Cult 258 - Cancelamento Da Cultura, Cultura Do Cancelamento - Vários Autores

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Sumário
entrevista Luanda Pires

dossiê Cultura do cancelamento, cancelamento da


cultura
Apresentação
O ground zero do cancelamento
A grande feira das ideias prontas
O bolsonarismo e o Partido dos Trolls

ensaio
Poiesis, pharmakon

lançamento
Zeladora de memórias

colaboraram nesta edição


entrevista Luanda Pires
Luta permanente
AMANDA MASSUELA

No dia 8 de maio, o Supremo Tribunal Federal (STF)


derrubou as restrições do Ministério da Saúde e da Agência
Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) que proibiam a
doação de sangue por homossexuais. A ação direta de
inconstitucionalidade (ADI), ajuizada em 2016 pelo Partido
Socialista Brasileiro (PSB), começou a ser discutida pela
Corte em 2017, mas o julgamento foi interrompido por um
pedido de vistas do ministro Gilmar Mendes. O tema voltou
à pauta do Supremo no dia 31 de abril após uma solicitação
da Defensoria Pública da União (DPU), motivada pela
redução de doações durante o período de isolamento social.
Ativistas como a advogada Luanda Pires, 31, celebram o
fim da proibição, que além de propagar estigmas sobre o
comportamento sexual de pessoas GBT (gays, bissexuais,
transexuais e travestis), impediu que 19 milhões de litros de
sangue chegassem anualmente aos hemocentros do país,
segundo a ONG All Out. Pelas regras da Anvisa e do
Ministério da Saúde, homens que mantinham relações
sexuais com outros homens nos 12 meses anteriores à
doação eram impedidos de doar.
Luanda faz parte do Grupo de Advogados Pela
Diversidade Sexual e de Gênero (GADvS), que atuou como
“amigo da Corte” durante o processo, fornecendo subsídios
para a decisão da magistratura. A associação desempenhou
a mesma função em outros julgamentos importantes para a
população LGBTI+ nos últimos anos, como o que decidiu
pela alteração do registro civil de pessoas trans sem
necessidade de cirurgia de redesignação sexual, em 2018, e
o que criminalizou a homotransfobia, em junho de 2019.
Coordenadora do Núcleo de Mulheres LBTs e Gênero da
Comissão da Diversidade Sexual da Ordem dos Advogados
do Brasil (OAB-SP), Luanda Pires fala nesta entrevista sobre
o que vem depois das decisões do STF – mais luta – e
comenta os efeitos da pandemia sobre as pessoas LGBTI+.
Logo no início do isolamento social, ela criou a campanha
Integração Pandemia para arrecadar fundos para a compra
de alimentos e materiais de higiene para essa parcela da
população que vive em situação de vulnerabilidade social.
Mais de 3 mil pessoas já foram cadastradas nas entidades e
movimentos parceiros, mas há uma lista de espera com
mais de 2 mil nomes.
O objetivo é criar uma rede de apoio emergencial que
ajude de forma recorrente, durante todo o período de
calamidade pública, quem se cadastrou no projeto. “O
movimento social já conhece o grau de vulnerabilidade
dessas pessoas, mas a pandemia veio para escancará-lo”,
afirma. Mais informações podem ser adquiridas pelo e-mail
[email protected]. A campanha também está
ativa no Instagram (@integracaopandemia).

Proibir a doação de sangue ajudou a propagar quais


estigmas sobre a população LGBTI+?
O principal é a ligação com o vírus do hiv/aids. Nos anos
1980, o vírus era extremamente relacionado à nossa
população, mas esse quadro não se mantém. A medicina
hoje está muito mais evoluída e consegue identificá-lo em
aproximadamente quinze dias após a infecção – no período
da chamada janela imunológica. Além disso, um relatório
epidemiológico de 2015 indica que entre os anos 1980 e
2015 o número de infecções registrado era
consideravelmente maior em heterossexuais do que em bi e
homossexuais. Colocar mais uma vez pessoas LGBTI+ como
grupo de risco exclusivamente em razão da orientação
sexual nos estigmatiza sem considerar o comportamento
sexual de cada pessoa, como se o vírus fosse transmissível
apenas por essa parcela da população, o que não é
verdade.

Se homens gays, bissexuais, mulheres trans e


travestis quiserem doar sangue hoje, encontrarão
dificuldades?
A decisão tem validade a partir do momento da publicação,
ou seja, ela já é válida. Mas nós conhecemos o país em que
vivemos e a dificuldade que é implementar o direito que,
como população LGBTI+, adquirimos via Judiciário. Falando
como advogada e militante da área, acredito que
encontraremos sim problemas para implementar a lei em
razão da homotransfobia institucionalizada no Brasil. O que
eu tenho falado para quem me procura é: a decisão é
válida, e se você tem estrutura e equilíbrio emocional
suficiente, imprima a decisão e vá. Mas não é fácil querer
doar sangue, praticar um ato voluntário, e ainda ser
constrangide por causa disso. Até o Ministério da Saúde e a
Anvisa regulamentarem isso da forma correta, de acordo
com a decisão do STF, é muito provável que as pessoas
encontrem sim dificuldade para doar.

Na prática, leva tempo pra que essas conquistas


possam ser de fato vividas pelas pessoas LGBTI+?
Sim. É o caso, por exemplo, da criminalização da
homotransfobia, de 2019.

Seis meses depois dessa decisão do STF, reportagens


mostraram que o impacto dela tinha sido até então
mais simbólico do que efetivo, já que as delegacias
continuavam registrando casos de homotransfobia
como injúria simples. Isso ainda acontece?
Infelizmente, sim. Reconheceu-se a discriminação
homotransfóbica como discriminação racista, protegendo-a,
definindo-a e regulando-a na Lei Antirracismo – uma
legislação de 1989 que até hoje o movimento racial tem
dificuldade de implementar da forma devida. Então teremos
muitos problemas, já temos. Não houve treinamento nas
delegacias, para quem trabalha lá. Uma pessoa chega
sozinha para lavrar um boletim de ocorrência e ainda é
questionada: “Mas será que não foi uma brincadeira?”. E
estamos falando de uma população que é tão
vulnerabilizada que só chega para fazer B.O. na delegacia
quando é agredida fisicamente. E a homotransfobia não é só
agressão física.
Se essas pessoas são revitimizadas dentro da delegacia,
imagina a dificuldade para as que não sofreram agressão
física. A Comissão da Diversidade Sexual da OAB-SP tem
tentado se alinhar com outros órgãos competentes para
treinar a equipe, para que o Conselho Nacional de Justiça
(CNJ) publique algum tipo de recomendação para que
delegades apliquem a lei, mas acredito que vamos demorar
muito tempo para que ela seja aplicada devidamente. A
saída que vemos agora é a judicialização, entrar com
processo. Apenas criando jurisprudência é que vamos
conseguir firmar entendimento, dentro do Judiciário, de que
tais discriminações, quando acontecem dessa forma, são de
cunho homotransfóbico e que por isso devem ser tipificadas
como discriminação racista.

Você já deparou com muitos casos de pessoas LGBTI+


que sofreram com a execução das decisões?
Muitos. Um caso muito simbólico de homotransfobia, por
exemplo, em São Paulo, foi o do Marcelo Santanna, em
2019. Ele apanhou porque estava de mãos dadas com um
ficante no transporte público. O motorista mandou Marcelo
descer e quando ele desceu, sem discutir – o que já é um
absurdo –, apanhou do próprio motorista. Acompanhamos o
caso de perto [na Comissão da Diversidade Sexual], fizemos
reuniões com a SPTrans [empresa de transporte de São
Paulo] para desenvolver treinamento a quem trabalha lá,
mas foi muito difícil. O Marcelo sofreu muito na delegacia e
acho que até hoje o boletim de ocorrência dele não foi
tipificado como homotransfobia, está correndo processo
judicial.

Se as decisões da Corte muitas vezes não são


suficientes para garantir o direito, o que é preciso vir
depois?
A luta do movimento, essa articulação posterior. Mas as
decisões, em si, têm força legal e deveriam ser respeitadas.
No entanto, como vivemos em uma sociedade estratificada,
racista e homotransfóbica, as pessoas que estão no front e
que deveriam atuar respeitando tanto as decisões judiciais
como a legislação não atuam dessa forma. Deixam que
questões de caráter individual, a fé e a moral afetem o
exercício do trabalho. É um problema estrutural que
enfrentamos na defesa de direitos de qualquer “minoria”.

E por que é a justiça que protagoniza os avanços da


pauta LGBTI+ no Brasil? Falta atuação do Legislativo
nesse sentido?
Sim. O movimento LGBTI+ brasileiro luta há 40 anos por
direitos e proteção dessa população, uma luta que é
articulada perante todos os poderes. Mas é justamente em
razão da demora do Legislativo que nós batemos às portas
do Judiciário para que esses direitos sejam reconhecidos e
garantidos.
Porém é importante ressaltar que esses direitos
“conquistados” pela população LGBTI+ via Judiciário já
existiam. São direitos e garantias trazidos pela Constituição
Federal e pelo ordenamento infraconstitucional, destinados
a toda e qualquer cidadã e cidadão. Mas, reconhecida a
necessidade de proteção específica dessa “minoria”, o
Judiciário declara e ratifica a existência desses direitos e,
por vezes, determina que o Legislativo normatize.

A judicialização no STF provoca maior debate público


sobre a agenda LGBTI+? Quais os prós e contras
dessa estratégia adotada pelo movimento na busca
do reconhecimento de direitos?
Sim, sem dúvida provoca maior debate público, ainda mais
quando as respostas são dadas de forma favorável.
Confesso que, como advogada de minorias, não consigo
sequer pensar nos contras que possam derivar dessa
estratégia, uma vez que essa via é utilizada em razão da
inércia dos outros poderes que, mesmo quando são
acionados, não garantem direitos fundamentais a essa
parcela da população. Então, trazer a pauta LGBTI+ para o
discurso jurídico, reconhecendo o potencial do STF em
responder a ela, não é só estrategicamente viável, mas
também necessário. Claro que, após reconhecidos esses
direitos, via judicialização, vem o segundo momento da luta:
implementação nos casos concretos. Mas sem o
reconhecimento, nem isso teríamos. Então, pra mim, não há
contras.

Um relatório de abril do Grupo Gay da Bahia (GGB)


mostrou que o número de mortes violentas de
pessoas LGBTI+ caiu de 420 em 2018 para 329 em
2019. Essa redução surpreende?
Antes de tudo temos que lembrar que o Grupo Gay da
Bahia, principal fonte de estatística que temos nessa área, é
uma organização que de certa forma não tem braço para
acompanhar tudo. Eles já recebem esses números
subnotificados, porque há delegacias e policiais que não
registram os casos de forma correta. Por exemplo, em São
Paulo, há policiais que na hora de lavrar o boletim de
ocorrência falam que se sentem constrangides de perguntar
a orientação sexual da vítima. Conforme os parâmetros
usados pelo grupo, acredito que tenha havido essa redução,
mas não a vejo como um avanço para a população LGBTI+,
como se ela estivesse mais protegida, como se o governo
estivesse criando política pública para protegê-la.
Definitivamente não é isso.

O que pode ser?


A partir do momento em que a gente tem um governo que
valida essa violência e discriminação, vejo um movimento
entre pessoas LGBTI+ de se proteger e evitar muita
exposição – o que fere a liberdade individual de cada pessoa
ser o que é. A criminalização da homotransfobia também
impacta, de alguma forma, nesses crimes porque quem
agride agora tem medo. E eu realmente acredito que a
implementação real e severa da criminalização vai ter
influência na redução desse tipo de violência.

Mas há divergências entre ativistas em relação à


criminalização, que contribuiria para inflar um
sistema prisional superlotado e desigual. Como você
vê esse debate?
Como militante da pauta e consciente da política penal e
carcerária brasileira, não sigo essa linha. Esse tipo de
pensamento pode tirar força de uma decisão tão importante
pra população LGBTI+. Concordo que precisamos
reestruturar o sistema penal e carcerário do Brasil porque
ele tem sim destinatário certo – a gente sabe que quem
realmente vai presa é a população pobre, negra e
marginalizada –, mas não concordo em fazer essa ligação
entre a decisão do STF e a possibilidade de aumento do
encarceramento, sabendo o quão distante estamos do
abolicionismo penal.

Aproximadamente um terço dessas mortes


contabilizadas em 2019 pelo GGB aconteceu na
residência da própria pessoa, principalmente no caso
de gays e lésbicas. A pandemia e o isolamento social
podem agravar a violência contra esses grupos?
Sem dúvida. Grande parte da população LGBTI+ começa a
ser violentada e sofrer preconceito muito cedo – dentro de
casa, por familiares, vizinhes e pessoas do convívio diário.
Para muitas delas, a casa nunca foi um ambiente acolhedor.
Tanto que é muito comum que esses jovens, quando não
sofrem expulsão do convívio familiar, passem muito tempo
em atividades externas na procura de acolhimento. E é na
rua que vão encontrar amigues e equipamentos de
assistência.
O necessário isolamento social aumenta a vulnerabilidade
dessas pessoas, porque elas passam a ser obrigadas a
intensificar a convivência familiar ou a voltar para casa. Mas
é importante lembrarmos que existem canais de
atendimento: a população LGBTI+ hoje está protegida pela
Lei Maria da Penha, que define e regulamenta a violência
doméstica e familiar. Ela protege de forma explícita lésbicas
vítimas dessa violência, reconhecendo que mulheres que se
relacionam com outras mulheres podem também ser objeto
ativo dela. Desde 2006, há um enunciado do Conselho
Nacional de Procuradores que determina que a Lei Maria da
Penha seja também aplicada para mulheres trans e
travestis, e já existe jurisprudência que protege casais
homossexuais de forma extensiva também pela Lei Maria da
Penha. As pessoas LGBTI+ precisam ter conhecimento disso
e saber que podem pedir ajuda.

E quanto às pessoas trans, que segundo o GGB foram


em sua maior parte mortas em centros urbanos e em
locais ermos?
A população T é o front da população LGBTI+. São as
pessoas mais vulnerabilizadas, expulsas de casa entre o
final da primeira infância e início da adolescência, que
crescem nas ruas sem nenhum tipo de escolaridade. Cerca
de 90% da população transexual e travesti vive da
prostituição, segundo a Associação Nacional de Travestis e
Transexuais (Antra), e tem nessa atividade sua única fonte
de renda. Então, o isolamento social tira a fonte de renda
dessas pessoas, que nem sequer têm documento, que não
conseguem o auxílio emergencial porque não têm carteira
de identidade (RG). São a nossa grande preocupação,
porque nesse momento não conseguem dinheiro sequer
para se alimentar. É uma situação muito complexa que o
poder público não supre. Temos algumas ações da
sociedade civil, eu mesma estou com uma campanha nesse
sentido, mas apesar da articulação, que é muito válida, os
movimentos e agentes sociais também não têm braço para
ajudar todo mundo. Precisamos de política pública, porque
essa população extremamente vulnerabilizada precisa de
ajuda básica, alimento e material de higiene.
A pandemia afetará de alguma forma os modos de
atuação política dos movimentos LGBTI+?
O movimento social já conhece o grau de vulnerabilidade
dessas pessoas, mas a pandemia veio para escancará-lo.
Para enfrentar isso, não vejo outra forma a não ser uma
articulação mais conjunta, ou não vamos conseguir. Criei
uma campanha chamada Integração Pandemia, porque
comecei a receber muita demanda, e percebia que tinha
bastante gente fazendo a mesma coisa, sem contato
nenhum entre si. A falta de comunicação é um problema do
nosso movimento. Um aprendizado que vamos tirar daí é a
necessidade de articulação para que a gente consiga levar
para o Estado as necessidades de forma alinhada, criar
política pública e alcançar novos direitos.
dossiê Cultura do cancelamento, cancelamento da
cultura
Apresentação
JERÔNIMO TEIXEIRA

Presidente de uma organização dedicada à defesa da


liberdade de expressão nas universidades estadunidenses –
a Fundação em prol dos Direitos Individuais na Educação, ou
FIRE, na sigla em inglês –, o advogado Greg Lukianoff
começou a notar, em torno de 2013, uma mudança
inquietante nas queixas que chegavam à sua mesa. Se
antes ele lidava sobretudo com casos em que alunos eram
censurados pela administração da universidade, a partir
daquele ano tornaram-se mais numerosos os episódios em
que os próprios estudantes exigiam que fossem removidos
da sala de aula livros e textos considerados “ofensivos”.
Consagrava-se a noção – muitas vezes encampada pelas
próprias instituições de ensino – de que elas deveriam
representar um “espaço seguro” (safe space), no qual os
alunos não deveriam ser confrontados com ideias que
contrariassem certas crenças e opiniões.
Com o intuito declarado de proteger minorias, a geração
superprotegida e superpolitizada que chegou às
universidades na segunda década do século 21
implementou interdições e proibições paranoides.
Consagrou-se entre eles, por exemplo, o conceito de
“microagressão”, segundo o qual a palavra ou atitude mais
comezinha poderia expressar preconceitos odiosos. A
simples pergunta “de onde você é?” seria ofensiva se feita a
um aluno de minoria étnica, pois implicaria a ideia de que
ele não é estadunidense. Os transgressores desses códigos
de conduta draconianos com frequência eram chamados a
explicar suas razões – ou a pedir desculpas. E membros da
comunidade acadêmica que ousassem contestar
abertamente a nova ordem começaram a ter seus canais de
expressão podados: alguns tinham a participação em
eventos cancelada à força de protestos e abaixo-assinados;
outros eram impedidos de falar nos campi universitários por
conta de manifestações ruidosas e por vezes violentas.
Amplificada e diluída pelas redes sociais, essa mentalidade
ultrapassou os muros universitários e recentemente se
transformou em um perverso fenômeno pop: a cancel
culture – cultura do cancelamento.
Em parceria com o psicólogo Jonathan Haidt, que
compartilhava de suas inquietações sobre a virada
policialesca da vida universitária, Lukianoff escreveria, em
2015, um ensaio sobre o tema, publicado na revista The
Atlantic. Naquele tempo ainda não se falava em cancel
culture. A repercussão do artigo incentivou a dupla de
autores a expandi-lo. Em 2018, Lukianoff e Haidt lançaram
um livro com o mesmo título do ensaio de alguns anos
antes: The Coddling of the American Mind. Tampouco no
livro se fala em cancel culture, mas aparece já uma
expressão sinônima: call-out culture (“call out” conjuga as
ideias de denunciar, criticar alguém, e de chamá-lo a se
explicar pela falta cometida). A call-out culture, segundo os
autores, seria “incompatível com os propósitos de educação
e pesquisa das universidades, os quais requerem liberdade
de questionamento, discordância, argumentação amparada
em fatos, e honestidade intelectual”. A prática do
cancelamento em universidades é fartamente documentada
ao longo da obra, que narra casos em que a intimidação ao
pensamento divergente chega até a violência física – como
no frenesi de destruição e agressão que se viu na
Universidade da Califórnia em Berkeley, em 2017, quando
manifestantes impediram que Milo Yiannopoulos, um
provocador profissional da alt-right, falasse no campus.
Lukianoff e Haidt observam que as práticas de
intimidação e censura de uma call-out culture exigem uma
audiência entusiasmada, pronta a reconhecer os bons
serviços de quem denuncia um crime de opinião ou uma
suposta ofensa racial ou sexual, e também uma audiência
disposta a contribuir para a humilhação pública do acusado.
As redes sociais oferecem acesso seguro e rápido a esse
público cúmplice. Sem elas, a cultura do cancelamento não
se realiza plenamente. E, ao menor deslize, todos que
participam desses rituais estão sujeitos a serem os
condenados do dia seguinte. O preço psicológico é alto. “A
vida em uma call-out culture exige constante vigilância,
medo e autocensura”, concluem Lukianoff e Haidt. Pela
circunstância de um dos autores ser da área, The Coddling
of the American Mind dá grande atenção para a carga
negativa que o novo código de interdições e proscrições da
vida universitária traz para a saúde mental dos jovens. O
próprio título – um trocadilho com The Closing of the
American Mind (no Brasil lançado como O declínio da cultura
ocidental), do filósofo estadunidense Allan Bloom – alude ao
contexto familiar em que boa parte do atual corpo discente
do país foi criado. O verbo coddle significa “tratar com
carinho excessivo”. É algo que em geral pais de boa
condição financeira fazem com seus filhos diletos. Uma
tradução literal (mas canhestra) do título seria A mimação
da mente americana.
Embora carregue uma ênfase particular na angústia e na
depressão que os rituais de vexação pública acarretam a
seus praticantes, os autores estão bem conscientes da
dimensão política do problema. A certa altura do livro,
fazem questão de apresentar suas credenciais políticas
progressistas de eleitores do Partido Democrata. Não,
Lukianoff e Haidt não são militantes de nenhuma versão
estadunidense do Escola sem Partido. E é preciso que se
diga aqui com toda clareza: na guerra cultural que em anos
recentes tem se tornado mais renhida e mais estúpida tanto
nos Estados Unidos como no Brasil, o “cancelamento” é
uma arma exclusiva da esquerda – em particular, da
esquerda identitária que se preocupa mais em criar torções
bizarras do idioma para neutralizar o gênero das palavras
(todes e todxs compreendem do que estamos falando,
certo?) do que em conhecer as condições objetivas em que
vivem mulheres, negros, trans, gays e outras tantas
categorias vitimizadas. A direita tem outras modalidades de
censura – exemplificadas no cerco conservador a uma
exposição do fotógrafo Robert Mapplethorpe entre 1989 e
1990 e nas manifestações reacionárias que em 2017
fecharam a mostra Queermuseu, em Porto Alegre. A
propriedade intelectual do cancelamento, no entanto, é da
nova esquerda que Mark Lilla (um pensador de esquerda)
criticou com incisiva propriedade em O progressista de
ontem e o do amanhã.
Em sua face pública mais vistosa, o cancelamento volta-
se contra as celebridades. Na esteira do movimento MeToo,
o produtor Harvey Weinstein previsivelmente foi cancelado
(em março de 2020, também foi condenado a 23 anos de
prisão por abuso sexual e estupro, punição que é bem mais
significativa que uma hashtag no Twitter). Mas não é preciso
ser um praticante serial de delitos sexuais para ser
virtualmente banido pela militância woke (desperta para
questões sociais). Oprah Winfrey foi cancelada, veja só, por
se engajar no MeToo: o rapper 50 Cent acusou a
apresentadora de atacar apenas abusadores negros. A
hashtag #cancelOprah no Twitter, é verdade, não terá o
poder de subtrair nem um só centavo da fortuna de 2,6
bilhões de dólares que a revista Forbes atribuiu à mulher
negra mais rica do showbiz estadunidense. O argumento de
que o cancelamento não traz maiores consequências a suas
vítimas privilegiadas e famosas foi levantado em artigos de
opinião para contestar as críticas que o ex-presidente
Barack Obama fez à cultura woke, em outubro de 2019.
Se os efeitos da tal cancel culture de fato se resumissem
ao ligeiro constrangimento que Chris Evans, o Capitão
América da Marvel, teria passado no Twitter – bem, então
nem sequer haveria razões para que esta edição da Cult se
debruçasse sobre o tema. Jovens criticando celebridades
racistas, misóginas, homofóbicas nas redes sociais? Ora,
quem, fora os reacionários da Jovem Pan, poderia se opor a
isso? Mas vale considerar com alguma seriedade o que
Taylor Swift disse sobre a campanha de cancelamento que
moveram contra ela no Twitter. “Quando dizem que você
está cancelada, não estão falando de um programa de TV,
mas de uma pessoa”, declarou a cantora estadunidense à
revista Vogue. Sim, é fácil descartar a frase como a queixa
fátua de uma jovem muito rica e muito loira que não
conhece problemas reais (e cuja carreira, aliás, pouco sofreu
por causa da campanha). No entanto, a estrela pop vai ao
ponto quando chama a atenção para a pesada carga
semântica do verbo: cancelar alguém implica a ambição de
apagar sua existência, de converter uma pessoa em não
pessoa. E isso evoca a imposição da desmemória que se vê
no pesadelo distópico de George Orwell e nos regimes
totalitários que inspiraram 1984. Considere ainda que o
cancelamento não atinge apenas celebridades que
empregam custosas equipes de relações públicas e
assessoria de imprensa.
Em 31 de outubro de 2019, a reportagem “Tales from the
Teenage Cancel Culture”, publicada no jornal The New York
Times, coletou depoimentos desoladores de estudantes do
Ensino Médio e dos primeiros anos universitários. Vários
relatos confirmam as preocupações de Lukianoff e Haidt
sobre a ansiedade que essa nova cultura política provoca
nos jovens. A prática do cancelamento, tal como retratada
na reportagem, não se diferencia muito do bullying. Em
plano mais amplo, a cancel culture, ao substituir o debate
qualificado pelo cala-boca sumário, aprofunda a erosão do
debate político em um universo de opiniões atomizadas nas
bolhas ideológicas de redes sociais.
Nos três ensaios que se seguem neste dossiê da Cult, a
cultura do cancelamento é analisada de perspectivas muito
diversas, mas de certo modo complementares. O percurso
começa pela prospecção das raízes profundas do
cancelamento, parte para uma descrição de sua dinâmica
no atual mercado das ideias e chega às complexas relações
dos militantes do cancelamento com seus antagonistas da
extrema-direita on-line.
Eduardo Wolf, doutor em Filosofia pela Universidade de
São Paulo (USP), retraça as origens do cancelamento no
ataque promovido, a partir dos anos 1980, ao amplo
patrimônio do pensamento e da literatura ocidentais que
constituía a base curricular dos cursos de humanas nas
universidades estadunidenses. Rodrigo de Lemos, professor
da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto
Alegre (UFCSPA-RS) e doutor em Literatura pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS),
examina o papel do cancelamento na grande feira
ideológica em que o debate público se converteu durante a
era das redes sociais. Idelber Avelar, da Universidade
Tulane, em New Orleans, persegue os desdobramentos do
tema no desalentador momento político brasileiro,
documentando como o ressentimento bolsonarista foi
retroalimentado pela cultura do cancelamento. Haverá
decerto discordâncias entre os três artigos, mas, por vias
diferentes, todos apontam para os efeitos deletérios do
cancelamento na esfera pública.
Antes da febre do cancelamento, práticas de censura e
intimidação do pensamento já vigoravam nas redes sociais –
e fora delas, obviamente. É previsível que continuarão
existindo depois que a expressão “cultura do cancelamento”
cair em desuso. Este dossiê é ao mesmo tempo um convite
à discussão livre de ideias e uma profissão de fé na
liberdade de expressão. Contestar um argumento falho – ou
totalmente equivocado, ou até francamente canalha – é
sempre melhor do que cancelar a voz de quem o defende.
O ground zero do cancelamento
EDUARDO WOLF

Em 15 de janeiro de 1987, uma manifestação política


singular ocorreu no campus da Universidade Stanford. Um
grupo de aproximadamente 500 pessoas, liderado pelo
reverendo Jesse Jackson, marchava contra uma das
disciplinas centrais do currículo comum a todos os
estudantes da prestigiosa instituição estadunidense: o curso
de Western Culture, que trazia uma lista de leituras
obrigatórias na qual figuravam os clássicos da Literatura, da
Filosofia, da Religião e da História do Ocidente. De Platão a
Maquiavel; da Bíblia a Freud; de Homero a Shakespeare,
passando por Dante, a disciplina tinha o evidente e
conhecido propósito de franquear aos estudantes uma
participação na “grande conversação” dos clássicos
formadores da civilização ocidental em todas as suas
dimensões, consolidando e alargando as bases de um
pertencimento cultural e social comum a uma história de
quase três milênios de sucessivas e conflituosas – porém
complementares – linhas de força civilizacionais.
A marcha era acompanhada por um slogan tão expressivo
quanto direto: “Hey hey, ho ho, West Civ has got to go”,
exigindo o fim da disciplina que, aos olhos dos alunos,
professores e manifestantes envolvidos com a causa,
representava uma visão eurocêntrica, dominantemente
branca e masculina, associada não apenas à falta de
diversidade, mas também aos horrores das práticas
colonialistas, escravistas e imperialistas do passado
ocidental. Ao leitor pouco habituado ao tipo de conflito
político-cultural que vai aqui descrito, a associação do
estudo de um Platão com o colonialismo moderno, ou dos
versos de um Goethe com o sexismo estrutural das
sociedades contemporâneas, pode soar inusitada, quando
não simplesmente um disparate. Ainda assim, era disso
mesmo que se tratava, e a revolta contra obras clássicas do
pensamento e da cultura tinha suas bases nas
efervescentes revoltas nos campi durante os anos de 1960.
No quadro das intensas transformações comportamentais
e intelectuais daquela década, diferentes pensadores e
teorias variadas tornaram-se cada vez mais populares ao
oferecer uma interpretação ideológica e altamente
politizada da cultura, do cânone cultural do Ocidente e das
instituições responsáveis por preservar e propagar os
valores expressos por tal cânone. Do marxismo
psicanalisado de Erich Fromm e de Herbert Marcuse aos
teóricos franceses do pós-estruturalismo e da
desconstrução, diversas ondas de ataques à própria noção
de “civilização ocidental” e de um pertencimento cultural e
social comum à tradição que vai de Homero ao Modernismo
fizeram com que a denúncia dos interesses de classe, da
opressão étnica ou de gênero e a celebração engajada de
minorias de tipos vários passassem a ocupar lugar de
destaque nos interesses acadêmicos, artísticos e
intelectuais – lugar que antes pertencera ao estudo dos
great books.
Não por acaso, desde 1969, os alunos de Stanford não
eram mais submetidos à imperiosa obrigatoriedade de
estudar a República ou a Divina Comédia – vitória dos
agitados revoltosos daquela década. Verdade, também, que
o retorno da disciplina de Western Culture à grade curricular
de Stanford em 1980 parece ter sido mais que mera
coincidência com a vitória do novo conservadorismo de
Ronald Reagan para a presidência dos Estados Unidos pelo
Partido Republicano. Após a ressaca dos avanços
progressistas no discurso e nas práticas sociais e no
horizonte mental estadunidense do fim dos anos 1970, a
retomada vigorosa de um conservadorismo que sintetizava
força de mercado com tradicionalismo cultural daria a
tônica para a década seguinte, e muito ajuda a
compreender a dinâmica social específica que os anos 1980
inaugurariam para os Estados Unidos.
O fato é que Jesse Jackson, que seria pré-candidato à
presidência pelo Partido Democrata em 1988, venceu em
Stanford. Pelas razões certas (ampliação do currículo e
inclusão de mais e mais diversos autores), mas também
pelas erradas – que foram então proeminentes –, o curso foi
encerrado, uma nova disciplina de sabor multicultural foi
introduzida (Culture, Institutions, Values) e, pouco mais de
uma década depois, essa perspectiva multiculturalista de
pendores antiocidentais daria a tônica em boa parte da
visão de cultura e de educação dos Estados Unidos.
Um ano após a marcha de Jackson e do estudantado
progressista multiculturalista em Stanford, enquanto a
revisão curricular estava em andamento sob grande debate
nacional, o jornal The New York Times publicou uma extensa
matéria sobre o tema, em 19 de janeiro de 1988. Um dos
professores de Stanford que advogava o fim do curso de
“West Civ”, o historiador Barry Katz, é citado afirmando que
“Platão não seria banido de nossa República das Letras”, e
que os alunos não sairiam do primeiro ano de curso
versados em culturas de minorias e desconhecendo a boa
redação da língua inglesa culta. Mais de trinta anos se
passaram desde a inocente declaração de Katz, e agora é
possível afirmar categoricamente que ele estava errado.
É claro que, ao contrário do que ocorre em regimes
autoritários, como as ditaduras militares de direita que tão
bem conhecemos na América Latina, ou as “democracias
populares” (nome fantasia das tiranias socialistas do Leste
Europeu) da Guerra Fria, Platão ou Shakespeare não foram
legalmente proibidos e policiados. Ao modo do que sempre
fizeram culturas repressivas – basta pensar no peso do
moralismo católico que se fez presente na educação de
nossas sociedades até muito recentemente –, a
“desconstrução” do cânone ocidental, a “decolonização” do
pensamento acadêmico e a vitória das suscetibilidades
multiculturalistas representaram, na prática, a criação de
um novo repertório do que deveria ser valorizado, de como
hierarquizar esses objetos culturais na nova medida de seus
valores e do que deveria ser ou não promovido. No pacote
desse novo progressismo, como não poderia deixar de ser,
um novo index foi se impondo de forma gradativa. E com a
mesma autoridade com que um padre aceitava ou rejeitava
determinada obra literária ou filosófica para seus alunos em
uma instituição confessional, os novos sacerdotes da cultura
progressista acolhiam e rechaçavam autores e temas de
acordo com as revelações das novas doutrinas.
O leitor que quiser tirar a prova dos nove com os fatos do
último quarto de século tem vários caminhos prazerosos à
disposição. Quem retornar ao primeiro capítulo de O cânone
ocidental, do crítico Harold Bloom, publicado em 1994,
talvez se espante com o fato de o autor escrever de modo
tão fatalista que os departamentos de língua inglesa (e de
outras línguas) minguariam brutalmente, metamorfoseando-
se em “estudos culturais” e outras rubricas genéricas. Uma
década depois, o crítico italiano (de vezo marxista) Franco
Moretti relatava o episódio de um colega que, em vista do
desaparecimento acelerado de disciplinas tradicionais nas
áreas de Letras, resolvera lecionar sobre “narrativa de
videogames” (o episódio aparece relatado em A literatura
vista de longe). E a ficção não nos foi menos generosa no
retrato fiel e perspicaz da dissolução de um mundo de
cultura no caldeirão da irrelevância politizada. Publicado
originalmente em 2000, A marca humana, de Philip Roth, já
trazia poderosas e verdadeiras palavras de confronto à
cultura da correção política que, aos poucos, descia a
cortina da censura disfarçada de atitude progressista.
Banir autores e temas e ajustar o pensamento alheio às
doutrinas radicais de acadêmicos “antissistema” – eis o
ensaio geral bem-sucedido da “cultura do cancelamento”
que viria a caracterizar a infantaria da esquerda nas guerras
culturais que consumiriam a América nos anos vindouros.
Que não se tome por acaso, afinal, a ocorrência
concomitante desse movimento autoritário da esquerda
multiculturalista então em ascensão e do discurso
reacionário contra as artes e as liberdades culturais que a
direita estadunidense deflagrava, em especial a partir da
polêmica envolvendo a exposição do fotógrafo Robert
Mapplethorpe entre 1989 e 1990 – precisamente a dinâmica
social específica da guerra cultural contemporânea.
Quando, ao longo do período que vai de 2014 a 2017, um
expressivo número de episódios de natureza autoritária,
persecutória e censória ganhou as páginas e os sites da
imprensa estadunidense (e, com o tempo, de outras partes
do mundo), trazendo notícias de intelectuais, artistas,
políticos e figuras públicas que eram “banidos” dos campi
universitários, ou de obras que não poderiam mais ser
estudadas em sala de aula (como a perigosíssima poesia de
Ovídio, para ficar em exemplo célebre), estávamos por
ingressar já na terceira década do tensionamento social que
tentei sintetizar aqui – tensionamento intimamente
imbricado no processo de “cancelamento” de temas,
autores, intelectuais e artistas que se iniciara nos anos
1980. Com uma intensidade marcante, impuseram-se novas
modalidades de controle político nas instituições que
deveriam servir de bastião da liberdade de pensamento, e
as universidades dobraram-se, uma a uma, quase sem
exceção, às exigências juvenis de “espaços seguros” que
protegessem os alunos dos perigos de fatos e de raciocínios
que contrariassem suas convicções e seus estados
emocionais; de “trigger warnings” que os salvassem dos
horrores da poesia grega e romana clássicas e de um amplo
programa de censura oficial que garantisse opiniões
ajustadas à correção política e aos dogmas do momento –
fossem questiúnculas envolvendo pronomes de tratamento,
fossem batalhas épicas sobre a diversidade étnica no
cardápio do refeitório estudantil. Era inevitável que esse
processo alcançasse a vida social como um todo, e grandes
rodas de “cancelamento” e de perseguições várias
tornaram-se triviais nas redes sociais.
O processo social e cultural que busquei descrever é, por
óbvio, complexo, e há de requerer uma análise de grande
alcance para que se obtenha algum ganho de compreensão.
No entanto, arrisco dizer que é possível oferecer alguma
explicação razoável para o predomínio dessa tendência à
radicalização e à polarização, tão marcante na cultura do
cancelamento. Trata-se de reconhecer que o pilar de
sustentação da “cultura do cancelamento” é o exato e
mesmo alicerce que foi diligentemente erguido pela
contracultura sessentista e pelo multiculturalismo tornado
mainstream duas décadas depois. Foi nesse caldo de cultura
que a fragmentação identitária virou norma e implodiu, de
forma deliberada e meticulosa, as possibilidades do diálogo,
do compromisso e do pluralismo.
É sintomático que o filósofo político John Rawls tenha
fundamentado no overlapping consensus – o “consenso
sobreposto” – a própria condição para a existência de uma
sociedade democrática e liberal justa. Incapazes de alcançar
esse consenso, que sobrepõe de maneira voluntária e
pacífica doutrinas religiosas, pertencimentos étnicos e
visões de mundo, entregamo-nos a um novo tipo de “guerra
de todos contra todos”: uma narrativa sobre a sociedade
contra todas as demais; uma identidade (étnica, sexual,
religiosa) contra outras tantas; uma cacofonia de culturas,
minoritárias ou não, querendo reger a sinfonia alheia – nem
que seja cancelando este ou aquele instrumentista em seu
solo.
A grande feira das ideias prontas
RODRIGO DE LEMOS

Como governar na era da comunicação em redes sociais?


Henry Kissinger, o ex-secretário de Estado estadunidense,
aponta nos capítulos finais de Ordem mundial (2014), que
essa é uma das questões mais preocupantes deixadas em
aberto pelas evoluções recentes no mundo contemporâneo.
Maquiavélico no que a palavra implica de cálculo político
amoral e de estudo desapaixonado do poder e de seus
mecanismos, Kissinger sabe na teoria e na prática que o
homem de Estado se vê confrontado a escolhas nem
sempre imediatamente compreensíveis pela opinião pública.
Quando essa opinião se fragmenta ao mesmo tempo que se
torna onipresente, a exemplo do que ocorre nas redes
sociais, como o político pode resistir aos veredictos
coletivos, muitas vezes incoerentes ou simplórios, embora
sempre veementemente pronunciados? Pode aquele que
segura o timão da coisa pública desprezar essa bússola
frenética e caprichosa da opinião nas redes em favor de seu
próprio sentido de direção e de objetivo a longo prazo?
As preocupações de Kissinger têm motivos reais. O
mundo hiperconectado em redes apresenta a tendência de
tratar o político como entretenimento. A grande família dos
populistas apalhaçados – no estilo de Bolsonaro, de Trump
ou do italiano Matteo Salvini – explora essa ambiguidade ao
máximo. Muitos deles se popularizaram na televisão
sensacionalista dos anos 2000. Basta lembrar o reality show
de Trump ou as participações de Bolsonaro em programas
de auditório. Levaram às redes as mesmas estratégias da
comunicação de choque e sem escrúpulos para falar como
que diretamente a seus apoiadores. Salvini, por exemplo,
ficou conhecido pelos shows de ódio contra imigrantes e
minorias, transmitidos em tempo real pela internet. Líderes
como eles manipulam dentro das margens que suas torcidas
lhes permitem manipulá-las.
Ao mesmo tempo, o entretenimento se torna mais e mais
político. Isso ocorre sob o olhar inquisitorial das mesmas
redes que transformam homens de Estado em palhaços e
palhaços em homens de Estado. Todos os atos e todas as
falas de cantores, atrizes, dançarinas ou esportistas são
examinados e elevados à categoria de declarações políticas,
favoráveis ou contrárias às preocupações de determinados
grupos: a homofobia, a gordofobia, o racismo, o petismo, o
socialismo, o politicamente correto. O vocabulário da época
é abundante em neologismos e empréstimos ao inglês para
qualificar os novos delitos diante dos novos juízes informais.
Uma dançarina ter ressaltado seus traços negros num
videoclipe e depois aparecer com a pele branca numa
premiação: afroconveniência ou variação normal de uma
mulher color fluid? Um ator heterossexual posta símbolos
LGBT: oportunismo pelo pink money ou apoio sincero e
compungido às vítimas de homofobia?
Mesmo o silêncio pode ser suspeito. Como pode uma
cantora pop adolescente não declarar seu voto na eleição
presidencial estadunidense?
Foi desse caldo de discurso nas redes sociais, em que a
busca por justiça se mistura perigosamente com o impulso
justiceiro, que emergiu a dita cultura do cancelamento. Há
decerto algo de abusivo na aplicação indiscriminada do
termo cultura a esse fenômeno – assim como à cultura do
estupro, à cultura da vítima, à cultura woke. Uma cultura
deveria ser o que nos permite agir de forma refletida. Talvez
fosse mais preciso falar em avalanche de cancelamentos,
para ressaltar o que pode haver de massivo e irracional
nessa forma de punição capital na internet.
Bem entendido, nem tudo é barbárie numa avalanche de
cancelamentos. Eles podem representar uma possibilidade
de regulação social, necessária para conter a palavra
selvagem das redes. Se há insensatez nas redes sociais, por
que não pode também nascer delas uma forma própria de
sabedoria? Alguns cancelamentos envolvem casos reais de
discurso de ódio e exposição indevida de pessoas
vulneráveis, por simples impulso sádico ou numa caçada
inescrupulosa de visualizações. Quando um influenciador
filma-se zombando de uma criança doente, quando uma
celebridade submete alguém a constrangimento público por
sua opção política, sua sexualidade, sua religião ou seu
pertencimento étnico, é uma reação social saudável que o
ofensor veja sua popularidade decrescer e que perca
seguidores.
Ainda assim, o exame do mecanismo concreto dos
cancelamentos em avalanche revela o que eles podem
conter de covarde e de injusto. Frequentemente, trata-se de
uma reação coordenada, que se espalha pelas redes como
fogo na forragem, a partir da fagulha lançada por um
usuário ou por um grupo que aponta o crime e indicia o
infrator. O denunciado já sai, pela pressão coletiva, na
qualidade de réu. Como não lembrar das multidões durante
as revoluções francesa ou chinesa, dispostas às piores
violências e injustiças, uma vez incitadas por oradores
demagógicos do alto de seus caixotes? O sentido das
nuances pode ser perigosamente enfraquecido no
automatismo das reações em manada.
O cancelamento como comportamento coletivo e
coordenado insere-se na linhagem de outras modalidades
potencialmente opressivas de controle da palavra pública na
era digital. O linchamento virtual já era uma prática
estabelecida quando as avalanches de cancelamentos se
tornaram objeto de discussão pública. O linchamento não
implica sempre a perda de seguidores, mas sim o acúmulo
de insultos em caixas de comentários ou postagens, no
mais das vezes de desconhecidos, sobre um único alvo
designado como inimigo público – mesmo que seus pecados
sejam estritamente privados (muitas vezes, de natureza
sexual).
O fechamento da exposição Queermuseu: cartografias da
diferença na arte brasileira, em 2017, no Santander Cultural
em Porto Alegre, revelou outra forma de controle autoritário
da palavra pela internet: a censura pelas redes. Nela, um
grupo de opinião não se satisfaz em apenas expor sua
discordância ou seu descontentamento quanto a um
discurso, mas exige sua supressão da esfera pública pela
pressão organizada. Cancelamento massivo, linchamento
virtual e censura pelas redes – nenhuma dessas novas
práticas serve de marcador ideológico, podendo ser
mobilizadas à esquerda e à direita. Todas são perigosas à
liberdade de expressão, por trazerem formas renovadas de
intimidação pela autoridade coletiva, agora amorfa e
anônima nas redes, para além do aparato oficial de Estado.
Não apenas o ato de governar conhece novas
dificuldades nestes tempos de pensamento grupal. O
próprio pensamento, entendido como exercício crítico
pessoal e intransferível, pode encontrar-se sob ameaça.
Figuras que se entendem como intelectuais de redes
sociais se veem submetidas a essa pressão. Foi o caso de
alguns influenciadores da direita – sobretudo de um certo
conservadorismo ilustrado – que apoiaram Bolsonaro na
eleição de 2018 e que em 2020 batem no peito com
lágrimas nos olhos diante das ruínas deixadas pela
presidência que escolheram. Sabiam à época o que era o
bolsonarismo como seita política autoritária. Ainda assim,
avalizaram seu projeto. Por quê? Para não desagradar. Para
não contrariar seus seguidores. Para não passar por menos
puros que o esperado. Agora, alguns – e não os piores – se
dizem arrependidos. Toda contrição pública sensibiliza. Seus
depoimentos, sobretudo, são significativos de como, no
ambiente digital tal qual o conhecemos, a avalanche de
cancelamentos é especialmente intimidante a quem
reivindica nas redes uma identidade como intelectual.
A internet constitui um mercado das ideias, e os
intelectuais tendem a atuar como fornecedores dos
discursos-mercadoria demandados por cada nicho desse
mercado: os liberais, os conservadores, os comunistas, os
ecologistas. Não é o mesmo que ocorre numa loja de roupas
ou na música popular? Essa sujeição do intelectual-produtor
ao leitor-consumidor é tão mais extrema que muitos dos
canais que ligam um ao outro são diretamente monetizados,
quando não servem de ponte para a penetração no mercado
editorial ou na mídia. Uma relação assim constituída
envolve, portanto, a capacidade do intelectual não só como
influenciador digital, mas como agente econômico. Nesse
cenário de dependência material do intelectual em relação a
um público, não surpreende que muitos abdiquem da
soberania sobre seu pensamento em favor de discursos
estereotipados, sempre os mesmos: o leitor-consumidor
anônimo é um amo intratável. Não suporta muito bem a
contrariedade. Sabemos de saída o que o articulista
conservador ou o que o acadêmico liberal ou o que o
escritor esquerdista dirá antes mesmo de ouvir sua live.
Tampouco surpreende que a reação por cancelamento
seja especialmente atemorizante ao intelectual das redes.
Seu valor de mercado é medido pelo número de seguidores,
assim como acontece com Taylor Swift. É claro que Taylor
Swift (ou Anitta ou Kanye West) conta com uma assessoria
de mídia para polir eventuais derrapagens. O último
videoclipe do rapper, se promovido com eficiência, ainda
pode compensar sua última grosseria com um fã ou seu
último insulto machista.
Para o intelectual das redes, o poder dissuasivo dos
cancelamentos em avalanche é mais agressivo, e suas
consequências indiretas são mais nocivas. Inibem a
capacidade do pensamento vivo de escapar à posição em
que se gostaria de encerrá-lo, de afirmar sua verdade ao
preço da aprovação geral, contra tudo e contra todos, se
necessário. Esperava-se que a internet marcaria a era do
debate generalizado. Se o que se seguiu foi a era de
cancelamentos massivos, essas esperanças ficaram
novamente para o futuro.
O bolsonarismo e o Partido dos Trolls
IDELBER AVELAR

Ao lado de bases políticas convencionais nas bancadas da


bala, da Bíblia e do boi, uma força até então pouco
conhecida pelas ciências sociais mostrou-se essencial na
condução de um inexpressivo deputado extremista,
misógino, militarista e homofóbico à presidência da
República: o Partido dos Trolls. A principal operação retórica
da trollagem de internet é a ambiguidade: raramente se
determina se o que está sendo dito é sério ou não – e isso
garante denegabilidade automática caso o enunciado seja
questionado ou desmentido, além de oferecer o humor
necessário para manter a atenção do espectador/leitor no
mundo volátil das redes. A extrema-direita se tornou fluente
nessa língua num contexto no qual sua agressividade era
retroalimentada pela cultura do cancelamento na esquerda.
Foi nessa dinâmica que o bolsonarismo conquistou o
domínio das redes sociais. Das que importam, pelo menos: o
Whatsapp, o YouTube e o Instagram, já que o Twitter é pra
quem se importa com furos e ninguém que importa se
importa com o Facebook.
“Redes sociais” nem sempre foi sinédoque de “internet”.
A ascensão do lulismo em 2003 aconteceu durante a
consolidação dos primeiros blogs brasileiros, não apenas
sobre política, mas sobre viagens, esportes, culinária,
variedades. Esse momento de otimismo e criatividade com
o potencial das redes para democratizar as comunicações
não se desenrolou livre de captura pela máquina de
cooptação lulista – como seria o caso nos chamados blogs
progressistas, formados por ex-jornalistas, apparatchiks do
Partido dos Trabalhadores (PT) ou profissionais da Rede
Record, então louvada pelas bases lulistas como alternativa
à Globo, antes do previsível giro bolsonarista de Edir
Macedo. Na explosão da juventude em junho de 2013,
porém, a mobilização acontecia não mais por meio de blogs,
mas pelas redes. Nessa passagem da utopia disseminada
em URLs abertas para os cercadinhos murados do Facebook,
um enorme naco da então jovem e libertária geração dos
blogs se perderia. Naquele momento, pelo menos em
algumas comarcas, como o YouTube, a hegemonia já era
claramente de direita.
Foram se congregando então os atores da internet que
constituíram o caldo de cultura bolsonarista: as contas de
Twitter e Facebook dos perfis dos filhos de Bolsonaro, alunos
de Olavo de Carvalho, YouTubers de direita, comunidades de
incels (jovens “celibatários involuntários”, muitos
caracterizados por forte misoginia), terraplanistas,
monarquistas e associações que ganharam impulso a partir
da mobilização para depor Dilma Rousseff – Movimento
Brasil Livre (MBL), Revoltados Online e Vem Pra Rua. Aos
pesquisadores formados na bibliografia tradicional das
ciências sociais, pode ser surpreendente perceber a
intensidade do ressentimento que se gestava ali contra a
“hegemonia cultural da esquerda”. Afirmar que vigorava
nas pesquisas universitárias uma “hegemonia marxista”
chega a ser uma caricatura. O autor deste artigo fez
bacharelado e licenciatura em Letras na Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG), e de 1986 a 1990 não teve
um único professor marxista. Hoje eles são ainda mais
raros.
Isso não quer dizer que a percepção olavista-bolsonarista,
ancorada no pânico anticomunista, seja simplesmente um
delírio. Ela é uma instrumentalização conspiratória e
distorcida de um fundamento real. Alimenta-se de um caldo
de ressentimento ancorado em exclusões ou autoexclusões
do aparato educacional, em ausência de responsabilização
penal ou cível aos torturadores da ditadura (o que oferece
ao olavismo o vácuo em que proliferam um sem-número de
postulados negacionistas) e na impossibilidade de uma
representação de direita autodeclarada no interior do
aparato político. Encharcado de desmemória, o sistema
político brasileiro se arrastava na premissa implícita de que
“direita” é sinônimo de ditadura militar e ódio a pobres.
Tratava-se de um não reconhecimento da possibilidade de
uma leitura legítima do mundo que fosse economicamente
de direita. A própria esquerda reproduziu a desmemória ao
realizar a sinédoque a partir da qual se podia exigir o
cancelamento das personalidades conservadoras ou liberais
mais moderadas e razoáveis: “como a ditadura militar é
odiosa, retirou renda dos pobres, e era de direita, toda
direita tende a ser ditatorial e odeia pobres”. O raciocínio
implícito era esse mesmo.
Sem temor de se assumir de direita, o olavismo abraçou
uma espécie de gramscianismo anabolizado e de sinal
oposto: a esquerda teria conseguido hegemonia completa
sobre jornais, televisão, escolas, universidades, a cultura em
geral. Para que essa hegemonia fosse desalojada, impunha-
se uma guerra na qual até mesmo Bill Clinton, Ernesto
Geisel e o Fundo Monetário Internacional (FMI) chegaram a
ser associados ao comunismo. Nos cursos de Olavo,
gestava-se a prática da refutação bombástica de marcos
consensuais da ciência ocidental, feita em linguagem
escatológica, repleta de agressões ao interlocutor, e sempre
preservando denegabilidade e possibilidade de recuos. Na
permanente guerra de posições do olavismo, os hoaxes (“a
Pepsi adoça seus refrigerantes com fetos abortados!”) são
apresentados em sucessão estonteante, provocando um
curto-circuito nos marcos da conversa ilustrada considerada
racional. Quando os cursos de Olavo chamaram a atenção
de Carlos Bolsonaro, já era nítido que se cozinhava uma
escola do ressentimento. Encontrava-se ali uma estranha
coalizão de tradicionalistas católicos, anticomunistas,
fundamentalistas, místicos, criacionistas, negacionistas
climáticos e conspiracionistas. Mais que de Lula, o
subterrâneo olavista da internet crescia ressentindo-se de
Fernando Henrique Cardoso. O dândi poliglota e refinado,
legítimo habitante do Principado de Higienópolis,
representava tudo o que mais disparava ressentimento
entre os que cresceram humilhados por não saber usar os
talheres. Nunca me pareceu que “ódio” fosse uma categoria
iluminadora para entender o bolsonarismo (não porque não
exista ódio nele, mas porque o ódio não me parece dele tão
distintivo assim, pelo menos não quando você olha a
história do ponto de vista dos que foram objeto de ódio
petista). Ressentimento, no entanto, em seu sentido estrito,
nietzschiano – como uma rebelião da impotência e da
amargura –, foi componente constitutivo de várias de suas
camadas, e o Partido dos Trolls, especialmente sua ala
olavista, é um caso eloquente. A estratégia aqui foi a
inversão e a exacerbação do que já era a política do
ressentimento na esquerda.
Num livro incisivo intitulado Kill all normies, de 2017,
Angela Nagle analisou comunidades da nova direita online
nos Estados Unidos. Para isso, mapeou a passagem dos dias
inocentes e bem-humorados da internet durante a
campanha de Obama, em 2008, para a linguagem agressiva
dos memes da campanha de 2016, que terminou com um
legítimo troll de Twitter eleito para a Casa Branca. Essa
passagem aconteceu de forma tão rápida, tanto nos Estados
Unidos como no Brasil, que abundaram a estupefação e as
hipóteses equivocadas. Entorpecida na constante
sinalização de virtude moral, a esquerda online foi abatida
em pleno voo pelo caldo de revolta que se gestava como
reação a essa própria cultura da sinalização de virtude. A
mera observação de uma retroalimentação entre a reação
da neodireita online e a cultura progressista dos
linchamentos virtuais “do bem” (ou seja, em nome de
causas progressistas) sempre foi desqualificada, tanto na
bibliografia como na cultura das redes de esquerda. A
resposta automatizada é que constatar essa
retroalimentação significaria culpar os movimentos
identitários pela vitória da extrema-direita. Uma vez que as
categorias de culpa, causalidade e retroalimentação passam
a se confundir, a própria interrogação é soterrada. Afinal de
contas, como você pode culpar a vítima?
No Brasil, a consigna “a vítima tem sempre razão”
instalou-se na cultura identitária lulista apesar de, ou graças
a, uma gritante tautologia: nessa cultura, decidir se uma
pessoa tem razão ou não implica, em primeiro lugar, decidir
se ela foi vítima ou não. “A vítima tem sempre razão”
significa, portanto, “a vítima é sempre vítima” ou “sempre
tem razão quem tem razão”. Garotos imberbes no 4chan
perceberam a tautologia uma década antes dos
apparatchiks identitários do lulismo. “Querem vítimas?
Vocês verão discurso autovitimista com intensidade jamais
vista! E quem vai dizer que a vítima não tem razão?”
Por isso, fracassaram tratamentos bem intencionados e
“equânimes” do fenômeno da cultura dos linchamentos
virtuais, em livros como A vítima tem sempre razão?, de
Francisco Bosco. Embora Bosco analise seu material com
boa-fé e não seja possível dizer que o texto seja desprovido
de coragem, ele não consegue sair da premissa de que a
solução será um “meio do caminho” entre a justiça das
pautas identitárias e a odiosidade das práticas de
cancelamento, como se as duas coisas existissem na
condição de extremos de uma linha reta. Criticar a imprensa
por ver lulismo e bolsonarismo como dois extremos foi um
cacoete da esquerda brasileira em 2018-2019, e em alguns
casos até creio que a crítica se aplica. Mas faltou a memória
de que, no Brasil do século 21, quem inventou a
linearização de fenômenos que pertecem a dimensões
diferentes, ou seja, fenômenos que não ocupam lugares em
uma linha reta, foi a esquerda, especialmente em suas alas
lulistas e identitárias.
O rol de palavras, práticas e expressões canceladas pela
esquerda identitária ofereceu um vasto material para que a
intervenção da neodireita se apresentasse em nome da
bandeira da liberdade de expressão. Que seja hipócrita (ou,
na melhor das hipóteses, ingênuo) hipotecar ao
bolsonarismo a revolta contra práticas de cerceamento do
discurso e do pensamento não significa que a revolta não
tivesse como fundamento um objeto real. O momento em
que o olavismo deixa a condição de piada, saindo de um
canto da internet, e se torna um movimento capaz de
influenciar rumos da política brasileira coincidiu com uma
inflexão das humanas e sociais nas universidades – o que as
tornou alvo fácil do conspiracionismo da direita. Foi a época
da proliferação da daninha confusão entre texto opinativo e
curso acadêmico nos “cursos sobre o golpe”. Foi a época
dos cancelamentos promovidos por grupos identitários na
universidade, como na desastrosa intervenção de alguns
militantes do movimento negro numa aula pública de José
de Souza Martins – ironicamente, o maior especialista
brasileiro em linchamentos (físicos). Foi a época em que se
escreviam livros intitulados Michel Temer e o fascismo
comum. Todo esse caldo conferiu credibilidade ao
conspiracionismo olavo-bolsonarista no YouTube e no
WhatsApp. Com seus memes e sua retórica ambígua, o troll
provou-se imune ao cancelamento. Se cancelá-lo não é
possível, só nos resta derrubá-lo. Pacífica, claro, mas
legalmente ou ilegalmente, já não importa. A encruzilhada
entre bolsonarismo e cultura do cancelamento também
representa o fim da nitidez, nesta arena, da fronteira entre o
legal e o ilegal.
ensaio
Poiesis, pharmakon
TARSO DE MELO

A poesia é um remédio? Por quê? Para quê? Para quem?


Gira em torno dessas perguntas a reflexão que aqui ensaio
sobre poesia. Mas, antes, é necessária uma
contextualização: escrevo em meados de maio de 2020, no
apartamento em que vivo com minha esposa e nossos dois
filhos (de 13 e 10 anos) em São Bernardo do Campo. Já se
passaram 60 dias de isolamento social para nós:
conseguimos trabalhar e estudar em casa, então nesse
período saí à rua, rapidamente, apenas para as urgências da
subsistência. Do lado de fora, passam de 17 mil as mortes
causadas pela Covid-19 no país. Do lado de dentro,
ocupações e mil preocupações com a vida, em seus
diversos sentidos, misturam-se com o chamado das coisas
práticas: lavar, limpar, cozinhar. É aqui, assim, agora, que
vivo e leio e escrevo (sobre) poesia.
No início, imaginei que seria uma temporada mais
meditativa, digamos assim, ou de buscar na estante livros
lidos há muito tempo e escrever tudo aquilo que projeto
para um tempo com mais tempo. Mas, para minha surpresa,
esses dias têm sido dedicados à leitura de muitos textos
quentes, escritos durante a quarentena, textos de todas as
naturezas, muitos poemas entre eles. Não passa um dia
sem que algo novo venha dos poetas, sejam poemas novos
ou leituras de poemas de outras épocas que dizem algo
forte, talvez ainda mais forte nas condições em que nos
encontram(os) hoje. Desde os primeiros dias (na verdade,
sinto como um movimento que se estende já há alguns anos
nas redes sociais), os poetas sentiram necessidade de
reagir, cada um à sua maneira, todos lançando seus gritos
de galo para tecer a manhã.
O encontro, num mesmo tempo, entre o isolamento social
e a possibilidade de comunicação instantânea por diversos
canais (de texto, áudio, vídeo) criou as condições para essa
presença imediata e constante de milhares de vozes dentro
de nossas casas, de nossas vidas isoladas. E, claro, as
reações a esses gestos de compartilhamento também são
bastante variadas: há muitos que questionam “poesia numa
hora dessas?”, mas há muita, muita gente dando mostras
de que a poesia alimenta – e mantém a mente saudável,
dentro do possível, quando a vida teve que se encolher
bruscamente: sem ruas, sem passeios, sem amigos, sem
viagens, muitos sem trabalho e grana e, pior, sem
perspectivas minimamente claras sobre o que chamar de
“futuro”.
Nesse ambiente sufocante, parece-me natural que tantos
vejam e busquem na arte um respiro, uma forma de
continuar respirando. Podemos discordar das formas como
isso tem sido apropriado e tratado aqui e ali, ou mesmo não
gostar do que é feito, mas falo da minha própria
experiência: o contato com as iniciativas de circulação de
poesia neste momento tem sido fundamental para continuar
respirando. Aliás, falo em poesia num sentido bastante
amplo, que, claro, tem em seu centro as diversas iniciativas
dos poetas para publicar poemas nas redes (em texto,
áudio, vídeo), mas passa também por encontros musicais
como os de Mônica Salmaso na série “Ô de casas!” até as
lives de alguns dos meus músicos prediletos, com destaque
para as “Jovens lives” de Teresa Cristina e a histórica live de
oito horas do Emicida!
Há muita arte, em geral, e poesia, em particular,
circulando, e muitos têm ressaltado a importância dessas
trocas num momento como o que atravessamos. Para a
parcela da população que está em casa, alimentada, com
acesso à internet (sei que, infelizmente, não é a realidade
da maior parte dos brasileiros), a cultura, nas suas diversas
formas – dos discos aos filmes, dos livros às melhores
publicações eletrônicas –, tem-se mostrado vital. Mesmo
para quem já consumia tais produtos e frequentava eventos
culturais, essa força vital das artes parece ressaltar ainda
mais num momento de adoecimento coletivo, de tristeza e
medo, dor e isolamento.
Vivemos tempos doentes, e a poesia, que sempre age
contra os muros que cercam nossa percepção, agora parece
ainda mais forte quando a vida entre quatro paredes é o
limite físico do nosso mundo e quando, entre elas, temos
que lidar com tantas aflições. Dias atrás, o poeta Marcos
Siscar afirmou: “Quando a gente se reconhece só, é
obrigado a estar só, compartilhar se torna mais importante
ainda. [...] Acho que a literatura, a poesia vive da solidão, de
alguma maneira, mas pressupõe sempre um outro, um
interlocutor, mesmo que ele não esteja dado em presença,
fisicamente ou retoricamente, mas pressupõe sempre esse
diálogo, que eu acho uma coisa fundamental. Esse
compartilhar é fundamental” (no ciclo “Um autor um texto”,
em conversa com Annita Costa Malufe, no canal Literatura
PUC-SP, no YouTube, em 11 de maio de 2020).
Compartilhar: palavra que se banalizou nos últimos
tempos, remetendo a um clique no Facebook, mas contém
quase tudo de que temos precisado. Ouvimos nela o eco do
coletivo e da partilha, mas também o das ilhas em que
temos vivido. Repartir sua ilha (e gosto de lembrar que, em
espanhol, “isolar” é aislar e, em italiano, “ilha” é isola),
porque as trocas entre as ilhas amenizam o isolamento. (A
propósito, nos primeiros dias da quarentena, comecei a
convidar poetas para indicarem poemas no site da Cult,
numa série diária chamada “Notícias de outras ilhas”. Logo
se formou um arquipélago, com cerca de 70 poetas
indicando duas centenas de poemas e poetas, e essa
experiência de compartilhamento tem sido muito bonita.
Confira.)
João Cabral de Melo Neto, numa carta a Carlos
Drummond de Andrade em 26 de junho de 1944 (de Goiânia
para o Rio de Janeiro), cita uma expressão que sempre me
chamou atenção: a literatura como “sorriso da sociedade”.
Cabral cita a expressão cunhada por Afrânio Peixoto (no seu
Panorama da literatura brasileira, de 1940, como informa
Flora Süssekind, em nota no volume Correspondência de
Cabral com Bandeira e Drummond, de 2001), mas logo
adverte que não acolhia seu sentido original, bastante
problemático, que indica que a literatura aparece quando a
sociedade está feliz, ao passo que os momentos de tristeza
“impõem” textos científicos etc. Cabral, por sua vez, diz:
“Eu a uso no outro sentido, o de necessariamente a
literatura ser um veículo de alegria, saúde, não morbidez.
Creio que a função mais importante da literatura não é
refletir a miséria que a gente está vendo e sim dar coragem
a esses que se está vendo na miséria”.
Há muito o que debater aí, mas gosto da hipótese:
compartilhar para dar coragem, não apenas no que diz
respeito à poesia, claro. E isso se torna ainda mais
interessante se conseguimos colocar essas trocas da poesia
como um gesto cotidiano. No meu caso, tanto ler como
escrever poesia sempre foram gestos cotidianos – mas
rueiros, porque costumo ler e escrever enquanto me
desloco pelas cidades, estradas, com outras pessoas etc.
Agora, em quarentena, a poesia se revela numa outra
dimensão, em que não apenas se projeta para fora, de ilha
para ilha, mas se entretece à rotina da casa, sem que isso
tenha a ver com solidão (estou muito bem acompanhado)
ou ócio (sigo bastante atarefado). Leminski dizia que a
poesia era “uma necessidade orgânica da sociedade” e o
que temos em nossas casas, ainda mais atravessadas pelas
formas de comunicação atual, é também uma sociedade
que tem essa necessidade.
Aliás, neste ponto, preciso voltar a falar da Mônica
Salmaso, porque na série de vídeos – já são mais de 50, ô
sorte – de cara me chamou atenção que cada uma daquelas
peças artísticas (digamos assim, com solenidade, porque é
o caso) parece irromper no meio da rotina das casas
daqueles artistas como um ato entre outros tantos do dia,
sem distinção entre arte e outros afazeres. E acredito que
lembrar disso desfaz o mal-estar sobre achar que a poesia
está nos levando para um lado quando a urgência da luta
contra a morte exigiria que fôssemos para outro. Aqui, a
poiesis – que é fazer, entre outras coisas, poesia – revela-se
pharmakon: na medida exata, salva vidas.
Reinventar a cotidianidade do gesto associado ao poema
faz muito mais sentido (e é mais necessário, para mim) do
que algo como suspender o poema até que voltem as
condições para a poesia, simplesmente porque não conheço
tais condições. Já escrevi antes: versos vêm de condições
adversas (e não esqueço a afirmação de Theodor Adorno
sobre poesia e barbárie após Auschwitz). E podem ir ao
encontro de outras, tornando-as menos adversas. Por isso,
neste momento, creio que compartilhar poesia é ainda
urgente e curativo: pelo que dizem os poemas, pelo que diz
o gesto de compartilhar, porque cada poema leva em seus
versos a voz de alguém – de quem o escreveu, de quem o
escolheu – para além de quaisquer limites. Visita e
aproxima. A luta por sobrevivência passa também por
inventar outras formas de convívio, de conversa, de
colaboração. Ver no poema uma ponte, uma carta, um
abraço na distância.
lançamento

Zeladora de memórias
FABÍOLA PADILHA

Quem iria imaginar uma situação dessas? Parece o nazismo


que a gente vê nos filmes. Esses milicos endoidaram.
(Bernardo Kucinski, Júlia: nos campos conflagrados do
senhor)
 
O Brazil não conhece o Brasil. (Aldir Blanc, “Querelas do
Brasil”)
 
 
SOBRE O NOVO ROMANCE DE BERNARDO KUCINSKI, JÚLIA: NOS
CAMPOS CONFLAGRADOS DO SENHOR

Desde sua estreia na ficção, em 2011, com K: relato de uma


busca, romance que alcançou enorme repercussão,
Bernardo Kucinski vem se destacando como uma das mais
importantes e potentes vozes da literatura brasileira
contemporânea, sobretudo no que concerne ao
enfrentamento de forças ultraconservadoras que assolam
nosso país. Em muitas narrativas, como Você vai voltar pra
mim (2014) e Os visitantes (2016), além do romance
inaugural, o autor confronta o apagamento dos eventos
traumáticos (“o mal de Alzheimer nacional”) do extenso
período da ditadura civil-militar brasileira, marcado por um
cômputo terrível de vítimas sequestradas, torturadas e
assassinadas pelo aparelho repressor. Com absoluto
domínio técnico na condução de suas histórias, construídas
com estrutura fragmentária e sintaxe predominantemente
concisa, Kucinski exuma os horrores da ditadura,
escancarando a sordidez de seus meandros, sem resvalar
em nenhum sentimentalismo apelativo.
Com frequência, o autor lança mão do recurso da ironia
para potencializar o efeito de assombro e perplexidade,
mobilizando o leitor. Em A nova ordem (2019), por exemplo,
espécie de distopia política que eleva ao paroxismo as mais
terríveis reminiscências da ditadura, um dos principais
personagens, o general Lindoso Fagundes, cuja meta era o
genocídio de 30 milhões de brasileiros (“O Brasil da Nova
Ordem não precisa de 210 milhões de habitantes. Basta um
mercado interno de 30 milhões de famílias, já que o
agronegócio é voltado essencialmente para a exportação.
[...] o Brasil tem povo demais”), é eliminado por Angelino,
um ex-engenheiro que se torna morador de rua. A ironia
aqui não se restringe ao que o nome do atirador evoca
(“anjo”), mas inclui ainda a escolha da marca do armamento
usado para o abate, uma Taurus. Como se sabe, a fabricante
de armamentos ganhou notoriedade durante o último pleito
para a presidência da República. Suas ações dispararam no
mercado financeiro: aumentaram muito após a campanha,
impulsionada pelo então candidato Jair Bolsonaro, em prol
de uma população armada. Seu gesto de imitar uma arma
com a mão foi amplamente difundido entre seus apoiadores.
Em A nova ordem, o episódio deixa patente o efeito
bumerangue, a possibilidade de um “cidadão de bem” ser
morto justamente por um indivíduo do contingente de
pessoas que desejaria liquidar.
Revisitando mais uma vez a temática centrada na
ditadura, Kucinski lança agora o romance Júlia: nos campos
conflagrados do senhor. A história gira em torno das
investigações da protagonista sobre suas origens, após uma
“sucessão de acasos” que despertam suspeitas sobre sua
verdadeira filiação. Reunida com os dois irmãos e o tabelião,
Júlia se vê diante da necessidade de partilhar o espólio (o
apartamento onde vivia com os pais). Logo no primeiro
capítulo, o narrador onisciente dissemina uma série de
dúvidas no leitor, alimentadas pela referência a mistérios e
segredos que são paulatinamente desvendados ao longo da
narrativa, à medida que Júlia se empenha em seguir as
pistas encontradas: “Um pressentimento a fez reter o
apartamento, pressentimento pertinaz, insistente. Não
venda, dizia uma voz interior”. Nesse espaço eclode o
elemento disruptivo que opera uma reviravolta decisiva na
vida da protagonista: num buraco da parede, Júlia encontra
cartas de sua tia Hortência com relatos sobre seu
nascimento, além de papéis com informações cifradas e
“um maço de folhas grampeadas” com menção a “crianças
desaparecidas, sequestradas” e depoimentos de presos
políticos.
“Durante três dias Frei Tito foi supliciado; socaram sua
cabeça na parede, queimaram seu corpo com cigarros e lhe
aplicaram choques elétricos em todo o corpo e na boca,
‘para receber a hóstia’.” Júlia experimenta o choque de se
deparar, a um só tempo, com dados desconhecidos de sua
vida particular e de seu país: “Então isso acontecia no
Brasil? E o pai sabia de tudo isso? E a mãe será que sabia?
[...]. Nunca imaginou atrocidades dessas no Brasil”. A
história da protagonista se articula inextricavelmente à
história política nacional, num enlace que alinhava muita
dor, sofrimento, separações e encontros surpreendentes.
O expediente do diálogo ganha destaque e imprime
agilidade à narrativa, cuja temporalidade alterna presente e
recuos no tempo. Das deambulações pelo passado,
sobressai a amizade entre Durval, pai de Júlia e engenheiro
do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), e Magno,
escrivão de uma delegacia de polícia, ambos empenhados
em ajudar a encontrar presos políticos e comunicar o
paradeiro deles às famílias. A parceria culmina na
descoberta de uma rede de tráfico de bebês, encaminhados
clandestinamente para adoção. A abordagem da adoção
ilegal já havia comparecido em Pretérito imperfeito (2017),
mas desprovida de ênfase e sem conexão com o quadro
político do país. Em Júlia, a adoção “à brasileira”, questão
nuclear nesta nova narrativa, expõe uma rede criminosa
composta por integrantes da Igreja católica, da Polícia
Militar e da sociedade civil (“Estima-se que, em cerca de
vinte anos, mais de 40 bebês foram levados ao exterior, a
maioria para a Itália”). O último capítulo encerra a tarefa de
recomposição do álbum de família, facultando à
protagonista uma compreensão definitiva não apenas dos
fatos atinentes à sua vida particular, mas também do
contexto mais amplo do qual esses fatos emergem.
Diferentemente de obras anteriores que retomam os
tempos macabros da ditadura, nas quais ficava em aberto
divisar uma saída que permitisse a superação da barbárie,
em Júlia, Kucinski apresenta uma via propositiva bastante
desafiadora e significante. A chave de leitura dessa
proposição é dada pelo título do romance. A etimologia do
nome Júlia remete a filha de Júpiter, deus da proteção, da
disciplina e da justiça. Já o verbo conflagrar quer dizer
“fazer ficar mais aceso, mais forte; excitar, estimular,
inflamar; amotinar, agitar, convulsionar”. Ao ser impelida,
pelo acaso, a abdicar do ritmo previsível de uma rotina
confortável, Júlia não hesita em escavar o que se alberga
sob a ilusória passividade das paredes que a protegem.
Semelhante a seu pai, ela também descobre que a
pacificação é uma conquista que se alcança com o combate
às injustiças.
Não pode haver pacificação quando se caminha sobre
cadáveres insepultos. Como afirma Frei Tito de Alencar,
citado numa das epígrafes: “Não vejo como ser cristão sem
ser revolucionário”. Muitos nomes dos que enfrentaram a
repressão da ditadura civil-militar brasileira estampam as
páginas desse romance. Para que os mortos repousem em
paz, urge promover a conflagração nos campos do Senhor.
O recado de Kucinski não poderia ser mais claro: é preciso
estar atento à centelha do passado que relampeja neste
momento de perigo. É preciso inflamar as brasas – e ir à
luta!
colaboraram nesta edição
Cynthia Gyuru é artista plástica. Tem como atividades a
ilustração, pintura em porcelana, desenvolvimento de
estampas e criação de cenários
Daniel Trench é designer e editor de arte da revista
Serrote. É professor da ESPM e da Escola da Cidade
Eduardo Wolf é doutor em Filosofia pela USP e editor de
“Estado da Arte” no jornal O Estado de S. Paulo
Fabíola Padilha é doutora em Letras pela UFMG e
professora de Teoria da Literatura e Literaturas de Língua
Portuguesa da UFES
Idelber Avelar é doutor em Estudos Espanhóis e Latino-
Americanos pela Universidade Duke e professor de
Literatura na Universidade Tulane. Seu Eles em nós: retórica
e antagonismo político no Brasil do século XXI está no prelo
com a Editora Record
Jerônimo Teixeira é jornalista e escritor, autor de Os dias
da crise (Companhia das Letras, 2019)
Renata d’Angelo é arquiteta e fotógrafa
Rodrigo de Lemos é doutor em Literatura pela UFRGS e
professor de Língua e Cultura Francesa na UFCSPA-RS
Tarso de Melo é doutor em Filosofia do Direito pela USP,
poeta, advogado e professor. É autor de Rastros (martelo
casa editorial, 2019), entre outros

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