MONOGRAFIA - Bruno Francisco Diniz Marinho. As Relações Entre As Narrativas Míticas e Históricas Nas Obras de Paul Veyne e Mircea Eliade.
MONOGRAFIA - Bruno Francisco Diniz Marinho. As Relações Entre As Narrativas Míticas e Históricas Nas Obras de Paul Veyne e Mircea Eliade.
MONOGRAFIA - Bruno Francisco Diniz Marinho. As Relações Entre As Narrativas Míticas e Históricas Nas Obras de Paul Veyne e Mircea Eliade.
Mariana
Instituto de Ciências Humanas e Sociais/ UFOP
2010
BRUNO FRANCISCO DINIZ MARINHO
Mariana
Instituto de Ciências Humanas e Sociais/ UFOP
2010
Dedico a minha mãe.
AGRADECIMENTOS
Agradeço aos amigos, Adner Sena, Raoni Soares e Braulio Felisberto, que me
ajudaram revisando o trabalho. Agradeço à Quemele Paes de Almeida que fez a revisão
final deste texto.
Agradeço aos amigos, que fiz na faculdade e fora dela, que sempre me deram
força para que eu alcançasse meus objetivos. Agradeço ao meu pai, cuja curiosidade me
incitou a aventurar pelo mundo do conhecimento. Agradeço minha mãe, suas conversas
e histórias foram essenciais para minha formação, não só acadêmica, mas também,
como ser humano. Agradeço às minhas irmãs, Caetana, Marina e Simone, que sempre
me apoiaram.
RESUMO
ABSTRACT
Commonly the concepts of myth and history are classified as opposites. Myth is lie,
fable, invention of ingenuous minds. The history is considerate a true report, as it must,
according to Ranke, knowing “what really happened”. This monograph discusses this
issue from two works: “Did the Greeks Believe in Their Myths? An Essay on
Constitutive Imagination” by Paul Veyne and “Cosmos and History: The Myth of the
Eternal Return” by Mircea Eliade. We investigate how these authors understand the
distinction between the concepts of history and myth in the societies they study.
SUMÁRIO
1. Introdução 6
5. Conclusão 30
6
Introdução
Esse estudo monográfico tem por objetivo pesquisar como se pode entender a distinção
história/mito, tendo em mente sua articulação nas narrativas das diferentes sociedades. Muitas
vezes esses termos são entendidos a partir da oposição verdade/mentira. Queremos mostrar que o
mito também pode ser entendido como verdade. Mostraremos aqui como dois autores: Paul
Veyne e Mircea Eliade entendem essa distinção nas sociedades que estudam. O primeiro estuda a
sociedade grega. O segundo pesquisa as sociedades arcaicas.
O primeiro capítulo é, como diz o título, uma introdução à problemática que vai ser
explorada nos capítulos seguintes. Primeiro traremos a concepção usual dos termos, isto é, como
mito e história são entendidos pela linguagem comum. Em seguida, colocaremos como alguns
pensadores do século XX estudam os mitos. Tais pensadores demonstraram que o mito pode ser
entendido como verdade e que, longe de constituírem uma oposição radical, a narrativa histórica
e a narrativa mítica possuem pontos em comum.
O segundo capítulo apresentará uma investigação da obra de Paul Veyne “Acreditavam os
gregos em seus mitos.” Nesta investigação buscaremos entender como é feita a distinção entre a
narrativa histórica e a narrativa mítica no mundo grego. Veyne mostra que os historiadores
antigos viam nos mitos um acontecimento verdadeiro que, com o passar do tempo, ganhou
versões fantasiosas. Restava, então, aos historiadores gregos retirar dos mitos seu núcleo
verdadeiro. Portanto, as histórias contadas pelos mitos não eram totalmente falsas (ou
mentirosas). Eram fontes que necessitavam de crítica para que os enredos ganhassem suas
versões históricas, reais.
O terceiro capítulo segue com um estudo da obra de Mircea Eliade “O mito do eterno
retorno.” Percebe-se nessa obra que o autor tenta mostrar a visão que a sociedade arcaica possui
sobre seus mitos. Nessas sociedades as narrativas míticas só têm validade porque são repetidas
nos cerimoniais. Além disso, as histórias narradas pelos mitos baseiam-se em arquétipos que
podem ser encontrados em diversos relatos. Diferem nesse ponto das narrativas históricas, que
são válidas justamente porque os acontecimentos aí narrados são vistos como únicos e
irreversíveis.
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Mito e História são dois conceitos que geralmente são classificados como opostos.
O mito, na linguagem comum, é entendido como uma história falsa, fantasiosa. No livro “Myth:
A Very Short Introduction”, publicada pela Oxford, o autor Robert Segal nota essa concepção:
In today’s parlance, myth is false. Myth is ‘mere’ myth. For example, in 1997 historian
William Rubinstein published The Myth of Rescue: Why the Democracies Could Not
Have Saved More Jews from the Nazis. The title says it all. The book challenges the
common conviction that many Jewish victims of the Nazis could have been saved if
only the Allies had committed themselves to rescuing them. Rubinstein is challenging
the assumption that the Allies were indifferent to the fate of European Jews and were
indifferent because they were anti-Semitic. For him, the term ‘myth’ captures the sway
of the conviction about the failure to rescue more fully than would tamer phrases like
‘erroneous belief’ and ‘popular misconception’. A ‘myth’ is a conviction false yet
tenacious(SEAGAL: 2004: 6).1
(...) contam-se muitas vezes coisas nada verdadeiras entre a multidão, que não
compreende nada da história e que acredita digno de fé o que ela escutou desde a infância
nos coros e nas tragédias. Narram-se tais coisas a propósito de Teseu, por exemplo; mas,
na realidade, Teseu foi um rei que subiu ao trono com a morte de Menesteu, e seus
descendentes conservaram o poder até a quarta geração (VEYNE, 1985: 25).
Essa distinção não é idêntica à nossa. O mito, para os gregos, era considerado uma
história falseada. Mas havia nessa narrativa um fundo de verdade que a crítica histórica deveria
recuperar. Os mitos teriam parte de seu enredo “falsificado” pela ingenuidade das pessoas. Os
historiadores efetuavam seu método crítico, utilizando aquilo que Paul Veyne chama de “doutrina
das coisas atuais”. Esse método consistia em julgar o que existia ou não no passado a partir do
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Nos dizeres de hoje em dia, o Mito é falso. O Mito é “o mero” Mito. Por exemplo, em 1997, o historiador William
Rubinstein publicou “O mito do Resgate: por que as democracias não salvaram mais judeus dos nazistas”. O título
diz tudo. O livro desavia a convicção comum de que muitos Judeus vítimas do Nazismo poderiam ser salvas se
apenas os Aliados se comprometessem a resgatá-las. Rubinstein está desafiando a concepção de que os Aliados eram
indiferentes ao destino dos Judeus Europeus e eram indiferentes porque eram Anti-Semitas. Para ele, o termo ‘Mito’,
captura o balanço da convicção sobre a falha em resgatar mais completamente do que poderiam frases moderadoras
como ‘crenças errôneas’ e ‘equívocos populares’. Um ‘Mito’ é uma convicção falsa e persistente (Tradução nossa).
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que existe na atualidade. Ora, pensavam os gregos, se os minotauros não existem nos dias de
hoje, por que existiriam no passado?
Paul Veyne comenta um trecho de Pausânias e afirma que o pesquisador separou na
história de Teseu, o joio do trigo, distinguindo nela o que havia de autêntico do que tinha de
fantasioso. Separou nos relatos sobre o rei o que pertenceria à história e seria digno de crença de
acordo com o pensamento histórico, daquilo que era lenda e que não poderia ter acontecido. Essa
forma de proceder era comum entre outros pesquisadores antigos, procedimento que “consiste em
ver no mito uma tradição oral, uma fonte histórica, que é necessário criticar (...)” (VEYNE, 1985:
25). Para eles os relatos míticos remetem a acontecimentos de períodos longínquos. Só que no
decorrer do tempo os relatos transmitidos geração a geração teriam adquirido versões fantasiosas.
A missão do historiador antigo seria, então, descobrir o núcleo “verdadeiro” desses relatos. Nota-
se que os primeiros historiadores já criticavam o mito e viam nele uma versão “fantasiosa”
daquilo que aconteceu. Ao assumir essa postura, os historiadores delimitaram o campo que
pertence à história e que deve ser julgado como verdadeiro de acordo com o pensamento
histórico.
Como mostra Paul Veyne, para os gregos, a distinção entre as concepções de história e de
mito implicavam um grande número de questões: Acreditavam eles em seus mitos? Acreditavam,
mas não como “acreditamos na realidade que nos circunda”, e sim como as crianças acreditam
em Papai Noel embora saibam que são seus pais que deixam os presentes para elas durante a
noite, ou até mesmo como se acredita em fantasmas. Veremos com Veyne que não é contraditório
acreditar em dois programas de verdade. Portanto, é possível conciliar a verdade contida nos
mitos com a verdade colocada pela história.
É necessário lembrar que o estudo dos mitos engloba uma infinidade de questões e que
existem diversas interpretações para um mito específico como para a mitologia em geral. Mircea
Eliade lembra que “seria difícil uma definição de mito que fosse aceita por todos os eruditos e, ao
mesmo tempo, acessível aos não-especialistas” (ELIADE, 1972: 11). E Lévi-Strauss vai criticar a
postura de Sigmund Freud ao tentar dar uma interpretação definitiva aos mitos, na qual ele
acreditava ser a visão “original”:
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Nunca a psicanálise pôde demonstrar que suas interpretações dos mitos recuperam
formas originais — mesmo porque a forma original (supondo-se que a noção tenha
algum sentido) é e sempre será inatingível, já que todo mito, por mais que se retroceda,
só é conhecido porque foi ouvido e repetido... (LÉVI-STRAUSS, 1985: 234).
Ao invés disso, lembra o etnólogo, o que Freud fez foi dar aos mitos uma versão atual.
Essa interpretação original é para Lévi-Strauss, inalcançável. O mito possui diversas
interpretações. Cada uma delas é, à sua maneira, verdadeira.
Veremos aqui que a separação radical entre mito e história é apenas aparente. A partir do
século XX alguns autores vão trazer um novo olhar sobre o mito, como afirma Mircea Eliade:
Há mais de meio século, os eruditos ocidentais passaram a estudar o mito por uma
perspectiva que contrasta sensivelmente com a do século XIX, por exemplo. Ao invés de
tratar, como seus predecessores, o mito na acepção usual do termo, i.e, como “fábula”,
“invenção”, “ficção”, eles o aceitaram tal qual era compreendido pelas sociedades
arcaicas, onde o mito designa, ao contrário, uma história verdadeira e, ademais,
extremamente preciosa por seu caráter sagrado, exemplar e significativo (ELIADE,
1972: 7).
Basta uma leitura dos grandes autores (Lévi-Strauss, Ricoeur, Veyne...) que trabalharam
essa questão para percebermos que a oposição mito/história deve ser problematizada e veremos
que em alguns pontos os dois campos se parecem ocupando a mesma função, este é o argumento
de Claude Lévi-Strauss:
O que se descobre ao ler estes livros é que a oposição – a oposição simplificada entre
mitologia e história a que estamos habituados a fazer – não se encontra bem definida, e
que há um nível intermédio (LÉVI-STRAUSS, 1978: 41).
Em outro trecho o autor diz: “Não ando longe de pensar que, nas nossas sociedades, a
História substitui a Mitologia e desempenha a mesma função (...)”(LÉVI-STRAUSS, 1978: 63).
Paul Ricoeur também problematiza a questão:
2
Grifo nosso.
11
(...) mais precisamente seria necessário saber se a literatura ou a religião são mais
ficções do que a história ou a física e vice-versa; dizemos que uma obra de arte é, á sua
maneira, considerada como verdadeira, mesmo onde ela passa por ficção, pois a
verdade é uma palavra homônima que não deveria se empregar senão no plural: só
existem programas heterogêneos de verdade e Fustel de Coulanges não é nem mais nem
menos verdadeiro que Homero, ainda que seja de outra forma (...)”(VEYNE, 1985: 31).
Este trabalho adota como procedimento, a princípio, uma análise arqueológica da obra de
Paul Veyne: “Acreditavam os gregos em seus mitos?.” Na tentativa de encontrar nessa obra como
se articula a distinção entre história e mito no mundo grego, buscaremos entender como
historiadores e leigos viam os mitos e sua relação com a história. Veremos, também quais eram
as implicações dessa visão para o entendimento da verdade, para, a seguir, realizar uma analise
de “O mito do eterno retorno” de Mircea Eliade, onde questões parecidas vão ser colocadas
buscando entender a distinção mito/história no contexto das sociedades arcaicas. Procedendo
assim faremos classificações que as próprias obras não explicitavam. Como define Michel
Foucault, o método guiará esse trabalho:
Não é nada mais e nada diferente de uma re-escrita: isto é, na forma mantida da
exterioridade, uma transformação regulamentada do que já foi escrito. Não é o retorno
ao segredo da origem; é a descrição sistemática de um discurso-objeto (FOUCALT,
1971: 173).
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Capítulo II: História e Mito no mundo grego a partir da obra de Paul Veyne
Os historiadores antigos nunca citavam suas fontes e nem mesmo distinguiam as fontes
primárias das secundárias. Ao tentar buscar as razões para esse silêncio, Paul Veyne nota que a
história como conhecemos hoje é totalmente diferente daquela feita pelos historiadores clássicos,
tendo em comum somente o nome. Isso não implica dizer que aquela forma de se fazer história
fosse imperfeita: “estava tão acabada, como meio de merecer crédito quanto o nosso jornalismo
(...)” (VEYNE: 1983: 15). O historiador antigo não colocava notas de rodapé, pois queria que
acreditassem na sua palavra.
O historiador Estienne Pasquier em 1560 era bastante criticado por fornecer, com
freqüência, a referência de suas fontes. Não se esperava que o historiador mostrasse de onde ele
tinha tirado aquela informação para que seu relato tivesse credibilidade. Essa credibilidade viria
com o tempo, assim como aconteceuram com os historiadores antigos.
Paul Veyne lembra que, entre os gregos, a idéia de história era diferente: “a verdade
histórica era uma vulgata que consagra o acordo dos espíritos ao longo dos séculos, esse acordo
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sanciona a verdade” (VEYNE, 1983: 16). Ao invés de estabelecer a verdade por referência, o
autor deveria esperar “que ele mesmo fosse reconhecido como texto” (VEYNE, 1983: 16). Ao
colocar referências ele iria tentar “forçar o consenso da posteridade em torno da sua obra”
(VEYNE, 1983: 16). Não podemos considerar que a distinção entre fontes primárias e
secundárias fosse ignorada, ou ainda não tivesse sido descoberta, ela simplesmente não era
necessária.
Os historiadores modernos vêem os seus antecessores como fontes, porém os
historiadores antigos percebiam a versão de seus predecessores como uma tradição que deveria
ser retomada no sentido de melhorá-la. Tito Lívio e Dionísio de Halicarnasso reuniam o que
diziam seus antecessores sem questionar se o que eles diziam era ou não verdade. Somente
suprimiam os detalhes que lhes pareciam falsos, tampouco questionavam como os historiadores
sabiam sobre os acontecimentos que relatavam, ou sobre a distância temporal do historiador e seu
objeto. Eles sabiam que os primeiros historiadores de Roma tinham sido posteriores a Rômulo
quatro séculos, mas para eles “a tradição estava lá e ela era a verdade, eis tudo” (VEYNE, 1983:
17).
Outra função considerada importante pelos historiadores antigos era a de se relatar a
história de seu tempo. Isso porque o passado já tinha seus historiadores. Já na
contemporaneidade precisaríamos de um historiador que se tornasse fonte histórica para o futuro,
estabelecendo-se assim a tradição. O historiador antigo não utilizava fontes e documentos, pois
ele mesmo assumia esse papel de fonte e documento. Tornava-se, então, um porta-voz da
história.
Por algumas vezes, o historiador antigo poderia falar que suas fontes apresentavam
alguma divergência, mas não fazia disso um elemento de prova, somente citava algum detalhe
duvidoso. Podia ele também transcrever um documento, mas com a intenção de ilustrar o leitor e
não de provar algo. No passado, os historiadores eram autoridades para seus sucessores, poderia
ser, no entanto, que estes os criticassem. Faziam isso para eliminar os supostos erros e não para
reconstruir o trabalho já feito.
O historiador antigo não citava suas “autoridades”, pois ele mesmo se considerava uma.
Não é possível saber de onde Políbio ou Tucídides tiraram as informações contidas em seus
relatos, porém se nos empenharmos em traçar uma origem de como a verdade histórica surgiu
como vulgata, a encontraríamos na Grécia. A história não surgiu, como em nossos tempos, da
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controvérsia, mas sim da investigação. Quando se investiga, só se pode dizer: “eis o que eu
constatei, eis o que foi me dito nos meios geralmente bem informados (...)” (VEYNE, 1983: 20).
Tanto é que a veracidade de um relato jornalístico não se faz pela citação das fontes contidas no
texto, mas pela crítica interna feita pelo jornalista. Veyne citando um historiador antigo lembra
que “um bom historiador, diz Tucídides, não acolhe cegamente todas as tradições que lhe foram
narradas: ele deve saber verificar a informação, como dizem nossos repórteres” (VEYNE, 1983:
21).
O historiador antigo não precisava colocar o processo de seleção das informações aos
olhos dos leitores. Ele assumia a responsabilidade sobre a informação que fornecia. O historiador
moderno, por outro lado, propõem uma interpretação e fornece aos leitores meios de verificar
essas informações. O antigo não se preocupava em deixar claro de onde tirou suas informações,
pois considerava que o trabalho de investigar era do historiador e não do leitor: “Pois seu leitor
não era ele mesmo um historiador, não mais do que os leitores de jornais são jornalistas: uns e
outros confiam no profissional” (VEYNE, 1983: 21).
Em certo momento de seu texto Paul Veyne se pergunta: “Quando e por que mudou a
relação do historiador com seus leitores? Quando e por que se começou a dar suas referências?”
(VEYNE, 1983: 21). O autor lembra que Gassendi em seu “Syntazma philosophiae Epicurae”
não citava suas referências, de forma que nada distinguia o pensamento de Epicuro e de
Gassendi. Pretendia assim retomar o epicurismo na sua verdade eterna, verdade essa que é
anônima.
O hábito de citar as fontes não vem de historiadores, mas sim de “controvérsias teológicas
e práticas juristas” (VEYNE, 1983: 22). Esta idéia cresce juntamente com o aumento das
universidades e o crescimento de sua importância. Nesse contexto era preciso atirar “(...) as
provas no rosto, antes de dá-las a compartilhar aos outros membros da “comunidade científica””
(VEYNE, 1983: 22). Na Universidade, os historiadores não escrevem mais para os leitores e sim
para outros historiadores, daí a necessidade de mostrar suas provas. Em Pausânias e Heródoto,
Veyne mostra que muitas vezes os historiadores demonstraram que não acreditam em parte do
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que eles relatam, o dever destes historiadores era como diz Heródoto de “(...) dizer o que me foi
dito, mas não o de acreditar em tudo (...)”(VEYNE, 1983: 23).
Caso um historiador moderno quisesse contar lendas e fatos nos quais ele mesmo não
acredita, ele atentaria contra a ciência. Por outro lado o historiador antigo possuía um público
mais amplo e menos especializado, de forma que alguns queriam ler história por diversão, outros
traziam um olhar mais crítico ou ainda liam história para usá-la na política e na estratégia. Dessa
forma o historiador poderia mostrar a verdade de maneira variada, atentando para o seu público.
Antes da era Nietzsche e Max Weber, a era da controvérsia segundo Paul Veyne, os fatos
existiam, o historiador não precisava interpretá-los, pois eles estavam dados. Veyne diz que nesse
momento o historiador precisava possuir três características que são as de um bom jornalista
hoje: “diligência, competência e imparcialidade”. Ele vai agir diligentemente informando-se nos
livros, tradições e mitos sobre o fato que esta pesquisando, deverá ter competência em assuntos
políticos para compreender as ações humanas e sua imparcialidade: “fará com que ele não minta
por comissão ou omissão” (VEYNE, 1983: 25).
Se a história antiga se difere da moderna em vários pontos, num ponto elas se parecem.
Ambas têm certa desconfiança com relação ao mito. Se para o historiador moderno o mito
deveria ser desconsiderado uma vez que não tem valor3 factual, para o antigo existiria uma
verdade nos mitos. Para este último os mitos se referiam a uma história verdadeira que tinha
ganhado características fantasiosas com o passar do tempo. O papel do historiador era o de buscar
esse fundo de verdade dos mitos.
Pausânias, nos seus estudos, recolhia lendas e histórias nos vilarejos por onde passava.
Nesses lugares as pessoas não duvidavam dos relatos míticos. Esses se remetiam à vida de santos
ou de mártires e retomavam genealogias heróicas ou divinas, porém não acreditavam neles como
(...) se acredita na realidade que nos circundam. Para o comum dos fiéis, as vidas dos
mártires permeadas de maravilhas, situavam–se num passado distante, do qual se sabe
apenas que era anterior, exterior e heterogêneo do tempo atual; era o “tempo dos pagãos
(VEYNE, 1983: 28)
3
Fontenelle foi o primeiro a assumir essa postura, como afirma Paul Veyne neste trecho: “Fontenelle foi o primeiro a
dizê-lo: as fábulas não têm nenhum núcleo de verdade e não são nem mesmo alegorias (...)” (Veyne, 1983: 72)
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Era assim que se explicavam os mitos gregos: eles aconteciam nas gerações heróicas,
tempo onde os deuses ainda se misturavam com os humanos. Segundo Paul Veyne um grego teria
ficado atônito “se tivesse de aceitar o problema do tempo, e que lhe ensinassem que Héfesos
acabava de se casar novamente ou que Atena tinha envelhecido muito esses últimos tempos”
(VEYNE, 1983: 28). O mito não pertencia ao mesmo regime de crença que o da história. As
ações míticas realizavam-se numa temporalidade diferente, exterior.
Havia então para os gregos antigos, antes do passado da humanidade, um período
maravilhoso que foi a era dos Deuses. Esse período, segundo Veyne, era “Real em si mesmo e
irreal em relação ao nosso”. Heródoto já distinguia as gerações heróicas e as gerações humanas.
Veyne mostra como, entre os antigos, se entendia a cronologia a partir de Varrão:
dizer: “diz que...”, “a musa canta que...”, “um logos diz que...”. Esse discurso não remetia a
nenhum autor, uma vez que mesmo as musas não faziam mais do que “redizer”.
Havia então dois domínios, um dos Deuses e outro dos heróis. Existiam pessoas que
duvidavam da existência dos Deuses, mas ninguém duvidava da existência dos heróis. Os heróis
eram homens normais que o tempo e a imaginação das pessoas atribuíram-lhes características
sobre-humanas. Então “a crítica das gerações heróicas consistia em transformar os heróis em
simples homens” (VEYNE, 1983: 53).
Em contrapartida, o grande público acreditava nos mitos sem nenhuma crítica “por
docilidade à palavra de outrem, por ausência de sistematização da experiência cotidiana e por um
estado de espírito respeitoso e edificante” (VEYNE, 1983: 53). Os letrados criticavam os mitos
da forma como já explicamos. O povo conhecia a existência dos mitos, mas ignorava detalhes
que não precisava saber. O poeta contava os mitos como se ele mesmo tivesse inventado. Não se
colocava, por isso, acima do público, o mito era conhecido por todos e o poeta “não sabia mais do
que os outros, não fazia literatura erudita” (VEYNE, 1983: 57).
Na época helenística observaremos uma mudança de postura com relação ao mito. Nesse
momento: “a literatura faz questão de se considerar douta, não que ela se reserve pela primeira
vez a uma elite” (Píndaro ou Ésquilo não eram exatamente escritores populares)” (VEYNE,
1983: 57). O mito passa a ser erudito, transformando-se no que nós conhecemos hoje por
mitologia. A mitologia afasta-se, então, do povo, que continuou com seus contos e superstições.
Gramáticos e retóricos irão codificar a mitologia simplificando-a. Os ciclos vão ganhar uma
versão oficial esquecendo-se as variantes, exigindo-se então um novo maravilhoso que não podia
se situar além do verdadeiro e do falso: “Desejava-se que fosse científico, ou melhor histórico”
(VEYNE, 1983: 59). O gênero histórico crescia e por isso os mitos deveriam passar pela história.
Exemplo disso é Diodoro, que faz uma crítica dos tempos míticos dizendo que Zeus foi um rei e
que Cronos teria reinado por todo o ocidente. “Pois uma coisa é acreditar que no passado já
tenham existido reis, outra coisa é acreditar que no passado existiram monstros, assim como não
existem mais. Para o milênio seguinte, os princípios da crítica das tradições estavam
determinados: já estão em Platão” (VEYNE, 1983: 66).
A palavra mito muda de valor após a época arcaica, pois ao falar nela o autor diz “um
mito diz que”. Ele quer com isso “tirar o corpo da jogada e deixar cada um pensar o que quiser”
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(VEYNE, 1983: 66). A palavra mito torna-se pejorativa, transformando-se em um conceito que
“qualifica uma tradição suspeita” (VEYNE, 1983: 66).
Os pesquisadores gregos acreditavam que parte do mito era mentira, mas não se
perguntavam por que se mentia. A mentira não era uma questão relevante para eles, uma vez que
ela não tinha nada de positivo. Eles entendiam o mito como uma tradição histórica, pois “pode-se
alterar a verdade, mas não poderia falar de nada” (VEYNE, 1983: 72).
O mito era um acontecimento histórico que com o passar o tempo recebeu versões
fantasiosas. Quanto mais antiga a história narrada pelo mito, menos digna de crédito ela era. Para
os modernos o mito é basicamente a narração de um acontecimento, por isso seu aspecto
lendário. Veyne argumenta que “(...) antigos e modernos acreditam na historicidade da guerra de
Tróia, mas por razões opostas; nós acreditamos nela por causa do seu caráter maravilhoso, eles
acreditam nela apesar do maravilhoso” (VEYNE, 1983: 72). Com essa postura, pouco importava
aos gregos se os mitos continham uma mentira com ou sem sentido. Importava, antes, se
defenderem dessa mentira “E já que existe policiamento é menos urgente compreender os
motivos do falsário do que identificá-lo” (VEYNE, 1983: 74).
Os gregos queriam saber se um mito era total ou parcialmente verdadeiro. Com isso
surgem duas escolas: uma que entende o mito como verdadeiro pelo seu sentido figurado,
alegórico e outra que segue a já citada crítica histórica. Com referência à primeira escola cumpre
notar que ela não vê o mito como um misto de verdades e imposturas, mas este seria totalmente
verdadeiro, exprimindo uma verdade filosófica quando entendido de forma alegórica.
No mundo grego, para tornar o mito exclusivamente histórico, era preciso retirar dele tudo
o que não existia naquela atualidade, pois as coisas acontecidas nela, pensavam os gregos,
estavam sendo devidamente comprovadas. Não era possível, para os historiadores, acreditar no
deus Hércules, mas era totalmente plausível pensar em Hércules como um grande homem que por
reconhecimento foi considerado um deus.
Não há verdades contraditórias num mesmo cérebro, mas apenas programas diferentes
que encerram cada uma verdades e interesses diferentes, ainda que essas verdades levem
o mesmo nome (VEYNE, 1983: 101).
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Os gregos, segundo Veyne, acreditavam e não acreditavam nos seus mitos. Eles deixavam
de acreditar neles quando não mais os interessavam. O mito era, para eles, uma crença de
semiletrados que os doutos invalidavam. A coexistência de duas formas de verdades num mesmo
pensamento não é própria dos gregos. Levi-Strauss fala do feiticeiro que “acredita na sua magia e
a manipula cinicamente” (VEYNE, 1983: 99). E Veyne relata um fato que demonstra uma
relação dúbia com relação à verdade:
De minha parte, considero os fantasmas como simples ficções, mas não deixo de
comprovar sua verdade: tenho deles um temor quase neurótico e os meses que passei
fazendo triagem de papéis de um amigo morto foram um longo pesadelo; no momento
mesmo em que datilografo estas frases, uma crista de terror começa a se elevar sobre
minha nuca. Nada me tranqüilizaria mais que aprender que os fantasma existem
“realmente”: ele seriam então um fenômeno como os outros, que se estudaria com os
instrumentos adequados, câmara ou registrador Geiger (VEYNE, 1983: 103).
Podemos dizer que os gregos acreditavam em seus mitos, embora vissem o mundo dos
Deuses como um mundo exterior e anterior, de forma que não poderíamos julgá-los a partir de
nossa experiência. Como diz Veyne, “essa relação não nos faz acreditar nos Deuses gregos, mas
no faz entender sobre como a verdade pode ser entendida pelos homens” (VEYNE, 1983: 104).
Notamos a partir do texto de Veyne, sobre a relação dos gregos com seus mitos, que além
de existirem vários programas de verdade, sendo que “todas as verdades são analógicas entre
si”, é possível que uma pessoa acredite em diferentes programas sem que isso seja contraditório,
Por isso, a crítica do gênero histórico sobre os mitos deve ser substituída pela idéia de que o mito
trabalha com uma verdade que não é a mesma da verdade histórica, e que nenhuma dessas
verdades deve ser considerada como superior, mas ambas tem a sua eficácia nos contextos nas
quais são utilizadas.
Nesse sentido, uma mentira não passa de uma verdade fora de lugar. É um discurso que
atua num programa de verdade diferente. Como mostra Veyne:
Um falsário é um peixe que, por razões de caráter não se colocou dentro do aquário
certo; sua imaginação científica segue os métodos que não estão mais no programa.
Acredito piamente que esse programa seja com freqüência, ou seja sempre, tão
imaginário quanto o do falsário(VEYNE, 1983: 124)
Assim, o papel da história será o de estudar como a verdade é pensada através dos tempos,
e como se acreditou nas verdades, e o historiador não deve acreditar numa verdade única e
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superior, nem mesmo na sua: “A reflexão histórica é uma crítica que diminui as pretensões do
saber e que se limita a dizer a verdade sobre as verdades, sem presumir que existe uma política
verdadeira ou uma ciência com maiúscula” (VEYNE, 1983: 144).
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Capítulo III: Concepções em torno do mito e sua relação com a história em O mito do eterno
retorno
Há mais de meio século, os eruditos ocidentais passaram a estudar o mito por uma
perspectiva que contrasta sensivelmente com a do século XIX, por exemplo. Ao invés de
tratar, como seus predecessores, o mito na acepção usual do termo, i.e, como “fábula”,
“invenção”, “ficção”, eles o aceitaram tal qual era compreendido pelas sociedades
arcaicas, onde o mito designa, ao contrário, uma história verdadeira e, ademais,
extremamente preciosa por seu caráter sagrado, exemplar e significativo. (ELIADE,
1972: 7)
Estudaremos aqui uma de suas obras mais consagradas: “O mito do eterno retorno.”
Encontramos nessa obra uma recusa em trabalhar diretamente a história como disciplina. Essa
recusa é explicitada pelo autor que afirma em sua introdução: “(...) o problema da história como
história não será abordado de maneira direta neste ensaio” (ELIADE, 1992: 6). Demonstra neste
trecho seguinte sua intenção: “nossa intenção principal foi estabelecer certas linhas orientadoras
das forças no campo especulativo das sociedades arcaicas” (ELIADE, 1992: 6).
Nessa recusa por uma investigação sobre a história, o autor busca o entendimento do mito
tal como ele era, compreendido pelas sociedades arcaicas. Nesse contexto, ele é visto justamente
como recusa do tempo concreto ou histórico por parte desses povos. O historiador vai, por isso,
colocar de lado questões mais relacionadas à história como uma disciplina. Uma vez que para as
sociedades arcaicas a história não tem valor, o autor não despreza, porém, que as posições
espirituais estudadas por ele, “(...) são instrutivas para o nosso conhecimento do homem e da
própria história humana” (ELIADE, 1992: 6-7). Dessa forma a obra busca um entendimento dos
outros (sociedade arcaica tradicional) que é efetivada a partir de uma recusa do nós (sociedade
moderna histórica). Esse procedimento visa demonstrar como o mito é entendido pelas
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sociedades que o criaram e o perpetuaram. Em seu prefácio escrito em Novembro de 1958 o autor
esclarece que o título da obra foi mudado diversas vezes, tendo inicialmente, em 1945, recebido o
título de Cosmos e História, num segundo momento recebeu o nome de Arquétipos e Repetição,
para finalmente ser denominado: O mito do eterno retorno. O historiador lembra que o título do
livro não se refere ao mito grego ou sua reinterpretação por parte de Nietzsche.
Antes de tudo o mito do eterno retorno refere-se à forma com que o homem das
sociedades arcaicas se relacionava com o Cosmo. Para o autor a principal diferença
(...) entre o homem das sociedades arcaicas e tradicionais, e o homem das sociedades
modernas, com sua forte marca de judeu-cristianismo, encontra-se no fato de o primeiro
sentir-se indissoluvelmente vinculado com o Cosmo e os ritmos cósmicos, enquanto que
o segundo insiste em vincular-se apenas com a História. (ELIADE, 1992: 8)
Esse Cosmo tem também uma história. A validade dessa história reside no fato de que ela
remete a um episódio de criação dos deuses e dos heróis nos tempos míticos. Ela é, portanto,
“uma "história sagrada", preservada e transmitida por intermédio de mitos” (ELIADE, 1992: 8).
Além disso, essa história deve ser repetida infinitas vezes, pois as cerimônias reatualizam o
acontecimento primordial narrado pelo mito.
No prefácio de “O mito do eterno retorno” o autor também lembra que o uso da palavra
arquétipo, recorrente em sua explicação, não é o mesmo uso feito por C. G. Jung. Para este
último os arquétipos estão relacionados ao inconsciente coletivo. Já para Eliade essa dimensão
não é colocada. Em sua obra, arquétipo é entendido como sinônimo de modelo exemplar.
Para as sociedades tradicionais todos os atos importantes foram revelados por deuses ou
heróis, portanto os homens dessas sociedades repetem esses atos infinitamente em suas vidas.
Nesse sentido Mircea Eliade dá vários exemplos: Na Nova Guiné, os mitos que falam de viagens
ao mar fornecem modelos exemplares aos navegadores: “quando um capitão se faz ao mar,
personifica o herói mítico Aori” (ELIADE, 1992: 35). O navegador não pedia ajuda desse herói,
mas identificava-se com ele. Outro exemplo é o caso dos Karuk da Califórnia, onde tudo o que
eles faziam era conseguido porque os Ikxareyavs já haviam feito nos tempos míticos.
Esses exemplos são reveladores de uma concepção ontológica das sociedades arcaicas.
Nela um objeto ou ação só se torna real à medida que imita um arquétipo. A realidade só é
alcançada pela imitação. Dessa forma paradoxalmente
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(...) o homem de uma cultura tradicional se vê como uma pessoa real apenas até o ponto
em que deixa de ser ele próprio (para um observador moderno), satisfazendo-se com a
imitação e a repetição dos gestos de outro. Ou seja, ele se vê como uma pessoa real, isto
é, como "ele próprio de verdade", apenas e unicamente até o ponto em que deixa de ser
isso. (ELIADE, 1992: 36).
Eliade lembra que o sacrifício não só reproduz um sacrifício inicial, mas se situa nesse
mesmo momento mítico, não só o imita mas coincide com ele. Assim o tempo histórico é
suspenso em nome de um tempo sagrado. Através da imitação desse arquétipo o homem arcaico é
ele mesmo projetado para essa época mítica, onde os arquétipos foram revelados pela primeira
vez. Assim, o homem arcaico abole o tempo histórico em nome de um tempo mítico.
Mas esse projetar-se para o tempo sagrado só acontece em períodos essenciais. Naqueles
momentos em que o homem é verdadeiramente “ele mesmo”. O resto dos dias se passa no tempo
profano e desprovido de significado. Os textos brâmanes demonstram a heterogeneidade do
tempo sagrado e profano: “(...) da modalidade dos deuses, ligada à “imortalidade”, e da do
homem, ligada à “morte””. (ELIADE, 1992: 38).
Deste modo, nos mostra Eliade, o homem arcaico apenas tolera a história e a abole
periodicamente. Para o autor, uma característica do homem arcaico é
(...) sua revolta contra o tempo concreto e histórico, sua nostalgia por uma volta
periódica aos tempos míticos do começo das coisas, à "Grande Era". O significado e
função daquilo que chamamos de "arquétipos e repetição" só nos foram revelados depois
que percebemos o desejo dessas sociedades visando à rejeição do tempo concreto, sua
hostilidade em relação a qualquer tentativa de montagem da "história" autônoma, isto é,
a história não ordenada por meio de arquétipos. (ELIADE, 1992: 5).
Assim vemos que as contingências históricas não têm muita importância para as
sociedades arcaicas. O que importa para esses povos são os acontecimentos originais e
primordiais narrados pelos mitos. Eles devem ser repetidos, pois o homem tradicional se vê como
“ele mesmo” na medida em que se identifica com o modelo exemplar retirado dos mitos,
diferente do que acontece com a narrativa histórica, onde um acontecimento é considerado
verdadeiro pelo fato de ser único e irreversível.
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Mircea Eliade demonstra que a lembrança dos acontecimentos narrados pela história,
entendidos como individuais e irreversíveis, duram pouco tempo na memória coletiva. Para o
autor as narrações que incorporam arquétipos míticos são as que duram mais tempo na memória
das pessoas.
Nos povos onde a tradição ainda possui alguma atualidade, os soberanos se identificam
com grandes heróis. Para pensarmos essa questão, o autor dá um exemplo de mito paradigmático:
o combate entre um Herói e uma serpente de três cabeças que pode ser substituída por um
monstro marinho. Lembrando de Dario, ele se via como um novo Tharaetona, herói que teria
matado um monstro de três cabeças. Via a sua história então como a reatualização da história do
herói mítico. No chamado Livro de Apophis, os inimigos do faraó eram colocados como o
Dragão Apophis e o Faraó era identificado com o deus Rê, que teria vencido o dragão.
Nesses casos citados a elite interpreta o tempo histórico que ela vivia, através de um mito.
Os acontecimentos contemporâneos são interpretados então a partir de um modelo atemporal
fornecido pelo mito.
Eliade mostra outra forma de como um acontecimento histórico pode receber uma
narração mítica, isto é, baseada em arquétipos. Foi o que aconteceu no caso de Dieudonné de
Gozon, o terceiro Grande Mestre dos cavaleiros de S. João de Rhodes. Este ficou conhecido por
derrotar o dragão de Mallpasso. A lenda atribui a Dieudonné de Gozon as características de S.
Jorge. O interessante é notar que esse combate com o dragão só é mencionado dois séculos
depois do nascimento do príncipe de Gozon. Mircea Eliade analisa esse fato dizendo que:
(...) pelo simples fato de ter sido considerado como herói, Gozon foi identificado com
uma categoria, um arquétipo que, desprezando por completo as suas conquistas reais, o
equipou com uma biografia mítica, a partirda qual era impossível omitir o combate com
um monstro do mundo dos répteis. (ELIADE, 1992: 40).
em fada. Sua mulher também é transformada em Vila, ele a conquistou e escondeu suas asas para
que ela não saísse voando. Marko luta com um dragão de três cabeças. Na narrativa lendária
encontram-se vários anacronismos, muitas vezes o herói, cuja morte se deu em 1394, é colocado
como amigo de John Hunyadi que é um personagem das guerras de 1450.
Ao analisar esses exemplos Eliade mostra que a mitificação de personagens históricos é
produzida de acordo com as imagens dos heróis encontradas no mito primitivo. As histórias
desses heróis se parecem umas com as outras. Pelo menos um dos pais é divino, o nascimento é
milagroso, os protagonistas realizam viagens ao céu e ao inferno. Isto implica dizer que essas
narrativas incorporam arquétipos míticos.
Eliade mostra, também, que a historicidade de um personagem não resiste por muito
tempo. Sua imagem, como personagem único, individual, não é conservada na memória popular,
ao menos que ela esteja ligada a um arquétipo mítico.
Lembra Mircea Eliade que alguns pesquisadores, entre eles Caraman, chegaram
conclusão de que um episódio histórico permanece na memória popular durante, no máximo, dois
ou três séculos. Mircea Eliade explica o fato:
Sendo assim o personagem acaba se confundindo com seu arquétipo (Herói, etc.) e o
evento com uma categoria de ações míticas (luta com monstros, irmãos inimigos entre, outros).
Quando um poema épico guarda alguma verdade histórica ela nunca está relacionada a eventos e
fatos específicos, individuais, mas sempre a paisagens e instituições. Essas verdades históricas
encontradas nos poemas épicos são sempre despersonalizadas.
Algumas vezes, lembra Eliade, um pesquisador pode encontrar um episódio recente
transformado em mito. O autor cita o exemplo do folclorista romeno Constantin Brailoiu que
registrou uma balada na aldeia de Maramures. A tragédia narrava a história de um jovem
pretendente enfeitiçado por uma bruxa. Pouco antes do jovem se casar, a bruxa por ciúmes,o
empurrou num penhasco. O seu cadáver teria sido encontrado no dia seguinte e seu chapéu preso
nos galhos de uma árvore. Ao encontrar o cadáver a noiva teria lançado um canto fúnebre cheio
de alusões mitológicas.
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Em uma pesquisa feita pelo folclorista foi perguntado quando o episódio havia acontecido
e todos responderam que era uma história acontecida há muito tempo. Por fim, ele descobriu que
o fato tinha acontecido há menos de quarenta anos anteriores à visita do folclorista. A noiva que
aparecia no relato ainda estava viva. O romancista ao questionar a noiva sobre o ocorrido,
recebeu como resposta que o noivo apenas havia escorregado e caído do penhasco sem qualquer
menção da bruxa.
Nesse caso, pouco tempo depois, cerca de quarenta anos do ocorrido, a história já recebia
arquétipos mitológicos. Quase todos da aldeia haviam presenciado o evento. A explicação
histórica não bastou para esclarecer o ocorrido. A morte do jovem teve, como mostra Eliade, um
significado oculto que só se revelaria a partir da identificação com uma categoria mítica.
Quando chamou a atenção dos aldeões sobre a versão autêntica dos fatos o folclorista
recebeu como resposta que a mulher havia esquecido dos pormenores. Para eles, o mito falava a
verdade, a história verdadeira teria se transformado em falsificação. Foi indagado também se
“não seria o mito ainda mais verdadeiro por permitir que a história real adquirisse um significado
mais rico e profundo, revelando um destino trágico?” (ELIADE, 1992: 46). Nesse ponto o autor
questiona se a incapacidade da memória popular em reter um acontecimento histórico, ao lado da
importância dada nas sociedades arcaicas aos arquétipos, não nos revelaria algo mais além da
resistência da concepção espiritual à história? Diz o autor:
(...) essa lacuna mnemônica não revelaria a transitoriedade, ou pelo menos o caráter
secundário da individualidade humana como tal — daquela individualidade cuja
espontaneidade criativa, em última análise, constitui a autenticidade e irreversibilidade
da história. (ELIADE, 1992: 46).
Observa Eliade que, se por um lado a memória popular se recusa a reter informações
pessoais da biografia de alguns heróis, por outro “as mais elevadas experiências místicas
implicam uma elevação final do Deus pessoal ao Deus extra-pessoal.” (ELIADE, 1992: 46).
Dessa forma podemos entender a transformação do morto em ancestral em algumas tradições,
pois temos a transformação do homem num arquétipo. Na Grécia, lembra o autor, as almas não
possuem mais memória, elas perdem sua identidade histórica. Nessa tradição só os heróis
preservam sua personalidade após a morte. Justamente por todas as suas ações na terra serem
exemplares é que sua lembrança é preservada.
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Podemos dizer, a partir de Mircea Eliade, que a narrativa histórica, vista como uma
sucessão de fatos únicos e irreversíveis não dura muito tempo na memória coletiva. O que fica na
biografia de um personagem histórico são os aspectos míticos. O que fica guardado na memória
popular são os arquétipos que já estão presentes nas diversas narrativas míticas das sociedades
arcaicas.
O homem moderno se sente diminuído pela idéia de uma sobrevivência impessoal, pois
ele quer ser único. Lembra Eliade que a, importância do irreversível e do novo é recente na
humanidade. Já a sociedade arcaica vai se defender no máximo da irreversibilidade que a história
pressupõe.
Portanto, para Eliade, o homem tradicional pode ser livre para criar. Uma vez que ele tem
o direito de não ser mais o que era, de abolir periodicamente a história. O homem das sociedades
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antigas tinha a oportunidade de todo ano começar uma nova existência. É possível ver nessa
constante renovação uma analogia com a natureza que se renova em cada primavera. Nas
palavras de Eliade: “As "possibilidades" intactas da Natureza a cada primavera, e as
possibilidades do homem antigo às portas de cada ano, portanto, não são homólogas.” (ELIADE,
1992: 151). Mas enquanto a natureza recupera a si mesma, o homem recupera a possibilidade de
transcender o tempo. Enquanto ele não fizer isso, enquanto ele pecar, ou seja, insistir na
existência histórica, ele perderá essa oportunidade de transcendência. Ele tem a oportunidade,
então, de “anular suas faltas, de abolir a memória de sua "queda na história", para fazer uma nova
tentativa de escapar definitivamente do tempo” (ELIADE, 1992: 151).
O homem antigo tem então o direito de se considerar mais criativo que o homem moderno
porque este só se vê como criativo a partir da história. Já, nas sociedades arcaicas o homem,
todos os anos, “toma parte na repetição de sua cosmogonia, o ato criativo par excellence”.
(ELIADE, 1992: 151). As técnicas orientais buscam anular ou transcender o humano, porque eles
não vêem a existência humana como irredutível. Dessa forma, podemos falar não só de liberdade,
mas também de criação, pois o que se vê aí é a criação de um novo homem, supra-humano, um
homem-deus. Experiência essa que, segundo Eliade, o homem histórico nunca será capaz de
alcançar.
Ao estudar Mircea Eliade, percebemos que esse autor vê na emergência das narrativas
históricas um problema: que o homem moderno ao se vincular a essas narrativas tem, para o
autor, uma ilusão de liberdade. Já o homem das sociedades arcaicas, ao repetir os acontecimentos
narrados pelos mitos, é realmente livre pois, este transcende o tempo profano e se une aos
deuses, tornando-se ele mesmo um deus, portanto um criador.
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Conclusão
Referência Bibliográfica
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