Artigo Inconsciente Familiar
Artigo Inconsciente Familiar
Artigo Inconsciente Familiar
5 DE JULHO DE 2015
Por Olavo de Carvalho
O psiquiatra e humanista húngaro L. Szondi passou a vida tentando saber o que
impedia a liberdade interior do Homem. Ele descobriu que as figuras dos antepassados
permanecem vivas no inconsciente do indivíduo, forçando-o a repetir seus
comportamentos e impedindo-o de escolher sua própria vida. Talvez o símbolo mais
popular da injustiça seja o lobo da fábula, que pune o carneiro pelos crimes hipotéticos
de seus pais, avós ou bisavós. No entanto, cada um de nós carrega no coração um lobo
que não descansa enquanto não pagamos com fracassos, doenças e humilhações, até
o último erro e a última ignomínia real ou imaginária de nossos antepassados. Isso pode
parecer uma simples metáfora, mas é uma tese rigorosamente científica. É a teoria
básica da Análise do Destino (Schicksalsanalyse), escola psicológica criada pelo
psiquiatra e humanista húngaro L. Szondi. Embora pouco conhecida no Brasil, a Análise
do Destino é um dos mais originais desenvolvimentos da teoria psicanalítica depois de
Freud, Jung e Adler.
Szondi, que foi professor da Escola Superior de Psicopedagogia de Budapeste até que
a invasão nazista o obrigasse a fugir para a Suíça (onde continua ativo aos 84 anos),
passou a vida tentando responder a uma das questões mais dramáticas já formuladas
a respeito da condição humana: por que as pessoas quase nunca conseguem agir da
maneira que conscientemente desejam, e acabam fazendo outras coisas, que não
tencionavam e que até procuravam evitar? Existe alguma força oculta mais poderosa
do que a vontade? Existe algo assim como um destino? Será que o Homem nunca pode
ser livre? Em resposta a essas perguntas, Szondi criou uma grandiosa concepção
psicológica e antropológica onde uma das chaves mais importantes é justamente a
pesada influência dos antepassados sobre o destino, algo assim como um carma
familiar que acompanha os indivíduos através da existência, levando-a, freqüentemente,
a um desenlace trágico. Analisando milhares de árvores genealógicas de cidadãos de
Budapeste (onde era também diretor do Instituto de Genealogia), Szondi observou que
determinados distúrbios psíquicos, sociais e somáticos pareciam repetir-se de geração
em geração, como se uma compulsão misteriosa arrastasse os indivíduos à repetição
eterna dos aspectos mais negros na vida de seus antepassados.
O indivíduo carrega uma herança deixada por todos os seus antepassados. As figuras
dos ancestrais, cada um com seu comportamento e caráter determinado, permanecem
vivas e ativas no inconsciente familiar, funcionando quase que como moldes ou padrões
de comportamento da pessoa. No inconsciente familiar o indivíduo carrega, em estado
latente, todas as suas possibilidades de existência, modeladas por seus antepassados.
Aí surgia, porém, a pergunta: por que alguns indivíduos expressavam a pretensão dos
ancestrais ficando doentes, enquanto outros limitavam-se a escolher determinada
profissão ou a casar com determinado tipo de parceiro? Foi assim que Szondi chegou
à terceira hipótese: a da luta perpétua entre compulsão e liberdade no homem.
O ego, diz Szondi, é a instância que, amparada pela mente consciente, governa as
nossas escolhas. Ele opta, a cada instante, entre a repetição mecânica do destino
compulsivo e a expressão deliberada, consciente, fundada em valores universais, e
humanizada enfim. Daí provém toda a distância que separa “parentes” genéticos como
o criminoso epilético e o sacerdote, o esquizofrênico delirante e o físico-matemático, o
doente histérico e o orador político, o jornalista ou o ator. Iguais em sua estrutura
instintiva básica, o homem doente e o homem são diferem unicamente na reação do
seu ego ante a escolha básica: o mundo “escuro” e maligno das pulsões inconscientes,
o mundo “luminoso” dos valores universais.
Mas antes de saber quais as peças que o terapeuta e o paciente remexem no imenso
tabuleiro dos instintos e de suas formas de expressão, é preciso saber como surgiram
essas hipóteses na mente de Szondi.
O terceiro impacto foi a guerra. Judeu de origem, Szondi teve de fugir às pressas com
a família, enquanto vários de seus amigos e colaboradores eram presos, mortos ou
deportados. Anos depois, ele teve a oportunidade de estudar – pessoalmente ou através
de uma vasta rede de assistentes – a personalidade de criminosos de guerra, como
Adolf Eichmann e Marton Zöldi (este, um coronel da polícia que durante a ocupação
mandara matar pessoalmente milhares de sérvios e judeus em Budapeste).
“Caim rege o mundo”, escreve ele. “A quem duvida, aconselhamos o estudo da história
universal. O historiador não oculta que a essência da história é a luta. Não oculta que a
história não é a realização de um contínuo processo desde baixo até o alto, do mau ao
bom, da escravidão à liberdade. Sua opinião é que a história é, antes, uma linha tortuosa
de crueldades. A história registra quando um povo crucifica ou queima profetas e santos,
tribunos e missionários. Ao cabo de milhares e milhares de anos, não diminui a atividade
assassina de Caim. O fratricídio é infinito.”
Na psicologia szondiana o tipo cainita pode ser tanto o criminoso epilético quanto o
reformador moral tipo Moisés e Savonarola. No romance de Herman Hesse, Demian, a
marca de Caim aparece como um sinal dos seres superiores, onde algo de diabólico
coexiste estranhamente com um traço de humanitarismo e de criatividade divina. Os
instintos não pertencem apenas ao indivíduo, mas tem um caráter familiar. Ao lado do
inconsciente pessoal descoberto por Freud, do inconsciente coletivo identificado por
Jung e do inconsciente social descrito por Adler, Szondi estabeleceu a existência do
que chamou de inconsciente familiar. O mecanismo da transformação de Caim em
Moisés é a própria essência da terapia szondiana. Mas todos os instintos humanos, e
não somente a paixão assassina do cainista, afirma Szondi, podem seguir essa
trajetória, pois todos podem ser sempre vivenciados de duas maneiras opostas.
Cada um desses vetores pode ser vivido de duas maneiras contraditórias, traduzindo-
se, portanto, em oito necessidades pulsionais:
Cada necessidade pulsional, por sua vez, pode ser afirmada ou negada pelo indivíduo,
gerando assim 16 tipos diferentes de tendências impulsivas que se alternam,
aproximam. Afastam, combinam e combatem na sua alma. Isto resulta na sua
configuração instintiva pessoal, que se organiza em cada momento da sua vida em torno
de determinadas linhas básicas. (No quadro, a lista completa das tendências). Cada
tendência instintiva, por seu lado, pode ser vivida de inúmeras maneiras, que vão desde
a doença até a profissão. A tendência para a sensibilidade individual (amor pessoal),
por exemplo, pode ser vivida sob o aspecto de doença (homossexualismo masculino)
ou sob o aspecto normal de apego a uma determinada pessoa, ou ainda ser socializada
através da profissão (trabalhos que exijam manifestação direta do carinho e atenção).
Essa intuição nasceu numa espécie de devaneio ou sonho, em que Szondi imaginou
que o conflito eterno das combinações instintivas no coração do homem sob a forma de
personagens, rostos humanos que entravam e saíam de cena conforme esta ou aquela
tendência instintiva vencesse ou fosse vencida. Szondi imaginou, então, que os instintos
básicos se expressavam no rosto das pessoas (antecipando assim as idéias atuais
sobre o “inconsciente visível”), e que aceitar ou rejeitar determinada pessoa equivalia a
aceitar ou rejeitar determinada tendência instintiva em si mesmo. A partir daí, Szondi
elaborou a imagem visual da sua doutrina. Como um artista que não se contenta com
as idéias abstratas, mas quer realizar a proeza de dar-lhes forma concreta e sensível,
Szondi passou a procurar aqueles rostos que havia vislumbrado, e que seriam a
tradução exata da sua concepção. Para isso, examinou e testou nada menos de 80 mil
fotografias de rostos humanos, até achar aqueles nos quais instintivamente toda e
qualquer pessoa pudesse reconhecer, conscientemente ou não, a presença de
determinada tendência.
Numa era de racionalismo, esse trabalho já não pode ser feito mediante práticas rituais
que as pessoas julgariam entre bárbaras e cômicas. Tem de ser feito por meios
científicos. A psicoterapia szondiana cumpre hoje esse papel, e ela o tem feito com