Planejamento Urbano e Ideologia - Vera Rezende
Planejamento Urbano e Ideologia - Vera Rezende
Planejamento Urbano e Ideologia - Vera Rezende
O espaço tem sido, ao longo do tempo, destinado a cumprir funções específicas que variam
segundo as necessidades das organizações sociais em cada época. Dentro dessa perspectiva, a
cidade é a resultante, inacabada e em transformação, de intervenções reguladas por diferentes
sistemas de valores sociais e econômicos. Cada sistema determinado que caracteriza um modo de
produção definido é responsável pelo ordenamento, apropriação, ou seja, pela produção do espaço
urbano em sua época.
No modo de produção capitalista, que é para onde orientamos o nosso estudo, a cidade surge
como local de reprodução dos meios de produção, local de reprodução da força de trabalho e,
também, fator de acumulação de capital. Para tanto, deve cumprir as tarefas necessárias. Para a
reprodução dos meios de produção, tornam-se necessários os espaços destinados às atividades
industriais e seus desdobramentos. Como local de reprodução da força de trabalho, a cidade é a
sede da habitação, do ato de morar e viver. Como fator de acumulação do capital, o solo urbano gera
renda fundiária, fundamento da indústria de construção civil.
Castells coloca que “considerar a cidade como a projeção da sociedade no espaço é, ao
mesmo tempo, um ponto de partida indispensável e uma afirmação demasiado elementar” 1. Para ele,
o espaço, longe de se organizar aleatoriamente, já se encontra estruturado e os processos sociais
referentes a essa estrutura são determinados por períodos diversos de diferentes organizações
sociais. Dessa forma, o espaço não está desligado da estrutura social, que determina aos agentes
sociais uma apropriação diferencial do produto de seu trabalho e, como conseqüência, determina
diferentes possibilidades de consumo.
A produção do espaço urbano, embora apresente uma aparente desordem, se dá dentro de
uma ordem coerente com o modo de produção dominante. Ao espaço são adicionados infra-
estrutura, sistema viário, equipamentos, que, juntamente com a existência ou falta de amenidades,
compõem o valor da terra. A ocupação do espaço urbano é regulada por esse valor, principal
elemento mediador de sua apropriação. A cidade torna-se, assim, um potencial de consumo
exatamente como qualquer outro produto; consumo que se realiza segundo as possibilidades de
renda de seus habitantes. A cidade torna-se mercadoria.
O sistema de produção formal, rejeitando parte dos trabalhadores, faz com que recorram a
uma economia baseada no subemprego 2. Daí resulta uma população excluída do mercado de
consumo pela insuficiência de sua renda. A incapacidade de consumir caracterizará, então, a
ocupação das áreas periféricas da cidade, onde o valor do solo urbano é baixo e onde não são
satisfatórios os serviços de infra-estrutura e acessibilidade a centros de emprego e serviços.
Torna-se relevante, portanto, atentarmos para o fato de como se faz a cidade, como se produz
o espaço e, por conseqüência, como as classes de baixa renda se localizam nesse espaço. No caso
das cidades brasileiras, os serviços urbanos se irradiam do centro à periferia, tornando-se cada vez
mais escassos à medida que a distância do centro aumenta. O resultado é um gradiente de valores
do solo urbano, que atinge o máximo no centro principal e vai diminuindo até atingir um mínimo nos
limites da cidade 3.
Nesse contexto, a favela surge como a determinação de uma parcela da população em se
instalar em locais onde existe acessibilidade a centros de emprego e equipamentos urbanos, áreas
1
Castells, Manuel. La question urbana. 2. ed. México, Siglo Veintiuno. 1976, p. 141.
2
Como coloca Milton Santos: “... quem permanecer fora do mercado do emprego permanente, não está perdido para a
economia como um todo. Assim, a economia urbana deve ser estudada como um sistema único, mas composto de dois
subsistemas. Nós chamamos esses dois subsistem as de circuito superior e circuito inferior”. Santos, Milton. A pobreza
urbana, São Paulo, Hucitec, p. 36.
3
Singer, Paul. O uso do solo urbano na economia capitalista. In: Produção capitalista da casa e da cidade no Brasil
industrial, São Paulo, Alfa Omega, 1979, p. 29.
de alto valor da terra e, portanto, impróprias para essa população de baixa renda da cidade sob o
aspecto do consumo legalizado 4.
Surge, então, o planejamento, cuja tarefa essencial deve ser a apropriação equilibrada do
espaço urbano, organizando o desenvolvimento e a reprodução desse espaço, ou seja, tentando
resolver o problema do consumo coletivo. São elaborados planos, políticas explícitas, cujo objetivo é
resolver a crise urbana que se apresenta. Mas o que significa essa crise urbana? Sua principal
característica está na excessiva oferta de força de trabalho frente a uma incapacidade do mercado
em absorver mão-de-obra, cujas conseqüências são o desemprego e a queda do valor do salário.
Milton Santos alerta para o perigo do problema ser abordado parcialmente, onde a crise
urbana é colocada como resultado da explosão demográfica que provoca as migrações, contribuindo
para o agravamento da crise. A falta de emprego, dentro dessa visão do problema, seria a
conseqüência da pressão demográfica. Para o autor, não parece satisfatória uma abordagem que
não leve, também, em consideração os efeitos da modernização. Pois aí se coloca o problema,
quando por conseqüência dessa modernização é liberada mão-de-obra 5.
No entanto, na ânsia de resolver a cidade, o poder público, a quem cabe a gestão do
consumo coletivo, opta por ordenar a cidade, disciplinando o aparente caos, pois a nível de espaço a
crise urbana aparece como um crescimento não-planejado. Nesse sentido, são elaborados os planos
de urbanismo, cujo objetivo é organizar o espaço urbano e também minimizar os conflitos.
Porém, nem mesmo isso é fácil de ser executado, pois qualquer intervenção do poder público
sobre o espaço, como, por exemplo, na alocação da infra-estrutura em uma área carente, elevará o
valor da terra naquele local, expulsando a população que aí vivia, que será substituída por outra de
mais alta renda. A população deslocada capitalizará na troca o valor acrescido, mas não usufruirá da
melhoria. E nem sempre as tentativas do poder público se preocupam em minimizar os conflitos.
Algumas vezes, os planos agem enfatizando as desigualdades sociais, alocando equipamentos e
infra-estrutura em áreas já ocupadas por uma população de alta renda, aumentando ainda mais o
valor da terra no local 6.
Além disso, tem sido hábito da maior parte dos planejadores levantar e tentar resolver
problemas que transcendem a questão propriamente urbana. A pobreza urbana e as migrações, por
exemplo, transcendem em muito a competência de qualquer plano local. A esse respeito, H. Ganz
coloca que a falência dos planos diretores se deve à crença dos planejadores nas soluções propostas
pelos planos e no determinismo físico, constante em todos eles. Esse determinismo se traduz no
crédito que, dão às soluções meramente físicas para resolver problemas urbanos 7. Mas seria só
isso? Esse ponto de vista não supõe um desconhecimento por parte dos planejadores de conceitos
relativos ao sistema social e econômico? Fato que não nos parece verdadeiro.
No aparente desconhecimento da realidade, torna-se possível detectar um fator ideológico
necessário à manutenção do próprio sistema, que não se permitiria produzir planos que se voltassem
contra ele, induzindo à sua desagregação. Nesse aspecto, o planejador surge, então, como
necessário e indispensável à manutenção da ordem social. Cabe, então, perguntar: “Quem planeja os
planejadores” 8?
4
Sobre o assunto R. Mayer coloca: “Morar na cidade, (...) é essencialmente uma atitude de força (...) a proliferação das
favelas revelou a resistência da cidade em absorver os trabalhadores e a determinação destes em se instalar”. Meyer,
Regina, Segregação espacial. In: A luta pelo espaço, 2. ed., Petrópolis, Vozes, 1979, p. 154.
5
Santos, Milton. Op. cit., p. 33.
6
Vetter e Rzezinsky colocam que: “a resultante da concentração espacial dos grupos de renda mais alta, gera uma espécie
de causação circular no sistema urbano, não somente pela sua maior demanda efetiva pelos serviços, como também
porque esses grupos possuem normalmente maior poder político para influenciar as decisões de investimentos
governamentais em seu favor. Como conseqüência, dar-se-ia a subida de valor do solo urbano exatamente nesses locais já
privilegiados”. Vetter, David Michael e Rzezinski, Henrique Costa. Política de uso do solo: para quem, Revista de
Administração Municipal, Rio de Janeiro, out./dez. p. 17, 1979.
7
Ganz, Herbert. People and plans, Basic Books, 7 ed., New York, 1968, p. 60.
8
Bárbara Freitag coloca ainda várias questões dentro do aspecto ideológico. “Quem planeja os planejadores?” “Quem
educa os educadores?” Freitag, Bárbara. Escola, estado e sociedade, 3 ed., Cortez e Moraes, São Paulo, 1979, p. 13.
E justamente através do estudo desse fator ideológico e mais amplamente da questão da
ideologia, que tentaremos chegar a um esclarecimento do grau de compromisso de planos
elaborados com o sistema social, econômico e político vigente.
Estudar três etapas distintas do processo de planejamento urbano, as décadas de 20, 60 e 70,
dentro da realidade brasileira, abordando o conteúdo ideológico de cada plano produzido em cada
uma delas, exige um referencial teórico que deve ser baseado na economia, na sociologia e na
filosofia.
A discussão de múltiplas teorias desenvolvidas por vários autores nos parece aqui deslocada
do objetivo do trabalho. Adotaremos uma linha teórica que parece a mais conveniente, não só pela
concordância entre os autores selecionados, como pela especificidade do objeto de estudo, que são
planos reais produzidos em épocas diversas quanto aos aspectos político e ideológico. A
conceituação do planejamento urbano empreendido pelas administrações públicas como o processo
de gestão especialmente do consumo dentro das cidades torna-se o ponto de partida. A maneira
como se realiza essa gestão, a ação do setor público com vistas à organização, serve como origem
para o melhor entendimento de seus produtos, os planos de urbanismo.
A definição de gestão é estabelecida por M. Castells 9, a partir da necessidade de determinar
conceitos que expliquem a relação entre diferentes situações estruturais existentes nos problemas
urbanos. O autor introduz o conceito de sistema urbano, que se refere à articulação entre os
elementos fundamentais do sistema econômico:
Estes elementos do sistema urbano são, na verdade, intervenções de agentes sociais sobre
elementos materiais. As combinações entre eles dependerão das leis estruturais da sociedade em
que o espaço urbano está incluído. Esse espaço urbano ou unidade espacial, como o define Castells,
será transformado pelas relações entre os diferentes elementos: produção, consumo, intercâmbio e
gestão. No entanto, é sobre a gestão do sistema urbano que concentraremos nossa atenção.
Podemos perceber, claramente, que o planejamento urbano é uma intervenção do elemento
gestão sobre qualquer dos outros elementos, inclusive ele próprio, ou sobre suas respectivas
relações. Algumas vezes a intervenção tem por objetivo equilibrar um desajustamento na produção,
outras vezes no consumo. No entanto, essas intervenções estão circunscritas aos limites do modo da
produção, pois, caso contrário, não se trata de regulação do sistema, mas de seu oposto, de um
desregramento 10. Essa intervenção, portanto, só pode acontecer dentro dos limites da sociedade
concreta, respeitando a articulação essencial do modo de produção dominante, mas procedendo
simultaneamente aos retoques necessários nas articulações não-essenciais.
Nesse ponto, cabe introduzir, tal como adotado por Castells, o corpo conceitual,
especialmente o desenvolvido por Louis Althusser 11, a partir da teoria marxista, e onde a idéia central
é o modo de produção.
9
Castells, Manuel. Problemas de investigação em sociologia urbana, Editorial Presença, Portugal, 1915, p. 225.
10
lbid., p. 229.
11
Castells cita os seguintes autores, que desenvolveram um conjunto de conceitos a partir da leitura de O Capital:
Althusser, L. La revolution teórica de Marx, Siglo XXI, México. 1967; Althusser e Balibar, Lire de Capital, Librairie Maspero, e
Badiou, Alain. Le recommencement du materialisme dialectique, Critique, 1967; ibid., p. 221.
Modo de produção significa uma forma específica de articulação dos elementos fundamentais
de uma estrutura social, ou seja, o sistema econômico, o sistema jurídico-político e o sistema
ideológico. Um dos sistemas parciais é sempre dominante em relação aos demais, pois é o sistema
especialmente encarregado da reprodução. O sistema econômico, por seu lado, é sempre o
determinante, pois define qual dos sistemas parciais será o sistema dominante. No modo de pro-
dução capitalista (MPC), o único que foi cientificamente estudado no aspecto econômico, o sistema
econômico é não apenas determinante como também dominante.
Louis Althusser, para melhor explicar a estrutura social, lança mão da metáfora de um edifício
constituído de base e estrutura superior 12. Qualquer sociedade, segundo Marx, é estruturada em
níveis ou instâncias, articuladas segundo uma infra-estrutura ou base econômica e uma
superestrutura dividida nos níveis jurídico-político (o direito e o Estado) e o ideológico (as diferentes
ideologias). Assim, a produção da ideologia se dá no nível da superestrutura. A base econômica
determina e influencia os níveis da superestrutura, mas ao mesmo tempo há uma ação de retorno da
superestrutura sobre a base.
Toda formação é conseqüência de um modo de produção dominante. E, para existir, toda
formação social deve produzir e por isso também reproduzir as forças produtivas, entre elas a força
de trabalho, mão-de-obra e as relações de produção existentes. A força de trabalho tem assegurada
a sua reprodução através de vários fatores como: salário, habitação, alimentação, etc. É
especialmente no espaço urbano, na apropriação desse espaço e seus equipamentos que se dará
essa reprodução. Através do consumo coletivo sob a forma de habitação, parques, vias, áreas livres
e amenidades, consumo esse diferenciado de acordo com o poder de compra dos elementos da força
produtiva, é que acontecerá essa reprodução.
No entanto, não basta assegurar as condições materiais de reprodução de força de trabalho
13
, mas também uma reprodução da submissão dessa força de trabalho às regras da ordem
estabelecida, tarefa que cabe à ideologia. Tentaremos delimitar o que seja o fenômeno ideológico.
3. O CONCEITO DE IDEOLOGIA
Nada mais controvertido do que a noção de ideologia, pois se para uns é um conceito, e até
mesmo um conceito científico, para outros se trata apenas de uma noção vaga e banal. Embora a
expressão tenha sido forjada por Destutt de Tracy (França, 1796-1801) 14, foi a teoria marxista que
enfatizou e desenvolveu metodicamente a questão da ideologia.
Dentro dessa perspectiva, o ponto de partida, ao se considerar a ideologia, é o fato de que
para os homens, o ato de pensar, a produção de idéias é posterior ao ato de produzir seus meios de
vida. A idéia em Marx não é a de partir daquilo que os homens pensam, se imaginam, se
representam, mas ao contrário, partir dos homens em sua atividade real. Isto é, toda produção
intelectual é conseqüência direta da produção material dos homens.
Toda e qualquer ideologia, portanto, não possui autonomia, mas “os homens, ao
desenvolverem sua produção material e seu intercâmbio material, transformam também, com esta
sua realidade, seu pensar e os produtos de seu pensar” 15. Isso significa que a produção de idéias
está diretamente vinculada à atividade de produzir bens materiais, constituindo-se conseqüência
direta dessa produção. No entanto, o campo da ideologia vem a ser o campo das imagens através do
qual são explicados o social e o político e justificadas as formas de desigualdades encontradas na
realidade concreta, através de idéias gerais como Pátria, Progresso, Família, Estado e Ciência.
12
Althusser, Louis. Ideologia e aparelhos ideológicos de estado, Editorial Presença, Portugal, 1974, p. 27.
13
Torna-se necessário, também, reproduzir a qualificação da força produtiva através do sistema escolar objetivando a
divisão social técnica do trabalho nos diferentes empregos. Ibid., p. 20.
14
Destutt de Tracy considerava a ideologia como o estudo das idéias, dos estados de consciência, em oposição à
metafísica como estudo do mundo transcendental. Souza Daniel. A ideologia, os ideólogos e a política, Lisboa. Livros
Horizonte, 1978, p. 80.
15
Marx & Engels. A ideologia alemã. São Paulo. Ciências Humanas. 1979. p. 37.
Marilena Chauí 16 coloca que o campo da ideologia é o campo imaginário, não no sentido de ilusão ou
de fantasia, mas no sentido do conjunto de imagens ou representações que são tomadas como
capazes de explicar e justificar a realidade concreta. O social é, então, investido de uma aparência
que constitui uma inversão da realidade, e que vem a ser a forma pela qual ele se manifesta para as
pessoas ou agentes sociais. Marx chega a usar a expressão “câmara escura” 17 para mostrar que em
toda ideologia os homens e suas relações nos aparecem como se estivessem de cabeça para baixo.
Outro ponto a considerar é a necessidade de existência de uma sociedade histórica, para que
seja possível a emergência da ideologia. Pois quando é possível falarmos de ideologia? Em seu
artigo “Crítica e Ideologia”, Marilena Chauí mostra que só é possível falarmos de ideologia em uma
sociedade histórica. “Embora sempre haja ideologias, considero que só é possível falar em ideologia
como algo bastante definido (isto é, o império das idéias para escamotear o império dos homens
sobre outros) somente a partir de um determinado campo de questões, que é circunscrito pelo
advento do que podemos chamar uma sociedade histórica” 18.
Em um sentido amplo, coloca a autora, toda sociedade é histórica. Isso significa que possui
data própria e questões próprias. Mas aqui o sentido adotado para sociedade histórica é aquela para
o qual o fato de possuir uma data, de transformar-se, de poder se extinguir, é uma questão e um
tema de reflexo. O porquê dessa questão se situa nas ações dos próprios homens enquanto agentes
sociais, o que significa que essas ações dão origem à sociedade, enquanto essa mesma sociedade
determina a atuação desses agentes sociais.
E portanto, segundo a autora, no momento que os agentes sociais não contam com um saber
anterior e exterior que legitime a existência de certas formas de dominação, como é o caso das
sociedades que possuem uma explicação teológica, mística, de sua existência, nesse momento é que
se torna necessário algo que explique e pense as relações de poder, o político e o social 19 . De fato,
o ato fundador de um grupo é político em sua essência e uma comunidade histórica só se torna uma
realidade política tornando-se capaz de decisão, daí surgindo o fenômeno da dominação. E nesse
momento que a ideologia tem uma função bem determinada, fazer com que o ponto de vista
particular do grupo que assume o poder apareça para o todo social como sendo o ponto de vista do
universal. Aqui, estamos diante da concepção marxista da sociedade, que pane do pressuposto de
que o social histórico é definido pela divisão e luta de classes.
Encontramos em Marx a definição desse conceito de universalidade da ideologia: “Cada nova
classe que toma o lugar da que dominava antes dela é obrigada, para alcançar os fins a que se
propõe, a apresentar seus interesses como sendo o interesse comum de todos os membros da
sociedade, isto é, pensa expressar isso em termos ideais: é obrigada a emprestar às suas idéias a
forma de universalidade, a apresentá-las como sendo as únicas racionais, as únicas universalmente
válidas” 20.
É nesse contexto que se percebe o que vem a ser a tarefa da ideologia. Pois admitir a
existência de uma sociedade em classes seria assumir-se como representante de uma das classes e,
portanto, admitir o exercício do poder. Torna-se, então, necessário elaborar um conjunto de
explicações do social com a função precisa de escamotear o conflito, a dominação, a divisão e a
presença do ponto de vista particular, dando-lhe a aparência de ser o ponto de vista universal. Como
diz M. Chauí: “Para ser posto como representante do social no seu todo, o discurso do poder precisa
ser um discurso ideológico, na medida em que o discurso ideológico se caracteriza, justamente, pelo
ocultamento da divisão, da diferença e da contradição” 21.
A reprodução da ideologia se dá através das pessoas, ou seja, agentes sociais a quem ela
fornece uma resposta ao desejo de unidade, identidade e ao medo da desagregação social. E essa
resposta é dada pela ideologia dominante, na medida em que “Os pensamentos da classe dominante
16
Chauí. Marilena. Crítica e ideologia. Cadernos Seaf, 1:20, ago. 1978.
17
Marx. Op. cit., p. 37.
18
Chauí, Marilena. Op. cit., p. 17.
19
Ibid., p. 18.
20
Marx & Engels. Op. cit., p. 74.
21
Chauí, Marilena. Op. cit., p. 21.
são, em cada época, os pensamentos dominantes, isto é, a classe que possui o poder material
dominante na sociedade possui, ao mesmo tempo, o poder espiritual dominante” 22.
Nesse ponto, torna-se necessário introduzir o conceito de 1.000 AIthusser de “aparelho
ideológico de Estado” (A.I.E.) 23. O autor o define como um certo número de realidades que se
apresentam ao observador imediato sob a forma de instituições distintas e especializadas e que são
os aparelhos ideológicos religioso, escolar, familiar, jurídico, cultural, etc. Seu objetivo é divulgar e
reproduzir a ideologia dominante no sistema.
Os aparelhos ideológicos de Estado não se confundem com o aparelho de Estado que
compreende o Governo, a Administração, o Exército, a Polícia, etc..., chamado aparelho repressivo
de Estado. Uma característica relevante e essencial é que esse aparelho pertence ao domínio
público, enquanto a maioria dos aparelhos ideológicos de Estado pertencem ao domínio privado.
Todos os aparelhos de Estado, no entanto, funcionam simultaneamente pela repressão e pela
ideologia, prevalecendo um ou outro elemento, exatamente quando se tratar, como o próprio nome o
define, de um aparelho repressivo ou ideológico de Estado.
Assim a administração pública, colocada por Althusser junto aos demais níveis de governo,
faz parte do aparelho repressivo de Estado, embora funcione também pela ideologia 24. Esse
conteúdo ideológico assegura a sua própria coesão e a aceitação de suas ações.
Observamos, portanto, a importância da ideologia para a gestão dentro do sistema urbano,
quando se trata de unificar os habitantes do espaço em torno de decisões tomadas parcialmente, que
diversas vezes têm sua origem no interesse de determinados grupos sociais.
A administração pública, no exercício da gestão do urbano, especialmente do consumo,
necessita que suas ações sejam respeitadas e identificadas como aquelas que maiores benefícios
trazem para esses habitantes e que têm o bem comum por objetivo. Da mesma forma, os planos de
urbanismo que determinam sobre o espaço e sobre os equipamentos urbanos necessitam ser
identificados como portadores do interesse geral e não de uma classe particular 25, escamoteando o
conflito, na tentativa de universalizar os conceitos implícitos nas suas decisões.
4. RACIONALIDADE E CRISE
Dentro da ideologia encontramos certos conceitos que objetivam sua aceitação, obtendo nos
agentes sociais, os homens, uma concordância em relação a seus valores. Um desses conceitos é o
de racionalidade. Outro é o de crise.
Como coloca Marilena Chauí 26, a ideologia tem por fim fazer com que o discurso sobre as
coisas coincida com elas próprias e, para isso, precisa afirmar que as coisas são racionais e que a
racionalidade está inscrita no real, sendo tarefa do pensamento, somente, redescobrir essa
racionalidade, já inscrita no real.
Deve-se observar, também, que a racionalidade ideológica é aquela presente na lógica e que
sustenta o que se entende por ciência. A ciência é considerada o lugar não-ideológico. Essa
afirmação escamoteia o fato de que toda produção de conhecimento está ligada às necessidades
concretas de aplicação, ainda que não-imediata, desse conhecimento, ou seja, responde a uma
necessidade de ordem material. O conhecimento, portanto, não é distante, neutro, mas
necessariamente enraizado na vida dos homens.
Aquilo que permanece é a crença na objetividade, pois a ideologia, na sua manifestação
científica, tem o culto da objetividade, pretendendo ser uma representação real das coisas.
Entretanto, no momento em que a ciência tem o direito de explicação sobre todo o real, em que se
22
Marx & Engels. Op. cit., p. 72.
23
Althusser. Louis. Op. cit., p. 41.
24
Ibid., p. 54.
25
“É justamente desta contradição entre o interesse particular e o interesse coletivo que o interesse coletivo toma, na
qualidade de Estado, uma forma autônoma, separada dos reais interesses particulares e, ao mesmo tempo, na qualidade de
uma coletividade ilusória.” Marx & Engels. Op. cit., p. 48.
26
Chauí, Marilena. Op. cit., p. 26.
tornou definitiva a nossa confiança sobre a explicação científica, é que ela se torna o lugar
privilegiado da ideologia do mundo contemporâneo 27. Esse privilégio lhe advém da crença de que o
real é racional e transparente, faltando apenas aprimorar os procedimentos científicos e o
aparelhamento tecnológico para que se obtenha a racionalidade total.
A autora, contudo, lembra que o que é designado como ideológico não e a racionalidade
dentro do real, mas aquilo que a ciência entende por racionalidade. Essa racionalidade é sinônimo de
não-contradição, pois o contraditório é visto como sinônimo do irracional. A ciência, assim, pelo
crédito que lhe é dado no mundo contemporâneo e por existir a seu serviço técnicas sofisticadas,
realiza as finalidades da ideologia muito melhor que ela própria. Sua finalidade seria testemunhar
uma verdade que estaria inscrita nas próprias coisas. Como conseqüência, sua principal tarefa é
redescobrir a racionalidade no que está posto aí diante de nós,
Dentro dessa perspectiva, uma das manifestações dessa racionalidade é a construção da
objetividade, isto é, aquilo que faz com que uma realidade seja convertida em objeto de
conhecimento. “Algo é conhecido objetivamente, quando é possível dominá-lo inteiramente pelas
operações do entendimento. A noção de objetividade está vinculada, portanto, à idéia de poder:
conhecer é exercer um poder, na medida em que conhecer é conhecer o objetivo, e o objetivo foi
construído de tal modo que ele se tornou esgotado teoricamente” 28. Dessa forma, a noção de
objetividade não pode ser separada do exercício da dominação.
A noção de crise está vinculada à idéia de que o real é o racional, não possuindo contradições
internas, mas somente divisões estruturais. Por essa abordagem, a sociedade é constituída por uma
série de subsistemas dotados de racionalidade própria, constituindo um todo racional. Noções como
planificação, planejamento, entre outras, estão vinculadas a essa visão estrutural e funcionalista, de
um todo composto de partes de racionalidade própria e articuladas 29.
A explicação para o momento em que essas racionalidades parciais não se articularem
harmoniosamente é o conceito de crise. A crise é imaginada, então, como um movimento da
irracionalidade que invade a racionalidade, gera desordem, necessitando, portanto, que a
racionalidade seja restaurada. Além disso, esse conceito permite representar a sociedade como
invadida por contradições, mas simultaneamente tomar as contradições como um acidente provocado
por enganos.
A crise serve, portanto, para opor uma ordem ideal a uma desordem real, que é encarada
como algo inadequado. Longe de surgir como algo que ateste e ponha à prova a ideologia dominante,
a noção de crise realiza a tarefa ideológica de confirmar e reforçar a representação dos
acontecimentos. Dessa maneira, a crise nomeia os conflitos no interior do social para melhor
escondê-las e serve para ocultar a crise verdadeira. Sua maior contribuição é mobilizar os agentes
sociais, suscitando o medo da desagregação social e oferecendo-lhes a oportunidade de restaurar
uma ordem sem crise 30.
Dentro da área de planejamento urbano, a crise urbana é comumente invocada no sentido de
se elaborar um plano ou efetuar um conjunto de ações que lhe dêem fim e restabeleçam a ordem. A
irracionalidade do urbano é oposta a racionalidade dos planos de urbanismo, que nomeiam os pontos
de desordem na tentativa de equacioná-los. Mais que isso, e empreendida uma tentativa de conhecer
“objetivamente” o espaço urbano, isto é, dominá-lo inteiramente pelas operações do intelecto,
tentando dizer tudo o que o espaço urbano é ou deve ser.
Todos os planos tentam fazer crer que estão capacitados a resolver os problemas urbanos
que nomeiam. Em geral, elaboram uma listagem desses problemas que vão fazer parte do
diagnóstico da situação da cidade. O porquê de se levantarem problemas que não são passíveis de
solução com esses planos e o porquê da própria existência de uma política de planejamento, que
determina uma gestão específica do consumo coletivo, podem ser respondidos pelo conteúdo
ideológico de cada ação de planejamento. Ao nomear os problemas que são conseqüências de
27
Ibid., p. 27.
28
Ibid., p. 25.
29
Ibid., p. 31.
30
Ibid., p. 32.
outros, está sendo cumprida a tarefa ideológica de escamotear os problemas originais. Ao se opor um
plano “racional” a uma desordem espacial é dada, aparentemente, a solução para o espaço urbano.
Extraído de: Rezende, Vera. Planejamento urbano e ideologia. Quatro planos para a cidade
do Rio de Janeiro. RJ: Civilização brasileira, 1982, (p.19-30)