retalhado de rugas de boca sem um só dente, e cuja voz é apenas um
murmúrio que é necessário adivinhar?
Ninguém não sabe nessas vinte léguas de terra em torno das matas de
Sequeiro Grande. Para toda gente ele é um ser da mata, tão temível como as
onças e as cobras, como os troncos enredados de cipós, como as próprias
assombrações que ele dirige e desencadeia. Ele é dono e senhor dessa mata
de Sequeiro Grande que Horácio e os Badarós disputam. Desde a fímbria do
mar, no porto de Ilhéus, até o mais longínquo povoado no caminho do sertão,
os homens falam em Jeremias, o feiticeiro, o que cura as moléstias, o que
fecha o corpo dos homens para as balas e para as mordidas de cobra, o que
dá remédios também, para os males do amor, aquele que sabe as mandingas
que fazem uma mulher se agarrar a um homem que nem visgo de jaca mole.
Sua fama anda por cidades e povoados que ele nunca viu. De muito longe
vem gente para consultá-lo (TSF, p. 120).

Um único Ser dominava os segredos daquela mata instransponível. De onde teria vindo o negro
Jeremias, o feiticeiro que vivia intocado no Sequeiro Grande? Aquele que trazia consigo uma
ancestralidade que o permitia ser referendado por seus poderes mágicos e conhecimentos que,
em última instância, não davam conta do que os parcos cuidados médicos daquela região
permitiam. De onde teria vindo o negro Jeremias?

Registre-se que, em 1724, Ilhéus possuía um número de escravizados que correspondia


praticamente à metade dos seus 1831 habitantes computados pelo censo: eram 893 no total
(SILVA, 2016). Todavia, a presença de escravizados na comarca se dava também de modo
diferenciado, sendo que “o padrão de propriedade de escravos na vila de São Jorge, portanto,
refletia o perfil socioeconômico da própria vila, ou seja, como não havia grandes propriedades
agroexportadoras, também não existiam grandes proprietários de escravos” (SILVA, 2016, p.
133). Pois sim, Jeremias seria um dos remanescentes de povos escravizados no sul da Bahia,
sua ancestralidade e sua trajetória nos revelam isto na narrativa.
110

Um dia, muitos anos antes, quando a floresta cobria muito mais terra,
quando se estendia em todas as direções, quando os homens ainda não
pensavam em derrubar as árvores para plantar a árvore do cacau que
todavia não chegara da Amazónia, Jeremias se acoitou naquela mata. Era
um negro jovem, fugido da escravidão. Os capitães-do-mato o perseguiam e
ele entrou pela floresta. Onde moravam os índios e não saiu mais dela.
Vinha de um engenho de açúcar onde o senhor mandara chicotear as suas
costas escravas. Durante muitos anos tivera tatuada nas espáduas a marca
do chicote. Mas mesmo quando ela desapareceu, mesmo quando alguém lhe
disse que a abolição dos escravos havia sido decretada, ele não quis sair da
mata. Fazia muitos anos que chegara, Jeremias havia perdido a conta do
tempo, já tinha perdido também a memória desses acontecimentos. Só não
havia perdido a lembrança dos deuses negros que seus antepassados haviam
trazido da África e que ele não quisera substituir pelos deuses católicos dos
senhores de engenho. Dentro da mata vivia em companhia de Ogum, de
Omolu, de Oxóssi e de Oxolufã, com os índios havia aprendido o segredo das
ervas medicinais. Misturou aos seus deuses negros alguns dos deuses
indígenas e invocava a uns e a outros nos dias em que alguém ia lhe pedir
conselho ou remédio no coração da mata. Vinha muita gente, vinha mesmo
gente da cidade, e aos poucos foram abrindo um caminho até a sua cabana,
estrada feita pelos passos dos doentes e dos angustiados.
Viu os homens brancos chegarem para perto da mata, assistiu a outras matas
serem derrubadas, viu os índios fugirem para mais longe, assistiu ao
nascimento dos primeiros pés de cacau, viu como se formavam as primeiras
fazendas. Foi se retirando cada vez mais para o fundo da mata e um temor
foi se apossando dele: o de que os homens chegassem um dia para derrubar
a mata de Sequeiro Grande. Profetizara desgraças sem conta para esse dia.
A todos que o vinham ver ele dizia que essa mata era moradia dos deuses,
cada árvore era sagrada, e que, se os homens pusessem a mão nela, os deuses
se vingariam sem piedade.
Se alimenta de raízes e ervas, bebe a água pura do rio que corta a mata, tem
na sua cabana duas cobras mansas que assombram os visitantes. E nem
mesmo os coronéis mais temidos, nem mesmo Sinhô Badaró que e chefe
político e homem respeitado, Horácio, sobre quem contam tantas histórias,
111

nem mesmo Teodoro das Baraúnas que tem uma fama terrível de malvado,
nem mesmo Brasilino que é símbolo de valentia, ninguém é tão temido nessas
terras de São Jorge dos Ilhéus como o feiticeiro Jeremias. Dele são as forças
sobrenaturais, aquelas que desviam o curso das balas, que transformam em
água inofensiva o veneno mais perigoso da cobra mais mortífera que é a
cascavel (TSF, p. 121–122).

Em Mahony (2007), encontramos a defesa de que narrativas que tratam do mito de origem dos
primeiros tempos da economia cacaueira, ao expor de modo épico as dificuldades daqueles
homens realçados como desbravadores do Século XIX, ajudam em verdade a obscurecer
compreensões sobre as desigualdades raciais e, até mesmo, justificar a concentração fundiária
e de renda que se deu na região sul-baiana no Século XX. A autora entende que narrativas
heroicas como esta não foram completamente inventadas, mas que elas refletem as experiências
e as preocupações de novos ricos da elite do cacau, argumento que poderia ser comprovado por
fontes oficiais, pela memória e pela tradição oral. Desse modo, Mahony (2007) aponta que
narrativas como estas contribuíram para a formação mítica dos coronéis ao superdimensionar o
papel histórico de um grupo frente os demais, pois despreza a presença do escravismo nos
primeiros momentos do cacau na região, bem como a atuação de ex-escravizados e
descendentes de povos indígenas na lida direta com a lavoura.

Registramos tal ponto de vista, todavia discordamos de que narrativas como estas, aqui tomadas
por fonte de pesquisa, tenham apenas contribuído para a reprodução da hierarquia social da
Bahia e do Brasil, ou que estivesse voltada para a legitimação da hierarquia social regional. Ao
contrário, compreendemos que, com o tom de denúncia, para além de abarcar e apropriar-se da
realidade, e de tensionar uma recapitulação sócio-histórica possível, Amado tratou de externar,
internacionalmente, inclusive, com o movimento de seu discurso, abrangendo públicos diversos
e distantes, a compreensão daqueles que se encontram em realidades longínquas. Para nós, “é
do lugar de testemunha da história que Jorge Amado escreve, como afirma Antonio Candido:
os seus livros penetram na poesia do povo, estilizam-na, transformam-na em criação própria,
trazendo o proletário e o trabalhador rural, o negro e o branco, para a sua experiência artística
e humana (...)” (REIS, 2014, p. 7).

Inclusive, como todo fragmento de realidade, parcial e incompleto que é, está à mercê de
críticas, pois, “já em seus começos, portanto, a literatura de Jorge Amado revela o pendor para
112

as construções identitárias e toma contato, desde logo, com os percalços e armadilhas nelas
implícitos. Por um lado, deseja compor a imagem do país, por outro dá-se conta de sua
impossibilidade enquanto formulação harmônica e integrada” (DUARTE, 2002, p. 54). Uma
realidade complexa e não linear se apresenta nas narrativas, portanto.

O discurso que emerge em TSF e SJI se avalia, inclusive, diante de suas perspectivas
ideológicas, mas as interpretações deste posicionamento do autor à luz de inúmeras teorias e
epistemes são mesmo variadas. Ademais, a presença do escravismo e de ex-escravos na região,
como a ancestralidade do negro Jeremias, não fora mitigada nas narrativas, ao contrário; e por
entre os trabalhadores subalternos, dentro da estrutura que se conformou na região, há uma
preponderância de negras e negros entre os personagens.

Jeremias se ergue. Desta vez não precisou de bordão para sustentar em pé


seu corpo centenário. Deu dois passos para a porta da cabana. Agora seus
olhos quase cegos viam perfeitamente vista a mata em todo seu esplendor. E
a via desde os dias mais longínquos do passado até esta noite que marcava o
seu fim.
Sabia que os homens a iam penetrar, iam derrubar a floresta, matar os
animais, plantar cacau na terra onde havia sido a mata de Sequeiro Grande.
Enxergou o fogo das queimadas se estorcendo nos cipós, lambendo os
troncos, ouviu o miado das onças acossadas, o guincho dos macacos, o silvo
das cobras se queimando (...).
As palavras de Jeremias eram para os seus deuses, os deuses que tinham
vindo das florestas da África, Ogum, Oxóssi, Iansã, Oxolufã, Omolu, e
também a Exu, que é o diabo. Clamava por eles para que desencadeassem a
sua cólera sobre aqueles que iam perturbar a paz da sua moradia (...).
Gritou mais uma vez o nome dos seus deuses queridos. Gritou por Exu
também, entregando-lhe sua vingança, sua voz atravessando a mata,
despertando as aves, os macacos, as cobras e as onças. Gritou mais uma vez,
era uma praga ardente:
- Cada filho vai plantar seu cacaueiro em riba do sangue do pai...
(TSF, p. 124–125).
113

A historiografia nos apresenta relatos justamente quanto à formação da “insurreição” de


escravizados e formação de pequenos quilombos até 1870 nas regiões fronteiriças com terras
indígenas, em terras como aquelas do Sequeiro Grande, onde

proprietários de plantações de Ilhéus queixavam-se de quilombos nas três partes da


floresta: entre a Lagoa Itaípe e a Barra do Rio de Contas, perto do que veio a ser a
Fazenda Almada, e ao sul do Engenho Santanna, na direção de Olivença (...) A
despeito do medo das elites, esses quilombos não se pareciam com a grande povoação
de Palmares. Na verdade, os primeiros quilombos, bem como os quilombos tardios,
eram pequenos ranchos na floresta (MAHONY, 2001, p. 129).

Assim, TSF faz emergir, numa compreensão possível, quanto à construção do sul-baiano
enquanto espaço social que avança sobre a mata adormecida no afã de mais riqueza traduzida
na posse daquelas terras. A narrativa atua não somente quanto à formação do espaço social em
que atuarão coronéis e trabalhadores, mas também sobre o lugar onde o apego e o apelo à posse
da terra acontecerão, bem como o lugar onde as mais diversas sociabilidades irão acontecer.
Afinal, “(...) o espaço social é aquele espaço produzido socialmente, fruto da transformação e
apropriação da natureza, ao passo que um lugar é um espaço dotado de significado, um espaço
vivido” (SOUZA, 2018a, p. 117). É justamente o que evidenciam as cenas iniciais de TSF:
aquele cobiçado e considerável pedaço de mata, enquanto espaço original com seus mistérios
era tal qual um novíssimo mundo a ser desbravado, conquistado e colonizado.

A mata dormia. As grandes árvores seculares, os cipós que se emaranhavam,


a lama e os espinhos defendiam o seu sono. Da mata, do seu mistério, vinha
o medo para o coração dos homens. Quando eles chegaram, numa tarde,
através dos atoleiros e dos rios, abrindo picadas, e se defrontaram com a
floresta virgem, ficaram paralisados pelo medo (TSF, p. 46).

E a chuva caía pesada como se fora o começo de outro dilúvio. Ali tudo
lembrava o princípio do mundo. Impenetrável e misteriosa, antiga como o
tempo e jovem como a primavera, a mata aparecia diante dos homens como
a mais temível das assombrações. Lar e refúgio dos lobisomens e das
caiporas. Imensa diante dos homens. Ficavam pequenos aos pés da mata,
pequenos animais amedrontados. Do fundo da selva vinham as vozes
estranhas. E mais terrível era o espetáculo, já que a tempestade irrompia com
114

fúria, do céu negro, onde nem a luz de uma estrela brilhava para os homens
recém-chegados.
Vinham de outras terras, de outros mares, de próximo de outras matas. Mas
de matas já conquistadas, rasgadas por estradas, diminuídas pelas
queimadas. Matas de onde já haviam desaparecido as onças e onde
começavam a rarear as cobras.
E agora se defrontavam com a mata virgem, jamais pisada por pés de
homens, sem caminhos no chão, sem estrelas no céu de tempestade. Nas suas
terras distantes, nas noites de luar, as velhas narravam tétricas histórias de
assombrações. Em alguma parte do mundo, em algum lugar que ninguém
sabia onde estava, nem mesmo os andarilhos mais viajados, aqueles que
cortam os caminhos dos sertões recitando profecias, nesse distante lugar tem
a sua morada as assombrações (TSF, p. 46–47).

(...) A mata! não é um mistério, não é um perigo nem uma ameaça. É um deus.
Não há vento frio que venha do mar. Distante está o mar de verdes ondas.
Não há vento frio, nessa noite de chuva e relâmpagos. Mas, ainda assim, os
homens estão arrepiados e tremem, se apertam os seus corações. A mata-
deus na sua frente. O medo dentro deles (TSF, p. 47).

(...) Mas Juca Badaró não via na sua frente a mata, o princípio do mundo.
Seus olhos estavam cheios de outra visão. Via aquela terra negra, a melhor
terra do mundo para o plantio do cacau. via na sua frente não mais a mata
iluminada pelos raios, cheia de estranhas vozes, enredada de cipós, fechada
nas árvores centenárias, habitada de animais ferozes e assombrações. Via o
campo cultivado de cacaueiros, as árvores dos frutos de ouro regularmente
plantadas, os cocos maduros, amarelos. Via as roças de cacau se estendendo
na terra onde antes fora mata. Era belo. Nada mais belo no mundo que os
roças de cacau. Juca Badaró, diante da mata misteriosa, sorria. Em breve ali
seriam os cacaueiros, carregados de frutos, uma doce sombra sobre o solo.
Nem via os homens com medo, recuando.
Quando os viu, só teve tempo de correr na sua frente, se postar na entrada
do caminho de parabélum na mão, uma decisão no olhar:
- Meto bala no primeiro que der um passo... (TSF, p. 49).
115

(...) Os homens se espiavam uns aos outros. Juca suspendeu o parabélum:


- Adiante...
Os machados e os facões começaram a cair num ruído monótono sobre a
mata, perturbando seu sono. Juca Badaró olhou na sua frente. Via novamente
toda aquela terra negra plantada de cacau, roças e roças carregadas de
frutos amarelos. A chuva de junho rolava sobre os homens, o ferido pedia
água numa voz entrecortada. Juca Badaró guardou o parabélum (TSF, p.
49–50).

Entre 1890 e 1910, a estrutura produtiva da região foi caracterizada pela presença marcante de
pequenos produtores desbravadores de terras devolutas ou descendentes de desses
desbravadores, reunindo glebas de até cinquenta hectares que se dedicavam integralmente à
produção do cacau, a grande maioria na condição de posseiro (FALCÓN, 2010). Porém, após
os anos de 1930, a organização das relações sociais daquela atividade produtiva se modificou
significativamente. Fortaleceram-se os superproprietários e, com a ampliação de sua influência
econômica, reverteu-se o perfil desconcentrado da produção dos primeiros tempos na região,
com os grandes fazendeiros passando a controlar a maior parte da produção. Desse modo,

(...) inúmeros conflitos estalavam entre os produtores em geral e comerciantes, em


consequência da luta pela apropriação do excedente econômico; dos produtores entre
si, o que levava os grandes fazendeiros a verdadeiras guerras pela posse da terra
disponível, como a do Sequeiro do Espinho, em 1919, onde duas importantes famílias
locais envolveram a população rural em sanguinárias lutas; dos grandes fazendeiros
contra os pequenos, motivados pela necessidade de expansão das fazendas maiores
(FALCÓN, 2010, p. 59).

E desses processos de ocupação, tal qual um polo atrativo, surgiram desbravadores e muita
oferta de mão de obra para a riqueza embrionária que ali se esboçava (BARBOSA, 2013).

A manhã de sol dourava os cocos ainda verdes dos cacaueiros. O coronel


Horácio ia andando devagar entre as árvores plantadas dentro das medidas
estabelecidas. Aquela roça dava seus primeiros frutos, cacaueiros jovens de
cinco anos. Antes ali também fora a mata, igualmente misteriosa e
amedrontadora. Ele a varara com seus homens e com o fogo, com os facões,
116

os machados e as foices, derrubou as grandes árvores, jogou para longe as


onças e as assombrações. Depois fora o plantio das roças, cuidadosamente
feito, para que maiores fossem as colheitas. E, após cinco anos, os cacaueiros
enfloraram e nessa manhã pequenos cocos pendiam dos troncos e dos galhos.
Os primeiros frutos. O sol os doirava, o coronel Horácio passeava entre eles.
Tinha cerca de cinquenta anos e seu rosto, picado de bexiga, era fechado e
soturno. As grandes mãos calosas seguravam o fumo de corda e o canivete
com que faziam o cigarro de palha. Aquelas mãos, que muito tempo
manejaram o chicote quando o coronel era apenas um tropeiro de burros,
empregado de uma roça no Rio-do-Braço, aquelas mãos manejaram depois
a repetição quando o coronel se fez conquistador da terra. Corriam lendas
sobre ele, nem mesmo o coronel Horácio sabia de tudo que em Ilhéus e em
Tabocas, em Palestina, e em Ferradas, em Água-Preta, se contava sobre ele
e sua vida (TSF, p. 50).

Nas narrativas de TSF inclusive, a disputa pelas terras do Sequeiro Grande gira em torno de
dois grupos: dos Badaró e de Horácio da Silveira. A hegemonia do poder econômico, social e
político de um dos grupos estaria vinculada diretamente à conquista daquelas terras. O desejo
de ampliação da posse de terras mobilizava ambos os grupos.

A verdade é que tanto Horácio como os Badarós tinham pressa. Um e outro


desejavam derrubar a mata quanto antes e quanto antes plantá-la de
cacaueiros. A luta comia dinheiro, as folhas de pagamento se elevavam nos
sábados a alturas nunca vistas antes, os jagunços recebendo em dia, o preço
das armas aumentando. Tanto os Badarós como Horácio tinham pressa (...)
(TSF, p. 236).

Mas apesar da riqueza que se preconizava e se ambicionava com a crescente cultura do cacau,
foi a pobreza, diante da forte concentração de renda, que predominou naquela chamada Zona
do Cacau. Inclusive porque o processo de ocupação do solo se processou de modo arbitrário e
relacionado com a capacidade de conquista e manutenção dessa posse por parte de cada
chegante (GUERREIRO DE FREITAS; PARAÍSO, 2001).
117

Foram ao coronel quando o prazo findou. Fizeram as contas dos pés de cacau
que haviam vingado, já antes tinham escolhido o pedaço de mata que
queriam comprar. Chegaram a um acordo com o coronel, beberam umas
cachaças, Horácio disse:
- Vocês podem se botar pra mata que um dia desses quando eu descer a Ilhéus
mando avisar a vocês pra ir um também e a gente botar o preto no branco no
cartório...
Assim diziam de passar a escritura. O coronel mandou que eles fossem em
paz, com um mês mais ou menos iriam a Ilhéus. Os três foram, depois de
cumprimentos e reverencias ao coronel. No outro dia partiram para a mata,
começaram a derrubá-la, armando um rancho. Passou-se o tempo, o coronel
foi a Ilhéus duas e três vezes, eles já haviam iniciado a plantação e nada de
escritura.
Um dia Altino tomou coragem e falou ao coronel:
- Vosmecê me adisculpe, seu coronel, mas nós queria saber, quando é que a
gente passa a escritura da terra?
Horácio primeiro se indignou com a falta de confiança. Mas diante das
desculpas de Altino explicou que já dera ordens ao Dr. Rui, seu advogado,
para tratar do assunto. Não ia demorar, um dia destes eles seriam chamados
para darem um pulo a Ilhéus, e liquidarem o assunto.
Mais tempo se passou, da terra plantada começaram a surgir as mudas de
cacau, ainda simples gravetos que em breve seriam árvores. Altino, Orlando
e Zacarias olhavam as plantas com amor. Eram cacaueiros deles, plantados
com as suas mãos, em terras que eles haviam desbravado. Cresceriam e
dariam frutos amarelos como ouro, dinheiro. Nem se recordavam da
escritura. Só o negro Altino, por vezes parava pensando. Há muito que
conhecia o coronel Horácio e desconfiava.
Ainda assim ficaram surpresos no dia que souberam que a fazenda Beija-
Flor fora vendida ao coronel Ramiro e que a roça deles estava compreendida
na venda. Foram falar ao coronel Horácio.
Orlando ficou, foram os outros dois. Não encontraram o coronel, estava em
Tabocas. Voltaram no outro dia, o coronel estava em Ferradas. Então
Orlando resolveu ir ele mesmo. Para ele aquela terra era tudo, não a
perderia. Disseram lhe que o coronel estava em Ilhéus. Ele fez que sim, mas
118

entrou pela casa-grande adentro e encontrou o coronel na sala de jantar,


comendo. Horácio olhou o lavrador, falou com sua voz seca:
- Quer comer, Orlando? Se quer, se abanque...
- Não sinhô, obrigado.
- Que lhe traz por aqui? Alguma novidade?
- Uma novidade bem feia, sinhô, sim. O coronel Ramiro apareceu lá pela
roça, diz que a roça é dele, diz que comprou ao sinhô, coronel.
- Se o coronel Ramiro é que diz deve ser verdade. Ele não é homem pra
mentira...
Orlando ficou mirando o coronel Horácio que voltava a comer. Olhava as
grandes mãos calosas do coronel, a sua face fechada. Por fim, falou:
- Vosmecê vendeu?
- Isso é negócio meu...
- Mas vosmecê não se arrecorda que nos vendeu esse pedaço de mata? Pelo
dinheiro do contrato de cacau?
- Vocês têm a escritura?
E Horácio voltou a comer. Orlando rodou na mão o chapéu enorme de palha.
Tinha consciência de toda a desgraça que lhes havia acontecido, a ele e aos
dois companheiros. Sabia também que legalmente não havia como lutar
contra o coronel. Sabia que não tinham mais terra, nem roça plantada, não
tinham mais nada. Um véu de sangue turvou-lhe o olhar, não media mais
suas palavras:
- Desgraça pouca é bobagem, coronel. Vosmecê fique avisado que no dia que
o coronel Ramiro entrar na roça, nesse dia vosmecê paga por tudo... Pense
bem.
Disse e saiu afastando com o braço a negra Felícia que estava servindo o
coronel. Horácio continuou a comer, como se nada houvesse passado.
De noite Horácio chegou com seus cabras na roça dos três amigos. Cercou
o rancho, dizem que ele mesmo liquidou os homens. E que depois, com sua
faca de descascar frutas, cortou a língua de Orlando, suas orelhas, seu nariz,
arrancou-lhe as calças e o capou. Tinha voltado para a fazenda com seus
homens e quando um deles foi pegado, bêbado, pela polícia e o denunciou,
ele apenas riu sua risada. Foi impronunciado (TSF, p. 52–53).
119

As ações do coronel Horário — ao não cumprir o que havia combinado com Altino, Orlando e
Zacarias — expropriando, além do fruto do trabalho daqueles que se dedicaram ao cultivo do
prometido pequeno pedaço de terra em troca da produção estipulada, subtraíram deles também
as esperanças de uma vida melhor e como fim último, perversamente, suas próprias vidas. Estas
narrativas, embora possam parecer uma hipérbole ficcional, em verdade, refletem um modus
operandi acionado por autoridades locais e registrados por Cruz (2012), que, em sua pesquisa,
relata que o Juiz Comissário de Terras da cidade de Ilhéus, diante de pedidos de concessão de
glebas por parte de ex-escravizados libertos, numa evidente medida protelatória, ao invés de
adotar os tramites para tal procedimento, previamente prescritos no Regulamento de Terras de
1854. Não instaurou a medição dos terrenos ocupados por seus pleiteantes e nem mesmo
diligenciou a averiguação quanto à ocupação do solo por estes que se anunciavam seus
primeiros posseiros conforme preconizava a Lei de Terras; assim, o juiz preferiu escrever ao
Ministério da Agricultura sem qualquer anuência da presidência, na Bahia. E em sua
justificativa, o juiz de terras de Ilhéus argumentou que havia ali um grande número de libertos
os quais, por apresentarem repugnância ao trabalho assalariado, estavam requerendo a posse de
terrenos devolutos para o cultivo do cacau e que assim, indeferiria os pedidos até que a
autoridade federal se manifestasse sobre as solicitações que se avolumavam em sua jurisdição
diante da impaciência daqueles pleiteantes. A arbitrariedade da ocupação do solo, com o
desrespeito seja à posse ou mesmo quanto às terras já tituladas, se multiplicou na região diante
da incapacidade de milhares frente às exigências de regularização fundiária ou ainda, de defesa
de seus direitos (GUERREIRO DE FREITAS; PARAÍSO, 2001).

E se negar a cumprir o que de modo tácito ou explícito está acordado junto àqueles
trabalhadores subalternos assemelha, nas ações, o juiz de terras de Ilhéus de fins do Século XIX
ao coronel Horácio da Silveira, de TSF, pois tais práticas têm como pano de fundo a manutenção
do trabalhador livre naqueles espaços em que se desenvolviam novas e crescentes fazendas de
cacau, mas numa condição de continuidade da relação de submissão, obediência e
subordinação.

Daí que, entre os frágeis vínculos de trabalho daquele espaço, o contratista configurava-se como
uma espécie de parceiro, trabalhador de empreitada, um agricultor despossuído de terras. Nesse
tipo de acordo verbal feito entre o proprietário e o trabalhador contratista, era reservado a ele
um certo número de pés de cacau ou faixa de terra, no qual ele deveria zelar no que se refere a
derrubada da mata, limpeza e destocagem do terreno, e plantio das mudas de cacau. Para cada
120

árvore, receberia um valor afixado, e, ao fim do período estipulado, cessavam todos os direitos
do trabalhador sobre o terreno e sob alguma cultura de subsistência, por ventura, ali cultivada
(FALCÓN, 2010). Ademais, lembremos que o trabalhador não dispunha de qualquer sistema
de proteção jurídica antes de 1930, e, nas terras do cacau, o trabalho era de sol a sol
(BARBOSA, 2013).

Em nossa análise até aqui, encontramos que a produção do espaço sul-baiano comporta a
preciosa indicação de que cada fragmento desse espaço esconde uma multiplicidade de
relações, de divisão do trabalho (LEFEBVRE, 2006) e, especificamente, reverbera o poder de
mando de coronéis que se colocam acima da lei. Desse modo, o controle dos coronéis junto aos
espaços territorializados de suas fazendas faz transbordar para a cidade os significados do
substrato desse poderio espacial, pois carrega consigo imagens do desbravamento do ambiente
natural; das estratégias de subsistência, enriquecimento e rede que se institucionalizou em torno
desse grupo social; assim como a posição que ocupam dentro da relação do que produzem e
como produzem num espaço social, tão cobiçados. “Por outro lado, não é apenas o território
que só pode ser concebido, concretamente, com a ajuda da ideia de poder. Embora talvez soe
muito menos evidente, também o poder só se exerce com a referência a um território e, muito
frequentemente, por meio de um território” (SOUZA, 2018a, p. 87). Por isso, a corrida pela
ocupação derradeira das terras do Sequeiro Grande se adensa, se acelera. E assim, Guerreiro de
Freitas e Paraíso (2001) ressaltam o que vemos nos excertos de TSF até aqui, que a implantação
da monocultura modificou inteiramente o espaço e constitui toda uma região voltada para os
negócios do cacau, o que acelerou o processo de urbanização de Ilhéus, cidade central àquele
movimento. E Ilhéus, em poucos anos, passou a apresentar uma espécie de síntese daqueles
acontecimentos regionais.

A cidade ficava entre o rio e o mar, praias belíssimas, os coqueiros nascendo


ao largo de todo o areal. Um poeta que certa vez passara por Ilhéus e dera
uma conferência, a chamara de "cidade das palmeiras ao vento", numa
imagem que os jornais locais repetiam de quando em vez.
A verdade, porém, é que as palmeiras apenas nasciam nas praias e se
deixavam balançar pelo vento. A árvore que influía em Ilhéus era a árvore
do cacau, se bem não se visse nenhuma em toda a cidade. Mas era ela que
estava por detrás de toda a vida de São Jorge dos Ilhéus. Por detrás de cada
negócio que era feito, de cada casa construída, de cada armazém, de cada
121

loja que era aberta, de cada caso de amor, de cada tiro trocado na rua. Não
havia conversação em que a palavra cacau não entrasse como elemento
primordial. E sobre a cidade pairava, vindo dos armazéns de depósito, dos
vagões de estrada de ferro dos porões dos navios, das carroças e da gente,
um cheiro de chocolate, que é o cheiro do cacau seco (TSF, p. 201–202).

Enquanto isso, em TSF com as disputas pelo Sequeiro Grande, dizia-se que o coronel Horácio
despontava com menores chances que os Badaró naquele momento, pois o grupo de J. J. Seabra,
após mais de uma década no poder, não estava em vantagem na política estadual. Todavia, o
coronel Horácio da Silveira tinha a seu favor o fato de já acumular a maior extensão de terras
entre os coronéis estabelecidos no cultivo do cacau naquele momento. Tais vantagens, de ambos
os lados, se desdobravam enquanto potenciais relações personalistas e patrimonialistas
vinculantes entre o Estado, instituições, corporações, organizações e políticos (CUNHA, 2017),
e se traduziam em poder de mando e em violência institucionalizada naquela zona do cacau.
Ressaltamos inclusive, que, embora a dinâmica socioeconômica e cultural tenha se alterado ao
longo de Terras do Sem Fim e São Jorge dos Ilhéus, as relações de poder hegemônicas e a
violência institucionalizada permeiam as duas obras, apesar de deslocadas para outros atores e
práticas.

(...) Os Badarós estavam por cima na política, todas as possibilidades de


ganhar a luta eram deles, e se eles a ganhassem, a propriedade da mata de
Sequeiro Grande não seria nunca discutida. E, mesmo que viessem a saber
que a medição era ilegal, feita por um charlatão, ele já estava longe, gozando
noutras terras o dinheiro recebido. Valia a pena arriscar. Enquanto pensava,
olhava Juca Badaró que diante dele, impaciente, batia com o rebenque na
bota. João Magalhães falou:
- A verdade é que eu sou de fora e não queria me meter em encrencas daqui...
Se bem a verdade é que simpatizo muito com a causa do senhor e do seu
irmão. Principalmente depois do incêndio do cartório. Esses atos de coragem
me conquistam... Enfim...
- Pagamos bem, capitão. O senhor não vai se arrepender.
(...) Faziam conjeturas, levantavam hipóteses, calculavam possibilidades.
Que faria Horácio quando soubesse que os Badarós estavam medindo a mata
e iam registrar a medição e retirar um título de propriedade? Juca não tinha
122

dúvidas: Horácio tentaria entrar na mata imediatamente, enquanto faria


correr no foro de Ilhéus um processo pela posse da terra, baseado no registro
feito no cartório de Venâncio. Sinhô duvidava. Pensava que, estando Horácio
sem apoio do governo, como oposicionista que era, tentaria primeiro
legalizar a situação com um "caxixe" qualquer, antes de recorrer a força (...)
(TSF, p. 210).
(...)
Os comentários eram unânimes em Ilhéus: os Badarós levavam evidente
vantagem nos barulhos pela posse de Sequeiro Grande. E não eram só os
comentários das velhas beatas, nas sacristias das igrejas, que o afirmavam.
Os entendidos, nos botequins, até os advogados no foro, estavam de acordo
que os irmãos Badarós tinham a partida quase ganha, para o que concorrera
em muito a enfermidade de Horácio. O processo estava parado no foro,
atravancado com petições opostas pelo Dr. Genaro e reconhecidas pelo juiz.
E Juca Badaró havia entrado pela mata e abrira clareiras na zona que
limitava com a fazenda Sant'Ana, iniciando as queimadas.
É verdade que tiroteios se sucediam, que o coronel Maneca Dantas por uma
arte e arde, Braz, Firmo, e Zé da Ribeira e os demais pequenos lavradores
da vizinhança, por outra parte, faziam o possível para dificultar o trabalho
dos homens dos Badarós. Maneca Dantas armou uma tocaia para os
trabalhadores que iam derrubar um pedaço da mata, que resultou num
tiroteio grande. Braz invadiu com alguns homens o acampamento na beira
da mata, numa noite em que Juca não estava. Mas, apesar disso, o trabalho
prosseguia, os Badarós se estabeleciam na mata.
E revidavam com violência os ataques da gente de Horácio. Enquanto Juca
acompanhava e guardava os trabalhadores, Teodoro das Baraúnas atacava.
Apareceu uma noite na roça de José da Ribeira, incendiou o depósito de
cacau seco botando a perder duzentas e cinquenta arrobas de cacau já
vendido, incendiou a casa-grande, matou um trabalhador que deu o alarme,
iniciou um incêndio nas plantações de mandioca, dificilmente dominado
depois por Zé da Ribeira (TSF, p. 265–266).

Esses grupos e classes dominantes influenciavam as diretrizes do poder estatal e, em muitos


casos, pelo modo como se organizavam, personificavam e materializavam esse mesmo Estado,
123

mascarando desigualdades sociais e tantas outras diferenças que fundavam os interesses


predominantes, geográfica e regionalmente (IANNI, 1994). O capital comercial na Bahia
aparece ao lado do elemento de dominação oligárquica — que nesse período ainda era
vinculado ao latifúndio, como responsáveis pelas espécies de sociedades políticas que atuaram
no estado durante a Primeira República — e que seguiram aglutinando poder político,
econômico e social. O rearranjo das elites políticas baianas passou pela transição de uma
sociedade de base escravagista para uma sociedade de economia agroexportadora (FALCÓN,
2010).

E, quando já os homens na mata ouviam o ruído dos machados dos


adversários no outro lado do rio, Ilhéus despertou numa manhã com a notícia
sensacional que o telégrafo trouxera: o governo Federal decretara a
intervenção no Estado da Bahia. As tropas do exército haviam ocupado a
cidade, o governador renunciara, o chefe da oposição, que chegou do Rio
num vaso de guerra, tomara posse como interventor. Horácio agora era
governo, Sinhô Badaró estava na oposição. O telegrama do novo interventor
demitia o prefeito de Ilhéus, nomeava o Dr. Jessé para o posto. No primeiro
navio vindo da Bahia, chegaram o novo juiz e o novo promotor e, com eles,
a nomeação de Braz para delegado do município. O antigo juiz fora
designado para uma pequena cidade do sertão, mas não aceitou e pediu
renúncia do cargo. Murmuravam que ele já estava rico e não precisava mais
da magistratura para viver.
A "Folha de Ilhéus publicou um número especial, a primeira página em duas
cores. Foi só então que Horácio apareceu em Ilhéus, atendendo a um
telegrama do interventor que o convidava a ir a Bahia para conferenciarem.
Recebeu os cumprimentos dos amigos e dos eleitores, Virgílio embarcou com
ele, uma multidão veio trazê-los ao cais. A bordo, Horácio disse ao
advogado:
- Pode-se considerar deputado federal, doutor... (TSF, p. 278).

Muitos dos estudos acadêmicos inclusive não conseguiram realçar aspectos particulares e
cotidianos do coronelismo: são estudos mais generalistas, sobretudo diante dos moldes do
fenômeno que ocorreu no sul da Bahia. Aquele espaço foi territorializado por forte coronelismo,
fenômeno que ali ganhou contornos próprios, específicas nuances (FALCÓN, 2010).
124

A disputa entre os grupos de Horácio e da família Badaró no sul da Bahia, portanto, em torno
da qual TSF se estrutura, reflete não somente tais práticas políticas, mas representa, como vimos
no excerto anterior, algo que vai se construindo na região, de modo crescente: uma oposição
que se desloca do contraste campo-cidade para a contradição rural-urbano. O rural, naquele
contexto, desponta como uma categoria passível de ser apreendida em termos territoriais
(FAVARETO, 2007). E não se deve estranhar a diferença entre o rural e o urbano em cidades
de países da América Latina e África, por exemplo, visto que o fenômeno urbano se constituiu
a partir de agentes, processos históricos, estruturas sociais e instituições, diversas. O rural para
Ilhéus processou-se de modo diferenciado de outras realidades, pois, sendo o cacau o elemento
ao redor do qual se organizou a vida nos novos tempos na região, parte da população se
aglomerou no espaço urbano, vinculando-se a atividades derivadas do crescimento da cidade.
Porém, a renda básica advinha do campo e dele a cidade dependia (SOUSA, 2001). Mesmo
assim, foi Ilhéus enquanto centro urbano que referenciava o viver na zona cacaueira. “O campo,
no entanto, enquanto roça de cacau, era ainda aquele que oferecia a perspectiva do projeto
civilizador. Isso conferia à propriedade da terra valor insuperável, porque fonte dos ‘frutos de
ouro’, porque raiz e possibilidade de decisão” (SOUSA, 2001, p. 146).

E assim, essas contradições emergem em nossas fontes e nos mostram que o espaço sul-baiano
de modo mais amplo, tendo Ilhéus como centro desse movimento, apresenta espaços
densamente segregados e territorializados a partir do poder e controle do coronelato. Portanto,
o que se observa é o domínio, o governo e a influência dos proprietários de terras frente ao
consentimento forjado junto às populações, sobretudo as rurais, no exercício desse poder. Esse
governo, assim, passa a ser um governo que não necessariamente é estatal e exerce influências
em contextos informais ou mesmo nos formais, de uns indivíduos sobre outros. A própria ideia
de dominação está ligada diretamente ao poder heterônomo e nunca está totalmente
desvinculada do uso da violência e da força bruta como fatores de manutenção desse mesmo
poder (SOUZA, 2018).

Seus jagunços diziam que ele era um macho de verdade e que valia a pena
trabalhar para um homem assim. Nunca deixava que jagunço seu parasse na
cadeia e certa vez saíra especialmente da fazenda para libertar um que estava
na prisão de Ferradas. Depois de tirá-lo de entre as grades, rasgara o
processo na cara do escrivão.
125

Muitas histórias contavam do coronel Horácio. Diziam que, antes de ser


chefe do partido político oposicionista, para conquistar esse posto, mandara
que seus jagunços esperassem na tocaia o antigo chefe político, um
comerciante de Tabocas, e o liquidassem. Depois lançou a culpa contra os
inimigos políticos.
Agora o coronel era chefe indiscutido da zona, o maior fazendeiro dali e
imaginava estender suas terras por muito longe. Que importavam as histórias
que contavam sobre ele?
Os homens, fazendeiros e trabalhadores, contratistas e lavradores de
pequenas roças, o respeitavam, o número dos seus afilhados era incontável
(TSF, p. 54).

Na prática, a definição de território está vinculada, em primeiríssimo lugar, como percebemos


em TSF, à dimensão política das relações sociais em sua gênese ou mesmo os interesses em
mantê-las; e é a esta noção de poder que se somam os aspectos culturais, simbólicos, identitários
locais. Portanto, não devemos confundir território com o substrato espacial material que é a
referência de partida para uma territorialização na narrativa, neste caso, as matas do Sequeiro
Grande. Mas “diversamente do substrato, os territórios não são matéria tangível, palpável, mas
sim ‘campos de força’, que só existem enquanto durarem as relações sociais das quais eles são
projeções espacializadas” (SOUZA, 2018a, p. 89), sendo o elemento político, então, o
motivador do conceito de território, e não o econômico e o cultural-simbólico. A corrida por
aquelas terras que mobilizavam Horácio e a família Badaró era uma corrida centralmente ligada
ao poder regional — campos de força de dois grupos, polarizados.

Sinhô Badaró, o chefe da família, descansava numa alta cadeira de braços,


cadeira austríaca que contrastava não só com o resto do mobiliário, bancos
de madeira, cadeiras de palhinha redes nos cantos, como também com a
mística simplicidade, das paredes caiadas. O relógio na sala de jantar deu
as cinco horas da tarde. Sinhô Badaró pensava, os olhos semicerrados, a
longa barba negra se estendendo sobre o peito. Levantou os olhos, espiou
Juca que andava nervosamente pela sala, o rebenque numa mão, o cigarro
fumegando na boca. Mas logo desviou os olhos e fitou o único quadro da
parede, uma reprodução oleográfica de uma paisagem de campo europeu.
126

Ovelhas pastavam numa suavidade azul. Pastores tocavam uma espécie de


flauta e uma camponesa, loira e linda, bailava entre as ovelhas.
Descia uma imensa paz da oleogravura. Sinhô Badaró se lembrou de como a
comprara. Entrara casualmente numa casa de sírios na Bahia para avaliar
um relógio de ouro. Vira o quadro e se lembrara que Don'Ana há muito dizia
que as paredes da sala necessitavam de algo que as alegrasse. Por isso o
comprara e só agora reparava nele atentamente.
Era um campo tranquilo, de ovelhas, pastores, flautas e baile. Azul, quase
cor do céu. Bem diferente era esse campo deles. Essa terra do cacau. Por que
não haveria de ser assim também como esse campo europeu? Mas Juca
Badaró andava impaciente de um lado para outro, esperava a decisão do
irmão mais velho. A Sinhô Badaró repugnava ver correr sangue de gente. No
entanto muitas vezes tivera que tomar uma decisão como a que Juca esperava
naquela tarde. Não era a primeira vez que ordenava que um ou dois de seus
homens fossem se postar na "tocaia" para esperar alguém que passaria na
estrada.
Olhou o quadro. Bonita mulher... De faces rosadas, os olhos celestes. Mais
bonita talvez que Don'Ana... E os pastores eram sem dúvida bem diversos dos
tropeiros da fazenda... Sinhô Badaró gostava da terra e de plantar a terra.
Gostava de criar animais, os grandes bois mansos, os nervosos cavalos, as
ovelhas de terno balar. Mas lhe repugnava ter de ordenar a morte de homens.
Por isso demorava sua decisão, só a pronunciava quando via que era o único
caminho. Ele era o chefe da família, estava construindo a fortuna dos
Badarós, tinha de passar por cima daquilo que Juca chamava as "suas
fraquezas". Nunca havia reparado antes, detidamente, naquele quadro. O
colorido azul era uma beleza... Bem mais bonito que qualquer folhinha de fim
de ano, e havia folhinhas lindas...
Juca Badaró parou em frente ao irmão:
- Eu já lhe disse, sinhô, que não há outro jeito... O homem empacou que nem
um jumento... Que não vende a roça, que não há dinheiro, que ele não
precisa... E você bem sabe que Firmo sempre teve fama de cabeçudo... Não
tem jeito mesmo.
Sinhô Badaró arrancou com tristeza os olhos da oleografia:
127

- É pena que é um homem que nunca fez mal à gente... Se não fosse porque
esse é o único jeito de estender a fazenda prós lados de Sequeiro Grande...
Senão vai cair nas mãos de Horácio... Sua voz se alterou ligeiramente quando
pronunciou o nome odiado. Juca aproveitou:
- Se a gente não manda fazer o serviço, Horácio manda na certa. E quem
tiver a roça de Firmo tem a chave das matas de Sequeiro Grande...
Sinhô Badaró estava perdido novamente na contemplação do quadro (...)
(TSF, p. 65–67).
Juca pitou o cigarro, bateu com o rebenque na bota enlameada, andou pela
casa. Depois falou:
- Se eu não te conhecesse, Sinhô, mo eu te conheço, e se não te respeitasse
como meu irmão mais velho, eu era até capaz de pensar que tu era um cagão.
- Tu não respondeu o que eu te perguntei.
- Se gosto de ver a gente morrer? Nem sei mesmo. Quando tenho raiva de
um, sou capaz de cortar ele devagarinho. Tu sabe...
- E quando não tem raiva?
- Toda vez que um se mete na minha frente tem que sair pra eu passar. Tu é
meu irmão mais velho e é tu quem resolve das coisas da família. Tu é que Pai
deixou tomando conta de tudo: das roças, das meninas, de mim mesmo. Tu é
que tá fazendo a riqueza dos Badarós. Mas eu te digo, Sinhô, que se eu tivesse
no teu lugar a gente tinha duas vezes mais terra (TSF, p. 67).
Sinhô Badaró levantou-se. Era alto de quase dois metros a barba rolava-lhe
pelo peito, negra de tinta. Os olhos se acenderam, sua voz encheu a sala:
- E quando tu já me viu, Juca, deixar de fazer uma coisa quando era
necessário?
Tu bem sabe que eu não tenho esse gosto de sangue que tu tem. Mas quando
tu já viu eu deixar de mandar liquidar um quando houve necessidade?
Juca não respondeu. Respeitava o irmão e talvez a única pessoa do mundo
que ele temesse fosse Sinhô Badaró. Este baixou a voz:
- Só que não sou como tu, um assassino. Sou um homem que só faz as coisas
por necessidade. Tenho mandado liquidar gente, mas Deus é testemunha que
só faço quando não tem jeito. Sei que isso não vale nada quando chegar o
dia de prestar contas lá em cima - apontava o céu. Mas para mim mesmo,
tem o seu valor.
128

Juca esperou que o irmão se acalmasse.


- Tudo isso por causa de Firmo, um idiota cabeçudo. Tu pode me chamar do
que quiser, eu não me importo. Agora só te digo uma coisa: não há terra pra
cacau como as de Sequeiro Grande e se tu quer elas prós Badarós não há
jeito mesmo... Firmo não vende a roça (TSF, p. 67–68).
Olhou o quadro, tão tranquilo na sua paz azul. Se aquela terra retratada na
oleogravura fosse boa para o cultivo do cacau ele, Sinhô Badaró, teria que
mandar jagunços pra detrás de uma árvore, para a "tocaia", jagunços que
liquidassem os pastores que tocavam gaita, a moça rosada que dançava tão
alegre... Os homens estavam esperando, ele fez um esforço, esqueceu toda a
cena do quadro, a mulher parando seu baile com o tiro que ele mandara dar,
começou a repetir ordens com sua voz pausada de sempre, firme e calma
(TSF, p. 68).

Ah, o campo europeu da oleogravura da sala dos Badaró... Quanta diferença daquelas terras do
sem fim! Naquele momento, a ideia de velho e novo mundo se cruza nos pensamentos de Sinhô
Badaró; o primogênito da família Badaró e que, ao se encontrar na posição de decidir sobre a
vida ou morte de Firmo — o pequeno coronel que se negara vender sua fazenda que estava no
acesso às terras do Sequeiro Grande —, Amado usa dessas contradições e nos chama atenção
mais uma vez para as especificidades do lugar: o lugar que socialmente ali se produzia
(SOUZA, 2018a), lugar que não agradava exatamente a sensibilidade demonstrada por Sinhô
Badaró diante do impasse de deixar Firmo viver ou não.

Para Sinhô Badaró, naquele instante, a significação do espaço vivido era por demais rude,
violento, selvagem, aterrorizante; era um lugar diferente dos campos europeus de céu azul,
idílicos, de tradicionais pastores de ovelhas, de moças de tez rosadas. Lugar adverso, assim,
povoou a mente de Sinhô naquele breve momento de decisão. Lugares carregam imagens
espaciais e simbolismos de si mesmo (SOUZA, 2018a), e que, por isso, atravessavam a
oleogravura da sala e se transpuseram na porção espacial material ocupado pelos Badaró, com
sua realidade e significado completamente adverso; lugar aquele, por fim, no qual o que mais
interessava naquele momento era ampliar o cultivo do cacau.

Mas não era somente Sinhô Badaró que estranhava, ao seu modo, aquelas vivências e
sociabilidades das terras do sem fim: Ester — a jovem prendada e bela, esposa do coronel
129

Horácio — já não sabia sonhar com as coisas da juventude, com o desejo de ganhar mundo, de
se vestir e portar-se como as parisienses. Seus sonhos haviam se perdido diante daquela
realidade adversa, daquela espécie de novo mundo. Detida em suas lembranças e frustrações,
talvez Ester não pudesse compreender a relação ambígua entre natureza e cultura daquele
território disputado por coronéis naquele momento. A ela não cabia dimensionar as relações e
mediações complexas que se engendravam num espaço em formação, como aquele
(LEFEBVRE, 2006).

(...) Nem agradecera as revistas francesas e os figurinos que ela mandara...


Ainda estavam em cima do piano, junto com antigas músicas esquecidas.
Éster riu tristemente, arrancou outro acorde do piano. Para que figurinos
naquele fim do mundo, naquelas brenhas?
Nas festas de São José, em Tabocas, nas festas de São Jorge, em Ilhéus, as
modas andavam atrasadas de anos e ela não poderia exibir os vestidos que a
amiga vestia em Paris... Ah! se Lúcia pudesse imaginar sequer o que era a
fazenda, a casa perdida entre as roças de cacau, o silvo das cobras nos
charcos onde comiam rãs E a mata... Por detrás da casa ela se estendia
trancada nos troncos e nos cipós. Ester a temia como a um inimigo. Nunca
se acostumaria, tinha certeza. E se desesperava porque sabia que toda a sua
vida seria passada ali, na fazenda, naquele mundo estranho que a
aterrorizava (TSF, p. 55).
(...) No colégio sonhavam sonhos lindos, liam romances franceses, histórias
de princesas, de uma vida formosa. Todas tinham planos de futuro, ingénuos
e ambiciosos: casamentos ricos e de amor, vestidos elegantes, viagens ao Rio
de Janeiro e à Europa. Todas menos Geni que desejava ser freira e passava
o dia rezando. Ester e Lúcia, consideradas as mais elegantes e belas do
colégio, sonhavam de imaginação solta. Conversavam nos pátios, durante os
recreios, no silencio do dormitório também.
(...)
(...) Daí ela vê a estrada real onde de raro em raro um trabalhador passa em
busca do caminho de Tabocas ou de Ferradas. Vê também o grupo de
barcaças onde o cacau seca ao sol, pisado pelos pés negros dos
trabalhadores.
130

Terminado o curso, ela viera para Ilhéus, nem assistira ao casamento de


Lúcia com o Dr. Alfredo, o médico de tanto sucesso. A amiga viajara logo.
Rio de Janeiro e Europa, onde o marido ia se demorar em hospitais célebres,
especializando-se. Lúcia fora realizar seus sonhos, os vestidos caros, os
perfumes, os bailes de grande orquestra. Éster pensa nas diferenças do
destino.
Ela viera para Ilhéus, outro mundo. Uma cidade pequena, que apenas
começava a crescer, de aventureiros e lavradores, onde só se falava em cacau
e mortes (TSF, p. 56).
Agora era uma festa quando ia a Ilhéus. O sonho das grandes cidades, da
Europa, dos bailes imperiais e dos vestidos parisienses, ficara para trás.
Parecia tudo muito longe, perdido no tempo, naquele tempo "em que era
possível sonhar". Poucos anos se haviam passado. Mas era como se toda uma
vida tivesse sido vivida numa rapidez de alucinação. Seu melhor sonho desses
dias é uma viagem a Ilhéus, assistir às festas da igreja, uma procissão, uma
quermesse com leilão de prendas.
Balança-se na rede mansamente. Na sua frente, até onde seus olhos
alcançam, estendem-se, subindo e baixando os morros, as roças de cacau,
carregadas de frutos. No terreiro ciscam as galinhas e os perus. Os negros
trabalham nas barcaças, revolvendo o cacau mole (TSF, p. 56–57).
Se acostumou com tudo, agora se dava bem com as negras, a Felícia até
estimava, era uma mulatinha dedicada. Se acostumou até com o marido, com
o seu silencio pesado, com os seus repentes de sensualidade, com as suas
fúrias que deixavam os mais ferozes jagunços encolhidos de medo,
acostumou com os tiros à noite na estrada, com os cadáveres que por vezes
passavam estirados em redes, um triste acompanhamento de mulheres
chorando, só não se acostumou com a mata no fundo da casa, onde pelas
noites, ao charco que o riacho fazia, as rãs gritavam seu grito desesperado
na boca das cobras assassinas.
(...) Se acostumara com tudo, não sonhava mais. Só não se acostumara com
a mata e com a noite da mata. Nas noites de temporal era espantoso: os raios
iluminando os altos troncos, derrubando as árvores, os trovões roncando.
Nessas noites Ester se encolhia com medo e chorava sobre o seu destino.
131

Eram noites de pavor, de medo irreprimível, um medo que era como uma
coisa concreta e palpável. Começava na hora dilacerante do crepúsculo.
Ah! aqueles crepúsculos da mata, anunciadores de tempestades... Quando a
tarde caía, cheia de nuvens negras, as sombras eram como fatalidades
definitivas, não havia luz de querosene que tivesse força de espantá-las, de
evitar que elas cercassem a casa e fizessem dela, das roças de cacau e da
mata, uma coisa só, ligadas pelo crepúsculo igual a uma noite. As árvores se
agigantavam, cresciam com o estrume misterioso das sombras, os ruídos se
faziam dolorosos, pios de aves desconhecidas, gritos de animais que Ester
nunca sabia onde estavam (TSF, p. 59).
(...)
Tremia sempre que pensava que sobre o telhado podia estar uma delas, sutil
e silenciosa, vindo de manso para o leito de jacarandá, talvez para se
enroscar no seu pescoço durante o sono. Ou então para penetrar no berço
da criança e se enrodilhar sobre ela. Quantas noites passara sem dormir
porque repentinamente pensara que uma cobra descia pela parede? Bastava
um rumor ouvido no princípio do sono. Era o bastante para enche-la de
terror. Levantava se, arrancava as cobertas, atirava-se para a cama do filho.
Quando se convencia de que ele estava dormindo sem perigo, realizava uma
busca por todo o quarto, o candeeiro numa mão, os olhos abertos de medo
(TSF, p. 61).
(...)
E, de Paris, Lúcia escrevia cartas, falava de festas e de teatros, de vestidos e
de banquetes... (TSF, p. 65).

Ah, Paris! Quanta sedução nesta colonização do imaginário. Paris passou a ser um modelo
cultural universal, povoando o imaginário das culturas não europeias numa aspiração de que
não seria possível existir e, sobretudo, se reproduzir, fora dessas relações e fora desse padrão
— um padrão que daria acesso ao poder. Na América Latina, a sedução pela europeização
estava por toda parte (QUIJANO, 1992).

Ah, o cacau! Sim, Ester, com esse era possível sonhar... A organização de toda uma sociedade
se deu em torno do alinhamento econômico, cultural e simbólico do cultivo do cacau. O cacau
se tornou o elemento definidor de vidas e da imagem de Ilhéus por mais de um século. Sua
132

cultura é um marco nas relações espaciais, sociais e culturais do sul da Bahia. E do universo
rural emerge a produção social que alimentará ou mesmo, sustentará, a estrutura da Rainha do
Sul — da Ilhéus da virada do Século XIX. Os sujeitos da narrativa amadiana são, portanto,
sujeitos de uma história em movimento (DUARTE, 2002).

Nessa manhã ele ia entre os cacaueiros novos que davam seus primeiros
frutos. Acabara de preparar o cigarro com as grandes mãos calosas. Pitava
vagarosamente e não pensava em nada, nem nas histórias que contavam dele,
nem mesmo na chegada recente do Dr. Virgílio, o novo advogado que o
partido enviara da Bahia para os trabalhos de Tabocas, não pensava nem
mesmo em Ester, sua esposa, tão linda e tão jovem, educada pelas freiras na
Bahia, filha do velho Salustiano, comerciante de Ilhéus que a dera,
encantado, de esposa ao coronel. Era a sua segunda mulher, a primeira
morrera quando ele era ainda tropeiro. Era triste e linda, magra e pálida, e
era a única coisa que fazia o coronel Horácio sorrir de uma maneira
diferente. Neste momento nem em Éster pensava.
Não pensava em nada, via apenas os frutos dos cacaueiros, verdes ainda,
pequeninos, os primeiros daquela roça. Com a mão tomou de um deles, doce
e voluptuosamente o acariciou. Doce e voluptuosamente como se acariciasse
a carne jovem de Ester. Com amor. Com infinito amor (TSF, p. 53–54).
(...)
- Enxugue esses olhos, mande fazer um jantar direito que hoje vem comer
aqui o Dr. Virgílio, esse advogado novo que tá em Tabocas e é protegido do
Dr. Seabra.
E você se vista direito também. E preciso mostrar ao moço que a gente não é
bicho do mato... Riu sua risada curta, deixou com Ester o coco de cacau, saiu
para dar ordens aos trabalhadores. Ester ficou pensando nesse jantar da
noite, com esse tal de advogado, igual naturalmente ao Dr. Rui que se
embriagava e ficava, na hora da sobremesa, a cuspir para todos os lados e a
contar histórias porcas... (TSF, p. 64–65).

Por volta de 1910, quando o cacau ampliou sua performance na balança de exportações, a
valorização das terras se tornou uma crescente, e a diferenciação social na região seguiu se
ampliando, inclusive, por meio de registros inescrupulosos e apossamentos de terrenos
133

devolutos, com profundas disputas por áreas já ocupadas. Foi um período de litígios, conflitos
e violência, que se somaram na expropriação de glebas produtivas (FALCÓN, 2010).

Inclusive a presença do Dr. Virgílio na casa de Horácio, de início, vincula-se ao planejamento


de como produziriam provas documentais quanto à propriedade daquelas terras devolutas, tão
cobiçadas. Na região do cacau, registra-se que o caxixe contribuiu para o aumento da riqueza
de inúmeros coronéis. Aliás, trata-se de uma expressão típica dessa região e significa lograr
êxito na estruturação de patrimônio por meio de trapaça, burla, tapeação ou atos de esperteza
(BARBOSA, 2013).

Só os advogados eram muitos, seis ou sete naquele povoado, ganhando


dinheiro todos com os "caxixes" escandalosos. Mais que em Ilhéus, era em
Tabocas que o "caxixe" medrava. Homens que há anos possuíam terras e
plantações as perdiam de um dia para outro devido a um "caxixe" bem feito.
Não havia coronel que se animasse a fazer negócios sem antes consultar um
bom advogado, se resguardar completamente da possibilidade do "caxixe"
futuro. Um negro de Tabocas, Claudionor, fazendeiro que colhia suas mil
arrobas de cacau, fizera certa vez um "caxixe" que ficara célebre e fora
citado mesmo pelos jornais da Bahia. A vítima fora o coronel Misael, cuja
fortuna já era meio lendária ainda naquele tempo, fazendeiro de muitas mil
arrobas, accionista das obras do porto e da estrada de ferro, dono de um
banco em Ilhéus. Era toda uma força económica, tinha um advogado por
genro. Pois ainda assim fora logrado pelo negro Claudionor. Na quietude da
sua fazenda, Claudionor estudara o "caxixe" e o realizara com a ajuda do
Dr. Rui (TSF, p. 148).
- Se trata do seguinte: essa mata do Sequeiro Grande é terra boa pra cacau,
a melhor de toda zona. Nunca ninguém entrou nela pra plantar. Só quem vive
lá é um maluco, metido a curandeiro...
Do lado de cá da mata tou eu com minha propriedade. Já meti o dente na
mata por esse lado. Do lado de lá tão os Badarós com a fazenda deles. Eles
também já meteram o dente na mata. Mas pouca coisa de um lado e de outro.
Essa mata é um fim do mundo, seu doutor, e quem tiver ela é o homem mais
rico dessas terras de Ilhéus... E mesmo que ser dono de uma vez de Tabocas,
de Ferradas, dos trens e dos navios...
134

(...)
- Na frente da mata, entre eu e os Badarós tá o compadre Maneca Dantas
com a fazenda dele. Mais arriba ta Teodoro das Baraúnas. Só tem essas duas
fazendas grandes. O mais é roça pequena, como a do Firmo, umas vinte...
Tudo mordendo a mata, mas sem coragem de entrar... Faz muito que eu tenho
o plano de derrubar a mata de Sequeiro Grande. Os Badarós bem sabe... Se
mete porque quer...
Olhou em frente, as últimas palavras soavam como anunciando desgraças
irremediáveis. Maneca Dantas esclareceu:
Eles tão de cima na política, por isso se atrevem...
Virgílio queria saber uma coisa:
- Mas que é que Firmo tem que ver?
Horácio voltou a falar:
- E que a roça dele está entre a mata e a propriedade dos Badarós... Faz
tempo que eles andavam propondo comprar a roça dele. Ofereceram até mais
do que valia. Mas Firmo é meu amigo, meu eleitor há muitos anos, me
consultou, aconselhei que não vendesse. Eu sabia a tenção dos Badarós que
era entrar pela mata. Mas imaginei que eles mandassem liquidar Firmo...
Quer dizer que eles tão decididos... Tão querendo... (TSF, p. 110–111).
(...)
- Dizem que Juca Badaró mandou chamar um agrónomo para medir a mata
de Sequeiro Grande e tirar um título de propriedade...
Doutor Virgílio riu, satisfeito de si mesmo:
- Pra que é que eu sou advogado, doutor? A mata já está registrada, com
medição e tudo, no cartório de Venâncio, como propriedade do coronel
Horácio, de Braz, de Maneca Dantas, da viúva Merenda, de Firmo, de
Jarde...
- lamentou a voz - do Dr. Jessé Freitas. ... O senhor tem que ir lá amanhã
assinar... Explicou o "caxixe", a cara do médico se abriu num sorriso:
- Parabéns, doutor... Essa é de mestre...
Virgílio sorriu modesto:
- Custou dois contos de réis convencer o escrivão. O mais foi fácil vamos ver
agora o que eles fazem. Vão chegar tarde...
135

Dr. Jessé ficou um momento silencioso. Era um golpe de mão cheia. Horácio
se adiantara aos Badarós, agora era legalmente dono da mata. Ele e os seus
amigos entre os quais o Dr. Jessé. Esfregou as mãos gordas, uma na outra:
- Trabalho bem feito... Não há outro advogado aqui como o senhor... (...)
(TSF, p. 170).
______
Tentavam provar aquilo que todo mundo sabia: que o testamento de Ester
era falso. Mas provar como? Lá estava ele, nos velhos livros, semi-
queimados, a letra desbotada, rala, como coisa antiga. Lá estava a
assinatura de dona Ester Silveira, naquela caligrafia de colegial, firma
reconhecida pelo velho escrivão, e abaixo as das testemunhas, o falecido dr.
Jessé e o coronel Maneca Dantas que ainda estava vivo e depusera afirmando
da validade e da autenticidade do testamento. Como impugná-lo? Era o
caxixe mais perfeito dos últimos tempos, havia, na cidade de Ilhéus e em toda
a zona do cacau, uma geral admiração pelo trabalho do dr. Rui Dantas. Os
mais experientes viam naquilo o dedo do coronel Horácio, mas a maioria
louvava o talento do jovem advogado, em cuja banca de trabalho
acumulavam-se agora as causas (SJI, p. 244).

A figura do coronel ampliou sua influência a ponto de se tornar presença indispensável em


todos os pleitos eleitorais e, após o primeiro governo de J. J. Seabra, em 1912, seguiu
constituindo no estado, o elemento fundante da unidade partidária nos processos sucessórios. E
aos chefes políticos do interior, ampliou-se a decisão sobre cargos públicos de delegado e
promotor, cargos fundamentais ao controle autoritário — o poder político reconhecidamente se
estendia ao poder público (FALCÓN, 2010).

(...) Horácio virou-se para o Dr. Virgílio:


- O senhor acha mesmo, doutor, que o Seabra vai ganhar as eleições?...
- Estou certo disso...(TSF, p. 111).
(...)
Por isso o homem montado esporeava o burro. Sabia que tiro do negro
Damião era caixão de enterro encomendado e sabia também que cabra de
Sinhô Badaró era cabra garantido, não havia polícia para eles. Toda a gente
sabia que o juiz era homem dos Badarós, até roça tinham botado para ele,
136

os Badarós estavam por cima na política, contavam com a justiça (...) (TSF,
p. 71).
(...)
Existia outra ordenança municipal que proibia o porte de armas. Mas muito
poucas pessoas sabiam que ela existia e, mesmo aqueles poucos que o
sabiam, não pensavam em respeitá-la. Os homens passavam, calçados de
botas ou de botinas de couro grosso, a calça cáqui, o paletó de casimira, e
por baixo deste o revólver. Homens de repetição a tiracolo atravessavam a
cidade sob a indiferença dos moradores (TSF, p. 202–203).

Diante de uma transformação social tão relevante, para além de seu conteúdo ético e político,
nada ali acontecia à revelia do espaço (SOUZA, 2018a). E, assim, naquela cidade em que todos,
em alguma medida, estavam imbricados em nome do cacau, o trabalhador contratista, o jagunço
e, na forma da lei, o advogado estavam ali vinculados a relações sociais e condições técnicas
numa estrutura produtiva bastante precária (FALCÓN, 2010). E falando em jagunço, eis que
nos deparamos com outra figura emblemática naquele violento contexto narrado em TSF e SJI
— o braço armado dos coronéis do cacau (SOUSA, 2001).

Quem não conhece nessas redondezas ao negro Damião, o jagunço de


confiança de Sinhô Badaró?
Sua fama corre terra, há muito que está além da Palestina, de Ferradas e de
Tabocas. Dos botequins de Ilhéus; onde comentavam seus feitos, ele viajara
nos pequenos navios até a capital e um jornal da Bahia já publicara seu nome
em letra redonda. Como era um jornal de oposição falava muito mal dele,
chamava-o de nomes feios.
Damião se lembra perfeitamente desse dia: Sinhô Badaró o mandara chamar
na casa-grande na hora do almoço. Estava muita gente na mesa, onde as
garrafas de vinho destapadas revelavam a presença do juiz. Estava também
o Dr. Genaro, o advogado dos Badarós, e fora ele quem trouxera o jornal.
Dr. Genaro não era brilhante como o Dr. Rui, não sabia fazer aqueles
discursos cheios de palavras bonitas, mas conhecia meticulosamente todos
os intrincados detalhes da lei e de como passar por cima da lei, e Sinhô
Badaró o preferia a qualquer dos vários advogados do foro de Ilhéus. Sinhô
Badaró sorriu para Damião, mostrou-o aos outros:
137

- Tá aqui a fera...
Como ele riu, Damião riu também, seu largo riso inocente, os dentes brancos
e perfeitos brilhando na enorme boca negra. O juiz bêbado riu alegremente,
mas o Dr. Genaro apenas sorriu e dava a impressão de que o fazia por pura
cortesia. Sinhô Badaró continuou, agora falava para Damião:
- Tu sabe, negro, que os jornais da capital tão se ocupando de ti. Diz que não
há melhor matador nessa zona que Damião, o cabra de Sinhô Badaró. Dizia
com orgulho e com orgulho Damião respondeu:
- E verdade, Sinhô, sim. Não sei de cabra mais certeiro na pontaria que esse
negro que tá aqui.
E riu novamente com satisfação (TSF, p. 69–70).
(...)
Don'Ana! Don'Ana!
A filha chegou da cozinha onde dirigia o andamento do almoço, era morena
e forte, silvestre flor da mata:
- Que é, pai?
O juiz a olhava de olhos interessados. Sinhô Badaró ordenou:
- Tira cinquenta mil-réis do cofre e dá a Damião. O nome dele anda pelos
jornais...
Depois despediu o negro e a conversa continuara na sala de almoço. Damião
fora a Palestina gastar o dinheiro com as rameiras. Bebera a noite toda e a
toda gente contava que um jornal da Bahia tinha escrito que não havia
pontaria como a dele (TSF, p. 70-71).
(...)
(...) Parecidos com os trabalhadores no físico e na rudeza da voz, na maneira
de falar e no modo de se vestir, esses homens que chegavam diariamente a
fazenda, abarrotando as casas dos trabalhadores, vários dormindo já nos
depósitos de cacau, outros espalhados pela varanda da casa-grande, eram
os jagunços que vinham, mandados por Teodora, recrutados por Juca,
mandados pelo cabo Esmeraldo, de Tabocas, ou por seu Azevedo, pelo padre
Paiva, de Mutuns, guardar a fazenda dos Badarós e esperar os
acontecimentos. Alguns chegavam montados, eram poucos. Os mais vinham
a pé, a repetição no ombro, o facão no cinto. Chegavam e na varanda da
casa-grande esperavam ordens de Sinhô Badaró, enquanto sorviam o copo
138

de cachaça que Don'Ana mandava servir. Eram, em geral, homens calados,


de poucas palavras, de idade quase sempre indefinida, negros e mulatos, de
quando em vez um loiro contrastando com os outros. Sinhô e Juca conheciam
a todos e Don'Ana também.
Aquele espetáculo se repetia diariamente, João Magalhães calculava que uns
trinta homens haviam chegado na fazenda depois dele. E se perguntava o que
sairia daquilo tudo, como andariam os preparativos na fazenda de Horácio
(...) (TSF, p. 213–214).

Como vimos até aqui, o engendramento da sociedade grapiúna no espaço sul-baiano nos
apresenta, em TSF e SJI, dramas humanos e sociabilidades que se desenvolveram a partir das
mais diversas intenções e de relações assimétricas de poder, “(...) fazendo emergir fisionomias
que ganharam particularidades locais, coronéis, jagunços, alugados (os trabalhadores das roças
de cacau) e arranjos político-sociais que instrumentalizaram a ação: o caxixe (negociata feita
em torno de terras produtoras de cacau) e a tocaia (espreita ao inimigo, emboscada) (SOUSA,
2001, p. 66).

Mas aquelas relações com o novíssimo mundo sul-baiano que ali se esboçava desde fins do
Século XIX não se esgotam com os personagens e cenas realçadas até aqui. Desse modo, para
além dos sonhos a la Paris, sonhos reprimidos de Ester — para além da oleogravura dos campos
verdejantes com seus pastores ordeiros onde a vida transcorria com suavidade na imaginação
de Sinhô Badaró; para além do amor de Horácio pelos frutos dourados que desabrochavam na
grande florada que se aproximava; para além da territorialização mediada pelas relações
políticas da República Velha e na região, fortemente vinculada ao coronelismo; para além da
corrida e todo tipo de subterfúgio que levasse a posse de novas e decisivas terras na
diferenciação social dos grupos envolvidos na disputa; para além da violência institucionalizada
inclusive pela atuação dos jagunços, braço forte daquele sistema —, havia outros sonhos, outros
significados, outros anseios, outros expedientes naquele mesmo espaço e cotidiano: os dos
trabalhadores da lida direta com a lavoura, que ali encontraram e vivenciavam vulnerabilidades.
Embora no discurso amadiano o outro, o não proprietário de terras também é um, Um; o que
TSF e SJI evidenciam ao longo das narrativas é que, naquele ordenamento, (...) homens que se
fizeram coronéis, estabeleceram rígidas regras de convivência e definiram uma estrutura social,
numa verticalidade de dominação absoluta: coronéis, jagunços e alugados (SOUSA, 2001, p.
71).
139

Assim, a vida socialmente organizada no tocante aos trabalhadores das fazendas de cacau estava
sempre margeada com uma profunda sujeição dentro da estrutura de relações e práticas sociais
daquele lugar. De modo mais amplo, aquelas gentes sem sobrenome e posses, meros
trabalhadores da lavoura, seguiam invisibilizadas quase sempre enquanto agentes da história
em sua lida e práticas cotidianas. Essas mulheres e esses homens, ali no discurso amadiano
sobre a formação sócio-histórica da região do cacau na Bahia, também se inscreviam, e, de
modo central, nos marcos das relações sociais (SOUZA, 2018a) quanto à organização daquele
espaço e suas territorialidades. Dito de outro modo, aqueles trabalhadores foram essenciais nas
relações que se deram naquele novo espaço social, foram essenciais ao modo como se organizou
a vida em Ilhéus e o viver dos coronéis, com suas relações territoriais e sociais.

(...) Os homens e mulheres espalhados no tombadilho conversam sobre as


esperanças dessas terras do sul.
- Eu me boto para Tabocas... - diz um homem que já não é muito moço, de
barba rala e cabelo encrespado.
- Diz que é um lugar de futuro.
- Mas diz que também que é uma brabeza. Que é um tal de matar gente, que
Deus me perdoe... Falou um pequenininho de voz rouca.
- Já ouvi contar essa conversa... Mas não acredito nem um tiquinho. Se fala
muito no mundo...
(TSF, p. 22).
(...)
- Será o que Deus quiser... - agora era a voz de uma mulher que trazia a
cabeça coberta com um xale.
- Eu vou é pra Ferradas... - anunciou um jovem. - Tenho um irmão por lá, tá
bem. Tá com o coronel Horácio, um homem de dinheiro. Vou ficar com ele.
Já tem lugar pra mim trabalhar. Depois volto pra buscar a Zilda...
- Tua noiva? - perguntou a mulher.
- Minha mulher, tá com uma filhinha de dois anos, outro no bucho. Uma
lindeza de menina (TSF, p. 23).
(...)
Apesar do que já existia de assentado, de definitivo, em Ilhéus, os grandes
sobrados, as ruas calçadas, as casas de pedra e cal, ainda assim restava na
140

cidade um certo ar de acampamento. Por vezes, quando chegavam os navios


abarrotados de emigrantes vindos do sertão, de Sergipe e do Ceará, quando
as pensões de perto da estação não tinham mais lugar de tão cheias, então
barracas eram armadas na frente do porto. Improvisavam-se cozinhas, os
coronéis vinham ali escolher trabalhadores. Dr. Rui, certa vez, mostrara um
daqueles acampamentos a um visitante da capital:
- Aqui é o mercado de escravos...
Dizia com um' certo orgulho e certo desprezo, era assim que ele amava
aquela cidade que nascera de repente, filha do porto, amamentada pelo
cacau, já se tornando a mais rica do Estado, a mais próspera também (TSF,
203).

O governo federal e estadual estimulava a transferência de grande massa de pessoas que


pudessem se tornar força de trabalho nas roças de cacau daquelas grandes dimensões sul-
baianas (GUERREIRO DE FREITAS; PARAÍSO, 2001). Pelas ruas e praças de Ilhéus, em seu
cais e em seu porto, encontravam-se levas de trabalhadores, que buscavam naquele lugar
desconhecido, ao menos melhorar suas condições de vida.

O que fora discutido até aqui, se amplia na próxima categoria — afinal Ilhéus estava para muito
além da mata do Sequeiro Grande e da corrida pela territorialização dos espaços. Seguimos na
intenção de nos descolar um pouco dessa imagem dos tempos das disputas violentas pelo
domínio territorial, pois Ilhéus e suas relações nos trazem ainda muito mais. A mulher de xale
na terceira classe do navio vindo da Bahia rumo a Ilhéus teria razão? Será o que Deus quiser?
Nas conversações que se seguem, encontraremos outras possíveis compreensões sobre a
formação social daquela embrionária Ilhéus urbanizada.

4. 2 Das riquezas, das venturas e falácias – rumo ao sul, caminhos se cruzam e nem tudo
que reluz é ouro

Maneca Dantas falou sério, aconselhando:


- Pois vale, seu Capitão. Vale a pena... Cacau é uma lavoura nova mas a
terra daqui é a melhor do mundo para cacau. Já veio muito doutor por aqui
estudar e isso é coisa assentada. Não há terra melhor pro cacau. E a lavoura
é o que há de bom, eu não troco por café nem por cana de açúcar. Só que a
141

gente ainda é um bocado braba mas isso não há de meter medo a um homem
como o senhor. Seu Capitão, eu lhe digo: dentro de vinte anos Ilhéus é uma
grande cidade, uma capital e todos esses povoados de hoje vão ser cidades
enormes. Cacau é ouro, seu Capitão (TSF, p. 34).

Como num eldorado, esse período registrou forte incremento populacional com a chegada de
migrantes de todo o sertão nordestino, sergipanos, cearenses, alagoanos, que nutriam
expectativas de ocupação e rentabilidade diante dos negócios ligados ao cacau na região,
movimentando “(...) pessoas das mais diversas origens sociais, muitas das quais ligadas a
ocupações que não permitiam a assunção dos afazeres da lavoura. Advogados, comerciantes,
médicos, etc. são alguns desses estratos que, dispondo de algum capital, arriscavam-se nos
lucrativos negócios do cacau” (FALCÓN, 2010, p. 51). Rumo a Ilhéus, seguiram trabalhadores,
pequenos comerciantes e viajantes de toda sorte, em busca de novas oportunidades
(GUERREIRO DE FREITAS, 1979).

Existiam poucos ilheenses de nascimento que já tivessem importância na vida


da cidade. Quase todos, fazendeiros, médicos, advogados, agrónomos,
políticos, jornalistas e mestres de obras eram gente vinda de fora, de outros
Estados. Mas amavam entranhadamente aquela terra aventurosa e rica.
Todos se diziam grapiúnas e quando estavam na Bahia, em toda parte eram
facilmente reconhecíveis pelo orgulho com que falavam.
- Aquele é um ilheense... - diziam.
Nos cabarés e nas casas de negócios da capital eles arrotavam valentia e
riqueza, gastando dinheiro, comprando do bom e do melhor, pagando sem
discutir preços, topando barulhos sem discutir o porque. Nas casas de
rameiras, na Bahia, eram respeitados, temidos, e ansiosamente esperados. E
também nas casas exportadoras de produtos para o interior, os comerciantes
de Ilhéus eram tratados com a maior consideração, tinham crédito ilimitado.
De todo o Norte do Brasil descia gente para essas terras do Sul da Bahia. A
fama corria longe, diziam que o dinheiro rodava na rua, que ninguém fazia
caso, em Ilhéus, de prata de dois mil-réis. Os navios chegavam entupidos de
emigrantes, vinham aventureiros de toda a espécie, mulheres de toda a idade,
para quem Ilhéus era a primeira ou a última esperança (TSF, 202–203).
142

(...) Carlos assim o fizera, e hoje a fortuna dos Zude triplicara. Maximiliano
sorria na fotografia seu sorriso sabido, respondia ao sorriso bem-humorado
de Carlos: o velho compreendia, aquele entendia de cacau, viera para Ilhéus
quando o cacau aparecera. Carlos voltou-se para o gerente, explicou numa
voz onde havia uma ponta de vaidade:
- Somente cem mil, seu Martins, e não sei se não vendi demais... Houve um
tempo, Martins, que os compradores impunham os preços. Pagavam o que
queriam. O cacau de Ilhéus era uma ninharia, não pesava no mercado. Ia a
reboque dos outros. Nesse tempo, não sei se o senhor ouviu falar, nossa firma
era pequena, em vez desse prédio era um sobradinho que nem era da gente,
era alugado. Faz isso vinte e cinco anos, seu Martins… (SJI, p. 21).

A nova identidade da região, assumida dali em diante — região cacaueira da Bahia — mesmo
com seus contrastes e problemas, atraiu pessoas de múltiplas origens diante da possibilidade de
adquirir riqueza com rapidez (GUERREIRO DE FREITAS; PARAÍSO, 2001). Numa
sociedade marcada pela diferenciação sociorracial, ser rico no Século XIX estava,
normalmente, ligado ao nascer branco com ascendência portuguesa (MATTOSO, 1992). E, por
isso, Ilhéus tornou-se o ponto de chegada de milhares que sonhavam, ambicionavam ou
acreditavam, independente de sua origem, ascender socialmente, exercendo na região uma
atividade econômica altamente rentável (GUERREIRO DE FREITAS; PARAÍSO, 2001).

O vento soprou mais forte e trouxe para a noite da Bahia fragmentos das
conversas de bordo, palavras que foram pronunciadas em tom mais forte:
terras, dinheiro, cacau e morte (TSF, p. 17).
(...)
Margot atravessou os grupos, pedindo licença com sua voz quase sussurrada
e em cada grupo se fazia silêncio para melhor a verem e a desejarem. Porém,
mal ela passava, as conversas recaíam no tema de sempre: cacau. Os
caixeiros-viajantes olhavam Margot passando entre os fazendeiros e riam.
Bem sabiam que ela ia em busca de dinheiro, ganhar facilmente o que muito
custara aqueles homens rudes (TSF, p. 21).
(...)
António Vítor ouve as conversas, mas a música que vem de outro grupo,
harmónica e violão, o arrasta novamente para a ponte de Estância onde é
143

belo o luar e a vida é tranquila. Ivone sempre lhe pedia que não viesse. A
roça de milho bastaria para eles dois, para que essa ânsia de vir buscar
dinheiro num lugar do qual contavam tanto coisa ruim? Nas noites de lua,
quando as estrelas enchiam o céu, tantas e tão belas que ofuscavam a vista,
os pés dentro da água do rio, ele planejava a vinda para estas terras de
Ilhéus. Homens escreviam, homens que haviam ido antes, e contavam que o
dinheiro era fácil, que era fácil também conseguir um pedaço grande de terra
e plantá-la com uma árvore que se chamava cacaueiro e dava frutos cor de
ouro que valiam mais que o próprio ouro. A terra estava na frente dos que
chegavam e não era ainda de ninguém. Seria de todo aquele que tivesse
coragem de entrar mata adentro, fazer queimadas, plantar cacau, milho e
mandioca, comer alguns anos farinha e caça, até que o cacau começasse a
frutificar. Então era a riqueza tanto dinheiro que um homem não podia
gastar, casa na cidade, charutos, botinas rangedeiras. De quando em vez
também a notícia de que um morrera de um tiro ou da mordida de uma cobra,
apunhalado no povoado ou baleado na tocaia. Mas que era a vida diante de
tanta fartura? Na cidade de António Vítor a vida era pobre e sem
possibilidades. Os homens viajavam quase todos, raros voltavam. Mas esses
que voltavam - e voltavam sempre numa rápida visita vinham irreconhecíveis
após os anos de ausência. Porque vinham ricos, de anelões nos dedos, relógio
de ouro, pérolas nas gravatas. E jogavam o dinheiro fora, em presentes caros
para os parentes, dádivas para as igrejas e para os santos padroeiros, em
apadrinhamento das festas de fim de ano: "Voltou rico", era só o que se ouvia
dizer na cidade. Cada homem daqueles que chegava e logo partia, porque
não mais se acostumava com a pacatez daquela vida, era mais um convite
para Antonio Vítor. Só Ivone é que ainda o prendia ali. Os lábios dela, o
calor dos seus seios, os rogos que ela fazia com a voz e com os olhos. Mas
um dia rompeu com tudo aquilo e partiu. Ivone soluçara na ponte onde se
haviam despedido. Ele prometera:
- Enrico num ano, venho lhe buscar (TSF, p. 23–24).
(...)
- Vosmecê é de Ilhéus?
- Tou em Tabocas vai fazer cinco anos. Sou do sertão...
- E que veio fazer pra essas bandas com essa idade?
144

- Não vê que primeiro veio meu filho Joaquim... Se deu bem, fez uma rocinha,
a velha morreu, ele mandou me buscar...
Ficou calado, agora parecia prestar muita atenção à música que o vento
levava para os lados da cidade escondida na noite. Os outros estavam
esperando. Mas só o rumor das conversas na primeira classe e a toada que
o negro cantava quebravam o silencio.
“Nunca mais eu vou voltar. Nessas terras vou morrer”.
A voz cantava e os homens se encolhiam com frio. O vento passava rápido,
vinha do sol e era violento. O navio jogava sobre as ondas muitos daqueles
homens nunca tinham entrado num navio. Tinham atravessado as ásperas
catingas do sertão num trem que arrastava vagões e vagões de imigrantes. O
velho olhava-os com seus olhos duros.
- Tão vendo essa modinha? "Nessas terras vou morrer". Tá aí uma coisa
verdadeira... Quem vai pra essas terras nunca mais volta... Tem uma coisa
que parece feitiço, é feito visgo de jaca. Segura a gente...
- Tem dinheiro fácil, não é? - o jovem se atirou para a frente de olhos acesos.
- Dinheiro... Tá aí o que prende a gente. A gente chega, faz algum dinheiro,
que dinheiro há mesmo, Deus seja servido. Mas é dinheiro desgraçado, um
dinheiro que parece que tem maldição. Não dura na mão de ninguém, a gente
faz uma roça... (TSF, 26–27).

Durante toda a República Velha, imensas áreas de mata cederam espaço para o plantio do cacau,
e nenhum município do estado ou mesmo a capital conheceu taxa de crescimento como a de
Ilhéus; a população daquele eixo passou de 7.620 mil habitantes para 105.892 mil habitantes,
um crescimento médio anual de quase 7% (GARCEZ, 1977). E Ilhéus, como porta de entrada
para aquele misterioso e promissor espaço, era lugar de passagem obrigatória: a cidade e suas
muitas histórias povoavam a imaginação dos variados chegantes. Aquela cidade, portanto, “(...)
era o espaço e o tempo se fundindo, um estar e um querer realizar-se num mundo novo de
possibilidades e impedimentos postos aos sujeitos. Eram os sentimentos fortes de uma aventura
que ia deixando de ser imaginação (do migrante) e ia ganhando o colorido da realidade local,
das coisas que estavam sucedendo (SOUSA, 2001, p. 111).

- Já ouviram falar em “caxixe”?


- Diz que é um negócio de doutor que toma a terra do outros...
145

- Vem um advogado com um coronel, faz caxixe, a gente nem sabe onde vai
parar os pés de cacau que a gente plantou...
Espiou em volta novamente, mostrou as grandes mãos calosas:
- Tão vendo? Plantei muito cacaueiro com essas mãos que tão aqui... Eu e
Joaquim enchemos mata e mata de cacau, plantamos mais que mesmo um
bando de jupará que é bicho que planta cacau... Que adiantou? – perguntava
a todos, aos jogadores, à mulher grávida, ao jovem.
Ficou novamente ouvindo a música, fitou longamente a lua:
- Diz que a lua quando tá assim cor de sangue que é desgraça na estrada
nessa noite. Tava assim quando mataram Joaquim. Não tinham por que,
mataram só de malvadez.
- Por que mataram ele? - perguntou a mulher.
- O coronel Horácio fez um caxixe mais Dr. Rui, tomaram a roça que nós
havia plantado. Que a terra era dele, que Joaquim não era dono. Veio com
os jagunços mais uma certidão do cartório. Botou a gente pra fora, ficaram
até com o cacau que já tava secando, prontinho pra vender. Joaquim era bom
no trabalho, não tinha mesmo medo do pesado. Ficou acabado com a tomada
da roça, deu de beber. E uma vez, já bebido, disse que ia se vingar, ia liquidar
com o coronel. Tava um cabra do coronel por perto, ouviu, foi contar.
Mandaram tocaiar Joaquim, mataram ele na outra noite, quando vinha pra
Ferradas... (TSF, p. 27–28).

Mas e essa realidade local teria matizes coloridas para todos? O acolhimento na cidade para
muitos não passou de imaginário, e, assim, rapidamente, as ilusões quanto às grandes
oportunidades de vida e riqueza se desfizeram. A riqueza estava vinculada à propriedade
daquelas terras e ao poderio dos coronéis (SOUSA, 2001).

Na cidade todos se misturavam, o pobre de hoje podia ser o rico de amanhã,


o tropeiro de agora poderia ter amanhã uma grande fazenda de cacau, o
trabalhador que não sabia ler poderia ser um dia chefe político respeitado.
Citavam-se exemplos e citava-se sempre Horácio, que começara tropeiro e
agora era dos maiores fazendeiros da zona. E o rico de hoje poderia ser o
pobre de amanhã se um mais rico, junto com um advogado, fizesse um
"caxixe" bem feito e tomasse sua terra. E todos os vivos de hoje poderiam
146

amanhã estar mortos na rua, com uma bala no peito. Por cima da justiça, do
juiz e do promotor, do júri de cidadãos, estava a lei do gatilho, última
instância da justiça de Ilhéus (TSF, p. 202–203).

Como a ascensão social via propriedade de terras não foi possível para a maior parte daqueles
que alimentavam tal expectativa, restava ao migrante a venda da sua força de trabalho como
trabalhador da lavoura — chamado simplesmente de alugado, frente a ausência de vínculos. O
que restou para a grande massa de migrantes foi se voltar às fazendas de algum coronel com
dedicação integral à lida cotidiana com o cacau. Ademais, após a expansão da área cultivada
nos primeiros tempos, ficou bastante reduzida a possibilidade de trabalho permanente, e a
demanda maior por mão de obra se dava apenas no período da colheita das safras
(GUERREIRO DE FREITAS, 1979).

O trabalho na lavoura, portanto, foi o modo que a maioria daquelas mulheres e daqueles homens
puderam demonstrar suas existências e se ajustar ao, a priori, atrativo espaço sul-baiano. Então,
desiludidos, sem sobrenomes e sem reconhecimento, obedeciam aos comandos dos coronéis
(SOUSA, 2001) e se inseriam naquela desigual rede de sociabilidades.

Juca Badaró assentiu com a cabeça, olhou o grupo:


- Você conhece essa gente, Zé da Ribeira?
- Tou conhecendo agora, seu Juca. Por que, se mal lhe pergunto?
Juca em vez de responder andou mais para o meio dos homens, perguntou a
um deles:
- Você de onde vem?
- Do Ceará, patrão. Do Crato...
- Era tropeiro?
- Não, sinhô... Tinha uma plantaçãozinha. . . - e sem esperar a pergunta:
- A seca acabou com ela.
- Tem família ou é sozinho?
- Tenho mulher e um filho pra nascer...
- Quer trabalhar pra mim?
- Inhô, sim.
E assim Juca Badaró foi contratando gente, o jogador que dava cartas, um
dos seus parceiros, o cearense, o jovem António Vítor que olhava o céu de
147

mil estrelas. Muitos homens se ofereceram e Juca Badaró os recusou. Ele


tinha uma grande experiência dos homens e sabia conhecer facilmente
aqueles que serviriam para as suas fazendas, para a conquista da mata, para
o trabalho da terra e pra garantir a terra cultivada (TSF, p. 31–32).

A textualidade de Amado, em virtude inclusive de seu engajamento, se move sobre forte apelo
das urgências históricas. Daí que tais narrativas mesclam, além dos dramas dos marginalizados
na perspectiva de uma escrita histórica — numa tendência documental, apela à literatura na
construção de personagens e articula em seu universo de escrita, gênero, etnia e classe social.
Em suas primeiras obras, entre as quais estão TSF e SJI, fica nítida a aproximação com um
centramento marxista-leninista, em virtude do modo predominante em que ocorre a
ficcionalização do oprimido (DUARTE, 2002; 2005) e que, por isto, desloca o discurso das
contradições raciais e de gênero para as questões de classe. Tal panorama começa a se alterar a
partir da escrita de Gabriela, cravo e canela, lançado de 1958.

O comandante desceu da sua torre do comando, vinha com o imediato.


Atravessaram toda a primeira classe, os grupos que dormiam nas
espreguiçadeiras, cobertos com cobertores de lã. Por vezes alguém
murmurava uma palavra no sonho e estava sonhando com as roças de cacau
carregadas de frutos. O comandante e o imediato desceram pela estreita
escada e atravessaram por entre os homens e mulheres que dormiam na
terceira, uns sobre os outros, apertados pelo frio. O comandante ia calado,
o imediato assobiava uma música popular. António Vítor dormia com um
sorriso nos lábios, sonhava talvez com uma fortuna conquistada sem esforço
nas terras de Ilhéus, com sua volta a Estância, em busca de Ivone. Sorria
feliz.
O comandante parou, olhou o mulato que sonhava. Virou-se para o imediato:
- Tá rindo, vê? Vai rir menos quando estiver na mata...
Empurrou com o pé a cabeça de António Vítor, murmurou:
- Me dão pena...
Chegaram junto à amurada, na popa do navio. As ondas subiam revoltas, o
luar era vermelho de sangue. Ficaram calados, o imediato acendendo seu
cachimbo. Por fim o comandante falou:
148

- Por vezes me sinto como o comandante de um daqueles navios negreiros do


tempo da escravidão...
Como o imediato não respondesse, ele explicou:
- Daqueles que em vez de mercadorias traziam negros pra serem escravos...
Apontou os homens dormidos na terceira. António Vítor que ainda sorria:
- Que diferença há? (TSF, p. 40–41).

As narrativas de Amado em TSF e SJI nos trazem as profundas contradições do processo social
que se deflagrou na região, sendo que a esperança metamorfoseada em possibilidade de
mudança de vida projetou trabalhadores rurais de suas terras de origem para aquelas terras do
sem fim, e ali, inauguram uma série de práticas e relações sociais, peculiares. O discurso
assumido por Amado aponta fraturas, margens e dissonâncias. Por isso, acreditar em suas
narrativas com um significado unívoco implica um problema de recepção literária (DUARTE,
2002) e, mesmo, de colonialidade epistêmica.

- Pra que tanta lenha, irmão?


- Tamos fazendo a fogueira pro dia que vier Horácio...
Eram assim as histórias do povoado de Ferradas, feudo de Horácio coito de
bandidos. Dali partiram para as matas os desbravadores de terra. Era um
mundo primitivo e bárbaro cuja única ambição era dinheiro. Cada dia
chegava gente desconhecida em busca de fortuna. De Ferradas, partiam as
novas estradas recém-abertas da terra do cacau. De Ferradas, os homens de
Horácio iam partir para dentro das matas de Sequeiro Grande (...) (TSF, p.
144).

A presença daqueles migrantes foi central para a organização dos processos que se estruturaram
em torno da monocultura do cacau. Esses processos levaram à formação de uma sociedade
regional de mando absoluto do coronelato nos primeiros anos e de relações de submissão e
condições subumanas na divisão do trabalho. Diante do que se propagandeava e imaginava à
distância, uma série de contradições sociais que se inauguraram com a exploração das
atividades cacaueiras eram ignoradas, ou mesmo não reconhecidas (GUERREIRO DE
FREITAS; PARAÍSO, 2001). Como nem tudo que reluz é ouro, ou mesmo compreende o
encantamento vindo dos dourados frutos do cacau, a realidade da maioria estava escondida para
além do que a atrativa cidade tinha a mostrar.
149

4. 3 Organização da vida urbana – Ilhéus, o cacau e o ideário de progresso

A Vila de São Jorge, após trezentos anos de história por entre inúmeras tentativas de
impulsionamento das atividades econômicas por parte da coroa portuguesa e do governo
imperial, permaneceu praticamente como um aldeamento em que colonos se resumiam a plantar
mandioca e vegetais nos seus arredores para seu sustento. A chegada do cacau mudou esse
panorama de modo veloz, e o interesse no domínio de novas áreas de plantio alterou
gradualmente o panorama natural da região sul da Bahia em fins dos anos de 1800. Nesse
período, ainda com raras exceções, a maioria das cidades brasileiras não havia alcançado
autonomia e se mantinham dependentes de financiamento provincial, sobretudo as do interior
(COSTA, 2007).

Nesse sentido, a urbanização de centros mesmo no Século XIX teria sido, como nos diz Costa
(2007), menos em virtude do mercado interno e mais por causa da expansão do mercado
internacional diante de uma economia exportadora de produtos tropicais para Europa e Estados
Unidos. Daí que certas cidades litorâneas tinham assumido um caráter “exótico” — se voltando
mais para a Europa que para o seu próprio interior e que, por isso, teriam sido incapazes de
exercer influências modernizadoras nas suas próprias zonas rurais (COSTA, 2007). Em Ilhéus,
todavia, esse fenômeno ocorreu de modo parcial, pois, contrariamente, a rede urbana tonificada
com a introdução do cacau na economia de exportação desenvolveu ali nova ordem política-
administrativa com mudanças rápidas inclusive com a gestação de cidades da região — Itabuna,
Coaraci, Itajuípe adquiriram autonomia política, desmembrando-se de Ilhéus (GUERREIRO
DE FREITAS; PARAÍSO, 2001; ROCHA, 2003).

Em meio aos "caxixes", às lutas políticas às intrigas e às festas da Igreja ou


da Maçonaria, vivia Tabocas, que antes não tivera nome e agora pensava em
se chamar Itabuna. Muitas vezes o sangue de homens caídos nos barulhos se
misturava á lama das ruas. Os burros revolviam tudo no seu passo lento. Por
vezes, quando o Dr. Jessé chegava com sua mala de ferros, custava encontrar
a ferida, porque a lama cobria o corpo do homem. Mas, ainda assim, a fama
de Tabocas corria mundo, se falava desse povoado até no sertão, e certo
jornal da Bahia já o chamara de “centro de civilização e de progresso” (TSF,
p. 149).
150

(...)
(...) O orador afirmou que isso se dera nos tempos, próximos e já tão
distantes, em que todavia a civilização não alcançara essas terras, quando
Itabuna ainda era Tabocas. "Hoje esses fatos, disse, são apenas recordações
tristes e lamentáveis (TSF, p. 303).

Os modos de vida tidos como civilizados se incorporavam e organizavam naquela Ilhéus de


inícios do Século XX, mirando sempre na cultura europeizada consubstanciada na imagem de
Paris, tida como sinônimo e capital da modernidade, ou mesmo nos modos e formas de vida
forjadas no Rio de Janeiro ou na Bahia de então (HEINE, 2004). Ilhéus perscrutava, para além
de si, a superação daqueles tempos de estagnação e mesmo das disputas com a violência direta
que se fez presente na ocupação das terras devolutas. Apesar da insuficiente oferta de serviços,
o que se percebe é a necessidade de se evidenciar a riqueza de uma minoria (GUERREIRO DE
FREITAS; PARAÍSO, 2001).

- Cristal bacarat... - anunciou Horácio batendo com o dedo na taça.


Sonoridades claras e pequenas se espalharam pela mesa. Horácio
completou:
- Me custou um dinheirão... Foi quando casei. Mandei buscar no Rio...
O Dr. Virgílio tomou da sua taça onde as gotas do vinho português
manchavam de sangue a transparência do cristal. Suspendeu-a à altura dos
olhos:
- É de refinado bom gosto...
(...)
- Deixe de rodeio e toque pro moço ouvir. Eu também quero ouvir... Afinal
meti um dinheirão nesse piano, o maior que havia na Bahia, deu um
trabalhão dos diabos trazer ele para aqui e pra que? Um dinheiro posto
fora... seis contos de réis...
Repetiu, era quase um desabafo:
- Seis contos postos fora...
E olhava Maneca Dantas, este era capaz de compreender o que ele sentia...
Maneca Dantas achou que devia apoiar:
- Seis contos é muito dinheiro... É uma roça...
(TSF, p. 86).
151

(...)
- Pouco, dona Ester... Basta... Muito obrigado... A senhora também não acha
que o progresso mata a beleza?
Ela entregou o açucareiro a Felícia, tardou um minuto a responder. Estava
pensativa e séria.
- Acho que o progresso também tem tanta beleza...
- Mas é que nas grandes cidades, com a iluminação, nem se vêem as estrelas...
E um poeta ama as estrelas, dona Ester... As do céu e as da terra… (TSF, p.
88–89).

Estar ou viver em Ilhéus nas primeiras décadas do Século XX era estar em contato com o que
havia de melhor e mais evoluído na região, sobretudo para aqueles que residiam nos povoados
ou fazendas do entorno da cidade. A vida que se organizara na cidade se alimentava das relações
estruturadas a partir do mundo do cacau. Cada novo palacetexvii, cada vitrine luxuosa e cada
forma arquitetônica que se erguia imponente eram demonstrações da riqueza que transcendia a
partir do cacau (SOUSA, 2001).

O progresso, enquanto um ideal, pairava por todos os cantos daquela cidade ambientada no
possível universo do rururbanoxviii. E para além das mudanças concretas estava o imaginário
quanto à modernidade desejada para as cidades, pois alterações do espaço urbano se vinculam
a uma série de representações e compreensões do imaginário social (PESAVENTO, 1994).

A elite local chamava atenção pelo seu elevado poder de compra e demanda de mercadorias de
variadas procedências, tendo o mercado consumidor de alto valor agregado que se formou na
cidade se equiparado ao da capital do Estado (GUERREIRO DE FREITAS; PARAÍSO, 2001).

xvii Alguns coronéis, “(...) empregando considerável número de trabalhadores – entre 50 e 100, bem como
produziam uma renda suficiente para permitir a construção na sede do município, de palacetes ostentatórios e bem
mobiliados, com o evidente propósito de explicitar status social e demonstrar publicamente o poder do dinheiro
dos seus proprietários. Com essa preocupação, alguns chegavam mesmo ao exagero. O coronel Ramiro Idelfonso
de Araújo Castro, por exemplo, edificou na segunda metade deste século, uma cópia do Palácio do Catete, tendo
o cuidado de reproduzir todos os detalhes do seu modelo” (FALCÓN, 1983, p. 75).
xviii Em Gilberto Freyre, encontramos o esboço de uma nova política social que primava pela conciliação entre
o mundo rural e urbano, o rurbano, portanto, se baseia numa expressão norte-americana e diz respeito ao processo
de desenvolvimento socieconômico que combinaria, numa só vivência, as formas, conteúdos, valores e estilos de
vida rurais e urbanos. Esse modelo de desenvolvimento seria capaz de reunir modernidade e regionalismos. Ver
FREYRE, Gilberto. Rurbanização: que é? Recife: Fundação Joaquim Nabuco/Editora Massangana, 1982.
152

Por tudo que passou a evidenciar e significar, a cidade em si, com seus novos ares de
urbanidade, também já se produzia enquanto sonho de consumo e oportunidades de muitos.

A madrugada é fria, os passageiros se encolhem sob os cobertores. Margot


ouve a conversa que vem de longe:
- Se o cacau der quatorze mil-réis esse ano levo a família ao Rio...
- Tou com vontade de fazer uma casa em Ilhéus... (TSF, p. 40).
(...)
Virgílio chegou a abrir a boca para falar. Mas ficou com o gesto pela metade,
encontrando que não valia a pena. Se fosse um mês antes, ele perderia, sem
dúvida, um tem o enorme em explicar para a amante que ali estava o seu
futuro, que se a oposição vencesse as eleições, como tudo indicava que
venceria, ele seria candidato a deputado por aquela zona que era a mais
próspera do Estado.
Que o caminho do Rio de Janeiro era muito mais fácil através das estradas
do cacau, que através do mar, num transatlântico. Que Tabocas era terra de
dinheiro e que ele, em poucos meses, havia ganho ali o que não ganharia em
anos de advocacia numa capital. Já lhe explicara isso mais de uma vez,
sempre que Margot sentia saudades das festas, dos cabarés, dos teatros da
Bahia (TSF, p. 150).
(...)
Em Ilhéus, havia mulheres que vinham da Bahia e do Recife, havia mesmo
mulheres chegadas do Rio de Janeiro, e com elas era possível conversar
sobre vestidos e penteados. Margot se alvoroçou toda quando Virgílio
anunciou a ida a Ilhéus e a demora na cidade. Correu para ele, o enlaçou
pelo pescoço, beijou-o repetidas vezes na boca:
- Que bom! Que bom!
Mas a alegria não durou porque ele lhe avisou que não podia levá-la (TSF,
p. 153).

Neste período se aceleraram obras que se apresentavam como civilizatórias a exemplo do


alargamento das ruas e avenidas, ampliação da rede de luz elétrica, da disponibilidade de
serviços de comunicação, transportes — inclusive com rotas aéreas regulares —, e a construção
de palacetes e a circulação de automóveis passaram a ser cada vez mais comuns nas ruas
153

centrais (FALCÓN, 2010). A educação e a saúde em Ilhéus e na região também esboçavam


mudanças. Para as fazendas, pleitearam-se técnicas de produção que assegurassem a qualidade
das amêndoas mesmo nas épocas chuvosas. O século inaugurou consigo não somente a
República, mas os sinais de novos tempos em Ilhéus, aquela que, para nosso estudo,
compreende uma comarcaxix no sentido atribuído por Ángel Rama.

A casa nova de Horácio em Ilhéus, "o palacete", como o chamava toda gente,
ficava na cidade nova, construções que nasciam na praia, derrubando os
coqueiros. Todas estas casas davam os fundos para a estrada de ferro. Uma
companhia se organizara, comprara os terrenos plantados de coqueiros e os
vendia em lotes. Aí Horácio, depois de casado, construíra seu sobrado, um
dos melhores de Ilhéus, os tijolos feitos especialmente na olaria da fazenda,
cortinas e moveis mandados vir do Rio de Janeiro (...) (TSF, p. 195).
(...)
Uma ordenança municipal proibia que as tropas de burros que traziam cacau
chegassem até o centro da cidade. As ruas centrais de Ilhéus eram calçadas
todas elas e duas o eram de paralelepípedos, num sinal de progresso que
inchava de vaidade o peito dos moradores. As tropas paravam nas ruas
próximas à estação e o cacau entrava na cidade em carroças puxadas par
cavalos. Era depositado nos grandes armazéns próximos ao porto. Aliás, uma
grande parte do cacau, que chegava a Ilhéus para ser embarcado, não descia
mais no lombo dos burros: vinha pela Estrada de Ferro ou baixava em
canoas desde o Banco-da-Vitória, pelo rio Cachoeira, que desembocava no
porto.
O porto de Ilhéus era a preocupação maior dos moradores. Naquele tempo
existia apenas uma ponte onde atracar os navios. Quando coincidia chegar
mais de um navio na mesma manhã, a mercadoria de um deles era
desembarcada em canoas. Porém já se fundara uma sociedade anônima para
beneficiar e explorar o porto de Ilhéus, falava-se em construir mais pontes
de atracação e grandes docas.

xix Em Rama, Comarca é um segmento do subcontinente onde há homogeneidade de “elementos étnicos, natureza,
formas espontâneas de sociabilidade, tradições da cultura popular, que convergem em formas parecidas de criação
literária” (CANDIDO, 1993, p. 268).
154

Falava-se também, e muito, em melhorar a entrada perigosa da barra, em


fazer vir dragas que a aprofundassem (TSF, p. 199).
(...)
A cidade por aquele tempo começava a se abrir em jardins, o município
contactara um jardineiro famoso na capital. O jornal da oposição atacara
dizendo que "muito mais que de jardins Ilhéus precisava de estradas". Mas,
mesmo os oposicionistas mostravam orgulhosos aos visitantes as flores que
cresciam nas praças antes plantadas de capim (...) (TSF, p. 203).
______
E, de repente, o avião se desviou da rota para o sul, e a cidade apareceu ante
os olhos dos viajantes. Agora não voavam mais sobre o mar verde. Primeiro
foram os coqueiros e logo depois o morro da Conquista. O piloto inclinava o
avião e os passageiros que iam do lado esquerdo podiam ver, como num
postal, a cidade de Ilhéus se movimentando. Descia em ruas pobres e
ziguezagueantes pelo morro proletário, se estendia rica entre o rio e o mar
em avenidas novas, cortadas na praia, continuava na ilha do Pontal, em
casas de jardins alegres, subia mais uma vez proletária pelo morro do
Unhão, casas de zinco e de madeira. Um passageiro contou os oito navios no
porto, fora os grandes veleiros e as inúmeras pequenas embarcações. O porto
parecia maior que a própria cidade (...).
(...) Deixando o morro para trás, o avião desceu suavemente sobre o rio, foi
diminuindo as rotações das hélices, parou junto ao aeroporto da companhia
americana, próximo à estrada de ferro. O aeromoço abriu a portinhola, os
trabalhadores do aeroporto colocaram a estrada. Carlos Zude foi o primeiro
passageiro a saltar. O rapaz, empregado no escritório, que viera recebê-lo,
se precipitou ao seu encontro, um sorriso nos lábios:
- Boa viagem, senhor Carlos?
Apertava a mão do chefe
- Magnífica. – Olhou o relógio de pulso. – Uma hora da Bahia aqui.
Cinquenta e cinco minutos...
- Isso vale a pena... – comentou o rapaz.
Tomou a pasta que Carlos trazia, pesada de papéis. As maletas estavam
sendo transportadas por um negro carregador (SIJ, p. 17–18).
(...)
155

Se o colégio das freiras, reconhecido pela Secretaria de Instrução Pública


do Estado como uma Escola Normal de Professoras, trazia para Ilhéus as
filhas dos proprietários ricos das demais cidades do sul, o Ginásio Municipal
de Ilhéus, audaciosa realização de um prefeito, o melhor do norte do país,
como dizia a imprensa, fazia com que toda uma geração de meninos do sul
da Bahia não fosse mais à capital, viesse fazer seu curso secundário em
Ilhéus. Havia ademais uma academia de comércio e os ilheenses
acalentavam o sonho de possuir uma faculdade de direito. Os padres falavam
também na esperança da fundação de um seminário que possibilitasse a
existência do maior número de vocações sacerdotais nessa zona tão nobre de
sentimentos religiosos. Os colégios particulares de ensino primário eram
vários, além do grupo escolar, mantido pela prefeitura, próximo à praia. Em
Pontal funcionava outro grupo, e uma professora, que se educara na Suíça,
iniciava um Jardim de infância, com relativo êxito (SJI, p. 65).
Há muito que os médicos haviam descoberto que aquela febre que matava
até macacos era o tifo. E, se bem não houvessem extinguido de todo no
interior da zona, na cidade ele havia desaparecido quase completamente.
Além da antiga Santa Casa, existiam agora dois grandes hospitais e um
ambulatório. É verdade (os ilheenses o confessavam na intimidade) que a
casa de saúde de Itabuna era melhor que qualquer dos hospitais de Ilhéus.
Mas era a única da cidade vizinha, enquanto em Ilhéus um doente podia
escolher onde se internar.
Cabeça de um município de uma zona de monocultores, Ilhéus era uma
cidade de vida cara, talvez a cidade de vida mais cara do Brasil. Qualquer
legume custava um dinheirão, a carne andava por um preço absurdo, todos
os produtos, mesmo os mais necessários, vinham de fora, exceto o vinagre,
produzido do visgo do cacau mole, e o chocolate fabricado ali. As casas eram
também de elevados aluguéis: por mais rápido que andasse o crescimento
das ruas da cidade, ainda assim o número de casas era insuficiente para os
moradores. A vida era cara, mas o dinheiro corria fácil (SJI, p. 65–66).

O favorecimento de núcleos urbanos esteve vinculado à geração de valores tidos como


burgueses, associados comumente ao fenômeno urbano europeu e que nas cidades brasileiras
encontraria como empecilho as práticas de uma sociedade com tradição escravagista (COSTA,
156

2007). O que se vê em nossas fontes, entretanto, é que, ao invés de entrave ao favorecimento


da urbanização, tais valores, em Ilhéus, associaram-se a outros comportamentos que Costa
(2007) realça como vinculados mais diretamente a sociedades agrárias aristocráticas, como o
culto ao lazer, ao espírito rotineiro, o baixo apreço ao progresso tecnológico e científico, a rede
de relações de patrimonialistas, a família patriarcal e a tendência à ostentação. E é mesmo nessa
perspectiva que se pode entender o projeto urbano posto em execução em Ilhéus (GUERREIRO
DE FREITAS; PARAÍSO, 2001).

Nesse mesmo sentido, é emblemático o episódio da recepção do primeiro bispo designado à


cidade em 1915. D. Manuel de Paiva fora recebido para um jantar de boas-vindas na residência
do intendente municipal Coronel Misael Tavares, e todo o cardápio estava escrito em francês,
fato noticiado em jornais da capital. O francesismo era uma prática corriqueira no país por parte
da elite na época do Império (COSTA, 2007), e, mesmo na República, naquela região fazia
parte da imagem que se buscava construir quanto aos bons costumes e finos tratos da sociedade
regional.

A cidade de Ilhéus despertou emocionada. As ruas estavam atapetadas de


flores, bandeiras pendiam das janelas dos sobrados, os sinos repicavam
festivos na manhã alegre. A multidão se encaminhava para o cais, enchia a
ponte de desembarque. Vinham os colégios: as moças do Ginásio Nossa
Senhora da Vitória que era o colégio das freiras, recém-terminado e que
dominava a cidade do alto do morro, os meninos e meninas dos colégios
particulares, os mais pobres do Grupo Escolar. Vinham todos nos uniformes
de festa, as moças do colégio das freiras traziam uma fita azul sobre os
vestidos brancos, símbolo de congregações religiosas. A Banda de Música
passou também, no vistoso uniforme vermelho e negro, tocando marchas na
manhã movimentada. Braz comandava os soldados de polícia que levavam
os fuzis ao ombro. Na ponte se apertavam os homens mais importantes da
cidade, envergando os fraques negros das grandes ocasiões. Dr. Jessé, actual
prefeito de Ilhéus, suava sob o colarinho duro, recordando as frases do
discurso que ia pronunciar dentro em pouco e que levara dois dias
decorando. Sinhô Badaró veio também, com a filha e o genro, o coronel
coxeava um pouco da perna direita, a que fora ferida no assalto à casa
grande.
157

No porto, governistas e oposicionistas se confundiam, misturados entre


padres e freiras. Até Frei Bento descera de Ferradas, conversava com as
freiras na sua língua atrapalhada. O comércio fechara nesse dia, a multidão
se espalhava pelo cais (TSF, p. 299–300).
(...)
- Ora um Bispo... E o que é um Bispo para se fazer tanto barulho? Uma vez
eu conheci um Arcebispo no Sul. Sabe o que parece? Parece uma lagosta
cozida...
O de colete azul não discutia. Podia ser verdade, quem sabe? Nesse dia
chegava o primeiro Bispo de Ilhéus. Um recente decreto papal promovera a
paróquia de Ilhéus a diocese. Um cónego da Paraíba fora sagrado Bispo. Os
jornais da Bahia diziam que era um homem de grandes virtudes e grande
saber. Para Ilhéus era o Bispo, era a importância adquirida pela cidade, era
o progresso. Apesar da falta de religiosidade que, segundo o cónego Freitas,
caracterizava essa terra, Ilhéus estava orgulhosa de possuir um Bispo e se
preparava para recebê-lo regiamente.
Gente veio correndo pela praia, já se avistava o navio perto da pedra do
Rapa. Pelas ruas estreitas passavam homens e mulheres apressados, a
caminho do porto. As beatas levavam xales negros na cabeça, não podiam
sequer falar de tão nervosas. As moças e os rapazes aproveitavam para
namorar. Até prostitutas tinham vindo, mas olhavam de longe, só haviam
juntado em um grupo alegre por detrás das barracas de venda de peixe.
Passavam padres, os habitantes da cidade se perguntavam de onde haviam
saído tantos. Chegaram, dos povoados do interior, os vigários de Itapira e
de Barra do Rio de Contas, haviam feito uma viagem difícil para vir
cumprimentar o Bispo (TSF, p. 300).
(...)
Estada de ferro, nasce assassino, caxixe, palacete, cabaré, colégio nasce
teatro nasce até cobra ... Essa terra dá tudo enquanto der cacau... O que não
concordava com o artigo que o Dr. Rui publicara nesse dia em "A Folha de
Ilhéus". Aliás, pela primeira vez, o pensamento de "A Folha de Ilhéus"
coincidia com o de "o Comércio". Exaltavam ambos o progresso do
município e da cidade, ressaltavam a importância da vinda do Bispo faziam
ambos profecias sobre o futuro esplendoroso reservado a Ilhéus. Manuel de
158

Oliveira escrevia: "A elevação a diocese não é senão um ato de


reconhecimento ao progresso vertiginoso de Ilhéus, conquistado pelos
grandes homens que sacrificaram tudo ao bem da pátria”. E Dr. Rui
concordava no outro jornal: "Ilhéus, berço de tantos filhos trabalhadores, de
tantos homens de inteligência e de carácter que abriam clareiras de
civilização na terra negra e bárbara do cacau". Era a primeira vez que os
dois jornais estavam de acordo (TSF, p. 301).

De algum modo, o que se vincula a práticas sociais tradicionais é considerado anacronismo e,


por isso, compreende um ponto de resistência na visão de reformistas. Embora, dependendo das
circunstâncias, no plano político, a modernidade se pronuncie desassociada de oligarquias ou
de classes dominantes tradicionais, delas aproxima-se perfeitamente, e, em determinados
aspectos da realidade então, a ruptura com os anacronismos não vigora para além de um ensaio
ou discurso (SARLO, 1993). E no Brasil de fins do Século XIX refletiam-se mesmo práticas, e
estruturas do século anterior, suas engrenagens jurídico-políticas e sociais, inclusive,
permaneciam pesadas e revelavam relações de Estado e sociedade que guardavam profundos
traços do colonialismo (BOSI, 1992; IANNI, 1994). Tais lógicas e conexões se refletem em
nossas fontes.

Ilhéus nascera sobre ilhas, o corpo maior da cidade numa ponta de terra,
apertado entre dois morros. Ilhéus subira por esses morros - o do Unhão e o
da Conquista - e invadira também as ilhas vizinhas. Numa delas ficava o
arrabalde de Pontal onde a gente rica da cidade tinha suas casas de veraneio.
A população crescia assustadoramente desde que a lavoura do cacau se
estendera. Por Ilhéus saía para a Bahia quase toda a produção do sul do
Estado. Havia apenas um outro porto - Barra do Rio-de-Contas - e esse era
um porto pequeníssimo, onde só os barcos a vela davam calado. Os
moradores de Ilhéus sonhavam em exportar algum dia o cacau directamente,
sem ter que mandá-lo para a Bahia. Era um assunto que estava sempre nos
jornais: o aprofundamento da barra que não dava passagem a navios de
grande calado. O jornal da oposição o aproveitava para atacar o governo, o
jornal governista usava dele também noticiando de quando em vez que o
"muito digno e operoso prefeito municipal estava em negociações com os
governos estadual e federal para conseguir, finalmente, uma solução
159

satisfatória para a questão do porto de Ilhéus". Mas a verdade é que o


assunto nunca ia adiante, o governo estadual punha travas, protegendo a
renda do porto da Bahia. Mas a questão das obras do porto servia para
encher, quase com as mesmas palavras, as plataformas governamentais de
ambos os candidatos à Prefeitura: o governista e o da oposição. Mudavam
somente o estilo: a plataforma do candidato dos Badarós era escrita pelo Dr.
Genaro, a do candidato de Horácio se devia à pena, muito mais brilhante, do
Dr. Rui.
Em Ilhéus podia se medir a fortuna dos coronéis pelas casas que possuíam.
Cada qual levantava uma casa melhor e aos poucos as famílias iam se
acostumando a demorar mais na cidade que nas fazendas. Ainda assim essas
casas passavam fechadas grande parte do ano, habitadas somente por
ocasião das festas da Igreja. Era uma cidade sem diversões, apenas os
homens tinham o cabaré e os botequins onde os ingleses da Estrada de Ferro
matavam a sua melancolia bebendo uísque e jogando dados e onde os
grapiúnas trocavam discussões e tiros. As mulheres restavam como únicas
diversões as visitas de família a família, os comentários sobre a vida alheia,
o entusiasmo posto nas festas da Igreja. Agora, com o início da construção
do colégio das freiras, algumas senhoras se haviam organizado para
conseguir fundos para as obras. E realizavam quermesses e bailes onde
faziam coletas. A Igreja de São Jorge, padroeiro da terra, grande e baixa,
sem beleza arquitectónica, mas rica em ouro no seu interior, dominava uma
praça onde se plantara um jardim (...) (TSF, p. 200–201).

Aqueles sinais da almejada modernidade se configuram como um espaço de alta tensão e de


desordem também presente nas relações daquela Ilhéus, e apresentam duplo comando sobre o
espaço ordenado num plano para cidades — como o comando estético e também ideológico
(SARLO, 1993). Nesse processo, é possível perceber cenários urbanos que denotam a cidade
permeada pela ideia do vazio do campo; a potencialização do desejo do urbano que será, mas
ainda não é; e o cenário da cidade sonhada à sombra de outros exemplos de cidades (SARLO,
1993). Num momento do país em que nos fala Costa (2007), a população da maioria dos núcleos
urbanos do interior vivia isolada, e os fazendeiros de destaque frequentavam centros maiores
para tratar de negócios, buscar distração e receber um “banho de civilização”. Ilhéus, ao
contrário, representava o ponto de interseção que, regionalmente, embora cidade distante da
160

capital do estado, refletia o progresso e a influência da europeização que penetrava mais


profundamente na alta classe (COSTA, 2007).

Até no Rio de Janeiro era comentado o rápido progresso da cidade de Ilhéus.


Os jornais da capital do estado tinham arranjado um outro nome para ela: a
Rainha do Sul. Entre as cidades habitualmente pobres do interior do país,
nos estados onde as capitais eram o único centro importante, Ilhéus se
distinguia como uma cidade progressista e rica. Os cento e cinquenta mil
habitantes do município tinha uma elevada proporção de homens ricos em
relação aos demais municípios do interior. A cidade era bonita, cheia de
jardins abertos em flores, de boas casas onde residiam as famílias dos
coronéis. Toda parte junto ao oceano era residencial, cortada de avenidas
largas, uma das quais acompanhava a curva do mar numa imitação da Praia
de Copacabana, do Rio de Janeiro. Ali se elevavam os palacetes dos coronéis
mais ricos, sobrados faustosos e mobiliados com luxo, geralmente muito
feios, sólidos e pesados, como que representando a solidez das fortunas
desses homens que haviam conquistado a Terra. Desses palacetes saíam os
automóveis caros, quase todos norte-americanos, um outro europeu.
Do lado do rio estava a parte comercial da cidade, que começava a se tornar
imponente, com os prédios altos das casas exportadoras, dos bancos, dos
grandes hotéis, com os armazéns imensos das docas do porto. Agora existiam
quatro pontes, entrando pela baía, e junto a elas descansavam os navios, os
pequenos da Companhia de Navegação Baiana, os maiores do Lloyd
Brasileiro e da Costeira, os enormes cargueiros negros da companhia sueca,
os frágeis iates de Ribeiro & Cia. Era intenso o movimento do porto e
qualquer ilheense repetia com orgulho a verdade proclamada pelos anuários
comerciais: Ilhéus era o quinto porto exportador do país. Para ali vinha,
através das estradas de ferro e de rodagem, todo o cacau colhido no interior
do município e dos municípios limítrofes de Itabuna e Itapira. Pelos navios
da Bahiana chegava ao cacau dos municípios mais ao sul: de Belmonte, de
Canavieiras e do Rio de Contas, do norte também, de Una, de Porto Seguro.
Esse cacau todo se juntava no porto de Ilhéus, nos armazéns das docas, e dali
saía para os Estados Unidos ou para a Europa, nos grandes barcos suecos,
onde loiros marinheiros cantavam melodias estranhas que deixavam
161

doloridos de saudade os corações das mulatas de Ilhéus. Por vezes deixavam


também no pequeno ventre formoso de uma delas um mestiço de escura pele
e loiros cabelos.
Na rabada do progresso de Ilhéus cresceram as cidades de Itabuna e de
Itapira, A primeira se transformando numa importante cidade comercial,
centro de toda uma enorme rede de estradas, coração da zona do cacau;
Itapira era um pouco menor, mas aumentava cada dia. E cresciam não só
essas cidades como os muitos povoados que nasceram no caminho do cacau:
Pirangi e Água Preta, Palestina e Guaraci, Água Branca e Rio do Braço.
Principalmente Pirangi e Água Preta, que eram verdadeiras cidades e que
reclamavam sua independência, bem merecida, já que poucas cidades do
interior do estado possuíam o movimento comercial e o progresso dessas
subprefeituras.
Mas Ilhéus era a cabeça disso tudo, no seu porto desembocavam todas as
riquezas dessa zona, riquezas que eram uma só: o cacau. Cidade rica e
orgulhosa, a Rainha do Sul. Esse orgulho se refletia em cada gesto de cada
habitante. Não se diziam baianos e, sim ilheenses. Falavam que um dia o sul
da Bahia seria um estado e Ilhéus seria a capital. Era comum se ouvir dizer
que a cidade da Bahia não possuía nenhum teatro como o Cine-Teatro Ilhéus,
de construção recente; que os ônibus de Ilhéus eram melhores que os da
capital; que a cidade tinha muito mais vida que a Bahia. Citavam-se cinco
cinemas de Ilhéus, 2 muito bons, o Ilhéus e o São Jorge, os outros 3 menos
importantes, um deles no morro da Vitória, outro em Pontal. Citavam-se
também os cabarés, que então eram três mas logo depois seriam cinco.
Citava-se a Biblioteca da Associação dos Empregados no Comércio dizendo-
se que só Biblioteca Pública da capital era superior. No aceso das discussões
citava-se até o poeta Sérgio Moura: na Bahia não havia poeta melhor!
Já não existiam os dois semanários da oposição e do governo de há trinta
anos atrás. Agora eram dois jornais diários, um, o Jornal da Tarde,
respondendo à política governista, outro, o Diário de Ilhéus, se afirmando
independente, mas respondendo, em verdade, à oposição. Ambos
publicavam, de quando em vez, páginas inteiras de anúncios da Exportadora
e de outras firmas e eram unânimes em noticiar, em primeira página, a data
natalícia de Karbanks e dos grandes fazendeiros e exportadores. Não
162

possuíam tampouco aquela violência de linguagem dos semanários de há


trinta anos. Quando, por acaso, se referiam um ao outro era se tratando de
“estimado confrade”, do “noticioso colega”. Quando havia polêmicas eram
com os jornais de Itabuna, polêmicas nascidas da rivalidade existente entre
as duas cidades. Ainda assim se gastavam poucas palavras fortes (SJI, p. 63–
65).

A ideia do rural não se constitui por meio de uma essência imutável: compreende uma categoria
histórica, e por isto, se transforma (RÉMY, 1993). Ao pesquisador, cabe a percepção das formas
que esta categoria em cada sociedade foi compreendida e apropriada. Daí que semelhanças e
diferenciações sejam identificadas na construção da ideia de uma Ilhéus moderna. Em TSF e
SJI, a dualidade a todo tempo nos é ofertada quanto aquelas novas interligações entre o um rural
rico e atrasado, e o urbano esplendoroso que se busca. Espaços sociais historicamente distintos
foram apropriados e territorializados de modos também distintos na região cacaueira da Bahia:
com uma relação de não simetria entre os dois territórios — simbólica e socialmente, o urbano
se distingue do rural, como espécies de dois universos descontínuos (RÉMY, 1993).

As mediações entre rural e urbano em Ilhéus se multiplicam; do mesmo modo, todavia a


construção de sentidos distintos não recua, ao contrário, e se acentua naquela cidade com suas
muitas reivindicações que primavam por formas, organização, ares e relações ditas modernas,
e, para tanto, diferentes das que existiam no mundo rural regional.

Em contrapartida, a ideia de modernidade se caracteriza pela ausência do fundamento


justamente porque os valores não encontram nas tradições, sua origem e legitimação. Portanto,
a paixão pelo futuro por parte dos reformistas é percebida por muitos como exigente e dura, e
em Ilhéus se espalhou por todos os cantos, marcando de modo definitivo um novo tempo de
sua vida socialmente organizada; exigindo-se viver o que ainda não se é, sem a base daquilo
que já foi (SARLO, 1993). Ser moderno, portanto, em alguma medida, denotava o afastamento
e a superação do vivido, do passado. Exige-se o descolamento dos padrões de relação anteriores
para que se organizem outros modos e formas distintas de viver, o que é apropriado de modo
distinto por cada grupo ou segmento da sociedade grapiúna.

- Também se fala de tudo...


Protestou a professora magra.
163

- Terra atrasada é assim mesmo...


Ela viera da Bahia e não se acostumava com Tabocas.
Outra professora que era grapiúna, se sentiu ofendida:
- Pode ser atrasada para quem quer chamar descaração de progresso. Se é
progresso ficar no portão até dez horas da noite agarrada com rapazes, então
graças a Deus, Tabocas é muito atrasada mesmo (TSF, p. 166–167).
______
(...) O avião voltava a roncar, passageiros haviam embarcado, o aeromoço
fechou a portinhola e o aparelho correu sobre as águas do rio, para logo
tomar altura e desaparecer em direção ao sul, rumo do Rio de Janeiro.
- Nós o esperamos na quinta-feira...
- Não consegui passagem no avião. Vivem cheios, não há lugar que chegue.
Para vir hoje, tive que comprar passagem há três dias.
O seu gesto parecia que ia resolver todo o assunto:
- Mas os americanos vão botar agora um avião exclusivamente para o serviço
entre Ilhéus e a Bahia. Duas viagens diárias...
- Formidável! – exclamou o empregado.
Carlos Zude prosseguiu:
- Falei com o gerente. É um alto negócio para eles... É um americano
inteligente, compreendeu e me garantiu que, com mais um mês, resolveria o
problema. Um avião duas vezes por dia.
Dava detalhes, como se o negócio fosse dele:
- Podem baixar um pouco os preços e se os coronéis perderem o medo de
viajar de avião...
O empregado riu:
- Ora, se perdem... Me lembro do coronel Maneca Dantas... Quando se
iniciou o primeiro serviço aéreo com escala aqui, o dos alemães, o coronel
me disse que só morreria de desastre de avião se algum caísse em cima dele.
Agora, depois que teve de viajar a pulso para ver o filho que estava doente,
o que se formou agora – esclarecia -, não viaja mais de outra coisa...
O empregado nunca tinha falado tanto diante de Carlos Zude e sentiu certo
receio. Mas o patrão sorria aprovativo e comentava:
- São como crianças tímidas... (SIJ, p. 18-19).
(...)
164

No lugar onde fora a pequena igreja de São Sebastião se iniciavam as obras


da nova catedral, feia e majestosa, digna de uma grande capital, apesar de
que a gente de Ilhéus continuava tão irreligiosa quanto antes. Também na
frente do colégio das freiras se elevava uma linda igreja, debruçada sobre a
cidade. Próximo estava o palácio do bispo, mais rico, garantiam os
grapiúnas, que o do arcebispo da Bahia. (…) (SJI, p. 65).
(...)
Há muito que as mortes violentas se tinham tornado raras. Uma que outra
vez se sabia de um homem assassinado. Nos discursos, os intelectuais da
terra se referiam àqueles tempos de mortes e barulhos com uma coisa perdida
no passado, distante um pouco lendária. É verdade que alguns dos coronéis
que haviam tomado parte naquelas lutas ainda andavam pelas ruas de Ilhéus,
relembrando os “bons tempos”. Mas já não se viam os tiroteios no meio da
cidade, já não cresciam cruzes ao lado das estradas, por onde hoje passavam
os rápidos automóveis. Ficara apenas uma tradição de coragem que os
ilheenses cultivavam, sentindo um certo desprezo hereditário por todo o
sujeito covarde.
Os ilheenses acreditavam sinceramente que a época das mortes pela posse
da terra não havia de voltar jamais.
O velho mercado desaparecerá dando lugar a um novo, um prédio moderno
e higiênico, onde a população vinha comprar seus alimentos. Só uma coisa
não mudara nas proximidades do mercado: as barracas que, à chegada dos
navios carregados de emigrantes, se levantavam no porto. Eram as mesmas
barracas miseráveis, era a mesma gente magra e triste que descia das terras
pobres do norte em busca de trabalho nas terras ricas do cacau. Aquela
expressão antiga do recordado dr. Rui (morrera bêbado no meio da rua, num
dia de Carnaval, fazendo um discurso para um grupo de máscaras) ficara
clássica e toda a gente a empregava para designar essa parte do cais onde
os imigrantes armavam suas barracas, à espera de contratos de trabalho: o
“mercado de escravos”. Subiam depois nas segundas classes dos trens para
Itapira, Itabuna, Pirangi e Água preta, no rosto magro e melancólico uma
tênue esperança nessa nova vida. Iam, em geral, pensando em voltar pelo
mesmo caminho um ou dois anos depois, com dinheiro junto, voltar para a
terra que ficara atrás para plantá-la nos tempos melhores de chuva. Nunca
165

mais voltavam, viviam o resto da vida com a foice ao ombro, o facão ao cinto,
derrubando os cocos de cacau, podando as roças, secando os graus nas
barcaças e nas estufas, sem nunca conseguir saldo, devendo sempre ao
armazém da fazenda. De quando em vez um fugia e era preso e entregue às
autoridades em Ilhéus ou em Itabuna. Nunca houve caso de um só ser
absolvido, apesar da agitação que, em torno de alguns casos recentes,
fizeram os comunistas. Eram condenados a dois anos de prisão e depois
voltavam para outra fazenda, abandonada por completo a ideia de fuga,
desmoralizados e já sem esperanças. Houve casos também de trabalhadores
que liquidaram coronéis. Esses foram condenados a trinta anos e cumpriam
a pena na penitenciária da Bahia (SJI, 67–68).
(...)
Além da Associação dos Empregados no Comércio (que dava bailes mensais
de muito sucesso), a Associação Comercial de Ilhéus reunia de quando em
vez a “alta sociedade” nos seus salões. Na Sociedade de Artes e Ofícios os
operários e artesãos discutiam política. Era um prédio perto do morro do
Unhão e durante anos a sociedade fora dominada por elementos anarquistas.
Depois os comunistas e os socialistas disputaram o predomínio político sobre
as Artes e Ofícios, como era conhecida. A Associação dos Empregados no
Comércio, sem ser, como organismo, integralista, fornecera, realmente, uma
grande parte da massa desse partido fascista. Havia festas nessas três
associações, mas os bailes mais chiques eram realizadas no Clube Social de
Ilhéus, clube fechado, onde só podiam entrar os homens ricos da terra. Era
um edifício moderno e lindo, no fim da praia, cercado de coqueiros, com
canchas de tênis, com uma excelente pista de baile. Segundo as más-línguas,
aí os coronéis realizavam bacanais nas noites em que não havia festa.
O comércio era intenso, grandes armazéns, grandes lojas, uma multidão de
caixeiros-viajantes espalhados pelos hotéis caríssimos, vários bancos, o
grande prédio do Banco do Brasil, inúmeros agiotas. A cidade de Ilhéus vivia
uma vida de trabalho, de lutas políticas e de lutas por dinheiro, nas suas ruas
estreitas formigavam a multidão onde se viam diariamente caras novas.
Houve um tempo em que todos se conheciam nessa cidade. Mas esse tempo
vai distante, hoje só as pessoas mais importantes são conhecidas de todos.
Os navios que chegam trazem gente nova, homens e mulheres que vêm em
166

busca do ouro fácil que nasce na árvore do cacau. Porque por todo o Brasil
corre a fama da Rainha do Sul, fama que está mesclada com as antigas
histórias de mortes e tiroteios e com as histórias modernas do cacau sendo a
melhor lavoura do país. No bojo dos navios, nas asas rápidas dos aviões, nos
trens de ferro que se dirigem para o sertão, viaja a fama de Ilhéus, cidade do
dinheiro e dos cabarés, da impávida coragem e dos negócios sujos. Não só
nas grandes capitais, no Rio, em São Paulo, na Bahia, no Recife, em Porto
Alegre, homens de negócios se interessavam e falavam naquela terra do
cacau. Também os cegos violeiros, nas feiras nordestinas, cantavam
grandezas desta cidade que dominava com seu luxo o sul do estado da Bahia:
É a rainha do sul,
Se veste de pedrarias...
Tem automóvel, tem bancos,
Tem cacau e tem dinheiro,
Terra de muita grandeza! (SJI, p. 69–70).

A ideia de modernidade se conforma como algo benéfico e positivo a todos que orbitam naquela
região, rompe com algumas tradições ditas como antiquadas para alguns segmentos sociais,
mas desde que isso não representasse uma ameaça à manutenção do status dos coronéis do
cacau. Em se tratando de uma sociedade esgarçada pela diferenciação social e atravessada por
diversidades regionais, raciais, econômicas, políticas e culturais; facilitava justamente o
tradicional exercício do poder de mando (IANNI, 1994). Nesse sentido, a população rural de
Ilhéus, em sua grande maioria, composta por trabalhadores da lavoura de cacau, aí sim se
assemelhava a outras populações de outras áreas urbanas do interior: “(...) continuavam à
margem da história, desprovida de informações” (COSTA, 2007, p. 245).

(...) Era sempre a mesma vida miserável, que nenhum acontecimento


conseguia mudar, nem o progresso da zona, nem a riqueza crescente dos
coronéis (...) (SJI, p. 54).

Os trabalhadores subalternizados naquela hierarquia social não dialogavam com quaisquer das
mudanças socioculturais possíveis: suas existências marginais permaneciam estáticas, e, para
eles, a modernidade não trazia consigo um projeto sócio-político-econômico substitutivo ou
alternativo. Isso consagrava, em alguma medida, a legitimação do antigo e sempre presente
167

colonialismo, pois o advento da República, mesmo com todo o discurso de progresso que lhe
permeava, não representou significativa alteração na sociedade e nem em suas relações com o
poder estatal. Os diversos setores populares, as reivindicações de trabalhadores da cidade e
campo, bem como as demandas de negros, índios e pobres, permaneceram sem lugar nas esferas
de poder: para as camadas populares nada se transformou substancialmente. A sociedade em
castas que se formou no país ao longo da Colônia e do Império se modificou lentamente e de
modo desigual durante a Primeira República (IANNI, 1990). O esplendor vindo dos negócios
do cacau, com novas sociabilidades para coronéis e exportadores, e que impulsionava a
urbanização da cidade, não beneficiava em nada (SOUSA, 2001) aqueles que formavam a base
daquela estrutura com o fruto do seu trabalho.

4.4 Coronelismo do cacau e suas histórias

O fenômeno coronelista, alvo de uma série de estudos, reuniu diversos pesquisadores em torno
das discussões quanto ao seu modus operandi e diferenças regionais. Trata-se de fenômeno
indispensável na “compreensão das relações políticas e econômicas da Primeira República”
(PINTO, 2017, p. 361), período em que se manifestou com maior intensidade, embora suas
práticas estejam presentes desde a independência e tenha perdurado após o Estado Novo –
centralmente é um fenômeno característico do regime republicano (LEAL, 1997). Em Pang
(1979), encontramos que na Bahia o coronelato exerceu nas regiões do São Francisco, da
Chapada Diamantina e na zona cacaueira enorme poder em seus redutos de influência,
comandando jagunços, poder público e cidades.

Jorge Amado traduz em suas narrativas o coronelismo enquanto um sistema sociopolítico


fundado em relações econômicas aplicado às características que o fenômeno desenvolveu no
sul da Bahia. A escrita de Amado sobre o coronelismo se antecipa inclusive aos seminais
trabalhos Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil, de
Victor Nunes Leal, de 1949, e Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro,
de Raimundo Faoro, de 1958, os quais conceituam e discutem coronelismo anos após a escrita
amadiana. Nesse sentido, Falcón (1983) ressalta exatamente o papel valioso da Literatura, que
em suas narrativas é capaz de dar conta de certos traços da realidade social complexa, antes da
academia e de suas pesquisas de base científica fazê-lo. Nesse momento, recordamos, inclusive,
que, no projeto literário de Jorge Amado, necessariamente, há personagens centrais
168

representativos de grupos sociais e coletividades (GUIMARÃES, 2010), como é o caso dos


coronéis Horácio da Silveira e Sinhô Badaró.

O povoado de Ferradas era feudo de Horácio. Estava encravado entre as


fazendas dele. Durante algum tempo Ferradas marcara os limites da terra
do cacau. Quando os homens iniciaram no Rio-do-Braço a plantação da nova
lavoura, ninguém pensava que ela ia terminar com os engenhos de açúcar,
os alambiques de cachaça e as roças de café que existiam em redor do Rio-
do-Braço, de Banco-da-Vitória, de água-Branca, os três povoados da beira
do rio Cachoeira que ia dar no porto de Ilhéus. Mas o cacau não só liquidou
os alambiques, os pequenos engenhos e as roças de café, como andou mata
adentro.
E no seu caminho nasceram as casas do povoado de Tabocas e mais longe
as casas do povoado de Ferradas, quando os homens de Horácio haviam
conquistado a mata da margem esquerda do rio. Ferradas foi, durante algum
tempo, o povoado mais distante de Ilhéus. Dali partiam os conquistadores de
novas terras. Por vezes, rompendo a mata, chegavam viajantes de Itapira, da
Barra do Rio de Contas, que era o outro lado das terras do cacau. Ferradas
foi um centro de comércio, pequeno e movimentado. Iria parar seu
crescimento com a conquista da mata de Sequeiro Grande, nos limites da
qual nasceria o povoado de Pirangi, uma cidade feita em dois anos. E anos
depois, com o andar rápido da lavoura do cacau, nasceria Baforé, já no
caminho do sertão, que logo trocaria seu nome pelo mais eufônico de
Guaraci. Mas, nos tempos da conquista, Ferradas era importante, talvez
mesmo mais importante que Tabocas. Falava-se que a estrada de ferro
chegaria até lá. Era um projecto muito discutido nas vendas e na farmácia.
Ditavam-se prazos, falava-se no progresso que isso traria a Ferradas (TSF,
p. 138–139).

O coronelismo é considerado “uma espécie de elemento socioeconômico polarizador, que


servia de ponto de referência para se conhecer a distribuição dos indivíduos no espaço social”
(QUEIROZ, 1975, p. 156), pois, em fins do período colonial, a grande maioria da população
era totalmente excluída de direitos civis e políticos (CARVALHO, 2002), o que contribuiu de
forma mais ampla com o clientelismo, mandonismo e as raízes do autoritarismo (FAUSTO,
169

1999) refletidos nas práticas coronelistas. A análise da política das oligarquias, do fenômeno
coronelista e de relações federativas nos mostra e auxilia o entendimento do quanto se manteve,
mesmo com a inauguração do regime republicano, o antigo modo de participação social restrito
(VISCARDI, 2019).

O poder constituído se assentou no remanescente poder privado dos donos de terras, e a função
eleitoral do coronelismo ganha destaque ao direcionar os votos recrutados, os votos de cabresto
(SOUSA, 2001) para candidatos governistas em eleições estaduais e federais. Daí que dirigentes
políticos do interior se tornavam credores de recompensas em seus municípios (LEAL, 1997).
A incorporação de volumoso contingente eleitoral com grande maioria incapacitada de
consciência da sua missão política — justamente quando o eleitorado rural era decisivo (LEAL,
1997) —, vinculou esses líderes locais à condução do rebanho eleitoral (FALCÓN, 2010).
Suspeitas de fraude eleitoral inclusive eram comuns neste contexto, pois “a precariedade das
garantias da magistratura e do Ministério Público (ou sua ausência) e a livre disponibilidade do
aparelho policial sempre desempenharam a esse respeito saliente papel, de manifesta influência
no falseamento do voto” (LEAL, 1997, p. 280). E com o governo de J. J. Seabra, o coronelismo
na Bahia adquiriu fundamental importância para a unidade partidária, para o processo
sucessório e no preenchimento de cargos legislativos (FALCÓN, 2010), como percebemos de
modo acentuado em TSF.

Mas a estrada nunca veio. Acontecia que Ferradas politicamente era de


Horácio. Mandava ele e mais ninguém. E como ele era seabrista, estava na
oposição, o governo nunca aprovara o projecto dos ingleses de criarem um
ramal da estrada até Ferradas. E quando Seabra subiu ao governo e Horácio
esteve de cima já se encontrava muito mais interessado em levar a estrada
até Sequeiro Grande junto ao qual nascia Pirangi. Ferradas foi uma etapa,
naqueles anos fervia de gente, comerciava, era conhecida das grandes casas
exportadoras da Bahia, estava no roteiro de todos os caixeiros-viajantes.
Estes chegavam no lombo dos cavalos, as malas de amostras trazidas por
uma tropa de burros, e durante alguns dias exibiam suas roupas de linho
branco entre a roupa caquis dos grapiúnas. Os caixeiros-viajantes
namoravam as moças solteiras do povoado, bailavam quando havia bailes,
bebiam cerveja quente reclamando contra a falta de gelo, faziam grandes
negócios. E na cidade da Bahia, na volta das viagens, contavam nos cabarés
170

as histórias bravias daquele povoado de aventureiros e jagunços, onde havia


apenas uma pensão, onde a lama era o calçamento da rua, mas onde
qualquer homem de pé descalço levava um maço de dinheiro no bolso.
Comentavam:
- Nunca vi tanta nota de quinhentas mil-réis como em Ferradas...
Era a nota mais alta que havia naquele tempo. Em Ferradas ninguém tinha
troco, níqueis quase não existiam (...). Ferradas nascera em torno do
armazém de cacau que Horácio fizera construir ali.
Ele precisava de um depósito onde juntar o cacau já seco das suas diversas
fazendas. Ao lado do armazém foram surgindo casas, em pouco tempo se
abriu uma rua na lama, dois ou três becos a cortaram, chegaram as primeiras
prostitutas e os primeiros comerciantes. Um sírio abriu uma venda, dois
barbeiros se estabeleceram vindos de Tabocas, passou a haver feira aos
sábados, Horácio mandava abater dois bois para vender a carne. Tropeiros,
que vinham conduzindo tropa de cacau seco das fazendas mais distantes,
pernoitavam em Ferradas, os burros vigiados por causa dos ladrões de cacau
(TSF, p. 138–140).

A exemplo do titulado coronel Horácio da Silveira de TSF e SJI, ex-tropeiro que se estabeleceu
entre os maiores proprietários de terra e líderes políticos da região, o emblemático para a região
foi Manoel Misael da Silva Tavares, um modesto requerente de terras públicas em fins do
Século XIX, que ascendeu meteoricamente e tornou-se um dos cacauicultores de maior
expressão no país (FALCÓN, 1983). A ascensão econômica e o prestígio social local se
somaram neste caso, pois Misael fora nomeado tenente-coronel da Guarda Nacional na comarca
e meses após promovido ao posto de coronel. Sua vida pública reuniu uma série de postos e
cargos públicos, inclusive a intendência municipal. Sua fortuna em 1930 sinalizava a
propriedade de um banco, ações diversas, imóveis urbanos e setenta e sete fazendas; que juntas
reuniam um milhão e trezentos mil pés de cacau.

A política continuava a ser a sua grande paixão. Conservava a chefia de um


dos partidos tradicionais da zona, agora novamente no governo. E metido na
casa-grande da sua imensa fazenda, meio paralítico de reumatismo, quase
cego, era o dono da terra do cacau, fazendo e desfazendo autoridades, senhor
de milhares de votos, rico de incalculável riqueza, rico de fazer medo, como
171

diziam em toda a extensão daqueles municípios. Quase ninguém o via


ultimamente, e, nas ruas de Ilhéus, para os forasteiros, o coronel Horácio
era uma figura quase lendária, ao mesmo tempo próxima e distante, cantada
nos abcs das feiras, como pessoa do passado, presente, no entanto, em todas
as decisões importantes (SJI, p. 84).

O Coronel Misael Tavares atuou intensamente na política local e estadual, sobretudo quando
dos seabristas na situação (FALCÓN, 2010), pois a ausência de autonomia legal dos municípios
era compensada pela extensa autonomia extralegal (CARONE, 1971) que o governo do Estado
concedia ao grupo ou partido local preferido (LEAL, 1997). Em Ilhéus inclusive, há relatos de
que houve cunhagem de moeda por parte dos coronéis da situação (HEINE, 2004). Em cada
período, portanto, estar vinculado aos partidos da situação no sul da Bahia representava acesso
a diversos benefícios e coberturas extralegais (HEINE, 2004).

(...) Era pequeno o número de padres da cidade e do município, em relação


ao número de advogados e médicos. E vários desses padres se convertiam,
com o correr do tempo, em fazendeiros de cacau, pouco se preocupando com
a salvação das almas. Citava se o caso do Padre Paiva, que levava sob a
batina um revólver e não se perturbava se acontecia um barulho perto dele.
O Padre Paiva era caudilho político dos Badarós em Mutuns, nas eleições
trazia levas de eleitores, diziam que ele prometia verdadeiros pedaços do
paraíso e muitos anos de vida celestial aos que quisessem votar com ele. Era
vereador em Ilhéus e não se interessava o mínimo pela vida religiosa da
cidade (...) (TSF, p. 201).

Em Falcón (1983), encontramos que, naquele momento, a política estadual da Bahia possuía
partidos efêmeros, eleitoreiros e personalistas; que buscavam assegurar o acesso das oligarquias
locais ao poder, e no plano federal, oferecer representatividade à República (FALCÓN, 2010).
Os diversos partidos políticos passaram a se vincular, assim, ao mandonismo dos coronéis
municipais e às oligarquias estaduais, com a organização de listas de candidaturas, fiscalização
das eleições e empossando os eleitos; para tanto, uma rede de correligionários se organizava
em torno de cada grupo. Em TSF, os Badarós e Horácio atuavam cada um com seu próprio
canal de imprensa, seus advogados, médicos e demais indicados para cargos públicos.
172

Em Tabocas quem era amigo e eleitor de Horácio mantinha sempre uma


atitude de hostilidade em relação aos amigos e eleitores dos Badarós. Nas
eleições havia barulhos, tiros e mortes. Horácio ganhava sempre e sempre
perdia porque as urnas eram fraudadas em Ilhéus. Votavam vivos e mortos,
muitos votavam sob a ameaça dos cabras. Nesses dias Tabocas se enchia de
jagunços que guardavam as casas dos chefes políticos locais; a do Dr. Jessé,
que era eternamente o candidato de Horácio, a de Leopoldo Azevedo, chefe
dos governistas, a do Dr. Pedro Mata, agora também a do Dr. Virgílio, o
novo advogado.
Havia uma farmácia para cada partido e nenhum doente que votasse nos
Badarós se tratava com o Dr. Jessé. Era com o Dr. Pedro. Os dois médicos
mantinham relações pessoais, mas diziam horrores um do outro. Dr. Pedro
dizia que o Dr. Jessé não ligava para os enfermos, muito mais preocupado
com a política e com a sua roça de cacau. Dr. Jessé afirmava e a população
fazia coro, que o Dr. Pedro não respeitava as enfermas, que um homem
casado ou pai de família não lhe podia entregar sua mulher ou sua filha para
um exame geral.
Havia também um dentista para cada um dos partidos. Todo o povoado
estava dividido nos dois partidos políticos e trocava desaforos pesados nos
jornais de Ilhéus. Horácio já encomendara as máquinas para fundar em
Tabocas um semanário que Dr. Virgílio dirigiria Rui (TSF, p. 147–148).
(...)
O que os Badarós desejavam era se apossar da mata para eles só,
prejudicando assim não só os legítimos proprietários como também o
progresso da zona, a subdivisão da propriedade que "era uma tendência do
século, como se podia comprovar com o exemplo da França". Afirmava que
o coronel Horácio, progressista e adiantado, ao resolver derrubar e plantar
de cacau a mata de Sequeiro Grande, pensara não somente nos seus
interesses particulares. Pensara também no progresso do município e
associara à sua empresa civilizadora todos os pequenos lavradores que
limitavam com a mata. Isso se chamava ser um cidadão útil e bom. Como
pensar em compará-lo com os Badarós, "ambiciosos sem escrúpulos", que
olhavam apenas os seus interesses pessoais? "A Folha de Ilhéus" terminava
seu artigo anunciando que Horácio e os demais legítimos proprietários de
173

Sequeiro Grande iriam recorrer aos tribunais e que, quanto ao que sucedesse
se os Badarós tentassem impedir a derruba e o plantio da mata, eles, os
Badarós eram os responsáveis. Eles haviam iniciado o uso da violência. A
culpa era deles pelo que viesse depois. O artigo terminava com uma citação
em latim: "alea jacta est" (TSF, p. 205).
(...)
O artigo se devia ao incêndio do cartório de Venâncio em Tabocas. "A Folha
de Ilhéus" condenava de uma maneira violenta aquele "ato de barbarismo
que depunha contra os foros de terra civilizada de que gozava o município
de Ilhéus no conceito do país". O coronel Teodoro reunia em torno a seu
nome, nas colunas do semanário, uma magnífica colecção de substantivos e
adjectivos insultantes: "bandido", "ébrio habitual", "jogador de profissão e
tendências", "alma sádica", "indigno de habitar uma terra culta", "sedento
de sangue". Ainda assim restava para os Badarós. Juca aparecia como
"conquistador barato de mulheres fáceis", como "despudorado protetor de
rameiras e bandidos" e a Sinhô o jornal fazia as acusações de sempre:
"caxixeiro", "chefe de jagunços", "dono de fortuna mal adquirida",
"responsável pela morte de dezenas de homens", "chefe político sem
escrúpulos".
O artigo reclamava justiça. Dizia que legalmente não havia como discutir a
propriedade da mata de Sequeiro Grande. Que a mata fora medida e o seu
título de propriedade registrado no cartório. E que não era propriedade de
um só e, sim, de diversos lavradores. Havia entre eles dois, fazendeiros fortes,
é verdade. Mas a maioria – continuava o jornal - eram pequenos lavradores
(TSF, p. 205–206).

Temidos e respeitados, coronéis e suas redes, a exemplo dos Badarós em TSF, ofereciam
proteção aos agregados, dispensavam favores, ordenavam e relaxavam prisões, doavam terras,
ofertavam serviços médicos. Aos amigos e familiares reservavam cargos públicos, empréstimos
financeiros, ajudas de custo. Em contrapartida, exigiam fidelidade e favores diversos (HEINE,
2004), numa chamada troca de proveitos (FAORO, 2000b). A presença do subordinado
estruturou o sistema coronelista, pois não haveria coronelismo sem jagunços, agregados,
trabalhadores, advogados, servidores públicos sob suas ordens (PINTO, 2017).
174

Aos coronéis oposicionistas tudo se nega, e sobre suas cabeças o poder público e as leis,
manejados pelos adversários, se fazem imperar: assim acontecia a truculência da fração local
da situação com seu favoritismo e proteção contra aqueles que temporariamente se vinculavam
à oposição ao governo estadual. Grande era o favoritismo dos amigos do governo dentro da
administração municipal (LEAL, 1997).

Mas Ferradas começou a ser mesmo muito falada quando da nomeação dos
subdelegados. O prefeito de Ilhéus, a instâncias de Juca Badaró, nomeara
um subdelegado de polícia para Ferradas. Era uma maneira de ferir
Horácio, de se meter nas terras dele. Disseram que aquilo já era um povoado
e não importava que estivesse em terras de Horácio. Era necessário que a
justiça se implantasse ali e se pusesse cobro aos assassinatos e roubos que
se sucediam. O delegado chegou por uma tarde. Vinha com três soldados de
polícia, anémicos e tristes.
Chegaram montados e pela noite voltaram a pé e nus, após terem tomado
uma surra tremenda. O jornal governista de Ilhéus falou no assunto atacando
Horácio, o jornal da oposição perguntou por que nomeavam um subdelegado
e, no entanto, não calçavam nem uma rua, não punham nem um candeeiro de
iluminação nas esquinas? As benfeitorias que Ferradas possuía eram feitas
pelo coronel Horácio da Silveira. Se, o município queria intervir na vida da
localidade que então contribuísse também com algum progresso para ela.
Ferradas vivia em paz, não precisava de polícia, precisava era de
calçamento, de luz e de água encanada.
Mas não adiantaram os argumentos do jornal da oposição que respondia aos
interesses de Horácio. O prefeito, sempre atiçado por Juca, nomeou outro
delegado. Este era conhecido como valente, era Vicente Garangau, que fora
muito tempo jagunço dos Badarós. Chegou com dez soldados, conversando
muito, que ia fazer e acontecer. Logo no dia seguinte prendeu um trabalhador
de Horácio que armara uma baderna numa casa de raparigas. Horácio
mandou um recado pra ele soltar o homem. Ele mandou dizer que Horácio
viesse soltar.
Horácio veio mesmo, soltou o homem, Vicente Garangau foi morto no
caminho dos Macacos quando procurava se esconder na fazenda de Maneca
Dantas. Arrancaram-lhe a pele do peito, as orelhas e os ovos e mandaram
175

tudo de presente ao prefeito de Ilhéus. Desde esse tempo não havia


subdelegado em Ferradas por mais que Juca Badaró procurasse um homem
que quisesse o cargo (TSF, p. 138–141).

O cacau alimentava a manutenção daquela estrutura tradicional. Mas, enquanto prática, se


ligava a um sistema de dominação gestado nos tempos coloniais, refletindo traços da antiga
sociedade agrária patriarcal e escravagista, desaguando em representações sociais e
sociabilidades lastreadas numa dominação tradicional, e na representação censitária do Império
(SCHWARCZ; STARLING, 2018) que se expandiu ainda fortemente durante toda a República
Velha com as oligarquias estaduais. Igualmente, em Ilhéus, passou a se desagregar lentamente
de seus traços originais quando da maior dinamização econômica e dos processos de
urbanização, após o Estado Novo.

O coronel é homem rico dessa zona. Não é pessoa para se comparar com
João Magalhães ou Antônio Vítor. Sua fortuna é das maiores de Ilhéus, roças
e roças, fazendas que foram se ligando umas às outras, terra que o coronel
conquistou, derrubou e plantou, roças compradas depois, tomadas a
pequenos lavradores também, em caixas benfeitos. Mesmo nos anos ruins, o
coronel colhia suas quinze mil arrobas. Era da gente “nobre” da terra,
aquela espécie de casta que frequentava o Clube Social, que gastava no
cabaré, que jogava pôquer na casa de Pepe Espínola, que construía palacetes
em Ilhéus. A “nobreza”, como ironicamente chamava Sérgio Moura, que
gostava de titular os coronéis: o duque Horácio, o barão Maneca Dantas. A
esse grupo, dos maiores fazendeiros, é que pertencia o coronel Frederico
Pinto (SJI, p. 153).

Coronéis como Frederico Pinto de SJI, grande proprietário que ali se estabeleceu, figuram como
indutores da dinâmica histórica, da territorialização nas terras do cacau e centrais às relações
sociais da região. A apropriação do espaço “conquistado” como sendo o seu “espaço” fez
extravasar a ideia de mando naqueles coronéis do cacau nas terras grapiúnas (SOUSA, 2001).
A monocultura do cacau se consolidou, e a concentração da posse da terra aumentava
significativamente para um pequeno grupo (GUERREIRO DE FREITAS, 1979), que se seguiu
se consolidando enquanto classe inclusive, pela expropriação do pequeno produtor e do
trabalhador da lavoura (trabalhadores alugados). Essas relações socioeconômicas assimétricas
176

constituem os traços mais marcantes do estágio da cacauicultura pós-implantação da lavoura.


Em Ilhéus, então, já se encontravam grandes proprietários que somavam dez ou mais fazendas,
produziam mais de cinquenta mil arrobas de cacau ao ano e reuniam em torno de trezentos
trabalhadores em suas propriedades (FALCÓN, 2010), embora os grandes proprietários
tivessem atuação marcante na cena política local, os coronéis de maior expressão política para
além da zona do cacau foram os médios proprietários (HEINE, 2014). E por isso, em Ilhéus, a
relação campo e cidade esteve vinculada, por décadas, ao movimento e interesses do coronelato
— lembremos que havia aqueles de grandes fortunas e havia também outros coronéis, apenas
remediados (FAORO, 2000b). Ressalta-se que a maioria dos coronéis desta fase não eram
aqueles titulados pela guarda nacional (CARONE, 1971). Desse modo, Ilhéus reuniu o número
mais elevado de coronéis do país (HEINE, 2004).

Faoro (2000b) realça que o fenômeno coronelista não é novo. Nova, porém, foi a sua coloração
estadualista e a emancipação em tempos republicanos das dependências do patrimonialismo
imperial, que de início, vinculou a distinta titulação de coronel aos seus nomeados da Guarda
Nacional; esses coronéis se tornavam chefes do regimento municipal e a investidura nesse posto
recaia somente sobre pessoas socialmente qualificadas, leia-se, detentoras de riqueza. Ao passo
que o teor classista se amplia na sociedade em tempos de república, o coronel outrora titulado
da Guarda nacional passou a dividir o vocativo e a função sociopolítica com demais homens
ricos, e o conceito de coronelismo enquanto um sistema político-social do país vinculou-se
particularmente à atividade partidária dos municípios. Em Ilhéus, “exceção dos grandes
comerciantes que implantaram filiais de suas empresas no município, a maioria dos que para lá
se dirigiam construíram seus patrimônios graças a extraordinário esforço, combinando
duplamente a submissão da natureza à organização do processo produtivo. Sob esse ponto de
vista, a maioria dos coronéis adveio ou de levas de nordestinos pobres, de filhos da terra de
origem humilde ou de remanescentes de estrangeiros de núcleos coloniais anteriores a
cacauicultura. Nivelados na sua condição de lavradores pioneiros, esses fazendeiros
prosperaram e formaram o núcleo fundamental da futura burguesia regional, engrossado por
outros segmentos. A maioria deles não possuía qualquer formação educacional. Muitos eram,
na realidade, semianalfabetos, alguns autodidatas desempenhando funções auxiliares a
ocupação principal, como farmacêuticos práticos, rábulas etc.” (FALCÓN, 1983, p. 81).

O poder econômico, portanto, vinculou-se também à autoridade política e se traduziu numa


hegemonia social com lógicas de exploração que ali pareciam fazer parte do curso natural da
177

sociedade grapiúna (SOUSA, 2001). A figura do coronel é um elemento central desse sistema,
em torno dele se configura toda uma gama de naturalizadas relações de poder e mando (PINTO,
2017); assentado no personalismo e no patrimonialismo.

- Juca Badaró te segurou indagora... Toma cuidado...


- Quem é ele?
- E um dos homens ricos da terra... E valente também... Falam por lá que os
trabalhadores dele tem pintado o diabo. Invadem terra dos outros, matam,
fazem e acontecem. É o dono do Sequeiro Grande (TSF, p. 34).
(...)
- É o maior "caxixe" que já vi falar... Doutor Virgílio molhou as mãos de
Venâncio e registrou no cartório dele um título de propriedade das matas de
Sequeiro Grande em nome do coronel Horácio e mais cinco ou seis: Braz,
Dr. Jessé, coronel Maneca, não sei mais quem. Seu Azevedo se levantou na
cadeira:
- E a medição? Quem fez? Não vale esse registro...
- Tá tudo legal, seu Azevedo. Tudo legalzinho, sem faltar uma vírgula. O
moço é um advogado bamba. Arranjou tudo direitinho. A medição já havia,
uma velha que tinha sido mandada tirar faz muito tempo pelo finado
Mundinho de Almeida quando andou abrindo roça pra aqueles lados. Nunca
chegou a se registrar porque o coronel Mundinho esticou as canelas. Mas
Venâncio tinha o documento da medição...
- Não sabia disso...
- Não se alembra que o coronel Mundinho até mandou buscar um agrónomo
na Bahia pra fazer a medição e veio um barbudo, cachaceiro como ele só?
- Agora sim, me lembro.
- Pois doutor Virgílio desencavou a medição, o resto foi fácil, foi só fazer
uma rasura nos nomes e registrar tudo no cartório. Diz que por aí que
Venâncio recebeu dez contos pelo trabalho (TSF, p. 172).

No bojo do coronelismo estava a estrutura patriarcal e o sistema de clientela (FAUSTO, 1999),


vinculando os proprietários de terras ao poder político, e assim seguiam controlando a
administração e a vida pública (COSTA, 2007). Esse controle ou influência se estendia à
instância jurídica, ampliando a impunidade e a condução viciada de investigações e processos
178

judiciais sobre caxixes, incêndios, assassinatos, como percebemos nas ações do coronel
Horácio, Dr. Virgílio, Venâncio e outros personagens de TFI.

Em Ilhéus, cargos de promotoria, de juiz, de delegado, por exemplo, sofriam o direcionamento


das elites locais (SOUSA, 2001). Comum nos relatos na zona cacaueira era a presença e a
intervenção de coronéis nas delegacias de polícia, em cartórios e em audiências, promovendo
interferências nas decisões de júris (HEINE, 2004).

Outras histórias se contavam e essas estavam mais próximas da realidade. O


Dr. Rui, quando bebia demasiado, gostava de lembrar a defesa que certa vez
fizera do coronel num processo de há muitos anos passados. Acusavam
Horácio de três martes e de três mortes bárbaras. Dizia o processo que não
contente de ter matado um dos homens, cortara-lhe as orelhas, a língua, o
nariz, e os ovos. O promotor estava comprado, estava ali para impronunciar
o coronel. Ainda assim o Dr. Rui pudera brilhar, escrevera uma defesa linda,
onde falara em "clamorosa injustiça", em "calúnias forjadas por inimigos
anónimos sem honra e sem dignidade". Um triunfo, uma daquelas defesas
que o consagraram como um grande advogado. Fizera o elogio do coronel,
um dos fazendeiros mais prósperos da zona, homem que fizera levantar não
só a capela de Ferradas, como ainda agora começava a levantar a igreja de
Tabocas, respeitador das leis, por duas vezes já vereador em Ilhéus, grão-
mestre de maçonaria. Um homem destes poderia por acaso praticar tão
hediondo crime?
Todos sabiam que ele o havia praticado. Fora uma questão de contrato de
cacau (...) (TSF, p. 51).
(...)
(...) E atribuía o incêndio do cartório ao próprio Venâncio, "falso servidor
da justiça que, ao lhe pedir o coronel Teodoro para ver a medição, preferiu
incendiar seu cartório destruindo assim as provas da sua vileza".
Apresentava os Badarós como uns santos, incapazes de fazer mal a uma
mosca. Avisava que os "insultos miseráveis" do "pasquim oposicionista"
estavam longe de atingir o bom nome de pessoas tão conceituadas como os
Badarós, o coronel Teodoro e "esse ilustre luminar da ciência do direito, que
é o Dr. Genaro Torres, orgulho da cultura grapiúna". Por último se referia
179

às "ameaças de Horácio e seus cães de fila". O público julgaria, no futuro,


de quem partiram primeiro aquelas ameaças de fazer correr sangue e pesaria
as responsabilidades "na balança da justiça popular" (...) (TSF, p. 208).
(...)
O processo que Horácio fazia correr no foro de Ilhéus continuava sem
solução. "Correr no foro" era a mais inadequada das expressões jurídicas
quando se tratava de um processo de gente da oposição contra gente do
governo, como era o caso actual. O juiz estava ali para defender os interesses
dos Badarós. E, se não o fizesse bem, o menos que podia lhe acontecer era o
governador do Estado transferi-lo para uma cidadezinha qualquer do sertão,
falta de todo conforto, perdida e esquecida de todos onde ele vegetaria anos
e anos. Já o juizado de Ilhéus, ao contrário, era caminho para a Suprema
Corte do Estado, para trocar o título de juiz pelo de desembargador, título
muito mais sonoro e muito melhor pago. Não adiantava a força que o Dr.
Virgílio e Dr. Rui faziam, bombardeando o juiz com petições, requerimentos
pedidos de vistoria. O processo marchava, segundo Horácio, "a passos de
cágado", e ele confiava muito mais em tomar as terras à força que pela lei.
E fazia com que – ao contrário do processo – os acontecimentos andassem
depressa. Também aos Badarós interessava que marchassem o mais rápido
possível. As eleições se aproximavam, seria no ano seguinte, e muita gente
dizia que era quase certo o rompimento entre o governo do Estado e o
governo Federal devido à questão da sucessão presidencial. E se o governo
do Estado caísse, os Badarós passariam a ser oposição, já não haviam de
contar com o juiz, então o processo de Horácio "correria" realmente.
Tudo isso se comentava pelos botequins, pelas esquinas, nas casas de Ilhéus,
e até nos navios que paravam no porto, entre os estivadores que os
carregavam e os marinheiros que iam seguir viagem. Nas cidades distantes,
em Aracaju e em Vitória, em Maceió e no Recife, se falava nessas lutas de
Ilhéus como se falava nas lutas do Padre Cícero, em Juazeiro do Ceará (TSF,
p. 236–237).

Inclusive a ausência na região cacaueira de instituições representativas do governo estadual, a


exemplo de uma força policial, potencializava a existência da força de segurança particular
180

vinculada, de modo central, à figura dos jagunços (HEINE, 2004). Naquela Ilhéus, os poderes
econômico, poder político e poder militar se fundiam nos coronéis (FALCÓN, 1983).

O primeiro tiro foi logo acompanhado de muitos outros, Sinhô Badaró só teve
tempo de levantar o cavalo que recebeu a descarga no peito e caiu de lado.
Os seus jagunços desmontavam, se atrincheiravam por detrás dos burros
deitados. Sinhô Badaró procurava livrar a perna que estava presa por baixo
do cavalo agonizante. Seus olhos pesquisavam a escuridão e foi ele quem,
ainda deitado, localizou os jagunços de Horácio na tocaia, atrás de uma
jaqueira perto do atalho.
- Tão detrás da jaqueira... – disse (TSF, p. 230).
(...)
No cais de Ilhéus os amigos de Horácio apertavam a sua mão, lamentavam
as barbaridades dos Badarós. Horácio não dizia nada. Procurava Braz entre
os presentes, foi com ele que conversou longamente na sala da delegacia.
Prometera ao interventor que tudo seria feito legalmente. Daí os jagunços
que assaltaram a fazenda dos Badarós, e cercaram a casa-grande,
aparecerem nos jornais que noticiaram o fato transformados em "soldados
da polícia que procuravam capturar o incendiário Teodoro das Baraúnas,
que segundo constava, estava acoitado na fazenda Sant'Ana".
O cerco da casa-grande dos Badarós foi o fim da luta pela posse das terras
de Sequeiro Grande (TSF, p. 280).

A barganha e a parentela local, bem como a disputa entre grupos polarizados que refletiam o
desenho da política estadual na região, estavam fortemente presentes (GARCEZ, 1977),
todavia, o poderio político da elite cacaueira para além da região nunca foi proporcional à sua
influência local e ao potencial econômico, o que se acentuou ainda mais após 1930 com a
segunda geração de cacauicultores se afastando das fazendas, vivendo de renda e mudando o
domicilio para Salvador ou Rio de Janeiro (HEINE, 2004).

A burguesia do cacau não angariou suficiente representatividade política no cenário estadual e


federal, o que dificultou o atendimento de suas pautas e inserção das prioridades da região nas
políticas de governo. Consequência disto, podemos citar a ausência da política de crédito
regular para pequenos e médios produtores (GUERREIRO DE FREITAS; PARAÍSO, 2001).
181

Aqueles desbravadores dos primeiros tempos vivenciaram a precariedade da vida numa recém-
conquistada floresta tropical com rudimentares técnicas de produção e exploração, e ausência
de mínima infraestrutura ligada ao escoamento da produção e estruturação da vida na região.
Ilhéus, assim, compreendeu por muito tempo a única janela existente para fora da área rural,
para a comercialização do cacau e para o mundo (FALCÓN, 2010). Muitos daqueles
fazendeiros, inclusive, forjando a superação da vida rude e sem acesso à educação formal,
afirmavam concretizar sua realização ao conseguir formar um filho doutor — médico,
advogado, engenheiro (SOUSA, 2001). Isso geraria maior reconhecimento social, ampliação
do status familiar por meio do distinto requinte do acesso ao ensino superior e novas
oportunidades sociopolíticas que se somariam ao poder econômico daquelas famílias. Formar
filhos homens “doutores” representava para aqueles coronéis o elo legítimo para a
modernização da região, sem, contudo, deixar de lado o tradicionalismo patriarcal das relações.

Horácio ficou pensando, logo falou, os olhos estirados para o lado das roças,
o pequeno coco de cacau na mão calosa:
- Quando o menino crescer - sempre chamava o filho de "menino" - ele há de
encontrar tudo isso aqui cheio de roça. Tudo cultivado... Ficou mais tempo
calado, por fim concluiu:
- Meu filho não vai precisar viver socado nas brenhas como a gente. Vou
meter ele na política, vai ser deputado e governador. Pra isso é que faço
dinheiro (...) (TSF, p. 65).
(...)
(...) Metia-lhe medo a indiferença dos coronéis pela educação das filhas.
Pensavam muito nos filhos, em fazer deles médicos, advogados ou
engenheiros, as três profissões que haviam substituído a nobreza, mas nas
filhas não pensavam, bastava que aprendessem a ler e a cozinhar (...) (TSF,
p. 142).

Nos centros mais importantes do litoral, as oligarquias locais passaram se defrontar com outros
grupos urbanos, como exportadores e representantes das profissões liberais (COSTA, 2007),
enquanto Queiroz (1975) reforça que a urbanização foi um dos fatores que contribuíram para o
enfraquecimento gradativo do coronelismo a partir da década de 1940, o que coincide nas
182

narrativas de Jorge Amado com a interferência direta dos exportadores nos negócios do cacau,
e os sinais de um novo imperialismo se esboçava na região.

Gostava de Sérgio de há muito tempo. Ficaram os dois conversando,


sentados no passeio do cemitério. Falaram da vida, da baixa, da tomada das
terras pelos exportadores. Maneca Dantas andava desanimado. Disse:
- A gente passou a vida toda na roça, derrubou mata, brigou, matou gente,
derramou sangue de cristão...
Sérgio ouvia interessado. Maneca Dantas fitava as luzes de Ilhéus:
- Plantamos cacau, fizemos roça, a gente nunca se divertiu, a gente fazia tudo
era mesmo pros filhos. E veja o senhor, seu Sérgio, os filhos da gente não
deram pra nada, a não ser para beber cachaça e andar com rapariga... -
Lembrava-se de Rui. Ou pra coisas piores... Pra isso não valia a pena a gente
ter trabalhado tanto...
Calou, o poeta não disse nada. Maneca Dantas voltou a falar:
- E agora ainda tomam as terras da gente, deixam a gente na pobreza... Tou
velho, seu Sérgio, de que valeu trabalhar tanto, matar gente, passar
cinquenta anos enterrado na mata? Pra ganhar o quê? Pra terminar pobre...
Então o poeta apontou as luzes da cidade lá embaixo:
- Pra fazer isso, coronel! Valeu a pena. Os senhores fizeram tudo que está
aí... Pensa que é pouco?
Maneca Dantas concordava, sem entusiasmo nem alegria:
- Só que não é mais da gente...
Quando, na outra noite, Sérgio voltou a visitar Joaquim, contou ao militante
a conversa que tivera com Maneca Dantas. Joaquim se levantou da cadeira
e disse:
- Companheiro Sérgio, o tempo deles passou... Agora começou o tempo dos
exportadores, que é o tempo do imperialismo. Mas também esse tempo vai
passar. Primeiro, eles vão brigar entre eles mesmos (SJI, p. 320).

Intelectuais também são homens de seu tempo e, por isso, evidenciam preocupações de
vanguarda, temores, simplificações políticas e outros traços que emergem em sua escrita. Com
Jorge Amado não foi diferente. Nisso reside a importância de uma leitura contextual, pois o
contexto possui o papel de agente indutor, transformador nos militantes da cultura, da ciência,
183

das artes. Rama, assim como Amado, numa primeira fase de seu discurso, evidencia um tom
mais passional e menos recatado quanto às críticas diante do que vinha dos países do Norte
(Pizarro, 1993). Em um momento posterior, ambos assumem tons mais fluidos, porém não
menos críticos e não menos rigorosos nas análises quanto às considerações da nossa situação
de enunciação periférica.

O coronelismo é mesmo um fenômeno inseparável da sociedade agrária e intermediou os


processos políticos nos anos da Primeira República (FAORO, 2000b). Portanto, esteve
assentado sobre a posse da terra e se via refletido nas relações do incipiente universo urbano
com renda extremamente concentrada (FALCÓN, 2010).

De algum modo, aqueles destemidos coronéis, mesmo com toda a perspicácia política e poder
de mando que envolvia sua imagem, para os exportadores ou mesmo diante deles se tornariam,
apenas, “crianças tímidas”, assim definidos pela ingenuidade quanto à amplitude das
engrenagens capitalistas que se materializava na região como prática e discurso da modernidade
— como saída para aquela imaturidade regional e provinciana (DUSSEL, 2005). No sul da
Bahia de TSF e SJI, o ponto alto da colonialidade do poder (QUIJANO, 2002) se desvela com
o bojo das ações de exportadores na vida cotidiana de Ilhéus e da alta do cacau forjada em nome
do grande endividamento dos produtores que aconteceria na sequência das altas. O coronelismo,
em alguma proporção, tornou-se incompatível com as novas forças urbanas na região do cacau,
como veremos mais de perto na próxima categoria de análise.

4.5 Caminhos pro mundo e as relações de poder: por entre coronéis, exportadores,
tradicionalismo, modernidade

A Ilhéus de início do Século XX experimentava a vertigem e o encantamento de ser uma


potência econômica de projeção internacional. Em um cenário de euforia pela novidade,
valorizou tudo que a afastasse da ideia do predomínio da violência pela conquista de terras dos
primeiros tempos e denotasse que ali florescia uma civilização, a do cacau. Ilhéus foi a primeira
cidade do interior da Bahia que podia ser comparada ou mesmo considerada superior a algumas
capitais, passando a dispor de iluminação elétrica, serviço telefônico e esgotamento sanitário,
passeio público, arquitetura moderna, sede de um bispado e também de um vice-consulado.
Despontou, assim, na vanguarda entre as municipalidades baianas. “A Princesa do Sul estava
184

em contato com o mundo inteiro e sua praça comercial se abastecia diretamente no Rio de
Janeiro e em São Paulo” (GUERREIRO DE FREITAS; PARAÍSO, 2001, p. 140).

Presentes na região desde os primeiros anos, as casas exportadoras acompanharam e auxiliaram


ativamente a organização dos negócios do cacau, atuando no financiamento ao crédito antes da
existência da primeira agência bancária da região (GUERREIRO DE FREITAS, 1979). Junto
com a produção, essas casas comerciais se expandiram (FALCÓN, 2010).

Primeiro não teve nome, quatro ou cinco casas apenas à margem do rio.
Depois foi o povoado de Tabocas, as casas se construindo umas atrás das
outras, as ruas se abrindo sem simetria ao passo das tropas de burros que
traziam cacau seco. A estrada de ferro avançou de Ilhéus até ali e, em torno
dela, nasceram novas casas. E eis que não eram só casas de barro batido,
sem pintura, de janelas de tábuas, casas levantadas às pressas, casas mais
para pouso que mesmo para moradia como as de Ferradas, Palestina e
Mutuns. Em Tabocas se levantaram casas de tijolos e também casas de pedra
e cal, com telhados, vermelhos, com janelas de vidro, uma parte da rua
central tinha sido calçada de pedras. É verdade que as outras ruas eram um
puro lamaçal, revolvido diariamente pelas patas dos burros que chegavam
de toda a zona do cacau, carregados com sacos de quatro arrobas. As ruas
se abriam em armazéns e armazéns onde o cacau era depositado. Algumas
casas exportadoras já tinham filial em Tabocas e ali compravam o cacau aos
fazendeiros. E se bem não tivesse sido ainda instalada uma filial do Banco
do Brasil, havia um representante bancário que evitava a muitos coronéis
fazerem a viagem de trem a Ilhéus para depositar e retirar dinheiro (TSF, p.
146).
(...)
Perto do porto, num sobrado, estava a casa exportadora “Zude, Irmão e
Cia”: Embaixo era depósito de cacau, no andar superior ficavam os
escritórios. Uma das três ou quatro firmas que começavam a se dedicar à
exportação de cacau, que se iniciara fazia poucos anos. Antes a produção,
ainda pequena, era toda consumida no país. Mas com o crescimento da
lavoura, alguns comerciantes da Bahia e alguns estrangeiros, suíços e
alemães, fundaram firmas para a exportação de cacau. Entre elas estava a
185

dos irmãos Zude, dois exportadores de fumo e de algodão. Criaram uma


secção para o cacau. Abriram a filial em Ilhéus e mandaram para ela
Maximiliano Campos, um velho empregado, já de cabelos brancos, com
muita experiência. Nesse tempo eram as casas exportadoras que se curvavam
ante as coronéis, os empregados e gerentes se dobrando em mesuras e
cortesias, os proprietários oferecendo almoços aos fazendeiros quando estes
viajavam à capital, levando-os aos cabarés e ás casas de mulheres. Ainda
eram pequenas as casas exportadoras de cacau, em geral eram apenas
secções de grandes casas exportadoras de tabaco, café, algodão e coco.
Por isso quando Sinhô Badaró terminou de subir as escadas de “Zude, Irmão
e Cia”: e abriu a porta do escritório do gerente, Maximiliano Campos se
levantou apressadamente, veio lhe apertar a mão:
- Que boa surpresa, coronel.
Oferecia-lhe a melhor cadeira, a sua, e sentava-se modestamente numa das
cadeiras de palhinha:
- Há quanto tempo não aparecia. Eu o fazia na propriedade, tratando da
safra...
- Estava por lá... Trabalhando.
- E, como vão as coisas, coronel? Que me diz da safra desse ano? Parece que
deixa a do ano passado longe, hein? Nós, aqui, já compramos até este mês
mais cacau que durante todo o ano passado junto. E isso que alguns
fazendeiros fortes, como o senhor, ainda não venderam suas safras...
- Por isso vim... - disse Sinhô.
Maximiliano Campos se tornou ainda mais cortês:
- Resolveu não esperar preços mais altos? Acho que o senhor faz bem... Não
acredito que o cacau de mais de catorze mil-réis a arroba esse ano. . . E olhe
que, por catorze mil-réis, é melhor plantar cacau que dizer missa cantada...
- riu com a comparação.
- Pois eu acho que dá mais, seu Maximiliano. Acho que vai dar quinze mil-
réis pelo menos, no fim da safra. Quem puder guardar seu cacau, vai ganhar
dinheiro muito... A produção não chega pra quem quer. Diz que só nos
Estados Unidos...
Maximiliano Campos balançou a cabeça:
186

- E verdade que se coloca quanto cacau haja... Mas isso de impor preços,
coronel, ainda são os gringos que, impõem. O nosso cacau ainda não é nada
em vista do cacau da Costa d'Ouro. É a Inglaterra quem faz o preço. Quando
os senhores tiverem plantado essa terra toda, tiverem derrubado toda essa
mataria que ainda há, pode ser que então a gente possa impor os nossos
preços nos Estados Unidos...
Sinhô Badaró se levantou. A barba cobria-lhe a gravata e o peito da camisa:
- Pois isso é que vou fazer, seu Maximiliano. Vou derrubar a mata de
Sequeiro Grande e plantar ela de cacau. Daqui a cinco anos tou lhe vendendo
cacau dessas terras.... E aí a gente pode impor os preços...
(...)
- Quero vender minha safra. Desde agora vendo doze mil arrobas... Hoje está
marcando catorze mil e duzentos réis por arroba... São cento e setenta contos
de réis. Tá de acordo?
Maximiliano fazia contas. Suspendeu a cabeça, tirou os óculos:
- E o pagamento?
- Não quero dinheiro agora. Quero e que o senhor abra o crédito desse
dinheiro para mim. Vou precisar para em pregar na derruba da mata e no
plantio das roças... Vou retirando toda semana...
- Cento e setenta contos e quatrocentos mil-réis... anunciou Maximiliano
terminando as contas.
Conversaram os detalhes dó negócio. Os Badarós vendiam, seu cacau a
“Zude, Irmão e Cia” há vários anos. E para nenhum dos seus clientes do sul
da Bahia a casa exportadora tinha tantas atenções como para os Irmãos
Badarós.
Sinhô se despedia. Voltaria no dia seguinte para assinar o contrato de venda:
Ainda no escritório, disse:
- Dinheiro pra derrubar a mata e plantar cacau! E também para lutar, se for
preciso, seu Maximiliano!? – estava sério, alisando a barba com a mão, olhar
duro (TSF, p. 216–219).

O enorme crescimento da produção evidenciou uma agricultura decididamente capitalista,


diferenciando a Ilhéus do cacau de todas as suas fases socioeconômicas anteriores. Tal período
favoreceu o aparecimento de superproprietários a exemplo de Sinhô Badaró de TSF, com a
187

crescente ampliação de sua influência e hegemonia econômica e social. Esses grandes


fazendeiros puderam assegurar a sua participação no controle da maior parte da produção,
revertendo o perfil do momento inicial da lavoura na região, quando a produção se encontrava
distribuída de modo desconcentrado num enorme universo de pequenos produtores (FALCÓN,
2010), como nos mostraram as disputas pelas terras do Sequeiro Grande em TSF nos itens 4.1
e 4.2.

(...) Essa não era uma terra para bailes e pastores azuis, de boinas
encarnadas. Era uma terra negra, boa para o cacau, a melhor do mundo.
(...) os cacaueiros nasciam e frutificavam, seu Maximiliano dissera que, no
dia em que todas as matas estivessem plantadas, eles imporiam seus preços
nos mercados norte-americanos. Teriam mais cacau que os ingleses, em
Nova Yorque se saberia do nome de Sinhô Badaró, dono das fazendas de
cacau de São Jorge dos Ilhéus. Mais rico que Misael... (TSF, p. 227).

Essa classe social economicamente dominante, todavia, permaneceu por muitos anos com
pequena representatividade e baixo reconhecimento nos centros de decisões estaduais e
nacionais, embora, pela primeira vez na história econômica da Bahia, de modo duradouro, o
eixo da produção e do comércio situou-se fora da capital e do Recôncavo (FALCÓN, 1983). O
sul-baiano rico, próspero e cheio de oportunidades despontava no cenário econômico e político,
de modo singular. Pang (1979) nos conta que, na Bahia, com a reorganização do poder após o
fim do Império, foi a decadente aristocracia açucareira do Recôncavo que assume a estrutura
estadual de governo. Esse panorama se altera a partir de 1920 quando coronéis do sul e do sertão
do estado começam a se dirigir diretamente ao Presidente da República, sem passar pelo
governo estadual (PANG, 1979).

Mas ainda assim, a cacauicultura não conseguia se autofinanciar com recursos próprios, e era
indispensável o estabelecimento de políticas amplas que protegessem e dinamizassem a
produção: “defendiam a criação da Bolsa de Mercadorias e a modernização dos serviços de
estatística, além de cogitarem, pela primeira vez, a fundação de um Instituto do Cacau”
(GUERREIRO DE FREITAS; PARAÍSO, 2001, p. 111). Essas medidas dependiam das
articulações políticas locais com as instâncias estaduais e federal, e, no geral, a região não
possuía uma representatividade política proporcional às divisas que gerava (GUERREIRO DE
FREITAS; PARAÍSO, 2001; HEINE, 2004). Localmente a ativa participação do capital
188

internacional materializada pelas casas exportadoras atuou nas lacunas deixadas pela ausência
de obras públicas infraestruturais e de crédito agrícola.

(...) Com a volta de Karbanks voltou à prosperidade aos negócios da


Exportadora. Veio o assunto das docas (algumas pessoas diziam que era uma
negociata terrível, na qual estavam envolvidos políticos da capital), a
fundação do banco, o contrato dos navios suecos, a exportação direta desde
o Porto de Ilhéus. Hoje a companhia exportadora de Cacau de Ilhéus
ocupava quase uma quadra na mais importante rua comercial da cidade,
representava uma série de companhias, estava interessada numa infinidade
de negócios. Nas estradas de rodagem que estavam fazendo uma tremenda
concorrência à estrada de ferro, por exemplo, as ações da Exportadora eram
maioria absoluta. E ela tinha preferência nos caminhões para conduzir o
cacau das cidades e povoados ligados a Ilhéus pela estrada de rodagem:
Itabuna, Ferradas, Pirangi, Palestina, banco da Vitória e Guaraci (SJI, p.
48–49).

As taxas cambiais e oscilações no mercado internacional se somavam à baixa representatividade


política local no âmbito estadual e federal, e limitavam a capacidade de atuação e articulação
de toda uma leva de produtores, que “independentemente de seus privilégios sociais, se
submetia a um tipo de dominação ou de expropriação controlada pelo mercado internacional,
comprador do cacau” (SOUSA, 2001, p. 41).

O chofer fez que sim com a cabeça, fechou a portinhola e transpôs também
ele a larga porta central da casa exportadora Zude, Irmão & Cia., mas não
se dirigiu ao elevador como Carlos e o empregado. Entrou por uma das
enormes salas do andar térreo. A casa agora era um prédio de quatro
andares, no mesmo local do sobradinho antigo, próximo ao porto. O andar
térreo era depósito e ensacamento de cacau, dois salões imensos, cheios até
o teto de caroços negros que emanavam um cheiro a chocolate. Subindo pela
montanha de cacau, homens nus da cintura para cima ensacavam os caroços.
Outros peavam os sacos, ajustando-os ao peso de sessenta quilos exatos e,
depois, as mulheres cosiam, numa rapidez surpreendente, as bocas dos sacos
189

já pesados. Um meninote de uns doze anos imprimia sobre cada um deles um


carimbo em tinta vermelha:
ZUDE, IRMÃO & CIA.
Exportadores (SIJ, p. 19).
(...)
- Espantoso! Espantoso!
Mas o negócio da barra era uma realidade. Os entendidos diziam que a
Exportadora tinha a maior parte das ações das Docas do Porto, compradas
aos herdeiros do coronel Misael. E a renda do porto era enorme... Diziam
também que por detrás da direção do Banco de Auxílio à Lavoura se
encontrava a Exportadora, ou seja Karbanks. Ele e Carlos Zude estavam em
toda parte, só não se haviam metido ainda nas fazendas. Ninguém ainda se
dava perfeita conta de que a luta entre os coronéis, conquistadores e
plantadores da terra, e os exportadores se aproximava. Por ora se davam
conta apenas da aproximação da alta do cacau, uma alta como nunca se
havia visto antes... Mas já se falava muito em Karbanks, em Zude, em Ribeiro
& Cia., nos Rauschning , os alemães de outra casa exportadora, em Reicher,
um judeu seguro, no nazista Schwartz. Falava-se também de Correia, que
fundara uma pequena fábrica de chocolate e pagava artigos dos jornais para
provar que estava fazendo uma obra patriótica produzindo o chocolate no
próprio Brasil (SJI, p. 47–48).

E Ilhéus, diante da natureza de sua atividade econômica inclusive, com a direta interligação ao
capital internacional e todos os detalhes e reveses da geopolítica mundial, vivenciou de perto
as mudanças que o capitalismo sofreu durante a primeira metade do Século XX com a nova
repartição imperialista do mundo, que resultou, entre outras coisas, no espraiamento da
influência de interesses ingleses, franceses, alemães, holandeses, belgas, russos, japoneses e
norte-americanos por todos os cantos (IANNI, 1994). O crescimento de Ilhéus esteve
intimamente dependente da atuação dos exportadores e da demanda interna crescente do
mercado americano (GUERREIRO DE FREITAS, 1979).

(...) Quando Maximiliano morreu, Carlos tomou a si a filial de Ilhéus,


passava longos meses no sul do estado, comprando cacau, aumentando a
firma, transformando-a numa das maiores exportadoras do produto. E
190

passou a ser um grande admirador dessa zona, os amigos já o tratavam de


"grapiúna" (…) (SJI, p. 24).
(...) Era por Julieta, a quem as frequentes viagens à Bahia, as duas idas ao
Rio - uma de avião, na inauguração da linha aérea dos americanos - não
contentavam. Vivia de olhos puxados para as cidades grandes, Rio e São
Paulo, os cassinos, as praias, os teatros e cinemas. Carlos a compreendia:
Ilhéus era uma cidade comercial, falta de diversões, trancada nos negócios
de cacau, não era a moradia ideal para uma mulher criada na alta sociedade,
acostumada com as capitais. Em compensação, que força comercial!
Chamavam-na “Rainha do Sul”, em honra à sua riqueza. Era o quinto porto
exportador do país, por ele saía todo o cacau da Bahia, noventa e oito por
cento de todo o cacau do Brasil, uma grande parcela do total de cacau
produzido no mundo. E raras cidades no Brasil tinham um crescimento tão
rápido, ruas e ruas novas que eram abertas, uma febre de construções, uma
das cidades mais ricas também, dinheiro correndo no comércio tão próspero.
Demais, era uma cidade bonita, cortada de praças e jardins, bem calçada,
bem iluminada, bem servida de água e esgoto. Ainda assim, porém, Carlos o
reconhecia, estava longe das grandes capitais, com os seus divertimentos,
sua vida alegre e agradável. Ilhéus era uma cidade de negócios, de
fazendeiros rudes, restavam-lhe muitos hábitos patriarcais, a vida das
senhoras casadas se processando no interior das casas, no cuidado da
cozinha e dos filhos. Esposas de coronéis, mulheres sem cultura e sem
requintes, Julieta tinha razão em se sentir deslocada. Se não fossem os
ingleses e os suecos dos consulados, da estrada de ferro e da companhia de
navegação, ela não teria quem lhe fizesse companhia num coquetel quando
Carlos viajava à Bahia, nas suas sucessivas viagens de negócios Julieta
pouco se relacionara com as senhoras da sociedade local Suas maneiras as
escandalizavam, os hábitos esportivos de Julieta apareciam diante das
senhoras dos coronéis como hábitos suspeitos e pouco sérios. Carlos Zude
ri, pensado na cara de dona Auricídia, a esposa do coronel Maneca Dantas,
quando, no jantar que lhes oferecera, vira Julieta fumar… (SJI, p. 27).

O processo de urbanização de Ilhéus nesse sentido, de modo não autônomo, com suas mudanças
e o ritmo dessas mudanças, se vinculava a relações de dependência daquela região
191

agroextrativista com o resto do mundo capitalista (QUIJANO, 2014). Na América Latina, do


ponto de vista nacional e regional, descontando o ritmo e as peculiaridades, via de regra, a
urbanização resultou em alterações econômicas urbano-rurais com a integração de suas formas
tradicionais (QUIJANO, 2014). A vida urbana moderna em Ilhéus, portanto, esteve
definitivamente relacionada ao modelo dominante das sociedades urbanas de áreas
metropolitanas (QUIJANO, 2014).

Vale lembrar que a burguesia cacaueira se formou a partir principalmente desses dois grupos
aparentemente antagônicos — dos proprietários de terras e produtores de cacau, e dos
comerciantes de exportação (GUERREIRO DE FREITAS, 1979). Muitos dos sócio-
proprietários dessas casas exportadoras não eram brasileiros ou mesmo residiam em Ilhéus.
Essa realidade diferenciava a compreensão de mundo e valores dos dois grupos centrais da
burguesia do cacau, distintos nas trajetórias e práticas, porém, coesos política e ideologicamente
diante dos demais grupos sociais da região (GUERREIRO DE FREITAS, 1979).

(...) Os ingleses que faziam uma vida à parte, cerrados num círculo, os
alemães que tratavam os nacionais desde o alto, com certo desprezo certo
receio, não eram bem vistos. Viviam como que à margem da cidade, sem ter
com ela um contato real. Karbanks residia em Ilhéus há muitos anos. Viera
quando o cacau começar a ser uma força econômica e fundara a casa
exportadora. Primeiro era uma coisa pequenina: a menor talvez das firmas
exportadoras. Mas, no fim da safra, Karbanks foi aos Estados Unidos e,
quando voltou, a razão social da firma, que era Frank Karbanks, Exportador,
se transformou em Companhia Exportadora de Cacau de Ilhéus. E com a
mudança da razão social o capital aumentou de maneira incrível. Já nesse
ano, Karbanks comprou mais cacau que qualquer outro exportador. No ano
seguinte continuou a ampliar os negócios e, hoje, apenas Zude, Irmão & Cia.
E Schwartz podem se lhe aproximar em volume de negócios. Os Rauschning
só exportavam para a Europa, e Reicher e Ribeiro, que exportavam para os
Estados Unidos e Argentina, eram compradores muito menores. Karbanks
comprava quase trinta por cento de todo o cacau do sul do estado da Bahia
(SJI, p. 48).
192

O padrão histórico de poder expressado no discurso amadiano em TSF e SJI faz emergir
daquelas narrativas sul-baianas um fenômeno de poder caracterizado por relações sociais
constituídas a partir da copresença permanente da dominação, da exploração e do conflito
(QUIJANO, 2002), não somente nas ações e estratégias do capital internacional na região, mas
também no comportamento dos cacauicultores em suas assimétricas relações de poder. Até aí
nenhuma grande novidade, mas, neste caso, a colonialidade do poder se expressou dentro da
mesma classe hegemônica, pois os comerciantes exportadores estabeleceram com os médios
proprietários desde sempre (GUERREIRO DE FREITAS, 1979), e com os maiores
proprietários num segundo momento, relações comerciais acentuadamente desiguais e que
avançaram sobre a estrutura tradicional de produção e organização da vida na região. Por isso,
o processo de urbanização na América Latina deve ser estudado levando em conta o processo
conjunto de cada país e as dimensões específicas de suas inclinações e características próprias
(QUIJANO, 2014). Isto é, o todo não pode ser compreendido desvinculado do quadro histórico
mais amplo, e a racionalidade de tais processos de mudança na América Latina se vincula ao
sistema de relações de dependência, como podemos perceber no plano empreendido por
Karbanks e Carlos Zude em SJI.

- Eu e Karbanks chegamos à conclusão que devemos levantar os preços do


cacau.
Parou, esperando a reação que as suas palavras deviam produzir. Mas todos
ficaram em silêncio, só que um dos Rauschning bateu com o cotovelo na
barriga do outro. Por fim Antônio Ribeiro pediu em nome de todos, maiores
explicações. Ele, francamente, não compreendia bem o porquê dessa alta de
preços.
- Os senhores sabem que a safra da República do Equador foi destruída pela
praga... E sabem, com certeza, que depois da Costa do Ouro e do Brasil...
- É o Equador quem mais exporta cacau... - interrompeu Reicher.
Carlos desviou os olhos de Sérgio, fitou com certa reprovação a Reicher:
- Não é só isso... Nessa safra perdida no Equador há um fato mais importante
a notar...
- Qual é? - perguntou Antônio Ribeiro.
(...) Carlos Zude recusou o charuto de São Félix que um dos Rauschning
ofereceu, não fumava. Pigarreou, começou a falar:
193

- Nós todos estamos enterrados no cacau até a cabeça. Esse é nosso negócio,
sobre ele assentam os nossos interesses. Não é assim?
Os Rauschning apoiaram com a cabeça. Schwartz não fez gesto nenhum,
estava intrigado e em guarda, Reicher apoiou com um “hum”, só Antônio
Ribeiro disse:
-Tá aí uma verdade (SJI, p. 125).
(...)
O poeta cheirou o botão de rosa. Também ele estava intrigado e recordava
nesse momento o gesto dramático de Joaquim e nos seus ouvidos ressoava,
como um verso trágico, aquela palavra solta na sala pelo chofer:
- Imperialismo!
- Que segurança temos nós?
- Mas, segurança como? - quis saber Reicher.
Schwartz fechou os olhos, também ele começava a compreender que eu
estava mais descansado. Ele também vinha pensando essas coisas mas ainda
não tivera coragem de realizá-las.
- Sim - disse Carlos. - Que espécie de segurança? Nós compramos o cacau e
o vendemos no estrangeiro. Algumas das nossas firmas são mesmo
estrangeiras, os capitais estão lá. E sobre o que repousam esses capitais?
Onde está a nossa segurança? (...)
- Acontece, senhores, que nossa segurança, nossos capitais, nosso dinheiro -
repetia -, nosso dinheiro, dependem exclusivamente de uns quantos coronéis
e de uns quantos tabaréus, que têm umas roças... De que eles cuidem dessas
roças e dessas fazendas como devem cuidar. Se os senhores não sabem, eu
lhes informo...
Retirou de entre os papéis uns recortes de jornais:
- São jornais de Buenos Aires. Um pouco atrasados, mas não importa. O que
vale é a informação... (...) dá conta da falência do maior exportador do
Equador. - Soltou o papel na mesa, fitou os presentes. - A perda da safra, a
falta de negócios, ter que aguentar as perdas dos fazendeiros, falências…
(SJI, p. 126-127).
(...)
Sustentou o outro recorte na mão, procurava ler um nome:
194

- Senhor Júlio Remigez... Outro exportador, se suicidou. No princípio da


safra havia comprado muito cacau a entregar, milhares de arrobas. Não
recebeu o cacau. Deu um tiro na cabeça...
(...) Agora os homens em torno à mesa começavam a ser um único corpo,
corpo monstruoso de animal fantástico.
- Meus senhores, eu penso, e Karbanks pensa comigo, que devemos aumentar
os preços... Pelo que eu sei a safra da Costa do Ouro tampouco será grande
este ano. A seca fez mal aos cacaueiros de lá, vai haver falta de cacau. É um
ótimo ano para se começar a subir os preços...
- Mas... - disse Antônio Ribeiro que não compreendia.
- Fale - a voz de Carlos o Zude ordenava.
- Mas... a alta de pouco nos serve. A proporção guardada entre os preços a
pagar aos fazendeiros e os que nos são pagos em Nova Iorque ou em Berlim
é quase a mesma, a diferença de lucro é pequena... Em compensação vamos
entregar muito mais capital... Não vejo a vantagem, nem vejo o que tem que
ver com a questão de segurança...
Carlos o de olhou o exportador com olhar de piedade. Depois olhou Schwartz
e os Rauschning, aqueles estrangeiros certamente compreendiam, não eram
tão burros quanto Antônio Ribeiro. Notou que os alemães compreendiam e
aprovavam, sorriu satisfeito. O poeta viu o dragão sorrindo, um sorriso
mortal. Carlos falou com a voz muito calma:
- No entanto é evidente... A alta trará sem dúvida grandes empregos de
capital...
- Os fazendeiros vão enriquecer, ficar ainda mais fortes...
- É verdade. As fazendas vão se valorizar e muito. E isso é que devemos
desejar. Porque depois...
Fez um silêncio para pronunciar as palavras:
- Virá a baixa...
Sou mais velho Rauschning não resistiu, bateu as mãos uma na outra.
Antônio Ribeiro ainda não compreendia direito. Era um homem que tivera
sorte nos negócios e montara uma casa exportadora, apenas começava a vida
comercial:
- Não entendo direito...
195

Então o mais velho dos Rauschning, de cabelos brancos e suaves olhos azuis,
tomou a palavra e começou a explicar devagarinho, mansamente,
exemplificando: uma fazenda de mil arrobas valeu hoje tantos contos, com a
alta valerá quatro vezes mais, com a baixa depois valerá oito vezes menos.
Dava números, tão claro que entrava pelos olhos. Antônio Ribeiro senti uma
alegria descomunal:
- Subiremos até quanto?
- Até quanto for necessário - disse Carlos. - E abaixaremos também o quanto
for necessário...
Perguntou depois:
- Todos de acordo?
Todos estavam de acordo e o cumprimentavam com entusiasmo. (...)
(...) Carlos aceitou o uísque que Schwartz punha no seu copo:
- E quando os exportadores forem fazendeiros também, não dependeremos
de que os coronéis se resolvam ou não a podar as suas roças e de que os
pequenos lavradores tenham ou não dinheiro para o fazer… (SJI, p. 127–
128).

O capital comercial se entronizou na região pela posição financista assumida pelos


intermediadores do cacau, e esse espaço existiu diante do débil sistema bancário formal na
Bahia no início do Século XX (FALCÓN, 2010). E fora duplamente compensatório o papel
assumido pelos exportadores, pois, de um lado, viabilizaram acúmulos de capital extraprodução
por meio da cobrança de juros e execuções de dívidas. Por outro, pela submissão financeira dos
produtores, exploravam a diferença entre o preço de compra e venda do produto em si. Esse
jogo empreendido pela burguesia comercial em Ilhéus é um dos traços marcantes das relações
sociais daquele período (FALCÓN, 2010).

As casas comerciais atuavam na região como correspondente bancário, junto às companhias de


transportes locais e seguradoras estrangeiras — intermediavam operações financeiras
informalmente, porém com lucros não menos secundários, diante das altas taxas de juros e
prazos diminutos (FALCÓN, 2010). O crédito agrícola, baseado na carteira de crédito tomando
o cacau por garantia, tornou-se corriqueiro. A safra servia como caução de empréstimos e
financiamentos, bem como a hipoteca das terras com a frequente ausência de formalidades na
transação, inclusive com juros e multas exorbitantes, o que potencializou que fazendas inteiras
196

pudessem mudar de mãos (FALCÓN, 2010; SOUSA, 2001), enquanto um número alto de
hipotecas pela iniciativa privada poderia ser evitado de algum modo com a existência de um
sistema regular e efetivo de crédito e obras públicas para a região (GUERREIRO DE FREITAS,
1979).

(...) Olhavam o movimento do Café Ponto Chic que regurgitava de gente. Era
a hora do aperitivo que precedia o almoço, hábito que desde há muitos anos,
quando haviam chegado para iniciar a construção da estrada de ferro, os
ingleses haviam ensinado aos grapiúnas. Também os outros ingleses, que
vieram com o correr dos tempos, conservavam esse hábito. Lá estavam eles,
engenheiros da estrada e funcionários do consulado, numa mesa de canto,
bebendo seu coquetel e jogando o pôquer de dados. Comerciantes e coronéis
ocupavam as demais mesas. Do outro lado da rua, chegava o barulho que
faziam, no Café Ilhéus, os empregados no comércio. Estes não frequentavam
o Ponto Chic, o mais importante dos cafés da zona comercial, local de
reunião dos exportadores, dos advogados, dos ingleses da estrada, dos
agrônomos da Estação Experimental de Cacau, que o governo do estado
fundara em Água Preta, dos fazendeiros e dos comerciantes fortes (...) (SJI,
p. 37).

Um exemplo emblemático e representativo da submissão dos produtores ao capital comercial


das casas exportadoras encontramos na atuação da firma Wildberger & Cia., fundada por volta
de 1830 com marcante presença na formação e expansão dos negócios do cacau no sul do
estado. De origem suíça, reunia capitais franceses, noruegueses, americanos, entre outros.
Atuando como correspondente bancário, possuiu postos de representação, para além de Ilhéus,
em pontos centrais no interior da zona produtiva. Wildberger & Cia. passou a representar
também a companhia de navegação internacional Lloyd Royal Belge, a American Brasil Line
e a controlar a Cia. de Seguros da Bahia S.A. Assim, por volta de 1936, Wildberger & Cia.
reuniu 118 propriedades de terras e mais de dois milhões de pés de cacau, fundando a Cia.
Agrícola Cacaueira da Bahia. Essa companhia, além da produção de cacau, previa atuar no
aperfeiçoamento e desenvolvimento da lavoura regional por meio, inclusive, da prestação de
serviços agrícolas, da construção de imóveis agrícolas e urbanos (FALCÓN, 2010).
197

O interesse econômico desses grupos em organizar a lavoura de modo mais produtivo e com
isto elevar a qualidade do produto final exportado era favorecido justamente pelos preços
internacionais e facilitado pela excessiva dependência da lavoura a seus créditos (FALCÓN,
2010). Daí que a política cambial afetava diretamente os negócios na região do cacau, pois a
estruturação da produção, financiamento, comercialização, acumulação e produção se assentou
nas dívidas estrangeiras e se organizava para além dos interesses regionais. Nesse sentido,
Quijano (2014) ressalta ainda que o fenômeno urbano em sociedades latinas não se desenvolve
estritamente dentro do setor urbano e nem mesmo desmembrado das relações interdependentes
com o rural. Na Ilhéus de TSF e SJI, percebemos exatamente tal processo.

Depois vinham cifras, cifras de muitos números dando os totais das safras
nos últimos dez anos, o constante crescer da produção. O chofer abriu os
braços num gesto imenso, que mostrava não só o interior da sala da
secretaria da Associação Comercial, como toda a cidade de Ilhéus, o
município inteiro, toda a zona do cacau, com suas fazendas à espera de chuva
para carregarem de frutos cor de ouro:
- É o imperialismo, companheiro Sérgio, é o imperialismo. Quer engolir isso
tudo...
Na louca fantasia do poeta, aparecia, criado pelo gesto trágico do mecânico,
um monstro milenar, de cem bocas famintas, engolindo tudo: o porto de
Ilhéus, a fábrica de chocolate, os operários, as fazendas com os coronéis e
os trabalhadores, as pequenas roças dos pequenos lavradores, os estivadores
do porto, os ônibus e os passageiros, Julieta e os passarinhos, as orquídeas
como sexos.
A voz do chofer, de dentro do gesto ampliador, soava com a força de uma
profecia:
- É o imperialismo! Vai engolir tudo… (SJI, p. 56).

Assim, o que vemos nas práticas locais e nas ações planejadas do grupo de exportadores
notadamente em SJI se refere aos “interesses dominantes dentro das sociedades dependentes e
corresponde aos interesses do sistema total de relações de dependência; e do sistema de
produção e mercado, em seu conjunto” (QUIJANO, 2014, p. 78).
198

Gosta de usar termos da gíria nascida do cacau, as palavras saindo aos


pedaços, com dificuldade, a sua pronúncia pesada. Consta que foi ele quem
conseguiu o contrato da companhia de navegação sueca para a vinda dos
grandes cargueiros, que permitiram a exportação direta do cacau, desde o
porto de Ilhéus para os Estados Unidos, a Alemanha e o norte da Europa. E
que fora ele, ajudado por Carlos Zude e os demais exportadores, quem
forçara o governo federal a fazer os melhoramentos na barra, possibilitando
a entrada de navios de grande calado. Talvez o termo “forçar” não fosse
muito bem empregado em relação a Karbanks, pois ele parecia a pessoa
menos capaz de forçar alguém a alguma coisa(...) (SJI, p. 47).

As casas exportadoras compreendiam para o pequeno produtor o ponto final de suas atividades,
seu ponto de contato com o mercado. Exportadores foram singulares neste processo. Atuavam
como casas bancárias — financiavam valores em troca do empenho da safra, o que representava
um fino mecanismo de controle da produção e a posição privilegiada, na divisão do trabalho,
de organizadores daquele processo produtivo. O adiantamento financeiro ao qual a maioria
recorria até mesmo para prover a lavoura obrigava a negociação a preços estabelecidos pelo
bloco dos exportadores. No tocante a garantias, a maior parte das transações se deu sob forma
hipotecária registrada em cartório (FALCÓN, 2010). A hipoteca de fazendas se tornou rotineira
na região após os anos de 1910, atingindo uma média anual de 150 a 200 hipotecas por ano
(GUERREIRO DE FREITAS, 1979).

Os coronéis se encontraram, de repente, com maços de dinheiro na mão e


não sabiam que fazer dele. Haviam passado toda a vida conquistando e
plantando terra, comprando roças, colhendo cacau, empregando nas
despesas das casas, nos estudos dos filhos e nas fazendas, os lucros das
safras. Agora o dinheiro sobrava. E como não havia mais terra para
conquistar - muito menos para comprar - os coronéis não sabiam o que fazer
do dinheiro. Jogavam nos cabarés, roleta, bacará, campista, mas, como isso
não bastasse, jogaram na bolsa. Era um jogo excitante e eles jogaram muito,
com aquela impávida coragem que sempre lhes fora característica e com uma
impávida ignorância também. Não entendiam nada daquele jogo, mas o
encontraram digno deles e da época que atravessavam.
199

A valorização das fazendas de cacau foi muito além do que o mais velho dos
Rauschning imaginara. Não quadruplicou o valor das rocas como ele previu:
multiplicou-se por dez. Quem tinha terras nem queria ouvir falar em vender.
As propostas de compra chegavam de todas as partes (...) (SJI, p. 175).
(...)
NO DIA 2 DE JANEIRO O JORNAL DA TARDE ESTAMPAVA UM
telegrama, datado de Nova York, que anunciava uma grande queda nos
preços do cacau. Dos quarenta e sete mil-réis, alturas em que pairava no dia
31 de dezembro, descera a trinta. Não chegou a haver, naquele dia, maior
agitação entre os coronéis e os pequenos lavradores. Estavam ainda
entregues à animação das festas de começo de ano, a maioria curtindo a
ressaca da noite de 1º. No outro dia a tabela marcava vinte e nove mil-réis.
Já aí os fazendeiros começaram a assustar-se. Há muito que o cacau não
baixava dos quarenta e dois mil-réis a arroba. Mas alguém explicou que
devia ser coisa do paradeiro, a queda se deveria, sem dúvida, a não haver
cacau à venda. Muitos aceitaram a explicação, alguns, no entanto,
resmungavam: e por que nos paradeiros anteriores os preços do cacau não
caíram, ao contrário, subiam mais com a escassez do produto? A discussão,
travada nas esquinas comerciais e nos bares repletos, animou-se muito,
tornou-se acre e acesa, porque no dia 4 os dois diários da cidade publicavam
um mesmo telegrama: "Nova York, 3 (AP) - A Cotação do cacau foi hoje de
25 mil-réis para o tipo superior, 23 para o good e 21 para o regular. Não
houve compradores".
O Diário de Ilhéus dava o telegrama em duas colunas, na primeira página,
com um título em negrito: será a baixa? E sem comentários. O Jornal da
Tarde fazia um comentário de redação ao telegrama publicado em manchete,
comentário que fornecia detalhes sobre as safras da Costa do Ouro e da
República do Equador, dados sobre os preços nos três últimos anos, os da
alta. Terminava com umas considerações de ordem geral que não explicavam
nada. O comentário não era nem otimista nem pessimista, mas é sintomático
que todos o considerassem como anunciador da baixa. É que todos
perceberam que ela chegava, trágica e definitiva. Uma sombra cobriu, como
uma cortina cobre uma janela antes aberta ao sol, o rosto dos lavradores de
cacau, grandes e pequenos.
200

E, nos dias seguintes, o preço do cacau continuou a cair. Se a alta se


processou rapidamente, o cacau subindo de dezenove a cinquenta mil-réis
em dois anos, a queda foi muito mais rápida, o cacau baixando de cinquenta
a oito mil-réis em cinco meses. Em março, para o cacau temporão, os
fazendeiros ainda conseguiram quinze mil-réis por arroba. A maioria não
vendeu esperando que os preços voltassem a subir. Mas, quando em maio
começou a verdadeira safra, o cacau estava a onze mil-réis e os fazendeiros
já não guardavam nem a mais remota esperança que os preços novamente
subissem. Em junho, o cacau chegara à miséria de oito mil-réis a arroba. Os
fazendeiros começaram então a dar-se conta de que a alta fora apenas um
jogo dos exportadores. Alguns lembravam-se dos volantes comunistas,
recordaram até o comício realizado em Ilhéus e que a polícia dissolvera sob
gerais aplausos. Alguns, tempos depois, iriam se recordar também da ideia
da cooperativa de cacauicultores, mas então já era tarde. É que os
exportadores convidavam, cada vez mais insistentemente, os fazendeiros e os
pequenos lavradores a acertarem as suas contas.
Não é possível comparar com coisa alguma o que aconteceu naquele ano em
Ilhéus, em Itabuna, em Belmonte, em Itapira, em toda a zona do cacau. Só
mesmo aquela esquecida frase do coronel Maneca Dantas, dita a Sérgio
Moura, na noite da festa de Julieta Zude, nos começos da alta, de referência
à dissolução da família, daria uma ideia do pânico que reinou na cidade:
- O fim do mundo...
Só então os coronéis compreenderam que estavam empenhados numa luta.
Uma luta de vida e morte, que começara naquele dia, há três anos passados,
quando Carlos Zude, após conversar na Bahia com Karbanks, saltara em
Ilhéus de um avião e dissera a Martins que suspendesse os preços do cacau.
Uma luta de vida e morte, que já engolira Horácio, as fazendas pertenciam
agora a exportadores, à firma Schwartz & Silveira. O único coronel que
talvez pudesse lhes fazer frente com seu enorme capital, com suas fazendas
intermináveis, suas cinquenta mil arrobas facilmente transformáveis em
oitenta. Só ele seria capaz de chefiar com êxito uma grande cooperativa que
fizesse frente aos exportadores, que reunisse cacau dos coronéis e dos
pequenos lavradores, que comprasse e armazenasse, esperando os preços
que teriam que vir, forçados pela falta do produto. Só ele não jogara a bolsa,
201

não construíra palacete, não sustentara amantes, não andara pelas mesas de
roletas e bacará, não desperdiçara dinheiro. Somente ele. E estava morto,
seu enterro tinha sido realmente a data que marcava o fim do tempo dos
coronéis, ou, como dizia Joaquim, “o fim do feudalismo”. Os exportadores
tinham percebido muito bem, e, mesmo quando fecharam o rosto aos métodos
brutais de que Schwartz lançara mão, sabiam que era necessário afastar
Horácio. Carlos Zude roubara-lhe o prestígio político. Schwartz tomara-lhe
as terras. Aproveitaram-se de Silveirinha, arrastaram-no para o seu lado,
Horácio era um velho de mais de oitenta anos (SJI, p. 281-283).
(...)
Uma desgraça, não existia outra palavra. “Estamos desgraçados”, fora o
grito do coronel Frederico Pinto ao acertar suas contas. “Que desgraça!”,
dizia Antônio Vítor atônito, ante Raimunda que não espantara.
Quase todos os coronéis haviam subido para as fazendas, aquelas fazendas
onde pouco iam nos anos da alta, quando os cabarés ruidosos chamavam
pela voz estridente das orquestras, prendiam nos braços formosos das
mulheres, nas mesas excitantes de jogo. Quando em Ilhéus havia uma vida
noturna como nunca houvera sequer na capital do estado, quando se
acendiam charutos com notas de cem e duzentos mil-réis. Onde estava tudo
isso? Onde estavam os cabarés, as mulheres, as fichas, os caftens, os
cabaretiers, os intermediários do jogo de bolsa, as garrafas de champanhe,
o jazz que chegava em cada navio, a cocaína que fora moda, o Terno do
Ipicilone? Agora era a desolação em São Jorge dos Ilhéus.
Quase todos os coronéis haviam subido para as fazendas, fechados os
palacetes em Ilhéus, esquecidos os automóveis nas garages, abandonadas as
amantes (...) (SJI, p. 284).
(...)
Porque os exportadores chamavam os coronéis, os pequenos lavradores
também, a vir acertar suas contas. Eram memorandos que perdiam
rapidamente qualquer tom amável, mesmo aquela convencional amabilidade
comercial. Secos, logo ameaçadores. "Os donos da terra” estavam
amedrontados, não tinham coragem de deixar suas fazendas. Como se as
fossem roubar quando partissem. Aqueles que Carlos Zude chamara de
"crianças tímidas" eram agora como meninos aterrorizados que se agarram
202

às calças dos pais à passagem do velho louco da cidade. Agarravam-se às


fazendas, a visão dos cacaueiros que floresciam os frutos do ouro iluminando
as sombras... Nunca nenhum ouro valera tão pouco. Os memorandos
chegavam, os coronéis abriam os envelopes ante as esposas de olhos
espantados. Os trabalhadores eram despedidos às levas. Era melhor deixá-
los partir, apesar das dívidas, que ter que alimentá-los com o cacau a oito
mil-réis.
Os últimos memorandos diziam:
“O senhor tem um prazo de quarenta e oito horas para vir acertar suas
contas. Caso não venha, agiremos judicialmente."
Houve um tempo em que os coronéis eram donos da justiça. Condenavam e
absolviam à vontade. Ainda não há muito haviam condenado Pepe Espindola,
o cáften, que atirara, em defesa própria, num coronel. Mas agora duvidavam
dessa mesma justiça. Dinheiro não havia. Não tinham mais as casas
exportadoras com créditos ilimitados para sacar. E o cacau se transformara
numa das piores lavouras do país... Homens que nunca haviam reparado em
preços regateavam agora diferenças de quinhentos réis nas raras compras,
nas lojas.
Começaram a descer, um a um, para o acerto de contas com os exportadores.
Em ilhéus tudo havia mudado. Parecia uma cidade abandonada ante a
ameaça de saque por parte de um exército inimigo. As mulheres tinham
debandado. Os navios partiam cheios e chegavam vazios. Caixeiro-viajante
era coisa rara de se ver nas ruas sem movimento. As lojas paradas, os
cabarés fechados, apenas o Bataclã funcionava com o jazz reduzido a três
figuras. Os ônibus subiam e desciam quase sem passageiros. Marinho Santos
olhava com dor as partidas tristes e as tristes chegadas. Coronéis existiam
que vinham lhe pedir que fosse a passa, tal era a falta de numerário. O
dinheiro tinha sumido. Marinho Santos presenciava toda aquela débâcle com
certa melancolia eivada de medo. Não sabia o que terminaria por lhe
acontecer. Formalmente era dono da companhia de ônibus e caminhões.
Mas, na realidade, os exportadores podiam mandá-lo embora a qualquer
momento e assumir o controle. Bem dissera Joaquim... Esse Joaquim que ele
despedira por exigência de Carlos Zude.
203

Os pequenos lavradores, os primeiros a descerem à cidade para o acerto de


contas, os primeiros a constatarem a extensão da tragédia, embarcavam de
volta na segunda classe do trem para Itabuna, o ônibus tornara-se demasiado
caro. Era um luxo impossível. Velhos trabalhadores das fazendas, muitos dos
quais já incapazes para qualquer tarefa, que antes os coronéis sustentavam,
homens de mais de setenta anos, esmolavam nos povoados e nas cidades, no
porto de Ilhéus, estranhos esmoleres com um ar de camponeses assustados,
sem jeito para pedir, o olhar atravessados, arrastando os corpos pelas ruas
desconhecidas. No cais levantaram-se novas barracas, eram os alugados
despedidos que esperavam auxílio da prefeitura, passagens que os levassem
de retorno às suas terras.
Ninguém conseguia dinheiro emprestado em nenhuma parte, Maneca Dantas
tentava vender seu palacete, não aparecia comprador. Com dificuldade
conseguiu alugá-lo ao mais velho dos Rauschning, por um conto de réis por
mês, renda miscível para um prédio que lhe havia custado quinhentos contos.
(...) (SJI, p. 284–286).
(...)
Não havia quem não tivesse sido atingido. Todos aqueles destinos mudavam
mais uma vez, violentamente. Eram ásperos naquele ano os caminhos do
cacau. Antes fora fácil estrada, os frutos de ouro pendendo das árvores
plantadas sobre a terra adubada com sangue. Todos tinham sido atingidos,
duramente atingidos (SJI, p. 286).
(...)
Porque todos os demais, homens e mulheres, chorando, trabalhadores
alugados das fazendas, pequenos lavradores, carregadores do cais,
operários e empregados no comércio, donos de lojas e prostitutas, todos os
demais sofriam os efeitos da baixa inacreditável. “Uma desgraça, se
repetiam uns aos outros, mas não encontravam consolação. Era como se o
vírus de uma estranha moléstia houvesse penetrado na cidade e se estendesse
rapidamente aos municípios vizinhos. Mesmo nos bares, que ainda tinham
certa freguesia, as bebidas caras substituídas por cafés pequenos, mesmo ali
só se ouviam palavras desanimadas, gestos sem esperança. Os rostos
estavam fechados, soturnos.
204

Foi assim que começou, em São Jorge dos Ilhéus, o tempo dos “milionários
mendigos” (SJI, p. 286-287).

Expresso nas ações dos personagens Carlos Zude, Karbanks e demais que representam o capital
internacional atuante em Ilhéus, após relação amena e parceira estabelecida entre os
exportadores e a região em prol do desenvolvimento da lavoura do cacau com a prestação de
serviços financeiros, colaboração para melhoria da infraestrutura de escoamento da produção e
com o tratamento acolhedor às demandas dos coronéis, o grupo de exportadores se apresenta
em SJI com novas roupagens para as velhas práticas de exploração, agora mais explícitas. Essas
nuances são evidenciadas no discurso de Amado em TSF e SJI muito provavelmente em virtude
do seu alinhamento com o marxismo, o qual percebe, nas práticas sociais e culturais localizadas
no tempo e no espaço, a formação de ideologias e das diversas expressões simbólicas no geral
(BOSI, 1992). Daí que as narrativas amadianas neste caso dialogam com os modelos
econômicos ingleses e norte-americanos que representam o ideal do novo liberalismo na
primeira metade do Século XX.

Porém Sinhô Badaró sabia que estava jogando sua última cartada. A
Mudança da situação política roubara seus melhores trunfos. Uma prova
disso era a desagradável surpresa que tivera ao ir vender a safra vindoura,
por adiantado, a "Zude, Irmão & Cia." estes se mostraram desinteressados
falaram em dificuldades de dinheiro, propuseram finalmente comprar o
cacau mas com uma garantia hipotecária. Sinhô se enfurecera: pedir uma
hipoteca de roças a ele, Sinhô Badaró! Maximiliano temera que o coronel o
agredisse, de tão violento que ficara. Mas se recusou a comprar o cacau já
que Sinhô não queria dar as garantias pedidas. "Eram ordens", dizia. E Sinhô
Badaró teve que vender o cacau á casa exportadora de uns suíços, por preços
miseráveis (TSF, p. 279).
______
(...) Se lembrava das histórias que Maximiliano gostava de contar, nas suas
viagens à Bahia, sobre o passado dessa terra, sobre Ilhéus de trinta anos
antes. Havia uma que agradava particularmente a Carlos. Uma que falava
de um coronel barbado, revólver no cinto, rebenque na mão, olhar duro, voz
calma, que atravessava as ruas, apontado a dedo pelos negociantes:
- É o dono da terra!
205

O dono da terra, um dia o apontariam assim também. A ele e a Julieta ... Os


donos daquela terra (SJI, p. 23).

A recontextualização do discurso de Amado em TSF e SJI nos coloca diante de compreensões


sobre a dependência como um sistema particular no universo capitalista, havendo a dominância
de um setor sobre os outros (QUIJANO, 2014). No caso da região do cacau, o capital
internacional na figura dos exportadores, possuindo o controle da comercialização do cacau,
passou a atuar de modo estratégico para a ampliação do controle também da produção, agora
com a posse direta da terra. O ordenamento local se modificou enquanto “a intocabilidade e a
imutabilidade imaginadas pelos coronéis criaram um mundo fechado de um tempo que se quer
autônomo, absoluto, cifrado de códigos de honradez e coragem. Esse projeto inicial perdeu
vigor em relação aos novos interesses postos em torno do cacau” (SOUSA, 2001, p. 176).

O discurso amadiano em TSF e SJI nos permite uma compreensão mais ampliada da vida social
organizada nas primeiras décadas do Século XX naquela região, com suas rupturas,
descontinuidades, permanências, coexistência com práticas sociais negadas e, sobretudo, com
seus ideais de progresso que permeava as relações e os espaços. Amado, como operador de seu
tempo, esteve imbuído de um projeto de nação que não se vincula apenas a um discurso
modernista, mas vincula-se a compreensões das questões nacionais sufocadas pelas estruturas
da República Velha, permitindo o aguçamento dos debates em torno do caráter nacional e suas
especificidades regionais (DUARTE, 2002).

A dependência histórica que se vincula a estruturas sociais específicas na América Latina


apresenta princípios e tendências num momento, as quais se alteram em momentos posteriores
em virtude dos mesmos interesses dominantes da sociedade metropolitana (QUIJANO, 2014).
A cada período, portanto, com a mudança no tom dessas relações, muda-se também a estrutura
de poder materializada, adequando os envolvidos nesses relacionamentos (QUIJANO, 2014).
Isso é o que vimos ocorrer em Ilhéus quando a expressão do coronelismo com suas
características, com destaque para a grande concentração de terras, passou a ser alvo de novos
processos de interesse e subordinação econômica de regiões metropolitanas já na fase madura
da produção de cacau no sul da Bahia — quando havia alta demanda internacional, e a
infraestrutura local estava suficientemente organizada. Ao avançar sobre a posse das terras
naquela fase, os exportadores buscaram alterar a natureza histórica daquela estrutura de poder,
sem, contudo, alterar o sentido ou a natureza daquelas relações — dando continuidade ao
206

mesmo sistema de dependência (QUIJANO, 2014). Como fruto desta dependência, o


liberalismo atuante em nosso contexto jamais pretendeu estender ou repartir generosamente o
poder socioeconômico com os grupos subalternos (BOSI, 1992); é o que observaremos mais de
perto na próxima categoria.

4. 6 Organização social do trabalho subalterno (a culpa é do visgo do cacau?)

A região sul da Bahia e as relações sociais que ali se desenvolveram no período de urbanização
de Ilhéus, no discurso amadiano, emergem a partir das fronteiras e nos permite, ao
recontextualizá-lo, compreender o quanto, naquela realidade, “a exploração social é inseparável
da exploração natural” (CORONIL, 2005, p. 51), processos que ocorrem em sentidos distintos,
mas estão ligados intimamente.

Existem trabalhos seminais que de modo direto ou indireto se debruçaram sobre o espaço-tempo
de organização da vida social de Ilhéus e região, antes e após o florescimento da monocultura
do cacau. Entre eles, podemos destacar: Santos (1957), Garcez (1977), Guerreiro de Freitas
(1979), Pang (1979), Falcón (1983, 2010), Guerreiro de Freitas e Paraíso (2001), Sousa (2001),
Heine (2004), Mahony (2001, 2007), Barbosa (2013), Dias e Carrara (orgs.) (2016). Alguns
desses estudos tratam das relações sociais que antecedem a chegada do cacau e problematizam
sobre a escravidão na região; outros estudos têm como centro os coronéis do cacau e suas
relações sociopolíticas. Todavia, a maioria desses estudos se inclina sobre o aspecto econômico
da produção de cacau na região, e, portanto, raras são as pesquisas sobre o trabalho na lavoura
de cacau no sul da Bahia.

O trabalho e os trabalhadores da lida direta com o cacau — seus anseios, angústias,


sociabilidades, percepções, cotidiano — aparecem na maioria desses estudos de maneira
superficial e aligeirada, ou, quando adensam suas reflexões, tomam como fonte de pesquisa,
justamente a literatura amadiana, a exemplo de Sousa (2001) com seus capítulos “Os Alugados:
Andantes entra e a vida e a morte” e “Tempo dos Trabalhadores – o grito de angústia”; estudo
que desenvolveu na perspectiva da história social tomando por fonte de pesquisa Terras do Sem
Fim e São Jorge dos Ilhéus.

Uma exceção é Andrade (2006), a qual argumenta que a historiografia da região cacaueira
apresenta uma grande lacuna no que se refere ao homem do campo enquanto narrador de suas
207

próprias histórias. Aqueles homens e mulheres, com suas vivências, estariam assim sombreados
e invisibilizados como sujeitos sociais pelo “obscurecimento a que foram submetidos”
(ANDRADE, 2006, p. 243). A autora, valendo-se de 28 entrevistas, nos anos 2000, se pôs a
escutar trabalhadores e trabalhadoras a partir de tópicos específicos. Outra exceção é a pesquisa
de Dantas (2014) que, na perceptiva antropológica, dialogou com os meeiros — parceiros
agrícolas que surgiram após as mudanças nas relações sociais e de trabalho no período da crise
na década de 1990 na região do cacau.

Entretanto, encontramos, como nos referimos no capítulo 3, na tese de doutorado de Antony


Leeds e nas narrativas de Jorge Amado, o trabalho na região como tema mais adensado no
período específico de expansão da lavoura e auge da produção de cacau na região, de modo
central. Acreditamos, todavia, que Amado nos empresta, por meio da memória e imaginário,
uma série de insights epistêmicos com suas narrativas, promovendo o pensamento de fronteira,
mesmo que isto não fizesse parte do contexto de ambiência do seu discurso. Ao dar centralidade
ao lado subalterno daquelas intrincadas relações, sobretudo as relações de trabalho subalterno,
o literato nos deixa contribuições valiosas sobre a diferença colonial, e seus escritos têm muito
a contribuir com o debate que nos permite ir além do que fora delineado pelas dicotomias que
conduziram seu discurso, justamente quando ampliamos aqui a compreensão do capitalismo
numa perspectiva de colonialidade de poder.

Como vimos nos estudos realizados sobre a região cacaueira da Bahia, e fenômeno recorrente
na América Latina, o que se percebe é que a maior parte das análises e teorias que os guiam
“privilegiou as relações econômicas nos processos sociais em detrimento da cultura e
determinações ideológicas” (GROSFOGUEL, 2008a, p. 12), o que levaria ao reducionismo
dessas complexas relações. Todavia, a contundente literatura amadiana não se formula com um
significado unívoco (DUARTE, 2002), e, assim, as narrativas em TSF e SJI, embora inspiradas
na ortodoxia marxista (ROSSI, 2004; 2009), não apresentam um discurso com a tendência para
a subestimação das hierarquias coloniais de base racial e vinculação dos fenômenos sociais e
políticos, apenas ao econômico. De tais narrativas emerge uma série de nuances que nos
auxiliam compreender ou mesmo explicar as complexidades dos processos sociais, políticos e
econômicos naquele espaço-tempo sul-baiano na perspectiva da heterogeneidade estrutural.

Sobre heterogeneidade estrutural, Quijano (2005) nos fala que, como expressão da
colonialidade do poder, tal qual as relações centro-periferia organizadas em escala mundial,
208

construiu-se uma hierarquia racial e étnica global que constituiu a divisão internacional do
trabalho que conhecemos. Desse modo, encontramos em TSF e SJI a pluralidade cultural e a
heterogeneidade estrutural na organização da vida social de Ilhéus, que ultrapassa os esquemas,
os estudos e a retórica de acadêmicos que se vinculam a esse mesmo objeto.

Portanto, ao enunciar aquela sociedade sul-baiana de fins do Século XIX com seus dilemas,
contrapontos e peculiaridades, Amado situou o problema maior no “o que somos”, e não
simplesmente na ocupação daquele território pela lavoura do cacau e ligações binárias entre
classes. Enquanto Rama com sua metodologia de análise enuncia “o que somos” continental,
do Sul (PIZARRO, 1993), Amado com suas narrativas enuncia “o que somos” regional, do sul
da Bahia.

E ele veio apesar do gosto do corpo de Ivone o prender ali, de saber que
deixara nela um filho. Dizia para si mesmo que ia fazer dinheiro para ela e
para o filho, voltaria com um ano. A terra era fácil em Ilhéus, plantaria uma
roça de cacau, colheria os frutos, voltaria por Ivone e pela criança. O pai
dela não voltou, ninguém sabia mesmo onde ele estava. Um velho está
dizendo que ninguém volta destas terras, nem mesmo os que tem mulher e
dois filhos. Por que essa harmónica não pára de tocar, por que essa música
é tão triste? Por que é vermelha como sangue essa lua sobre o mar? (TSF, p.
25).
(...)
Outras terras ficam distantes, visões de outros mares e de outras praias ou
de um agreste sertão batido pela seca, outros homens ficaram, muitos dos
que vão no pequeno navio deixaram um amor. Alguns vieram por esse mesmo
amor, buscar com que conquistar a bem-amada, buscar o ouro que compra
a felicidade. Esse ouro que nasce nas terras de Ilhéus, da árvore do cacau.
Uma canção diz que jamais voltarão, que nessas terras a morte os espera
atrás de cada árvore. E a lua é vermelha como sangue, o navio balança sobre
as águas tranquilas (TSF, p. 26).

O sul da Bahia figurou por muitas décadas como um eldorado de oportunidades para mudança
de vida de trabalhadores de variadas regiões do estado e do Nordeste, tal qual Antônio Vítor,
que deixou para trás Ivone em Sergipe ambicionando “fazer a vida” e retornar a terra natal para
209

buscá-la. Na expectativa de bem-aventuranças, milhares seguiram para Ilhéus na intenção de


formar fortuna. Assim, a organização social da produção do cacau se constituiu baseada na
opressão desses trabalhadores (GUERREIRO DE FREITAS, 1979). A complexa base rural em
Ilhéus, portanto, encontrava-se com formas compulsórias de trabalho, outras vezes com
relações próximas do salariato, com a presença de trabalhadores alugados ou de safra; na grande
maioria com remunerações instáveis e muito baixas, absorvidas muito frequentemente pelo
microuniverso não monetizado dos armazéns das fazendas de cacau (FALCÓN, 1983).

- Me falaram lá no Ceará, mas eu não dei crença... Se falava tanta história


dessas terras que até parecia coisa de milagre...
O trabalhador magro quis saber o que é que diziam:
- Coisa boa ou coisa ruim?
- Boa e ruim, mais ruim que boa. De boa só dizia que aqui era uma fartura
de dinheiro que o fulano enricava logo que desembarcava. Que dinheiro era
calçamento de rua, era poeira de estrada. . . De ruim, que tinha a febre, os
jagunços as cobras... De ruim muita coisa...
- E ainda assim tu veio...
O cearense não respondeu, foi o velho que vinha trazendo o cadáver quem
falou:
- Pode ter a ruindade que tiver, se tem dinheiro o homem não enxerga nada.
Homem é bicho que só vê dinheiro, fica cego e surdo quando vê falar em
dinheiro... Por isso é que há tanta desgraça nessas terras...
O homem magro apoiou com a cabeça. Também ele deixara pai e mãe, noiva
e irmã, para vir atrás do dinheiro dessas terras de Ilhéus. E os anos se haviam
passado e ele continuava a colher cacau nas roças para Maneca Dantas. O
velho continuava:
- Tem dinheiro muito, mas a gente não vê...
(...)
O velho que trazia o defunto resumiu:
- Nunca vi destino mais ruim que o de trabalhador de roça de cacau...
O homem magro considerou:
- Os capangas ainda passam melhor... - virou para o cearense. - Se tu tem
boa pontaria, tu tá feito na vida. Aqui só tem dinheiro quem sabe matar, os
assassinos...
210

O cearense arregalou os olhos. O morto o assustava vagamente, era uma


prova concreta do que conversavam.
- Quem sabe matar?
O negro riu, o homem magro falou:
Um cabra certeiro na pontaria tem regalias de rico... Vive pelos povoados,
com as mulheres, tem dinheiro no bolso, nunca falta saldo pra ele... Mas
quem só serve pra roça... Tu vai ver amanhã...
Como o homem magro era o segundo que falava nesse dia de amanhã, o
cearense quis saber o que ia se passar. qualquer um podia explicar mas
mesmo o homem magro quem falou:
- Amanhã cedo o empregado do armazém chama por tu para fazer o "saco"
da semana. Tu não tem instrumentos pro trabalho, tem que comprar. Tu
compra uma foice e machado, tu compra um facão, tu compra uma enxada...
E isso tudo vai ficar por cem mil-réis. Depois tu compra farinha, carne,
cachaça, café pra semana toda. Tu vai gastar uns dez mil-réis pra comida.
No fim da semana tu tem quinze mil-réis ganho do trabalho.
- o cearense fez as contas, seis dias a dois e quinhentos, e concordou.
- Teu saldo é de cinco mil-réis, mas tu não recebe, fica lá para ir descontando
a dívida dos instrumentos... Tu leva um ano pra pagar os cem mil-réis, sem
ver nunca um tostão. Pode ser que no Natal o coronel mande te emprestar
mais dez mil-réis pra tu gastar com as putas nas Ferradas... O homem magro
disse aquilo tudo com um ar meio burlão, entre cínico, desanimado e trágico.
Depois pediu cachaça. O cearense tinha ficado emudecido, olhava o morto.
Falou, por fim:
- Cem mil-réis por um facão, uma foice e uma enxada?
Foi o velho quem explicou:
- Em Ilhéus tu tira um facão Jacaré por doze mil-réis. No armazém das
fazendas tu não tira por menos de vinte e cinco...
- Um ano... - fez o cearense, e estava fazendo cálculos sobre quando a chuva
cairia novamente na sua terra de secas do Ceará. Ele pretendia voltar logo
que chovesse sobre a terra abrasada e pretendia levar dinheiro para poder
comprar uma vaca e um bezerro.
- Um ano... repetiu, e fitou o morto que parecia sorrir.
211

- Isso tu pensa... Antes de terminar de pagar tu já aumentou a dívida... Tu já


comprou mais calça e camisa de bulgariana... Tu já comprou remédio que é
um Deus nos acuda de caro, tu já comprou um revólver que é o único dinheiro
bem empregado nessa terra... E tu nunca paga a dívida... Aqui - e o homem
magro fez um gesto circular com a mão abarcando todos eles, os que
trabalhavam para os "Macacos" e os dois que vinham com o morto das
"Baraúnas" aqui tudo deve, ninguém tem saldo... Os olhos do cearense
estavam amedrontados. A vela se gastava iluminando o morto com sua luz
vermelha. Chuviscava lá fora, o velho se levantou:
- Eu era menino no tempo da escravidão... Meu pai foi escravo, minha mãe
também... Mas não era mais ruim que hoje... A coisa não mudou, foi tudo
palavras...
(...)
Depois o velho voltou-se pro cearense:
- Daqui nunca ninguém volta. Fica amarrado no armazém desde o dia que
chega. Se tu quer ir embora vá hoje mesmo, amanhã já é tarde... Se tu quer
ir, vem com a gente, assim faz também a caridade de ajudar a carregar o
finado... Depois é tarde...
(...)
- E eu vou também...
Juntou febrilmente seus trapos, soluçou uma despedida, saiu correndo. O
homem magro fechou a porta:
- E pra onde vai - E como ninguém respondesse à sua pergunta ele mesmo
respondeu: - Pra outra fazenda, vai ser o mesmo que aqui. Apagou o
candeeiro (TSF, p. 100–104).

Os parcos, porém, necessários gêneros alimentícios e instrumentos de trabalho, a exemplo de


charque, farinha, querosene e facões, eram vendidos pelos armazéns das fazendas aos
trabalhadores a preços inflacionados e, ao final do mês, eram descontados do salário (FALCÓN,
1983). Assim, era comum a dívida mensal do trabalhador ser superior ao rendimento ao qual
tinha direito. Essa prática rebaixava ainda mais o custo daquela mão de obra para o produtor e
causava uma dependência perene desse trabalhador ao armazém, o que, pelo condicionamento
à dívida, diminuía a rotatividade do trabalhador, pois sua liberdade de deixar a fazenda estava
condicionada ao pagamento das contas de saldo negativo. As dívidas, sempre crescentes para o
212

trabalhador, alienavam o seu direito de ir e vir pela vinculação àquela fazenda e àquele lugar.
Por isso, no diálogo entre o homem velho e o jovem cearense, a vida na lavoura do cacau se
compara aos tempos do sistema escravagistaxx no sul da Bahia, e, na prática, seu término formal
não sortiu efeitos positivos reais para egressos e seus descendentes: vide os desdobramentos de
mundo que tiveram esses homens e mulheres na estrutura social na região de Ilhéus.
O discurso amadiano, portanto, não desconheceu ou negou as profundas desigualdades sociais
do país, embora estivesse empatado com um programa de nação fruto de sua época e que
dialogaria com as teorias de Gilberto Freyre, que apostava na ideia de mestiçagem como a
grande singularidade brasileira. Assim, “Jorge Amado não escaparia à orquestração da época,
que passava por cima das profundas diferenças e estratificações econômico-sociais para
destacar uma sociabilidade ímpar e sem fronteiras de cor” (SCHWARCZ, 2009, p. 37), mas
que efetivamente ganhou espaço nas narrativas de Amado a partir de Gabriela, Cravo e Canela
de 1954, escrito após sua ruptura com o partido comunista.

Lembramos que o discurso amadiano deve ser analisado por fases, e a escrita de TSF e SJI
pertence à primeira fase do autor, que o identificava por sua literatura proletária (ROSSI, 2009).
E assim, não naturaliza a desigualdade, e nem o passado escravagista. Inclusive, a escrita
amadiana, embora inserida num contexto político e intelectual que emergiu com potência nos
anos de 1930 quanto à democracia racial e a falaciosa metáfora das três raças (SCHWARCZ,
2012), ao menos em TSF e SJI a escrita não se alinha a tal naturalização da desigualdade racial
e expressa um cotidiano com suas sociabilidades condicionadas à grande concentração de poder
e às relações sociais assimétricas. E embora exista convivência dos trabalhadores com o
mandonismo dos coronéis, isso não significa ausência de conflitos (SCHWARCZ, 2009).

A escravização de negros no Brasil foi muito mais que um sistema econômico, definindo
desigualdades sociais, em que raça e cor passaram a ser marcadores fundamentais da diferença
(SCHWARCZ, 2019), embora otimista da mestiçagem como fica muito evidente na década
seguinte à escrita de TSF e SJI. Jorge Amado, ao comparar os tempos do sistema escravagista
com o tempo do trabalho “livre” na lavoura do cacau, não se furta de transportar para seu
discurso uma crítica imanente às relações sociais nas terras do sem fim com suas questões de
base racial (ROSSI, 2009).

xx Sobre o escravismo nas terras do sul da Bahia consultar Cruz (2012), Dias e Carrara (2016) e Mahony (2001).
213

Qual diferença existiria, portanto, entre o sistema que prescreve a propriedade total de uma
pessoa sobre a outra, que pressupõe o uso de uma mão de obra cativa, longas jornadas de
trabalho, pouca comida e água, nenhuma posse, nenhum acesso à educação, vigilância constante
e a falta de qualquer liberdade (SCHWARCZ, 2019), com aqueles modos de trabalho aos quais
os alugados do cacau se submetiam? Na prática, não havia grandes diferenças, e, em TSF e SJI,
Amado faz transparecer sua crítica.

Além de aprisionar o trabalhador na fazenda, o modo como se operava aqueles armazéns


causava a baixa monetização no interior da lavoura, pois, em muitos casos, os trabalhadores
não recebiam salários efetivamente. Instrumentos de trabalho não eram fornecidos pelo
proprietário das terras, o que ampliava o endividamento e a exploração dessa mão de obra
(FALCÓN, 2010), a qual trabalhava em troca de alimentação e moradia. A alimentação era
precária e dispendiosa — o consumo de carne fresca pelo trabalhador era considerado luxo
(GUERREIRO DE FREITAS, 1979).

Os créditos no barracão, que atuava como um armazém de variedades básicas, aprofundavam


“o vínculo do trabalhador com a fazenda, reduzindo a circulação de dinheiro e,
consequentemente, aumentando a dependência entre patrão e empregado” (HEINE, 2004, p.
39). Como já apontamos, a presença do armazém nas fazendas estreitava, sem dúvida, a
dependência do trabalhador (GUERREIRO DE FREITAS, 1979). Sem reservas financeiras ou
quaisquer direitos e garantias trabalhistas, muitos desses alugados morriam sem direito a
indenizações; ao contrário: morriam deixando alegadas dívidas em seus antigos locais de
trabalho. Foi assim com Ranulfo de SJI e do homem negro da fazenda Baraúna de TSF.

Dentro da casa pequena de trabalhadores o cadáver ficara só. Seria


enterrado ali mesmo, pelas roças. Ranulfo era o mais endividado de todos os
alugados. Devia os olhos da cara, o coronel não iria dar dinheiro para
enterro no povoado. – E não ia – agora que as chuvas tinham chegado –
dispensar dois trabalhadores para levarem a rede com o morto. Se o dia
seguinte fosse domingo eles podiam arranjar uma rede, uns cobres
emprestados, e conduzir Ranulfo para um cemitério de cristão. No meio da
semana, porém, era difícil... O morto ficou só, verde, os olhos esbugalhados
da congestão. A garrafa de cachaça já está pelo meio (SJI, p. 155).
(...)
214

“Terra ruim”, pensa o negro Florindo. É por isso que ele vai embora om o
Varapau. Terra onde um homem morre estuporado e não tem quem reze na
sentinela pela sua salvação. A vela levanta fantasmas ante Florindo, a
garrafa de cachaça afoga as mágoas (...) (SJI, p. 158).
_______
Os homens pararam, descansaram a rede atravessada com um pau, onde o
cadáver efetuava sua última viagem. De dentro da sala mal iluminada dona
Auricídia perguntou, movendo preguiçosamente as banhas:
- Quem é?
- É de paz, dona - respondeu um dos homens.
O menino havia corrido até a varanda e voltou com a notícia:
- Mamãe, é dois homens com um morto... Um morto negro...
Antes de se alarmar, dona Auricídia, que fora professora corrigiu
mansamente:
- É dois não, Rui. São dois é como se deve dizer...
Movimentou-se para a porta, o filho ia agarrado nas suas saias. Os menores
já dormiam. Na varanda os homens haviam sentado num banco, no chão se
abria a rede com o cadáver.
- Jesus Cristo lhe de boa noite... - falou um deles, era um velho de carapinha
branca.
O outro tirou o chapéu furado e cumprimentou. Dona Auricídia respondeu,
ficou esperando. O moço explicou:
- Nós tá trazendo ele da Fazenda Baraúna, trabalhava lá... Tamos levando
pro cemitério de Ferradas...
- Por que não enterraram na mata?
- Não vê que ele tem três filhas em Ferradas? Tamos levando para entregar
a elas. Se vosmecê consente a gente descansa um tempinho. A caminhada é
muita, o tio aqui já tá dando o prego... - apontou para o velho.
- De que foi que ele morreu? - perguntou a senhora.
- Febre... - agora era o velho que respondia. – Essa febre braba que dá na
mata. Tava derrubando mata, a febre pegou ele... Foi três dias só. Não teve
remédio que prestasse...
215

Dona Auricídia afastou o filho, afastou-se ela mesma alguns passos. Ficou
refletindo. O cadáver do homem magro, velho ele também, repousava na rede
sobre a varanda.
- Levem para a casa de um trabalhador. Descansem lá... Aqui, não. É só
andar um pouco mais, encontrarão logo as casas. Digam que eu mandei.
Aqui, não, por causa dos meninos...
Temia o contágio, aquela febre não conhecia remédio que servisse. Só muitos
anos depois os homens foram saber que era o tifo, endémico então em toda a
zona do cacau. Dona Auricídia ficou espiando os homens levantarem a rede,
colocarem-na nos ombros e partirem:
- Boa noite, dona...
- Boa noite...
Olhava o lugar onde o cadáver estivera. E então aquela gordura toda se
movimentou. Gritou pelas negras lá dentro, mandou que trouxessem água e
sabão e, apesar de ser de noite, lavassem a varanda. Levou consigo o filho,
lavou-lhe as mãos até a criança quase chorar. E naquela noite não dormiu,
de hora em hora levantava-se para ver se Rui não estava com febre. E ainda
por cima Maneca não se encontrava em casa, fora comer na fazenda de
Horácio... (TSF, 97–98).

Os milhares de trabalhadores que migraram de Sergipe, de Alagoas, do Ceará e de tantos outros


recantos em busca de fazer fortuna ou mesmo em busca de uma vida melhor no sul da Bahia,
passaram, via de regra, a se submeter aos interesses dos coronéis e atuar como um simples
“alugado” (SOUSA, 2001) — com elevado custo de vida nas fazendas; com a falta de
uniformidade do rendimento; precárias condições de trabalho, alimentação e moradia; ausência
de vínculos e quaisquer garantias de proteção ao trabalhador; ausência de ensino escolar e
assistência médica; insignificante naquelas terras, portanto, era a presença de trabalhadores
fixos (FALCÓN, 1983) —, o que denota justamente a fragilidade dos vínculos de trabalho na
lida com a terra na lavoura do cacau no auge de sua produção no sul-baiano.

Especificamente sobre a moradia de trabalhadores, Santos (1957) aponta que, excetuando os


trabalhadores que desenvolviam funções administrativas ou domésticas da sede da fazenda, a
maioria deles residia no meio do cacaual, pois a intenção era evitar o deslocamento diário a pé
ou no lombo de animais e a consequente perda de tempo até o local de trabalho. Em
216

contrapartida de propriedades da zona urbana, na zona rural da região cacaueira, as habitações


não possuíam conforto, limitando-se a prover abrigo contra o tempo e as chuvas, “quase todas
acanhadas, precárias, este seu estado reflete o nomadismo dos seus moradores: os trabalhadores,
que costumam chegar no começo da safra, para se retirarem logo que ela termina” (SANTOS,
1957, p. 53). A justificativa dos fazendeiros sobre o estado das moradias era exatamente esta,
de que os alugados estavam ali de passagem, portanto a sua moradia era improvisada e não
definitiva (SANTOS, 1957).

Os homens chegaram com rede em frente de uma casa de trabalhadores. O


velho ia cansado, o outro falou:
- O finado está pesando, hein, tio?
Aquela ideia de levar o morto até Ferradas fora do velho. Eram amigos os
dois, ele e o que morrera. Decidira entregar o cadáver às filhas para que
estas o "enterrassem coma cristão", explicava ele. Era uma viagem de cinco
léguas e há horas que eles andavam sob o luar, baixaram novamente a rede,
o maço enxugou o suor enquanto o velho golpeava com seu bastão na porta
mal cerrada, de tábuas desiguais. Uma luz se acendeu, a pergunta saiu:
- Quem é?
- É de paz. . . - respondeu novamente o velho.
Ainda assim o negro que abriu a porta trazia um revólver na mão, naquelas
terras não havia que descuidar. O velho explicou sua história. Terminou
dizendo que fora dona Auricídia quem os mandara. Um homem magro que
surgira por detrás do negro comentou:
- Lá ela não quis... Podia pegar nos filhos a febre... Mas para aqui não faz
mal, não é? - e riu.
O velho pensou que o iam mandar mais uma vez para adiante. Começou uma
explicação, mas o homem magro interrompeu:
- Não tem nada, meu velho. Pode entrar. Na gente a febre não pega mesmo.
Trabalhador tem o couro curtido...
Entraram. Os outros homens que dormiam despertaram. Eram cinco ao todo
e a casa não tinha mais que uma peça, as paredes de barro, o teto de zinco,
o chão de terra. Ali era sala, quarto e cozinha, a latrina era o campo, as
roças, a mata.
217

Descansaram o morto em cima de um dos jiraus onde os homens dormiam.


Ficaram todos em torno, o velho tirou uma vela do bolso, acendeu na
cabeceira do defunto. Já estava queimada pela metade, iluminara o corpo no
princípio da noite, iria iluminá-lo quando chegassem também na casa das
filhas (TSF, p. 130).

Considerando que, na década de 1940, dos mais de 138 mil indivíduos atuantes nos trabalhos
da lavoura de cacau nas propriedades da região, a maioria (67,75%) estava trabalhando nas
fazendas de porte médio, e menos de 1% trabalhava nas grandes propriedades. Considerando
também que somente nas grandes fazendas é que se encontravam construções melhores, mais
sólidas e mais confortáveis, e mesmo definitivas que serviam à habitação do trabalhador do
cacau (SANTOS, 1957), percebemos, portanto, que a maioria deles estava à mercê das moradias
precárias e de caráter improvisado, tal qual a habitação de trabalhadores da fazenda Auricídia
de Coronel Maneca Dantas — local que acolhe o velório do homem negro que seguia para
Ferradas.

No geral, o trabalhador se aglutinava em agrupamentos de casas ou mesmo em habitações


isoladas, esparsas no meio da plantação (SANTOS, 1957). Uma associação de proprietários
chegou até cogitar como medidas para a atração e fixação do trabalhador a construção de casas
higiênicas, com oferta de alimentação de qualidade com preço de custo, opções de lazer nas
fazendas e acesso à educação para os filhos dos trabalhadores (GUERREIRO DE FREITAS,
1979).

Na região cacaueira, 75% das propriedades produzia cacau, e, pela característica da lavoura, o
povoamento da região era disperso e difuso. Embora a região contasse 20 municípios
constituídos na década de 1950, a maioria absoluta da população, cerca de 442 mil pessoas do
total de 590 mil habitantes, encontrava-se ligada à zona rural das cidades (SANTOS, 1957).

Vilas e arraiais detinham apenas 10% desse total de habitantes da zona rural, “aqui e ali alguns
povoados, na verdade, surgem, à beira dos caminhos ou nos seus cruzamentos, para atender à
aquisição das utilidades mais necessárias; (...) pela sua posição regional se prestam a esse papel
de condensadores de populações, algumas vilas maiores têm surgido” (SANTOS, 1957, p. 51).
E o antigo arraial de Ferradas é um desses locais, exatamente para onde segue o corpo do
218

trabalhador da fazenda Baraúna a ser sepultado por suas três filhas que lá residem — Maria,
Lúcia e Violeta.

Era uma vez três irmãs: Maria, Lúcia, Violeta, unidas nas correrias, unidas
nas gargalhadas. Lúcia, a das negras tranças; Violeta, a dos olhos mortos;
Maria, a mais moça das três. Era uma vez três irmãs, unidas no seu destino.
Cortaram as tranças de Lúcia, cresceram seus seios redondos, suas coxas
como colunas, morenas, cor de canela. Veio o patrão e a levou. Leito de cedro
e penas, travesseiro, cobertores. Era uma vez três irmãs.
Violeta abriu os olhos, seus seios eram pontudos, grandes nádegas em flor,
ondas no caminhar. Veio o feitor e a levou. Cama de ferro e de crina, lençóis
e a Virgem Maria. Era uma vez três irmãs.
Maria, a mais moça das três, de seios bem pequeninos, de ventre liso e macio.
Veio o patrão, não a quis. Veio o feitor, não a levou. Por último veio Pedro,
trabalhador da fazenda. Cama de couro de vaca, sem lençol, sem cobertor,
nem de cedro, nem de penas. Maria com seu amor.
Era uma vez três irmãs: Maria, Lúcia, Violeta, unidas nas gargalhadas,
unidas nas correrias. Lúcia com o seu patrão, Violeta com seu feitor e Maria
com seu amor. Era uma vez três irmãs, diversas no seu destino (TSF, p. 129).
(...)
- Que é que elas fazem? - perguntou o negro.
- Tudo é puta nas Ferradas. . . - explicou o velho.
(...)
Bateram palmas mas ninguém respondeu de dentro da casa. O silencio ia
pela rua a fora. Uma rua de canto no povoado de Ferradas. Casas pequenas,
de barro batido, algumas cobertas de palha, duas ou três de telhas, a maioria
de zinco. Ali viviam as rameiras, ali os trabalhadores das fazendas vinham
nos dias de festa em busca do amor (...) (TSF, p. 130).
(...)
Mulheres de caras machucadas, mulatas, negras, uma que outra branca. Nas
pernas e nos braços, por vezes nos rostos, marcas de feridas. Havia no ar um
cheiro de álcool misturado com perfume barato (...) (TSF, p. 132).
(...)
219

Todas pareciam ter a mesma idade e a mesma cor, uma cor de doença. Era
um resto de gente perdido no fim do mundo. E, como não havia sala na casa,
eram cinco quartos pequenos ocupados por cinco mulheres, deitaram o
morto na cama de Violeta, que era no quarto da frente. O velho acendeu o
toco de vela que estava quase todo gasto. Por detrás da cama havia uma
gravura de um santo, Senhor do Bonfim. Uma página de revista mostrava,
pregada na parede, uma mulher loira e nua.
(...)
- Essa vida de rapariga come a beleza de mulher em dois dias… (TSF, p.
133).
(...)
No quarto, Lúcia, que era muito religiosa, propôs chamarem Frei Bento para
rezar as orações. Juquinha duvidou que o frade viesse:
- Ele não vem em casa de mulher-dama...
- Quem foi que disse? - perguntou Violeta. – Quando Isaura morreu ele veio...
Só que cobra caro.
E não acrescentou nenhum comentário, ela não queria que a tomassem por
má inimiga do pai. Foi Juquinha quem a apoiou:
- Só vem por muito dinheiro. Por menos de vinte mil réis não há de vir... Lúcia
ia desistindo do seu projecto:
- Se é assim não se chama...
Olhou o defunto, sua cara magra, verdosa, parecendo sorrir na aflição da
morte. E deu em Lúcia uma agonia, uma tristeza do pai se enterrar sem
orações, balbuciou numa crise de choro:
- Vai se enterrar sem oração, coitado! Não fez mal a ninguém, era um homem
bom... E vai se enterrar sem ser encomendado. Nunca pensei... Meu pai...
(TSF, p. 134).

Mulheres na zona do cacau eram minoria em toda região, sobretudo em Itabuna e Ilhéus
(SANTOS, 1957). Uma produção que se organizava em torno do trabalho braçal talvez explique
o número de homens solteiros como sendo o perfil predominante no contingente populacional
de meados do Século XX. Essa diferença numérica marcante entre os gêneros na região
(SANTOS, 1957) nos permite, juntamente com outros elementos socioeconômicos e culturais,
220

depreender que casas de mulheres com profissionais do sexo eram corriqueiras nas vilas e
arraiais.

O contingente e o fluxo de trabalhadores se alteravam durante as duas safras anuais, absorvendo


de modo temporário, durante a colheita, um amplo contingente de mão de obra. Todavia, após
a colheita, aumentava novamente a transumância (SANTOS, 1957), e “a mão de obra em
disponibilidade se dava marginalizada, sem outra ocupação que lhe permitisse fixar-se na
região, uma vez que as fazendas não tinham outras ofertas a fazer durante as entressafras”
(GUERREIRO DE FREITAS; PARAÍSO, 2001, p. 105). Na divisão do trabalho com as
nuances que ali ganharam, diante da existência de tamanho contingente de trabalhadores que
tinham por habilidade o trato com a lavoura, destacavam-se aqueles que atuavam como uma
espécie de trabalhador de elite nas terras do cacau, o jagunço.

- Tu não volta é nunca... - falou um velho envolto numa capa. - Tu não volta
é nunca, que Ferradas é o cu do mundo. Tu sabe mesmo o que é que tu vai
ser nas roças do coronel Horácio? Tu vai ser trabalhador ou tu vai ser
jagunço. Homem que não mata não tem valia pro coronel. Tu não volta é
nunca... - e o velho cuspiu com raiva (TSF, p. 23).
(...)
- Jagunço agora vai valer ouro... Se começar os barulhos quem tiver pontaria
vai enricar. Pode botar roça...
Sua profissão era matar, Damião nem sabe mesmo como começou. O coronel
manda, ele mata. Não sabe quantos já matou. Damião não sabe contar além
de cinco e ainda assim pelos dedos. Tampouco lhe interessa saber. Não tem
ódio de ninguém, nunca fez mal a pessoa alguma. Pelo menos assim pensou
até hoje (TSF, p. 71–72).
(...)
(...) Por vezes os caixeiros-viajantes que param na casa-grande obrigam-no
a contar algumas das mortes que ele praticou. Damião narra com voz calma,
inocente de todo o mal. Para ele uma ordem de Sinhô Badaró é indiscutível.
Se ele manda matar há de matar. Da mesma maneira que quando ele manda
selar a sua mula preta para uma viagem há que selar a mula preta
rapidamente. E demais, não há o perigo da cadeia porque cabra de Sinhô
Badaró nunca foi preso. Sinhô sabe garantir os seus homens, trabalhar para
221

ele é um prazer. Não é como o coronel Clementino que mandava fazer o


trabalho e depois entregava os homens. Damião desprezava o coronel. Um
patrão assim não é patrão para um homem de coragem servir. ele o servira
muito antes quando era um rapazola. Lá aprendera a atirar, para Clementino
matara o primeiro homem. E um dia teve que fugir da fazenda porque a
polícia fora procurá-lo e o coronel nem o avisara sequer... Se acoitara em
terras dos Badarós e agora era o homem de confiança de Sinhô (TSF, p. 72).
(...)
Nesse momento foi que a ideia de não matar Firmo apareceu pela primeira
vez na cabeça do negro Damião. Levemente apenas, ele não chegou
propriamente a pensar em não matar. Foi uma coisa rápida e fugidia, mas
ainda assim o amedrontou. Como não cumprir uma ordem de Sinhô Badaró?
Homem direito, Sinhô Badaró. Demais gostava dele, do seu negro Damião.
Na estrada conversava com ele, tratava-o quase como a um amigo. E
Don'Ana também. Lhe davam dinheiro, seu salário era dois mil e quinhentos
réis por dia, mas em verdade ele tinha muito mais, cada homem que
derrubava era uma gratificação na certa. Além de que trabalhava pouco, há
muito que não ia para as roças, ficava sempre fazendo pequenos serviços na
casa-grande, acompanhando o coronel nas suas viagens, brincando com as
crianças, esperando ordens para matar um homem... Sua profissão: matar.
Agora Damião se dá perfeita conta disso. Sempre lhe parecera que ele era
um trabalhador da fazenda dos Badarós. Agora é que via que era apenas um
"jagunço". Que sua profissão era matar, que, quando não havia homens que
derrubar na estrada, ele não tinha nada que fazer. Acompanhava Sinhô mas
era para guardar a vida dele, era para baixar algum que quisesse balear o
coronel. Era um assassino... Essa fora a palavra que Sinhô Badaró
empregara a respeito de Juca, na conversa daquela tarde. Palavra justa para
ele também. Ainda agora que fazia ali senão esperar um homem para atirar
nele?
Estava sentindo alguma coisa por dentro, alguma coisa que era terrivelmente
dolorosa. Doía como uma ferida. Era como se o tivessem apunhalado por
dentro. A lua brilha sobre a mata silenciosa. Damião se lembra que pode
fazer um cigarro, assim terá alguma coisa em que se ocupar (TSF, p. 80–81).
(...)
222

(...) Ficaria desmoralizado, outros cabras não erravam a pontaria, quanto


mais o negro Damião! Sua pontaria era a melhor de toda aquela zona do
cacau. Nunca dera dois tiros para matar um homem. Bastou sempre com o
primeiro. Ficaria desmoralizado, toda a gente ia rir dele, até as mulheres,
até os meninos. Sinhô Badaró daria seu lugar a outro... Iria ser um
trabalhador como os outros, colhendo cacau, tocando burros, dançando na
barcaça para secar os caroços moles. Toda gente ia rir dele. Não, não podia.
Demais ia trair da mesma maneira a confiança de Sinhô Badaró. O coronel
precisava que Firmo morresse, quem tinha culpa era mesmo Firmo que era
tão cabeçudo (TSF, p. 82–83).

O Brasil possui uma história muito particular quando comparado aos demais países latino-
americanos, pois “para cá veio quase a metade dos africanos e africanas escravizados e
obrigados a deixar suas terras de origem na base da força e da violência” (SCHWARCZ, 2019,
p. 11). Essa violência, em suas mais variadas formas, mitigada e naturalizada enquanto prática
também nas terras do sem fim, soma-se a outros elementos de autoritarismo que confluíram ali
na organização da vida social e acaba por tocar o negro Damião no excerto anterior, que por
instantes se questiona sobre o seu fazer irrefletido, violento e naturalizado diante das breves
opções subalternas de trabalho e vida.

O que em comum existe por entre a maioria daquelas mulheres, dos trabalhadores do cacau,
jovens ou velhos, e os jagunços em TSF e SJI? Sua condição subalterna diante daquela estrutura
social? Sua submissão ao mando de coronéis? Sua classe? Sua cor? Esta categoria de análise
nos convida especialmente a refletir como “as consequências da escravidão não atingiram
apenas os negros (...). A libertação dos escravos não trouxe consigo a igualdade efetiva. Essa
igualdade era afirmada nas leis, mas negada na prática. Ainda hoje, apesar das leis, aos
privilégios e arrogância de poucos correspondem o desfavorecimento e a humilhação de
muitos” (CARVALHO, 2002, p. 53).

Embora os resquícios do escravismo ecoassem naquele distante e periférico Brasil rural de uma
cidade do interior do nordeste e se vinculassem de modo mais direto aos negros, do ponto de
vista da formação social cidadã, “um sistema como esse só poderia originar uma sociedade
violenta e consolidar uma desigualdade estrutural no país” (SCHWARCZ, 2019, p. 29), tendo
o sistema escravagista prejudicado a todos que, independentemente da cor e do gênero, se
223

encontrassem na base da pirâmide social e das relações de trabalho. Uma classificação racial
que nas Américas se assenta nas identidades raciais dos colonizados se perpetuou, destinando
aos não brancos ou não europeus, formas de controle do trabalho que se traduzem num universo
de práticas que não remuneram de modo algum ou remunera de modo irregular esse trabalhador
(QUIJANO, 2005).

Percebemos, assim, que a grande teoria que permeava as compreensões de mundo e escrita de
Jorge Amado, em TSF e SJI, não consegue explicar sistemas complexos e autônomos, de limites
temporais especiais como aqueles que o autor mesmo narra. O lócus de enunciação de Amado,
com a recontextualização de seu discurso, portanto, nos apresenta muito mais que luta de classes
e diferenças entre detentores do capital e trabalho. Com seu discurso nos permite pensar sobre
aqueles homens e mulheres normalmente impensáveis; aqueles homens e mulheres com suas
práticas, cotidiano, sociabilidades normalmente impensáveis. Amado, em seu discurso, tem a
dupla consciência que captura as subjetividades, as experiências e a diferença colonial de quem
vive a modernidade na colonialidade — uma consciência que se forma e se define com relação
a esse outro mundo, uma consciência que se percebe dupla, porque é subalterna (MIGNOLO,
2005). Portanto, estariam todos aqueles trabalhadores irremediavelmente presos ao visgo do
cacau?

De onde vinha mesmo aquele pinicar de viola na noite sem lua? Era uma
canção triste, uma melodia nostálgica que falava em morte. Sinhô Badaró
não se demorava nunca em refletir sobre a tristeza das músicas e das letras
das melodias que cantavam, na terra do cacau, os negros, os mulatos e os
brancos trabalhadores. Mas, agora, trotando no seu cavalo negro, ele sentia
que a música o penetrava e se recordou não sabe por que, daquelas figuras
do quadro que enfeitava a sala da sua casa-grande. A música devia vir de
dentro de uma roça, de uma casa qualquer, perdida nos cacaueiros. Era uma
voz de homem que cantava. Sinhô não sabia porque os negros perdiam uma
parte da noite pinicando os violões quando era tão curto o tempo que tinham
para dormir. Mas a música o acompanhava por todas as voltas da estrada,
por vezes era apenas um murmúrio, de súbito se elevava como se estivesse
muito próxima:
“Minha sina é sem esperança... É trabalhar noite e dia...”
(...)
224

Será que já estava maluco? A música, que voltou na curva da estrada, trouxe
novamente a lembrança daquela tarde. Sinhô Badaró se lembrou do quadro
na sala de visitas: a camponesa e os pastores, a paz azul, as gaitas que
tocavam. Devia ser uma música mais alegre, com palavras doces de amor.
Uma música para dançar, a moça tinha um pé no ar num gesto de baile. Não
seria uma música como essa que parecia música para enterro:
“Minha vida é de penado ... Cheguei e fui amarrado... Nas grilhetas do
cacau...”.
Sinhô Badaró procura enxergar para os lados da estrada. Deve ser de
alguma casa de trabalhador nas proximidades. Ou será de algum homem que
vai andando no atalho, a viola no peito, encurtando o caminho com a sua
música? Faz bem quinze minutos que ela acompanha a comitiva, falando da
vida nessas terras, do trabalho e morte, do destino da gente presa ao cacau.
Mas os olhos de Sinhô Badaró, olhos acostumados à escuridão da noite, não
divisaram nenhuma luz na redondeza. Só os olhos de presságio de um corujão
que piou gravemente. Devia ser algum homem que vinha por algum atalho,
o que cantava. Estaria encurtando o caminho com sua música. Estava
aumentando o caminho de Sinhô Badaró que ia para a fazenda (TSF, p. 225–
227).

Atribuímos essa dupla consciência às narrativas do autor ao recontextualizar o discurso de Jorge


Amado em nossas fontes, visto que não seria pertinente reduzir o discurso do autor, em TSF e
SJI, a uma compreensão reificada pelo marxismo tradicional que percebe a América Latina
como uma sociedade feudal ao considerar que seria possível reproduzir na periferia um
esquema clássico de desenvolvimento capitalista de centro (SEGRERA, 2005).

Os elementos discursivos apresentados por Amado nos impelem desconstruir a ideia de


modernidade expressa naquele espaço-tempo quando observamos a perspectiva de
modernidade por outros pontos de vista e com outros elementos que o autor nos oferta, sendo
indispensável perceber a modernidade enquanto um mito, caminhando, desse modo, para
superação de tudo que se pretende por modernidade (DUSSEL, 2005). Considerando que “a
emergência do racismo é, portanto, uma espécie de ‘troféu da modernidade’” (SCHWARCZ,
2019, p. 31), Amado contribui ao seu modo, particularmente em nossas fontes, para a
compreensão desse mito.
225

A construção das diferenças sociais no país, tendo a origem racial como marcador de base,
remonta de modo contundente à transição do Império para a República; um país moderno nesse
caso era um país que forjava o embranquecimento da população e demarcava o lugar do outro;
imagens como essas, persistentes, nos diz Schwarcz (2019, p. 32), “não terminam com a mera
troca de regimes, elas ficam encravadas nas práticas, costumes e crenças sociais, produzindo
novas formas de racismo e de estratificação”.

Costa (2007) realça que a ascensão social para o mulato se mostrava mais acessível do que para
o negro. Quanto mais escura a pele, mais estigmatizado seria esse trabalhador pelas
características raciais. Na virada do Século XX, “raramente se viam latifúndios em mãos de
gente de cor, sendo os proprietários de terras e minas, na sua quase totalidade, indivíduos de
cor branca (...). Em toda parte, no entanto, nos lugares onde havia brancos e gente de cor, os
primeiros representavam sempre a elite” (COSTA, 2007, p. 249). Na Ilhéus de TFS e SJI não
foi diferente.

A relação da história local com projetos globais se realiza em virtude da histórica dependência
entre nós e a matriz colonialista de poder, que ora denota elementos de expansão, ora denota
acentuação da dependência (QUIJANO, 2014), mas está sempre presente. Dentro de uma
estrutura genérica, os relacionamentos de dependência no capitalismo contemporâneo assumem
variadas formas, e nem todos os relacionamentos de dependência evidentemente são idênticos
(QUIJANO, 2014), tal como a organização da vida social em Ilhéus com suas peculiaridades.

Na América Latina, de modo diferenciado, a dependência é um elemento constitutivo das


sociedades, pois a dependência colonialista é sucedida pela dependência imperialista,
justamente quando a nação moderna forja sua nova legitimidade diante das velhas identidades
(GUERRA, 2003). Daí que a dependência histórica se expresse no caráter subordinado do lugar
que nossas sociedades ocupam nos relacionamentos com interesses metropolitanos e com suas
tendências de mudanças a cada momento. Portanto, em cada período, diante da natureza
subordinada das relações, altera-se a estrutura de poder interno de nossas sociedades de modo
a corresponder a novos interesses metropolitanos (QUIJANO, 2014). É por isso que “projetos
autoritários tem a capacidade de recriar o passado e obscurecer o papel das populações que
vivem e criaram outras histórias; não apenas aquela europeia e colonial” (SCHWARCZ, 2019,
p. 40).
226

Em Ilhéus, “comerciantes exportadores já chegaram à região com essa condição e viam a


mesma, como mais um espaço a ser explorado” (GUERREIRO DE FREITAS; PARAÍSO,
2001, p. 125). Nesse sentido, a inclusão de diferenciados agentes envolvidos no
desenvolvimento do capitalismo contribui para a narrativa descentralizada da história. Todavia,
o que se percebe é que a “periferia”, desde os tempos coloniais tem sido um manancial “tanto
de riquezas naturais como de trabalho barato” (CORONIL, 2005, p. 52), o que explicaria o fato
de o excedente produzido pela economia cacaueira na maior parte não retornar à região,
servindo de acumulação à economia de países como a Inglaterra e os Estados Unidos, que
estavam à frente dos negócios do cacau que saía de Ilhéus (GUERREIRO DE FREITAS;
PARAÍSO, 2001).

E é por isso que, como vimos na categoria de análise anterior, os exportadores avançaram de
modo estratégico e orquestrado sobre a unidade produtiva do cacau, manifestando, sob diversas
formas de atuação, a expansão do controle metropolitano mais direto dos setores de produção
e atividades econômicas em geral (QUIJANO, 2014), e, para isto, a posse da terra era essencial
naquele contexto. Isso porque aquele modelo de estado, espécie de estado oligárquico-burguês
(QUIJANO, 2014), com sua “velha República”, não mais atendia a dinâmica das relações
internacionais de fins da década de 1930 e era preciso dar lugar ao mito da modernidade. No
Brasil, o liberalismo esteve assim apenas à altura do nosso contexto (BOSI, 1992, p. 199). Nesse
bojo, novas identidades históricas ligadas à ideia de raça foram vinculadas à natureza de papéis
e lugares na divisão do controle do trabalho, impondo-se “uma sistemática divisão racial do
trabalho” (QUIJANO, 2005, p. 108).

Mas e as condições de vida e trabalho de todos aqueles trabalhadores subalternos se alteraram


com a ideia de modernidade que avançava sobre Ilhéus, seus novos modos e relações? Os feitos
da urbanização, no geral, não atraíram de modo direto as populações rurais, enquanto os
fundamentos da economia e da sociedade rural se alteraram lentamente (QUIJANO, 2014).

(...) A região do partido comunista, de que Ilhéus era cabeça, reunia no seu
seio, além de um agrônomo, de choferes, de um empregado no comércio, de
um sapateiro e um professor, a operários da fábrica de chocolate, do porto e
das estradas de ferro e de rodagem. Eram células fortes, capazes, valentes e
combativas, mas não tinham ainda conseguido conquistar os trabalhadores
227

das fazendas, cuja ignorância era tamanha que muitos deles não sabiam
sequer se estavam na República ou na monarquia. Alguns pensavam que
Pedro II reinava ainda no Brasil. Nunca chegara a funcionar nenhuma célula
de campesinos, como era o ardente desejo dos dirigentes. Um deles, certa
vez, passara seis meses numa fazenda como trabalhador de enxada e reunira
com dificuldade quatro ou cinco elementos. Mas, apenas voltou, a célula
deixou de trabalhar. Aqueles homens que não sabiam ler nem escrever, que
vinham das lutas pela conquista da terra, muitos deles um misto de
camponeses e assassinos, tinham certa apatia diante da miséria que os
dobrava como escravos. Só uma palavra chegava a interessá-los vivamente:
terra (SJI, p. 66–67).
(...)
Sérgio noticiou:
- Karbanks e Schwartz já estão em luta. Os integralistas combatendo Carlos
Zude...
- Está vendo? De um lado os alemães, do outro os americanos. O tempo deles
também vai acabar, vai começar o nosso tempo, companheiro Sérgio...
Saíram, andavam para os lados do cemitério. Lá embaixo eram as luzes da
cidade. O poeta Sérgio Moura via o dragão sobre Ilhéus, de garras
estendidas, cem bocas famintas. E pensava que, se na véspera havia
conversado com o passado, agora estava conversando com o futuro. Joaquim
falava com convicção, a voz profunda que parecia chegar do coração pleno
de fé:
- Primeiro a terra foi dos fazendeiros que conquistaram ela, depois mudou
de dono, caiu na mão dos exportadores que vão explorar ela. Mas um dia,
companheiro, a terra não vai ter mais dono...
Sua voz subia para as estrelas, cobria as luzes da cidade:
- ... nem mais escravos… (SJI, p. 320–321).

Os oprimidos no discurso amadiano nesta sua primeira fase, que se liga mais densamente à
literatura proletária e onde se localizam TSF e SJI, esboçam, para além de possíveis
reducionismos de suas multifacetadas narrativas, que o centro de sua utopia revolucionária
(ROSSI, 2004; 2009) é a presença vital de marcadores étnicos raciais. A vida socialmente
organizada no sul-baiano — que se construiu com o florescimento da lavoura de cacau — tinha,
228

por classe subalterna àquela matriz de poder, sertanejos, analfabetos, homens e mulheres,
sobretudo de pele negra. Micronarrativas como estas que encontramos em TSF e SJI, “relatadas
a partir das experiências históricas de múltiplas histórias locais (as histórias da
modernidade/colonialidade)” (MIGNOLO, 2020, p. 47), jamais conheceríamos por meio de
outras formas hegemônicas de conhecimento.

(...) Diziam que era o visgo do cacau mole que agarra nos pés de um e nunca
mais larga. Diziam as canções cantadas nas noites das fazendas… (TSF, p.
229).
229

CONSIDERAÇÕES FINAIS. O LADO OBSCURO DA MODERNIDADE NA RAINHA


DO SUL: A COLONIALIDADE NAS TERRAS DO SEM FIM
230

A Ilhéus de Jorge Amado, diante da possibilidade de recontextualização do discurso amadiano


a partir das compreensões que emergem do pensamento Descolonial (QUIJANO, 1999; 2014;
MIGNOLO 2005; 2007; 2020), apresentou-nos uma série de elementos não perceptíveis a
priori. Os imperativos organizacionais e ideológicos de origem ocidental atravessam as
narrativas e inscrevem aquela cidade do sul de um estado nordestino brasileiro, como uma
cidade periférica do sistema-mundo colonial/moderno.

É possível dizer, portanto, com base em Mignolo (1993), que, em nossas fontes, estamos diante
de um duplo discurso —– o ficcionalmente verdadeiro e o verdadeiramente ficcional —, pois,
no romance amadiano, “imitou-se” o discurso antropológico e historiográfico quando o autor
introduz marcadores sociais e históricos importantes pra situar a narrativa no tempo e no espaço,
a exemplo do cenário político na Bahia ou do engrandecimento da cidade em receber um
bispado.

A cidade e a experiencia urbana tornaram-se inevitáveis para os literatos (GOMES, 1999),


estando a cidade real sempre presente na literatura (SARLO, 2007); e, portanto, a Ilhéus de
Amado com seus contrastes entre o rural e urbano se estruturou como um dos seus principais
universos temáticos (LUCAS, 1997).

E como vimos, a urbanização de Ilhéus refletia a potência econômica e os dilemas sociais de


toda uma região, mas foi exatamente no campo que se organizaram relações sociais
diferenciadas e que definem toda aquela sociedade sul-baiana. Na Ilhéus do discurso amadiano,
o campo gera a cidade, mas é a cidade que controla e domina o campo, nas perspectivas sociais,
políticas e militares conforme nos indica Risério (2012).

Aquela cidade do sul da Bahia em fins do Século XIX, localizada na periferia da periférica
América Latina, se urbanizou e passou a figurar no mercado internacional de cacau vinculando-
se a relação de dominação política, social e cultural do sistema mundo colonial/moderno.
Dominação que chamamos de colonialismo (QUIJANO, 1992).

Nessa perspectiva, as seis categorias de análise que emergiram das fontes, nos mostraram de
modo articulado, interconectado e imbricado, que o discurso amadiano com seu lócus de
enunciação privilegiado; com narrativas, personagens e contextos socialmente localizados e
localmente situados em Terras do Sem Fim e de São Jorge dos Ilhéus, ambicionou fazer ou
231

mesmo, pode traduzir-se enquanto “reação ao discurso e à perspectiva hegemônica”


(MIGNOLO, 2020, p. 11).

Sendo que a primeira categoria de análise, Espaço original e o desejo de posse: violência e
territorialização no novíssimo mundo sul-baiano, revela, através das narrativas amadianas, que
a região Sul da Bahia mesmo diante das muitas tentativas de ocupação do solo e potencialização
de atividades econômicas, durante todo o Século XIX ainda compreendia área pouco povoada
e dotada de grande abundância de terras, com considerável capacidade para expansão agrícola
em seu montante de terras devolutas. Assim, Amado estrutura sua narrativa a partir daquele
espaço original com suas ancestralidades, suas lendas, mitos, mistérios e desafios naturais a
serem desbravados por aqueles que ambicionavam o triunfo político e social através da
conquista das matas do Sequeiro Grande.

As terras do sem fim assistiram o fortalecimento de superproprietários através da ocupação de


terras de modo arbitrário, da concentração da produção e da crescente influência sócio-política
e econômica daqueles que passariam a ser conhecidos por coronéis; enquanto isso se alterava o
perfil desconcentrado da produção dos primeiros momentos do cacau na região. A oferta de
mão de obra na região se multiplicou, foi grande a mobilização de contingente de pessoas em
busca da riqueza embrionária que ali se esboçava (BARBOSA, 2013).

Aqueles grupos que protagonizavam essa disputa, os quais se tornariam simplesmente, os


“donos da terra”, tinham o sul da Bahia como um novo mundo a se desbravar, explorar o solo,
impulsionar a urbanização de Ilhéus, promover os povoados, estabelecer parcerias partidárias,
exercer o domínio político e econômico; e foram se identificando simplesmente como “coronéis
do cacau”. Fundando ali novas formas de sociabilidade, vida socialmente organizada e relações
hegemônicas de poder que marcariam toda uma cultura e sua sociedade. O poder e controle do
coronelato se territorializa, e nada naquela região aconteceu à revelia do espaço (SOUZA,
2018a), surge a burguesia cacaueira.

Na categoria seguinte, Das riquezas, das venturas e falácias – rumo ao sul, caminhos se cruzam
e nem tudo que reluz é ouro, o discurso Amadiano aqui recontextualizado, sinaliza que a corrida
pelos frutos de ouro se deu de modo desigual para os variados grupos. Aquele eldorado sul-
baiano, recebeu migrantes oriundos do sertão nordestino e de zonas empobrecidas do estado da
Bahia; pessoas de origens sociais diversas se destinaram à Ilhéus em busca de “fazer a vida”,
232

desde trabalhadores e trabalhadoras de todo ofício, mascates; até advogados, comerciantes,


médicos; todos em busca de novas oportunidades (GUERREIRO DE FREITAS, 1979).

Todavia, para a maioria daquelas pessoas com suas múltiplas origens, que seguiram para Ilhéus
em busca da possibilidade de adquirir riqueza com rapidez (GUERREIRO DE FREITAS;
PARAÍSO, 2001), a ascensão social não esteve acessível e suas expectativas foram duramente
frustradas. Para grande parte dos migrantes restou o trabalho nas lavouras e a lida cotidiana
com o cacau, em situações de trabalho das mais adversas e sub-humanas.

Tendo Jorge Amado em TSF e SJI, nos apresentado na prática, o padrão colonial de poder que
reverberou também na formação socio histórica da Ilhéus dos coronéis; e em torno da
monocultura do cacau, uma sociedade regional que se organizou com um processo de
urbanização que realça as profundas contradições que inaugurou nas terras do sem fim, variadas
práticas e relações sociais, singulares.

Na sequência, encontramos na Organização da vida urbana – Ilhéus, o cacau e o ideário de


progresso, as mudanças que a cidade viu acontecer de modo acelerado com o raiar do século
XX; Ilhéus confirmando-se como central ao processo de urbanização tonificada com a
introdução do cacau na economia de exportação e na bolsa de valores de Nova York, inaugura
um tempo de nova ordem política-administrativa.

Busca-se a superação daqueles modos de vida tidos incivilizados de outrora, quando das
disputas violentas pela ocupação das terras devolutas do Sequeiro Grande; e para tal a cidade
incorporava e organizava hábitos europeizados, consubstanciados na imagem de Paris, do Rio
de Janeiro e de Salvador. Enquanto que a riqueza de uma minoria se evidenciava, sobressaiam
novos palacetes, lojas luxuosas e hábitos de consumo que transcendiam a partir do cacau.

A ideia de progresso estava por toda parte, obras de alargamento das ruas e avenidas, ampliação
da cobertura de rede de luz elétrica, serviços de comunicação e transportes, inclusive
pleiteavam-se para as fazendas, o desenvolvimento de novas técnicas de produção que
assegurassem a qualidade das amêndoas, mesmo nas épocas chuvosas.

Ilhéus como o maior centro de negócios do interior do Estado e principal da economia do cacau
no país, esteve vinculada à geração de valores orgulhosamente tidos como burgueses, mas ao
233

mesmo tempo, a outros valores e práticas, diretamente associados a sociedades agrárias


aristocráticas, como o culto ao lazer, ao espírito rotineiro, o baixo apreço ao progresso
tecnológico e científico, a rede de relações patrimonialistas, a família patriarcal e a tendência à
ostentação. Pensando numa perspectiva de plano para a cidade, o movimento atravessado por
Ilhéus denota duplo comando sobre o espaço — o comando estético e também ideológico
(SARLO, 1993). Daí, a ideia de modernidade foi se configurando como algo positivo e
defendido por todos que orbitassem naquela região, afim de romper com algumas tradições
consideradas antiquadas, desde que isto não representasse uma ameaça a manutenção do status
dos coronéis do cacau.

Ilhéus, portanto, a partir do discurso amadiano, nos apresenta aspectos centrais de seus
processos históricos mais gerais e do processo de urbanização de modo mais específico, com
nuances de interdependências externas e internas. Esse conjunto de significados que emanam
de Ilhéus, somente fazem sentido quando observados à luz de sua própria sociedade e recorte
temporal, confirmando que o fenômeno urbano se manifestou de modo distinto nas variadas
cidades latino-americanas.

A categoria seguinte, nos traz o Coronelismo do cacau e suas histórias. Aqui tratamos deste
fenômeno imprescindível para compreender as relações políticas e econômicas que
atravessaram toda a Primeira República (PINTO, 2017) e mais que isto, o coronelismo
compreende um fenômeno que ganha contornos próprios no sul da Bahia e marca um dos seus
principais elementos de diferenciação, uma marca específica da distribuição dos indivíduos no
espaço social (QUEIROZ, 1975) da região.

Enquanto sistema sociopolítico, o coronelismo se estruturou em Ilhéus a partir do poder


privado, constituído sobretudo por donos de terras; a função eleitoral do coronelismo era central
num período que o eleitorado rural era decisivo, tendo, portanto, esses líderes eleitorais,
fundamental importância para a unidade partidária, para o processo sucessório e para o
preenchimento de cargos legislativos (FALCÓN, 2010) em todas as esferas de poder.

Antes mesmo do lançamento de obras seminais que conceituaram e teorizaram sobre o


coronelismo, o discurso amadiano nos apresenta com riqueza de detalhes, as nuances do
comportamento excêntrico dos coronéis do cacau, suas relações de poder econômico e sócio-
político, além das sociabilidades e a da rede de influência que organizaram. O cacau alimentava
234

a manutenção daquela estrutura tradicional, enquanto que os ares de modernidade emanados do


processo de urbanização de Ilhéus, passaram a romper com as antigas formas de se organizar e
viver na região. A amplitude das engrenagens capitalistas que se materializava na região como
prática e discurso da modernidade, figurou como apelo para os novos tempos de Ilhéus, como
saída para aquela imaturidade regional e provinciana (DUSSEL, 2005).

Encontramos, pois, em Caminhos pro mundo e as relações de poder: por entre coronéis,
exportadores, tradicionalismo, modernidade, o ponto mais evidente da colonialidade do poder
(QUIJANO, 2002) no sul da Bahia, expressos em TSF e SJI.

As casas exportadoras marcaram ativamente a história da região do cacau na Bahia e atuaram


desde sempre na organização dos negócios do cacau mesmo antes da existência da primeira
agência bancária na região (GUERREIRO DE FREITAS, 1979). A natureza dos negócios do
cacau inclusive – produto voltado para fins de exportação –, impulsionaram a expansão dessas
casas comerciais com o aumento da sua produção (FALCÓN, 2010).

Exportadores, na grande maioria estrangeiros, passaram a imprimir na vida cotidiana de Ilhéus


novos hábitos de consumo, a ideia de internacionalização do seu comércio, a ideia de integração
de Ilhéus com outros grandes centros, impulsos para a modernização do sistema de transporte
de passageiros e do próprio cacau, atuando como porta-vozes das novas exigências quanto à
qualidade das amêndoas, e das oscilações das taxas cambiais e preço internacional do cacau.

Enquanto isso, a classe social local, economicamente dominante, permanecia com pequena
representatividade política e baixo reconhecimento nos centros de decisões estaduais e
nacionais; os coronéis do cacau também não se especializaram na compreensão dos detalhes do
jogo econômico que envolvia o seu produto. Assim, embora exportadores e coronéis
compusessem a burguesia cacaueira, havia entre eles muitos dissensos e diferenças.

Ilhéus, uma cidade do interior de um estado do nordeste, de um país igualmente considerado


periférico, em virtude de sua atividade econômica com direta interligação ao capital
internacional, esteve à mercê dos reveses da geopolítica mundial, e, portanto, vivenciou de
modo absoluto, mudanças que o capitalismo sofreu durante a primeira metade do Século XX
com as novas feições do imperialismo no mundo. O crescimento de Ilhéus esteve intimamente
dependente da atuação dos exportadores e da demanda interna crescente do mercado americano
235

(GUERREIRO DE FREITAS, 1979). Nesse sentido, o processo de urbanização de Ilhéus


esteve, como dissemos, de modo não autônomo, vinculado a relações de dependência daquela
região agroextrativista com o resto do mundo capitalista (QUIJANO, 2014). E a cidade, como
síntese de um movimento regional, deixa transparecer através do seu processo de urbanização,
as alterações econômicas urbano-rurais com a integração de suas formas tradicionais
(QUIJANO, 2014) à outros processos, que emanam cada vez mais dependência. E é por isto
que a vida urbana moderna em Ilhéus, esteve relacionada ao modelo dominante das sociedades
urbanas de áreas metropolitanas (QUIJANO, 2014), tendo como grande evidencia disto, os
conflitos que se estabeleceram entre exportadores – que conheciam as regras do jogo econômico
do mercado internacional do cacau; e os coronéis, que dominavam a produção local das
amêndoas.

Portanto, esta categoria nos evidenciou, através das práticas locais e ações estrategicamente
planejadas pelo grupo de exportadores notadamente em SJI, aquilo que Quijano (2014) trata
por sociedades dependentes à interesses de um sistema total de relações de dependência;
sistema que reúne a produção e o mercado. Toda uma estrutura de dominância de um setor
sobre o outro, do mercado sobre a produção, do global sobre o local, encontramos na
recontextualização do discurso de Jorge Amado em TSF e SJI.

E como reflexo desse mesmo sistema de dependência (QUIJANO, 2014), encontramos na


última categoria de análise, Organização social do trabalho subalterno (a culpa é do visgo do
cacau?), compreensões de como o projeto de modernidade se manifestava por entre os
trabalhadores subalternizados naquela hierarquia social.

A crescente produção do cacau, o sucesso vindo da negociação internacional das amêndoas, a


urbanização da cidade e o enriquecimento tanto de coronéis quanto de exportadores, não
beneficiava em nada (SOUSA, 2001) toda uma leva de pessoas que estruturavam aquela
sociedade sul-baiana com o fruto do seu trabalho.

As variadas hierarquias globais que se estabelecem na América Latina se apresentam na prática,


de formas indistintas e emaranhadas (GROSFOGUEL, 2008a); e essas hierarquias se
reproduzem igualmente em Ilhéus quando da coexistência das diversas formas de trabalho que
reúnem na cultura do cacau, desde o trabalho insuficientemente assalariado até o trabalho
compulsório em troca de moradia e alimentação, redundando no crescente lucro dos donos das
236

fazendas pela produção de excedentes; a região cacaueira contou, de acordo com nossas fontes,
com uma organização do trabalho estruturada em torno de formas coagidas e autoritárias; com
uma divisão do trabalho peculiar e considerado central àquele modelo, com a supervalorização
do fazer de capatazes e jagunços; e de modo oposto, periférico, inferiorizado e descartável,
estava o fazer daqueles que compreendiam a maioria absoluta de trabalhadores do cacau – os
trabalhadores rurais alugados.

Aqueles trabalhadores subalternizados dentro da ordem sul-baiana, ordem que se inscrevia de


maneira mais ampla na perspectiva da diferença colonial – dentro do sistema mundo
colonial/moderno –, não dispuseram de registros escritos ou mesmo registros oficiais que
testemunhassem a favor de si; nessa perspectiva, é que, tais grupos, com suas histórias
ignoradas, são comumente considerados espécies de povos sem história (MIGNOLO, 2020);
mas são exatamente as histórias dessas mulheres e homens, as relações de poder às quais se
subordinaram e o modo de vida que lhes foi possível construir; que depõem contra as versões
hegemônicas de toda produção social ligada ao sul da Bahia.

O racismo e o patriarcalismo que emergiam das relações no espaço sul baiano, originadas da
estrutura colonial de poder (QUIJANO, 1992), ali se multiplicavam em outras discriminações
e seguiram lastreando diferenças sociais e raciais, por exemplo; manifestadas nas ações de
coronéis, exportadores e, de modo ampliado, nas práticas sociais que permeavam a maioria das
relações, manifestadas, sobretudo, na vida que socialmente se organizou em torno dos
trabalhadores subalternos, pois Amado promove em seu discurso o “diálogo” assimétrico que
se estruturou em torno da dominação e exploração (DUSSEL, 2016) naquelas terras do sem
fim.

Haveremos de compreender que “ninguém é excluído porque ele ou ela é pobre. Empobrece
porque foi excluído” (MIGNOLO, 2020, p. 237), sendo que esta perspectiva se evidencia em
nossas fontes diante das bases sócio-históricas sob as quais se deu a organização social e a
estruturação produtiva do cacau. Há ali, ainda, diferenças de gênero, étnica e geracional, por
exemplo, compreendidas como espécies de subalternidades interiores (MIGNOLO, 2020) ao
sistema; basta relembrarmos por exemplo, a condição narrada de vida da maioria das mulheres
na região cacaueira em TSF e SJI.
237

De forma mais ampla, lembramos que o discurso amadiano, contextual como todo discurso,
carrega consigo as compreensões de sua época, bem como a leitura ideológica do autor no
momento da escrita; estando o autor, susceptível, em certa medida, aos equívocos daquele que
Ribeiro (1968) tratou por consciência ingênua. Todavia sua escrita engajada que, ainda em
Terras do Sem Fim e São Jorge dos Ilhéus se definia como literatura proletária, imbuída do
anticapitalismo e da luta de classes expressos através de seu marxismo, revela, para além da
alienação dos trabalhadores e da reificação do capital, uma variedade de relações sociais
assimétricas que, com as peculiaridade e características que reúne, são relações únicas e não
seriam mesmo encontradas noutros locais. Amado, portanto, como vimos, ao escrever das
margens e sobre as margens, contribui com o pensamento de fronteira ao narrar histórias locais,
que se confrontam com projetos globais (MIGNOLO, 2017; 2020).

Com relação ao marxismo inclusive, Dussel (2016), a partir de uma leitura cuidadosa e
arqueológica de Karl Marx, apresenta-se como crítico do marxismo e de suas aplicações em
estudos na América Latina. Embora diante da inquestionável contribuição do marxismo para as
análises da economia capitalista, avalia que o marxismo obscureceu a localização deste “outro”,
pois, ao pensar em termos de totalidade, tornou-se, no geral, menos consciente de sua alteridade
(MIGNOLO, 2008). E embora o discurso amadiano estivesse ideológica e esteticamente
vinculado ao marxismo naquela sua primeira fase do discurso engajado (ROSSI, 2009), no
sentido da alteridade, realça características e as diferenças daquelas experiências culturais dos
trabalhadores subalternizados no espaço sul-baiano; justamente quando destaca seus traços
diacríticos, a cor de sua pele, seus hábitos adquiridos, suas canções, sua linguagem, suas lendas,
suas memórias dos locais de origem e toda sorte de aspectos que emergem daquelas histórias
coloniais fragmentadas (MIGNOLO, 2020). Tendo, portanto, a literatura amadiana em nossas
fontes, quando recontextualizadas à luz dos Estudos Descoloniais, superado em alguma
proporção as limitações apontadas por Dussel (2016) quanto às aplicações dos escritos
marxistas à realidade socio econômica e cultural da América Latina; pois como dissemos, Jorge
Amado eclode a perspectiva de classe, e vai além. O negro e a mulher são protagonistas em sua
obra (RIBEIRO, 2012).

A literatura como fonte de pesquisa, neste caso, gera conhecimentos permitidos a partir de
diferentes loci de enunciação – para além das compreensões acadêmicas, sendo possível,
“aprender com” as narrativas de “outros” subalternos (MIGNOLO, 2020). Considerando
justamente que epistemologias liminares fazem emergir “das feridas das histórias, memórias e
238

experiências coloniais” (MIGNOLO, 2020, p. 64), as narrativas de Amado localizam o “outro”,


aquele que se apagava diante das nuances da organização política e social de uma cidade; da
Ilhéus que se deslumbrava com a riqueza e fama internacional que, por décadas, a identificou.
Este “outro”, traduzido, sobretudo, no grupo de personagens de trabalhadores da lida direta com
o cacau, era nada mais e nada menos que milhares de homens e mulheres que somavam
numericamente a maior parte da população (SANTOS, 1957); predominantemente eram
negros; a cada safra sujeitavam-se de fazenda em fazenda, à relações sociais assimétricas com
coronéis quase sempre autoritários; eram subalimentados; analfabetos; precariamente alojados;
não remunerados; submetidos ao trabalho árduo e insalubre; expropriados pelas contas no
armazém da fazenda; amedrontados pelos capatazes; desvinculados de seus núcleos familiares;
destituídos de seus sonhos e afetos (CRUZ, 2012; FALCÓN, 2010; GUERREIRO DE
FREITAS e PARAÍSO, 2001; HEINE, 2004; LEEDS, 1957; MAHONY, 2007; PINTO, 2020;
SANTOS, 1957; SOUSA, 2001). Quanto conhecimento subalterno pode ter sido excluído,
omitido e silenciado (MIGNOLO, 2020), dentro da organização do viver em torno daqueles
frutos de ouro?

O “aprender com” (MIGNOLO, 1993; 2020) o loci de enunciação do discurso de Jorge Amado,
nos permitiu refletir, construir conhecimento e gerar teoria a partir de suas próprias histórias,
memórias, cultura, ideologia; rompendo, portanto, com um ciclo de reprodução de
compreensões subdimensionadas e autorreferenciadas em visões de outros grupos, de grupos
de outros lugares. Diferentemente, teorias itinerantes como as de Leeds (1957), que viajavam
do Norte para o Sul (MIGNOLO, 2020), não nos permitem uma leitura a partir daquelas
perspectivas subalternas como fez Jorge Amado, pois subalterno não compreende uma
categoria de estudo, e sim uma perspectiva dentro da colonialidade; estando essa perspectiva,
empenhada, não em compreender as organizações ou ações sociais em si, como fez os estudos
de Leeds (1957) na zona cacaueira do estado, mas sim em perceber as suas relações de
obediência a regras coloniais diante daquelas formas de dominação estruturadas pela ideia de
modernidade.

O imaginário “hegemônico” da intelligentsia brasileira e suas percepções ainda


predominantemente eurocêntricas (RIBEIRO, 1968) sobre as relações sociais no país tornam o
discurso de Jorge Amado ainda mais diferenciado para a década de 1940, época de escrita de
Terras do Sem Fim e São Jorge dos Ilhéus; justamente por esboçar e fornecer ao leitor, de
239

dentro do local subalterno da América Latina, nuances críticas daquele sistema mundial
colonial/moderno.

Refletir sobre as próprias condições geoistóricas e coloniais (MIGNOLO, 2020), deveria ser a
condição necessária para o que Ribeiro (1968) trata por ruptura com a consciência “ingênua”
por parte da intelectualidade brasileira, refém de uma realidade colonial dependente (DUSSEL,
2016). E essa ruptura no Brasil teve lugar inicialmente, no campo da literatura, com o
surgimento da literatura regionalista na década de 1930 com sua crescente denúncia social.
Movimento no qual Jorge Amado teve participação central.

Haveremos de recordar que a construção do sistema colonial/moderno (MIGNOLO, 2020),


colonizou e enrijeceu fronteiras territoriais, mas também epistêmicas, e nesse sentido então, o
pensamento liminar amadiano é concebido a partir da compreensão e do reconhecimento dessa
diferença colonial, que nos permite incorporar, a partir das margens, sua literatura; uma forma
de conhecimento considerada subalterna, numa visão hierárquica de saberes (MIGNOLO,
2008; 2020). O discurso amadiano em nossas fontes e a recontextualização desse discurso à luz
dos Estudos Descoloniais, nos permitiu a produção de conhecimento com novas direções e
perspectivas de se poder conhecer (QUIJANO, 1992).

A partir do discurso amadiano é possível afirmar que a zona cacaueira da Bahia com a atividade
econômica que ali se desenvolveu, com a formação social que ali se construiu e com as
sociabilidades que ali se organizou; que àquelas pessoas estavam, em múltiplos aspectos,
ligadas diretamente ao resto do mundo. Residia na ideia de que somente haveria salvação para
a região, dentro do desenvolvimento, e este modelo de desenvolvimento, uma condição central
para se atingir a modernidade (MIGNOLO, 2017, 2008, 2005), eis aqui um ponto central de
inflexão, através do qual, reconhecemos a matriz de poder colonial refletida também naquela
Ilhéus de Jorge Amado, pois a cidade viveu o afã do desenvolvimento via internacionalização
de sua economia, e atravessou a falácia de que as almejadas, modernização e urbanização
trariam benefícios para a sociedade como um todo.

Nesse sentido, no discurso de Amado, vão se compondo ciclos sociopolíticos e estruturais


daquela sociedade — o desbravamento do espaço natural, a ampliação da lavoura monocultora
do cacau para o regime de exportação, a gestação das cidades da região, a urbanização de Ilhéus,
ascensão política dos coronéis, o Estado patrimonial burguês, os ideais de progresso, a presença
240

estrangeira nos negócios creditícios da região, o cacau indexado na bolsa de Nova York, a
subida dos preços, a queda nos preços, o endividamento dos coronéis, a ascensão do capital
comercial das empresas exportadoras. O contexto e o conteúdo mudam, mas a lógica
colonialista é contínua. Pois, de modo mais ampliado, controle e administração fazem parte de
uma mesma lógica, da colonialidade (MIGNOLO, 2017a).

Sinal disto é que, mesmo a terra mudando de mãos com um número crescente de hipotecas das
fazendas, o que ampliou a quantidade de propriedades vinculadas a grupos de comerciantes
exportadores — em sua maioria europeus e norte-americanos — fez emergir naquela realidade
mais um aspecto da diferença colonial e dos projetos globais (MIGNOLO, 2015; 2020).
Destaca-se esse ponto porque, embora a dinâmica do processo produtivo ganhasse outros ares,
com mais técnica para ampliar a produção do cacau e a qualidade de sua amêndoa, a situação
do trabalho na lavoura tornar-se-ia mais excludente, aumentando a desvinculação desse
trabalhador com aquela atividade produtiva — o deslocamento daqueles trabalhadores
subalternos seguiria rumo às áreas urbanas da região.

Após a realização da Análise Crítica do Discurso (ACD) e da recontextualização do discurso


amadiano em Terras do Sem Fim e São Jorge dos Ilhéus, de modo resumido, podemos destacar
alguns indícios da descolonialidade (ALBÓ, 2010; DUSSEL, 2016; MIGNOLO 2007a; 2020;
WALSH, 2008), em nossas fontes, tais como: alteridade com a construção simbólica quanto
aos interesses e característicos modos de ver e sentir daqueles trabalhadores; exterioridade, ao
fazer emergir nas narrativas a opressão causada pelo sistema nos trabalhadores rurais, mas
também nas relações entre homens e mulheres, entre coronéis e esposas, entre a cidade e suas
vilas, nas obrigações do jagunço em usar da violência de modo irrefletido, no mando de
capatazes sobre os demais trabalhadores; interculturalidade, com os sinais de que aquela nova
fase do imperialismo que se manifestava com as ações dos exportadores seria apenas mais uma
etapa dentro do sistema, e que esta fase seria superada; pluriversalidade, quando se reconhece
no texto a existência de outros saberes, tradicionais, com seus modos de curar doenças como
aquelas praticadas pelo negro Jeremias e que estava para além da medicina “moderna” em
muitos momentos; e, por fim, o empoderamento e a liberdade, através das estratégias
discursivas que, em alguma medida inspiradas na militância de esquerda, sinalizavam para um
processo sociopolítico gradual de consciência daqueles trabalhadores subalternos, oprimidos
em sua condição de inferioridade, que, ao se verem sem acesso à terra, dispensados aos milhares
pelos novos proprietários das fazendas; sem opção de emprego e diante da fome que imperava,
241

marcham para a cidade mais próxima em grupo, desejosos de serem atendidos e acolhidos com
soluções pela prefeitura de Itabuna, pois haveria de chegar o dia em que “a terra não vai ter
mais dono... nem mais escravos…” (SJI, p. 321).

Assim, após percorremos este itinerário de pesquisa e tendo como farol para nossa construção
o interesse em perceber, de que forma a modernidade se apresenta em contextos periféricos; é
possível afirmar que a modernidade, compreende uma narrativa complexa, e que tendo a Europa
como ponto de partida, construiu a civilização ocidental e sim, esconde o seu lado mais
sombrio: o da colonialidade (MIGNOLO, 2017a). A colonialidade é constitutiva da
modernidade — não existindo, portanto, modernidade sem colonialidade. E existem dimensões
ocultas dessa modernidade tanto no âmbito da economia como no conhecimento, sendo a
dispensabilidade ou o caráter descartável da vida humana (MIGNOLO, 2017a), conforme
vimos na Ilhéus de Amado, a mais perversa prática dentro dessa lógica.

Ilhéus, a pujante Rainha do Sul, de fama internacional e potência econômica com


preponderância na balança de exportações do país; de vida metropolitana, embora cidade do
interior; lugar de grande progresso; terra de muitas oportunidades; terra dos frutos de ouro.
Ilhéus, mais uma cidade da periferia colonial no novo mundo.

Mas então, o que faz de Ilhéus, Ilhéus? Seus bastidores, suas gentes grapiúnas, suas terras do
sem fim, dirão. E Jorge Amado nos auxilia na compreensão do seu lado mais oculto quando
nos apresenta detalhes da formação sócio-histórica do espaço social sul-baiano, seu cotidiano e
urbanização, suas relações econômicas e sociais assimétricas, isto é, seu padrão colonial de
poder.

Aqui exploramos o contexto de elaboração do discurso amadiano, o contexto de ambiência das


suas narrativas e buscamos não perder de vista o seu discurso que é literário, mas sobretudo
sócio-histórico numa percepção descolonial de escrita. Em nossa compreensão, Jorge Amado
operou nas margens e nos oferta níveis analíticos preciosos, que podem ser eficazes no
reconhecimento dos processos de colonialidade embutido na ideia sedutora da modernidade;
nos auxiliando no sentido da descolonização e libertação da matriz colonial.

O desejo de posse dos Badaró, os conchavos políticos de Horácio da Silveira, a saudade de


Ivone, os arroubos de Margot, a esperteza de Capitão, a coragem de Don'Ana, o arrependimento
242

do Negro Damião, a desilusão de Ester, a vida blasé de Julieta Zude, a especulação de Karbanks,
Carlos Zude, Ribeiro & Cia., dos Rauschning, o pertencimento de Raimunda, as ilusões de
Antonio Vitor, a leitura de cenário de Sérgio Moura, o desejo de liberdade e justiça de Joaquim,
entre outras subjetividades entremeadas, nos confirmam o quanto é mesmo impossível
planificar singularidades; e o viver socialmente organizado naquela Ilhéus do discurso
amadiano nos mostra exatamente isto.
243

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