Fundamentos Da Linguagem Visual - Unidade 1

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FUNDAMENTOS DAS ARTES VISUAIS

UNIDADE 1 - FUNDAMENTOS DA
LINGUAGEM VISUAL
Mariana da Silva Buôgo

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Introdução
Você já se perguntou o que o faz compreender o mundo e as mensagens transmitidas? Como lemos as imagens e
os símbolos ao nosso redor? Aliás, como repassamos nossas ideias e nos fazemos compreender pelo outro?
Comunicar-se é uma necessidade humana, essencial para que haja socialização, desenvolvimento e troca de
informações. Toda essa comunicação é realizada por meio de um sistema simbólico que é transmitido entre os
integrantes de uma sociedade, ao qual damos o nome de “linguagem”.
O estudo da linguagem visual trabalha o olhar do interpretante, daquele que faz a leitura da imagem, observando-
a como um signo novo, a partir do reconhecimento dos elementos estruturais visuais que se relacionam, a fim de
compor com singularidade a nova imagem. A esse sistema de comunicação chamamos de “alfabetismo visual”,
que é constituído de um sistema sígnico, articulado por uma sintaxe própria e construída pela percepção do
mundo, pela visualidade e pela imaginação, que fornece a capacidade de criar.
Ao longo desta unidade, entenderemos um pouco melhor a respeito desses assuntos. Como facilitador na
compreensão desses sistemas, utilizaremos a Semiótica, fundamentada por Charles Sanders Peirce, que a funde
em uma tríade interpretativa (signo, objeto e interpretante).
Assim, para nos aprofundarmos a respeito da comunicação via imagens, nesta unidade, iniciaremos o estudo da
leitura em artes visuais, conhecendo seus fundamentos.
Bons estudos!

1.1 Leitura de imagens


As imagens são lidas pelo processo ótico. Neste, a luz é refletida ou emitida pelos objetos, os olhos projetam
essas imagens — que são captadas pelas retinas — e, posteriormente, são transmitidas ao cérebro. O enxergar,
porém, vai além do registro passivo dessas imagens, pois perceber as formas é uma ação ativa.
Arnheim (2005) nos explica que a captação de imagens, portanto, diz respeito à conscientizar determinadas
características marcantes dos objetos estudados. Tal processo de percepção na identificação de um item se dá
pela relação com um padrão preexistente.
Munari (1997), por sua vez, menciona que a percepção está intimamente ligada ao acervo de imagens que um
indivíduo formou ao longo de sua vida, sejam elas conscientes, sejam elas inconscientes. Podem ser imagens do
passado ou mais recentes, muitas relacionadas e conectadas a emoções.
Mesmo que essa construção de repertório seja algo individual, é a partir das emoções e imagens subjetivas que
se constrói um repertório comum, de imagens objetivas. Estas são caracterizadas por formas, cores e
representações que serão melhor comunicadas para determinado público. Assim, quanto maior o repertório e o
contato com o conhecimento abarcado pela linguagem visual, maior será a possibilidade de apreender sobre o
mundo que nos envolve.
Ainda de acordo com Munari (1997, p. 11), conhecer “[…] as imagens que nos circundam significa, também,
alargar as possibilidades de contato com a realidade; significa ver mais e perceber mais”. Desse modo, o ver e o
perceber estão correlacionados aos processos que ocorrem tanto no setor visual do sistema nervoso —
referindo-se ao sentido elementar da visão — quanto às atividades do raciocínio. Com isso, pode-se considerar a
visão uma atividade criadora da mente.

A percepção realiza ao nível sensório o que no domínio do raciocínio se conhece como


entendimento. O ato de ver de todo homem antecipa de um modo modesto a capacidade, tão
admirada no artista, de produzir padrões que validamente interpretam a experiência por meio da
forma organizada. O ver é compreender. (ARHEIM, 2005, p. 39)

A expressão e recepção de imagens visuais, segundo Dondis (2007), pode se dar em três níveis distintos:

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A expressão e recepção de imagens visuais, segundo Dondis (2007), pode se dar em três níveis distintos:
representacional, abstrato e simbólico.

Representacional
É o que vemos e identificamos a partir da experiência e do meio em que vivemos.

Abstrato
Refere-se à qualidade cinestésica de algo visto, porém reduzido a componentes visuais básicos, enfatizando os
meios mais diretos, emocionais e primitivos na criação da mensagem.

Simbólico
Os sistemas de signos codificados pelo ser humano os criaram e atribuíram significados a eles.

Temos, ainda, que a transmissão de uma mensagem visual pode ser específica, a fim de suprir a necessidade de
identificar, reproduzir ou registrar lugares, pessoas, objetos e sentimentos. Assim como em mensagens verbais, à
visual também cabe informar, portanto, faz-se necessário o conhecimento desses símbolos, que formam o
alfabetismo visual (DONDIS, 2007).
Um claro exemplo de leitura de imagens em nosso cotidiano são os sinais de trânsito, que organizam a nossa
sociedade e, portanto, devem ser compreendidos tanto por aqueles que dirigem um automóvel quanto pelos
pedestres.

Figura 1 - Os sinais de trânsito são exemplos de leitura de imagens diárias


Fonte: Tonktiti, Shutterstock, 2020.

#PraCegoVer: na figura, temos uma fotografia de um sinal de trânsito à direita. Trata-se de uma placa de
pedestre amarela, com duas representações humanas (criança e adulto), atravessando a rua. Ao fundo, que está
desfocado, temos duas motos e uma rua.
O alfabetismo visual, da mesma forma que a linguagem escrita, deve funcionar como um sistema de
comunicação e compreensão entre todas as pessoas, e não somente entre aquelas que receberam um
treinamento para isso. Ainda que seja menos logicamente organizado e preciso que o verbal, há uma sintaxe
visual complexa, sendo que essas mensagens visuais podem ter caráter funcional de comunicação ou, até mesmo,
servir como expressão artística (DONDIS, 2007).

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1.1.1 Semiótica nas artes visuais

A linguagem se dá por diversos meios entre o verbal e o não verbal, como a música, as expressões faciais, os
gestos corporais, o tato, o visual e a escrita, em que há imagens gráficas, sinais, setas, números etc.
Nesse sentido, Santaella (1983, p. 13) traz a definição de Semiótica como “[…] a ciência que tem por objeto de
investigação todas as linguagens possíveis, ou seja, que tem por objetivo o exame dos modos de constituição de
todo e qualquer fenômeno como fenômeno de produção de significação e de sentido”.
Conforme a autora, foi Charles Sanders Peirce, filósofo norte-americano (1839-1914), quem formalizou a Teoria
Geral dos Signos (SANTAELLA, 1983). O filósofo trouxe três categorias do conhecimento a partir de sua análise
dos fenômenos tal e qual se apresentam à consciência:
• Primeiridade (quali-signo): refere-se ao primeiro sentimento, à primeira apreensão que ocorre
imediatamente à consciência, como um quase-signo, ainda vago e impreciso.
• Secundidade (sin-signo): tem relação com a existência, com o existir, de fato, do objeto e de sua
corporificação.
• Terceiridade (legi-signo): é o signo, que se refere ao aprendizado, à cognição e à lei como convenção.

VOCÊ O CONHECE?
Charles Sanders Peirce foi um grande filósofo e cientista, dedicando-se a áreas diversas, como
Matemática, Física e Astronomia. Ele desenvolveu a Teoria Geral dos Signos, também
conhecida como Semiótica, que surgiu devido à sua análise sobre como é concebida a
experiência do real e de que forma isso transforma as relações sociais. Entre seus postulados,
considera o signo o modo de transmitir conceitos, e a comunicação a forma de ação do signo.
Contudo, não considerava o signo como algo pronto e fechado, mas em constante
transformação, assim como a própria sociedade. Para ele, a estética é quem fundamenta a
ética, sendo que, juntas, fornecem a base para a lógica (ROMANINI, 2016).

Peirce compreendia que o processo de interpretação não ocorre somente na mente, e que a inteligência emerge
de uma interpretação contínua dos signos no mundo. Para explicar como é feita a comunicação de algo por meio
de signos, o filósofo introduziu a ideia de commens ou co-mente, que seriam as mentes que trocam informações,
pressupondo-se que o signo pode transmitir a forma do objeto ao seu interpretante. Assim, faz-se a tríade em
que se funde signo, objeto e interpretante. No caso, o objeto é emissor, o interpretante é receptor e o signo é o
meio e a mensagem a ser transmitida (ROMANINI, 2016).
Essa tríade, à qual chamamos de Tríade de Peirce, é composta pelo signo, que é algo que representa outro algo,
ou seja, o objeto. No entanto, vale mencionar que só será considerado signo se conseguir representar ou
substituir esse outro objeto diferente dele, pois ele não é o objeto em si.
Dessa forma, o signo representará o objeto para um intérprete, na mente do qual se produzirá outro algo, um
signo ou quase-signo, que também está relacionado ao objeto, porém não diretamente, mas mediado pelo signo.
O interpretante, por outro lado, é o objeto relacional que se cria na mente do intérprete a partir da relação
mantida entre signo e objeto.
Na figura a seguir, podemos observar que o objeto dinâmico é aquele que será representado pelo signo, ao passo
que o objeto imediato é a forma como o objeto dinâmico está representado no signo, enquanto desenho ou
escrita, por exemplo. Já o interpretante imediato se refere à aptidão do signo de ser interpretado, não como
individualidade, mas se é traduzido como sentimento, ação ou de outra maneira (SANTAELLA, 1983).

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Figura 2 - Tríade de Peirce
Fonte: Elaborado pela autora, baseada em SANTAELLA, 1983.

#PraCegoVer: na figura, temos a representação da Tríade de Peirce, em que há três extremidades compostas
pelo objeto dinâmico, o signo e o interpretante em si. No centro, um círculo traz o objeto imediato do lado
esquerdo, o interpretante imediato do lado direito e o fundamento abaixo, separados por uma espécie de
triângulo. Na ponta direita, na parte de baixo do triângulo, temos o interpretante em si. Acima dele, encontramos
o interpretante dinâmico (intérprete). Já na ponta esquerda, na parte de baixo, temos o objeto dinâmico.
Segundo Marques (2004), Peirce relaciona seu sistema de reconhecimento à capacidade de um artista
representar um fenômeno exatamente como é, sem substituir a realidade por interpretações. Essa afirmação
peirceana está ligada diretamente aos postulados impressionistas de representar o que o olho capta, sem ideias
pré-concebidas. Entretanto, o olhar do artista é dotado de método estilístico e outras convenções que
pressupõem um olhar humano sobre a obra. Trata-se do ver pela mente do artista, considerando-se como
exprimiu seu propósito na obra, para produzir prazer retiniano, significado ou aprendizado, por exemplo.
Portanto, para o artista, é importante garantir que a experiência almejada seja reproduzida em seu público, uma
vez que a obra é fruto de um pensamento e, consequentemente, pode ser compreendida (MARQUES, 2004).
Na figura a seguir, temos uma das pinturas de série “The Pyramides at Port-Coton, Rough Sea”, de Claude Monet.
Nela, são representadas as rochas da costa francesa Belle-Île-en-Mer a partir da técnica de pinceladas dos
impressionistas, a qual retrata cores, luzes e sombras conforme a observação do artista.

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Figura 3 - Exemplo de uma obra impressionista do pintor Claude Monet
Fonte: Neveshkin Nikolay, Shutterstock, 2020.

#PraCegoVer: na figura, temos uma pintura em que estão representadas rochas no mar. Uma maior está em
primeiro plano e no centro da figura, enquanto outras menores parecem se afastar, em perspectiva. Há duas do
lado direito da pintura, uma mais acima, outra mais abaixo, quase no centro. Os tons variam entre o marrom das
rochas e o azul do mar e do céu.
As bases definidas por Peirce nas categorias abordadas anteriormente, auxiliam na compreensão da obra de arte
e na leitura de uma pintura histórica, com base na reflexão de suas questões estéticas. Conforme a abordagem
peirceana, a obra de arte é tratada com um signo, não como um objeto.
Uma pintura histórica figurativa, como “Primeira Missa no Brasil”, de 1861, do pintor Victor Meirelles (1832-
1903), traz a relação entre o signo e seu objeto, originando o que conhecemos como “ícone”. A cena pintada,
apesar de histórica, é construída a partir de um registro imagético até então inexistente, criando-se uma
memória.
Na obra de Victor Meirelles, há a intenção de se representar tanto os portugueses quanto os povos originários à
sombra da cruz, como uma forma de inspirar o povo brasileiro para fazê-lo acreditar em uma narrativa, mesmo
que não factual, a começar pela memória construída intencionalmente.
Moimaz e Molina (2009) nos trazem que a contemplação estética dessa ou de outras obras é feita com base nas
três categorias de Peirce, que se mesclam pelo sentir, pela interpretação do objeto e pela intenção de
compreender os signos.

Os signos podem desencadear processos interpretativos complexos a partir dos quais o receptor,
aquele que contempla uma pintura, pode atingir a terceiridade. Tomando como exemplo a análise da
pintura “Primeira Missa no Brasil”, se o receptor compreender a intenção do artista, isto é, se
analisar o contexto histórico em que a obra foi criada e compreender a ideia que se deseja transmitir,
índios e portugueses como ancestrais da nação, terá alcançado a terceiridade. Todavia, dependendo
do receptor, o interpretante pode permanecer apenas no nível da primeiridade, envolvendo-se num
sentimento não-cognitivo. (MOIMAZ; MOLINA, 2009, p. 583, grifos nossos)

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VOCÊ QUER VER?
Pensando no contexto em que foi produzida a obra de Victor Meirelles, Lilia Schwarcz,
historiadora e antropóloga, traz à reflexão a dimensão simbólica do poder político na criação
da pintura no vídeo “Primeira Missa no Brasil”. Financiada pelo Império de Pedro II, a pintura
retrata o contato dos povos originários com os portugueses de maneira pacífica e subalterna,
orientando para um entendimento de poderio ao Estado e à Igreja. Sabendo-se que o contato
não se deu dessa maneira, entendemos que a obra tem o poder de recriar e alterar a memória.
Para entender melhor, assista ao vídeo completo em: https://www.youtube.com/watch?
v=El3nhTDreyw.

Podemos pegar como exemplo para figura abstrata para melhor compreendermos a relação entre signo e objeto,
originando um ícone, que se dá na categoria de primeiridade, ou seja, ao nível de quali-signo, como uma
possibilidade do efeito que será produzido ao estimular o sentido da visão.
Desconsiderando a pintura como objeto — mas pelo que nela se está representando, como formas, cores, linhas,
texturas e outros elementos visuais —, podemos entendê-la como um ícone, já que não está representando outra
coisa, sugerindo apenas possibilidades de interpretação.
Santaella (1983) nos faz lembrar, contudo, que se difere do hipoícone, o qual se assemelha ao seu objeto na
representação. Ele também pode ser classificado em três categorias: imagem, diagrama e metáfora.

Imagem
(primeiro Quando a aparência da representação é semelhante ao objeto representado.
nível)

Diagrama
Quando se discrimina as partes do objeto, determinando as relações análogas de suas
(segundo
partes. O diagrama é utilizado para explicações didáticas, a exemplo de um infográfico.
nível)

Metáfora
Quando há uma justaposição entre duas palavras ou expressões, criando uma intersecção
(terceiro
entre elas, como em "olhos oceânicos", em que temos uma relação de semelhança.
nível)

Em relação à secundidade, temos o índice como indício do objeto, marcas deixadas por ele ou, no caso de uma
obra de arte, os materiais e as técnicas utilizados na sua construção (SANTAELLA, 1983).
Já quanto ao nível de terceiridade, temos o símbolo, que, por convenção ou pacto coletivo, extrai do signo a
representação do objeto (SANTAELLA, 1983).

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CASO
O Teste de Rorschach, desenvolvido pelo psiquiatra Hermann Rorschach (1884-1922) a partir
da investigação de tipos de personalidades, consiste em mostrar formas ao paciente, que dará
respostas interpretativas, relacionando as imagens a objetos, sentimentos e memórias, a partir
de evocações psíquicas do avaliado.
A simetria é usada para estimular que a interpretação do borrão se dê em apenas uma cena.
Pela visão semiótica do teste, é possível distinguir dois momentos: a interpretação do paciente
pela apresentação da lâmina e a interpretação do avaliador acerca da resposta dada pelo
examinado.
As sensações evocadas pelas qualidades do borrão — às quais o avaliado relaciona a um objeto
— podem se caracterizar como ícone, no nível de primeiridade. O nível de secundidade
(índice) é dado pela interpretação do examinador, ao relacionar as respostas como indícios de
traços de personalidade do indivíduo. Por fim, em nível simbólico na terceiridade, temos a
convenção classificatória do teste dentro de um padrão preestabelecido (MANGABEIRA, 2011).

Assim sendo, durante a interpretação de um signo, inicia-se a semiose, que é justamente a produção de um
interpretante pela ação do signo. No processo, a imagem é percebida, informando e comunicando os códigos a
ela incorporados. A representação imagética advém de uma realidade física (secundidade) para a sensação
(primeiridade), sendo mediada pela representação cultural (terceiridade) (NETTO; PERASSI, FIALHO, 2013).

1.1.2 Imagem como mensagem

A Semiótica enquanto ciência estuda a linguagem e oferece ferramentas relevantes para a leitura de imagens.
Nesse sentido, partindo de estudos semióticos, Netto, Perassi e Fialho (2013) relacionam os seguintes códigos
para a leitura imagética:
• espacial: se refere ao ponto de vista, à localização do observador em relação ao objeto;
• gestual e cenográfico: se refere às sensações produzidas pelos componentes da imagem;
• lumínico: relacionado à luz e sombra, que produzem variações de forma e volume;
• simbólico: se refere às convenções culturais;
• gráfico: se refere à ilustração em si;
• relacionais: propõe identificar a imagem por si própria, sem relacioná-la ao que representa. No entanto,
também propõe identificá-la ao que representa e aos modos de relação entre imagem e seus
representantes (interpretações de fato ou potenciais).
Netto, Perassi e Fialho (2013) nos trazem como exemplo a análise de uma obra de Pieter Bruegel (1525-1569),
intitulada “O Combate Entre O Carnaval e A Quaresma”, publicada em 1559. Analisando-a pela teoria peirceana, a
fotografia da obra é um signo que representa um objeto (a obra). Além disso, ela simboliza situações cotidianas
contrastantes entre música e bebidas do carnaval, bem como preparação e os louvores da quaresma, dado o
recorte histórico da época medieval.

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Figura 4 - Pieter Bruegel em “O Combate entre O Carnaval e A Quaresma”
Fonte: jorisvo, Shutterstock, 2020.

#PraCegoVer: na figura, temos uma pintura com a representação de pessoas em situações diversas. Do lado
esquerdo, encontramos atitudes que remetem ao gozo, com pessoas bebendo. Do lado direito, temos a igreja, que
remete à retidão de comportamento religioso. Ao centro, o poço retrata a aproximação dos dois mundos.
Da visão da fotografia da obra e das sensações causadas por suas cores e luzes, cria-se a secundidade, categoria
da qual surgem as reflexões para a análise seguinte, que originará a terceiridade. Esta, por sua vez, refere-se ao
conjunto de pessoas em diversas ações de festa ou oração, como um fenômeno imaginativo-cognitivo. À
primeiridade, relaciona-se a técnica de representação.
Netto, Perassi e Fialho (2013, p. 262) descrevem a obra como

[…] uma sucessão de imagens, cíclica e ilimitada, que causa estímulos através do lúdico e da
curiosidade provocada. O cenário é constituído por elementos paradoxais: aldeia rural
presumivelmente existente na época que, por suas características fixam uma data ou período e
elementos humanos e objetos que podem ser identificados por qualquer um, sem necessariamente
representar um vínculo histórico específico.

VOCÊ SABIA?
Muito antes do surgimento das histórias em quadrinhos — caracterizada por ser uma arte
visual sequencial —, na Idade Média já eram narradas histórias a partir de uma única pintura.
Refletindo sobre tempo e espaço, a narrativa existe no tempo, e a imagem no espaço. Nessas
obras medievais, há uma incorporação do tempo nos limites dessa representação pictórica
bidimensional, em que o mesmo personagem aparece várias vezes, em uma única paisagem,
porém representado em diversas situações, conforme a vista avança pelo enredo da pintura.
Tais formas de representar foram suprimidas com o estudo formal da perspectiva no
Renascimento, que congelou a narrativa da obra a um único momento (MANGUEL, 2001).

A linguagem visual nasce do desejo do ser humano em organizar o mundo, valendo-se de percepções e

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A linguagem visual nasce do desejo do ser humano em organizar o mundo, valendo-se de percepções e
intepretações. Desse modo, o externo é interpretado pela mente, que vai ampliando e desenvolvendo o contato
com a realidade.
A criação de imagens se dá pela habilidade humana em ter memória e capacidade de tomar decisões. Mesmo nos
primeiros registros artísticos encontrados em cavernas, supõe-se que havia um sistema de signos que
materializavam as experiências sociais, os rituais, as crenças e as danças, criado pela relação do indivíduo com o
mundo.
Assim, a arte é uma das primeiras manifestações que se tem conhecimento como linguagem, interpretação e
representação do mundo (BUORO, 1996).

Enquanto forma privilegiada dos processos de representação humana, é instrumento essencial para
o desenvolvimento da consciência, pois propicia ao homem contato consigo mesmo e com o
universo. Por isso a arte é uma forma de o homem entender o contexto ao seu redor e relacionar-se
com ele. O conhecimento do meio é básico para a sobrevivência, e representá-lo faz parte do próprio
processo pelo qual o ser humano amplia seu saber. (BUORO, 1996, p. 20)

A criação de imagens está ligada à capacidade humana de abstrair a visão do mundo para representá-lo em outra
linguagem, seja pelas artes, seja pela lógica ou ciência. Na representação artística, a abstração é uma maneira de
interpretar a realidade caótica, organizá-la e manifestá-la por meio da forma, transformando-a em objeto de seu
conhecimento e signo que pode ser representado e interpretado.
Buoro (1996) cita que, por essa razão, a realidade social é refletida na arte, pois ela também evidencia o
momento histórico, partindo da mesma necessidade de compreensão do ser humano primitivo: a representação
para a sobrevivência.
No entanto, a imagem representativa da realidade não é a realidade em si. Mesmo que figurativa, sempre haverá
uma escolha do artista.
Um dos exemplos emblemáticos é a pintura “Madame Matisse”, de 1905, na qual Henri Matisse (1869-1954)
pintou um retrato de sua esposa com uma lista verde no rosto. Ao ser questionado sobre essa particularidade,
respondeu que a pintura não se tratava de sua esposa na realidade, mas de uma pintura resolvida por um artista,
que é quem decide como ela deve ser feita (BUORO, 1996).

VOCÊ SABIA?
Na Grécia Antiga, nos tempos de Homero (928-898 a.C.), atribuía-se a representação de um
rosto a propriedades mágicas, pois se considerava que ela abrigava a alma de uma pessoa.
Dessa forma, as representações eram feitas de perfil, para que reduzisse esse poder.
Nas peças gregas, muitas máscaras eram representadas com rostos na visão frontal, tendo por
objetivo assustar o público. Mesmo em tempos posteriores, as máscaras utilizadas em peças
teatrais eram tidas como sagradas, especialmente as representações de deuses míticos. Após
seu uso, eram consagradas em cerimônias ao deus simbolizado, permanecendo no teatro para
não levar a alteridade desse deus ao mundo exterior (MANGUEL, 2001).

É possível pensar, também, na representação do objeto e na perda de sua função utilitária. René Magritte (1898-
1967), em seu icônico quadro “Isto Não é Um Cachimbo”, de 1929, traz o elemento à reflexão. Ao representar o

objeto (cachimbo), por mais realista e figurativa que fosse essa representação, ela ainda seria uma traição da

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objeto (cachimbo), por mais realista e figurativa que fosse essa representação, ela ainda seria uma traição da
imagem, mas nunca o objeto em si. Na representação, abaixo do cachimbo, Magritte reafirma que aquilo não é
um cachimbo, mas uma pintura que o representa enquanto signo.
Sobre a obra, o artista divaga: "[…] o famoso cachimbo... Como fui censurado por isso! E, entretanto... Vocês
podem encher de fumo o meu cachimbo? Não, não é mesmo? Ele é apenas uma representação. Portanto, se eu
tivesse escrito em meu quadro 'isto é um cachimbo', eu estaria mentindo" (FOUCAULT, 1988, [s. p.] apud
FIGUEIREDO, 2020, p. 447).

Figura 5 - A obra “Isto Não é Um Cachimbo” traz a ideia de representação


Fonte: WIKIMEDIA COMMONS, [s. d.].

#PraCegoVer: na figura, temos a representação de um cachimbo de maneira figurativa, no centro. Abaixo do


objeto, está escrito “c'est n'est pas une pipe”, que significa “isto não é um cachimbo”.
A arte conceitual, que teve seu início em meados dos anos 1960, trouxe à discussão o significado da arte. Entre
tantas abordagens para tal questionamento, alguns artistas trouxeram a linguagem como material de suas obras.
Levando à literalidade dos conceitos semióticos, determinadas obras eram expressas somente a partir de
orientações escritas, como as realizadas por Lawrence Weiner, com “Um Marcador Normal de Corante Atirado
ao Mar”, de 1968; e “Uma Remoção de 36x36 Polegadas de Uma Parede até O Ripado ou O Tapume de
Sustentação de Gesso ou Folha de Revestimento”, de 1968.
Segundo o artista, uma obra pode ser apresentada somente como linguagem escrita, uma vez que se trata de uma
apresentação, e não de imposição. A questão do intérprete passa a significar a informação dada, e não mais se
questionar sobre o que o artista quer dizer (ARCHER, 2001).

VOCÊ QUER LER?


Joseph Kosuth, artista contemporâneo, traz à reflexão a questão da representação na série
intitulada “Uma e Três Cadeiras”, publicada em 1965. Em uma das obras, há uma cadeira de
madeira, uma fotografia em preto e branco dela e uma fotocópia da definição de “cadeira” do
dicionário, relacionando-a à tríade semiótica de realidade (objeto dinâmico), representação
(signo) e ideia (interpretante). Para se aprofundar nos conceitos de arte e linguagem de

Kosuth, sugerimos a leitura do artigo “Arte e Conceito em Joseph Kosuth”, de José D’Assunção

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Kosuth, sugerimos a leitura do artigo “Arte e Conceito em Joseph Kosuth”, de José D’Assunção
Barros, disponível em: http://www.revista.art.br/site-numero-10/trabalhos/32.htm.

Pensando no processo mental de um artista ao criar uma obra, devemos considerar que há, de início, a
construção de duas imagens diferentes: a criada na mente do artista e aquela que, de fato, será representada.
Para a criação de uma imagem representada, existem os mecanismos de conhecimento do mundo, mas, para
transformar em uma obra, necessita-se da realidade imaginativa. Assim, o artista se vale de elementos
simbólicos que conversam com a cultura, mesclando com sua capacidade de inventar e criar usos inesperados
desses símbolos (BUORO, 1996).
Joan Miró (1893-1983), por exemplo, dizia observar manchas de umidade nas paredes, pedras irregulares ou
outras superfícies, considerando-as como um ponto de partida para a criação de suas figuras abstratas. Nesse
caso, o artista não tinha a pretensão da representação como imitação (BUORO, 1996).

Figura 6 - Joan Miró retratava a imaginação em suas obras


Fonte: rook76, Shutterstock, 2020.

#PraCegoVer: na figura, temos três formas principais. À esquerda, uma espécie de círculo não tão perfeito em
vermelho. À direita, uma mancha amarela com uma espécie de gota laranja no meio e um círculo preto dentro
dessa gota. Abaixo das duas formas, temos um retângulo parecido com um barco, em preto.
Sobre a arte abstrata, Plaza (1987, p. 24-25 apud BUORO, 1996, p. 116) nos explica que

[...] dado que o signo não é idêntico à coisa significada, mas dela difere sob alguns aspectos, deve
naturalmente possuir algumas características que nada têm a ver com a função representativa.
Chamarei a essas características qualidades materiais do signo. [...]. Se o signo estético oblitera a
referência a um objeto fora dele, então ele constrói esse objeto a partir de suas qualidades materiais
como signo, pois que ele foge à representação, uma vez que esta função representativa não está na

qualidade material, mas na relação de um signo com um pensamento. [...]. O signo estético não quer

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qualidade material, mas na relação de um signo com um pensamento. [...]. O signo estético não quer
comunicar algo que está fora dele, nem “distrair-se de si” pela remessa a um outro signo, mas
colocar-se ele mesmo como objeto.

Com a apreciação de uma obra de arte, podemos inserir em seu significado o contexto de sua produção, quem é o
autor e em que momento histórico viveu e produziu a arte. Também é possível reconhecer suas influências ou o
movimento artístico ao qual participou. Contudo, o que enxergamos, de fato, é a obra que se traduz nos termos
de nossa própria experiência, lendo as imagens para as quais temos repertório para criar um interpretante,
semelhante à ação de ler uma língua que só reconhecemos o significado pelo conhecimento de sua sintaxe.
Entretanto, de acordo com Manguel (2001), diferentemente da escrita — em que os significados dos signos são
estabelecidos antes de seu uso —, o código de leitura de imagens é formado após a constituição da figura, de
maneira semelhante ao que significamos o mundo em si.
Assim, a natureza e os acontecimentos dados ao acaso podem ser retransmitidos, traduzidos e interpretados por
meio de um vocabulário criado pelo ser humano, simbolicamente construído por um espelhamento dessa
natureza. Portanto, a partir desse mundo simbólico, nos tornamos capazes de reconhecer a experiência no
mundo (MANGUEL, 2001).

VAMOS PRATICAR?
Agora que você já teve contato com os princípios da Semiótica, eleja um objeto e o represente
nas categorias propostas por Peirce, como uma flor. Ao nível de primeiridade, represente-a
enquanto imagem (desenho ou foto), diagrama (discriminação e identificação das partes) e
metáfora (união da imagem à alguma expressão metafórica, como “menina-flor”). Ao nível de
secundidade, obtenha o índice (perfume, cores, pétalas etc.). Por fim, quanto à terceiridade,
crie um símbolo, como a escrita da flor. Vamos tentar?

Conclusão
Chegamos ao final da primeira unidade da disciplina de Fundamentos das Artes Visuais. Aqui, pudemos entrar
em contato com os conceitos semióticos de Pierce e suas categorias, apreendendo a possibilidade de relacionar
essa ciência da linguagem às artes visuais, bem como refletir sobre a forma de representar e a maneira de
interpretar as imagens.
Nesta unidade, você teve a oportunidade de:
• conhecer o conceito de Semiótica;
• aprender sobre a Teoria Semiótica de Peirce;
• entender como a ciência da Semiótica pode ser aplicada na leitura de imagens e obras artísticas;
• refletir sobre o processo de criação de imagens pelo artista e pelo intérprete de suas obras.

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