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Resumo: Estes apontamentos são uma incursão pelo romance O pavão desiludido, de José Carlos Oliveira
(1934-1986), sob o prisma da escrita de si. Ao abordarmos uma obra cujo autor, narrador e personagem
coincidem, publicada inicialmente como folhetim no principal jornal do Brasil, no início dos anos 70,
buscamos flagrar os primórdios da “espetacularização midiática” do autor brasileiro no seu gesto
performático. O objetivo principal deste trabalho é colocar em cena, no jogo teórico rico e produtivo
sobre o “retorno do autor” que se estabelece nas academias, o nome de um escritor que não pode estar
ausente, como está, do elenco dos ficcionistas que praticam a escrita de si.
Palavras-chave: José Carlos Oliveira – O pavão desiludido. José Carlos Oliveira – Autoficção. O pavão
desiludido – Crítica literária.
Abstract: This paper dwells in the novel O pavão desiludido, by José Carlos Oliveira (1934-1986),
through the perspective of the writing itself. By the means of approaching a work whose author, narrator
and character are the same person, published initially as a daily serial fiction in Brazil's main newspaper,
in the beginning of the 1970s, our aim is to witness the genesis of the “mediatic spectacularization” of the
Brazilian author in his performatic gesture. The main objective of this text is to foreground, within the
rich and productive theoretical game that has been established in Academia, a name that cannot be absent
of the cast of fiction writers that practice the writing of the self.
Keywords: José Carlos Oliveira – O pavão desiludido. José Carlos Oliveira – Self-Fiction. O pavão
desiludido – Literary Criticism.
Walter Benjamin
Aprendemos com Walter Benjamin sobre o homem que tem uma experiência para
contar. Seria um idoso, em princípio. Mas essa vivência pode ser adquirida por outras
A força da autoficção é que ela não tem mais compromisso algum com a
autobiografia estrito senso (que ela não promete), nem com a ficção
igualmente estrito senso (com que rompe). Ao fazer coincidir, na maior parte
das vezes, os nomes e as biografias do autor, do narrador e do protagonista, o
valor operatório da autoficção cria um impasse entre o sentido literal (a
referência real da narrativa) e o sentido literário (a referência imaginária). O
literal e o imaginário se contaminam simultaneamente, impedindo uma
decisão simples por um dos polos, com a ultrapassagem da fronteira.
(NASCIMENTO, 2010, p. 195-196).
José Carlos Oliveira publicou O pavão desiludido em 1972, após vários anos de
atividade como jornalista: como repórter e depois redator da revista Manchete; e como
cronista do então principal veículo de comunicação impressa do país, o Jornal do
Brasil, nos anos 60 e 70. Foi um dos piores períodos de sua vida, em que se afundou
perdidamente na bebida e na depressão. O livro foi escrito no lendário bar e restaurante
Antonio’s e publicado inicialmente como folhetim, no “Caderno B” do Jornal do
Brasil.
Nessa obra, o narrador conta a história de José Carlos Oliveira do nascimento até os 18
anos, de forma linear, em ordem cronológica. Tudo leva a crer que os fatos sejam reais,
que se trata de um relato fidedigno, uma biografia do próprio autor. Seria, então, um
romance, sim, pelo elevado grau estético do tratamento da linguagem, mas um romance
de não ficção. (Uma análise mais detida nos leva a crer que essa obra é, além da forma,
Do ponto de vista da forma, José Carlos Oliveira exercita o tamanho que lhe era
familiar na produção de crônicas diárias, ao formatar cada capítulo. Há até o caso de um
bem curto, dedicado à Rua Gama Rosa, no Centro de Vitória, a capital do Estado do
Espírito Santo, cidade onde se passa toda a história, exceto o seu final, quando a
personagem migra e se estabelece no Rio de Janeiro.
Esse texto sobre a Rua Gama Rosa não ultrapassa uma página.
No geral, são textos de duas e três páginas. E alguns se assemelham muito às crônicas
de jornal, principalmente quando descrevem o espaço em que se desenrola a trama: a
cidade de Vitória com seu mar e porto, as igrejas e palmeiras nas colinas, o familiar
bairro de Jucutuquara.
Nisso tivemos sucesso, pois ninguém da plateia suspeitou tratar-se do capítulo do citado
romance – que foi pouco lido e está esgotado há décadas. Ou mesmo apontou algum
estranhamento no texto que o desqualificasse como uma crônica, um texto autônomo;
ou que o inserisse num projeto maior ou diferenciado.
Ainda sem mencionar a procedência do texto, fizemos uma ligeira análise sobre a peça,
produzida com frases curtas e pontuação telegráfica. É o caso do parágrafo inicial, por
exemplo, que descreve o porto de Vitória, onde os navios “mugem”. No mais longo
parágrafo, entretanto, quando é apresentado o embarcadiço que dá título ao texto, ele
está bebendo cachaça em um boteco do bairro Jucutuquara e conversando com o seu
proprietário. O ritmo do texto muda, torna-se tenso, e se desenrola com uma pontuação
destrambelhada. O texto também está embriagado.
O termo voyeur é apropriado para ancorar esta narrativa, porque era assim que José
Carlos Oliveira se qualificava, como boêmio veterano e profissional que circulava pela
noite carioca. Se ia a uma boate, por exemplo, não dançava, só observava, matéria-
prima para suas crônicas, mesmo que fosse com seu olhar lúbrico de experiente fauno.
Pois é em uma dessas crônicas que José Carlos Oliveira se refere ao ato de tomar
cachaça que observou desde a infância. Fica claro, num confronto dos dois textos – “O
embarcadiço” do romance e a crônica “Sobre a cachaça” do livro O homem na varanda
do Antonio’s (OLIVEIRA, 2004, p. 195-196) –, que o autor trouxe para o seu romance
“autobiográfico” a experiência do menino observador, mas só o que se pode provar é
isso. O tratamento que dá ao texto do romance é de fusão, de imbricação de
circunstâncias memorialísticas num artefato romanesco, onde o que conta é o
componente ficcional. Na crônica, narra o ritual da bebida, numa visada mais
referencial (“Assim procediam os cachaceiros da minha infância” [OLIVEIRA, 2004, p.
196). Mas, no capítulo do romance, descreve a cena de um embarcadiço que se
embriaga, vindo do mar e atracando em um bar, antes do porto do lar, para afogar as
mágoas:
Tudo, no texto de O pavão..., conflui para caracterizar a mãe do narrador como uma
“megera”, com sua educação rígida para um menino órfão. O mito do pai também se
esfacelará, após a revelação final, feita pelo embarcadiço. O narrador se exacerba em
exemplos de maus-tratos sofridos quando garoto, exaltando assim sua condição de
vítima da família. (Aqui, vale a pena um confronto com a obra A sangue frio, pois
Truman Capote se esmera em arrumar atenuantes para o bárbaro crime de Perry Smith,
ao fazer a arqueologia documentada dos maus-tratos que ele sofrera na infância,
inclusive por parte de freiras. José Carlos Oliveira lista a humilhação que sofreu por
parte de um padre-professor, no colégio dos Salesianos. De um texto do próprio punho
de Perry: “A minha mãe estava sempre bêbada e nunca em condições de tomar conta de
nós. [...] A vigilante do meu pavilhão batia-me furiosamente [...] Depois começou a
achar divertido pôr uma certa pomada no meu pênis e ardia-me de uma maneira quase
intolerável ”) (CAPOTE, [s.d.], p. 294-295).
Temos que levar em conta que o autor, José Carlos Oliveira, renegou essa obra, em
entrevista ao jornal A Gazeta, em Vitória, no segundo semestre de 1985. O fato de ele
desautorizar o romance não exclui seu caráter autobiográfico, apenas marca seu
São outros fatores, então, que nos levam a duvidar de um relato fidedigno da vida de
José Carlos Oliveira em O pavão desiludido.
Tudo leva a crer que o autor tenha criado uma obra para justificar sua estroinice, sua
boemia culpada, enquanto, naqueles anos de chumbo dos 60/70, muitos brasileiros, boa
parte seus conhecidos ou amigos ou profissionais da comunicação, iam para o exílio ou
a prisão, alguns chegando a morrer nos cárceres da ditadura, por contestarem com
palavras e ações o regime militar. Também precisava se desvencilhar da condição de
“escritor sem obra”.
Para suportar esse ponto de vista, visitemos um dos capítulos iniciais e o capítulo que
fecha O pavão... No capítulo 4, “O Zepelim”:
Mas voltemos ao morro, que é, sem trocadilho, aquilo que me mata. ‘Quem
teve a desventura de viver no morro devia ser recompensado com o direito de
morrer na vida.’ [...] Todas as vitórias me seduziam, a começar por Vitória, a
própria cidade. [...] Eu contemplava aquilo tudo com indescritível
ressentimento. [...] Eu era um rei destronado. Os usurpadores haveriam de
pagar caro aquele crime [...] Eu desejava, então, uma grande quantidade de
remorso para meus inimigos [...] e uma grande quantidade, a maior possível,
de bens desejáveis para mim. Mas o que são bens desejáveis – perguntava eu,
que andava pelos três ou quatro anos de idade. E respondia: ‘Tudo, menos
aquilo que meus inimigos merecem.’ Ou então passava entre minhas ilusões
e o céu azul alguma coisa branca, lenta e gentil, que seria uma baleia celeste
se houvesse animal desse tipo, e eu deliberava: ‘Quero aquilo.’ Aquilo era o
zepelim (OLIVEIRA, 1972, p. 20-21).
O final do último capítulo (30, “A mãe do bispo”), ou seja, o final do livro, reforça
nosso sentimento de que O pavão desiludido é uma justificativa do autor para seu
hedonismo e seu não engajamento político sob a perspectiva da esquerda. Ele está de
novo no alto de um morro, no Rio de Janeiro:
Um dos melhores exemplares do polo metafórico que permeia toda a obra se encontra
no capítulo que trata do assédio sexual ocorrido em sua infância. O fato se dá na escada
de um edifício do centro da cidade (o edifício é real, de seis andares, o mais alto de
Vitória no tempo assinalado na narrativa; fica no pé da Escadaria São Diogo – a que
leva à catedral –, de frente para a praça Costa Pereira). Ali, o sempre menino faminto
José Carlos conseguirá o pão mendigado a outro garoto, o entregador de pães, em troca
de um favor sexual.
O produto de tal ato fica grudado em sua mão, enquanto ele se farta do alimento, mas
lamenta não ter a manteiga.
Esse foco narrativo respaldado nas potencialidades poéticas do texto destitui o estatuto
da verossimilhança como condição fundamental da obra. Assim, seria no mínimo
temerário tomar como verdade um fato que não pode ser checado, ao se usar, numa
possível biografia do autor José Carlos Oliveira, que deve primar pelo aspecto fidedigno
dos fatos, com acurada apuração em fontes que não fosse apenas o autor de um
“romance” (isso caracterizaria o procedimento jornalístico da tarefa de biografar), uma
obra que está catalogada como “romance” na folha de rosto. Os fatos relativos a sua
iniciação sexual colhidos do “romance” são verossímeis, ocorrências comuns na
infância, como o “troca-troca” com o menino Bené e o alumbramento que teve ao tomar
banho de chuveiro com a irmã de seu amigo, nuinha (OLIVEIRA, 1972, p. 38). Mas
isso não está em Manuel Bandeira? Esse apontamento se faz necessário, pois a
performance discursiva de José Carlos Oliveira é convincente a ponto de induzir o leitor
e o pesquisador a equívocos, a tomar por realidade o que é ficção.
É correto que sua família viveu uma situação de penúria, após o falecimento do pai. Isso
nos foi narrado por uma de suas irmãs. É provável que José Carlos Oliveira estivesse
O “miteiro do mar” não será nada mais nada menos que o reforço antecipado da figura
do narrador benjaminiano, que aparece como o embarcadiço do capítulo 21, e figura
como o “sábio” viajante contador de histórias que será retomado no penúltimo capítulo,
agora como um outro personagem, e cumprindo um outro estágio de sua função
romanesca: a de reconduzir o protagonista à consumação de seu fado.
As entrevistas que fiz em Vitória mostram que José Carlos Oliveira não fugiu para o
Rio de Janeiro após descobrir a tragédia que estava nos bastidores de sua família, como
é narrado no livro. Ele buscava novos rumos, e talvez até se sentisse ameaçado em
Vitória, em vista de suas atitudes polêmicas, da acidez de suas crônicas. Era um
deslocado na cidade. Todos seus amigos seguiam a carreira adequada ao perfil pequeno
Essas observações, se não são suficientes para, além da etiqueta “romance” aposta à
obra, descaracterizar sua validade genuinamente autobiográfica, pelo menos são
necessárias para marcar a inserção do escritor José Carlos Oliveira na categoria de autor
de autoficção, com viés performático, como ensina Diana Klinger. O criador que lança
mão de sua história, ou parte dela, para carnavalizá-la, para dar-se em espetáculo ao
mundo dos leitores, como drama, como tragédia, até, montando um painel de retirante
nos moldes da obra de Portinari. Para, como dissemos acima, justificar uma vida de
dissipação no álcool, quando se esperava dele a consumação de uma obra literária de
vulto, ou a esquerda cobrava de qualquer intelectual o engajamento nas lutas
democráticas.
O importante a assinalar é que o que mais conta para a obra ser caracterizada como
romance (literatura) é o tratamento estético dado ao material, seja ele biográfico ou
pseudobiográfico. Por outro lado, é a fabulação – um termo muito caro a José Carlos
Oliveira, de quem o ouvimos por diversas vezes, como participante de uma oficina para
criação de romance que ele dirigiu na Ufes, no segundo semestre de 1985. Isso inclui a
forma como o material é exposto, em O pavão..., criando-se um clima que conflui, num
crescendo, para o desfecho. Os fios que são espalhados desde o início e se atam ao final.
No fundo, José Carlos Oliveira fez uma obra que denuncia os maus-tratos à infância
desvalida. Assim se justifica o capítulo 12, “A menina sem sol”, que causou
estranhamento ao editor Rubem Braga, um dos motivos de ter recusado a obra, que seria
publicada pelo Bloch, seu ex-patrão na revista Manchete.
José Carlos Oliveira narra os seguidos sustos que “o menino pálido e cruel” dava numa
“aleijada e idiota” de 13 anos. “No segundo patamar, 10 vezes por dia, José Carlos é
aluno e professor, aprendendo e ensinado estoicismo e revolta. Tem oito anos de idade,
tem um olhar perfurante e tem um banjo que lhe foi dado pelo demônio” (OLIVEIRA,
1972, p. 48).
A cena que pinta é dramática, para fechar o capítulo. O pai da menina lhe dá guaraná
com formicida. Em seguida, “a menina sem sol recebeu em cheio o corpo do pai, cujo
Não é por acaso que no título do livro figura o termo “pavão”. O autor traz para um
capítulo estratégico de sua obra a história do Antoninho, melancólica canção popular
que ficou célebre, no passado. No capítulo 10, “Chorinho para saxofone”:
A obra como autoficção e/ou performance encontra em José Carlos Oliveira um cultor
sempre atento. Ele era seu personagem, tanto que os batizava: Carlinhos, Charlot,
dependendo das circunstâncias. Demos voz ao escritor e jornalista Carlos Heitor Cony:
É como Carlinhos que ele comparece em outro romance com fortes componentes
autobiográficos: Um novo animal na floresta; e marca presença como Charlot, em
Domingo 22.
Em Terror e êxtase, José Carlos Oliveira não deixa qualquer resquício de sua vida
privada. Essa obra foi um grande sucesso editorial: chegou à quarta edição pela
Codecri; saiu uma com capa dura pelo Círculo do Livro; e virou filme, de Antônio
Calmon. No entanto, o autor, com sua argúcia de jornalista e sua experiência de
comportamentos sociais aurida nos bares da vida, irá tratar, pioneira e
premonitoriamente, do conluio entre a criminalidade dos morros e a sociedade carioca.
E fundamentalmente vai denunciar uma rede maior de poder paralelo, que inclui política
e economia, que dá as cartas nesse jogo perigoso.
Referências:
Recebido em 31/03/2012
Aprovado em 05/07/2012
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Para Diana Klinger, “O termo autoficção é capaz de dar conta do ‘retorno do autor’, pois ele
problematiza a relação entre as noções de real (ou referencial) e de ficcional, assim como a tensão entre a
presença e a falta – retorno e recalque –, ainda que não necessariamente em relação com o discurso do
trauma” (2007, p. 38). Isso significa ir além da classificação de Philippe Gasparini (autobiografia fictícia,
romance autobiográfico ou ‘ficção autobiográfica’ e autoficção) (KLINGER, 2007, p. 45-46). Pois, para
ela, Gasparini “reduz toda a autoficção à ‘ficção’” e considera: “O meu conceito de autoficção é um
pouco diferente. No meu entender, a categoria de autoficção implica não necessariamente uma corrosão
da verossimilhança interna do romance, e sim um questionamento das noções de verdade e de sujeito”
(KLINGER, 2007, p. 47). Klinger vê também simplicidade na definição de Lecarme para autoficção: um