Gabriel Delanne - A Reencarnação
Gabriel Delanne - A Reencarnação
Gabriel Delanne - A Reencarnação
Gabriel Delanne
A Reencarnação
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Gabriel Dellane – A Reencarnação
Michelangelo
David
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Gabriel Dellane – A Reencarnação
Conteúdo resumido
Nesta obra Gabriel Delanne demonstra que a doutrina da reencarnação é a única que
corresponde à idéia que formamos da Justiça Divina, a única que explica o porquê das
desigualdades sociais, intelectuais e morais entre os homens, bem assim os sofrimentos e
mazelas humanas.
Após uma “revista histórica sobre a teoria das vidas sucessivas”, o autor realiza valioso
estudo sobre:
• a passagem do princípio inteligente pelo reino animal;
• as experiências de renovação da memória;
• a hereditariedade e as crianças-prodígio;
• as recordações de vidas anteriores;
• os casos de reencarnação anunciados antecipadamente;
• o conjunto de argumentos favoráveis à reencarnação.
Educado em família já conhecedora do Espiritismo e, ainda, com o rigor de sua lógica e a
inteligência de sua argumentação, Delanne confere à tese da reencarnação uma base
indestrutível.
Por fim, demonstra que a reencarnação é sublime lei da Criação, operando a reeducação e
a evolução das almas, na longa jornada da imortalidade.
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Gabriel Dellane – A Reencarnação
Sumário
Introdução .................................................................................................................. 7
I – Revista histórica sobre a teoria das vidas sucessivas
A hipótese da passagem da alma pela série animal é admitida por Allan Kardec.
– As teorias da evolução. – Lamarck. – Darwin. – Quinton e de Vries. – Formação
e desenvolvimento gradual do Espírito. – Passagem do princípio inteligente pela
série animal. – Não há diferenças absolutas entre a alma animal e a nossa.37
IV – A inteligência animal
Existem casos em que a reencarnação foi predita com bastante exatidão, para
que se lhe pudesse verificar a realidade. – A clarividência do médium não basta
para explicar essa premonição. – Exemplos de crianças que dizem à sua mãe que
voltarão. – Um duplo anúncio de reencarnação. – Lembrança de uma canção
aprendida na vida precedente. – Um caso quase pessoal. – Uma ata de Lyon, do
grupo Nazaré. – O caso de Engel. – Os dois casos contados por Bouvier. – O de
Reyles. – O caso Jaffeux. – História da menina Alexandrina, narrada pelo Dr.
Samona. ......................................................................................................... 157
XIII – Vista de conjunto dos argumentos que militam em favor da reencarnação
Introdução
A imortalidade – disse Pascal – importa-nos de tal forma, e tão profundamente nos toca,
que é preciso ter perdido todo o senso, para ficar indiferente ao seu conhecimento.
A necessidade de perscrutar nosso destino tem sido a preocupação de inumeráveis
gerações, pois as grandes revoluções que transformaram as sociedades foram feitas por
chefes religiosos. Entretanto, em nossos dias, reina a incerteza na maioria de nossos
contemporâneos, a respeito de tão importante assunto, porque a Religião perdeu grande
parte de sua autoridade moral e viu diminuir seu poder sugestivo.
Com os filósofos espiritualistas, a alma, ávida de verdade, erra, atônita, nos obscuros
dédalos de uma metafísica abstrata, muitas vezes contraditória e por vezes incompreensível.
O último século foi notável pelo extraordinário desenvolvimento das pesquisas psíquicas,
em todos os ramos da Ciência. Os novos conhecimentos que adquirimos revolucionaram
nossas condições de existência e melhoraram nossa vida material, em proporções que
pareceriam inverossímeis a nossos antepassados. Entretanto, pôde-se acusar a Ciência de ter
iludido todas as nossas esperanças, porque, se ela triunfa no domínio da matéria, fica
voluntariamente estranha ao que mais nos importa saber, isto é, se temos uma alma imortal,
e, na afirmativa, o em que se tornará ela depois da morte e, com mais forte razão, se existe
antes do nascimento. Mas se a Ciência foi incapaz de edificar, tornou-se poderoso
instrumento de destruição.
Os descobrimentos da Astronomia, da Geologia e da Antropologia levantaram o véu de
nossas origens e, à luz dessas grandiosas revelações naturais, as ficções religiosas sobre a
origem da Terra e a do homem desvaneceram-se, como aconteceu às lendas, diante da
História.
Por outra parte, a crítica intensa dos exegetas tirou à Bíblia seu caráter de revelação
divina, de sorte que muitos espíritos sinceros recusam submeter-se, agora, à sua autoridade.
Essa ruína da fé resulta também do antagonismo que existe entre o ensino religioso e a
Razão. As antigas concepções do Céu e do Inferno caducaram, porque não mais se
compreende a eternidade do sofrimento como punição de uma existência, que, em relação à
imensidade do tempo, é menos de um segundo, assim como não se concebe a felicidade
ociosa e beata, cuja eterna monotonia seria um verdadeiro suplício.
Para trazer novas luzes a assunto tão longamente controvertido, como o da existência da
alma, é preciso abandonar, resolutamente, o terreno das estéreis discussões filosóficas, as
quais, na maioria dos casos, chegam apenas a soluções contraditórias, e apontar ao assunto
pela observação e pela experiência.
A alma existe substancialmente; se ela, de fato, é diferente do corpo, deve ser possível
encontrar-lhe, nas manifestações, provas de sua independência para com o organismo. Ora,
essas provas existem e fácil é convencer-nos, estudando imparcialmente os fatos hoje
classificados sob as denominações de clarividência, telepatia, premonição, exteriorização da
sensibilidade ou da motricidade e desdobramento do ser humano.
Durante muito tempo, a Ciência permaneceu céptica em face dos fenômenos em que não
acreditava, e foram necessários os esforços perseverantes dos espiritistas, há mais de 70
anos, para orientar, em tão recentes vias, os pesquisadores independentes.
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Gabriel Dellane – A Reencarnação
Soou, enfim, a hora da justiça, desde que o Prof. Charles Richet depôs na mesa dos
trabalhos da Academia de Ciências, no mês de março de 1922, seu “Tratado de Metapsíquica”,
que é um reconhecimento formal da indiscutível realidade dos fenômenos de que falamos
acima. Se o célebre fisiologista se conserva, ainda, em oposição à teoria espirítica dos fatos, é
timidamente, apenas, que combate essa explicação. Muitos sábios ilustres não tiveram tais
escrúpulos, visto de Crookes, Alfred Russel Wallace, Myers, Sir Oliver Lodge, Lombroso e
vários outros aceitam, plenamente, para explicar os mesmos fatos, a teoria espirítica, que é a
única que a eles se poderá adaptar. A Sociedade Inglesa de Pesquisas Psíquicas, composta de
homens de ciência de primeira ordem e de psicólogos eminentes, tem feito, desde 1882,
milhares de observações, tem instituído experiências irreprocháveis e, graças à vulgarização
dos processos hipnóticos, o público letrado começa a familiarizar-se com esses casos, que
revelam em nós a presença da alma humana.
Não basta, porém, estabelecer que o ser pensante é uma realidade; é necessário também
provar que sua individualidade sobrevive à morte, e isto com o mesmo luxo de
demonstrações positivas como as que tornam certa sua existência durante a vida.
Os espiritistas responderam a essa expectativa, mostrando que as relações entre os vivos
e os mortos se realizam sob formas muito variadas da escrita, da tiptologia, da vidência, da
audição, etc. Eles empregam a fotografia, a balança, as impressões e as moldagens para
estabelecer a objetividade dos fantasmas, que aparecem nas sessões de materialização, e a
corporeidade temporária dessas aparições é irrecusável, desde que todos aqueles
documentos subsistem depois que os fantasmas se desvanecem.
As objeções de fraudes, alucinações e outras foram refutadas diante das reiteradas
investigações empreendidas no mundo inteiro pelos sábios mais qualificados; e, em face da
massa de provas acumuladas, pode-se, agora, afirmar que a materialidade dos fatos não é
mais contestável. Sem dúvida, a luta contra os preconceitos ainda será longa, porque vemos
unidos, em coligação heteróclita, os padres e os materialistas, ambos igualmente ameaçados
por esta ciência nova; é tão grande, porém, a força demonstrativa do Espiritismo, que já
conquistou ele milhões de aderentes, em todas as classes da sociedade, e viceja sobre as
ruínas do passado.
Não nos podendo estender em tão variadas demonstrações, reenviamos o leitor, desejoso
de instruir-se, às obras já publicadas.
Temos como irrecusável que a alma humana possui uma existência certa durante a vida,
que sobrevive à desagregação do corpo e que leva para o Além as faculdades e os poderes
que possuía aqui.
Impõe-se, agora, a questão de saber se ela existia antes do nascimento e quais as provas
que é possível reunir para apoiar a teoria da preexistência. São elas de duas espécies:
1º) argumentos filosóficos;
2º) observações científicas.
Examinemos, rapidamente, estes dois aspectos da questão.
A crença na pluralidade das existências foi admitida pelos espíritos mais eminentes da
Antigüidade, sob formas, a princípio, um tanto obscuras, mas que, com o tempo, se
precisaram de maneira compreensível. Tendo o Cristianismo repelido tal teoria, os homens
de hoje se familiarizaram pouco com essa idéia eminentemente racional. Veremos que há
argumentos irresistíveis em seu favor, se quisermos conciliar as desigualdades intelectuais e
morais que existem entre os homens, com uma justiça imanente.
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Gabriel Dellane – A Reencarnação
Se admitirmos que a alma do homem não vem à Terra pela primeira vez, que sua
aparição não é súbita, seremos levados a supor, remontando até à origem da Humanidade,
que ela passou, anteriormente, pelo reino animal, que o percorreu todo, desde a origem da
vida no Globo.
Veremos que os descobrimentos da Ciência esteiam fortemente essa opinião, porque é
possível verificar, pela filiação dos seres vivos, uma correlação progressivamente crescente
entre os organismos materiais e as formas cada vez mais desenvolvidas das faculdades
psíquicas.
É nesse momento que fazemos intervir as experiências do Espiritismo, buscando dar a
essa teoria filosófica uma base experimental, ou seja, procurando fazê-la entrar na Ciência.
Eis, ligeiramente resumidos, os pontos mais notáveis dessa demonstração.
A experiência nos mostra que a alma é inseparável de um corpo fluídico, chamado
perispírito. Esse invólucro contém em si todas as leis que presidem a organização e a
manutenção do corpo material e, ao mesmo tempo, as que regem o funcionamento
psicológico do Espírito.
As manifestações dos Espíritos fazem ver, objetivamente, esse poder formador e plástico,
e nos fazem supor que aquilo que sucede, momentânea e anormalmente, em uma sessão
espirítica, produz-se, lenta e naturalmente, no instante do nascimento. Desde então, cada ser
traz consigo o poder de desenvolvimento, e só a forma, isto é, o tipo estrutural interno e
externo é modificado pelas leis de hereditariedade, que lhe podem perturbar, mais ou menos,
o funcionamento.
Tentei um esboço dessa demonstração há 30 anos, no meu livro A Evolução Anímica, e em
uma memória apresentada em 1898 ao Congresso Espiritualista de Londres.
Se os fatos precedentes são exatos, devemos encontrar na série animal os mesmos
fenômenos que no ser humano e poderemos fiscalizá-los experimentalmente. Exporei as
provas fisiológicas e psicológicas que possuímos a esse respeito e ver-se-á que, se os
documentos ainda não são em número suficiente para impor uma convicção absoluta,
possuem, entretanto, bastante valor para obrigar-nos a tê-los na maior conta.
Outra série de argumentos pode ser extraída do testemunho dos Espíritos, e terei o
máximo cuidado em não esquecer essa fonte de informações, fazendo as necessárias reservas
sobre o valor que devemos atribuir às afirmações dessa natureza.
Existe, com efeito, divergência assaz sensível sobre este ponto, entre os Espíritos que se
manifestam nas diferentes partes do mundo. Os seres desencarnados dos países latinos
ensinam, quase unanimemente, as vidas sucessivas; graças a eles adotou Allan Kardec esta
teoria, à qual se opunha anteriormente. Nos países saxônios, pelo contrário, a maioria dos
Espíritos rejeita essa hipótese. Não nos espantemos com esse desacordo, porque, assim no
Espaço que na Terra, as opiniões sobre as grandes leis da Natureza estão divididas, e entre os
Espíritos, como entre nós, não são os mais instruídos, ou os mais evolvidos, os que acabam
por demonstrar o bom fundamento de suas idéias.
Verifica-se, agora, que há vinte anos a reencarnação vem sendo admitida por grande
número de Espíritos, na Inglaterra e nos Estados Unidos, e daí concluímos que essa teoria
teria sido, até então, posta de lado pelos guias espirituais, para não chocar rudemente as
crenças antigas e comprometer, por isso, o desenvolvimento do Espiritismo.
Hoje, que essa doutrina conta milhões de adeptos no Novo Mundo, já não existe o perigo,
e a teoria das vidas sucessivas ganha terreno cada vez mais.
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Gabriel Dellane – A Reencarnação
Podem-se encontrar nas comunicações espiríticas duas espécies de provas da
reencarnação:
1º) as que provêm de Espíritos, que afirmam lembrar-se de suas vidas anteriores;
2º) aquelas nas quais os Espíritos anunciam, de antemão, quais serão suas
reencarnações aqui, com a especificação do sexo e dos caracteres particulares pelos
quais poderão ser reconhecidos.
Discutiremos, cuidadosamente, esses documentos e ver-se-á que muitos resistem a todas
as críticas.
Há, ainda, duas séries de provas concernentes às vidas sucessivas: são, a princípio, as
fornecidas pelos seres humanos, os quais se lembram de ter vivido na Terra. Nessa matéria,
uma comparação entre esses fenômenos e a paramnésia, permitir-nos-á conservar tão-
somente documentos inatacáveis. Seguem-se as que se deduzem da existência dos meninos-
prodígio. A hereditariedade psíquica é inadmissível, visto como sabemos que a alma não é
fabricada pelos pais; assim, a reencarnação é a única explicação lógica das anomalias
aparentes.
Esses fatos, tão negligenciados, até agora, pelos filósofos, têm considerável importância:
se os quisermos examinar atentamente e deduzir-lhes as conseqüências, chegaremos a uma
quase certeza da teoria das vidas sucessivas e compreenderemos a grandiosa evolução da
alma humana, desde as formas inferiores até os graus mais elevados da vida normal e moral.
Essa doutrina tem um alcance filosófico e social de considerável importância para o
futuro da Humanidade, porque estabelece as bases de uma psicologia integral, que
maravilhosamente se adapta a todas as ciências contemporâneas, em suas mais altas
concepções.
Estudemo-la, pois, com imparcialidade, e veremos que é ela mais que uma teoria
científica, porque uma verdade imponente, irrecusável.
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Gabriel Dellane – A Reencarnação
Capítulo I
A Índia
A Escola Neoplatônica
A Judéia
Os romanos
Entre os romanos, que receberam a maior parte dos seus conhecimentos da Grécia,
Virgílio exprime claramente a idéia da Palingenesia nestes termos:
“Todas essas almas, depois de haverem, durante milhares de anos, girado em torno
dessa existência (no Elísio ou no Tártaro), são chamadas por Deus, em grandes
enxames, para o rio Letes, a fim de que, privadas da lembrança, revejam os lugares
superiores e convexos, e comecem a querer voltar ao corpo.”
Diz também Ovídio que sua alma, quando for pura, irá habitar os astros que povoam o
firmamento, o que estende a Palingenesia até os outros mundos semeados no espaço.
Druidismo
Idade Média
Durante todo o período da Idade Média, a doutrina palingenésica ficou velada, porque era
severamente proscrita pela Igreja, então toda-poderosa; esse ensino esteve confinado nas
sociedades secretas ou se transmitiu, oralmente, entre iniciados que se ocupavam com
ciências ocultas.
Tempos modernos
Capítulo II
Resumi, no 1º volume da obra As Aparições Materializadas dos Vivos e dos Mortos, certo
número de exemplos autênticos, os quais demonstram que, durante a vida, a alma pode sair
do seu corpo físico para mostrar-se ao longe com um segundo corpo idêntico ao primeiro e,
em certos casos, capaz de gozar, temporariamente, as mesmas propriedades. Não se trata
aqui de teorias mais ou menos contestáveis: é a própria Natureza que fala.
Entre cem outras provas, citemos a referida pelo ilustre jornalista inglês W. Stead; viii ele
viu, durante mais de uma hora, o duplo materializado de uma de suas amigas que, durante
esse tempo, estava deitada em seu quarto.
O sósia tinha força suficiente para empurrar uma porta, manter um livro e caminhar. O
duplo era de tal forma idêntico ao corpo carnal, que os assistentes não duvidaram estar em
presença da aparição materializada de um vivo.
Existem muitos outros casos semelhantes e não seria demais chamar a atenção dos
pesquisadores para essas manifestações espontâneas. Aqui não é necessário o médium. O
Espírito encontra em seu próprio organismo as forças suficientes para dar a seu corpo
espiritual as aparências da matéria. Ora, para caminhar, para manter um livro é preciso que o
fantasma esteja organizado. É indispensável que ele tenha aparelhos extrafisiológicos que
gozem o mesmo papel dos membros carnais. A dama de Stead segurava, com sua mão
fantástica, o livro que lhe ofereceram, exatamente como o faria com sua mão ordinária; é um
fato e não uma hipótese.
Assim também, ix quando o fantasma de um passageiro escrevia numa ardósia a indicação
que devia salvar o navio em perigo, onde seu corpo físico se achava adormecido, ele agia
como o teria feito para escrever na vida normal; possuía um órgão de preensão, que lhe
permitia sustentar o giz. Dirigia os movimentos do lápis, imprimindo-lhe as mudanças de
direção necessárias para produzir o grafismo. Em outras palavras, havia uma verdadeira
duplicata do corpo físico e ela devia estender-se às minudências da constituição anatômica,
pois que os atos executados são os mesmos.
Lembrarei, igualmente, que o duplo da Sra. Fay,x na célebre experiência de Crookes e
Varley, apareceu entre as cortinas do gabinete, tendo na mão um livro, que deu a um
assistente, enquanto seu corpo de carne e osso, em letargia, era percorrido por uma corrente
elétrica, o que assegurava não se haver ele movido.
A dedução que se impõe, imediatamente, ao espírito, é que existe em cada um de nós um
segundo corpo, perfeitamente semelhante ao primeiro, que dele pode separar-se e,
momentaneamente, substituí-lo, a fim de permitir que a alma exteriorizada entre em relação
com o mundo exterior. Falando da bilocação de Afonso de Liguori, que assistia o Papa
Clemente XIV, em seus últimos momentos em Roma, enquanto seus servidores o viam, no
mesmo dia, em sua cela de Arienzo, na Província de Nápoles, escreveu Durand de Gros,
médico de alta envergadura filosófica: xi
“Se o fato em causa, e os fatos ou pretendidos fatos semelhantes, descritos
diariamente nas publicações da telepatia científica, são verificados, são provados; se,
em uma palavra, força é admiti-los, ainda que nos custe, uma conseqüência me parece
decorrer daí, com a mais límpida, a mais irresistível evidência: a de que a Natureza
física aparente está associada a uma Natureza física oculta, que lhe é funcionalmente
equivalente, posto que de diferente constituição.
É que o organismo vivo que vemos e que a Anatomia disseca tem igualmente por
forro, se o forro não é ele próprio, um organismo oculto, sobre o qual não exercem ação
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Gabriel Dellane – A Reencarnação
nem o escalpelo nem o microscópio e que, nem por isso, deixa de estar provido – e
talvez o esteja melhor que o outro – de todos os órgãos necessários ao duplo efeito, que
é a inteira razão de ser da organização vital: recolher e transmitir à consciência as
impressões do exterior e colocar a atividade psíquica em condições de se exercer no
mundo circunjacente e, por seu turno, modificá-la.”
Sob forma lapidar, é esta a conclusão a que não mais poderemos escapar.
Com efeito, em seu último livro, Do Inconsciente ao Consciente, o Dr. Geley foi levado
também às seguintes conclusões, depois de haver assinalado as obscuridades do ensino
filosófico oficial: xii
“É preciso e basta para tudo compreender, o mistério da forma específica, o
desenvolvimento embrionário e pós-embrionário, a constituição e a manutenção da
personalidade, as reparações orgânicas e os demais problemas gerais da Biologia,
admitir uma noção, que não é nova, certamente, mas encarada de modo novo – a de um
dinamismo superior ao organismo e que o acondiciona.xiii
Não se trata somente da idéia diretora de Claude Bernard, espécie de abstração, de
entidade metafísico-biológica incompreensível, mas de uma noção concreta, a de um
dinamismo diretor e centralizador, que domina, assim, as contingências intrínsecas, as
reações químicas do meio orgânico, como as influências ambientes do meio exterior.”
Allan Kardec, há mais de setenta anos, ensinava essa duplicação do organismo, verificada
hoje com o luxo de precauções que o método científico exige.
Se, com efeito, o escalpelo e o microscópio são impotentes para revelar a existência do
perispírito, a fotografia, de uma parte, pode revelar a presença do fantasma exteriorizado de
um vivo, mesmo invisível à vista, do que temos exemplos perfeitamente autênticos, como, de
outra parte, as experiências do Coronel de Rochas nos fazem presenciar o êxodo da
sensibilidade e da motricidade do paciente em experiência.
Esses fenômenos objetivos fazem, felizmente, intervir a experiência num domínio que
parecia reservado, exclusivamente, à observação, tirando, ao mesmo tempo, qualquer sombra
de incerteza sobre a verdadeira causa. Em todo caso, é a alma humana e só ela que intervém,
porque, quando é preciso obter desdobramentos experimentais, escolhe-se o lugar, o tempo,
as condições, e pode o agente, por vezes, lembrar-se do que se produziu, quando o viam a
distância. Ele tem a sensação de ser transportado ao lugar onde esteve visível, e não se
engana, porque pode descrever com exatidão as coisas desconhecidas que se encontravam
nos lugares que visitou anormalmente.
Melhor ainda, nas sessões com Eusápia, por exemplo, assiste-se ao sincronismo dos
movimentos físicos do corpo carnal e os do corpo fluídico; o esforço físico, fisiológico, é
transportado a distância e ficam traços objetivos dessa ação extracorpórea. São móveis
deslocados, pressões exercidas sobre aparelhos registradores e, sobretudo – precioso
resultado –, impressões e moldagens, que permitem verificar, de visu, a natureza da causa
atuante. xiv
Em presença de semelhantes verificações, percebe-se a inanidade das teorias católicas,
ocultistas, teosóficas, que fazem intervir seres estranhos para a explicação dos fenômenos.
Quando Siemiradsky comprova que as impressões deixadas no pó de sapato, pela mão
fluídica de que se teve a sensação, ou que foi vista operar, são idênticas aos desenhos da
epiderme da mão de Eusápia, é preciso possuir robusta imaginação e ausência total de
espírito científico para imaginar que é um demônio que se diverte nesse pequeno jogo. Do
mesmo modo, quando se obtém uma impressão da cavidade do rosto, em gesso, como eu
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Gabriel Dellane – A Reencarnação
mesmo observei,xv não há necessidade das coortes infernais para a explicação. Não há
nenhum milagre, nenhuma intervenção estranha, mas somente a ação do corpo fluídico, de
que esses fenômenos demonstram a existência com uma força irresistível.
Se se procura, realmente, a verdade, fora de qualquer idéia preconcebida, é preciso
seguir os fatos, passo a passo, e não multiplicar as causas sem necessidade. Quando se
encontra no ser humano a razão suficiente de um fenômeno, é anticientífico interpretá-lo por
causas estranhas, sobretudo quando estas são hipotéticas, como é o caso de demônios, anjos,
restos, cascas astrais, elementares, etc., ou qualquer outra entidade até agora imaginária.
Ressalta diretamente da observação e da experiência que o indivíduo humano é capaz,
em circunstâncias especiais, de separar-se em duas partes: de uma, vê-se o corpo físico,
geralmente inerte, mergulhado em sono profundo, e de outra, um segundo corpo, duplicata
absoluta do primeiro, que age ao longe, inteligentemente, donde se infere que a inteligência
acompanha o sósia e que este não é uma simples imagem virtual, uma efígie sem consciência.
Aparições de defuntos
Aparições provocadas
Mas onde e como esse maravilhoso mecanismo pôde ter nascimento e fixar-se de
maneira indelével no invólucro fluídico?
Tendo estudado, em outro lugar, tão complexa questão (A Evolução Anímica), só darei
aqui algumas indicações sumárias e necessariamente incompletas. Vejamos os pontos
principais que resultam da observação dos fatos e que parecem legitimar a hipótese da
passagem humana pela série dos reinos inferiores à humanidade.
Uma das magníficas descobertas do século XIX foi a demonstração da unidade de
composição de todos os seres vivos. As plantas, os animais ou os homens, são formados por
células que, pela diversidade de suas formas, de seu conjunto e de suas propriedades, deram
nascimento, variando-os, à inumerável multidão de seres que povoam o ar, a água, a terra. As
mais simples criaturas podem viver sob a forma de células isoladas, como as do sangue ou
como os micróbios; em todas, porém, existe uma substância fundamental, o protoplasma, que
é a parte verdadeiramente viva. Todos os seres, quaisquer que sejam, são organizados,
reproduzem-se, nutrem-se e evolvem, isto é, nascem, crescem e morrem.
A todos será necessário água, calor, ar e um meio nutritivo. São sensíveis, isto é, reagem,
pelo movimento, a uma excitação exterior. Pode-se afirmar que, em todos os graus da escala
vital, as operações da respiração e da digestão, no fundo, são as mesmas; o que varia são os
instrumentos destinados a produzir esses resultados. A reprodução é igualmente idêntica:
todo ser provém de outro por um gérmen. O sono impõe-se a todos. Vê-se, em tais efeitos,
uma unidade geral de ação, que mostra como pôde surgir a variedade da uniformidade
original.
Existe, pois, inegável identidade nos processos vitais de todos os organismos, e daí
resulta, naturalmente, a idéia de um parentesco universal entre todos os seres. Desde que
não há geração espontânea, todos os seres, vegetais ou animais, que existem hoje, provêm
diretamente de antepassados que os precederam, e isto desde os milhões de anos que
transcorreram, durante os períodos geológicos. As pesquisas levadas a efeito nos terrenos
antigos fizeram descobrir que os animais e as plantas são cada vez mais simples, à medida
que se remonta ao passado. Como se produziu a evolução? É o que veremos mais adiante.
É mais que provável que as teorias imaginadas para explicar a evolução conservem
alguma parte de verdade; não temos, porém, necessidade de adstringir-nos mais a uma que a
outra. Basta notar que o ser que nasce reproduz, durante a vida fetal, todas as formas, mais
simples, que o precederam em seus ascendentes. O próprio homem, no seio materno, não
passa, a princípio, de simples célula, que, fecundada, se diferencia, e apresenta, em resumo,
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Gabriel Dellane – A Reencarnação
um quadro de todos os organismos que deveriam, no fim de milhões de anos, chegar ao seu. O
embrião é um testemunho irrecusável de nossas origens:
“Vemos na evolução do embrião – diz ainda Claude Bernard – surgir um simples
esboço do ser antes de qualquer organização. Os contornos do corpo e dos órgãos, a
princípio, são meros delineamentos, começando pelas construções orgânicas
provisórias, que servem de aparelhos funcionais e temporários do feto. Até então,
nenhum tecido é distinto. Toda a massa é constituída apenas por células plasmáticas e
embrionárias. Mas, nesse escorço vital está traçado o desenho ideal de um organismo,
ainda invisível para nós, sendo já designados, a cada parte e a cada elemento, seu lugar,
sua estrutura, suas propriedades. Onde devem estar vasos sangüíneos, nervos,
músculos, ossos, as células embrionárias se transformam em glóbulos de sangue, em
tecidos arterial, venoso, muscular, nervoso e ósseo.”
Uma vez que o perispírito organiza a matéria, e como esta ressuscita das formas
desaparecidas, parece lógico concluir que ele conserva traços desse pretérito, porque a
hereditariedade, como veremos, é impotente para fazer-nos compreender o que se passa;
parece legítimo supor, portanto, que o próprio perispírito evolveu através de estádios
inferiores, antes de chegar ao ponto mais elevado da evolução.
O princípio inteligente teria, pois, subido lentamente os degraus da série imensa dos
seres antes de desabrochar na humanidade. Os animais apresentam uma gradação inegável
nas manifestações intelectuais, dos mais rudimentares ao homem, de sorte que a hipótese da
reencarnação do ser no-lo mostra elevando-se, por seus próprios esforços, a um grau cada
vez mais elevado e permitindo-lhe chegar até nós sem solução de continuidade.
Mas o que vemos realizado a nossos olhos, isto é, a ininterrupção das formas, que se
ligam umas às outras, como anéis de cadeia gigantesca, deu-se também no passado. Pode-se
conceber, então, que o progresso é devido, não mais a causas exclusivamente externas, senão,
ao mesmo tempo, à psique inteligente, que procura quebrar a ganga da matéria, e faz esforços
ininterruptos por amortecê-la e permitir às suas faculdades entrarem em relação cada vez
mais íntima com a Natureza exterior. A criação dos sentidos, depois a de órgãos cada vez
mais aperfeiçoados, seria o resultado de um esforço intencional e não o produto de felizes
acasos, como querem os materialistas.
A reencarnação animal não é uma simples hipótese; pode já apoiar-se em alguns fatos,
que o futuro multiplicará consideravelmente. Compreender-se-á, então, o papel dos animais,
aqui, e a teoria puramente materialista de uma evolução física substituir-se-á pela do
princípio inteligente, que passa pela série dos reinos inferiores, para chegar ao homem e
elevar-se mais tarde a outros destinos, quando ficará liberto de todos os estorvos terrenos.
Sem dúvida, há ainda muitas obscuridades no que concerne ao como dessa evolução;
serão precisos estudos perseverantes para justificar cada um dos pontos dessa teoria, mas,
tal como está, ela oferece ao espírito um quadro racional de nossas origens e concilia-se tão
bem com os descobrimentos científicos como com o que a experimentação espírita, ainda
pouco desenvolvida, nos permitiu já verificar, de maneira segura.
Percebe-se, agora, o grandioso alcance teórico e prático das sessões de materialização,
porque elas provam, a princípio, a imortalidade da alma e, em seguida, pelo conhecimento do
perispírito, abrem diante de nós perspectivas de que hoje, ainda, não podemos imaginar a
imensidade.
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Gabriel Dellane – A Reencarnação
Capítulo III
A hipótese da passagem da alma pela série animal é admitida por Allan Kardec. – As teorias
da evolução. – Lamarck. – Darwin. – Quinton e de Vries. – Formação e desenvolvimento
gradual do Espírito. – Passagem do princípio inteligente pela série animal. – Não há
diferenças absolutas entre a alma animal e a nossa.
Admitindo que o princípio espiritual tenha passado pela série animal para chegar
progressivamente até à humanidade, não me afasto da tradição espírita, porque Allan Kardec,
em A Gênese, aceita perfeitamente essa possibilidade e a justifica, demonstrando que é ela
uma explicação lógica da existência dos animais e do papel que representam na Terra. Eis
como ele se exprime:
“Tomando a Humanidade no menor grau da escala intelectual, entre os selvagens
mais atrasados, pergunta-se se é aí o ponto de partida da alma humana.
Segundo a opinião de alguns filósofos espiritualistas, o princípio inteligente, distinto
do princípio material, individualiza-se, passando pelos diversos graus da
espiritualidade; é aí que a alma se ensaia para a vida e desenvolve suas primeiras
faculdades pelo exercício; seria, por assim dizer, seu tempo de incubação. Chegada ao
grau de desenvolvimento que este estado comporta, ela recebe as faculdades especiais
que constituem a alma humana. Haveria, assim, filiação espiritual do animal ao homem,
como há filiação corporal. Esse sistema, fundado na grande lei de unidade que preside à
Criação, responde, é preciso convir, à justiça e à bondade do Criador; ele deu um
destino, um fim aos animais, que não são mais seres deserdados, porém que encontram,
no futuro que lhes está reservado, uma compensação aos seus sofrimentos. O que
constitui o homem espiritual não é sua origem, mas os atributos que o transformam e
fazem dele um ser distinto, como é distinto o fruto saboroso, da raiz amarga da qual
saiu. Por ter passado pela fieira da animalidade, o homem não seria menos homem por
isso; não seria mais animal, como o fruto não é a raiz, como o sábio não é o informe feto
pelo qual estreou no mundo.” xxxii
Certos filósofos espiritualistas, e mesmo alguns espíritas, supuseram que a alma só se
encarnava uma vez em cada um dos mundos que se espalham pelo Infinito. Essa maneira de
conceber a evolução me parece tanto mais inexata, quanto as propriedades do perispírito não
podem ser adquiridas senão por uma longa série de encarnações terrestres, pois que o
perispírito organiza seu corpo físico segundo as leis particulares do nosso planeta.
Os outros mundos habitados de nosso sistema solar, pelo único fato de se acharem a
distâncias diferentes do astro central, têm, necessariamente, condições de habitabilidade
diversas das nossas.
38
Gabriel Dellane – A Reencarnação
É infinitamente provável, com efeito, que as primeiras formas organizadas, dependentes
das leis biológicas e físico-químicas em ação, sejam inteiramente outras nesses mundos, visto
que o peso, o calor, a luz, o potencial elétrico e demais fatores que concorrem à manutenção e
organização da vida são também outros em cada um deles.
Estudemos, à luz dos descobrimentos científicos contemporâneos, a filiação que liga
entre si, não só os seres vivos, como todos os que o precederam na Terra. Veremos
desenvolver-se, então, o panorama grandioso da vida, desde suas origens até a época atual.
A evolução animal
A Ciência nos demonstra, de maneira certa, que a evolução fez surgir a multiplicidade da
unidade original. As nebulosas deram nascimento ao Sol, este aos planetas. Os aspectos da
matéria multiplicaram-se e a vida apareceu sob formas rudimentares, antes de apresentar-se
na maravilhosa complexidade dos seres animais e vegetais que povoam hoje, não só a
superfície do Globo, como as águas, os ares e o interior da Terra. Vê-se que as manifestações
da inteligência são, de forma geral, correlativas à complexidade dos organismos. Por mais
curiosas que sejam as habitações das formigas, das abelhas ou dos castores; por mais
engenhosas que se revelem as disposições de certos ninhos, todas essas construções não
podem comparar-se às nossas, e a diferença mede precisamente o grau de evolução que delas
nos separa.
O animal não conhece as ferramentas; os membros servem-lhe unicamente para executar
seus trabalhos; a grande conquista do homem é a de fabricar as que lhe fazem falta e
aumentar artificialmente o alcance dos seus sentidos.
Nessa imensa e prodigiosa multiplicidade dos seres vivos observam-se todos os graus; as
manifestações da inteligência se confundem quase, nos reinos inferiores, com as reações
puramente físico-químicas, que determinam esses movimentos mecânicos, aos quais os
fisiologistas deram o nome de tropismos. Com a elevação na escala dos seres, toda indecisão
desaparece. Um verdadeiro psiquismo se manifesta; não só os instintos se complicam, senão
ainda a inteligência se traduz por atos comparáveis aos nossos, porque o elefante, o cão e o
macaco mostram que não existe uma diferença de natureza entre algumas de suas ações e as
que executamos, em conseqüência de uma deliberação raciocinada.
A hipótese de Descartes, de que os animais não seriam mais que autônomos, reagindo
mecanicamente às excitações do meio exterior ou interior, parece-me insustentável, qualquer
que seja o ponto de vista. Se admitirmos, com os materialistas, que a inteligência é função do
cérebro, como existe nos vertebrados superiores um sistema nervoso muito complicado, e
como ele apresenta com o nosso uma analogia de composição, de disposição e de reação, o
que se produz em nós deve produzir-se neles. O cérebro de um macaco ou mesmo de um cão
não difere do cérebro humano senão por uma simplicidade maior, mas a topografia é quase a
mesma, os neurônios são semelhantes; é preciso, pois, admitir, logicamente, que as
manifestações exteriores que qualificamos de inteligentes, em nós, devem ter o mesmo nome
quando observadas nos animais.
Não é somente a Anatomia e a Fisiologia que demonstram a identidade de composição e
de funcionamento vital dos tecidos animais e humanos. É agora a experiência. Falando como
Le Dantec, dir-se-á que a”substância cão” pode viver na “substância homem” e aí se adaptar
perfeitamente. Melhor ainda, eis-nos de novo em a noção de perispírito: é o terreno, no corpo
do animal, que dá aos tecidos vivos sua especialidade. Uma artéria pode ser enxertada em
outro corpo e aí gozar um papel de veia, ou reciprocamente, quando substitui uma parte
39
Gabriel Dellane – A Reencarnação
doente desta. Existe, pois, um plano orgânico, e a matéria viva lhe obedece, no sentido de que
ela transforma sua função, caso lhe imponham viver em outro lugar que não aquele para o
qual foi organizada. Não invento nada. As experiências do cirurgião Carrel o estabelecem
peremptoriamente. Eis o que ele verificou:
“Graças a sua técnica, o Dr. Carrel, coisa inaudita, chega a remendar muitos
centímetros destruídos da aorta abdominal, com um pedaço do peritônio. E o pedaço de
peritônio logo se transforma em uma parede vascular. Que futuro para a cura radical
dos aneurismas!
Uma cadela do laboratório do Dr. Carrel conserva, há dois anos, em lugar de uma
artéria abdominal, um pedaço de artéria poplítea, tirada de um jovem, a quem acabavam
de cortar a perna, e essa artéria humana funciona admiravelmente no animal.
Coisa inesperada, o Dr. Carrel pode conservar, por mais de dez meses, em tubos
especialmente dispostos, fragmentos de vasos, veias ou artérias, e mesmo outros
tecidos, sem que a vitalidade deles seja prejudicada. São enxertados e se soldam. O
curso do sangue restabelece-se em vasos, que, por tanto tempo, ficaram vazios. Assim,
revivificados, adaptam-se logo às novas funções que se lhes impõem.
Enfim – fato que ultrapassa tudo o que se poderia esperar, e que seria inacreditável,
se não o houvesse verificado o Dr. Pozzi –, o Dr. Carrel substitui membros. Há, no seu
laboratório, um cão branco e um cão preto da mesma estatura; cada um deles traz uma
perna do outro. Nenhum parece desconfiar de nada; a perna preta do cão branco e a
perna branca do cão preto se acham tão sólidas, tão vigorosas, tão isentas de
inferioridades funcionais, como quando pertenciam, ainda, a seus antigos
proprietários.” xxxiii
Vê-se, pois, que minha asserção sobre a identidade dos tecidos vivos humanos e animais
é seriamente fundada, e desde que os vertebrados superiores têm um sistema nervoso
semelhante ao nosso, como composição, e de disposição análoga, é pouco filosófico recusar-
lhes a faculdade de pensar, quando se admite que essa faculdade está ligada ao
funcionamento da célula cervical.
Nós, espíritas, que temos a prova da existência independente do princípio anímico, não
podemos deixar de crer que ele existe nos animais, visto que possuímos, fora das razões
lógicas que nos levam a admiti-lo, certo número de fatos demonstrativos.
Foi possível verificar, por vezes, em sessões de materializações, que animais defuntos
reaparecem com seu antigo corpo físico, assim como foi observado o desprendimento de
outros. Se tais fatos são reais, resultaria daí que há, no ponto de vista espiritual, a mesma
unidade geral que a Ciência estabelece para os seres vivos. Estes são formados de células;
provêm sempre de um ser que lhes é semelhante; desenvolvem-se e morrem pelos mesmos
processos; têm exigências idênticas para manter a vida. Desde a origem dos tempos, as
incalculáveis miríades de seres que passaram por nosso Globo, procriando
ininterruptamente, transformaram-se de tão prodigiosa maneira, que os restos que se lhes
descobrem parecem criações apocalípticas, posto que os órgãos e as funções tivessem sido os
mesmos por toda parte; entretanto, foi a sucessão deles que nos trouxe ao ponto em que
estamos, visto que não existe a geração espontânea.
A Ciência formulou certo número de hipóteses, para explicar as mutações dos seres.
Lamarck e Darwin imaginaram teorias sedutoras, que as de Quinton e de Vries completaram
até certo ponto. Mas, a verdadeira causa da evolução deve ser procurada, segundo penso, nos
esforços que o princípio inteligente tem feito para se ir desprendendo das faixas da matéria.
40
Gabriel Dellane – A Reencarnação
Lamarck mostrou muito bem a força da influência dos meios para modificar os
organismos; Darwin fez-nos compreender como a luta pela vida conduzia à sobrevivência dos
mais aptos, dos que melhor se sabiam adaptar. As variações espontâneas não fazem mais que
pôr em relevo o trabalho latente executado no seio dos organismos, e a lei de constância do
meio orgânico, descoberta por Quinton, indica o esforço que os seres vivos executam para
manter as condições essenciais ao funcionamento vital, apesar das transformações do mundo
exterior. Todas essas causas têm sido adjuvantes para polir o ser espiritual, para fazer
surgirem as virtualidades que dormiam nele, a fim de que ele se torne cada vez mais apto a
tomar conhecimento de si próprio e da Natureza.
Em nossos dias existem, ainda, representantes de todas as mentalidades possíveis. Desde
as plantas até o homem, passando por todo o reino animal, há uma série gradual e contínua,
que parte da inconsciência quase total até à plena luz da razão que ilumina os homens
superiores.
Em lugar de ver nessa grandiosa hierarquia unidades separadas, de que cada uma seria
efêmera centelha, a teoria das vidas sucessivas obriga-nos a pensar que todo ser, chegado ao
ápice, passou pelas fases inferiores, e que seu desenvolvimento não é devido ao capricho de
um criador, que o teria privilegiado, mas ao seu próprio esforço. Certo, a ordem, a justiça e a
harmonia se introduzem na explicação da Natureza, a evolução não é mais uma sucessão de
acasos felizes, mas o desenvolvimento de um plano lógico para a vitória do espírito sobre a
matéria.
Se bem que a natureza íntima do princípio pensante nos seja ainda desconhecida, somos
obrigados a procurar-lhes as origens em todos os seres vivos, por ínfimos que nos possam
parecer. Sem dúvida, a individualidade desse princípio não é aparente nas formas inferiores,
mas há uma necessidade lógica de ver em todas as manifestações vitais uma ação desse
princípio espiritual, mesmo quando ele está, ainda, indistinto nos seres que estão na base da
escala orgânica, como eu o dizia na memória apresentada ao Congresso Espírita, em 1898.
Somos, pois, obrigados, pela força da lógica, a buscar no reino vegetal o exórdio da
evolução anímica, porque a forma que as plantas tomam e conservam durante a vida implica
a presença de um duplo perispiritual, que preside às trocas e mantém a fixidez do tipo.
“A Natureza – diz Vulpian xxxiv – não estabeleceu uma linha de demarcação bem
nítida entre o reino vegetal e o animal. Os animais e os vegetais se continuam por uma
progressão insensível, e é com razão que são reunidos sob a denominação comum de
reino orgânico.”
A assimilação do papel representado pelo perispírito a um eletroímã de pólos
múltiplos,xxxv cujas linhas de força desenhassem não somente a forma externa do indivíduo
como o conjunto de todos os sistemas orgânicos, parece passar do domínio da hipótese para
o da observação científica.
Numa comunicação feita à Academia de Ciências, a 12 de maio de 1898, Stanoiewitch
apresentou desenhos tomados ao natural, os quais mostram que os tecidos são formados
segundo linhas de força nitidamente visíveis.
Um deles reproduz o aspecto de um ramo de pinheiro com dois nós, que têm o mesmo
papel e produzem as mesmas perturbações nas partes onde se encontram, como um pólo
elétrico ou magnético introduzido num campo da mesma natureza; outro demonstra que a
41
Gabriel Dellane – A Reencarnação
diferenciação se produz segundo as linhas de força; um terceiro representa a secção de um
ramo de carvalho alguns centímetros acima da ramificação. Vê-se, até os menores detalhes,
os aspecto de um campo eletromagnético formado por duas correntes retilíneas, cruzadas, do
mesmo sentido, e sensivelmente da mesma intensidade.
Essas observações parecem estabelecer a existência de um duplo fluídico vegetal,
análogo ao que se observa no homem.
Há, com efeito, alguma coisa nos seres vivos que não é explicável pelas leis físicas,
químicas ou mecânicas; essa alguma coisa é a forma que eles apresentam. E não só as leis
naturais não explicam as formas dos indivíduos, mas todas as observações nos levam a
pensar que a força plástica que edifica o plano estrutural e o tipo funcional desses seres não
pode residir nesse conjunto móvel, flutuante, em perpétua instabilidade, que é o corpo físico.
A série animal nos vai mostrar o progresso contínuo das manifestações anímicas.
Capítulo IV
A inteligência animal
Os cavalos calculadores
Em 1912, a imprensa parisiense fez grande ruído em torno da publicação xxxvii das
experiências de Krall, rico negociante de Elberfeld, com seus cavalos Muhamed e Zarif. Esses
inteligentes quadrúpedes, por meio de um alfabeto convencional, podiam entreter-se com
seu mestre, executar cálculos complicados, indo mesmo até à extração de raízes quadradas e
cúbicas.
Concebe-se que semelhantes afirmações fossem acolhidas por uma incredulidade geral.
Muitos filósofos de renome, entretanto, tendo estudado o caso desses animais notáveis,
perceberam que havia aí, realmente, um campo novo de observação para a psicologia animal,
e publicaram numerosos relatórios nos Annales des Sciences Psychiques dos anos de 1912 e
1913, nos Archives de Psychologie de la Suisse Allemande e na revista italiana Psyche. Vou citar
passagens tomadas nessas diferentes fontes. Elas estabelecem a certeza das notáveis
faculdades desses animais.
Krall não foi o primeiro que se ocupou em estudar a inteligência dos cavalos; a honra
cabe a um precursor, chamado Wilhelm von Osten, que desde 1890 acreditou perceber no
cavalo Hans, garanhão suíço, sinais de uma inteligência, que resolveu cultivar. Com
infatigável paciência, buscou fazer-se compreender por Hans, que se tornou capaz, não só de
contar, isto é, de bater num trampolim, colocado diante de si, com a pata direita, o algarismo
das unidades e com a esquerda o das dezenas, como, ainda mais, de efetuar verdadeiros
cálculos, de resolver pequenos problemas. Aprendeu a ler e indicar a data dos dias da semana
corrente.
O ruído provocado por esses sensacionais resultados suscitou violentas polêmicas. Foi
nomeada, em 1904, uma comissão composta dos Srs. Stumpf e Nagel, professores de
Psicologia e de Fisiologia da Universidade de Berlim; do diretor do Jardim Zoológico; de um
diretor de circo; de veterinários; de oficiais de Cavalaria. O inquérito concluiu pela
inexistência de truques ou embuste, porque o cavalo calculava exatamente, mesmo na
ausência de seu proprietário. Foi então que Oskar Pfungst, aluno do Laboratório de Psicologia
de Berlim, depois de estudar atentamente Hans, acreditou poder afirmar que o cavalo era
levado a dar respostas exatas pela observação de movimentos inconscientes da cabeça ou dos
44
Gabriel Dellane – A Reencarnação
olhos do experimentador. A questão da inteligência animal pareceu logo enterrada e, em
1909, o precursor von Osten morreu desesperado.
Eis, porém, que um dos seus admiradores e discípulos, Krall, pouco convencido da
realidade das explicações de Pfungst, e muito versado no estudo da psicologia animal, herdou
Hans, estudou-o metodicamente e apresentou o resultado dos seus trabalhos em um grosso
volume, que atraiu de novo a atenção sobre essa questão apaixonante. Krall afirmava, com
efeito, que Hans é capaz de trabalhar com completa obscuridade, e ainda quando lhe põem
antolhos que o impedem de ver os assistentes. Enfim, contrariava ele, perfeitamente, o que
dizia Pfungst, quando falava das perguntas feitas a mais de 4 metros e meio atrás do cavalo.
Não havia mais duvidar: Hans não obedecia a sinais visíveis e as respostas exatas eram o
produto do seu próprio psiquismo.
Krall descobriu, em uma série de experiências, que a acuidade visual do cavalo é muito
fina e muito grande, e que ele não é sujeito às ilusões ópticas que nele ensaiaram provocar.
Finalmente, Hans compreendeu a língua alemã e tornou-se capaz de exprimir idéias por meio
de um alfabeto convencional, batido com o casco. xxxviii
Depois dessas pesquisas, Hans, velho e fatigado, não dava mais que resultados incertos,
pelo que decidiu Krall a procurar dois cavalos árabes, Muhamed e Zarif, de que empreendeu a
educação, e esta não tardou a dar os mais brilhantes resultados. Treze dias depois da
primeira lição, Muhamed executava pequenas adições e subtrações. Krall não ensinava a seus
animais como fazemos essas operações, mas somente no que elas consistem.
No mês de maio seguinte, Muhamed compreendia o francês e o alemão e podia extrair
raízes quadradas e cúbicas, executar pequenos cálculos deste gênero:
•
Além disso, Zarif aprendeu a soletrar palavras que se pronunciavam diante dele e que
nunca tinha visto escritas.
Como é de ver, tais resultados suscitaram um espanto geral, porque, como escreveu
Claparède, era o maior acontecimento que jamais se produziu na psicologia geral. De todas as
partes afluíram sábios que, a princípio incrédulos, voltaram convencidos da realidade das
narrativas de Krall. Entre os afamados homens de ciência que emitiram juízo sobre os cavalos
de Elberfeld, citarei, desde logo, Ernest Hoeckel, o ilustre Hoeckel, que escreveu a Krall:
“Suas pesquisas cuidadosas e críticas mostram, de maneira convincente, a existência
da razão no animal, o que, para mim, nunca foi motivo de dúvida.”
O célebre naturalista via, evidentemente, nessa semelhança entre o animal e o homem,
uma confirmação de suas teorias materialistas. Vem em seguida o Dr. Edinger, eminente
neurologista de Frankfurt, depois os Professores Dr. H. Kraemer e Dr. H. E. Ziegler, ambos de
Stuttgart; o Dr. Paul Sarazin, de Bâle; o Professor Ostwald, de Berlim; O Prof. Dr. A. Beredka,
do Instituto Pasteur, de Paris; o Dr. Claparède, da Universidade de Genebra; o Prof. Schœller;
o físico Prof. Gehrke, de Berlim; o Prof. Goldstein, de Darmstadt; o Prof. Dr. von Buttel
Reopen, de Oldemburgo; o Prof. Dr. William Mackenzie, de Gênova; o Prof. Dr. R. Assagioli,
redator-chefe da revista Psyche, de Florença; o Dr. Hartkopf, de Colônia; o Dr. Freudenberg,
de Bruxelas, que vieram a Elberfeld verificar as inesperadas faculdades que se revelavam
entre os pensionistas de Krall. Foi, enfim, o Dr. Ferrari, professor de Neurologia da
Universidade de Bolonha, que depois de haver publicado na Revista de Psicologia e nos
45
Gabriel Dellane – A Reencarnação
Annales des Sciences Psychiques um artigo contrário à tese de Krall, declarou-se, em seguida,
convencido da realidade da inteligência dos cavalos, depois de maduro exame da questão.
Como diz Alfred Wallace, os fatos são coisas obstinadas e é preciso inclinar-se diante
deles, quando irrefutavelmente estabelecidos, como é o caso.
Como explicar, com efeito, senão por um trabalho próprio do animal, resultados como
estes? Um dia, Mackenzie e os outros assistentes puseram no quadro o problema seguinte:
•
Muhamed deu a resposta exata, 37, enquanto os assistentes estavam todos no pátio e
olhavam para a cavalariça através de pequena abertura. Outra vez, o problema foi
transmitido pelo telefone; a sua solução, ignorada pela pessoa que a escreveu no quadro, foi
dada exatamente pelo inteligente quadrúpede.
Há melhor ainda: o Dr. Hartkopf enviou perguntas em envelopes fechados, cujas soluções
eram ignoradas pelos assistentes. Muhamed respondeu com exatidão. Maeterlinck, em seu
livro L’Hôte Inconnu (O Hóspede Desconhecido), conta que, tendo ido a Elberfeld, apresentou a
Muhamed e a Zarif pequenos problemas, de que ignorava as soluções; as respostas,
entretanto, foram exatas.
Parece, portanto, que não se trata de transmissão de pensamento ou mesmo de qualquer
ação telepática. Como o assunto é da mais alta importância, citarei ainda o relatório do
Professor G. Grabow, contra a hipótese de transmissão do pensamento como explicação de
todos os casos. Ele experimentou com o cavalo Hans:
“Eu colava papel branco em cartas de jogar e punha em cada uma algarismos para
pequenas operações, por exemplo: 2 + 3 ; 4 + 2 ; 7 – 2 ; 12 – 5 ; 5 x 2, etc.
Como havíamos convencionado, von Osten devia colocar-se no canto esquerdo do
pátio, enquanto eu ficava no direito. Em seguida, devia mandar-me Hans. Assim se deu.
Hans veio para perto de mim e eu lhe disse: “Hans, mostrar-te-ei uma carta na qual há
um cálculo a executar; vai ao senhor que ali está defronte e, se lhe deres a resposta
certa, terás açúcar. Queres?” Hans respondeu afirmativamente, baixando a cabeça.
Tirei as cartas de meu bolso, misturei-as de maneira a ignorar a carta debaixo, e,
mostrando-a a Hans, perguntei-lhe: “Compreendeste?” Ele respondeu sim, com a cabeça.
“Então vai ali ao senhor defronte e lhe dá a resposta.” Hans chegou diante de von Osten,
que lhe perguntou: “Então, qual é a solução?” Hans bateu com a pata 5 vezes. “Qual é o
primeiro algarismo?” Resposta: 2. “Qual o segundo?” Resposta: 3.
Foi então que olhei a carta que estava embaixo do maço. Com efeito, nessa carta
havia 2 + 3, que Hans havia lido, compreendido, calculado corretamente. Tudo isso sem
que ninguém o pudesse ajudar e sem ser ajudado mesmo por uma sugestão
inconsciente, no caso impossível.
Quanto a mim, ignorava os números, e von Osten não podia deles ter conhecimento
do outro lado do pátio.”
Dr. Grabow.
(Membro do Conselho Superior
da Instrução Pública da Prússia)
Eis ainda dois outros exemplos, tanto mais interessantes quanto testemunham uma
verdadeira inteligência inicial: xxxix
46
Gabriel Dellane – A Reencarnação
“Krall, falando do seu pônei, conta as duas anedotas seguintes, que demonstram a
espontaneidade da inteligência desses notáveis solípedes.
Certa manhã, por exemplo, chego à cavalariça e me disponho a dar-lhe sua lição de
Aritmética; apenas se acha diante do trampolim, põe-se a bater com a pata. Deixo-o
fazer, e fico estupefato por ver uma frase inteira, uma frase absolutamente humana,
sair, letra a letra, do casco do animal:
“Alberto bateu em Haenschen” – disse-me ele, nesse dia. Outra vez escrevi, por seu
ditado: “Haenschen mordeu Kama.” Como a criança que revê o pai, ele experimentava a
necessidade de me pôr ao corrente dos pequenos incidentes da cavalariça; fazia a
humilde e ingênua crônica de uma humilde vida sem aventuras...”
Em outra circunstância, Zarif soletrou, ele mesmo: “Eu, fatigado”, e em lugar de resolver
um problema que se lhe propunha, deu o nome de Claparède, omitindo as vogais, segundo é
hábito desses cavalos.
Krall comprou um belo cavalo cego chamado Berto e lhe ensinou o cálculo pelo toque,
designando os algarismos com um dedo colocado sobre a pele do animal. A tentativa teve
pleno êxito, diz Assagioli, porque, em pouco tempo, Berto aprendeu a bater o número de
pancadas correspondentes aos algarismos desenhados sobre a pele. Pôde dar o resultado
exato de muitas adições simples, pronunciadas em alta voz, como 65 + 11 ; 65 + 12, etc.; e,
alguns dias antes, tinha respondido corretamente às perguntas: 9 – 4 ; 8 – 2 ; 3 x 3, e assim
por diante.
Enfim, um pequeno pônei chamado Haenschen aprendeu também o cálculo. Eis, pois,
cavalos diferentes em raça e em idade, que nos testemunham sua inteligência, que
respondem com exatidão aos pequenos problemas que lhes são postos. Sem dúvida, como os
humanos, alhures, nem sempre eles estão bem dispostos; sucede-lhes cometerem erros e,
coisa estranha, parece que, por vezes, a personalidade daquele que os examina influi sobre a
mentalidade deles; ora, com certas pessoas eles respondem bem e depressa, ora mostram
repugnância e má-vontade para com os que não lhes agradam.
Todos esses fatos parecem estabelecer que, em contrário à opinião geralmente adotada, o
cavalo é realmente inteligente, raciocina, e que, por aí, está mais próximo da humanidade do
que seríamos tentados supô-lo, encarando apenas o seu lugar na escala zoológica.
Vejamos, agora, os casos de outro animal familiar, o qual se revela ainda mais
extraordinário que os pensionistas de Krall.
O cão Rolf
Os fatos que vamos relatar são tomados, em parte, a uma conferência realizada por
Duchâtel, membro da Société Psychique de Paris xl e a um trabalho do Dr. Mackenzie,
aparecido nos annales des Sciences Psychiques.xli
Duchâtel foi informado, por um artigo do Matin, dos casos e gestos do cão Rolf, e resolveu
verificar por si mesmo a realidade dessas estranhas narrativas. Dirigiu-se, para isso, à casa da
Sra. Mœkel, mulher de um advogado que mora em Mannheim.
Rolf tinha 3 anos, era um podengo escocês Ayrdale, de pêlo vermelho, com cerca de 60
centímetros de altura.
Para começar, Duchâtel apresentou ao pequeno animal o seguinte problema:
47
Gabriel Dellane – A Reencarnação
96 – 10
9
Poucas crianças da 1ª série seriam capazes de fazer de cabeça esse cálculo; mas Rolf
respondeu imediatamente 9. Perguntado se havia resto, deu o número 5.
Solucionou, ainda, com exatidão as duas questões:
10 + 3 = 13 6–2=4
Há aqui uma observação importante: o cão, intrigado com a presença de um estranho,
perguntou à Sra. Mœkel, por meio do alfabeto convencionado: “Quem é este senhor?”
A Sra. Mœkel mostrou-lhe a assinatura da carta de Duchâtel, e o cão bateu “Duhadl”,
resultado verdadeiramente extraordinário.
Há aí uma intervenção espontânea da parte do cão, porque nunca lhe apresentaram uma
questão como esta.
Rolf demonstrou grande afeição à Sra. Mœkel, depois que esta o tratou, por ocasião de
um grave acidente que lhe sobreveio. Assim, ele faz todos os esforços por agradá-la. Não a
deixando nunca, assistia às lições que ela dava à filha. Foi então que se revelou o que de mais
espantoso se pode imaginar, o haver compreendido as lições de cálculo, sem que nunca lhe
fossem ensinadas diretamente.
O caso é tão estranho, que não me furto a narrar integralmente o testemunho da Sra.
Mœkel.
“Um dia, ao meio-dia, estava eu sentada, perto das crianças, e preenchia a função
ingrata de as ajudar nas suas tarefas.
Nossa Friedazinha, tão interessante e tão viva, mas um pouco estúrdia, resistia
obstinadamente à solução do problema 2 x 2, quando, em uma ocasião de mau humor,
lhe administrei ligeiro corretivo. Nesse momento, o cão, deitado sob a mesa das lições,
olhava-nos de tal forma que eu disse:
– Vê, Frieda, ele nos encara como se soubesse isto.
Rolf aproximou-se, sentou-se a meu lado, olhou-me com os olhos bem abertos, e eu
lhe perguntei:
– Rolf, que desejas? Sabes quanto são 2 x 2?
Com grande espanto meu, ele deu quatro pancadas em meu braço. Nossa filha mais
velha propôs-me logo perguntasse ao cão quanto fazem 5 e 5. A resposta foi dada
prontamente por dez pancadas, com a pata. Na mesma tarde, continuando as
experiências, vimos que o animal resolvia, sem erros, os problemas simples de adição,
subtração e multiplicação.”
Notemos que no alfabeto das pancadas, foi ainda esse prodigioso animal que indicou o
número das que correspondiam a cada letra.
É inegável que estamos em presença de manifestações intelectuais do cão, e o que é
interessante, assim como escolheu o número correspondente às letras do alfabeto, soube,
espontaneamente, bater com a pata o número de pancadas necessárias para resolver o
problema 2 x 2. Teve ele, pois, a iniciativa desse modo de resposta, fato que denota de sua
parte mais reflexão do que se poderia esperar de um animal que nunca foi ensinado a servir-
se da pata para exprimir suas idéias.
48
Gabriel Dellane – A Reencarnação
Rolf, às vezes, faz pilhérias. Como se falasse diante dele de pessoas que são hostis, ele
bateu imediatamente: “São burros.”
A mentalidade de Rolf se manifesta por associações de idéias, que lhe são particulares.
Foi assim que, durante uma leitura, ocorreu a palavra outono; perguntou-se-lhe o que
significava e, em lugar da palavra estação, que se esperava ele dissesse, respondeu: “O tempo
em que há maçãs”; simplesmente porque, nessa ocasião, lhe davam maçãs assadas.
Outra nota sobre Rolf:
O casal Mœkel recebeu a notícia dos esponsais de um amigo com a Srta. Daisy Falham
Chester. Conversava-se em família sobre esse acontecimento, quando Rolf interveio dizendo:
“Doutor haver senhorita se chamar como nossa gata.” Daisy é o nome da gata da casa e essa
homonímia parecia ter despertado a alma galhofeira de Rolf.
E a propósito da gata, é preciso dizer também que ela sabe fazer pequenos cálculos. E por
isso, Rolf, sentindo-se fatigado, em lugar de responder à questão, proposta, bateu: “Que
Bárbara leve Lol (diminutivo de Rolf) e chame Daisy.”
Depois desses exemplos, pode-se afirmar com o Doutor Bérillon: xlii
“Os animais, cujo sistema nervoso apresenta como o do homem tanta analogia de
estrutura e de morfologia, não são autômatos, despidos de consciência, de inteligência e
de raciocínio, como bons Espíritos se comprazem em apresentá-los. Esforços de
adestramento e educação, idênticos aos que se aplicam no ensino às crianças, dariam,
seguramente, depois de certo tempo, resultados inesperados.”
É precisamente o que verificam todos aqueles que têm amor aos animais e a necessária
paciência para os educar.
No relatório do Dr. Mackenzie, encontra-se a narrativa de pequena e comovente cena. “A
Sra. Mœkel, que se havia separado da filha para colocá-la num pensionato, chorava; eis que
Rolf, sem ser convidado, aproxima-se e bate: “Mamãe, não chore, isto faz mal a Lol.”
Rolf tem uma companheira, Jela, que também conhece aritmética, mas é menos hábil que
seu marido.
Vimos que Daisy é capaz de realizar também pequenas operações. Foi assim que, diante
dos Drs. Mackenzie e Wilser, que lhe apresentavam os problemas abaixo, respondeu:
17 + 4 dividido por 7 – 1? Disse: Ficam dois.
3 x 3 – 5? Disse: Ficam quatro.
Foi decididamente a melhor demonstração da faculdade educadora da Sra. Mœkel.
Não se creia, entretanto, que esses animais não experimentem dificuldades no executar
seu trabalho mental: a solução dos problemas fatiga-os, por vezes, enormemente.
Somos impressionados, diz o Dr. Mackenzie, pelo esforço mental muito visível do cão, que
se traduz por suspiros, arquejos, bocejos; podem-se, mesmo, produzir hemorragias nasais,
depois das sessões longas e fatigantes.
É indiscutível que o animal faz esses esforços sem nenhuma intervenção estranha.
Por mais inteligente que seja Rolf, nem por isso deixa de ser um animal para quem as
satisfações físicas superam as demais.
– Dize-me o de que mais gostas? – perguntou-lhe o Doutor Mackenzie, ao que ele
responde, sem hesitação: – Comer salmão de fumeiro.
49
Gabriel Dellane – A Reencarnação
Para excluir, por completo, a hipótese de sinais inconscientes, que o animal percebesse,
ou uma percepção de pensamento, o Dr. Mackenzie reproduziu, variando um pouco, a
experiência do Dr. Grabow com o cavalo Hans.
“Resolvo preparar quatro cartõezinhos que trago comigo. Peço à Sra. Mœkel que
desenhe a pena um canário ou outro pássaro num dos cartões, e no outro, com sua letra
habitual, o nome da menina Karla, de quem ele gosta muito.
Enquanto espero, desenho num dos cartões que restam uma grande estrela e a encho
de azul, e no outro faço dois quadrados, um azul e outro vermelho.
Rolf se acha ausente, durante todo o tempo da operação; quando ele chega, já os
cartões estão fechados em invólucros igualmente trazidos por mim. Peço então a Karla
que vá a meu quarto, misture os cartões o melhor que puder e volte. É o que foi feito.
Todos os assistentes, eu inclusive, ficamos atrás da Sra. Mœkel. Excluí, depois de
cuidadoso exame, a possibilidade de um jogo de espelhos.
Os cartões se acham com a parte desenhada do mesmo lado. Posso, pois, facilmente
extrair um, com a certeza de não ver o desenho, executo a manobra por trás da Sra.
Mœkel; em seguida levanto o cartão, que ignoro, acima de sua cabeça, sempre com o
lado desenhado voltado para o chão.
Ela toma o cartão que lhe dou, mostra-o ao cão, incitando-o a dizer o que viu; pego-o,
então, da mesma maneira, ponho-o no invólucro e este no bolso.
Só o cão viu o desenho, mas não quer responder. Bate com insistência 4 (fatigado),
estende-se no chão e pretende ir embora.
A Sra. Mœkel, muito inquieta com o resultado da experiência, pede a Rolf, suplica,
depois ameaça.
Por minha vez incito-o, encorajo-o, prometo-lhe, se ele responder bem mostrar-lhe
muitas figuras que lhe trouxe. Isto parece decidi-lo e, enfim, bate sem a menor
hesitação: rot blau eck (quadrado vermelho e azul).
Por felicidade, foi um desenho feito por mim o que saiu. Desaparece, assim, toda a
suspeita possível sobre o valor da experiência, que se pode dizer plenamente bem-
sucedida.”
Rolf sabe perfeitamente discernir, o que o estrema de seus congêneres da raça canina. O
Dr. Mackenzie mostrou-lhe uma gravura, representando um cão rasteiro, e ele respondeu:
“Cão”. O doutor então pergunta: “Em que difere de ti?” Rolf responde imediatamente: “Outras
patas”.
É, pois, inteiramente evidente que foi Rolf que, sem nenhuma intervenção estranha,
soube conhecer e descrever o desenho do Dr. Mackenzie, ao mesmo tempo em que achou as
palavras exatas para exprimir-lhe o pensamento. São fenômenos verdadeiramente
inteligentes, que mostram a psique animal mais perto da nossa do que poderia supor-se.
Uma questão interessante é a de saber como os animais chegam a compreender-se, sem
possuir linguagem articulada. Na correspondência trocada entre a Sra. Mœkel e o Dr.
Mackenzie, eis o que encontramos a respeito.
A Sra. Mœkel interroga Rolf, e lhe diz:
“Como te entendes com os outros cães, isto é, como te fazes compreender por eles e
como eles te compreendem?” Rolf cala-se. “Compreendeste minha pergunta?” Resposta:
Sim. “Então?” Resposta: Latir, mover a cauda, ver também os movimentos com a boca.”
50
Gabriel Dellane – A Reencarnação
Quando a ciência oficial quiser empenhar-se na estrada aberta por von Osten, Krall e a
Sra. Mœkel, o véu que cobre ainda o processo do crescimento da inteligência através da série
animal se romperá e acabaremos por compreender como se tem operado essa progressão
mental que, dos mais baixos graus da escala zoológica, chegou ao magnífico desenvolvimento
que se observa nos representantes mais ilustres da raça humana.
Lola
Parece que o estudo das faculdades intelectuais de nossos animais domésticos vai
prosseguir, doravante, um pouco por toda parte, e muito particularmente além do Reno, pois
a Srta. Kindermann publicou em 1919 um livro xliii no qual conta como ensinou sua cadela
Lola a ler e escrever. xliv Esta é uma filha de Rolf e parece tão desenvolvida intelectualmente
como seu pai. Ela aprendeu, com efeito, muito rapidamente, a fazer as quatro operações e a
resolver pequenos problemas. É igualmente capaz de enunciar seus pensamentos por meio
de um alfabeto convencional de bateduras. Parece interessante assinalar certas
particularidades de Lola, que estabelecem que, se por vezes ela pode tomar conhecimento
telepaticamente (o que aproxima, ainda, o animal do homem) dos pensamentos de sua dona,
em outras circunstâncias faz prova de uma vontade pessoal, que demonstra a autonomia de
sua inteligência. Fato curioso, verdadeiramente inesperado: Lola pretende descobrir, pelo
odor, o estado d’alma de seus interlocutores. De fato, ela assinala facilmente neles a
ansiedade, a tristeza a fadiga. Um dia, interrogada pela Srta. Kindermann sobre suas
impressões de momento, deu respostas sem significação e pareceu visivelmente embaraçada.
Importunada por perguntas, responde indistintamente “mentir”. Sua interlocutora a
tranqüiliza:
“– Eu não me zangarei; assim, pareço mentir? R. – Sim.
– A propósito de quê? R. – Munique.
Lembrei-me imediatamente de que, uma hora antes, tinha contado à cadela que iria a
Munique e que ela talvez me acompanhasse. Mas, pensava comigo, que tal não se daria,
pelo incômodo que iria ter, e pensava, realmente, em deixar Lola em Stuttgart.” xlv
Esse último lanço poderia fazer supor que se trata, não de um exercício de olfato, mas de
uma leitura de pensamento. E essa interpretação, que a maior parte dos críticos se dão pressa
em aplicar a todas as manifestações da inteligência animal, orientou as pesquisas inteligentes
da Srta. Kindermann. Melhor faremos, reproduzindo aqui suas conclusões, no caso.
“Um dia, interrogada a cadela sobre o nome de uma pessoa que se esperava, designou
o de uma outra, cuja chegada a Srta. Kindermann também aguardava naquele momento.
Esta perguntou:
– Por que respondeste incorretamente? R. – Tu pensas.
– Quê! Sabes o que eu penso? R. – Sim.
– E o sabes sempre? R. – Não.
– Pensas tu mesmo? R. – Sim.
Isso era inteiramente novo, mas me pareceu certo, e meu ponto de vista, confirmado
pelas provas ulteriores, pode exprimir-se assim: O cão é sensível à transmissão do
pensamento; é capaz de lhe experimentar a influência, quando está fatigado ou
preguiçoso; também lhe é suscetível, quando se lhe pergunta algo que ele não sabe e
quando pode apanhar em minha consciência algum informe com relação a um elemento
51
Gabriel Dellane – A Reencarnação
já anteriormente dele conhecido. Mas – e aí está o ponto capital – nada se pode
transmitir ao cão do que lhe é totalmente estranho.
Assim, sucede muitas vezes que o cão, interrogado sobre uma operação aritmética,
dá uma solução contrária à minha, quando eu é que estou errada; a idéia, pois, que
podia estar em minha consciência, não se lhe impõe. Mais tarde, ao contrário, quando
estava fatigado, adotava uma solução falsa, porque não queria pensar por si. Eu via
muito distintamente em seus olhos, quando ele estava inativo e esperava adivinhar meu
pensamento. Procurei, muitas vezes, fazer-lhe entrar na cabeça, por essa forma, alguma
noção nova; foi sempre impossível.”
Esses reparos são muito importantes; a leitura do pensamento, meio cômodo de explicar
certos fenômenos embaraçosos, não poderia representar um papel constante e universal, e é
interessante precisar-lhe os limites. Manifesto se torna, aliás, tanto pelo exemplo de Lola,
como pelos informes em nosso poder, atualmente, sobre a psicologia animal, que os casos
observados dão provas não duvidosas de espontaneidade e de autonomia, pois que se
encontram, por vezes, mesmo, em contradição com os interrogadores.
Vejamos alguns exemplos citados pela Srta. Kindermann:
“A 27 de julho de 1916, perguntava a Lola:
– Queres dizer alguma coisa? R. – Sim, eu, comer.
– Lola, por que me falas sempre de comer? R. – Ouço isto continuamente de criados e
criadas, e também de ti.
– Não há, pois, mais nada por fazer? Fala-me de outro assunto. R. – Eu comer –
repetiu Lola, e acrescentou: – Pouca comida.
A 18 de maio, procuramos ensinar-lhe o conteúdo de uma mensagem a enviar ao pai
da Srta. Kindermann. Esta explica que a carta deve começar pela palavra caro, que deve
conter agradecimentos pelo bolo que Lola acaba de receber e terminar por estas
palavras: Saudações de Lola. Mas, em lugar de conformar-se com tais instruções, o
animal, sem hesitação nenhuma, e muito pelo contrário, bate com vigor e rapidez, e se
exprime assim: “Caro, vem onde estamos, eu desobediente no momento, muitas vezes
mal, abraço.”
O que há de notável é que este ditado foi interrompido por uma observação
intempestiva, porque, em lugar das três letras una (começo da palavra alemã Unartig,
desobediente), a Srta. Kindermann esperava a palavra und (e). Mas foi em vão que quis
substituir um a por um d. O cão recusou-se por um não, bem batido, e continuou o
ditado.” xlvi
Desses exemplos pode-se concluir, sem temeridade, que o animal é capaz de pensar por
si próprio, e não tem nenhuma necessidade de buscar em outrem os elementos de suas
idéias. O homem não é o único ser pensante da natureza e só difere, em realidade, de alguns
outros que o cercam, pela extensão mais considerável, não pela natureza de suas faculdades
de raciocínio.
Zou
A Sra. Borderieux, a ativa diretora da revista Psychica, conhecida há muito por sua
solicitude para com os animais, empreendeu, recentemente, a educação do seu cão Zou, e já
obteve resultados interessantes no que concerne ao cálculo. Pode-se prever que esse animal
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Gabriel Dellane – A Reencarnação
parisiense seguirá os traços de seus antecessores alemães. Os leitores desejosos de ficar a par
de seus progressos poderão ler a apreciada revista, que publica, de quando em quando,
interessantes descrições da educação e dos progressos de Zou.
53
Gabriel Dellane – A Reencarnação
Capítulo V
A analogia certa que existe entre as manifestações intelectuais dos animais superiores e
as do homem leva-nos a indagar se as faculdades supranormais que se verificam em nós não
poderiam existir, em um grau qualquer, entre os que se têm chamado, a justo título, nossos
irmãos inferiores.
É evidente que o assunto só pode ser resolvido pela observação. Ora, sobre ele já existe
certo número de narrativas reunidas por Bozzano, o grande psicólogo italiano. Ele as
publicou nos Annales des Sciences Psychiques (Anais das Ciências Psíquicas), de agosto de
1905. Infelizmente, não posso, a meu pesar, por motivo de exigüidade do meu quadro,
reproduzi-las integralmente; farei apenas algumas citações, que parecem provar a hipótese
da transmissão de pensamento entre o animal e o homem, com iniciativa no primeiro. Se se
multiplicarem as observações, a identidade fundamental do princípio inteligente em todos os
animais superiores ficará estabelecida de maneira a não deixar qualquer dúvida.
Eis um primeiro exemplo, muito interessante, onde parece que houve, não só uma ação
psíquica exercida pelo animal, como também uma espécie de possessão temporária. Tendo-se
o fenômeno produzido durante o sonho, devem-se fazer algumas reservas quanto à
interpretação das impressões experimentadas pelo Sr. Rider Haggard, como devidas a uma
possessão verdadeira. Como quer que seja, eis a narrativa, que foi autenticada pela Sociedade
Inglesa de Pesquisas Psíquicas: xlvii
“Conta Rider Haggard que se achava deitado tranqüilamente, à 1 hora da noite de 10
de julho. A Sra. Haggard, que dormia no mesmo quarto, ouviu o marido gemer e emitir
sons inarticulados, tais como os de um animal ferido. Inquieta, chamou-o. O Sr. Haggard
percebia a voz como num sonho, mas não chegou a desembaraçar-se desde logo do
pesadelo que o oprimia. Quando despertou completamente, contou que tinha sonhado
com Bob, o velho cão de caça de sua filha mais velha, e que ele vira debater-se em
terrível luta como se fosse morrer.
54
Gabriel Dellane – A Reencarnação
“Eu via – diz Haggard – o bom velho Bob, estendido num lago, entre os juncais.
Parecia que minha personalidade saía misteriosamente do corpo do cão, que erguia a
cabeça até meu rosto, de maneira estranha. Bob esforçava-se por falar-me e, não
conseguindo fazer-se compreender pela voz, transmitia-me, de maneira indefinível, a
idéia de que estava para morrer.”
O Sr. e a Sra. Haggard voltaram a dormir, e o romancista não foi mais perturbado no
sono. De manhã, ao almoço, ele contou às filhas o sonho que tivera e riu com elas do
medo que a mãe tinha sentido. Atribuía o pesadelo à má digestão. Quanto a Bob,
ninguém se preocupou com ele. Mas, à hora da refeição quotidiana, ninguém o viu. A
Sra. Haggard começou a experimentar alguma inquietação e o romancista a suspeitar de
que se tratava de algum sonho verídico. Fizeram pesquisas que duraram quatro dias, ao
fim dos quais o Sr. Haggard encontrou o pobre cão flutuando nas águas de um lago, a
dois quilômetros da casa, com o crânio fendido e duas patas quebradas.
Um primeiro exame feito pelo veterinário fez supor que o infeliz animal tinha sido
apanhado numa armadilha, mas acharam-se provas indiscutíveis de que ele foram
esmagado por um trem, na ponte que atravessava o lago, e que tinha sido projetado em
seguida, caindo entre as plantas aquáticas.
Na manhã de 19 de julho, um cantoneiro da estrada de ferro achou na ponte a coleira
ensangüentada de Bob. Não restava dúvida de que o cão morrera na noite do sonho.
Sucedera que havia corrido essa noite, um pouco antes das 24 horas, um trem
extraordinário de recreio, que fora a causa do acidente.
Todas essas circunstâncias ficaram provadas pelo romancista, por meio de uma série
de documentos testemunhais.
Segundo o veterinário, a morte devia ter sido instantânea; teria, pois, precedido, de
duas horas ou mais, o sonho de Haggard.” xlviii
Comentando este fato, Bozzano faz notar que, entre as causas que poderiam ser
invocadas para explicar o sonho, a ação telepática do animal é a mais provável, pois que
nenhuma pessoa humana assistiu verossimilmente ao acontecimento.
A clarividência pura e simples pela telestesia exige uma causa externa, e a do
pensamento do animal é a única que se pode invocar no caso.
Vejamos outros exemplos em que esta ação parece igualmente em jogo. Sabe-se que, por
vezes, aquele que experimenta uma ação telepática vê-se forçado a deslocar-se. É provável
que, no seguinte caso, se haja produzido algo semelhante. Ei-lo: xlix
“Possuo um cão, educado por mim, que tem 5 anos de idade. Sempre gostei muito dos
animais e, sobretudo, dos cães. O de que se trata, de tal maneira retribui minha afeição,
que não me deixa ir a lugar nenhum, nem mesmo sair do quarto, sem acompanhar-me. É
terrível caçador de ratos, e como a despensa costuma ser freqüentada por esses
roedores, fiz ali uma caminha bem cômoda para Frido. No mesmo compartimento havia
um fogão com um forno para assar o pão, assim como uma caldeira para a lixivia,
munida de um tubo que ia ter à chaminé.
Não deixava eu nunca, à noite, de acompanhar o cão à sua cama, antes de retirar-me.
Tinha-me despido e ia para o leito, quando fui tomado, de repente, por uma sensação
inexplicável de perigo iminente. Só podia pensar no fogo e foi tão forte a impressão, que
acabei por ceder. Tornei a vestir-me, desci e me decidi a visitar o apartamento, quarto
por quarto. Chegado à despensa, não vi Frido; supondo que ele tivesse ido para o andar
superior, chamei-o, mas em vão. Fui onde estava minha cunhada e lhe perguntei pelo
55
Gabriel Dellane – A Reencarnação
cachorro; ela nada sabia. Comecei a ficar inquieto. Não atinava com o que fazer, quando
me lembrei duma frase, que faria o cão responder: “Vamos passear, Frido”, frase que lhe
causava sempre grande alegria.
Um gemido sufocado, então, como que enfraquecido pela distância, chegou-me aos
ouvidos. Recomecei, e ouvi distintamente um lamento do cão em perigo. Tive o tempo
de me assegurar que o ruído vinha do interior do cano que faz comunicar a caldeira com
a chaminé. Não sabia como proceder para tirar o cão dali. Apanhei uma enxada e
comecei a quebrar a parede, no lugar. Consegui, enfim, tirar Frido, já meio sufocado,
com ânsias de vômito, com a língua e o corpo inteiramente sujos de fuligem. Alguns
momentos mais, o meu favorito estaria morto, e como só raramente nos servimos da
caldeira, nunca teria sabido, talvez, que fim ele levara. Minha cunhada veio, atraída pelo
ruído, e descobrimos um ninho de ratos no forno, do lado do tubo. Frido,
evidentemente, havia perseguido um rato até o interior do cano, e ali ficara sem poder
voltar-se para sair.
Tudo isso se passou há alguns meses e foi então publicado pela imprensa local. Mas
eu nunca teria pensado em comunicá-lo a essa Sociedade, se não fora o caso de Rider
Haggard.
Ass.: J. Young”
Repito que existem muitos outros exemplos dessa ação telepática, que a falta de espaço
não me permite reproduzir, o que me obriga a aconselhar ao leitor o trabalho de Bozzano.
Chego, agora, a um caso de ação telepática experimentado por duas pessoas ao mesmo
tempo, o que exclui a hipótese de uma alucinação entre a alma animal e a alma humana, pois
que parece tratar-se, aqui, de um duplo animal, que produz um ruído físico (caso auditivo
coletivo).
“Megatério é o nome de meu cãozinho, que dorme no quarto de minha filha. Na
última noite, acordo, repentinamente, ao ouvir pular no quarto. Conheço muito bem sua
característica maneira de saltitar. Meu marido não tardou a acordar, por seu turno.
Perguntei-lhe: “Ouves?” Responde ele: “É Meg”.
Acendemos uma vela, olhamos por toda parte, e não vimos nada no quarto. A porta,
entretanto, estava bem fechada. Veio-me, então, a idéia de que alguma desgraça tinha
sucedido a Meg; tive a sensação de que ele morrera naquele instante; olhei o relógio,
para verificar a hora, e achei que devia descer e ir imediatamente assegurar-me do que
houvera. Mas aquilo me parecia tão absurdo e fazia tanto frio! Fico um instante indecisa
e o sono me empolga. Pouco tempo decorre e alguém vem bater à porta; era minha filha,
que exclama com grande ansiedade: “Mamãe, Meg está morrendo!”
Descemos a escada de um salto e encontramos Meg, virado de lado, com as pernas
rígidas, como se estivesse morto. Meu marido levanta-o, sem chegar a compreender o
que se passou. Verifica-se, enfim, que Meg havia enrolado, não se sabe como, a correia
de sua roupinha em torno do pescoço, por forma que estava quase estrangulado.
Libertamo-lo imediatamente e, logo que o cão pôde respirar, não tardou a reanimar-se e
restabelecer.
Para maiores informações, envio o leitor ao jornal For Psychical Research.”
Poder-se-ia supor, talvez, que a ansiedade no caso, experimentada pela Srta.
Beauchamps, foi transmitida à mãe. Mas é inteiramente improvável que a alucinação sugerida
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Gabriel Dellane – A Reencarnação
se haja traduzido para os dois percipientes sob a forma de ruídos que lembrassem os saltos
de Meg. Penso que a hipótese do duplo do animal é a mais provável.
Uma observação muito curiosa, narrada por Andersen, parece estabelecer que podem
existir relações simpáticas, a grande distância, entre o homem e o animal, e que esta ação é
capaz de traduzir-se na forma de pressentimentos, tal como sucede entre os humanos.
Reproduzo textualmente a interessante narração:
“O contista dinamarquês Andersen tinha um amigo, o Professor Linden, que sofria de
tísica pulmonar. A Administração lhe concedeu subsídios para uma viagem à Itália.
Linden possuía um cão, chamado Amour, um canicho branco, que ele estimava muito e
que confiou a Andersen, durante sua ausência. Andersen aceitou o encargo e não se
ocupou de outra coisa além da subsistência do animal.
Riu a bom rir, quando a criada de quarto lhe disse que Amour pressentia o que ia
suceder ao seu dono.
– Ele fica alegre ou triste, conforme seu dono vai bem ou mal.
– Como assim? – perguntou Andersen.
– Isto logo se percebe. Por que aceita ou recusa a comida sem estar doente? Por que
fica de cabeça baixa, durante muitos dias, até que o senhor recebe uma notícia má de
Linden? O cão sabe perfeitamente o que o dono faz na Itália e o vê, porque seus olhos
têm, às vezes, uma singular expressão.
A partir desse instante, apesar do seu cepticismo, Andersen começou a observar o
cão. Uma noite sentiu qualquer coisa fria na mão e, abrindo os olhos, percebeu o cão,
diante da cama, que lhe lambia a destra.
Teve um arrepio. Acariciou o animal para o tranqüilizar, mas Amour soltou um
gemido doloroso e lançou-se ao chão, com as quatro patas estendidas.
“Nesse instante – conta Anderson – fiquei convencido de que meu amigo tinha
morrido.”
E tão certo estava que, no dia seguinte, substituí minha roupa escura por uma preta.
Pela manhã, encontrei um conhecido que me perguntou por que estava triste. Respondi:
“Esta noite, às 11:27, morreu Olof Linden.”
Como soube mais tarde, foi essa a hora de sua morte.”
No exemplo que se segue, as testemunhas descrevem movimentos de objetos sem
contacto, os quais se produziam em uma casa mal-assombrada, enquanto o cão parece ter
tido conhecimento da personagem inteligente, mas invisível, que deles era a autora.
Em uma carta dirigida ao Dr. Dariex, a propósito de uma casa assombrada, em Versalhes,
M. H. de V. assim se exprime:
“Ao fim de uns dez minutos, em que a criada nos contava seus aborrecimentos, uma
velha poltrona de carretilhas, colocada num canto, à esquerda, pôs-se em movimento e,
descrevendo uma linha quebrada, veio passar entre mim e Sherwood; depois rodou
sobre si própria, cerca de um metro atrás de nós, bateu duas ou três vezes no chão com
seus pés de trás e voltou em linha reta a seu canto.
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Gabriel Dellane – A Reencarnação
Isto se passou em pleno dia e podemos convencer-nos de que não havia compadresco
nem truque de qualquer gênero. A referida poltrona por três vezes fez o mesmo curso,
tomando o cuidado, fato estranho, de não bater em ninguém. Ao mesmo tempo,
pancadas violentas se faziam ouvir do outro lado, no quarto vizinho, cujas portas
estavam inteiramente abertas e que jazia completamente deserto.
O amigo que nos tinha levado açulou o seu cão para o canto da sala; o animal voltou
uivando, tomado, evidentemente, de profundo terror. O amigo foi obrigado a conservá-
lo no colo, durante todo o tempo em que ficamos na casa.”
Eis outro exemplo, em que a clarividência de um sensitivo é confirmada pela de um
animal.li
Refere-se ao fantasma de um cão visto por um gato. Carrington narra o seguinte caso,
muito curioso:
“Um cavalheiro e duas senhoras passeavam juntos, quando uma das senhoras, que é
clarividente, declarou que via um cão caminhando diante deles. Descreveu-o,
minuciosamente, às duas outras pessoas, que nada viam. Enquanto conversavam, um
gato saiu de uma casa vizinha e aproximou-se muito tranqüilamente até o ponto em que
a senhora acusava a presença do cão. Lá chegado, parou bruscamente, inchou o dorso,
espirrou, deu umas unhadas na direção do animal fantasma e, voltando, se súbito,
ganhou a sua casa, com toda a rapidez.”
“8 de agosto de 1892. – Lá para o ano de 1874, quando eu não tinha mais que 18 anos,
estava em casa de meu pai e, em certa manhã de verão, levantei-me às 5 horas, a fim de
acender o fogo e preparar o chá.
Um grande cão de raça, que tinha o hábito de me acompanhar por toda parte, achava-
se a meu lado, enquanto eu preparava o fogo. Em dado momento, ouvi-o soltar um uivo
surdo e o vi olhar na direção da porta. Voltei-me para esse lado e, com grande terror,
percebi uma figura humana, alta e tenebrosa, cujos olhos flamejantes se dirigiam a mim.
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Gabriel Dellane – A Reencarnação
Dei um grito de alarma e caí de costas no chão. Meu pai e meus irmãos correram
imediatamente, acreditando que ladrões tinham penetrado em casa. Contei-lhes o que
vira e eles julgaram que a visão tinha por fonte a minha imaginação perturbada por uma
recente doença. Mas por que teria também o cão percebido alguma coisa? O aludido cão
via por vezes aquilo que era invisível para mim; lançava-se para o invisível, fazendo
gesto de morder no ar, e me encarava de certo modo, como a dizer: não vês tu?
H. F. S.” lii
“Era uma tarde de inverno do ano de 18... Eu estava em meu quarto, sentado perto do
fogo, inteiramente absorvido em acariciar minha gatinha favorita, a ilustre senhora
Catarina, que, ah! não é mais deste mundo. Ela estava encolhida em meu colo, em
atitude de quase sonhadora, com os olhos cerrados, como adormecida.
Apesar de não haver luz no quarto, os reflexos da chama iluminavam perfeitamente
todos os objetos. O compartimento em que nos achávamos tinha duas portas, uma das
quais dava para um apartamento provisoriamente fechado. A outra, colocada defronte
da primeira, abria para o corredor.
Alguns minutos havia que minha mãe me deixara, e a confortável e antiga poltrona de
espaldar, muito alta, que ela ocupava, ficou vazia. Minha gatinha, com a cabeça apoiada
em meu braço, parecia cada vez mais sonolenta, e eu já pensava em ir deitar-me.
De repente, vi que alguma coisa inesperada tinha perturbado a tranqüilidade de
minha favorita. Ela havia cessado bruscamente de ronronar e dava sinais evidentes de
crescente inquietação. Inclinei-me para ela, procurando acalmá-la com minhas carícias,
quando, abruptamente, ela se levantou, começou a soprar fortemente, com o dorso
erguido, a cauda eriçada, em postura de desafio e terror.
Levantei a cabeça, por minha vez, e vi, com assombro, uma pequena figura, feia,
encarquilhada, de velha megera, sentada na poltrona de minha mãe. Tinha as mãos nos
joelhos e o corpo inclinado, de modo a ficar com a cabeça perto da minha. Os olhos
penetrantes, luzentes, maus, fixavam-me, imóveis; parecia que era o diabo que me
encarava por aqueles olhos. As vestes e o conjunto do aspecto eram os de uma mulher
da burguesia francesa, mas não me preocupei com isso, porque os olhos dela, com as
pupilas estranhamente dilatadas e uma expressão má, absorviam-me completamente os
sentidos. Quis gritar com todas as forças dos meus pulmões, mas os tais olhos maléficos
me fascinavam e tiravam-me a respiração. Não podia desviar a vista e ainda menos
levantar-me. Entrementes, procurei segurar fortemente a gata; esta, porém, não parecia
querer ficar naquela horrível vizinhança. Depois de esforços desesperados, conseguiu
libertar-se e, saltando pelas cadeiras, pelas mesas, por tudo que encontrava diante de si,
atirou-se, por muitas vezes, e com violência extrema, aos caixilhos superiores da porta
que dava para o apartamento fechado.
Em seguida, voltando-se para a outra porta, começou a atirar-se para ela, com
redobrada fúria.
Meu terror tinha aumentado; ora olhava para a megera, cuja vista maléfica
continuava fixada em mim; ora seguia com os olhos a gata, que se tornava cada vez mais
frenética. Por fim, a terrível idéia de que o animal pudesse enraivecer teve por efeito
restituir-me a respiração e comecei a gritar com todas as forças.
59
Gabriel Dellane – A Reencarnação
Minha mãe veio apressadamente. Logo que abriu a porta, a gata saltou-lhe pela
cabeça e durante uma boa meia hora continuou a correr pela escada, de alto a baixo,
como se alguém a perseguisse.
Voltei-me para mostrar a minha mãe a causa do meu espanto, mas tudo havia
desaparecido.
Em semelhantes circunstâncias, é bem difícil apreciar a duração do tempo; calculo,
entretanto, que a aparição tenha persistido durante quatro ou cinco minutos.
Soube-se, em seguida, que essa casa pertencera, outrora, a uma mulher que se havia
enforcado naquele mesmo quarto.
Ass.: Senhorita K.”
“Palladia era uma jovem, morta aos 15 anos, e que apareceu por diferentes vezes, e a
muitas pessoas.
Em 1855, morava eu, com meus pais, em um campo do Governo de Poltava. Uma
senhora de nosso conhecimento veio passar, com suas filhas, uns dias em nossa casa.
Algum tempo depois de chegarem, tendo acordado pela madrugada, vi Palladia. Eu
dormia em uma ala separada, onde estava só. Palladia se conservava diante de mim,
quase a cinco passos, e olhava-me com um sorriso alegre; aproximou-se e me disse:
“tenho estado, tenho visto”, e, sorrindo, desapareceu. O que queriam dizer estas
palavras não compreendi.
Dormia comigo, no quarto, o meu setter. Desde que vi Palladia, o cão não latiu mais,
quando, ordinariamente, não deixava entrar ninguém no quarto, sem latir ou rosnar. E
todas as vezes que o cão via Palladia, agarrava-se a mim, como a buscar um refúgio.
Quando Palladia desapareceu, vim para casa e não contei a ninguém o incidente. À
tarde do mesmo dia, a filha mais velha da senhora que morava conosco disse-me que
um fato estranho lhe havia ocorrido pela manhã:
– Tendo acordado muito cedo – referiu ela –, senti como que alguém, em pé, à
cabeceira de minha cama, e ouvi distintamente uma voz que dizia: “Não me temas, eu
sou boa e amiga.” Voltei a cabeça, porém não vi nada; minha mãe e minha irmã dormiam
tranqüilamente; isso muito me espantou, porque nunca me aconteceu um caso
semelhante.
Respondi-lhe que muitas coisas inexplicáveis nos sucedem, mas não lhe disse nada
do que vira de manhã. Só um ano mais tarde, quando já era seu noivo, foi que lhe contei
a aparição e as palavras de Palladia, naquele mesmo dia.
Não foi ela que a veio ver também? Devo acrescentar que tinha visto aquela
senhorinha pela primeira vez e não pensava absolutamente desposá-la.”
60
Gabriel Dellane – A Reencarnação
Lugares assombrados
Em muitas regiões há narrativas por onde se vê que existem localidades que parecem
assombradas; produzem-se fenômenos anormais, tais como ruídos inexplicáveis,
deslocamentos de objetos sem causa conhecida, e se assinalam, por vezes, aparições. Eis dois
casos bem curiosos, em que os animais experimentam verdadeiro terror.
O primeiro vem descrito nos Phantasms of the Living, vol. II, pág. 197.
O segundo caso é ainda mais significativo, porque muitos animais que experimentaram a
influência do lugar assombrado morreram em seguida ao susto.
“Durante os fenômenos do cemitério de Arensburg, na ilha de Oesel, em que ataúdes
foram encontrados em abóbadas fechadas e os fatos foram verificados por uma
comissão oficial, os cavalos daqueles que vinham visitar o cemitério ficaram tão
excitados e espantados, que se cobriram de suor e espuma. Algumas vezes se lançavam
em terra e pareciam agonizar; apesar dos socorros que lhes traziam, imediatamente,
muitos morriam ao fim de um ou dois dias. Neste caso, como em tantos outros, posto
que a comissão fizesse uma investigação muito severa, nenhuma causa natural se
descobriu.” (R. Dale Owen – Footfalls on the Boundary of another World, pág. 188).
Alguns exemplos que referi são tomados entre grande número de outros que a falta de
espaço não me permite reproduzir. Eles apresentam uma variedade de manifestações, que as
aproxima das verificadas entre os humanos.
Vimos, com efeito, que a ação telepática é a explicação mais provável para o caso de Rider
Haggard e de Young. Em seguida, notamos que o desdobramento do cão Megatério é
igualmente a hipótese mais verossímil para explicar os ruídos percebidos pelo casal
Beauchamps.
61
Gabriel Dellane – A Reencarnação
Até os pressentimentos são também apanágio da raça canina e, enfim, a clarividência se
acusa nos casos de habitações assombradas; assim, tudo a que se convencionou chamar
faculdades supranormais se encontra na psique animal, o que a assemelha definitivamente
com a alma humana.
Para responder à objeção de que não se deve ligar grande importância a anedotas dessa
natureza, que podem ser inventadas com todas as peças ou deformadas pela imaginação dos
narradores, lembrarei que essas narrativas são, pela maior parte, tomadas à Sociedade
Inglesa de Pesquisas Psíquicas, que instituiu inquéritos minuciosos para cada um dos casos
que lhe foram assinalados, e que só conservou aqueles cuja autenticidade ficou
indiscutivelmente demonstrada.
Vou chegar, agora, a outro aspecto da questão, o que consiste em estabelecer a
sobrevivência do princípio pensante no animal. Fá-lo-ei citando exemplos de visões relativas
a animais póstumos e a alguns fatos que parecem estabelecer que a individualidade pensante
de nossos irmãos inferiores está ligada também a uma forma indestrutível, que é o seu corpo
espiritual.
Haveria, pois, assim, uma continuidade perfeita nas manifestações da Inteligência
encarnada ou desencarnada, em todos os graus da escala da vida.
Comecemos este estudo pela visão de animais defuntos, que médiuns ou clarividentes
descrevem com exatidão, sem os ter nunca conhecido, ou, se os conheceram, sem terem sido
informados de sua morte.
Eis um primeiro exemplo, contado pela célebre médium, Sra. d’Espérance.
Colho o caso de um interessante artigo, por ela publicado na Light de 22/10/1904, pág.
511.
“Uma só vez sucedeu-me uma prova pessoal da presença, em espírito, de um animal
que eu havia muito bem conhecido em vida. Tratava-se de um pequeno terrier, grande
favorito de minha família, o qual, em conseqüência da partida do seu dono, tinha sido
dado a um dos seus admiradores, que habitava a uma centena de milhas distante de nós.
Um ano depois, quando eu entrava, certa manhã, na sala de jantar, vi, com grande
espanto, a pequena Monna, que corria, saltando em volta do quarto e que parecia
tomada de um frenesi de alegria; girava, girava, ora metendo-se embaixo da mesa, ora
intrometendo-se pelas cadeiras, como fazia em seus momentos de excitação e alegria,
depois de uma ausência mais ou menos longa de casa. Concluí, naturalmente, que o
novo dono de Monna a tinha trazido, ou que, pelo menos, a cadela tinha conseguido,
inteiramente só, encontrar o caminho de sua antiga morada. Fui logo interrogar outros
membros da família, mas ninguém sabia nada a respeito; aliás, procurou-se por toda
parte, chamou-se-lhe pelo nome: Monna não se fez mais ver.
Disseram-me que eu devia ter sonhado, ou pelo menos fora vítima de uma
alucinação, depois do que, o incidente ficou depressa esquecido.
Muitos meses, um ano talvez, se passaram, antes que acontecesse encontrar-nos com
o novo dono de Monna. Pedimos logo notícias dela. Disse-nos ele que Monna havia
morrido pelas feridas que recebera em luta com um grande cão. Ora, pelo que pude
verificar, isto se passara na mesma data, ou pouco tempo antes do dia em que a vira em
espírito correr, saltar, girar em torno da sala de sua antiga residência.” lv
62
Gabriel Dellane – A Reencarnação
Se a aparição se produziu no momento da morte do animalzinho, essa visão podia ser
atribuída à telepatia; mas se, ao contrário, o fenômeno se realizou algum tempo depois da
morte, é que o fantasma do animal foi percebido por clarividência.
No exemplo seguinte, se, a rigor, as visões relativas ao gato fantasma podem ser de
natureza alucinatória, o mesmo não se dá no que concerne à descrição do cão, que o Sr.
Peters não conheceu.
A aparição de um cão
A North Somerset Gazette lembra a história seguinte, contada pelo Sr. Robert Austin, que
lhe garante a autenticidade:
“Seu pai, o juiz Austin, que era conhecido como um grande amador de cães, tinha um
fraldeiro, muito ligado ao dono. O cão morrera e uma semana depois o juiz foi à casa de
um amigo em Clifton, com o qual se entreteve durante alguns instantes no salão.
Quando ele partiu, uma moça escocesa, que se achava então na casa, perguntou quem
63
Gabriel Dellane – A Reencarnação
era aquele senhor com um cão. A dona da casa respondeu que era o juiz Austin, mas,
acrescentou, não trazia cão nenhum consigo. A outra replicou que havia com ele um
cachorro, no salão, e descreveu exatamente, não só o aspecto de um velho cão de fralda,
como, ainda, sua postura favorita, quando se achava ao pé do dono.
Podeis pensar o que quiserdes desta história, diz Austin, mas é verídica.”
Para os partidários obstinados da teoria da transmissão do pensamento ou da
criptestesia, a descrição do animal pode ser tomada em uma imagem da subconsciência do
juiz; o mesmo não sucede quando a visão fantasmal exerce também sua ação sobre animais.
A Sra. d’Espérance, autora bem conhecida, conta na Light (outubro de 1904, págs. 511-
513) um fato de visão animal fantasma, que reproduzo, citando apenas os pormenores
essenciais.
Quando passeava em um pequeno bosque vizinho, notou que, freqüentemente, os cavalos
se assustavam em certo ponto do caminho que atravessavam.
“Meus cães – disse ela – recusavam obstinadamente entrar no bosque, estiravam-se
no chão, punham o focinho entre as pernas e ficavam surdos à persuasão e às ameaças.
Se me encaminhava para outra direção, eles logo me seguiam alegremente, mas se eu
persistia em entrar no bosque, abandonavam-me e dirigiam-se de carreira para casa,
tomados de uma espécie de pânico.
Contando esse fato a uma amiga, disse-me ela que os camponeses consideravam esse
lugar como assombrado e que os animais domésticos temiam passar por ali.
Um dia de outono de 1896, eu e uma amiga fomos dar um passeio. Chegamos ao
bosquete, pelo qual entramos ao lado do oeste, caminhando tranqüilamente. Fui a
primeira a voltar-me e vi um novilho, de cor vermelho-escura... Fiz uma exclamação de
espanto e o animal escondeu-se logo no bosque, do outro lado da vereda. Quando ele
penetrava no bosque cerrado, estranho clarão avermelhado se lhe desprendeu dos
grandes olhos: dir-se-ia que lançavam chamas. Era a hora do pôr do sol, que dardejava
seus raios em linha reta horizontal.
Depois daquela época, bem poucos dias se passaram sem que eu tivesse atravessado
o bosque, a pé ou a cavalo, e não mais encontrei o misterioso bezerro, até poucas
semanas atrás.
Era um dia sufocante, e me dirigi para o bosque, a fim de encontrar aí um abrigo do
sol e dos revérberos deslumbrantes da estrada. Estava acompanhada por dois cães
pastores e por um pequeno terrier. Chegada ao limite do bosque, os dois cães
agacharam-se, de repente, recusaram continuar o caminho, ao mesmo tempo em que
exerciam toda a arte canina de persuasão para que eu me dirigisse para outro lugar.
Vendo que eu persistia em ir para a frente, acabaram por acompanhar-me, mas com
visível repugnância. Todavia, alguns instantes depois, pareceram tudo esquecer e eu
continuei, tranqüila, o meu caminho, colhendo amoras. Em dado momento, vi-os voltar
de carreira para se virem esconder, trêmulos e gementes, a meus pés; ao mesmo tempo,
o podengo saltava em meus joelhos. Não podia compreender aquilo, quando, de
64
Gabriel Dellane – A Reencarnação
repente, ouvi atrás de mim um furioso tropel que se aproximava rapidamente. Antes
que tivesse tempo de afastar-me, vi chegar um rebanho de gamos. Tomados de espanto,
em carreira desenfreada, faziam tão pouco caso de mim e dos cães, que estavam a ponto
de me lançarem ao chão. Olhei em torno, espantada, a fim de descobrir a causa desse
pânico, e percebi um novilho, avermelhado-escuro, que, desandando, embrenhava-se na
mata. Os gamos afastaram-se rapidamente. Meus cães que, em circunstâncias
ordinárias, lhes teriam dado caça, conservaram-se encolhidos e trêmulos, a meus pés,
enquanto o podengo recusava descer dos meus joelhos. Durante muitos dias, este
cãozinho não quis mais atravessar o bosque. Os outros dois não se recusavam, mas nele
entravam contra a vontade e mostravam visível desconfiança e temor.
O resultado de nossos inquéritos confirmou as nossas impressões, ou, como se diz no
lugar, o bezerro de olhos flamejantes não era um animal comum, vivo, terrestre.”
A realidade de um bezerro fantasma é confirmada, não só pela visão da Sra. d’Espérance,
como, sobretudo, pelo terror que sentiram os gamos e os cães, aos quais ninguém havia
sugestionado.
Eis outro caso, em que a realidade da aparição de um buldogue, depois de sua morte,
parece evidente.
Um cão fantasma
O cão risonho
“As materializações de formas animais não são raras com Frank Kluski. Nos
relatórios das sessões de estudos psíquicos de Varsóvia, temos a assinalar,
especialmente, uma grande ave de rapina, que apareceu várias vezes e foi fotografada;
depois, um ser bizarro, espécie de intermediário entre o macaco e o homem. Tem a
estatura de um homem, uma face simiesca, mas uma fronte desenvolvida e reta, o rosto
e o corpo coberto de pelos, braços compridos, mãos fortes e longas. Parece sempre
comovido, toma as mãos dos assistentes e as lambe como faria um cão.
Ora, esse ser, que denominamos “o Pitecantropo”, manifestou-se muitas vezes
durante nossas sessões. Um dos assistentes, na sessão de 20 de novembro de 1920,
sentiu sua grande cabeça aveludada apoiar-se-lhe pesadamente no ombro, junto ao
rosto. Essa cabeça era guarnecida de cabelos bastos e rudes. Um odor de animal
selvagem, de cão molhado, desprendia-se dele. Um dos presentes estendeu a mão;
apanhou-a o Pitecantropo e lambeu-a longamente, por três vezes. Sua língua era grande
e macia.”
Eis alguns pormenores, concernentes a esse ser bizarro; são extraídos dos relatórios das
sessões de Varsóvia, em 1919:
“É um ser do tamanho de um homem adulto, muito peludo, com uma grande crina, e
uma barba hirsuta. Estava como que revestido de uma pele crepitante; a aparência era a
de um animal ou de um homem muito primitivo.
Não falava, mas emitia, com os lábios, sons roucos, estalava a língua e rangia os
dentes, procurando, em vão, fazer-se compreender. Quando o chamavam, aproximava-
se; deixava que lhe acariciassem a pele veludosa, tocava as mãos dos assistentes,
arranhava-as docemente, antes com garras do que com unhas. Obedecia à voz do
médium e não fazia mal aos assistentes.
68
Gabriel Dellane – A Reencarnação
Era um progresso, porque, nas sessões anteriores, este ser manifestava grande
violência e brutalidade. Tinha uma tendência visível e uma vontade tenaz de lamber a
mão e o rosto dos assistentes, que se defendiam dessas carícias bem desagradáveis.
Obedecia às ordens do médium, não só quando expressas pela palavra, senão quando
expressas pelo pensamento.
Outras vezes sentíamos, sob os joelhos, fricções como as de um cão.” lviii
Ao correr do ano de 1922, o Dr. Geley foi a Varsóvia e sei que ele verificou, nas sessões
com o médium Kluski, materializações de cães.
Os Nœvi
A analogia que existe entre o princípio espiritual dos animais e o dos homens pode ainda
ser demonstrada pela influência que a imaginação exerce sobre o corpo.
Sabe-se que durante a gravidez muitas mulheres se tomam de desejos obsidentes, por
vezes bizarros e mesmo extravagantes. É velha crença popular que, se esta vontade não é
satisfeita, a criança trará sobre a pele, sob forma de mancha ou tumor, a impressão
inapagável do objeto cobiçado pela mãe; morango, cereja, framboesa, vinho, café... Chamam-
se nœvi, ou vulgarmente antojos, essas marcas de nascimento.
Em um artigo que publiquei em 1904, lix reuni grande número de exemplos, dos quais
resulta que, em conseqüência de emoções violentas, mulheres grávidas imprimem no corpo
da criança as imagens que as impressionaram vivamente.
As impressões fracas, quando persistem, produzem o mesmo resultado que as violentas e
repentinas.
Conta Liébault que um vinhateiro assemelhava-se, de modo espantoso, à estátua do santo
patrono da aldeia, que se achava na igreja. Durante a gravidez, sua mãe possuía a idéia fixa de
que o filho se parecesse com aquele santo.
Por sua parte, o Dr. Sermyn, no Journal de março 1914, escreve:
“Conheci uma senhora que, depois de ter tido três filhos, cujos cabelos eram pretos e
lisos, viu um dia numa loja uma litografia colorida, que representava uma menina de
seus catorze anos, com os cabelos louros anelados. Ela, para logo, a comprou e colocou
em seu quarto de dormir.
– Como seria feliz se Deus me concedesse a graça de ter um filho semelhante a essa
litografia – dizia-me muitas vezes.
Seu desejo realizou-se, com minha grande surpresa. Teve, não uma só filha, mas duas
consecutivamente.
Na idade de 14 anos, as duas meninas eram a reprodução do quadro que a mãe tinha
comprado. Tomaram-nas por gêmeas, tanto se pareciam uma com outra. Dir-se-ia que a
litografia era o seu retrato.”
Aqui, a atenção da mãe, continuamente dirigida à imagem da moça, acabou por impô-la
às duas filhas.
Eis outro caso citado pela Revue Métapsychique, de janeiro-fevereiro de 1922, sob o título
Um caso presumível de ideoplastia.
Trata-se de uma gata, que tinha dado à luz um gatinho, em casa do Sr. Davico, padeiro em
Nice; o gato tinha no peito a marca do milésimo 1921. O fato foi devidamente verificado.
69
Gabriel Dellane – A Reencarnação
tiraram-se muitas fotografias que mostraram nitidamente o milésimo, tendo em cima três
pequenas manchas brancas.
Interrogada, narra a Sra. Davico:
“Durante sua gestação, a gata perseguia um ratinho, que se refugiou num saco cheio
de farinha. A boa rateira ia dar um salto naquela direção, quando a Sra. Davico, temendo
um acidente, que já se produzira, lançou sobre o saco cheio um outro vazio, que tinha na
mão, a fim de que o primeiro não fosse dilacerado pelas unhas do animal, e a farinha
não se derramasse.
Perturbada em sua caça, a gata não a abandonou, e durante horas ficou de espreita,
encolhida numa cadeira, perto do saco, com os olhos fixos nele, onde se encontrava
precisamente o milésimo, tendo acima três estrelas.
Parece, pois, que a imagem do milésimo, sobre o qual a gata tinha os olhos fixos
durante longas horas, reproduziu-se no animalzinho em formação, ou, mais exatamente,
no seu perispírito, pois que só se tornou visível quando os pelos surgiram.”
Bozzano publicou nos Annales des Sciences Psychiques, agosto de 1905, uma classificação
dos fatos de metapsíquica animal; reproduzo-a sumariamente.
Conhecendo o espírito crítico do autor e sua grande prudência na apreciação das
narrativas que reproduz, podemos ter toda a confiança no que concerne à autenticidade dos
fatos que reuniu.
Transcrevo a enumeração dos diferentes casos por ele coligidos:
1ª categoria – Alucinação telepática em que um animal faz função de agente, 12 casos, 8
citados.
2ª categoria – Alucinação telepática em que um animal faz função de percipiente, 1 caso.
3ª categoria – Alucinação telepática percebida coletivamente pelo homem e pelos
animais, 17 casos, 4 citados.
4ª categoria – Visões de fantasmas humanos, fora de qualquer coincidência telepática e
percebidas coletivamente por animais e homens, 18 casos, 8 citados.
5ª categoria – Visões de fantasmas animais, produzidas fora de qualquer coincidência
telepática, e percebidas coletivamente por animais e homens, 5 casos citados.
6ª categoria – Animais e localidades fantasmógenas, 22 casos, 9 citados.
Bozzano só retém 69 casos entre os que ele coligiu, e faz notar que o número das relações
que lhe eram conhecidas, já em 1905, poderia elevar-se facilmente ao dobro daquela cifra.
Isso basta para mostrar que alguns exemplos que apresentei não são, por assim dizer, mais
que tipos de cada uma dessas manifestações psíquicas.
Parece, pois, desde já altamente provável:
1º) que existem comunicações telepáticas entre o homem e os animais domésticos;
2º) que os animais apresentam, por vezes, fenômenos de clarividência, isto é, que
percebem seres invisíveis;
3º) que são capazes de experimentar pressentimentos;
4º) que possuem uma forma fluídica que lhes permite desdobrar-se;
5º) que esse perispírito animal persiste depois da morte, sob uma forma invisível, que
pode ser descrita pelos videntes;
70
Gabriel Dellane – A Reencarnação
6º) que a materialização desse princípio, que individualiza a alma animal, foi por vezes
observada nas sessões espíritas.
Se nos quisermos lembrar das descrições relativas aos cavalos de Elberfeld, aos cães Rolf,
Lola e Zou, será impossível negar que existe, entre esses animais e nós, verdadeiro
parentesco intelectual.
Evidentemente, o grau de desenvolvimento da psique animal, nessas formas ainda
relativamente inferiores, não é comparável, salvo a extraordinária faculdade do cálculo,
senão à de nossas crianças; mas a identidade do princípio pensante, entre eles e nós, parece
inegável e a hipótese de que passamos, anteriormente e sucessivamente, por estádios
inferiores, antes de chegar à humanidade, afigura-se hoje verossímil e deve ser tomada em
séria consideração por todos os que procuram a solução do problema de nossas origens.
Adiro, inteiramente, portanto, às conclusões formuladas por Bozzano, no trabalho
notável ao qual tenho feito tantos empréstimos:
“Limitar-me-ei, pois – dizia ele – a observar que, no dia em que se chegar a adquirir,
cientificamente, a prova de que os fenômenos de percepção psíquica supranormal se
manifestam, de modo idêntico, no homem e no animal, e de que essa prova é
completada por outro fato, o de que as formas superiores do instinto próprio aos
animais se encontram também na subconsciência do homem, nesse dia seremos levados
a demonstrar que não existe diferença de qualidade entre a alma humana e a do animal.
Da mesma forma, poder-se-á, então, fazer melhor compreender como a evolução
biológica da espécie tem seu correspondente em uma evolução psíquica paralela que, a
julgar pelas maravilhosas faculdades evidentemente independentes da lei de seleção
natural, longe de dever ser considerada como simples produto de síntese funcional dos
centros corticais, longe de consistir em simples epifenômeno, deve ser nitidamente
reconhecida como originada por um princípio soberanamente ativo. Este se manifesta
como força organizadora, e unicamente em virtude dele a lei de seleção natural é posta
em estado de agir eficazmente, em vista da evolução biológica e morfológica da espécie.
É às ciências psíquicas que pertence a tarefa gloriosa de o demonstrar, em futuro
bastante próximo.”
71
Gabriel Dellane – A Reencarnação
Capítulo VI
A memória integral
A memória integral
Como terei de estudar os fenômenos que tendem a firmar a realidade das existências
anteriores na Humanidade, e como esta demonstração repousa, em parte, na ressurreição das
lembranças do passado, parece-me indispensável estabelecer que a memória não é uma
faculdade simplesmente orgânica, ligada à substância do cérebro, mas que reside, ao
contrário, nessa parte indestrutível, a que os espiritistas chamam perispírito.
Se isto é certo, a alma, reencarnando-se, traz consigo, de forma latente, todas as
lembranças de suas vidas anteriores, e então ser-lhe-á possível, por vezes e
excepcionalmente, ter reminiscências do seu antigo passado.
Assim como, em certas pessoas, consegue-se fazer renascer a memória de
acontecimentos de sua vida atual, inteiramente desaparecidos da consciência normal, do
mesmo modo poder-se-á, por vezes, penetrar até às profundezas desses arquivos ancestrais,
que, a justo título, será possível qualificar de memória integral.
Não se trata de fazer aqui um estudo completo da memória, porque esse trabalho exigiria
muito mais espaço do que aquele de que dispõe esta obra. Bastar-me-á assinalar alguns
fenômenos importantes, que demonstrarão, segundo penso, com evidência, que tudo o que
age sobre o ser humano nele se grava de maneira indelével; que esta conservação não reside,
como ensina a Psicologia oficial, nos centros nervosos, mas nessa parte imperecível do ser,
que o individualiza, e do qual é inseparável.
Para que tal afirmação não pareça excessiva, é preciso lembrar que as aparições
materializadas, reconstituindo temporariamente o antigo corpo material que tinham na
Terra, com todos os seus caracteres anatômicos, provam que elas têm sempre o poder
organizador, que dá ao invólucro carnal sua forma e suas propriedades; e todas as faculdades
intelectuais são igualmente reconstituídas, quando o Espírito se torna completamente senhor
do processo de materialização, porque, muitas vezes, o fantasma fala, escreve, e seu estilo,
assim como sua grafia, são idênticos aos que possuía quando vivo. Assim, pois, a memória e o
mecanismo ideomotor da escrita se conservam depois da morte, prestes a manifestar-se de
novo, fisicamente, quando as circunstâncias o permitem.
72
Gabriel Dellane – A Reencarnação
Não é somente, portanto, no sistema nervoso, que se registram todas essas aquisições,
porque a morte o destrói, e o ser que sobrevive traz consigo suas associações dinâmicas e
suas recordações.
O caso de Estela Livermore, lx que escreveu, sob os olhos do marido, mais de duzentas
mensagens, depois de sua morte, mostra, com evidência, não só a conservação de sua
personalidade, mas também que as lembranças nada perderam de sua integridade, pois que,
apesar de americana, ela conservou, depois da morte, o conhecimento da língua francesa, que
possuía em vida, e as mensagens são autógrafos inteiramente idênticos à sua escrita, quando
viva.
Este fato é confirmado por muitos outros obtidos, ou por médiuns mecânicos, ou pela
escrita direta entre ardósias, de sorte que podemos, nós, espiritistas, afirmar que todas as
aquisições espirituais, feitas durante a vida, não estão localizadas no encéfalo, mas no duplo
fluídico, que é o verdadeiro corpo da alma.
Assim sendo, qual o papel do sistema nervoso, durante a vida?
É incontestável que a integridade da memória está ligada ao bom funcionamento do
cérebro, porque muitas moléstias que atingem esse órgão têm como resultado enfraquecer e
mesmo suprimir, completamente, a memória dos acontecimentos recentes, em totalidade ou
em parte.
Parece, pois, evidente, que, durante a vida, o cérebro é uma condição indispensável da
memória. Mas aqui intervêm uma segunda consideração, que me parece também da mais alta
importância. É que o esquecimento que se verifica durante o curso da vida, ou depois das
desordens orgânicas, não é fundamental, irredutível, mas aparente, visto que, por meio de
diversos processos, é possível, por vezes, fazer renascerem essas lembranças, que pareciam
aniquiladas para sempre.
Vamos demonstrá-lo por diversos exemplos.
Antes, porém, não é inútil lembrar algumas noções muito gerais, relativas a esse
fenômeno misterioso, que ressuscita o passado e no-lo torna, por assim dizer, atual.
Segundo Ribot, a memória compreende, na acepção corrente da palavra: a conservação
de certos estados, sua reprodução, sua localização no passado. Isto não é, entretanto, senão
uma espécie de memória, a que se pode chamar perfeita. Aqueles três elementos são de valor
desigual; os dois primeiros são necessários, indispensáveis; o terceiro, que na linguagem de
escola se chama de reconhecimento, completa a memória, mas não a constitui.
O fato me parece tanto mais verdadeiro, quanto a lembrança está ligada, durante a vida,
ao bom funcionamento do sistema nervoso. Mas, se a memória parece falha, não quer isto
dizer que as lembranças fiquem aniquiladas, senão que o poder de as acordar foi
momentaneamente paralisado, e que pode reaparecer quando as causas que o suprimiram
cessarem de existir.
O termo geral de memória compreende muitas variedades e, entre os diversos
indivíduos, o poder de renovação das sensações antigas é muito diferente. Uns possuem a
memória visual muito desenvolvida, como os pintores Horace Vernet ou Gustave Doré, que
podiam fazer um retrato de memória; em outros é o senso musical que atinge alto grau de
perfeição, como Mozart, que escreveu o Miserere da Capela Sistina, tendo-o ouvido apenas
duas vezes.
Entretanto, para que uma sensação fique registrada em nós, duas condições, pelo menos,
são necessárias: a intensidade e a duração.
Eis, segundo Ribot, a importância desses dois fatores: lxi
73
Gabriel Dellane – A Reencarnação
“A intensidade é uma condição de caráter muito variado. Nossos estados de
consciência lutam sem cessar para se suplantarem; a vitória pode resultar da força do
vencedor ou da fraqueza dos outros lutadores. Sabemos que o mais vivo estado pode
decrescer continuamente, até o momento em que cai abaixo do umbral da consciência,
isto é, em que uma de suas condições de existência faz falta. É bem certo dizer que a
consciência, em todos os degraus possíveis, por menores que sejam, admite
modalidades infinitas – estados a que Maudsley chama subconscientes – mas nada
autoriza a dizer que esse decrescimento não tenha limite, posto que ele nos escape.
Não se tem tratado da duração como condição necessária da consciência. Ela é,
entretanto, capital.
Os trabalhos executados há uns 30 anos determinaram o tempo necessário para as
diversas percepções. Ainda que os resultados variem segundo os experimentadores, as
pessoas, as circunstâncias e a natureza dos estados psíquicos estudados, está, pelo
menos, estabelecido que cada ato psíquico requer uma duração apreciável e que a
pretendida rapidez infinita do pensamento não passa de uma metáfora.
Isto posto, é claro que toda ação nervosa, cuja duração é inferior à que requer a ação
psíquica, não pode despertar a consciência.”
Acrescentemos que é preciso ainda fazer intervir a atenção, para que uma sensação se
torne consciente. É notório, com efeito, que, se somos absorvidos por um trabalho
interessante, não ouviremos mais o som do timbre do pêndulo, que, entretanto, fere sempre o
nosso ouvido com a mesma força. Nosso espírito, ocupado alhures, não transforma esta
sensação em percepção, isto é, nós não temos dela consciência.
É muito curioso fazer observar que as sensações despercebidas pelo eu normal podem
reaparecer, colocado o paciente em sono magnético.
Eis um exemplo tomado a Desseoir:
“X..., absorvido pela leitura, entre amigos que conversavam, teve subitamente sua
atenção despertada, ouvindo pronunciar-lhe o nome. Perguntou aos amigos o que
tinham dito dele. Não lhe responderam; hipnotizaram-no. No sono, pôde repetir toda a
conversa que havia escapado ao seu eu acordado. Ainda mais notável é o fato assinalado
por Edmond Gurney e outros observadores, o de que o paciente hipnótico pode apanhar
o cochicho de seu magnetizador, mesmo quando este está no meio de pessoas que
conversam em alta voz.”
Nestes exemplos, a duração e a intensidade foram suficientes para gravar no sistema
nervoso e no perispírito as palavras pronunciadas; mas, fazendo falta a atenção, não se
produziu a memória consciente do estado de vigília, e o indivíduo ignorou o que dele se disse;
adormecido magneticamente, esse estado vibratório geral, a que os fisiologistas chamam
“cenestesia”, aumentou, as vibrações auditivas tornaram-se mais intensas e o paciente pôde
então delas tomar conhecimento.
Não são apenas as lembranças do estado de vigília que o sonambulismo reconstitui, mas
também as dos estados sonambúlicos anteriores, por forma que parece existir no mesmo
indivíduo duas espécies de lembranças perfeitamente coordenadas, que se ignoram
completamente. A observação que segue é disto palpitante exemplo: lxii
“O Dr. Dufay, senador de Loire-et-Cher, publicou a observação sobre uma jovem que,
em acesso de sonambulismo, tinha fechado numa gaveta jóias que pertenciam à sua
patroa. Esta, não encontrando as jóias no lugar em que as deixara, acusou a criada de as
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Gabriel Dellane – A Reencarnação
haver roubado. A pobre moça protestava sua inocência, mas não podia dar qualquer
esclarecimento sobre a desaparição dos objetos perdidos. Foi posta na prisão de Blois. O
Dr. Dufay era então médico do presídio. Conhecia a detenta, por ter feito nela algumas
experiências de hipnotismo. Adormeceu-a e interrogou-a sobre o delito de que a
acusavam; ela lhe contou, então, com todos os pormenores desejáveis, que nunca
houvera intenção de roubar a patroa, mas, que uma noite lhe viera a idéia de que certas
jóias pertencentes à senhora não estavam em segurança, no móvel em que se achavam,
e que, por isso, as fechara em outro móvel. O juiz de instrução foi informado desta
revelação. Dirigiu-se ele à casa da senhora roubada e achou as jóias na gaveta indicada
pela sonâmbula. Ficou claramente demonstrada a inocência da detenta e ela foi posta
desde logo em liberdade.”
O que há de notável é que o estado segundo, quando é profundo (designando-se por esse
nome o produzido pelo sonambulismo), abraça toda espécie de memória, compreendidas as
do sono e as da vida ordinária; é, em verdade, a vida antiga que ressuscita, com toda a
complexidade que ela comporta.
Pitres, na obra citada, nos dá um exemplo bem curioso. Ele o batizou com o termo de
“ecmenesia”. Eis no que consiste:
Suponhamos, um instante, que um indivíduo de 30 anos perde, subitamente, a lembrança
de tudo que conheceu e aprendeu durante os 15 últimos anos de sua vida. Por essa amnésia
parcial produzir-se-á em seu estado mental uma radical transformação. Ele falará, agirá,
raciocinará como se tivesse 15 anos. Terá os conhecimentos, os gostos, os sentimentos, os
costumes que tinha aos 15 anos, visto que todas as lembranças dos últimos anos
desaparecerão. No ponto de vista mental não será mais um adulto, mas um adolescente.
“Uma doente, Albertina M., de 28 anos, durante o delírio ecmenésico, viu-se
transportada aos 7 anos, quando se ocupava em cuidar da vaca que pertencia àquela
que a criara.
Depois de observar todas as auras que precedem habitualmente a explosão dos
ataques, a doente pôs-se a marchar lentamente, abaixando-se de quando em quando,
como se apanhasse flores à margem de uma estrada. Depois, sentou-se, cantarolando.
Alguns instantes mais e fez o gesto de remexer o bolso, e interrompia-se para falar à
vaca. Interpelamo-la nesse momento e ela, acreditando tratar com os garotos da aldeia,
ofereceu-nos compartir dos seus brinquedos. Foi impossível fazê-la compreender o
erro. A todas as perguntas que lhe dirigíamos a respeito da sua vaca, de sua avó, dos
habitantes da aldeia, respondia com a ingenuidade de uma criança, mas com
imperturbável precisão. Se, ao contrário, lhes falávamos de acontecimentos de que fora
testemunha ou autora, no correr de sua existência, depois dos sete anos, parecia muito
espantada e não compreendia nada.
Devo assinalar duas particularidades que não deixam de ter importância. Até à idade
de 12 anos, Albertina ficou em um lugarejo de Charente, entre pobres camponeses, que
mal falavam o francês. Ela própria só falava o dialeto de Saintonge; mais tarde é que
aprendeu o francês.
Assim, durante toda a duração do ataque, exprimia-se no patuá, e se nós lhe
pedíamos que falasse francês, respondia, invariavelmente em patuá, que não conhecia a
língua dos senhores da cidade.
A segunda particularidade não é menos curiosa. Na idade de 7 anos, Albertina não
tivera acidentes histéricos e, segundo tudo leva a crer, não tinha ainda hemianestesia
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Gabriel Dellane – A Reencarnação
nem zonas histerógenas. Ora, durante o delírio de que nos ocupamos, a sensibilidade
cutânea era normal, tanto do lado direito como do esquerdo, e todas as zonas
espasmogênicas perderam a ação, salvo a zona ovariana esquerda, que, premida
energicamente, teve por efeito fazer parar imediatamente o delírio. Voltada ao estado
normal, a moça não possuía nenhuma recordação do que havia dito ou feito.”
Notemos a ligação íntima que existe entre o estado psíquico e o fisiológico da paciente.
São a tal ponto associados, que o só fato de transportar-se Albertina a um período de sua vida
passada, durante a qual não apresentava desordens nervosas, suprime as de que era atingida
na época da experiência.
O fenômeno da ressurreição das lembranças esquecidas de uma parte da vida, que Pitres
batizou com o nome de ecmenesia, foi assinalado por muitos autores que se ocuparam com o
sonambulismo.
Richet, no seu livro L’Homme et l’Intelligence, chama a atenção para a vivacidade das
sensações antigas que o estado magnético faz renascer.
“Se a memória ativa – diz ele – é profundamente perturbada, em compensação, a
memória passiva é exaltada. Os sonâmbulos representam, com um luxo inaudito de
pormenores precisos, os lugares que viram outrora, os fatos aos quais assistiram. Têm
eles descrito, durante o sono, muito exatamente, tal cidade, tal casa que visitaram ou
entreviram antigamente; mas, ao acordar, não podem dizer o que fizeram em tempos
idos, e X..., que cantava a ária do 2º ato da Africana, durante o sono, não lhe pode achar
uma só nota quando desperto.
Eis uma mulher que foi, há 15 anos, passar uma hora ou duas em Versalhes, e que
esqueceu, quase completamente, esse curto passeio. É mesmo absolutamente incapaz
de afirmar que o deu. Entretanto, se a fazem dormir e falar de Versalhes, ela saberá
descrever muito fielmente as avenidas, as estátuas, as árvores. Verá o parque, as aléias,
a grande praça e, com espanto dos assistentes, dará detalhes extremamente preciosos.”
Não só as lembranças visuais ou auditivas se conservam, mas as aquisições intelectuais,
de que é testemunha a história de Jeanne R., que devemos a Bourru e Burot. lxiii
“Jeanne, de 24 anos, é uma jovem muito nervosa e profundamente anêmica. É sujeita
a crises de choro e soluços; não tem crises convulsivas, mas freqüentes desmaios;
facilmente hipnotizável, dorme com profundo sono e, ao acordar, perde a lembrança.
Disseram-lhe que se transportasse aos 6 anos. Ela se acha com seus pais; faz-se
serão, descascam-se as castanhas. Quer dormir e pede para deitar-se. Chama seu irmão
André, para que a ajude a terminar sua tarefa, mas este, em vez de trabalhar, diverte-se
em fazer casinhas com as castanhas. “É bem um vadio, descasca umas dez e eu que
descasque o resto.”
Nesse estado fala o patuá limousin, não lê, mal conhece o ABC. Não sabe uma palavra
de francês. Sua irmãzinha Luísa não quer dormir. “É preciso – diz ela – ninar sempre
minha irmã, que tem nove meses.” Sua atitude é de criança.
Depois de se lhe pôr a mão na fronte, diz-se-lhe que vá à idade de 10 anos.
Transforma-se-lhe a fisionomia. Seu porte não é mais o mesmo. Ela se encontra em
Frais, no castelo da família Moustier, perto do qual habitava. Vê quadros e os admira.
76
Gabriel Dellane – A Reencarnação
Pergunta onde se acham suas irmãs, que a acompanham; vai ver se estão na estrada.
Fala como uma criança que está aprendendo a falar; vai, diz ela, à escola com as irmãs,
há dois anos, mas ficou muito tempo sem a freqüentar. Sua mãe esteve enferma longo
trato, e ela foi obrigada a cuidar de seus irmãos. Começa a escrever há seis meses,
lembra-se de um ditado que lhe deram quarta-feira e escreve correntemente e de cor; foi
o ditado que fez com a idade de dez anos. Diz não estar muito adiantada: “Marie
Coutureau tem menos erros que eu; estou sempre perto de Marie Puybaudet e de Marie
Coutureau, mas Louise Roland está perto de mim. Creio que Jeanne Beaulieu é a que tem
mais erros.”
Da mesma forma, disseram-lhe que fosse aos 15 anos. Ela serve em Mortemart, em
casa da Senhorinha Brunerie: “Amanhã vamos a uma festa, a um casamento, ao
casamento de Batista Colombeau; o Marechal Léon será o meu cavalheiro. Oh, não irei
ao baile, a Senhorinha Brunerie não quer; eu bem que irei, por um quarto de hora; ela,
porém, não sabe.”
Sua conversa tem mais nexo do que há pouco. Escreve o Petit Savoyard. A diferença
das duas escritas é muito grande. Ao acordar, fica espantada por haver escrito o Petit
Savoyard, que não conhece mais. Quando lhe mostram o ditado que fez aos dez anos,
declara que não foi ela quem o escreveu.”
É de notar que o fenômeno da revivescência de um período da vida passada, produzido
em Albertina espontaneamente, foi conseqüência de uma crise de histeria, enquanto que para
Jeanne R. a regressão da memória se deve à sugestão.
Mostram esses reparos que, qualquer que seja o processo empregado, ao chegar-se às
camadas profundas da consciência, aí se encontram fielmente registrados todos os
acontecimentos do passado, porque eles lá deixaram traços indeléveis; as sensações
ulteriores podem recobri-los até os fazer esquecer por completo, mas não os detroem nunca.
É uma superposição de impressões que não se misturam, que permanecem em perfeita
autonomia e que abraçam todos os estados da personalidade. Assim, Jeanne R., quando
levada à idade de 6 anos, tem os sentimentos de uma criança, não conhece ainda o francês e
só se exprime em patuá limousin; aí, toda a sua vida ulterior desaparece; entretanto, cada
camada de impressões acorda com um viço e uma vivacidade que equivale às impressões da
vida real.
Numa segunda sugestão é uma parte mais vasta do domínio memorial que se acha
renovada, sempre com o mesmo luxo de pormenores, indo até às ínfimas circunstâncias da
vida corrente.
Jeanne reproduz de memória o ditado que escreveu quarta-feira com as irmãs. A escrita é
infantil e a grafia defeituosa. É precisamente a idade de dez anos ressurgida. Não se misturou
com a de seis, e muito menos se amalgamou às recordações dos períodos seguintes, quando
levaram a paciente aos quinze anos. Desta vez, a grafia modificou-se, e é interessante notar
que se o mecanismo ideomotor da escrita ocupa, no indivíduo, as mesmas partes do sistema
nervoso, experimenta, entretanto, modificações sucessivas, de que cada uma deixou traços
inapagáveis.
Podemos, pois, supor que as lembranças sucessivas se acumulam por andares; que as
contemporâneas se ligam de maneira íntima, e de tal sorte, que não são unicamente as
lembranças psicológicas que sobrevivem, mas todos os estados fisiológicos concomitantes;
renovado um deles, o outro aparece fatalmente.
77
Gabriel Dellane – A Reencarnação
Insistirei neste ponto, citando o testemunho de Pierre Janet, lxiv professor do Colégio de
França, o qual mostra muito claramente esta ligação indissolúvel dos estados psíquicos e
físicos do corpo, em um período qualquer da vida do mesmo indivíduo:
“Pode-se fazer com que o paciente represente todas as cenas da própria vida, e
verificar, como se voltássemos a cada época, os pormenores que ele acreditava
completamente esquecidos, e não os podia contar. Leonie ficou duas horas
metamorfoseada em menina de 10 anos e revivia sua existência, com vivacidade e
alegria estranhas, gritando, correndo, chamando a boneca, falando a pessoas de quem
não mais se lembrava, como se a pobre mulher tivesse tornado, de fato, aos dez anos.
Apesar de estar, neste momento, anestesiada do lado esquerdo, retomava sua
sensibilidade completa, para representar aquele papel. As modificações de sensibilidade
e dos fenômenos nervosos, por uma sugestão desse gênero, dão lugar a singulares
fenômenos. Eis uma observação, que parece um gracejo, mas que é exata e, em
realidade, bastante fácil de explicar.
Sugiro a Rosa que não estamos mais em 1888, mas em 1886, no mês de abril, para
verificar, simplesmente, as modificações da sensibilidade que se poderiam produzir. Dá-
se porém um acidente bem estranho; ela geme, queixa-se de fadiga e de não poder
caminhar.
– Que tens?
– Nada, mas em minha situação!
– Que situação?
Ela me responde com um gesto; o ventre se lhe havia intumescido subitamente, e
esticado por um acesso súbito de timpanite histérica. Eu a tinha levado, sem o saber, a
um período de sua vida em que estivera grávida. Foi preciso suprimir a sugestão para
que cessasse essa má facécia.
Estudos mais interessantes foram feitos com Maria, por esse meio; pude, trazendo-a,
sucessivamente, a vários períodos de sua existência, verificar os estados diversos da
sensibilidade pelos quais ela passou e as causas de todas as modificações.
Assim, ela está agora cega do olho esquerdo e declara que o esteve desde que nasceu.
Se a conduzimos à idade de 7 anos, vemos que ainda está insensível do olho esquerdo;
mas, se lhe sugerem que ela só tem 6 anos, percebe-se que vê bem de ambos os olhos, e
pode-se determinar a época e as circunstâncias muito curiosas em que perdeu a
sensibilidade do olho esquerdo. A memória realizou automaticamente um estado de
saúde de que a paciente não tinha conservado nenhuma lembrança.”
Os três pacientes de Pierre Janet, e particularmente os dois últimos, mostram bem essa
ligação indissolúvel dos estados sucessivos, corporais e espirituais, de que falei acima. É
interessante que se possa renovar um período intelectual da vida passada, reproduzindo, ou
por sugestão ou por um processo físico, um estado patológico que o paciente experimentara
outrora. Se, por exemplo, na idade de 12 anos, um indivíduo era insensível do lado direito e
essa enfermidade desapareceu, ao se lhe produzir, artificialmente, uma anestesia desse lado,
ele imediatamente retoma o caráter, as maneiras, as lembranças que tinha naquela idade.
78
Gabriel Dellane – A Reencarnação
História de Luís V.
A história de Luís V., que colho ainda em Bourru e Burot, confirma aquela asserção, de
maneira absoluta. Como a narrativa desses sábios é um tanto longa, julgo útil resumi-la:
“Luís V. era um histérico que, em conseqüência de um roubo, foi internado na Colônia
de St.-Urbain. Aí, tornou-se dócil e inteligente; ocupava-se com trabalhos agrícolas.
Devido à emoção produzida por ter visto uma víbora, ficou paralítico dos membros
inferiores.
Transportado a Bonneval, tem a fisionomia franca e simpática, o caráter doce e
ameno; lastima, sobremaneira, o passado e afirma que será mais honesto de futuro.
Ensinam-lhe o ofício de alfaiate.
Um dia, é tomado de uma crise que dura 50 horas, depois da qual ficou bom da
paralisia. Perdeu completamente a lembrança de sua translação; crê-se ainda em St.-
Urbain e quer ir trabalhar nos campos. Não tem mais a moral que possuía, tornou-se
rixento, guloso e ladrão; responde grosseiramente. Em 1881 parece curado e sai do Asilo.
Depois de uma estada em casa de sua mãe, em Chartres, foi para Macon, para a casa
de um proprietário agrícola.
Tendo adoecido, é transferido para o Asilo Saint-Georges, perto de Bourg. Verifica-se
que ele ora se exalta, ora fica quase estúpido e imbecil.
Em 1883, parece curado; sai então de Saint-Georges, com um pecúlio e volta para sua
terra.
Chega a Paris, não se sabe como. É admitido, a princípio, em Saint-Anne e, finalmente,
em Bicêtre. A 17 de janeiro de 1884 tem novo e muito violento ataque, que se reproduz
nos dias seguintes, com acessos de toracalgia, e alternâncias de paralisia e contratura
dos lados esquerdo e direito. A 17 de abril, após ligeira crise, desaparece a contratura
do lado direito. Ele levanta-se no dia seguinte e julga-se a 26 de janeiro.
Durante os seis últimos meses de 1884, não apresentou nenhum fenômeno novo.
Modificou-se-lhe o caráter: Era ameno durante o período da contratura; fora dele,
indisciplinado, implicante e ladrão.
A 2 de janeiro de 1885, após uma cena de sonambulismo provocado, seguida de um
ataque, evade-se de Bicêtre, furtando roupas e dinheiro.
Passa algumas semanas em Paris e se alista na Infantaria de Marinha, indo para
Belfort. Comete roubo na caserna e vai a conselho de guerra. Impronunciado a 27 de
março, entra para o hospital. A 30 apresenta uma contratura de todo o lado direito, que
se dissipa ao fim de dois dias, ficando, porém, paralisado e insensível na metade do
corpo.
No hospital de Rochefort, tinha paralisia com insensibilidade do lado direito, e de sua
vida só conhece a segunda parte de sua estada em Bicêtre e a do hospital em que se
acha.
“Experimentaram nele a ação dos metais e do ímã; pôde-se por esse meio conduzi-lo
aos estados patológicos anteriores e, ao mesmo tempo, acordar a memória dos estados
psíquicos concomitantes.
Destarte, foi reconstituída por aqueles senhores, que lhe ignoravam, aliás, as
particularidades, a história de Luís V., e o inquérito a que procederam permitiu-lhes
79
Gabriel Dellane – A Reencarnação
verificar a perfeita autenticidade dos pormenores fornecidos pelo paciente, em cada um
dos estados, e de que perdia a lembrança, logo que voltava ao seu estado de momento.”
Essas alterações são obtidas (e é esse um ponto muito importante) por agentes físicos
que determinam modificações fisiológicas, as quais se revelam por transformações na
distribuição da sensibilidade e da motilidade.
Ao mesmo tempo em que ocorrem essas alterações físicas, produzem-se transformações
regulares do estado da consciência, tão constantes que, para fazer desaparecer, à vontade, tal
ou qual estado fisiológico, basta ao experimentador provocar, pela aplicação conveniente do
magneto, de um metal ou da eletricidade, tal ou qual modificação da sensibilidade e da
motilidade.
E esse estado de consciência é completo para o estado que abraça; memória do tempo,
dos lugares, das pessoas, dos conhecimentos adquiridos (leitura, escrita), movimentos
automáticos aprendidos (arte de alfaiate), sentimentos próprios e sua expressão pela
linguagem, pelo gesto, pela fisionomia; a concordância é perfeita.
É certo que os estados psíquicos e físicos contemporâneos registram-se no organismo,
onde ficam ligados de maneira indissolúvel.
Não se suponha que essa renovação integral das lembranças seja privilégio unicamente
dos sonâmbulos.
Em realidade, cada um de nós os conserva. Vou mostrar que as pessoas normais podem,
em certas circunstâncias, rever os acontecimentos da vida inteira, em seus ínfimos detalhes.
A memória latente
A sugestão durante o sono hipnótico não é o único processo que permite renovar a
lembrança do passado; normalmente, em certos casos de doenças, pôde-se verificar a
revivescência de períodos da vida anterior, completamente esquecidos em estado de vigília; é
assim que a ressurreição se produz em casos de febre aguda, excitação maníaca, êxtase, no
período de incubação de certas doenças do cérebro.
Não podendo estender-me a respeito desses exemplos particulares, parece-me
interessante assinalar o despertar de lembrança, que se produz normalmente, em seguida a
certas circunstâncias.
“Uma senhora, no último período de uma doença crônica, foi levada de Londres para
o campo. Lá lhe trouxeram a filhinha, que não falava ainda, e que foi reconduzida à
cidade, depois de curta entrevista.
A senhora morreu alguns dias depois e a filha cresceu sem se lembrar da mãe. Teve
ela ocasião de ver o quarto em que sua mãe morrera. Apesar de o ignorar, ao entrar
nesse quarto, estremeceu. Como lhe perguntassem o motivo da comoção, respondeu:
– Tenho a impressão nítida de já ter estado neste quarto. Havia neste canto uma
senhora deitada; parecia muito doente, inclinou-se sobre mim e chorou.
Um homem dotado de temperamento artístico muito notável foi com amigos a um
castelo do Condado de Sussex, que nunca se lembrara de ter visitado. Aproximando-se
da porta de entrada, teve a impressão extremamente viva de já a ter visto, e revia, não
só a porta, mas as pessoas instaladas no alto, e burros sob o pórtico. Impressionando-o
essa convicção singular, dirigiu-se a sua mãe, a fim de obter esclarecimentos a respeito.
Soube, então, que, com a idade de 16 meses, tinha sido conduzido a esse lugar, e trazido
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Gabriel Dellane – A Reencarnação
em um cesto, nas costas de um burro; ele tinha sido deixado embaixo, com os burros e
os criados, enquanto os mais velhos se instalaram para comer, acima da porta do
castelo.” lxv
É interessante assinalar que impressões, provavelmente não conscientes,
estereotiparam-se no cérebro dessa criança de 16 meses, e com bastante intensidade para
acordar muitos anos mais tarde e com maior fidelidade.
O sono anestésico, devido ao clorofórmio ou ao éter, pode produzir os mesmos efeitos
que a excitação febril:
“Um velho florestal vivera em sua mocidade nas fronteiras polonesas e só falava o
polonês. Depois, só habitara distritos alemães. Seus filhos garantem que durante 30 ou
40 anos não ouvira nem pronunciara uma palavra de polonês. Durante uma anestesia,
que durou perto de duas horas, esse homem falou, orou, cantou, apenas em polonês.” lxvi
Ainda mesmo no curso da vida normal, certas emoções violentas têm como resultado pôr
em ação, de repente, o mecanismo da memória, com intensidade realmente extraordinária.
Os dois exemplos seguintes podem dar-nos uma idéia do que se deve passar, muitas vezes, no
momento da morte, ou pouco depois a desencarnação.
“Há muitas descrições de afogados salvos de morte iminente, todas contestes num
ponto, o de que, no momento em que começava a asfixia, pareceu-lhes ver, num
instante, toda a vida em seus menores incidentes. Pretende um deles que a vida inteira
se lhe desdobrava em sucessão retrógrada, não como simples esboço, mas com
pormenores precisos, que formavam um como panorama de toda a existência, sendo
cada ato acompanhado do sentimento de bem ou de mal.
Em circunstância análoga, um homem de espírito notavelmente claro, atravessava
uma linha de estrada de ferro, quando um trem se aproximava em grande velocidade.
Mal teve ele tempo de deitar-se entre os dois trilhos e, enquanto o trem passava acima
dele, o sentimento do perigo fez-lhe vir à memória todos os incidentes de sua vida,
como se o livro do juízo lhe tivesse sido aberto diante dos olhos.” lxvii
Parece evidente, por conseguinte, diante dos exemplos citados, que todas as sensações
que experimentamos são registradas em nós e aí deixam traços indeléveis.
Sem dúvida nenhuma, esse imenso acervo de conhecimentos de toda a natureza não fica
presente à consciência, porque, como judiciosamente se tem observado, o esquecimento de
enorme quantidade de acontecimentos insignificantes é uma das condições da memória; mas
o que é muito notável é que o esquecimento não implica, de forma nenhuma, o aniquilamento
das lembranças.
A experiência nos mostra que tudo que age em nós se fixa para sempre nas profundezas
de nosso ser, de alguma sorte nos refolhos da consciência, e que todas as lembranças, ainda
aquelas que não podemos renovar, não deixam por isso de viver de maneira latente, e
constituem os fundamentos de nossa personalidade; cada lembrança, física ou intelectual,
contribui, por sua parte, para a edificação de nossa vida mental.
Em seu livro Névroses et idées fixes, Janet ilustra esta tese com grande número de
observações clínicas das mais demonstrativas. Seu método consiste em descobrir a idéia fixa,
muitas vezes ignorada pelo doente, e que é a causa de suas desordens mentais e físicas.
Vejamos o que ele diz sobre o assunto:
81
Gabriel Dellane – A Reencarnação
“Muitas vezes, a idéia fixa só pode ser posta em claro durante os ataques, os sonhos,
os sonambulismos, ou pelos atos subconscientes e as escritas automáticas. Em outras
palavras, essa idéia fica fora da consciência normal e, entretanto, não exerce menos, por
isso, uma influência preponderante, visto que é a origem da enfermidade do indivíduo.”
Ao imenso armazenamento de sensações visuais, auditivas, olfativas, tácteis,
cenestésicas, etc., que temos experimentado conscientemente, acrescentam-se ainda outras
impressões que entram em nós, por assim dizer, de maneira furtiva, e aí se fixam sem que o
saibamos; de sorte que, no dia em que ressurgem, parecem-nos fenômenos extranormais,
provenientes de faculdades superiores.
Criptomnésia
“Um Sr. Brodelbank perde uma faca. Seis meses depois, sem nenhuma preocupação
por essa perda, sonha que a faca está no bolso da calça, que ele tinha posto entre as
roupas usadas. Acordando, veio-lhe à idéia saber se seu sonho era exato; foi procurar a
calça e encontrou a faca no bolso.”
Trata-se, evidentemente, de uma lembrança esquecida, que surgiu durante o sono. O
mesmo se pode dizer da narrativa que se segue:
“Em sua obra Le Sommeil et les Rèves (O Sono e os Sonhos), conta o Prof. Delbœuf que,
em um sonho, o nome de Asplenium Ruta Muralis lhe pareceu um nome familiar. Ao
acordar, em vão procurou descobrir onde poderia ter visto essa denominação botânica.
Muito tempo depois descobriu o nome Asplenium Ruta Muralis escrito por ele próprio
numa coleção de flores e de fetos.”
No exemplo seguinte, há mais que simples evocação da memória. Parece que certo
número de impressões visuais foram registradas inconscientemente; depois, sob a influência
da atenção, o Espírito as encontra durante o sono. Eis o caso:
“Chegando ao Hotel Morley, às 3 horas de terça-feira, 29 de janeiro de 1889 – diz a
Sra. Bickford –, percebi que tinha perdido meu broche de ouro e supus que o havia
deixado na sala de provas, na Casa Swan e Edgar. Mandei indagar e fiquei desapontada
por saber que as buscas foram inúteis.
Estava muito contrariada e à noite sonhei que o encontrara em um número da Queen,
que estava na mesa, e via, em sonho, a página em que ele estava. Notei mesmo, uma das
gravuras dessa página.
83
Gabriel Dellane – A Reencarnação
Logo depois do almoço fui à Casa Swan e Edgar, e pedi os jornais, narrando às moças,
ao mesmo tempo, o sonho em que tinha revisto o broche.
Os jornais haviam sido retirados do quarto; encontraram-nos e, com grande espanto
das moças, eu disse: “Eis o em que está o meu broche” e, na página onde esperava, aí o
achei.”
Procurarei tirar conclusões de conjunto dessas observações, e veremos como elas
confirmam os ensinos do Espiritismo pelos Espíritos e os resultados experimentais obtidos
pelos sábios, há meio século, no mundo inteiro.
84
Gabriel Dellane – A Reencarnação
Capítulo VII
Alguns exemplos que acabo de apresentar, a respeito da memória, não passam de casos
particulares, tomados entre grande número de outros, o que nos leva a crer que toda ação
exercida sobre o ser humano aí deixa um traço indelével, e se, em geral, à memória ordinária
só ocorrem os fatos mais importantes da existência, não é menos verdade que os mais
simples acontecimentos ficam gravados em nós e podem reaparecer sob a influência de
causas diversas, normais ou provocadas.
Onde se faz esse registro das sensações? Em que parte de nosso ser se realiza ele? É este
um problema que ainda não foi resolvido, e é curioso que a Ciência, que nos deu o
conhecimento do mundo e de suas leis, seja impotente para penetrar nas profundezas do ser
humano.
Nem os fisiologistas nem os psicólogos são capazes de nos explicar um fato tão simples
como o sono; segundo Claparêde, existem 21 teorias do sono, o que prova, evidentemente,
que nenhuma é exata, visto que cada uma encara um só aspecto da questão. O mesmo sucede
com a memória.
Os sábios materialistas afirmam que ela está contida no sistema nervoso, mas lhes é
impossível indicar, de maneira precisa, quais as modificações desse sistema que se efetuam
no momento em que uma impressão penetra na massa nervosa, e como pode renascer para
produzir a memória.
Diz Maudsley que há, com efeito, nos centros nervosos, resíduos que provêm das reações
motrizes. Os movimentos determinados ou efetuados por um centro nervoso particular
deixam, como as idéias, seus resíduos respectivos, os quais, repetidos muitas vezes, se
organizam ou encarnam tão bem em sua estrutura, que os movimentos correspondentes
podem dar-se automaticamente.
Vê-se, aqui, o vazio, a imprecisão dos termos que mascaram mal o pensamento; aliás, o
próprio autor inglês o percebe, porque acrescenta:
85
Gabriel Dellane – A Reencarnação
“Quando dizemos um traço, um vestígio, um resíduo, o que queremos dizer é que fica
no elemento organismo certo efeito, ou qualquer coisa que ele retém e o predispõe a
funcionar de novo, da mesma maneira.” lxviii
Ribot convém que é impossível dizer em que consiste essa modificação. Nem o
microscópio, nem os reativos, nem a Histologia, nem a Histoquímica no-lo podem ensinar. lxix
Em suma, esses autores admitem que as moléculas da matéria viva que receberam a ação
de uma força exterior não vibram do mesmo modo que precedentemente; encontram-se em
novo estado de equilíbrio e, se um impulso da mesma natureza volta a exercer-se sobre elas,
produzir-se-á o movimento, desta vez com mais facilidade que a primeira, e se encarnará, por
assim dizer, na substância, à qual comunicará uma propriedade nova.
Ribot vê na associação desses movimentos de todas as partes do sistema nervoso uma
condição essencial da memória e cita certo número de fatos que parecem apoiar fortemente
sua maneira de interpretar esses fenômenos.
Assim, os movimentos da marcha exigem a participação de grande número de elementos
motores e nervosos que têm necessidade de ser coordenados, associados, a fim de
produzirem o deslocamento desejado. Entram em jogo células diferentes entre si, pelo
volume, pela forma, por sua posição nas diversas partes do eixo cérebro-espinal, pois que
estão espalhadas desde a extremidade inferior da medula até as camadas corticais.
Ribot assim resume suas observações:
“Julgamos da maior importância chamar a atenção para este ponto: a memória
orgânica não supõe, somente, uma modificação dos elementos nervosos, mas a
formação entre eles de associações determinadas para cada acontecimento particular, o
estabelecimento de certas associações dinâmicas que, pela repetição, se tornam tão
estáveis como as conexões anatômicas primitivas. A nossos olhos, o que importa como
base da memória não é somente a modificação imprimida a cada elemento, mas a
maneira pela qual muitos elementos se agrupam para formar um complexus.”
A memória psicológica propriamente dita sugere as mesmas reflexões, porque nossas
idéias se associam entre si segundo leis determinadas pela continuidade, pela semelhança,
pela diferença, etc.
Por outro lado, é preciso notar que uma dessas associações secundárias pode entrar, por
seu turno, em outros grupos, a fim de neles representar um papel diferente, porque as
relações dinâmicas criadas, por exemplo, para a marcha, podem servir, com outras
modificações, para a patinagem, a natação ou a dança.
É realmente na massa nervosa que se organizam essas associações e pode-se conceber
que seja esse o lugar de sua conservação? Não o creio e eis por que:
Se admitirmos, com Claude Bernard, que todos os movimentos produzidos no organismo
exigem a destruição da substância viva, o cérebro, que funciona com atividade ininterrupta,
deve renovar-se um número considerável de vezes durante a existência, de sorte que o
movimento imprimido a uma célula nervosa deve ir enfraquecendo cada vez mais, à medida
que aumenta o número das renovações desta célula; desde então, concebe-se mal como se
manteriam relações dinâmicas estáveis, em meio à perpétua alteração das moléculas, que
constituem milhões de pequenos organismos, formadores da trama da substância nervosa; e
assim, no fim da vida, quando essas reconstituições se realizaram já milhares de vezes, a
lembrança dos primeiros anos deverá ter desaparecido completamente.
86
Gabriel Dellane – A Reencarnação
Ora, a observação demonstra que, nos velhos, são as lembranças da mocidade as que
mais persistem. Essa anomalia seria inexplicável se, realmente, fosse o sistema nervoso o
registrador de todas as sensações.
É aqui que intervém o ensino espírita. Sabemos que a alma humana está associada a uma
substância infinitamente sutil, à qual Allan Kardec deu o nome de perispírito. Esse corpo
espiritual existe durante a vida e sobrevive à morte. É ele o molde no qual a matéria física se
incorpora, ou, mais exatamente, o plano ideal que contém as leis organogênicas do ser
humano. O perispírito está ligado ao corpo por intermédio do sistema nervoso; toda
sensação, que abala a massa nervosa, desprende essa espécie de energia, à qual se deram os
mais diversos nomes: fluido nervoso, fluido magnético, força ectênica, força psíquica, força
biológica... Essa energia age sobre o perispírito, para comunicar-lhe o movimento vibratório
particular, segundo o território nervoso que foi excitado (vibração visual, auditiva, táctil,
muscular, etc.), de maneira que a atenção da alma seja acordada e que se produza o
fenômeno da percepção; desde esse momento, essa vibração faz parte, para sempre, do
organismo perispiritual, porque, em virtude da lei da conservação da energia, ela é
indestrutível. Sem dúvida, poderá desaparecer no campo da consciência, mas, como vimos,
persiste inalterada nas profundezas dessa memória latente a que hoje se chama inconsciente.
Foram as experiências espíritas que estabeleceram a certeza absoluta desse corpo espiritual,
que se torna visível durante o desdobramento do ser humano e que demonstra a sua
persistência depois da morte, pelas aparições e, sobretudo, pelas materializações.
Esses últimos fenômenos, que reconstituem momentaneamente o ser humano, tal como
existia na Terra, física e intelectualmente, provam, com luminosa evidência, que é ele quem
organiza e mantém o corpo humano e que, segundo a clara expressão de Claude Bernard, dele
contém a idéia diretriz, a estrutura e as funções. É nele que reside a última razão das funções
biológicas e psicológicas de todos os seres vivos.
Porque o perispírito é indestrutível, conservamos, depois da morte, a integridade de
todas as nossas aquisições terrestres, e a memória acorda, então, completa, nos seres
suficientemente evolvidos, por maneira que podemos abraçar o panorama de nossa passada
existência.
Veremos mais adiante as conseqüências que daí resultam para a vida espiritual e por que
a recordação das vidas anteriores não é igualmente renovada para todos os Espíritos que
habitam o Espaço.
É ainda difícil, na hora atual, saber com exatidão as condições da vida de além-túmulo;
entretanto, as numerosas comunicações obtidas há meio século, no mundo inteiro, permitem-
nos fazer uma idéia geral do estado psicológico da alma depois da morte.
Sabemos que a separação entre o espírito e a matéria produz um período de perturbação,
durante o qual a alma não tem consciência exata de sua nova situação. Ela fica como em um
sonho, e ora ignora todo o mundo material que acaba de deixar, ora tem vagas percepções,
que, misturando-se com suas lembranças, lhe dão uma espécie de existência anormal,
comparável ao delírio que acompanha certas doenças terrestres. É nesta categoria que é
preciso classificar esses Espíritos que ainda se crêem vivos e cujas manifestações dão, por
vezes, lugar aos fenômenos de “assombração”, tantas vezes verificados.
Evocando-se os seres que se acham nesta situação, só se obtêm, as mais das vezes,
respostas incoerentes; pouco a pouco, porém, esta espécie de doença perispiritual tem fim,
quer normalmente, quer sob a influência dos Espíritos protetores, e a alma acorda, então, em
seu novo meio, e as lembranças da vida terrestre podem renascer em toda a sua
integralidade.
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Gabriel Dellane – A Reencarnação
Temos verificado que a memória se inscreve no perispírito por camadas sucessivas, por
assim dizer, pois que nos fenômenos de regressão da memória, assinalados por Pitres,
Bourru, Burot, Janet e outros, cada idade ressuscita todos os acontecimentos
contemporâneos, e os de uma época, 19 anos por exemplo, estão associados de maneira
indissolúvel: não se confundem nem com os das idades anteriores nem com os que se lhes
seguem.
Melhor ainda, em certos pacientes, como Luís V., o estado fisiológico é inseparável do
psicológico, que lhe está associado; isso nos permite compreender como, durante uma
materialização, o Espírito, tornando a criar, momentaneamente, um corpo físico, que é a
representação do que possuía em um período de sua vida terrestre, pode fazê-lo por simples
ato de sua vontade, isto é, por auto-sugestão.
É possível comparar a ação do corpo espiritual à de um campo de força, magnética ou
elétrica, porque se sabe que estes podem agir sobre a matéria por meio de linhas de força que
formam desenhos mais ou menos complicados.
É possível, pois, imaginar que todos os órgãos terrestres estão representados no
perispírito; que, no momento da materialização, é a energia fornecida pelo médium que põe o
mecanismo em ação e que essa matéria exteriorizada, a que se dá o nome de ectoplasma e
que emana igualmente do médium, vem incorporar-se mecanicamente nesse esboço fluídico
ao qual obedece passivamente, se a exteriorização da matéria não é contrariada por
influências perturbadoras.
Concebe-se facilmente que um fenômeno tão anormal seja acompanhado de
perturbações mais ou menos pronunciadas, no que concerne ao estado psicológico, e que,
durante as aparições tangíveis, o ser que se manifesta tenha, nos primeiros tempos, grande
dificuldade em servir-se do seu cérebro perispiritual, que acaba de ser profunda e
subitamente modificado.
Esses reparos ajudam-nos a compreender por que as aparições de vivos ou as que se
produzem pouco tempo depois da morte são, em geral, pouco loquazes, e muito avaras de
ensinamentos, se chegamos a interrogá-las. O mesmo não acontece quando tratamos com
Espíritos que foram, pouco a pouco, se habituando a esse novo estado, porque neles se
verifica que as faculdades intelectuais vão retomando seu funcionamento normal, tal como
era na Terra. Foi o que se pôde observar com Katie King que, nos últimos tempos de suas
aparições, contava aos filhos de Crookes os acontecimentos de sua vida passada na Índia, ou
com Estelle Livermore, que, no fim de 200 sessões, pôde escrever as mensagens em francês,
língua que conhecia perfeitamente, enquanto a médium Kate Fox completamente a ignorava.
Essas verificações experimentais são para mim de primeira ordem, visto mostrarem que
o Espírito possui o poder de organizar a matéria; que nele residem as faculdades intelectuais,
e não no corpo físico, então desaparecido e com os elementos dispersos na Natureza.
Se a memória da última vida terrestre é renovada depois da morte, o mesmo não se dá,
em muitos casos, com as existências anteriores, e os inimigos do Espiritismo procuram
servir-se desse argumento para combater a teoria da reencarnação. Mas ainda aqui a
observação dos fatos nos permite compreender essa anomalia aparente.
Vimos que existem séries de memórias superpostas e que as camadas superficiais são
acessíveis à consciência. Se quisermos penetrar mais profundamente no armazém das
lembranças, é necessário mergulhar o paciente no estado sonambúlico, donde resulta
desprender-se parcialmente a alma do corpo, dando ao perispírito o movimento vibratório
que lhe é próprio. E assim como em um raio de luz branca existem comprimentos de ondas
diferente, que vão muito além da parte visível, também no corpo espiritual se verificam zonas
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Gabriel Dellane – A Reencarnação
de intensidade vibratória prodigiosamente diversas. As camadas perispirituais das vidas
anteriores têm um mínimo de movimentos vibratórios, que as torna inconscientes para os
Espíritos pouco evolvidos, de sorte que estes ignoram se viveram anteriormente e sustentam,
com a maior boa-fé, que só existe uma vida terrestre. É possível, porém, despertar-lhes as
recordações, magnetizando-os, e então se desenrola diante deles o panorama do passado.
Que não se acredite seja esta explicação inventada pelas necessidades da causa. Ainda
aqui me conservo no terreno experimental e é bem notável que fossem nossos instrutores
espirituais que nos tivessem colocado na pista desse descobrimento.
Em uma época em que não se conheciam as experiências sobre a regressão da memória,
já ensinava Kardec que, no Espaço, o Espírito pode ser magnetizado como na Terra, e por
esse motivo reconquistar a plenitude de uma memória integral. Eis, com efeito, o que lemos
na Revue Spirite, páginas 175 e seguintes:
“Trata-se do Espírito de um médico muito estimado, o Doutor Cailleu; conta ele, pelo
médium Morin, que, apesar de ter saído havia muito da perturbação, se achou um dia
em um estado semelhante ao de um sono lúcido.
Diz ele: Quando meu Espírito experimentou uma espécie de entorpecimento, achava-
me, de alguma sorte, magnetizado pelo fluido de amigos espirituais; devia daí resultar
uma satisfação moral que – explicam eles – é a minha recompensa e, além disso, um
estímulo a que continue na estrada que segue meu Espírito, há muitas existências já. Eu
estava, pois, adormecido por um sono magnético espiritual; vi o passado formar-se em
um presente fictício; reconheci individualidades desaparecidas no correr dos tempos e
que não tinham sido mais que um e único indivíduo. Vi um ser começar uma obra
médica, outro mais tarde continuar a obra, apenas esboçada pelo primeiro, e assim por
diante. Cheguei a ver, em menos tempo do que vos estou a falar, formar-se, no decorrer
das idades, aumentar e tornar-se ciência, o que, no princípio, não passava dos primeiros
ensaios de um cérebro ocupado com o estudo do alívio do sofrer humano. Vi tudo isso, e
quando cheguei ao último destes seres que tinham trazido, sucessivamente, um
complemento à obra, reconheci-me então. Aí tudo se apagou e voltei a ser o Espírito,
ainda atrasado, do vosso pobre doutor.”
Aqui, o ensino de nossos guias espirituais ultrapassou a Ciência, e a narrativa nos prova
que as leis do magnetismo são as mesmas, tanto no Espaço como na Terra. Reciprocamente,
se magnetizarmos um paciente terrestre, de forma a exteriorizar seu corpo fluídico, e se
continuarmos, no Espírito desprendido, a ação magnética, por maneira que atinjamos as
camadas profundas do perispírito, poderemos renovar a memória das vidas anteriores desse
paciente.
Foi o que fizeram os espíritas espanhóis, como é fácil de verificar, reportando-nos aos
relatórios do Congresso Espírita de 1889.
Mais tarde, por indicação de Léon Denis, o Coronel de Rochas empenhou-se na mesma
senda e obteve resultados interessantes, que estão consignados em seu livro Les Vies
Succesives. Infelizmente, estas experiências não estão ao abrigo de certas críticas,
principalmente no que concerne à sugestão, que o magnetizador exerce, mesmo
involuntariamente, nos pacientes. Estou, entretanto, persuadido de que chegaremos a ficar
libertos de tais causas de erro e poderemos adquirir novas provas da grande lei de evolução
que rege o Universo inteiro. Tomando, então, em consideração esse poder que possui o corpo
perispiritual de reter para sempre todas as influências que agem nele, durante suas
passagens pela Terra, teremos uma explicação clara e simples dos problemas da
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Gabriel Dellane – A Reencarnação
hereditariedade, que a Ciência contemporânea é impotente para resolver. Este será sempre
um serviço importante que o Espiritismo terá feito à Humanidade e nossos sucessores lhe
prestarão, enfim, a homenagem que lhe é justamente devida.
Se é perfeitamente exato, como veremos, que se pode levar a regressão da memória até
às vidas anteriores, em certos pacientes sonambúlicos, não é menos certo, infelizmente, que o
estudo desta questão está eriçado de dificuldades de toda espécie.
Somos obrigados, nestas pesquisas, a estar em guarda, em primeiro lugar, contra uma
simulação sempre possível, se temos que lidar com indivíduos profissionais; em segundo
lugar, mesmo com sonâmbulos perfeitamente honestos, convém desconfiar de sua
imaginação, que corre muitas vezes livremente, forjando histórias mais ou menos verídicas, a
que o Prof. Flournoy deu o nome de romances subliminais. Essa espécie de personificações
de indivíduos imaginários foram freqüentemente produzidas, entre outros, pelo Prof. Richet,
que as designou com o nome de objetivação de tipos; sabemos que, por auto-sugestão, é
possível a um paciente, mergulhado naquele estado, imaginar-se tal ou qual personagem e
compô-lo com tão grande luxo de atitudes que pareceria estarmos realmente diante de uma
individualidade verdadeira.
Outras causas de erro, segundo os casos, podem ainda intervir, se o paciente possui uma
faculdade de clarividência ou criptestesia, que lhe permita tomar conhecimento dos
pensamentos dos assistentes, ou se é psicômetra, de ressuscitar, com grande
verossimilhança, cenas que se passaram muito longe dele e em épocas pretéritas.
Vê-se que é absolutamente necessário examinar as narrativas com o mais severo método
crítico, se não nos quisermos deixar arrastar a apressadas conclusões, que o futuro não
tardaria a desmentir. Submetendo-me a essa disciplina é que analisarei os casos seguintes,
depois de haver eliminado certo número de outros, que não me pareceram apresentar
garantias suficientes de autenticidade.
Vejamos uma categoria em que a boa-fé dos experimentadores me parece certa. Esses
fatos foram, pela maior parte, observados espontaneamente por espíritas e como diferem das
pesquisas sistemáticas de Flournoy e de De Rochas, vou relatá-los em primeiro lugar, porque
lhes cabe a prioridade.
No Congresso de 1900, Estevan Marata fez a seguinte interessante comunicação, a qual
mostra como se poderia chegar, por vezes, a fazer renascer, no estado sonambúlico,
lembranças tomadas às vidas anteriores:
“Foi em 1887; havia na Espanha um Grupo Espírita chamado “Paz”, cujo fundador e
presidente era Fernandez Colavida, cognominado, do outro lado dos Pireneus, o Kardec
espanhol. Nas suas sessões, o Grupo fazia o estudo e a fiscalização dos problemas
espíritas. Minha mulher e eu éramos, nessa época, membros desse Grupo.
Ora, um dia, Colavida quis experimentar se podia provocar em um sonâmbulo a
lembrança de suas existências passadas. Magnetizou o médium em alto grau e mandou
que dissesse o que tinha feito na véspera, na antevéspera, uma semana, um mês, um ano
antes, levando-o, assim, até à infância, que ele explicou com todos os pormenores.
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Gabriel Dellane – A Reencarnação
Encaminhado sempre, o médium contou sua vida no Espaço, a morte de sua última
encarnação e chegou a quatro encarnações, de que a mais antiga era uma existência
inteiramente selvagem. É preciso notar que, em cada existência, os traços do médium se
modificavam completamente. Para conduzi-lo ao estado habitual, o magnetizador fê-lo
voltar até à existência presente, e o acordou.
Não querendo ver-se acusado de ter sido enganado, fez ele magnetizar o médium por
outra pessoa, que lhe devia sugerir que as existências passadas não eram verdadeiras.
Apesar dessa sugestão, o médium expôs de novo as quatro existências, como o fizera
alguns dias antes.
Obtive o mesmo resultado com outro médium – diz ele –; magnetizei minha mulher
até ao sonambulismo, para comprovar o caso de uma poesia que lhe tinha sido
oferecida por D. Amália Domingo Sóler, na qual um Espírito lhe anunciava um fato
acontecido em existência anterior; o caso foi confirmado por minha mulher nesse
estado sonambúlico.
Creio que se alguém quiser empreender esses estudos pode chegar aos mesmos
resultados, mas é preciso rodear o médium de todos os cuidados possíveis, porque lhe
podem suceder acidentes muito perigosos. Não leveis muito longe vossas pesquisas e só
experimenteis com bons sonâmbulos, habituados a separarem-se do corpo,e a só
ficarem unidos pelo perispírito.”
É claro que não temos aqui nenhuma demonstração efetiva da realidade dessas
retrocognições. Demais, não houve qualquer revelação verificável, relativamente a essas
vidas anteriores, de sorte que nada nos autoriza a ver aí uma ressurreição verídica do
passado.
Chegamos, agora, a experiências efetuadas em outros meios.
Revelação imprevista
Parece evidente que deve ser eliminada, por parte do Senhor Gastin, toda e qualquer
sugestão, mas como a cena se passa em um meio espírita, no qual são as teorias de
reencarnação familiares, pode-se supor que houvesse irrupção temporária de idéias
subconscientes, que se exteriorizaram sob formas visuais, em relação com aquela teoria.
Entretanto, teria grande valor a confirmação da narrativa pela segunda paciente, se ela não a
tivesse ouvido de sua irmã. O mesmo com a escrita mediúnica do tio de Gastin.
Enfim, não tendo sido fornecida qualquer prova sobre aquelas anterioridades, sou
forçado, sem negar a possibilidade de uma revelação exata, a classificar esse fato entre os que
não oferecem provas suficientes de sua realidade.
O mesmo se dá com o caso seguinte.
Em sua interessante obra La Survivance Humaine, página 535, Corniller refere uma das
sessões que teve com sua médium Reine, jovem modelo, completamente ignorante das
teorias espíritas.
“Ei-los – disse ela – agora em contemplação diante do lago e conversando... É tão
prodigiosa a realidade, que nos parece estar na conversa. A lucidez da médium se torna
cada vez mais clara. A vista do lago azul faz-lhe renascer a lembrança de suas vidas
anteriores na Itália e no Oriente. Ela relata certos incidentes aos seus dois
companheiros, faz descrições, comparações.
Conta sua vida em Nápoles e em Capri. Fala da Sicília, descreve aspectos do Vesúvio
com precisão extrema. Em Capri, conheceu uma casa, mais tarde ocupada por Vetellini,
o guia da médium; dá-lhe a situação exata; faz observações sobre as cenas da Natureza;
viu o mar efervescente, quando as lavas do Vesúvio nele mergulhavam; notou a falta
absoluta de pássaros nesse belo céu. Depois se espanta que o velho amigo nunca tivesse
a curiosidade de voltar lá após se tornar Espírito.
Isto te seria tão fácil! Por que não vais? Gostas mais dos bancos e da bolsa; pois bem,
iremos juntos. Eu te levarei; conheço bem o Egito... E ela aí retorna, ao tempo em que
era curador. No Egito, doutor da alma e do corpo. Nessa vida, estava com Vetellini; eram
amigos, ele mais velho e a protegia. Nota que, no Oriente, em razão das condições
atmosféricas, a vida do astral é perceptível. Os encarnados, um tanto adiantados,
sentem, por assim dizer, constantemente, o contacto dos desencarnados.
93
Gabriel Dellane – A Reencarnação
Notou Reine, muitas vezes, que não poderia nunca pôr o Senhor Corniller ao corrente
de tudo isso. Vetellini a tranqüiliza e lhe diz que ele a fará falar alto. Ela não o crê muito.
Parece-lhe impossível dizer em alta voz, em Paris, o que viu aqui na América.
Vetellini já tinha dito em outra sessão que Reine vivera no Egito. Tendo-se-lhe posto
na mão uma pedra de um colar desse país, ela declarou: Isso vem do Egito. É
psicometria?”
Aqui, ainda, nenhuma indicação precisa sobre as pretendidas vidas anteriores, e as
descrições de Reine poderiam, em rigor, ser o fruto de leituras antigas, ou de conversas
ouvidas, ou mesmo a ação clarividente da paciente. Isto nos leva à maior reserva na
apreciação desse curioso fenômeno.
Parece que, com os casos seguintes, damos um pequeno passo à frente em algo de mais
demonstrativo.
Tomo a narrativa abaixo da brochura publicada por Henri Sausse, Des Preuves, em Voilà,
pág. 32. Conhecendo pessoalmente o autor, de longa data, posso garantir sua absoluta boa-fé
e a veracidade dos seus relatos.
“Vindo a nossas reuniões, a Sra. Conte Galix se fazia acompanhar da Srta. Sofia, sua
dama de companhia.
Esta, notando a facilidade com que os médiuns eram postos em sonambulismo, e o
estado de bem-estar em que se encontravam, ao acordar, pediu-me que procurasse
adormecê-la para ver se ela possuía, em estado latente, faculdades que nos pudessem
ser úteis.
No fim de uma sessão, disse à Srta. Luísa, antes de despertá-la:
– Ajude-a a desprender-se; vou adormecer a Srta. Sofia.
Ela me respondeu, nervosamente, em voz baixa:
– Não, não quero. Não quero, mas faça como entender.
Fiquei surpreendido com o tom no qual foi feita a observação, e não insisti. No dia
seguinte, revi Luísa e, sem lhe dizer o fim de minha visita, coloquei-a em sonambulismo
e perguntei-lhe a causa de sua conduta, na véspera. Ela se obstinou, por muito tempo,
em guardar um segredo que não me dizia respeito, mas, por insistência minha, acabou
por declarar:
– Opus-me porque essa pessoa foi a causa de minha desgraça em passada existência;
nós nos juramos um ódio eterno; eu a desprezo, odeio, e nunca lhe perdoarei; nunca,
ouviu, todo o mal que me fez.
– Creio – disse-lhe eu – que não foi só o acaso que as colocou no mesmo caminho,
mas os nossos amigos, para proporcionar-lhes o meio de reconciliação.
Ela revoltou-se contra essa idéia, mas, à força de paciência e de boas razões, acabei
por fazer com que ela prometesse ajudar-me a adormecê-la e lhe perdoasse.
Na sessão seguinte, não contei nada a ninguém dessa última entrevista. Depois de
haver adormecido simultaneamente Luísa, Maria e Molaret, pus este em meu lugar, à
direita de Luísa, e Maria à sua esquerda; colocando-me em frente de Sofia, provoquei
nela o sonambulismo. Neste momento, Maria e Molaret tomaram Luísa pela cintura e
lhe disseram:
94
Gabriel Dellane – A Reencarnação
– Vamos, Luísa, coragem, é preciso ajudá-la a desprender-se; é preciso, também,
perdoar-lhe, é preciso esquecer. Sim, perdoe e esqueça; são nossos amigos que lhe
pedem; é preciso que este ódio acabe e que um perdão sincero as reconcilie.
Sofia acabava de adormecer, por seu turno; Luísa, então, tomou-lhe a mão e lhe disse:
– Veja e lembre-se.
Sofia ficou um momento estupefata, assombrada; pôs-se depois a chorar
copiosamente e disse:
– Não. V. não me pode perdoar; eu lhe fiz muito mal para que V. possa esquecer. Onde
ocultar-me? Tenho vergonha de mim mesmo.
E chorava a ponto de inundar o corpete. Luísa e os outros choravam também. Enfim,
disse Luísa:
– Pois que nossos amigos o pedem, que tudo se apague deste passado sinistro, que
tudo seja esquecido.
E levantando-se, espontaneamente, os quatro médiuns ficaram enlaçados num forte
abraço, chorando agora de alegria.
Custei muito a trazer os quatro ao sentimento da realidade e fazê-los voltar, para os
acordar. Os outros membros do grupo seguiram esta cena patética, sem a compreender.
Tive que lhes dar a chave do enigma. Era o fim de um ódio póstumo.
Observei, aliás, dois outros casos semelhantes.
Em setembro de 1887, em uma sessão, um dos Espíritos que nos ajudavam em
nossos trabalhos, o amigo Joseph, nos disse:
– Venho dar-lhes meus adeuses; não voltarei mais a estas reuniões, onde fui tão
fraternalmente acolhido; vou reencarnar.
– Se quisesse dizer-nos em que condições, poderíamos procurá-lo, para ainda nos
ocupar do amigo...
– Não, é inútil; seria contra a lei de Deus. Se o mistério de nosso passado nos é oculto,
é que há para isso motivos sérios e não podemos infringi-lo, procurando descobrir o
véu que nos oculta o nosso destino.
Foi sua última visita.”
Se não conhecêssemos exemplos de contágio psíquico, produzido entre pacientes, no
estado sonambúlico, poderíamos classificar este fato de reconhecimento recíproco, entre as
boas provas da reencarnação.
Infelizmente, ainda aqui, nenhuma informação precisa nos foi dada sobre as vidas
anteriores dos dois pacientes, o que nos deixa em indecisão e não permite nos pronunciemos
de maneira absoluta sobre o valor desse reconhecimento mútuo.
A reencarnação na Inglaterra
O autor começa por dizer que, na Inglaterra, a maioria dos espiritistas recusam acreditar
na reencarnação, porque os médiuns, em transe, declaram, não que a reencarnação é
certamente um mito, mas que não têm nenhuma noção a respeito. Além disso, os homens
acham a morada da Terra tão triste, que não têm vontade de voltar para ela. Enfim, a maioria
dos espiritistas guardam reservas e acham que ainda não há provas suficientes.
“Eu era do número destes últimos – continua ele – e rejeitava aquele ponto de
doutrina com tanto mais energia, quanto, durante muito tempo, os Espíritos que se
manifestavam por minha mediunidade lhe eram francamente opostos.
Mas, há uns três anos, um grupo de Espíritos, em nosso Centro, que é particular,
proclama que a reencarnação não é uma teoria, mas um fato.
Quando recobrei os sentidos, na primeira vez, e me fizeram saber o que eu tinha dito,
protestei, vivamente, contra a escolha de mim, adversário decidido, para defender tal
teoria. Eles voltavam, entretanto, com tal insistência, que acabei por lhes perguntar:
– Podeis prová-lo?
Responderam:
– Deixe-nos, primeiro, mostrar quem nós somos e, quando tiverem suficiente
confiança em nós, terminaremos nossa obra.
Deram, então, tais provas de identidade e de conhecimento do passado, do presente
e, em certos casos, do futuro; prestaram aos membros deste pequeno Centro tais
serviços, que uma plena confiança lhes foi outorgada.
Prometeram eles, então, pôr-nos em relação com pessoas que havíamos conhecido
em precedente existência e mostrar-nos cenas de nossa vida passada, que
reconheceríamos. Uma tarde, descreveram-nos uma senhora, dizendo-me que eu a
encontraria dentro em pouco. Dez dias mais tarde, fui a uma praia de banhos, onde
nunca tinha ido, e tomei um apartamento por correspondência.
À minha chegada, disse a hoteleira que havia na casa uma senhora que esperava
minha chegada; era estranha no lugar e viera dois dias antes ocupar um apartamento.
Declarara que tinha muitas vezes sonhos, nos quais via pessoas que devia encontrar em
seguida. Assim – acrescentou – espero esta semana M. W., que não conheço. Não sei
onde, nem quando, mas sei que isto sucederá.
Uma prova bem mais surpreendente foi dada a outro membro do círculo. Uma
senhora foi apresentada a um senhor e logo sua memória lhe retraçou uma outra
existência, na qual ela o tinha conhecido. O reconhecimento foi recíproco, porque ele
sorriu e disse:
– A senhora se lembra de mim. Se é assim, que cada um de nós escreva, à parte, o
nome que tivemos.
96
Gabriel Dellane – A Reencarnação
Foi o que fizeram; depois trocaram as folhas de papel onde tinham inscrito os nomes.
Eram idênticos. Se não há aí uma prova, que me forneçam outra explicação.
Poderia citar, ainda, outros casos, mas prefiro ficar naquele. Por que os Espíritos que
demonstraram dizer a verdade em todos os outros pontos, nos haviam de enganar
nesse?”
As vidas sucessivas
Tal é o título de uma obra publicada em 1911 pelo Coronel de Rochas, antigo
administrador da Escola Politécnica. O autor é muito conhecido pelas numerosas pesquisas
que fez sobre a exteriorização da sensibilidade, os estados superficiais e profundos da
hipnose e, em último lugar, por suas experiências concernentes à memória pré-natal. Nesta
obra, relata as experiências que realizou de 1892 a 1910, com 19 pacientes, nos quais
procurou acordar, mergulhando-os em estados magnéticos cada vez mais profundos, a
lembrança de suas vidas anteriores.
Seu processo consistia em fazer passes longitudinais, a fim de adormecer profundamente
os pacientes, e fazer-lhes sugestões, por maneira que despertassem neles as recordações da
vida atual até o nascimento; levando mais longe a experiência, procurou obter a revelação
das existências que lhes teriam precedido a atual.
Todos os pacientes fizeram descrições mais ou menos verossímeis de vidas anteriores.
Infelizmente, na maioria dos casos, foi impossível obter a certeza dessas visões
retrospectivas. O autor não procurou precisar, suficientemente, os nomes, as datas e os
lugares onde se teriam desenrolado essas visões regressivas.
Creio que se o Sr. de Rochas tivesse conhecido e praticado melhor as experiências do
Espiritismo, teria podido tirar grande fruto de seu real poder fluídico, pedindo aos seres
desencarnados que o ajudassem, e por seu turno, agindo sobre a alma do paciente, quando
exteriorizada, pois que nesse período se produz a renovação da memória integral.
Rochas não foi mais feliz em outra tentativa em sentido inverso, a de fazer prever, pelos
sensitivos, o que lhes deveria acontecer mais tarde.
Para que o sonâmbulo voltasse ao estado normal, Rochas empregava passes transversais
e os continuava depois do despertar, o que levava o paciente a outro estado, onde se dizia
que ele previa o futuro.
Creio que, neste caso, a sugestão exercida pelo magnetizador seria verdadeiramente a
causa eficiente, porque a conexão entre ele e seus pacientes era sempre muito íntima, o que
deixa supor que sua ação mental se transmitia àqueles com quem operava, com a maior
facilidade.
De Rochas faz notar, com muita justeza, que, estando as idéias de inferno e purgatório
muito espalhadas em todos os meios em que foi buscar seus pacientes, é de espantar que
nenhum deles lhes fizesse menção, quando se achava entre duas pretendidas encarnações.
Vamos ver outro experimentador, mais feliz que o Sr. de Rochas, pois que, uma vez, ao
menos, obteve pormenores exatos acerca de uma vida anterior de sua paciente.
97
Gabriel Dellane – A Reencarnação
A médium Helena Smith
Em seu livro Des Indes à la planète Mars, Flournoy, professor de Psicologia da Faculdade
de Ciências de Genebra, fez um importante e completo estudo das faculdades de uma
médium, a quem ele chama Senhorinha Helena Smith.
É digno de relevo que essa moça, de boa educação, de uma sinceridade e boa-fé absoluta,
que se prestara, gratuitamente, durante anos, à investigação dos sábios, tivesse apresentado
personificações imaginárias ao lado de outros fatos nitidamente espíritas.
Em verdade, Flournoy esforçou-se por explicar todos os fenômenos pela auto-sugestão
da médium, a qual, muito sensível, teria sido levada, subconscientemente, em seus sonhos, a
imaginar que não se encontrava na posição social que lhe competia, de sorte que,
freqüentando Centros Espíritas, onde são correntes as idéias de reencarnação, teria
sucessivamente e subliminalmente, isto é, durante seus períodos de inconsciência, forjado
dois romances, pelo menos, relativos às suas vidas anteriores.
Um dos seus romances a representa como a reencarnação da Rainha Maria Antonieta, e o
outro como a mulher de um príncipe hindu, que vivia no XIV século e teria reinado no Kanara.
Uma terceira criação hipnóide é relativa ao planeta Marte, do qual a Srta. Smith dá
descrições um tanto fantasistas; mais, ainda, ela teria feito conhecer a linguagem dos
habitantes desse nosso mais próximo vizinho.
Flournoy, muito habilmente, mostrou a gênese provável dessa suposta linguagem
marciana e provou, pela análise dos textos, que não passava, em realidade, de uma imitação
da língua francesa e que só os sinais representativos das letras tinham verdadeira
originalidade. Mas esta não ultrapassa a que os alunos podem produzir em classe, quando
imaginam alfabetos secretos para se corresponderem.
Reconheço, também, que a crítica de Flournoy relativa à reencarnação na Srta. Smith da
infortunada rainha de França, é muito justificada, porque as lembranças relativas a esse ciclo
real estão cheias de anacronismos e a escrita da pretendida personalidade de Maria
Antonieta nada tem de comum com os textos que nos ficaram.
Além disso, quanto aos acontecimentos históricos, como é fácil encontrá-los por toda
parte, não se lhes pode dar grande valor, pois que a memória subliminal registra grande
número deles pelas leituras, pelas peças de teatro, pela conversa.
Esse reparo aplica-se a todos os casos do mesmo gênero, e quando se sabe com que
fidelidade a memória sonambúlica conserva os clichês visuais ou auditivos, deve-se, em bom
método, atribuir esses conhecimentos às aquisições normais da vida corrente e não a
lembranças de uma existência anterior.
Uma exceção deve ser feita, entretanto, quando se trata de acontecimentos históricos,
que não se acham relatados nos manuais comuns de história nem nos dicionários históricos
ou biográficos, mas tão-só em alguns documentos ignorados do público que, para os
descobrir, necessita laboriosas pesquisas, e dos quais o paciente não pôde ter conhecimento.
Se a esses informes precisos, relativos a uma civilização não européia, se juntarem
descrições da região e reminiscências da língua que foi aí empregada, a probabilidade, então,
para que esses conhecimentos sejam devidos a lembranças de uma vida passada torna-se
muito grande. Eis por que vou narrar, em síntese, aquilo a que Flournoy chama o ciclo hindu
de Helena Smith.
Um reparo preliminar deve ser feito: é que essa ressurreição do passado se produziu no
curso de numerosas sessões, sem nenhuma sugestão prévia dos assistentes, e que o sono
98
Gabriel Dellane – A Reencarnação
sonambúlico se apresentava espontaneamente na paciente, quer no curso das sessões, quer
durante a vida normal, e principalmente de manhã, ao despertar. As visões reproduziam,
então, as cenas da vida anterior e realizavam-se por alucinações visuais ou auditivas.
Contentar-me-ei em fazer aqui, por falta de espaço, um muito curto resumo do ciclo
hindu, enviando o leitor, quanto aos pormenores, à obra indicada.
Conta Flournoy, nesse capítulo, como sua médium Helena Smith, pretendendo ser a
reencarnação da princesa hindu Simandini, imita sua personagem, do modo mais realista,
mais vivo.
“Ela assenta-se no chão, com as pernas cruzadas ou meio estendidas, o braço ou a
cabeça indolentemente inclinados sobre o esposo Sivrouka. A religiosa e solene
gravidade de sua prosternação, quando, depois de haver por muito tempo balançado a
caçoleta fictícia, cruza no peito as mãos estendidas e se inclina por três vezes, batendo
com a fronte no solo; suas melopéias lentas e dolentes; a agilidade dos movimentos,
quando se diverte com seu macaco imaginário, e o acaricia, e o excita, e o censura,
rindo; toda essa mímica e esse falar exótico têm tal cunho de originalidade, de
naturalidade, que se indaga, com espanto, donde virá a essa jovem das margens do
Lemano tal perfeição de jogo.
Se só se tratasse – diz Flournoy – de pantomima hindu, o mistério seria menor:
algumas narrativas ouvidas na escola ou lidas em folhetins poderiam explicar, em rigor,
as diversas atitudes, o caráter musical dos cantos e as aparências sanscritóides. É um
trabalho que as faculdades subliminais podem executar de modo ainda mais perfeito,
entre os indivíduos dispostos ao automatismo.
Mas... acrescenta o sábio psicólogo...
Há dois pontos que complicam o romance hindu e parecem desafiar, até aqui, pelo
menos, qualquer explicação normal, porque ultrapassam os limites de um puro jogo de
idéias. São os informes históricos, precisos, dados por Leopoldo, o guia da médium, de
que se puderam, em certo sentido, verificar alguns, e a língua hindu, falada por
Simandini, que contém palavras mais ou menos reconhecíveis, e cujo sentido real se
adapta à situação em que foram pronunciadas.
Ora, se a imaginação de Helena pôde ter reconstruído pelas informações gerais,
flutuantes, de nossa atmosfera de país civilizado, os costumes, os usos e as cenas do
Oriente, não se sabe donde lhe proviriam o conhecimento da língua e de certos
episódios de pouco relevo da história da Índia.”
Eis um fato de primeira ordem, que se explica muito bem por uma renovação da
lembrança e que não se pode, mesmo, explicar por outra forma.
Mas Flournoy não a quer aceitar.
Consultou ele, sobre os pontos históricos evocados pela médium, os mais qualificados
especialistas da história asiática. Nenhum tinha conhecimento das personagens e das
localidades citadas. Eram, entretanto, eruditos da ciência histórica.
Em último recurso, viu-se forçado a escavar nas bibliotecas e acabou por encontrar num
velho e poeirento alfarrábio: a “História da Índia”, por Marlès, um trecho que lhe prova,
irrefutavelmente, que a descrição de Helena não é um mito. Bem entendido, os sábios, os
eruditos, precedentemente consultados, trataram Marlès por cima do ombro, e recusaram
considerá-lo como um confrade sério. Isso é muito feliz para a memória dele.
99
Gabriel Dellane – A Reencarnação
Quanto a Flournoy, apesar da inverossimilhança da suposição, não hesita em considerar
que a memória integral de Helena colheu os ensinos no obscuro e desconhecido Marlès, e
detém-se ligeiramente, nas diferenças ortográficas entre o texto deste último e o da médium.
Só o que perturba, e ele o confessa, é que não pode dizer onde, quando e como Helena teria
podido tomar conhecimento daquele texto.
“Confesso sem subterfúgios – diz ele – que não sei nada, e dou, voluntariamente,
testemunho da indomável e perseverante energia com que Helena não cessou de
protestar contra a minha hipótese no ar, que tem o dom de a exasperar; e isto se
compreende, porque ela se cansa em perscrutar as lembranças e não encontra aí o
menor traço dessa obra de que só existem dois exemplares poeirentos em Genebra. Só
por um concurso de circunstâncias absolutamente excepcionais e quase inimagináveis,
poderia o Marlès achar-se, um dia, entre as mãos de Helena. E como não teria ela disso a
menor recordação?”
Em suma, e pela própria declaração de Flournoy, o romance hindu constitui um enigma
psicológico ainda não solúvel de maneira satisfatória, pois que revela e implica em Helena,
relativamente aos costumes e à língua do Oriente, conhecimentos de que foi impossível, até
agora, achar a fonte segura.
Apesar desta restrição formal, que tira toda autoridade às hipóteses anti ou extra-
espíritas, nossos contraditores não hesitaram em apoderar-se de toda essa parte da obra de
Flournoy e dela ainda se servem como dum projétil mortífero, sem perceberem que, na
realidade, o mesmo se volta contra eles.
É impossível ver ali, ou telepatia, ou alucinação, ou auto-sugestão. Só resta admitir o que
não cessa de repetir a médium: que ela ressuscita o passado longínquo da princesa hindu
Simandini.
Nas sessões em que esta se manifesta não é a reencarnação da princesa, que a médium
representa, mas a ressurreição de antigas lembranças. Helena Smith se sente realmente a
princesa Simandini, revinda sob a forma de uma jovem moderna. Parecem ambas a mesma
individualidade. Esta se manifesta, no curso do tempo, sob a forma de Simandini na Índia e,
mais tarde, na Suíça, com a mentalidade de Helena. Esse gênero de manifestação é digno de
reparo: nada tem com as incorporações ou encarnações, habituais nos médiuns, de uma
personalidade que lhes é inteira e completamente estranha. Trata-se de um fenômeno
distinto.
O que me autoriza a esta afirmação é que, em sua mocidade, Helena tinha gostos
artísticos inteiramente diversos dos que poderia haurir na ambiência genebrina.
Eis o que, a respeito, diz Flournoy:
“Pelas descrições da Sra. Smith e pelas suas próprias, Helena era tímida, séria,
concentrada e não gostava de brincar com as meninas de sua idade. Preferia sair só com
sua mãe, ou ficar tranqüila e silenciosa em casa, divertindo-se em desenhar, o que fazia
com a maior facilidade, ou executar obras de sua composição, no estilo oriental, obras
que deslizavam, como por encanto, entre seus dedos de fada; não tenho mérito nisso –
dizia ela –, porque não me dá nenhum trabalho; sou levada, por vezes, a fazer essas
obras e esses desenhos, não sei como, com pequenos pedaços de pano, que se reúnem,
de alguma sorte, em minhas mãos.”
Com judicioso bom senso, observa Flournoy que a mediunidade não é, de forma
nenhuma, incompatível com uma vida normal e regular; que o médium não é
100
Gabriel Dellane – A Reencarnação
necessariamente um nevropata, como têm tentado fazer acreditar certos médicos de vista
curta.
Sendo o assunto de grande importância, permito-me citar a autorizada opinião do
célebre psicólogo de Genebra:
“A quem se espantar pelo lugar que ocupa na imaginação de Helena o medo de passar
por doente ou anormal, é preciso dizer, para desencargo dos médiuns e dos sábios
incriminados, que a culpa cabe às invenções, aos ditos no ar, de todo gênero, com que o
público ignorante envenena, à vontade, a existência dos médiuns e a dos que os
estudam.
É claro que se encontram nas fileiras da douta faculdade ou dos corpos científicos,
como em toda companhia um tanto numerosa, certos espíritos estreitos, muito fortes,
talvez, em sua especialidade, mas prontos a lançar o anátema naquilo que não quadra
com suas idéias feitas, e a chamarem logo doença, patologia ou loucura tudo o que se
afasta do tipo normal da natureza humana, tal como eles a concebem no modelo de suas
pequenas personalidades. É, naturalmente, o veredicto desfavorável, mas cheio de
segurança, desses médicos com antolhos e desses pretendidos sábios, o que se divulga
de preferência e vem bater nas orelhas interessadas. Quanto ao julgamento reservado e
prudente dos que não gostam de se pronunciar apressadamente, nem de fechar
questões cuja solução é ainda impossível, esse, não é preciso dizer, ninguém o tem em
conta, porque a massa quer conclusões líquidas e decididas.”
Tal pensamento é justo e está bem expresso.
Tomo o caso seguinte à obra de meu amigo Léon Denis, Le Problème de l’Être et de la
Destinée, pág. 289.
Conheci pessoalmente o Príncipe Wisczniewski, que sempre me pareceu digno da mais
inteira confiança. A Sra. Nœggerath, autora do livro La Survie, ouviu o príncipe fazer a mesma
narrativa e a assinalou ao Sr. de Rochas. Ei-la:
“O Príncipe Adam Wisczniewski comunica-nos o seguinte relato: Ele o deve a
testemunhas, algumas das quais vivem ainda, e só consentem que as designem pelas
iniciais.
O Príncipe Galitzin, o Marquès de B..., o Conde de R..., estavam reunidos no verão de
1862, nas águas de Hamburgo.
Uma noite, depois de haverem jantado muito tarde, passeavam eles no parque do
Cassino, quando perceberam uma pobre deitada num banco. Depois de se lhe
aproximarem e interrogarem, convidaram-na a vir cear no hotel. Ela comeu com grande
apetite e, pouco depois, Galitzin, que era magnetizador, adormeceu-a. Qual não foi,
porém, o espanto das pessoas presentes, quando, profundamente adormecida, aquela
que, na véspera, só se exprimia em mau dialeto alemão, pôs-se a falar muito
102
Gabriel Dellane – A Reencarnação
corretamente em francês, contando que, por punição, se havia encarnado pobremente,
em vista de haver cometido um crime em sua vida precedente, no XVIII século.
Habitava, então, um castelo na Bretanha, à borda do mar. Tivera um amante e, querendo
desembaraçar-se do marido, lançou-o ao mar, do alto de um rochedo. Com grande
precisão, designou o lugar do crime.
Graças a essas indicações, o Príncipe Galitzin e o Marquês de B... puderam, mais
tarde, ir à Bretanha, nas costas no Norte, e, separadamente, entregaram-se a dois
inquéritos, cujo resultado foi idêntico.
Havendo interrogado grande número de pessoas, não puderam, a princípio, colher
nenhuma informação. Encontraram, enfim, dois velhos camponeses, que se lembravam
de ter ouvido contar por seus pais a história de uma jovem e bela castelã, que fizera
perecer o esposo, projetando-no mar. Tudo o que a pobre mulher de Hamburgo dissera,
em estado sonambúlico, fora reconhecido como exato.
O Príncipe Galitzin em sua volta a Paris, repassando em Hamburgo, interrogou o
Comissário de Polícia, a respeito dessa mulher. O funcionário declarou-lhe que ela era
desprovida de qualquer instrução, só falava o vulgar dialeto alemão e vivia dos
mesquinhos recursos de uma mulher de soldado.”
Aqui, a amnésia, no que concerne ao passado, tão bem desapareceu durante o sono
sonambúlico, que a infeliz mulher, não só ressuscitou seu trágico passado, como empregou a
língua francesa, que ignorava completamente em estado normal.
Se possuíssemos muitos exemplos tão característicos, a certeza de que viríamos grande
número de vezes à Terra não faria mais dúvida a ninguém.
É de desejar que sábios imparciais se entreguem ao estudo desses fenômenos, e tenho a
convicção de que não tardariam a colher fatos igualmente demonstrativos.
“Há 23 anos, um irmão e um sobrinho de meu pai moravam em uma aldeia de minha
província, quando foram assassinados em conseqüência de querelas locais.
Algum tempo depois dessa morte violenta, meu tio se comunicava por um médium,
em minha família. Ele estava muito satisfeito com tudo o que lhe tinha sucedido.
Explicava-nos, como, em existência anterior, numa cidade muito afastada, em Daroca,
província de Aragon, numa casa que descreveu minuciosamente, e em data que
precisou, ele e a sobrinha, que era então a esposa de meu pai atual, entenderam-se para
matar meu pai, a fim de satisfazerem paixões carnais.
Meu tio estava contente com seu estado no Espaço, e por haver passado pela prova
escolhida. Agradecia a Deus ter-lhe permitido saldar essa conta tão dolorosa.
Os inquéritos feitos em Daroca, cidade completamente desconhecida de todos nós,
confirmaram, em todos os pontos, os pormenores dados pelo Espírito de meu tio. Os
nomes da rua e da casa, a data do crime que ficou impune, os nomes das personagens,
tudo foi inteiramente verificado.”
103
Gabriel Dellane – A Reencarnação
Há razão para supor que a clarividência do médium não pode ser invocada como
explicação, pois que essas revelações foram feitas espontaneamente pelo Espírito do tio do
doutor.
Depois de ter conhecimento dessa narrativa, escrevi ao Dr. Torres para lhe pedir alguns
informes relativos ao médium, ao Centro, e para saber se alguma ata havia sido feita. Eis as
informações que ele me forneceu:
“A sessão se realizou em minha casa, em minha família, onde essas reuniões são
muito freqüentes. Não fazemos atas, convencidos que estamos da verdade espírita; a
sessão foi feita em presença de seis pessoas.
O médium pertencia à minha família e conhecia somente o assassínio do meu tio e do
sobrinho de meu pai, mas ignorava tudo o mais, o drama e as circunstâncias indicadas
pelo Espírito, assim como os nomes dos atores do drama executado em Daroca.
A mediunidade se deu por transe ou incorporação completa, com inconsciência total
do médium, ao acordar.”
Uma expiação
Terminemos esta curta resenha dos casos experimentais, citando o relatório existente
nos arquivos do Centro da cidade de Huesca, dirigido por Domingo Montreal. Ele é bastante
instrutivo, como se vai ver. lxxii
“De 1881 a 1884, encontrava-se nas ruas de Huesca um indivíduo conhecido pelo
nome de louco Suciac. Vestia-se de modo burlesco, falava só, ora corria sem destino, ora
caminhava solenemente, e não respondia a nenhuma das perguntas que lhe eram
dirigidas. Por fim, como se tornasse perigoso, submeteram-no a estreita vigilância.
Na mesma cidade, formou-se um grupo de estudos espíritas, entre pessoas de cultura
média, sendo Domingo Montreal, presidente, e Sanchez Antonio, médium. Este último
apresentava uma particularidade: é que, inteiramente iletrado, escrevia muitas vezes
sem pontuação e outras com perfeição extrema, longas comunicações.
O presidente resolveu evocar o Espírito do louco, na ocasião em que ele parecia
dormir, e obteve dele muitas mensagens. Enfim, o louco Suciac morreu e,
espontaneamente, pouco depois, deu pelo médium iletrado Antonio uma mensagem,
afirmando que tinha sido Senhor de Sangarren; que tivera uma conduta culpável e que a
vida, no curso da qual o conhecêramos, lhe tinha sido imposta como expiação.
Afirmou que acharíamos a confirmação de suas palavras nos arquivos ainda
existentes no seu antigo castelo.
Fui, em companhia de Severo Lain e de Marvallo Ballestar, à antiga morada senhorial,
onde nos responderam que não havia traço de arquivos. Grandemente desapontados,
reunimo-nos em sessão, para dar conta do resultado de nossa missão. Antônio escreveu,
então, que se voltássemos ao castelo encontraríamos perto do fogão da cozinha, em um
esconderijo, os documentos que desejávamos.
Assim o fizemos e, tornados a Sangarren, obtivemos a permissão de sondar a parede
e, com grande espanto nosso, encontramos, em um pequeno reduto, uma série de
pergaminhos. Trouxemo-los para Huesca, onde foram traduzidos pelo Professor Oscariz
e confirmavam em todos os pontos as afirmações do Espírito.”
104
Gabriel Dellane – A Reencarnação
Nesse caso, ainda a lei moral se exerce de maneira indiscutível e os documentos,
descobertos em seguida às indicações do Espírito do louco, estabelecem a muito grande
probabilidade de suas afirmações, no que concerne à sua existência passada.
Resumo
Vimos, no curso do capítulo precedente e deste, que a memória não é uma faculdade tão
instável como poderia parecer à primeira vista. É perfeitamente exato que não conservamos
a lembrança integral de todos os acontecimentos, que nos sobrevieram no curso de nossa
vida, visto que o esquecimento é uma condição essencial para que o Espírito não seja
embaraçado pela inumerável multidão de lembranças insignificantes. Mas, contrariamente ao
em que geralmente se crê, a perda das lembranças não é absoluta. Todas as sensações visuais,
auditivas, táteis, cenestésicas, que têm agido em nós, ficam gravadas, de maneira indelével,
na parte permanente de nós mesmos, a que os sábios chamam subconsciência e os espiritistas
perispírito.
Essas sensações, temo-lo averiguado, podem renascer espontaneamente, ou durante o
sono sonambúlico natural ou provocado.
Cada estado anterior da existência atual renasce com um frescor e uma intensidade que
equivalem à realidade. Parece, pois, que cada período da vida deixa, na trama fluídica do
corpo espiritual, impressões sucessivas inapagáveis, formadas por associações dinâmicas
estáveis, que se vão superpondo sem confundir-se, mas cujo movimento vibratório diminui à
medida que o tempo se escoa, até o momento em que essas sensações ou lembranças caem
abaixo do limiar da consciência espírita.
Desde que as coisas são assim, que o Espírito é indestrutível e que é nele que se
encarnam os arquivos de toda a vida mental e física, é natural supor que, se damos a esse
corpo fluídico movimentos vibratórios análogos aos que ele registrou em qualquer momento
de sua existência, far-se-á renascer, do mesmo passo, todas as lembranças concomitantes
desse período do passado.
Foi o que sucedeu, como vimos, nas experiências de Richet, Bourru e Burot, Pitres e
outros. É lógico, pois, prosseguir a regressão da memória até além dos limites da vida atual
de um paciente, por meio da ação magnética. Assim fizeram os espiritistas e os sábios de que
falei neste capítulo. Sem dúvida, os resultados não são sempre satisfatórios, de vez que nem
todos os pacientes se acham aptos a fazer renascer o passado. Isto se deve a causas múltiplas,
e a principal resulta, ao que parece, do que se poderia chamar a densidade perispiritual, isto
é, a imperfeição relativa desse corpo fluídico, cujas vibrações não podem achar a intensidade
necessária para ressuscitar o passado, de maneira suficiente, mesmo com o estímulo artificial
do magnetismo. Acontece, por vezes, entretanto, que, durante o estado de sono ordinário, a
alma, exteriorizada temporariamente do corpo, encontra, momentaneamente, condições
favoráveis para que o renascimento do passado possa produzir-se.
Pode suceder que essa renovação seja acidental, como em relâmpagos, no estado normal.
Assiste-se, então, a uma revivescência de imagens antigas que dão àquele que as experimenta
a impressão de que já viu cidades ou paisagens, ainda que nunca lá fosse.
São estes casos que vou estudar nos capítulos seguintes, e ver-se-á que eles também, se
apresentam grande variedade, podem, entretanto, ser compreendidos e entrar facilmente no
quadro da memória integral, admitindo-se que esta reside no corpo espiritual que
acompanha a alma durante todo o curso de sua evolução contínua.
105
Gabriel Dellane – A Reencarnação
Capítulo VIII
A hereditariedade e as crianças-prodígio
As crianças-prodígio
Os músicos
Giotto é ainda um exemplo das disposições inatas, que são trazidas do berço. Ainda
criança, simples pastor, traçava já, por instinto, esboços tão cheios de naturalidade, que
Cimabué o tomou a seu cuidado.
Um dos mais belos gênios da Itália, Miguel Ângelo, na idade de 8 anos já conhecia
suficientemente a técnica do seu ofício, e tanto que seu mestre Ghirlandajo afirmou que nada
mais havia a ensinar-lhe.
Desde criança Rembrandt manifestou tal gosto pelo desenho, que Lombroso declara ter
sabido ele desenhar como um grande mestre, antes de haver aprendido a ler.
O primeiro quadro do pintor Marcel Lavallard foi recebido no Salon, quando ele tinha 12
anos.
A 12 de agosto de 1873, com 10 anos e 11 meses, morria o jovem Van de Kefkhore, de
Bruges, e deixava 350 quadros, sendo que alguns, diz Adolphe Siret, membro da Academia de
Ciências, Letras e Belas-Artes da Bélgica, poderiam ter sido assinados por nomes como Diaz,
Salvator Rosa, Carot e outros.
Outro crítico, o pintor Richter, grande colorista francês, teve ocasião, acidentalmente, de
ver uns vinte painéis do jovem-prodígio; felicitou, então, o seu proprietário por possuir
esboços de Théodore Rousseau, em tão grande quantidade. Houve enorme trabalho por
desenganá-lo e, quando ele reconheceu a verdade, não pôde esconder uma lágrima, por ver
desvanecidas tantas esperanças.
Os calculadores
A faculdade de calcular, com extrema rapidez, nos apareceu já, com singularidade
surpreendente, nos cavalos de Elberfeld, assim como em Rolf e Lola. Vamos ver que o mesmo
acontece com a Humanidade.
Henri Mondeux, nascido em 1826, perto de Tours, de um camponês desprovido de
qualquer instrução, revelou-se cedo uma prodigiosa máquina de cálculo. Aos 14 anos, foi
apresentado à Academia de Ciências de Paris; não tinha, aliás, outras faculdades.
Em 1837, um pastor muito moço, “Vita Mangiamel”, quase uma criança, atraía os sábios
de todos os países por sua incomparável faculdade de cálculo.
111
Gabriel Dellane – A Reencarnação
A um matemático que lhe perguntou qual o número que, elevado ao cubo e adicionado da
soma de cinco vezes o seu quadrado, é igual a 42 vezes ele próprio mais 40, o jovem
respondeu em menos de um minuto: – é o número 5.
Jaques Inaudi, simples pastor, executava os cálculos mais complicados, com facilidade e
rapidez desconcertantes. Foi examinado na Academia de Ciências, em 1892, e deu, com uma
pressa assombrosa, a solução dos mais difíceis problemas.
Podem-se ainda assinalar as faculdades de cálculo do jovem Franckall e do incrível
Diamandi.
O Novo Mundo oferece-nos, também, exemplos variados de precocidade em todos os
gêneros. Assim é que, nas artes mecânicas, Georges Steuler obteve, aos 13 anos, o diploma de
engenheiro.
Henri Dugan percorreu os Estados Unidos, antes dos 10 anos, e fez, para a casa que
representava, os melhores negócios.
Se acreditarmos na imprensa americana, muitas vezes sujeita a caução, uma criança de 5
anos, Willie Gewin, teria recebido o diploma de doutora pela Universidade de Nova Orleães, e
uma criança de 11 anos fundou recentemente um jornal, de que se extrairiam vinte mil
exemplares.
O imortal autor de Jerusalém Libertada versificava, admiravelmente, aos 7 anos.
O pequeno Joan Maude, de 5 anos, filho do autor inglês Maude, publicou em Londres sua
primeira obra: Atrás das Trevas da Noite.
Estes exemplos, numerosos e variados, de precocidade intelectual, são inconciliáveis com
a teoria que vê na inteligência um produto do organismo. Ainda mesmo que a
hereditariedade gozasse um papel na gênese dessas prodigiosas faculdades, ficaria
incompreensível que um cérebro, apenas formado, fosse capaz de causar as mais altas e mais
poderosas formas da inteligência, porque só encontradas, nesse grau, em certos indivíduos e
quando chegados ao pleno desenvolvimento do cérebro.
A hipótese espírita da preexistência do homem é a única que dá uma explicação lógica
das crianças-prodígio.
Perguntar-se-á como a alma de um Baratier pôde manifestar, quase no berço,
conhecimentos que exigem, não só uma formidável memória, como dons de assimilação e
raciocínio indispensáveis à compreensão e ao uso de línguas, tão difíceis de assimilar, como o
grego e o hebraico.
É muito provável que o Espírito desses jovens-prodígio não estivesse ainda
completamente encarnado, ou que, durante períodos de exteriorização, recuperasse a
memória do passado, e, em lugar de aprender, não fizesse mais que recordar.
Certos espíritas quererão, sem dúvida, explicar esses casos espantosos, supondo que as
crianças eram simples médiuns. Tal interpretação me parece defeituosa, porque, em boa
lógica, é inútil multiplicar as causas sem necessidade. Desde que sabemos, nós os espiritistas,
que a alma existiu anteriormente à vida atual, não há nenhuma necessidade de fazer intervir
a presença de entidades estranhas. Aliás, a mediunidade não é uma faculdade constante; não
obedece à vontade do médium, enquanto as crianças de que falamos podiam, a qualquer
momento, e em qualquer circunstância, dar imediatamente as provas de suas surpreendentes
aptidões.
Sem dúvida nenhuma, as crianças-prodígio são exceções; entretanto, se bem que em grau
menor, encontram-se, entre certos alunos de nossas escolas, as mais variadas disposições
112
Gabriel Dellane – A Reencarnação
para as artes e as ciências; ainda quando eles saem de meios pouco cultivados, desenvolvem-
se com tal rapidez, que ultrapassam os demais condiscípulos.
Não é uma intuição, propriamente dita, o que lhes dá o poder de assimilar as noções
novas, mas uma espécie de reminiscência, que lhes permite apropriarem-se de matérias
novas, as quais, em realidade, não fazem mais que despertar na subconsciência.
Vou agora examinar certos fenômenos, em que as reminiscências parecem verdadeiras
lembranças de vidas anteriores.
113
Gabriel Dellane – A Reencarnação
Capítulo IX
O sentimento do já visto
Extraio da bela obra de Ernesto Bozzano, Les Phénomènes de Hantise, o caso seguinte:
“Caso E. – Tomo-o à Revue des Sciences Psychiques, 1902, pág. 151.
M. G. P. H., membro da S. P. R. e conhecido pessoalmente na revista citada, assim
como por de Vesme, enviara a relação de um caso psíquico importante ao jornal The
Spectator, relação que provocou a remessa de uma carta de confirmação da pessoa
interessada no caso. Eis a carta do diretor de The Spectator:
“Senhor.
A carta que vos foi enviada por M. G. P. H. e que publicastes a 1º de janeiro, sob o
título “A casa do sonho”, refere-se, evidentemente, a um sonho tido por minha mulher,
atualmente falecida.
A narrativa é exata em suas linhas principais. Não será supérfluo que eu dê, por
minha vez, um curto resumo do fato:
Há alguns anos, minha mulher sonhou, por muitas vezes, com uma casa, da qual
descreveu as disposições internas, com todos os seus pormenores, posto que não
tivesse nenhuma idéia da localidade em que esse edifício se achava.
Mais tarde, em 1883, aluguei à Sra. B..., pelo outono, uma casa nas montanhas da
Escócia, rodeada de terrenos para caça e de lagos para pesca. Meu filho, que se achava,
então, na Escócia, fechou o negócio, sem que minha mulher e eu visitássemos a
propriedade. Quando fui ao local, sem minha mulher, para a assinatura do contrato, e
para tomar posse da casa, a Sra. B... ainda aí habitava. Disse-me ela que, se eu não me
opusesse, ela me daria o quarto de dormir, que ocupava, e que fora, durante algum
tempo, “assombrado” por uma pequena dama, que nele fazia contínuas aparições.
Como eu era muito céptico a esse respeito, respondi que ficaria alegre por fazer
conhecimento com essa fantástica visita. Deitei-me nesse quarto, mas não tive a visita
de nenhum fantasma.
Mais tarde, quando minha mulher chegou, ficou muito espantada por haver
reconhecido, nessa casa, a do sonho, Visitou-a em todos os cantos, e os pormenores
correspondiam ao que tantas vezes vira em sonho. Mas, quando desceu de novo à sala,
disse:
– Não pode ser, entretanto, a casa do sonho, pois que essa tinha, deste lado, uma série
de quartos, que faltam aqui.
Responderam-lhe logo que os referidos quartos existiam, realmente, mas que não se
entrava neles pelo salão. Quando lhos mostraram, ela reconheceu perfeitamente cada
aposento. Declarou, ainda, que um dos quartos de dormir não era destinado a esse uso,
quando ela o visitou em sonho. Com efeito, só ultimamente fora ele transformado em
quarto de dormir.
Dois ou três dias depois, minha mulher e eu fomos visitar a Sra. B... Como não se
conhecessem, apresentei-as. A Sra. B... exclamou logo:
– Oh! É a dama que assombrava meu quarto de dormir.
Não tenho explicação a dar. Minha mulher não teve mais outra aventura desse
gênero, a que alguns chamarão notável coincidência, e os escoceses um caso de dupla
vista.
118
Gabriel Dellane – A Reencarnação
Podeis, livremente, dar meu nome às pessoas que se interessam pelas questões
psíquicas, e que quiserem obter maiores informações a respeito.
Para isso, aqui vai meu cartão de visita.”
M. G. P. H. dá igualmente ao diretor da revista o nome inteiro da Sra. B... que pertence
à mais ilustre aristocracia britânica.”
Este exemplo justifica a distinção que tenho feito entre a paramnésia e a verdadeira
reminiscência; aqui, a Sra. M. G. P. H. lembra-se não só de haver visitado essa casa, como
ainda indica a existência de uma série de quartos que lhe era impossível conhecer, mas que
existiam, realmente.
Se a lembrança desse sonho não tivesse sido conservada, ter-se-ia podido atribuir aquele
reconhecimento a uma paramnésia ou à lembrança de uma vida anterior, o que seria um
duplo erro, visto que o fenômeno era devido apenas à clarividência da paciente,
acompanhada de desdobramento.
Como distinguir, então, uma verdadeira recordação das vidas anteriores, duma lucidez
durante o sono ou duma perversão da memória? Evidentemente, pelo estudo das
circunstâncias que acompanham o sonho, das lembranças antigas, que devem situá-lo, de
forma evidente, no passado.
Eis dois exemplos que melhor farão compreender o que quero dizer:
“Armand Sylvestre lxxviii passeia em Moscou, onde acaba de chegar; o que ele vê e
ouve causa-lhe um sentimento estranho, cheio de opressão. Essa ambiência o envolve
de algo maternal. Ele sente a cabeça inclinar-se, vergarem-se-lhe os joelhos, e as preces,
de que não compreende as palavras, subirem-lhe aos lábios. Não sabe como explicar o
fenômeno, certo, entretanto, dos lugares misteriosamente encontrados de novo, das
terras nunca vistas, mas reconhecidas, dos sentimentos que vêm ao coração, como se
algum antepassado, há muito tempo adormecido em uma tumba, de que se ignorasse o
lugar, abrisse subitamente os braços, livres do sudário.”
Não se trata aqui de paramnésia; essas preces desconhecidas são uma reminiscência do
passado que o Dr. Chauvet, retomando a hipótese do Dr. Letourneau (Boletim da Soc. de Ant.
de Paris), acha que se deve atribuir a uma memória ancestral.
Diz ele, com efeito:
“Suponhamos que um homem tenha visto uma paisagem ou uma cidade e que, por
umas tantas razões, geralmente afetivas, lhes haja conservado uma recordação
poderosamente modelada; ele a poderia transmitir, em potência, a certos descendentes,
que, ao nascer, a trariam envolta nas profundezas do inconsciente. Achando-se eles, um
dia, em presença da paisagem ou da cidade, se lhes reviveria a lembrança ancestral e
surgiria a ilusão do já visto.”
Esta hipótese, que nada absolutamente justifica, é contrária ao que sabemos com respeito
à hereditariedade. Nunca se verificou, diretamente, dos pais aos descendentes, a transmissão
fisiológica de uma lembrança. É impossível supor que uma impressão mental, nitidamente
definida, fique latente, através de várias gerações, em vista da renovação incessante da
matéria corporal; é, pois, inútil determo-nos por mais tempo nessa bizarra hipótese de todo
inaceitável.
Chegamos, agora, ao estudo dos casos em que, parece-me, existem verdadeiras
reminiscências.
119
Gabriel Dellane – A Reencarnação
Vimos que toda atividade intelectual de nossas vidas passadas reside, em estado latente,
no perispírito. Essa imensa reserva de matérias psíquicas constitui a base de nossa atividade
intelectual e moral; ela forma essa trama primitiva da inteligência, mais ou menos rica, sobre
a qual cada vida borda novos arabescos. Mas todas essas aquisições só se podem manifestar
pelas tendências primitivas, que cada qual traz ao nascer, e a que se chama caráter. Desde
então, a mais perfeita inconsciência deve ser a regra, e é precisamente o que se produz, mas
não existem regras sem exceções.
Assim como se nota em certos pacientes sonambúlicos a conservação da lembrança ao
acordar, também se podem encontrar indivíduos que se lembrem claramente de já haver
vivido, enquanto que, em outros a renovação se apresenta sob uma forma mais vaga, mais
imprecisa, de maneira fugitiva, sob a influência de certos meios ou de certas circunstâncias,
nos quais são colocados. É aí que a verdadeira reminiscência se diferencia da paramnésia,
pelo conhecimento de coisas reais, que o paciente designa com exatidão, sem as ter visto
anteriormente, e sem que seja lógico atribuir esse conhecimento à clarividência.
Eis alguns casos que me parecem entrar nessa categoria.
É natural supor que, durante os primeiros anos da reencarnação, certas crianças podem
achar, momentaneamente, algumas lembranças, ou ao menos reminiscências da vida
precedente. Tenho recebido certo número de cartas, provenientes de pessoas dignas de toda
a confiança, as quais me contam o que observaram com seus filhos.
Devo citar, em primeiro lugar, uma observação da Revue Spirite de 1869, pág. 367:
“Em 1868, os jornais franceses transcreveram de um jornal inglês, de Medicina, o
Quarterly Review, um fenômeno bem estranho. É uma menina, cuja espantosa história
nos é descrita pelo Dr. Hun.
Até à idade de 3 anos, ela se conservou muda e apenas conseguiu pronunciar as
palavras papá e mamã. Depois, repentinamente, pôs-se a falar com extraordinária
volubilidade, mas em língua desconhecida, que não tinha nenhuma relação com o inglês;
e o que há de mais surpreendente é que ela recusa expressar-se nesta língua, a única em
que se lhe fala, e obriga os que convivem com ela, seu irmão, por exemplo, um pouco
mais velho, a aprender a sua, onde se encontram algumas palavras de francês, posto
que, conforme dizem seus pais, não tenham sido nunca pronunciadas diante dela.
Como explicar esse fato, a não ser pela recordação de uma língua que essa criança
teria falado em existência anterior? É possível negar-se. Mas a criança existe. É um
jornal sério, um jornal de Medicina que o narra, e a negação é um meio cômodo, e de
que se faz talvez excessivo uso. torna-se, em muitos casos, o equivalente do diabo, o
deus ex machina, que vem sempre a pelo, para explicar tudo e dispensar o estudo.”
Eis uma passagem da carta que a Sra. Paginot me dirigiu, com uma confirmação de sua
filha:
“Minha filha mal andava, porque ela andou muito tarde, aos três anos.
120
Gabriel Dellane – A Reencarnação
Passávamos, a criada, ela e eu, pelo cemitério de Préville. De repente, a criança parou
diante de um túmulo, e com o dedinho mostrou-me umas flores brancas.
– Vê, mamãe, olha as flores como havia no túmulo de minha primeira mãe.
Estupefata, disse eu à criada: se eu a tivesse dado a uma ama de leite, acreditaria que
a haviam trocado.
Entrando em casa, pedi à pequena que me explicasse o que ela queria dizer. Ela
contou, com pormenores, fatos perturbadores. Disse que havia perdido sua mãe, que
era má, e que tinha uma irmã muito gentil.
Passo-lhe a pena para que ela termine a narrativa.
O. Paginot.”
“Sinto-me feliz por completar uma descrição que lhe pode ser interessante. O que
vou escrever ainda me está vivo na memória, embora já tenha 32 anos.
Aquela a quem chamo a minha primeira mãe, era alta, morena e magra; estava longe
de ser boa. Eu ia muitas vezes para perto de uma grande torre e quase sempre dois
galgos de pelo claro me acompanhavam.
São estas as minhas recordações nítidas. Quanto à minha irmã, não tenho dela a
mínima lembrança.
Acrescentarei duas coisas à minha narrativa:
1. Não me lembro de haver crescido. Devo ter morrido jovem.
2. Aprendo o inglês muito facilmente, e a pronúncia, por intuição.
Foi, talvez, na Inglaterra que eu vivi.
Sra. e Srta. Paginot
11, rue Dupont-des-Loges, Nancy.”
Na época em que isto se produzia, a Sra. Paginot não fazia Espiritismo e a criança não
poderia ter ouvido falar das vidas sucessivas. Não se pode supor tivesse havido auto-sugestão
da parte da Sra. Paginot.
Seria um sonho intenso da criança que se exteriorizou sob aquela forma?
É possível, pois que não temos uma demonstração positiva dessas lembranças do
passado.
As mesmas observações são também aplicáveis aos dois casos seguintes. A Sra. de
Valpinçon me comunica uma narrativa que lhe foi feita por uma de suas amigas, mulher
muito inteligente, que deseja manter o anonimato:
“Vou contar-lhe um fato que me foi muitas vezes repetido por minha mãe, porque eu
tinha, então, 5 ou 6 anos. Gostava muito de bonecas e tomava muito a sério meus
deveres de mãe de família. Elas tinham enxovais completos, que eu mesmo lavava e
passava; certa manhã, depois de uma grande lixívia nesses minúsculos objetos, vim
onde estava minha mãe e lhe disse que ia descansar perto dela; não querendo
interromper-lhe a leitura, fiquei sossegada, sentada em minha cadeirinha, olhando as
mãos, e sobretudo as pontas dos dedos, com insistência. Repentinamente, mostrando-os
à minha mãe, exclamei, como saindo de um sonho:
– Vê, minha mãe, tenho as mãos enrugadas, como quando era velha.
121
Gabriel Dellane – A Reencarnação
– Mas que queres dizer?
– Oh, não há muito tempo, tu sabes bem, mamãe.
Muito espantada, minha mãe ralhou comigo por dizer asneiras. Isso foi objeto de
muitas reflexões; fez-se silêncio, e só depois de meu casamento é que minha mãe ousou
falar-me dessa divagação, dizia ela.”
Eis, agora, um relato que me vem da Itália, não querendo a narradora ser nomeada. A
história é corroborada pelo testemunho de sua mãe e de uma amiga.
“Muito me interesso pelos estudos psíquicos, mas quando era criança, nem eu nem os
que me rodeavam tinham a menor idéia da reencarnação; entretanto, dizia eu sempre
que fora, outrora, um cavalheiro da Idade Média, do que estava muito convencida, e
queixava-me de ser uma menina, quando podia ser um homem para combater e morrer
pela pátria.
Muitos anos depois, morava em Nápoles, no Palácio do Comendador, com meu
marido, oficial do Exército; um dia, achava-me com um senhor, a uma janela que dá para
o pátio interno do palácio, onde o comandante do corpo de Exército, com o seu séquito
de oficiais do Estado-Maior, estava à frente do cortejo, prestes a sair pela grande porta
que dá para o Palácio do Plebiscito; nisto, senti-me abalada, e, sem o querer, exclamei:
– Mas que faço aqui, quando devo montar a cavalo e pôr-me à testa do cortejo?
Subitamente, lembrei-me de que eu era a senhora X..., e que não havia outra coisa que
fazer, senão olhar. Mas, nesse momento, tive a recordação perfeita de ter sido chefe
militar e haver estado à frente das tropas. Creio também ter sido obrigada a entrar em
um convento, pois me lembro quanto chorava e gritava, sendo menina, porque me
cortaram os cabelos. Um dia, a cena foi muito trágica; atirei-me ao chão, soluçando,
sobre meus cabelos cortados e os repus na cabeça. Outra vez, tinha 14 anos, achava-me
à janela, com parentes e amigos, para ver passar os carros de uma cavalgada, e,
enquanto todos riam e gracejavam, eu, à vista de um carro onde estavam garibaldinos
com a camisa vermelha, que massacravam párocos, experimentei tal comoção, que
rompi em amargas lamentações, com grande pena dos assistentes.
Devo dizer que, durante a vida atual, nunca lidei com padres ou religiosos; sinto,
entretanto, por eles verdadeira repulsão e meu coração aperta, vendo-os.
Desde menina, que posso sair de mim, à vontade, e a qualquer hora, e pergunto, como
Kim Kipling, quem sou? Acrescentarei que sou uma criatura sã, equilibrada, e não gosto
de falar de tais coisas com quem quer que seja, para não ser tachada de original pelos
que não se interessam por esses estudos.
Milão, 29 de maio de 1922.
A. M. L. M.”
Os casos que acabo de narrar não são inteiramente demonstrativos, porque nenhuma
verificação é possível. Citei-os porque mostrarei mais adiante que, com outras crianças, se
apresentaram recordações de vidas anteriores, com bastante clareza, de sorte que foi
possível verificar-lhes a realidade.
Estes podem ser considerados como o primeiro esboço da reconstituição da memória
integral, traduzindo-se fugitivamente por vagas reminiscências, entre os indivíduos cujo
organismo se presta mal a um despertar completo.
Sabe-se que existem pessoas chamadas psicômetras, que têm a faculdade de reconstituir
cenas do passado quando se lhes põe nas mãos um objeto qualquer, que teria sido associado
àquelas cenas.
Uma pedra de um sarcófago egípcio, por exemplo, evoca a idéia do Egito e de cenas
funerárias que ali se desenrolaram.
Parece que, em condições particulares, quando certas pessoas reconhecem,
repentinamente, cidades ou regiões que nunca viram, esses novos lugares exercem sobre elas
uma ação análoga à experimentada pelos psicômetras, mas com a diferença de que são
lembranças íntimas que se evocam, absolutamente pessoais. É uma forma particular da
renovação do passado, que se apresenta freqüentemente, por maneira a atrair seriamente a
atenção.
Eis alguns exemplos interessantes, ligados diretamente a nosso estudo. Cito em primeiro
lugar a narrativa do Major Wellesley Tudor Pole (Pearson Magazine, agosto de 1919).
Visões retrospectivas
“O Major Wellesley Tudor narra a impressão profunda que sentiu, visitando o templo
de Karnak, no Egito. Este lhe pareceu saturado de uma atmosfera mística e de fluidos
magnéticos.
Viu ele retratar-se-lhe diante dos olhos uma antiga procissão dos sacerdotes do
Amon-Rá.
Um em particular, diz ele, atraiu a minha atenção; era louro, com olhos azuis, e
diferia completamente de seus companheiros.
123
Gabriel Dellane – A Reencarnação
Esse indivíduo parecia familiar ao major. Não sei por que – declara o major –, via
passar a procissão, que torneava o pilar quebrado onde nos tínhamos colocado, e meus
olhos eram sempre atraídos pelo padre de cabelos louros. Quando ficou diante de mim,
estendeu os braços em minha direção, e tive a impressão de que ele era eu mesmo.
Veio-me a certeza, e tornei-me inconsciente do que me rodeava. O resto da visão não
nos interessa mais.”
Parecerá, por esta descrição, que o Major Wellesley teve uma espécie de alucinação
retrospectiva, a qual lhe permitiu reconhecer-se em um dos antigos sacerdotes do templo. A
ação psicométrica do meio é aqui muito provável. O mesmo se dá com os dois casos seguintes
(De Rochas, Les Vies Successives, pág. 314).
Um clérigo
“Há uma dezena de anos, visitei Roma pela primeira vez. Em muitas ocasiões, fui
tomado, na cidade, por uma onda de reconhecimentos. As Termas de Caracala, a Via
Ápia, as catacumbas de S. Calisto, o Coliseu, tudo me parecia familiar. Parece evidente a
causa: renovava-se o conhecimento do que eu tinha visto nos quadros, nas fotografias.
Isto pode ser explicado no que toca aos edifícios, não, porém, no que diz respeito aos
labirintos obscuros, aos subterrâneos das catacumbas.
Alguns dias mais tarde, fui a Tivoli. Ainda aí a localidade me foi familiar, como o teria
sido em minha própria paróquia. Por uma torrente de palavras, que me subiam
espontaneamente aos lábios, descrevi o lugar, tal como ele era nos antigos tempos.
Nunca lera nada, entretanto, a respeito de Tivoli; nunca vira gravuras que o
representassem; conhecia sua existência, apenas, de alguns dias, e achava-me, no
entanto, servindo de guia e historiador a um grupo de amigos, os quais concluíram que
eu havia feito um estudo especial do lugar e seus arredores.
Em seguida, a visão do meu Espírito começou a enfraquecer. Parei como um colegial
que esqueceu o tema, e não pude dizer mais nada. Foi como um mosaico que tivesse
caído aos pedaços.
Em outra ocasião, encontrei-me com um companheiro, nos arredores de
Leatherhead, onde, até então, nunca pusera os pés. A região era inteiramente nova,
tanto para mim, como para meu amigo. No curso da palestra, observou este:
– Dizem que há uma antiga estrada romana, em alguma parte destas paragens, mas
ignoro se se encontra deste lado de Leatherhead ou do outro.
Respondi logo:
– Sei onde ela está.
E mostrei-a a meu amigo, absolutamente convencido de que a tinha encontrado, o
que de fato sucedeu.
Tinha a sensação de me haver achado outrora nesse mesmo caminho, a cavalo,
coberto de uma armadura. Esses episódios fazem-me falar sobre o assunto, com amigos,
e grande número deles me declaram que já experimentaram sensações idênticas.
A três milhas e meia, a oeste do lugar onde moro, encontra-se uma fortaleza romana,
em estado quase perfeito de conservação.
Um eclesiástico que veio visitar-me desejou ver essas ruínas. Disse-me ter a
lembrança clara de haver vivido nesse lugar, onde fora investido de um cargo de caráter
124
Gabriel Dellane – A Reencarnação
sacerdotal, no tempo da ocupação romana. Impressionou-me a sua insistência em
visitar uma torre, que caíra, sem perder a forma. Havia um buraco no ápice –
acrescentava ele –, no qual se costumava colocar um mastro, e aí os archeiros se faziam
içar em uma espécie de barquinha, protegida com couro; de lá podiam ver os chefes
gorlestonianos entre seus homens e atirar contra eles. Achamos, com efeito, o buraco
indicado.”
Curiosa coincidência
Lê-se na Light, de 1916, pág. 374, a narrativa seguinte, que lhe foi transmitida por uma
revista mensal, A Londrina. Esta última declara que a narrativa é de primeira mão e autêntica.
“A... é um artista romano, muito conhecido, que durante a última guerra residia em
Roma. Pertence a uma antiga família e ocupava um posto elevado na legação de seu
país.
Alistou-se em um Regimento de Cavalaria.
Um dia, em que estava em manobras no Condado de Berkshire, cavalgava ao lado do
capitão e subia áspera colina, cujo aspecto lhe era como que vagamente familiar, o que
disse ao capitão.
– Conhece, pois, a região? – perguntou-lhe este.
– Não – respondeu A... –, nunca vim a Berkshire, mas, não sei por que, parece que
conheço esta colina e mesmo a que está situada além. Sei que há, ainda, uma pequena
montanha, em forma de cone, e coroada por um bosquezinho. Em seguida o terreno
desce rapidamente e vai ter a um plano nivelado.
– É exato – declarou o capitão, que era natural de Berkshire – e desejo saber como
você podia saber isto, pois que nada se pode ver daqui.
Depois, mudou a conversa e A... esqueceu o incidente.
No ano seguinte, fizeram-se escavações no ápice da colina e aí descobriram um
monumento de pedra, que trazia uma inscrição em memória da Segunda Legião
daciana. Os dácios eram súditos dos romanos quando estes ocuparam a Grã-Bretanha.
Liam-se na pedra os nomes dos que ali tombaram. Entre estes encontrava-se o de um
antepassado de A... A inscrição era em latim.
Simples coincidência que permitiria a A..., do primeiro golpe de vista, descrever a
paisagem que lhe era desconhecida, e que ainda estava oculta a seus olhares, ou se trata
de um caso de reminiscência, espécie de olhar lançado para trás, através dos séculos?
Eu dei – diz o narrador – os nomes exatos aos diretores da revista, mas não estou
autorizado a reproduzi-los.”
Reminiscência ou clarividência
Em seguida ao inquérito a que procedi, recebi da Sra. Matilde de Krapkoff, que tenho o
prazer de conhecer pessoalmente, a narrativa seguinte:
“Na deliciosa primavera de 1893, meu marido e eu desembarcamos em Jalta, na
Criméia, para ir daí a Livaldia, onde estava a corte russa. Dirigíamos-nos para a casa de
meu cunhado, que tinha posto junto ao imperador. Eu havia, alguns dias antes, passado
125
Gabriel Dellane – A Reencarnação
pela primeira vez, a fronteira russa em Volodschick. Acabava de casar-me, um tanto
contra a vontade de minha mãe, pesarosa por me ver partir para tão longe, com um
jovem russo de família nobre, e eu sentia-me atraída, de modo inexplicável, para essa
longínqua Rússia, tão diferente do berço natal. Lera tudo o que pudera encontrar, a fim
de informar-me a seu respeito, e vivia com as heroínas de Tolstoi, de Tourguenieff;
extasiava-me com os nomes patronímicos acrescentados ao prenome. Dizia comigo: “Lá
serei Matilde Iossifoura. Que prazer quando encontrei aquele que devia ser meu marido
e que me chamou assim! Compreendi que meu destino se realizava, e estava
deslumbrada pela felicidade de ir, enfim, para o país encantado dos meus sonhos.
Como me batia o coração ao aproximar-me do marco limítrofe que designava os
lindes da existência tão desejada! As tristes cores, preta e branca, pareciam-me irradiar
com os mais brilhantes raios, e quando todos em torno de mim falavam a doce língua
russa, acreditei reconhecê-la. Perguntava avidamente a significação de cada palavra,
que me parecia reaprender, e com muita facilidade.
Chegando a Odessa, nada me espantou, sentia-me em minha casa e, ao desembarcar
em Jalta, não era uma francesa ávida de novidades, senão uma aborígine feliz por ter
vindo, enfim, passar uns dias nas belas plagas da Criméia.
Meu cunhado, por me fazer conhecer as imensas florestas do interior, organizou uma
pequena cavalgada. Na véspera da partida, não cabia em mim de alegria; todo o meu ser
como que se projetava para essa região que ia percorrer. Era um sentimento estranho,
diferente do que experimentei com minha chegada à Rússia, mais irresistível, mais
poderoso. Desde as primeiras horas, meus olhos haviam sido atraídos, como por um
mágico ímã, para a massa sombria dos bosques.
A noite pareceu-me interminável. Enfim, surgiu a aurora radiosa, e nossa caravana se
pôs em marcha, comboiada por dois guias tártaros, que conheciam bem a região.
Passeamos durante horas sob essa floresta majestosa, ora suspensos dos imensos
panoramas de oceanos de verdura, ora mergulhados nos vales sombrios, onde as
árvores se erguiam, grandiosas, entrecruzando a ramaria.
Tínhamos feito muitas paradas, mas, para a tarde, como cavalos e cavaleiros
estivessem fatigados, seguimos docilmente os guias, no caminho de retorno.
Essa jornada foi inefável. Transbordava-me o coração com mil sentimentos confusos;
meu espírito parecia correr para novos caminhos, para um desconhecido pressentido.
Íamos sempre para a frente, mas os guias começavam a manifestar inquietação,
pesquisando à direita e à esquerda, inspecionando os bosques densos. Eis que nos
fazem parar e declaram que perderam a rota. As veredas se tornam confusas, e eles não
sabem qual tomar. Consternação geral; furor de alguns. É já tarde. Como circular à noite
nessas sombrias florestas que parecem não ter limites?
Meu marido vem tranqüilizar-me, mas me encontra calma; sinto que sei onde
estamos. Dir-se-ia que outro ser complementar entrou em mim, e que esse duplo
conhece o lugar. Gravemente, declaro que todos devem sossegar, que não estamos
perdidos, que é só tomar o atalho à esquerda e segui-lo; que ele nos levará a uma
clareira, ao fundo da qual, por trás de umas árvores, há uma aldeia meio tártara, meio
russa. Eu a vejo; suas casas erguem-se em torno de uma praça quadrada; no fundo há
um pórtico sustentado por elegantes colunas de estilo bizantino. Sob esse pórtico, bela
fonte de mármore e, atrás, os degraus de uma casa antiga, com janelinhas de caixilhos,
tudo encantador de antiguidade. Parei. Falara rapidamente, com segurança. A visão era
em mim nítida, precisa. Vi já tudo isso, muitas vezes, parece-me. Todos me rodeiam e
126
Gabriel Dellane – A Reencarnação
olham com espanto; que singular gracejo! Isto lhes parece fora de propósito, mas essas
francesas...
Devia estar pálida; fiquei gelada. Meu marido me examina com inquietação, mas eu
repito algo:
– Sim, tudo está certo e vocês vão ver.
Torço as rédeas para o atalho à esquerda. Como me tratam qual uma criança querida,
e os guias, acabrunhados, se acham sentados no chão, seguem-me, um tanto
maquinalmente, sem cuidarem do que se passa.
O quadro evocado está sempre em mim, eu o vejo e sinto-me calma. Meu marido,
perturbado, diz ao irmão:
– Minha mulher pode ter o dom da segunda vista, e uma vez que estamos perdidos,
vamos com ela.
Robustecida pela sua aprovação, meto-me pelas matas, que cada vez se adensam
menos, e corto pelo bosque, tanta é a impaciência de chegar. Ninguém fala; a bruma se
eleva e nada faz pressentir uma clareira, mas eu sei que ela está lá, bem diante de nós, e
prossigo a marcha. Estendo, enfim, o braço, e com o chicote aponto para a clareira,
palavra mágica. Há exclamações, todos se apressam; é uma clareira, mais comprida que
larga; vêem-na entre a penumbra; o fundo perde-se na bruma, mas os cavalos, também
eles, parecem sentir que estamos prestes a chegar, galopam, e vamos dar com grandes
árvores, sob as quais penetramos. Estou fora de mim, projetada para o que quero ver.
Um último véu se desprende. Vejo uma fraca luz e, ao mesmo tempo, uma voz murmura,
não ao meu ouvido, mas a meu coração:
– Marina, ó Marina, eis que voltas. Tua fonte rumoreja ainda, tua casa está sempre lá.
Sê bem-vinda, cara Marina.
Ah, que comoção, que alegria sobre-humana!
Jaz ali tudo diante de mim, o pórtico, a fonte, a casa. É demais; cambaleio e caio, mas
meu marido logo me apanha e coloca docemente sobre essa terra, que é minha, perto de
minha doce fonte. Como descrever meu enlevo? Estou prostrada pela emoção; caio em
soluços. Sombras aparecem; fala-se russo, tártaro. Levam-me para a casa; minhas
pernas claudicantes sobem os degraus. O coração se me confrange, ao atravessar-lhe os
umbrais. Depois, de repente, à ficção substitui-se a realidade; vejo um quarto
desconhecido, objetos estranhos; a sombra de Marina apaga-se; não saberei jamais
quem ela foi; nem quando viveu, mas sei que estava aqui; que morreu jovem. Sinto-o,
estou certa...
Meu marido faz-me beber um chá quente; todos os companheiros sentam-se em
torno de mim, querem saber como adivinhei, como vi, mas não explico coisa alguma, a
não ser a meu marido. Ninguém saberá o segredo de Marina, e eu me sinto tão bem
nesta doce casa, onde respiro o ar do outro mundo! Nunca tive tal bem-estar; estou leve,
feliz.
Fazem-se as acomodações para a noite, como é possível. Sento-me à soleira da porta
e peço a meu marido que pergunte a quem pertence a casa e quem nela viveu. Não se
descobre grande coisa; a casa pertenceu a um polonês, descendente, dizia-se, de uma
família exilada. Os antigos lembram-se dele; morreu muito velho e só. Veio um parente;
a casa, muito arruinada, foi vendida; o herdeiro voltou. Repararam-na, e é agora o chefe
da aldeia, o estaroste, quem a habita com a família; e não saberei mais nada, a não ser
que eu, Marina, aqui vivi. Meus olhos contemplaram essa cortina de belas árvores, o
127
Gabriel Dellane – A Reencarnação
murmúrio da fonte embalou meus sonhos, a doce casa me abrigou. Os perfumes da
noite quente da primavera parecem envolver-me e escuto, intensamente, em êxtase,
essa divina elegia, o murmúrio da fonte, a voz do rouxinol, o doce rumor da brisa nos
ramos. A essa harmonia celeste, meu coração enternece e, no fundo do meu ser, uma
voz longínqua, doce e enfraquecida, mas penetrante, repete: Marina!
Muitos anos se passaram depois dessa viagem radiosa; vivi-os na Rússia, nesse país
dos meus sonhos, que não me iludiu, porque eu fui aí muito feliz e sempre me senti em
casa. Aprendi o russo e o polonês com facilidade surpreendente.
Devo acrescentar que nunca mais me sucedeu, na Rússia, nada semelhante ao que
acabo de descrever, com toda a sinceridade, e de que sempre guardei a mais viva, a mais
deliciosa lembrança. Estudei; sei, agora, que não me enganava, e que Marina e eu não
fazíamos mais do que uma só Matilde de Krapkoff.
Paris, 2 de julho de 1922.”
Essa narrativa nos põe em presença de um desses casos ambíguos, em que hesitamos no
pronunciar-nos de maneira categórica, entre a explicação pela clarividência e a das
lembranças de uma vida anterior; entretanto, parece que a última explicação é aqui a mais
verossímil, e é esta a razão por que transcrevi o relato da Sra. Matilde.
Vejamos outro exemplo de reconhecimento de lugares, onde é provável que o narrador
tenha vivido anteriormente. Nada leva a crer que as visões claras que ele teve, durante a
infância, fossem reminiscências de uma vista clarividente, que nenhuma causa teria podido
determinar. lxxix
“Em minha primeira infância, era inclinado a sonhos, como o são muitas crianças de
imaginação ativa.
Duas cenas me perturbaram mais de cem vezes; estou bem certo delas, ainda que,
tornando-me homem, elas se apagassem e fossem interpretadas como sonhos de
criança. Vou descrevê-las.
Uma grande aldeia estendia-se ao norte de uma planície ondulada, e terrenos
cobertos de mato se encontravam por detrás; à frente havia uns regatos cortados por
uma ponte. Isto se apresentava como que visto do alto de uma colina. Existia na aldeia
uma igreja; uma estrada estendia-se ao norte e via-se um parque a leste. Pensei nessa
aldeia mais de cem vezes e povoei-a com pessoas imaginárias, cheias de bizarras
aventuras, como o fazem as crianças. Em seguida, quando me tornei aluno em Oxford,
minha mãe sugeriu-me que fosse visitar Adderburg, freqüentemente habitada por
minha família desde 1800, e onde ela passou parte de sua existência, com um tio que aí
morava. Disse-me ainda que fosse ver a velha praça, cheia de suas lembranças de
criança.
Fiz a viagem num dia de inverno. Cheguei a uma colina baixa e lá, diante de mim,
estavam quase exatamente reconstituídas as cenas de meus sonhos de criança: a grande
aldeia, o pequeno rio, o bosque e a igreja. Minha mãe nunca me descreveu Adderburg. É
curioso que, tendo passado a meninice no Condado de Devon, concebesse uma aldeia
típica e real de Oxfordshire, que não se assemelhava, de forma alguma, à aldeia em que
vivi em minha infância.
Outra cena foi mais interessante ainda e mais persistente: era uma grande aldeia
perto do mar, orientada para o Este. A colina sobre a qual está edificada é muito
abrupta, e de tal forma que as ruas são constituídas por escadas. As casas são
sobrepostas. Ao alto se acha um terreno com mato. Sonhei sempre que habitava aí,
128
Gabriel Dellane – A Reencarnação
numa casa situada ao Norte. Sonhava de dia, centenas de vezes, com essa aldeia, esses
degraus, essas casas de terraço, dando para o mar azul. Minha morada era sempre ao
Norte, um pouco no interior das terras. Até o mês de julho findo, nunca vira, em todas as
minhas viagens, um lugar semelhante àquele que eu via em sonho.
Pediram-me, certa vez, que visitasse Clovely, ao norte do Condado de Devon, onde
por muito tempo habitaram meus antepassados; minha bisavó era uma Cary.
Com grande espanto, vi os terraços, a colina abrupta, os degraus descendo para o
mar e, para os lados do Este e do Norte, a casa dos Cary, onde, durante séculos,
habitaram meus antepassados.
Vi na igreja sete túmulos da família Cary.
Clovely é descrita em Westward, que eu li somente há alguns anos, pela primeira vez.
A semelhança dessa descrição com a minha visão nunca me chamou a atenção.”
Vamos encontrar, no capítulo seguinte, narrativas nas quais a reminiscência é
acompanhada de circunstâncias que permitem supor acharmo-nos em presença de
lembranças reais de vidas passadas.
129
Gabriel Dellane – A Reencarnação
Capítulo X
Reminiscência certa relativa ao século XVIII. – O despertar das lembranças da Sra. Katherine
Rates. – O caso de Laura Raynaud.
TRIANON
O Trianon me parecia ainda mais familiar, ainda que faltassem muitos objetos, que eu
acreditava se deviam encontrar ali. O aposento da música era idêntico ao que eu tinha
visto em sonho, quando tocava diante da rainha; só as cadeiras tinham colocação
diferente.
Outro fato curioso a respeito do Trianon é este: eu desenhara muitas vezes o
monograma M. A., embaixo dos retratos de Maria Antonieta e, como todos sabem, há
maneiras diversas de traçar estas letras; meu monograma, porém, era sempre o mesmo,
e descobri que fora o fac-simile daquele que se encontra na escala, no Trianon.
Mas, o que me perturbou profundamente, ao visitar o Trianon, foi a multidão por
meio da qual o guia nos conduziu, através dos apartamentos. Eu tinha quase certeza de
que, se pudesse passar um dia ou uma noite sozinha nesses aposentos, veria pessoas
que neles habitaram e cenas que ali outrora se desenrolaram.
Muitas pessoas há que têm a sensação, ao ver um lugar pela primeira vez, de que já o
viram. Pode existir, mesmo, para o caso, uma simples explicação científica, mas eu não
me limitava à lembrança desses lugares, fazia mais, antes de chegar a um ponto, de
dobrar uma esquina, podia dizer o que se encontrava além, com pormenores exatos.
Assim, por exemplo, quanto ao castelo de Marly, em cujo local só há hoje ruínas, e do
qual nenhum guia fala, aí chegando pela primeira vez, descrevi a um amigo o que
iríamos achar numa curva do caminho, o que foi absolutamente certo.
A própria Paris me parecia menos familiar do que eu esperava; não podia, entretanto,
passar na rua Saint-Honoré, sem que um calafrio me percorresse a espinha, e nada me
fazia ir a certo lugar da Praça da Concórdia, antiga Praça da Revolução. Descrevia
sempre um círculo em torno dela e tinha um estremecimento de pavor com toda a
praça. Uma noite, quando dormia em um hotel situado na esquina da rua Saint-Honoré,
fui assaltada por terrível pesadelo.
132
Gabriel Dellane – A Reencarnação
Ouvia os rugidos selvagens da populaça e, olhando pela janela, vi Maria Antonieta
passar na carrocinha, e a mim mesmo, na multidão, lutando freneticamente por abrir
caminho, enquanto gritava sem cessar:
– A Rainha, deixem-me alcançar a Rainha! Devo chegar junto da Rainha!
Depois, via-me perto do cadafalso, batendo freneticamente nas pernas do carrasco,
para o impedir de executar o seu triste ofício, e a multidão arremessava-me para trás.
Dei então um grito horrível, e o meu sonho terminou.
Enquanto morei perto de Versalhes, vi muitas vezes Maria Antonieta sentada em uma
cadeira, perto de minha cama. Estou agora na Inglaterra; revi a rainha, a plena luz do
dia, sentada perto de minha escrivaninha, em atitude de desconsolo. A visão durou
apenas alguns segundos. Procurei, muitas vezes, encontrar a explicação desse mistério,
que me assombra desde a primeira infância. Parece-me que não poderá haver outra
hipótese além da recordação de uma existência anterior.
Durante todo o tempo de minha estada em França, acreditei que resolveria o enigma,
mas foram vãos meus esforços, o que me causou sensação penosa. Não perdi ainda a
esperança de aproximar-me da solução desse grande mistério, quando voltar àquele
país.
C. A. B.”
Esta narrativa apresenta características que permitem colocá-la entre as que nos dão
provas de uma vida anterior. É de notar tenha a testemunha, desde seus verdes anos,
desenhado personagens, homens ou mulheres do fim do século XVIII, apesar de não ter tido
nunca um modelo diante dos olhos.
Há algo mais do que o sentimento do já visto, para as descrições do castelo de Versalhes,
desde que essa senhora sabia de antemão onde se encontravam os apartamentos de Maria
Antonieta e, no Trianon, reconheceu a sala em que, no sonho, tocava cravo. É provável que
fosse por lucidez que adquirisse aqueles conhecimentos, os quais possuiu igualmente para o
castelo de Marly, donde só existem ruínas.
A visão quase constante, desde tenra idade, de Maria Antonieta, permite supor que
existia, entre aquela senhora e a rainha de França, relações anteriores. Creio que este caso é
digno da mais séria atenção.
Despertar de recordações
Voltando à casa de nossos amigos, a Sra. Raynaud, ao jantar, deu pormenores sobre
seu achado, evocou com prazer algumas lembranças de sua precedente existência, e
depois acrescentou:
– Sei que não estou enterrada, como todo o mundo, no cemitério; meu corpo repousa
em uma igreja, tenho disso a convicção.
Ficaram todos perplexos. Mas o tempo urgia. A Sra. Raynaud terminara sua missão
em Gênova; era preciso voltar à França. Eu tinha com efeito grande necessidade dela
para que magnetizasse meus doentes, e ela, por seu turno, desejava estar presente antes
do fim do Congresso.
139
Gabriel Dellane – A Reencarnação
Voltou. Tive, então, conhecimento de todas as surpresas que lhe reservara a viagem,
e tomei desde logo a decisão de fiscalizar, nos limites do possível, o que disse minha
colaboradora. Havia muitos pontos interessantes a pesquisar.
Primeiro: Existira na casa referida, em Gênova, uma senhora, que pudesse ser
identificada com a hipotética Sra. Raynaud, morena, sempre doente, morta de doença do
peito, há cerca de um século? Se essa pessoa existiu, onde estava sua sepultura?
Munido desses pontos de interrogação, fiz, por intermédio de um amigo, longas
pesquisas em Gênova; elas conduziram a bem estranhas averiguações.
A igreja de S. Francisco de Álvaro conserva em seus arquivos os obituários das
pessoas falecidas na casa indicada pela Sra. Raynaud, como sendo sua. Nesses arquivos,
meu amigo descobriu um registro de que me enviou cópia, e que reproduzo
integralmente, com exceção do nome da família, que designo pela letra D. Nele se nota:
1º) que há referência a uma mulher, que foi sempre adoentada, o que é conforme o
que relatou a Sra. Raynaud;
2º) que essa mulher parece ter morrido do peito, pois que ali se diz que morreu de
um resfriamento; o termo morrer de resfriamento é em geral sinônimo de
morrer de tuberculose pulmonar;
3º) que o falecimento remonta há cerca de um século, exatamente em 22 de outubro
de 1809;
4º) que o corpo da defunta foi enterrado em uma igreja.
Notemos, enfim, que no registro nada contradiz o que declara a Sra. Raynaud.
Quando recebi de Gênova o atestado de óbito, que seria o da Sra. Raynaud, eram
cerca de 9 horas da manhã; achava-me à mesa e fazia o meu pequeno almoço; estava
nesse dia atrasado para com as minhas ocupações. Muitos doentes me esperavam.
Bebendo à pressa o conteúdo de minha xícara de leite, abria igualmente à pressa a
minha correspondência, contentando-me em lançar a vista sobre a extensão, a letra, a
natureza e a assinatura, reservando-me depois para a leitura. O atestado teve a mesma
sorte; a carta, com os selos italianos e a letra do meu amigo de Gênova, indicara-me a
proveniência do papel e sua natureza. Vi algumas palavras do texto, as assinaturas e
nada mais. Fechei a carta, coloquei-a sobre a mesa com as outras e fui ver meus doentes.
Pela manhã, veio-me a idéia do registro. Falei dele a uma amiga que pediu informes.
Respondi-lhe, mais ou menos:
140
Gabriel Dellane – A Reencarnação
– Não o li, sei apenas que vem de Gênova, que é o extrato do registro de uma
paróquia, mas não sei qual; que o prenome da defunta é Joana, e creio também que o
nome da família começa por D. É tudo o que sei.
Tive então a idéia de entregar o ato genovês a um dos meus amigos videntes, a ver se
ele me poderia revelar alguns fatos interessantes, verificáveis; para evitar, porém, tanto
quanto possível, o elemento transmissão do pensamento, esse grande escolho da
vidência, procurei fazer com que nenhuma pessoa, das que me rodeavam, pudesse ler o
conteúdo do registro. Conhecendo-o, poder-se-ia, quem sabe, agir telepaticamente
sobre o paciente adormecido e falsear, talvez, a natureza do resultado. Tomei, pois, o
papel e, sem que eu mesmo lhe lançasse de novo as vistas sobre o conteúdo, meti-o num
envelope, que fechei. Só eu o tinha visto, em Paris, e dele sabia apenas as palavras
precedentemente lidas. Recebi logo uma de minhas pacientes, a Sra. d’Elphes, adormeci-
a e lhe dei o papel, sem lhe dizer a menor palavra relativamente ao que dela desejava.
Sessão de 28 de maio de 1913 – Instalo-me em minha escrivaninha, tomo a pena e
anoto tudo o que diz a paciente, sem dizer sim ou não, se está certo ou errado.
Transcrevo aqui as notas tais como se encontram em meu livro de observações:
– Este papel vem de longe... Espero que me oriente... Vejamos, é dali. (Indica o Meio-
Dia.) Sim, mais longe; deixo a França, mas sem atravessar o mar. Ah, aí estou: é a Itália,
há o mar perto, um ponto: é Gênova. (Desde que faço experiências com pessoas
adormecidas, é a segunda vez, apenas, que uma paciente me pode dizer o nome preciso
de uma cidade.) (Silêncio) Eis-me em uma grande casa; que bela casa, branca, grande
sem ser imensa, mas que estilo é esse? Vejo grandes janelas, e acima outras menores,
abobadadas. (Até aqui tudo é rigorosamente igual às declarações da Sra. Raynaud.) À
esquerda, olhando para a fachada, vejo uma torre. Sobe-se por muitos degraus a um
grande vestíbulo lajeado. (Inexato.) A casa fica numa inclinação, o jardim alteia-se por
trás. (Tudo muito exato; na fotografia da casa que publiquei não se vê a fachada
principal e, por conseqüência, os degraus; não pudemos tirar a fotografia por outra
forma.) Mas, que devo encontrar nessa casa? – pergunta a Sra. d'Elphes. – Noto aí muita
gente.
– Procure – disse eu – uma senhora de que trata o papel que tem em mãos.
– Uma senhora... ah, sim, eu a vejo, mas a senhora morreu.
– Pode dar-me o seu nome?
– Um nome, é muito difícil. (Procura, suspira, depois.) Não sei se me engano, vejo
Joana.
– E o nome de família
– Espere, vêem-se muitos; Broglie, acho que esse nome tem relação com o que nos
interessa; não o posso ver com os olhos, encontro ainda dois que começam por M.
Modena? Médicis? (Tudo isso é ruim.) Ah, vejo agora um S e o nome tem sete letras, a
segunda poderia bem ser um a, e vejo dois ff no meio. (Muito exato.)
A paciente está fatigada; desperto-a.
Sessão de 4 de junho de 1913 – Adormeço a Sra. d’Elphes; quando ela se acha em
sonambulismo, dou-lhe o mesmo envelope fechado, que contém o registro, e digo-lhe
somente:
– Continue a descrição que deixou na sessão precedente.
E então, depois de alguns instantes, diz ela:
141
Gabriel Dellane – A Reencarnação
– Aí estou; vejo Joana em uma grande casa de Gênova. Ora, mas como ela sofre!
Tosse. E depois, não é doce de gênio... É um caráter altivo, não a vejo viver muito tempo,
vejo-a morta... (Um silêncio.) Então, que devo ver? (Tudo aqui é de acordo com o quadro
que a Sra. Raynaud tinha pintado de si própria.)
– Continue – disse eu – a ver a Sra. Joana.
– Que quer que veja a seu respeito? Ah, espere, parece-me que ela não foi enterrada,
como todos, em um cemitério.
– Então, onde poderia ter sido enterrada:
– Doutor, não sei se me engano, mas parece que em uma igreja.
Creio interessante acentuar que, até então, a minha paciente só tinha dito coisas por
mim conhecidas, e aqui começam as verdadeiras revelações.)
– Em uma igreja?
– Sim, a igreja é retangular, quase quadrada, com colunas à entrada e pilares mais
adiante; Joana está lá num túmulo; ele é perto do altar e bem modesto; a pedra não é
horizontal, mas vertical, e por trás vejo sete esquifes; contém pessoas da família de
Joana, e o ataúde desta se acha situado junto à parede. É só o que vejo. Estou fatigada.
Ah, vem-me uma idéia! Essa Joana não tem descendentes em França, no Meio-Dia? Vejo
muitos.
– Não sei absolutamente nada.
A sessão foi longa; desperto a Sra. d’Elphes.
A Sra. Raynaud nunca me dissera que, depois de sua curta existência, fora enterrada
numa igreja. Procurei, pois, saber se a paciente tinha visto certo. Abri o envelope que
continha o registro de óbito e li: – Seu corpo foi transportado e enterrado na igreja de
Notre-Dame-du-Mont.
Teria eu lido inconscientemente o registro, antes de o meter no invólucro, e a
revelação fornecida pela paciente não seria mais que um fenômeno de leitura nas
profundezas de meu cérebro? Quem sabe? Em todo caso, no que se refere à descrição da
igreja, não foi o informe lido em meu subconsciente, pois que não a podia
absolutamente saber. Ignorava, com efeito, como era construída aquela igreja, porque
nunca fui a Gênova. Para verificar a justeza da vidência da paciente, escrevi a meu
amigo genovês e lhe mandei cópia da narrativa da vidente, pedindo que ele mesmo
observasse o que havia de verdade nas revelações. Alguns dias depois recebia uma carta
de que extraio as passagens seguintes:
“Meu caro Doutor:
Fui domingo de manhã à igreja. Não me pude entregar a todas as investigações
necessárias, porque a igreja estava ocupada com o serviço da missa. Procurei em vão o
túmulo, perto do altar-mor, que se encontra na cripta, então cheia de gente. A igreja é
efetivamente retangular, quase quadrada, com colunas à entrada e pilares em seguida,
Voltarei na próxima semana.”
Alguns dias depois, recebi novos informes de Gênova.
Meu amigo C... voltou à igreja, fora das horas do serviço religioso. Eis um trecho de
sua carta:
142
Gabriel Dellane – A Reencarnação
“Envio-lhe a fotografia da igreja; não a pude tirar de outra forma, em razão da
topografia do lugar. Há, com efeito, como disse sua vidente, um túmulo: é o da família
S... apenas, não está situado ao lado do altar, mas embaixo. Sobe-se aí por uma escada.”
Essa carta retificava em parte a precedente. Havia um túmulo na igreja. Apenas o
local era inexato. Não pude saber nem o número de defuntos sepultados nesse
sarcófago, nem o sítio ocupado por Joana. Foi lamentável.
Escrevendo a meu amigo, pedi-lhe indagasse se a família S... tinha representantes no
sul da França. Depois de muitas semanas, respondeu-me ele:
“Não há membros da família S... no Sul, mas existem no Principado de Mônaco; não é
longe do sul da França.”
Com efeito.
Sessão de 11 de junho de 1913 – Paciente: Sra. d’Elphes; Experimentador: Dr. Durville;
Testemunhas: André Durville, Sra. Raynaud.
Adormeço a Sra. d’Alphes. Como precedentemente, quando ela está sonambulizada,
peço que se transporte de novo a Gênova. Diz ela espontaneamente:
– Mas Joana está agora reencarnada, sinto-me atraída para o norte da França, uma
região plana, de campo, pequena aldeia, perto, porém, de uma grande cidade. Por que
vejo essa aldeia? Noto como um arco-íris que liga a igreja onde repousa o corpo de
Joana à aldeia.
– Mas que significa o arco-íris?
– Quer dizer que há uma estreita relação entre os dois países, que ele toca. Sim, é
nessa aldeia que Joana reencarnou.
– Mas, como quer que conheça uma aldeia no norte da França com os sinais que me
dá?
– Espere, na cidade vejo um rio muito importante, e depois uma bela igreja. Ah, mas é
muito bela! Há uma grande catedral gótica. (Silêncio.) Mas eu conheço essa catedral, é a
de Amiens. Então Joana reencarnou numa pequena aldeia, perto de Amiens. É isso.
– Pode descrever-me a casa?
– Espere; procuro-a. Ah! Ei-la; como é bizarra, não tem nada de bonita; você sabe
como é diferente da de Gênova, é uma casa pequenina, simples.
– Entre e diga-me o que vê.
– Entro numa grande sala, depois de ter subido dois ou três degraus, vejo outra sala e
em frente uma escada de madeira, que conduz ao celeiro. (Há aqui uma inexatidão; vê-
la-emos já.) Noto na casa uma jovem; é ela que me interessa, é Joana reencarnada; mas
por que se reencarnou nessa casa tão modesta? Vejo-lhe os pais, são bons e simples
camponeses. Quê? Que percebo? Acabo de ver, de repente, a pequena toda vestida de
azul.
E como eu não compreendesse nada de toda essa história:
– De azul, que quer dizer? É seu corpo que é azul?
– Não; quero dizer que ela está vestida de azul; roupas azuis, meias azuis. Mas o que
significa, é um símbolo, sem dúvida.
– Não, não creio que seja um símbolo, quer dizer que a criança está vestida de azul.
– Já viu crianças vestidas de azul?
143
Gabriel Dellane – A Reencarnação
– Certamente, no campo vêem-se muitas vezes as crianças de azul, e vestem-nas de
azul até os 9 anos.
(Surpreendido pelo que acabo de ouvir, lanço um olhar à Sra. Raynaud, que está
assentada atrás de mim, numa poltrona; ela faz-me um sinal, sem dizer palavra, de que
é exato o que declara a vidente, e que é preciso deixá-la continuar.)
– Então me explique por que esta criança está de azul.
– Vejo-a agora maior. Está vestida como toda gente. Deixa cedo o seu torrão natal. Vai
à cidade vizinha, sem dúvida, mas não fica aí; vejo-a, senhora. Ah! (a vidente espanta-se
e continua) oh, quem entra aqui?
(Ninguém entra na sala, foi meu irmão André quem fez ruído, mexendo-se.)
– Não, alguém entrou com o senhor, é a senhora.
– A senhora? Que senhora? Joana reencarnada?
– Sim, é ela mesmo... ela está la, vejo-a, ah, mas (e dirige-se à Sra. Raynaud); mas é
possível, confunde-se com ela.
– Que quer dizer? Você se ilude.
– Não; asseguro-o: fazem-me compreender que Joana e a Sra. Raynaud são a mesma
pessoa.
– Como, a mesma pessoa?
– Perfeitamente. Não o sabe? Eu o compreendo agora. Diga-me, a Sra. Raynaud não
nasceu perto de Amiens? Então, é isto. É bem dela que se trata. A senhora não se vestia
de azul quando era pequena?
– Sim, sim – responde a Sra. Raynaud.
Estando a paciente fatigada, suspendo a sessão.
CURIOSAS DECLARAÇÕES
As sessões de 28 de maio e de 4 de junho foram muito curiosas: a Sra. d’Elphes, sem
nada conhecer da história da Sra. Raynaud, fizera interessante descrição dos lugares
que ela teria habitado. Em seguida, indicou a existência, nesses lugares, duma Sra.
Joana, que correspondia aos sinais dados pela Sra. Raynaud. Revelava-nos, em seguida,
que Joana fora enterrada numa igreja.
A 11 de junho, a Sra. d’Elphes nos diz que Joana reencarnara em uma aldeia, perto de
Amiens, fez descrição da casa natal, afirmou que Joana, criança, vestia-se de azul e
acabou por declarar: Joana reencarnada é a Sra. Raynaud.
Comentemos, agora, esta última sessão. A vidente assegura-nos que Joana
reencarnou perto de Amiens, em uma aldeiazinha. Ora, a Sra. Raynaud nasceu em
Aumont, a 25 quilômetros de Amiens; ela não podia conhecer esse pormenor. Quanto à
descrição da casa natal, a paciente disse coisas que correspondem à casa em que nasceu
a Sra. Raynaud, do que me assegurei, indo a Aumont. A casa, com efeito, tem modesto
aspecto. Entra-se, desde logo, na sala principal e percebe-se outra à direita, mas a
escada assinalada pela vidente não existe; só há um degrau na porta, em lugar de dois
ou três.”
Consultando a mãe da Sra. Raynaud, soube o doutor que Laura fora consagrada ao azul,
em seguida a uma novena que coincidira com seu restabelecimento.
144
Gabriel Dellane – A Reencarnação
A crítica do Dr. Gaston Durville, após a narrativa do caso de Laura Raynaud, não me
parece suficiente para suprimir por completo a hipótese de uma sua vida anterior. Com
efeito, não é possível recusar o testemunho da mãe de Laura, quando ela afirma que sua filha
falava ao cura de uma existência passada.
Verificamos já que certas crianças têm a intuição de haver vivido anteriormente e
veremos que há outras que conservam indiscutíveis lembranças de suas vidas anteriores. A
objeção de que uma criança ignorante poderia formular tão complicado pensamento não é
muito válida.
É possível que, ouvindo dizer que ela tinha um tipo meridional, Laura se imaginasse
nascida outrora em uma região do Meio-Dia, sob o belo céu azul da Itália. Poderia ser, ainda, e
é a objeção mais séria, que, durante o sono, tivesse, por clarividência, visitado o país dos seus
sonhos, e que, acidentalmente, parasse nos arredores de Gênova, diante da casa de que deu,
antes de tê-la visto, tão exata descrição.
Isto seria já um curioso caso de lucidez, mas esta hipótese está longe de explicar todas as
circunstâncias. Não explica, com efeito, o conhecimento de que uma senhora, do começo do
século XIX, tivesse morrido de doença do peito, nessa casa, nem que fosse inumada em uma
igreja, nem a certeza que tinha Laura, em sua infância, de haver vivido anteriormente.
Parece, pois, ressaltar, do exame dos fatos, que a hipótese mais provável, porque é a que
melhor explica todos os incidentes desse caso notável, é a preexistência de Laura Raynaud.
O Dr. Gaston Durville não lhe é sistematicamente hostil, pois que declara, ao terminar seu
estudo:
“Agora, trata-se de um caso de reencarnação: Confesso que nada sei, mas acho que a
hipótese reencarnacionista não é, neste caso, mais absurda que qualquer outra.
A ilusão, a auto-sugestão, a lucidez e a vidência não justificam tudo. Podem, talvez,
explicar muitas coisas. Há lugar para outras hipóteses, a reencarnação é do número
delas.”
Sim, meu caro doutor, aqui é, indiscutivelmente, a melhor de todas.
145
Gabriel Dellane – A Reencarnação
Capítulo XI
Vou reproduzir os fatos que reuni em minha memória sobre as vidas sucessivas,
apresentadas ao Congresso de Londres, em 1898. Fá-los-ei seguir das reflexões que aduzi
depois.
Juliano, o apóstata, lembrava-se de ter sido Alexandre da Macedônia. Contava
Empédocles que ele se lembrava de ter sido rapaz e moça. Como nada sabemos das
circunstâncias que poderiam determinar essas afirmativas, passaremos aos escritores de
nossos dias que relatam fatos da mesma ordem.
Entre os modernos, o grande poeta Lamartine declara, em sua Viagem ao Oriente, ter tido
reminiscências muito claras. Eis o seu testemunho:
“Não tinha na Judéia nem Bíblia, nem livro de viagens, nem ninguém que me pudesse
dar o nome dos lugares, a denominação antiga dos vales e das montanhas; reconheci,
entretanto, desde logo, o vale de Terebinto e o campo de batalha de Saul. Quando fomos
ao convento, os padres confirmaram a exatidão de minhas previsões; meus
companheiros não podiam acreditar. Em Sephora, designei com o dedo e dei o nome de
uma colina, no alto da qual havia um castelo arruinado, como o lugar provável do
nascimento da Virgem.
No dia seguinte, ao pé de árida montanha, reconheci o túmulo dos Macabeus, e dizia a
verdade sem o saber. Exceto o vale do Líbano, nunca encontrei na Judéia um lugar ou
qualquer coisa que não fosse para mim como uma recordação. Já vivemos, pois, duas
vezes, mil vezes? Não será nossa memória uma imagem desbotada, que o sopro de Deus
reaviva?”
Estas reminiscências não podem ser devidas a lembranças provenientes de leituras,
porque a Bíblia não dá a descrição exata das paisagens onde se passaram as cenas históricas;
relata, simplesmente, os acontecimentos.
Podem-se atribuir essas intuições, claras e precisas, a uma clarividência durante o sono?
Não está de forma alguma demonstrado que Lamartine fosse sonâmbulo, mas, admitida essa
hipótese, como poderia ele conhecer os nomes exatos de cada um daqueles lugares? Se são
Espíritos que os indicam, por que só se lembra o sensitivo das paisagens e nunca dos seus
146
Gabriel Dellane – A Reencarnação
instrutores invisíveis? Não é preciso fazer intervirem os Espíritos, quando sua presença não
for demonstrada.
No jornal La Presse, de 20 de setembro de 1868, um romancista popular, Ponson du
Terrail, aliás inimigo do Espiritismo, escrevia que se lembrava de ter vivido ao tempo de
Henrique III e Henrique IV e, nessa revivescência, o rei em nada parecia com o que dele
diziam seus pais.
Poderia lembrar, também, que Théophile Gauthier e Alexandre Dumas afirmaram, por
diferentes vezes, sua crença nas vidas sucessivas, baseada em lembranças íntimas. lxxxi
Prefiro, porém, as narrativas que trazem consigo as provas de autenticidade.
Devo à gentileza de Edmond Bernus o informe seguinte relativo ao Père Graty. Assim,
escreve ele em Souvenirs de ma jeunesse: lxxxii
“Eu acabava de começar os estudos de latim. Não esquecerei nunca que, em uma
noite, num instante, o senso do gênio latino me foi dado. Refletindo em uma frase latina,
compreendi, repentinamente, o espírito dessa língua. E, de fato, meus progressos foram
singulares. Aprendi o latim de dentro para fora; parece-me que o tirava do fundo do
meu espírito, onde ele estava inoculado. Durante muitos anos, pensei em latim. Cheguei
a sonhar em latim, a fazer em sonhos discursos em versos latinos, de que me lembrava
ao acordar, e que eram corretos.
Exprimia nessa língua, mais facilmente e mais claramente do que em francês, meus
menores pensamentos.”
Nota Bernus que Graty não conhecia as idéias reencarnacionistas, o que dá muito valor a
esse trabalho de suas memórias.
Eis outro caso em que a reminiscência se produz pelo uso da língua latina. Em um artigo
bibliográfico sobre Méry, editado quando ele ainda vivo, no Journal Littéraire de 25 de
setembro de 1864, o autor afirma que aquele escritor acreditava firmemente ter já vivido
muitas vezes; que se lembrava das menores circunstâncias de suas existências precedentes e
as pormenorizava com uma certeza que impunha a convicção.
Assim, diz o biógrafo, ele afirma ter feito a guerra das Gálias e haver combatido na
Germânia com Germanicus. Reconheceu, muitas vezes, sítios onde acampou, e certos vales
dos campos de batalha em que outrora pelejara. Chamava-se, então, Minius. Há um episódio
que parece estabelecer não serem essas lembranças simples miragens de sua imaginação.
Cito textualmente.
“Um dia, em sua vida presente, estava em Roma, e visitava a biblioteca do Vaticano.
Foi recebido por dois jovens, noviços de longas vestes escuras, que se puseram a falar-
lhe no mais puro latim. Méry era bom latinista, no que se refere à teoria e às coisas
escritas, mas não experimentara, ainda, conversar familiarmente na língua de Juvenal.
Ouvindo esses romanos de hoje, admirando o magnífico idioma tão bem harmonizado
com os monumentos, com os costumes da época em que estivera em uso, dir-se-ia que
um véu lhe caía dos olhos; que ele mesmo havia conversado, em outros tempos, com
amigos que se serviam dessa linguagem divina. Frases inteiramente feitas e
irreprocháveis caíam-lhe dos lábios; achou, desde logo, a elegância e a correção, enfim,
falou o latim, como fala o francês. Tudo isso não se podia fazer sem uma aprendizagem,
e se ele não tivesse sido um súdito de Augusto, se não houvesse atravessado esse século
de esplendor, não improvisaria uma ciência impossível de adquirir em algumas horas.”
147
Gabriel Dellane – A Reencarnação
O autor tem razão. É preciso distinguir com cuidado o fato das hiperestesias da memória,
muitas vezes observado no sonambulismo, e na doença. Naqueles estados especiais, o
paciente repete, por vezes, tiradas inteiras, ouvidas outrora no teatro ou lidas antigamente e
profundamente esquecidas em estado normal. Mas, uma palestra sustentada em língua
desusada, sem hesitações, sem pesquisas, gozando o indivíduo de todas as suas faculdades,
supõe, evidentemente, para a pronúncia e para a tradução, o funcionamento de um
mecanismo, muito tempo inativo, mas que se revela no momento propício.
Não se improvisa uma linguagem, ainda mesmo que dela se conheçam as palavras e as
regras gramaticais. Fica a parte mais difícil: a do enunciado das idéias, que depende dos
músculos da laringe e das localizações cerebrais e que não pode adquirir-se senão pelo
hábito. Se a esta ressurreição mnemônica se juntam as lembranças precisas de lugares
outrora habitados, há fortes presunções para se admitirem as vidas múltiplas como a mais
lógica explicação desses fenômenos.
Eles são, aliás, menos raros do que se tem pretendido. Vou ainda citar alguns exemplos
tomados à coleção da Revue Spirite.
Um espiritista da primeira hora, o Prof. Damiani, dirigiu, a 1º de novembro de 1878, ao
editor de Banner of Light de Boston, uma carta em resposta a certas polêmicas sobre a
reencarnação. Extraio a passagem seguinte:
“Que me seja permitido dizer porque penso não ter sido enganado em minhas visões
espirituais. Antes de ser reencarnacionista, e quando era oposto a essas teorias,
diferentes médiuns, que não se conhecem, falaram de minhas reencarnações.
Ri muito e qualificava como histórias essas revelações. Mas, escoados muitos anos,
quando já as havia esquecido, adquiri o dom da visão espiritual e me vi a mim no meio
das famílias de minhas existências passadas, vestido com as roupas do tempo e dos
povos que os videntes me haviam descrito. Oh! para mim, ver devia ser acreditar.”
Esta declaração me pareceu probante, pois que emana de observador incrédulo, que só se
convenceu depois de observação pessoal. Que causas poderiam produzir as afirmações
concordantes de médiuns que se não conheciam?
Se as vidas anteriores deixam traços em nós, se é possível a certas pessoas lerem essas
inscrições hieroglíficas, essas ruínas veneráveis, escritas em uma língua que só a faculdade
psicométrica permite decifrar, as descrições dos videntes devem ser semelhantes, pois se
apóiam em documentos positivos. Daí, provavelmente, essa unanimidade, que o Prof.
Damiani verificou, quando os dons se desenvolveram nele.
A Revue Spirite de 1860, pág. 206, transcreveu a carta de um oficial de Marinha, que se
lembra de ter vivido e ter sido assassinado na época de S. Bartolomeu. As circunstâncias
dessas existências ficaram gravadas profundamente em seu ser, e ele narra fatos que
mostram não serem essas reminiscências devidas a um capricho do seu espírito.
“Dizia-vos, escreve ele, que tinha 7 anos quando sonhei que, fugindo, fui atingido nas
costas por três punhaladas! Se vos dissesse que a saudação que se faz, em armas, antes
de nos batermos, eu a fiz pela primeira vez quando tive um florete na mão! Se vos
dissesse que os preliminares, mais ou menos graciosos que a civilização pôs na arte de
matar, me eram conhecidos, antes de qualquer educação nas armas!... Essa ciência
instintiva, anterior a qualquer preparo, deve ser adquirida em alguma parte. Onde, se só
se vive uma vez?”
148
Gabriel Dellane – A Reencarnação
Refere o Sr. Lagrange, em carta dirigida à Revue Spirite (ano 1880, pág. 361), que
conhece, em Vera Cruz, uma criança de 7 anos, chamada Jules-Alphonse, que cura com a
imposição de suas mãozinhas, ou com o auxílio de remédios vegetais, de que dá as receitas.
Quando se lhe pergunta onde as houve, responde que ao tempo em que era médico. Essa
faculdade extraordinária revelou-se aos 4 anos e muitas pessoas cépticas declararam-se, em
seguida, convencidas.
Pode-se pretender que a criança é simplesmente médium; com efeito, ela ouve os
Espíritos, mas sabe perfeitamente distinguir o que se lhe revela do que tira do seu íntimo –
essa convicção de que era médico. Tal idéia não lhe foi inculcada pelos guias, é inata.
Bouveri cita em Lotus Bleu o caso de Isac Foster, cuja filha Maria morreu em Ill, no
Condado de Effigam.
Ele teve, alguns anos mais tarde, uma segunda filha, que nasceu em Dakota, cidade em
que veio habitar depois da morte de Maria. A nova filha chamou-se Nellie, mas persistia,
obstinadamente, em dizer-se Maria, declarando que esse era o verdadeiro nome pelo qual lhe
chamavam outrora.
Em uma viagem, em companhia do pai, ela reconheceu a antiga morada e muitas pessoas
que nunca vira, mas que a primeira filha Maria conhecera bem.
“A uma milha de nossa antiga habitação – diz Foster –, encontra-se a escola que
Maria freqüentava. Nellie, que nunca a vira, dela fez exata descrição e mostrou-me o
desejo de revê-la. Levei-a e, uma vez lá, ela dirigiu-se diretamente à banca que sua irmã
ocupava, dizendo-me: – Eis a minha.
– Dir-se-ia um morto revindo do túmulo – acrescenta o pai.
É esta a expressão exata, porque, se é possível imaginar que a criança fosse a essa
região em estado sonambúlico, ninguém, entretanto, lhe teria podido indicar as pessoas
que Maria conheceu, e Nellie não se enganou, apontando-as com segurança.”
Se a reencarnação é uma verdade, bastante lógico é que as lembranças referentes a uma
vida anterior se revelem, como já o disse muitas vezes, mais freqüentemente entre as
crianças, visto que o perispírito, antes da puberdade, possui ainda um movimento vibratório
que, em certas circunstâncias especiais, pode adquirir bastante intensidade, para fazer
renascer recordações da existência anterior.
Vamos ver ainda muitos exemplos. Devo o primeiro à gentileza do meu excelente amigo,
o Comandante Mantin.
“Minha mãe mantivera – diz ele – com uma amiga de convento uma correspondência
seguida, da qual extraio o que você vai ler. Esta senhora tinha consigo, em Bordéus, uma
sobrinha, filha de uma irmã casada em Valadolid, em Espanha. Depois de reiterados
pedidos para que lhe levasse ou enviasse a filha, a amiga de minha mãe nos escreve que
se decidira a confiar a menina a honestos viajantes espanhóis, que se dirigiam a Segóvia,
passando por Valadolid.
Por esse tempo, principiavam a construir-se as estradas de ferro na Espanha; de
Fontarabia a Irun, S. Sebastião e Valadolid, o trajeto fazia-se em diligência e durava
muitos dias.
Depois de haver abraçado a sobrinha e tê-la recomendado aos seus companheiros de
viagem, a amável tia viu partir o veículo, que acompanhou com os olhos, até que
desapareceu numa dobra da estrada.
149
Gabriel Dellane – A Reencarnação
A menina instalou-se numa banqueta, diante de uma vidraça, a fim de contemplar a
paisagem.
Parecia maravilhada, ria, tagarelava sozinha. Depois, como se atravessasse uma
região conhecida e já vista, pôs-se a dizer o nome das aldeias por onde o carro ia
passando.
A atenção dos viajantes foi despertada pelas citações exatas da criança. Eles a
interrogavam, admirados com a memória de tão pequena menina, e lhe perguntaram se
ela fizera aquela viagem havia muito tempo.
Atenta ao que lhe parecia conhecer e rever, respondia rindo: “Mas eu nunca vim” e os
espanhóis, entusiasmados, deixavam-na tagarelar, cada vez mais surpreendidos com a
memória dela.
A pequena viajante anunciava, de antemão, por toda parte, o que devia desfilar de
belo e interessante, sob os olhos de seus companheiros de viagem. Demonstrou que,
evidentemente, viera já a S. Sebastião. Antes de chegar a Burgos, onde se passou a noite,
a criança anunciou que se ia ver a mais bela igreja da Espanha.
E foi assim até Faladolid, onde a diligência chegou no quarto dia; a mãe esperava,
impacientemente, a cara filhinha.
Depois de havê-la acariciado com ternura, agradeceu aos viajantes, com sinais do
mais vivo reconhecimento, os cuidados que tiveram para com a pequena.
Foi então que eles lhe gabaram a memória, que tanto admiraram numa criança, e lhe
contaram como a pequena se lembrara maravilhosamente de tudo o que vira na sua
precedente viagem. Mas não ocultaram o quanto estavam surpresos com o motivo que
levava a menina a desnaturar a verdade, sustentando que vinha à Espanha pela
primeira vez.
A mãe, muito admirada, afirmou que a pequena não tinha mentido, porque era,
efetivamente, a primeira vez que saía da França, onde fora confiada à irmã, até que ela e
seu marido se instalassem em Valadolid.
A criança, compreendendo que os espanhóis duvidavam das asserções até de sua
genitora, pôs-se a chorar, dizendo: “Eu não menti, não me lembro de ter feito uma
primeira viagem; o que eu sei é que já vi tudo isso.”
Alguns dias depois, um dos companheiros da menina veio entregar a sua mãe a
curiosa narrativa desses fatos, que julgou deveria redigir, a intitulou: Sonhos verídicos
de uma criança acordada.
Comandante Mantin.”
Ainda aqui, qualquer interpretação, que não a das lembranças de uma vida anterior, não
explicaria o conhecimento, dessa menina, tão numeroso e preciso.
O fenômeno, nas crianças, das lembranças de uma vida passada, não é particular a uma
época ou a uma nação. Vejamos dois relatos que provam que, tanto na Ásia, como na América,
como na Europa, a revivescência da memória se encontra em todas as classes da sociedade.
Extraio da descrição do Dr. Henrich Hendsold sobre a visita que fez ao Grande Lama em
Lhassa. lxxxiii
“Há cinqüenta anos, duas crianças nasceram em uma aldeia chamada Okshitgon, um
menino e uma menina. Vieram ao mundo no mesmo dia, em casas vizinhas, cresceram
juntos,brincaram juntos, amaram-se.
Casaram-se e fizeram uma família, que, para viver, cultivava os campos áridos que
circundam Okshitgon. Eram conhecidos pela profunda ligação que um tinha pelo outro,
e morreram como haviam vivido, juntos.
A morte os levou no mesmo dia; enterraram-nos fora da aldeia, depois os
esqueceram, porque os tempos eram duros.
Nesse ano, após a tomada de Mandalay, a Birmânia inteira sublevou-se; o país estava
cheio de homens armados, as estradas eram perigosas e as noites ficavam iluminadas
com as chamas que devoravam os lugarejos. Tristes tempos para os homens pacíficos, e
muitos, fugindo de suas habitações, refugiavam-se nos lugares mais habitados e
próximos dos centros da administração. Okshitgon estava no centro de um dos distritos
mais castigados; grande número de seus habitantes fugiram, e entre eles um homem
chamado Maung Kan e sua jovem mulher. Eles se estabeleceram em Kabyn. Tiveram
dois filhos gêmeos, nascidos em Okshitgon, pouco antes de abandonarem o lar. O mais
velho chamava-se Maung-Gyl, isto é, Rapaz Grande. As crianças cresceram em Kabu e
começaram logo a falar. Seus pais notaram com espanto que, durante os brinquedos,
chamavam-se, não Maung-Gyl e Maung-Ngé, mas Maung San Nyein e Ma-Gyroin; este
último é nome de mulher; Maung Kan e a esposa lembraram que assim se chamavam os
cônjuges falecidos em Okshitgon, na época em que as crianças nasceram.
Eles pensavam, pois, que as almas daqueles defuntos haviam entrado no corpo dos
filhos, e os levaram a Okshitgon, para os experimentar. As crianças conheceram toda
Okshitgon, estradas, casas e pessoas; chegaram a reconhecer as roupas que vestiam na
vida anterior.
Não havia duvidar. Um deles, o mais moço, lembrou-se de ter tomado emprestado
duas rupias a um certo Ma-Thet, sem que seu marido o soubesse, quando era Ma-
Gyroin, e essa dívida não fora saldada. Ma-Thet vivia ainda. Interrogaram-no e ele se
lembrava, com efeito, de haver emprestado esse dinheiro.
O que não consta é que os pais das crianças tivessem restituído as duas rupias.
Eu as vi, às crianças, pouco depois dessa ocorrência. Têm agora 6 anos completos. O
menino mais velho, em cujo corpo entrou a alma do homem, é um bom burguês, gordo,
rechonchudo, mas o gêmeo cadete é menos forte e tem uma curiosa expressão
sonhadora. Contaram-me muitas coisas da vida passada. Disseram que depois da morte
151
Gabriel Dellane – A Reencarnação
viveram algum tempo sem corpo nenhum, errando no Espaço, ocultando-se nas árvores,
e isso por causa dos pecados; e, alguns meses depois, nasceram gêmeos.
– Era tudo tão claro, antigamente – diz-me o mais velho –, que eu podia lembrar-me
bem, mas agora as idéias se tornam cada vez mais apagadas.”
O primeiro dos dois casos precedentes tem um caráter anedótico, que se pode prestar à
crítica. “Pode mentir quem vem de longe”, diz um provérbio.
Entretanto, se transcrevo a narrativa é porque, quando se fez uma verificação em
circunstâncias idênticas, reconheceu-se a veracidade das testemunhas.
Vejamos dois casos publicados pelo Dr. Moutin, no “Inquérito sobre a Reencarnação”, do
Dr. Calderone.
Capítulo XII
Os casos de reencarnação
anunciada antecipadamente
Existem casos em que a reencarnação foi predita com bastante exatidão, para que se lhe
pudesse verificar a realidade. – A clarividência do médium não basta para explicar essa
premonição. – Exemplos de crianças que dizem à sua mãe que voltarão. – Um duplo anúncio
de reencarnação. – Lembrança de uma canção aprendida na vida precedente. – Um caso
quase pessoal. – Uma ata de Lyon, do grupo Nazaré. – O caso de Engel. – Os dois casos
contados por Bouvier. – O de Reyles. – O caso Jaffeux. – História da menina Alexandrina,
narrada pelo Dr. Samona.
Vimos nos capítulos precedentes que a lei das vidas sucessivas não se nos apresenta mais
como simples teoria filosófica, visto que se pode apoiar em fatos experimentais, como os que
se obtêm produzindo-se em pacientes apropriados a regressão da memória, que é levada
além do nascimento atual.
Essa memória latente, que repousa no subconsciente, pode, por vezes, remontar até a
consciência normal e produzir os clarões de reminiscência, que levantam um véu no
panorama do passado. Nas crianças-prodígio a ressurreição dos conhecimentos anteriores se
manifesta com tanto brilho, que é impossível deixar de se ver aí o despertar de
conhecimentos pré-natais.
Discuti as hipóteses lógicas às quais poderíamos recorrer para explicar esses casos, sem
fazer intervir a reencarnação; mostrei que elas eram insuficientes. Desejo agora passar em
revista certo número de narrativas, nas quais os Espíritos, que deviam voltar, fizeram saber
previamente, e de diferentes maneiras, a intenção de retomarem um corpo terrestre.
Por vezes, essas afirmações foram acompanhadas de informes precisos, referentes ao
sexo e às circunstâncias nas quais se produziria a volta ao mundo.
Examinarei se será possível atribuir todas essas narrativas a simples premonições ou se,
pelo contrário, nelas se deve ver a intervenção de seres independentes dos médiuns.
Essa prova resultará, em certos casos, da concordância que existe entre a predição que o
Espírito faz do seu próximo retorno entre nós e, dado o renascimento, da lembrança que esse
Espírito conserva de sua vida anterior.
São esses diferentes aspectos do fenômeno, que vou passar agora em revista.
Começo reproduzindo um artigo da Revue Spirite de 1875, página 330.
Só a evidente sinceridade do narrador me leva a ter em conta o seu testemunho, porque a
mãe, o que é lamentável, não se fez conhecer, e ignoramos se era espiritista. Como quer que
seja, eis o fato:
Esse conto é interessante por mais de um título. A princípio, porque emana de pessoa que
afirma nunca ter acreditado na reencarnação, o que suprime a hipótese de uma auto-
sugestão.
Em segundo lugar, é mais que provável que o caso nítido de clarividência, que permitiu à
Sra. B... encontrar o filho em circunstâncias idênticas à do sonho, fosse produzido pela ação
medianímica do rapaz; além disso, a filha da Sra. B... viu o irmão voltar como criança, quando
se lamentava por não ser mãe, e nada fazia prever uma próxima maternidade.
Enfim, por muitas vezes, a mãe teve a visão, em sonho, de um bebê moreno, tal como ele
veio ao mundo.
Parece que esse conjunto de circunstâncias demonstra a ação do Espírito do filho da Sra.
B..., que preveniu a mãe e a irmã de seu retorno à Terra.
Temos, agora, o relato de um oficial do Exército italiano, de forma alguma espiritista, e
que só acreditou na volta da alma ao mundo depois de tê-la verificado na própria família.
Copio textualmente a descrição contida nos Annales des Sciences Psychiques, página 60,
fevereiro de 1912.
Essa narrativa demonstra que os Espíritos voltam à Terra para melhorar. Não se trata
mais de sonâmbulos, mas de médiuns tiptólogos ou escritores, de sorte que não cabe aqui a
explicação pela clarividência, a menos que seja atribuída aos Espíritos desencarnados; mas,
ainda assim, apresenta-se outra dificuldade: é preciso supor que esses seres invisíveis nos
enganam voluntariamente, que mentem cientificamente, para sustentar um erro.
Tal conjetura me parece pouco razoável, quando se refere a Espíritos que deram prova,
em muitas circunstâncias, de altas qualidades morais; prefiro admitir o que eles anunciam, e
que se verifica, a crer num subterfúgio universal e inverossímil.
Extraio os dois fatos seguintes do Sr. Bouvier, grande magnetizador, diretor do jornal La
Paix Universelle, que se publica em Lyon.
“Um paciente, a quem ele costumava adormecer, e que goza, nesse estado, da
faculdade de ver os Espíritos, disse-lhe um dia, espontaneamente, que a alma de uma
religiosa desejava falar-lhe. Bouvier perguntou quem era e o que desejava. Ela nomeou-
se, indicou o convento situado em Ruão, onde habitava, e disse que voltaria depois de
sua morte, que seria próxima. Tanto o paciente como Bouvier ignoravam a existência
desse estabelecimento religioso, do qual, mesmo, nunca tinham ouvido falar.
Algum tempo depois, apresentou-se a mesma religiosa e disse que tinha deixado o
corpo terrestre, o que posteriormente se reconheceu exato, mas que voltaria a
reencarnar-se na casa da irmã do paciente, que teria, ainda o sexo feminino e que só
viveria três meses. Todos esses acontecimentos se realizaram pontualmente.
Um segundo caso de encarnação foi predito a Bouvier; anunciou-se que o Espírito iria
incorporar-se sob a forma feminina, em uma família muito conhecida do diretor de La
Paix Universelle, e que se duvidava da vinda de outra criança, que ninguém desejava.
Declarou ainda o Espírito que seria infeliz, porque não gostariam dele.
Tudo se realizou, infelizmente, nas condições anunciadas. A clarividência magnética
do paciente de Bouvier não pode explicar a aparição daquela religiosa, que ele não
conheceu, porque o exercício daquela faculdade está ligado a certos laços entre as
partes interessadas. Se se pode admitir que a irmã do paciente seja a causa indireta da
previsão, é inexplicável a intervenção da religiosa, a não ser pela intenção de retomar
um organismo terrestre.
No segundo exemplo, não existe qualquer laço entre o sonâmbulo e os parentes da
criança; e o Espírito que se reencarnou é, por certo, o autor do fenômeno, porque o
paciente não era espiritista e não podia auto-sugestionar-se, como não podia receber a
sugestão de Bouvier, que estava longe de esperar essas manifestações.”
Entre as numerosas respostas que recebi ao meu pedido de me comunicarem casos
referentes à reencarnação, há uma de um dos meus antigos colaboradores do jornal Le
Spiritisme. Ela é interessante, por mais de um título.
“Meu caro Dr. Delanne.
Pede o amigo que lhe sejam comunicados os fatos tendentes a provar a
reencarnação: esses fatos não devem ser freqüentes, e por isso lhe comunico um que,
166
Gabriel Dellane – A Reencarnação
não oferecendo nada de transcendente, é, entretanto, em seu gênero, bastante
característico.
Em agosto de 1886, fizemos uma sessão de evocação, no curso da qual se apresentou,
a princípio pela tiptologia, e depois, a nosso pedido, pela escrita medianímica, uma
entidade que meus pais perderam, ainda de pouca idade, ou como tal se apresentava.
Assegurava esperar, para reencarnar-se, o nascimento do meu primeiro filho,
especificando que seria rapaz e viria dentro de 18 meses.
Não se esperava uma criança. Ora, em fevereiro de 1888, nascia o nosso filho mais
velho, que recebeu o nome de Allan, na data prevista, com o sexo predito, fornecendo
uma prova, ou pelo menos uma presunção, em favor da reencarnação.
E. B. de Reyle
2, Allé du Levrier, Le Vernet, Seine-et-Oise.”
Eis outro exemplo que colho no belo livro de Léon Denis, O Problema do Ser, do Destino e
da Dor. As circunstâncias em que se deve fazer a reencarnação merecerem, por bastante
precisas, toda a nossa atenção.
“Th. Jaffeux, advogado da Corte de Apelação, em Paris, comunicava-nos o fato
seguinte (5 de março de 1911):
Desde o começo de 1908, eu tinha como Espírito-guia uma mulher que conhecera em
minha infância, e cujas comunicações apresentavam um caráter de rara precisão:
nomes, endereços, cuidados médicos, predições de ordem familiar. Em junho de 1909,
transmiti a essa entidade, da parte do Padre Henrique, diretor espiritual do Grupo, o
conselho de não demorar indefinidamente a sua estacionária situação no Espaço. A
entidade respondeu-me nessa época:
– Terei sucessivamente três encarnações muito breves.
Em outubro de 1909, anunciou-me, espontaneamente, que iria reencarnar em minha
família e designou o lugar da reencarnação: uma aldeia do Departamento de Eure-et-
Loire. Eu tinha aí, nessa ocasião, uma prima grávida. Fiz, então, a seguinte pergunta:
– Com que sinal é possível reconhecê-lo?
– Terei uma cicatriz de dois centímetros, do lado direito da cabeça.
A 15 de novembro, a mesma entidade anunciou-me que cessaria de aparecer em
janeiro seguinte e seria substituída por outro Espírito.
Procurei, desde então, dar a essa prova todo o seu alcance, e nada me seria mais fácil;
depois de haver autenticado a predição, obteria um atestado médico do nascimento da
criança. Infelizmente, achei-me em presença de uma família que manifestava contra o
Espiritismo uma hostilidade bravia; estava desarmado.
No mês de janeiro de 1910, a criança nasceu com uma cicatriz de dois centímetros,
no lado direito da cabeça. Ela tem, atualmente, 14 meses.
Chego, agora, a um fato inteiramente notável, não só pelo número das testemunhas que o
confirmam, como pelas circunstâncias que precederam a reencarnação da jovem Alexandrina
e pelas que se seguiram ao seu segundo nascimento terrestre.
167
Gabriel Dellane – A Reencarnação
O Dr. Samona é conhecido nos meios científicos da Itália, e o relatório que ele enviou a
seu amigo Calderone apareceu ao inquérito publicado por este. É um modelo de precisão e
uma conscienciosa análise de todas as circunstâncias relativas a esta verídica história.
Servir-me-ei dos documentos publicados sobre o assunto, no livro do Coronel de Rochas,
Les Vies Successives (As Vidas Sucessivas), pág. 337 e seguintes, em minha Revista Científica e
Moral do Espiritismo, 1913 e 1917, e do livro recente de Lancelin, La Vie Posthume (A Vida
Póstuma), pág. 307 e seguintes, onde ele, com sua costumada erudição, reuniu tudo que diz
respeito a esse sensacional acontecimento.
Eis, para começar, o histórico que nos apresenta o Dr. Samona, em carta dirigida ao
diretor da Filosofia della Scienza, o Dr. Innocenzo Calderone.
“Apesar do caráter muito íntimo dos fatos que precederam o nascimento de minhas
duas filhinhas, não hesito, no interesse da Ciência, de os dar à publicidade, por
intermédio de sua estimável e lida revista, sem calar o nome das pessoas que deles
tiveram conhecimento, à medida que se foram desenrolando.
Se me abstenho de os discutir, acho, entretanto, que convém divulgá-los, para que
outros o possam fazer.
Nenhuma ciência progride, se ficar na ignorância dos fatos. Se, no domínio
metapsíquico, por temor do ridículo ou de outras razões da mesma ordem, cada qual
guardar para si esses casos mais ou menos raros, que podem suceder, adeus esperança
do progresso.
Envio-lhe uma narrativa sintética, absolutamente fiel aos fatos, como se produziram,
sem a menor discussão quanto aos interessantes problemas a que deram lugar, sonhos
premonitórios, personalidades medianímicas, etc.
Creio que o caso atual se apresenta, favoravelmente, sob o ponto de vista científico,
porque as pessoas, que, desde o começo, foram postas a par das diversas e sucessivas
particularidades, e que as observaram com grande interesse, gozam, por sua
moralidade e inteligência, da consideração geral.
Além da narração dos fatos, envio-lhe as declarações de certas pessoas, que
confirmam os meus dizeres, e estou pronto a fornecer outras testemunhas da mesma
natureza, com todos os esclarecimentos que forem julgados úteis para a investigação
científica.
Com toda a estima, seu afetuoso amigo
Carmelo Samona.
Alguns reparos
Capítulo XIII
Vê-se, indiscutivelmente, das pesquisas feitas há meio século, pelos sábios mais notáveis
do mundo inteiro, que existe no homem um princípio transcendental, desconhecido dos
quadros da Fisiologia oficial, porque nos é revelado com faculdades que o tornam muitas
vezes independente das condições de espaço e de tempo, que regem o mundo material.
É o que se verifica dos trabalhos da Sociedade Inglesa de Pesquisas Psíquicas, que desde
1882 publicou mais de 30 volumes, com as observações e as experiências que seus membros
registraram, depois de minuciosos inquéritos. Os nomes de Crookes, de Sidgwick, de Myers,
de Gurney, de Barret, de Oliver Lodge e de muitos outros são penhores seguros da realidade
dos fatos ali relatados.
Inquéritos semelhantes foram feitos nos Estados Unidos, pelo ramo americano de
Pesquisas Psíquicas, sob a direção do Prof. Hyslop e de Hodgson; na França, por grande
número de psiquistas e, em particular, por Camille Flammarion, nos três volumes da obra A
Morte e seu Mistério.
179
Gabriel Dellane – A Reencarnação
Ultimamente, Warcollier, engenheiro químico, publicou um volume sobre a telepatia, e o
Dr. Osty, dois livros: Lucidité et Intuition e La Connaissance Supranormale, que se referem às
faculdades desconhecidas do ser humano.
Na Itália, a revista Luce e Ombra reuniu indiscutível quantidade de testemunhos e
Bozzano publicou uma série de monografias sobre este assunto, e que são do mais alto
interesse.
É, pois, absolutamente certo que o pensamento de um indivíduo pode exteriorizar-se e
agir sobre outro ser vivo, independentemente de qualquer ação sensorial, apesar da distância
que os separa. É a esse fenômeno que se dá o nome de telepatia. Não é menos certo que a
visão a distância, apesar dos obstáculos interpostos, se exerce durante a vigília ou o sono,
sem recorrer ao sentido ocular, o que necessita um poder diferente do puramente fisiológico.
Eis-nos, ainda aí, em presença de uma faculdade inteiramente distinta das que os
fisiologistas reconhecem à substância nervosa. Enfim, está estabelecido, por exemplos
numerosos e indiscutíveis, que um fenômeno tão extraordinário como o do conhecimento do
futuro – ou premonição – foi várias vezes verificado. Tudo prova que existe no homem um ser
independente do organismo físico e que é rigorosamente condicionado pelas leis que regem o
mundo material.
Isto agora é tão incontestável, que um filósofo da envergadura de Bergson não recuou
dizer, numa Conferência sobre a alma e o corpo, a 28 de abril de 1912:
“Se, como procuramos demonstrar, a vida mental transborda a vida cerebral, se o
cérebro se limita a traduzir em movimentos uma pequena parte do que se passa na
consciência, a sobrevivência, então, se torna tão verossímil, que a obrigação da prova
incumbirá àquele que nega, em vez daquele que afirma, porque a única razão de crer na
extinção da consciência depois da morte é que se vê o corpo desorganizar-se, e esta
razão não terá mais valor se a independência da quase totalidade da consciência em
relação ao corpo é também um fato verificável.”
Uma das mais belas conquistas da ciência do século XIX foi haver demonstrado a unidade
fundamental da composição de todos os seres vivos; todos nascem de um ovo, todos são
formados de células, cujo protoplasma é sensivelmente o mesmo, apesar de sua prodigiosa
diversidade. Todos os seres nascem, evolucionam e morrem. Todas as funções orgânicas são
essencialmente semelhantes: a nutrição, a digestão, a respiração e a reprodução operam-se
de maneira quase idêntica.
É uma demonstração pelo fato da unidade de plano da Natureza e, desde que a
inteligência, posto que diferente da matéria, lhe é, entretanto, associada, lícito é acreditar que
o princípio espiritual lhe é também fundamentalmente o mesmo, apesar das diferenças
quantitativas que existem em todos os graus de seu desenvolvimento.
Verificamos que as faculdades transcendentais, como a telepatia, a clarividência e mesmo
a ideoplastia, existem igualmente nos animais, o que é uma razão a mais para admitir a
identidade do plano da Criação.
Se assim é, se realmente a alma vem subindo os degraus da escala zoológica, não será
surpreendente que a cada nascimento ela reproduza, em resumo, toda a história do seu
passado, como se nota durante a vida embrionária de todos os seres.
Estas induções são legítimas, encadeiam-se mutuamente, e podemos considerá-las como
provas da palingenesia universal.
Não se compreende, ainda, claramente, como o princípio inteligente, que anima
inumeráveis milhares de milhões de organismos rudimentares e primitivos, chegue a
sintetizar-se em uma unidade de uma ordem superior, assim como não se pode explicar,
claramente, como essa passagem se opera de uma espécie a outra. Não é, entretanto, menos
real que existe uma ligação permanente e contínua entre todos os degraus de escala vital, e se
a vida é una no Universo, o mesmo acontece com o princípio espiritual.
Somos, daí, obrigados a perguntar onde o perispírito pôde adquirir suas propriedades
funcionais, e parece lógico supor que ele as fixou em si, no curso de suas evoluções terrestres,
passando, sucessivamente, por toda a fieira da série animal, integrando em sua substância
indestrutível as leis cada vez mais complicadas que lhe permitem animar e reparar,
automaticamente, organismos cada vez mais complexos, das formas mais simples ao homem.
É uma gradação sucessiva e uma evolução contínua.
Se esta hipótese é exata, devem-se reencontrar, na série animal, fenômenos análogos aos
observados na Humanidade. É indiscutivelmente o que se dá, pois que já verificamos que a
alma do animal sobrevive à morte.
Em obra precedente, A Evolução Anímica, procurei indicar como se podia conceber o
desenvolvimento progressivo do princípio espiritual e mostrei que, colocando-se a causa da
evolução nos esforços empregados pelo princípio inteligente, para libertar-se
progressivamente dos laços da matéria, explicam-se melhor os fatos do que pela teoria
materialista dos fatores únicos da hereditariedade e do meio.
O progresso físico e intelectual provém de esforços incessantes, reiterados, de
melhoramentos quase imperceptíveis, a cada passagem, mas cujo termo está na Humanidade,
que resume e sintetiza essa grande ascensão.
O ser, chegado a um grau qualquer da escala vital, não pode mais retrogradar,
simplesmente porque não encontraria mais, em razão do seu estado evolutivo, as condições
necessárias para encarnar nas formas inferiores, que já ultrapassara.
182
Gabriel Dellane – A Reencarnação
Os cruzamentos são, em geral, infecundos, entre espécies diferentes, porque os híbridos
não se reproduzem, e com mais forte razão entre as famílias e os ramos.
Notemos, ainda, que as funções vitais, nutrição, respiração, reprodução e mesmo a
sensibilidade e a motricidade, não criam diferenças essenciais entre os animais e os vegetas,
o que estabelece a grande unidade fundamental que existe sob o véu das aparências.
Demonstrou-nos a Ciência que o transformismo não passa de um caso particular de uma
lei geral.
Tudo evoluciona, tanto as nações como os indivíduos, assim os mundos como as
nebulosas. Tudo parte do simples para chegar ao composto; da homogeneidade primitiva vai-
se à prodigiosa complexidade da Natureza atual, realizada por leis que só pedem tempo para
produzir todos os seus efeitos.
Vimos que, nos vertebrados superiores e mais particularmente entre os animais
domésticos, a inteligência adquiriu grande desenvolvimento para compreender a linguagem
humana, para formular raciocínios, para resolver certos problemas.
É evidente que se encontra, ainda, num grau inferior de mentalidade, mas que é da
mesma natureza que a nossa.
Assinalei, igualmente, que os chamados poderes supranormais, como a telepatia, a
clarividência, o pressentimento, se observam bastantes vezes na raça canina, o que permite,
ainda, assimilar o princípio espiritual do animal ao do homem e, repito-o, existem fantasmas
de animais inteiramente análogos, em suas manifestações, às manifestações materializadas
dos mortos (v. Revue Métapsychique, janeiro-fevereiro, 1923).
Em resumo, em todos os seres vivos há as mesmas contribuições orgânicas, as mesmas
funções vitais, o mesmo princípio pensante, o mesmo invólucro perispiritual.
Magnífica demonstração é essa da grande lei de continuidade que rege o Universo inteiro.
A hereditariedade e as crianças-prodígio
As reminiscências
Capítulo XIV
Conclusão
Durante todo o curso desta obra, esforcei-me por apresentar aos leitores os fatos de
natureza diversa, que pareciam provar cientificamente as vidas sucessivas.
Abandonei, voluntariamente, os ensinos que nos foram dados pelos Espíritos a respeito
da grande lei de evolução espiritual; agora, porém, devo resumi-los, a fim de que se lhes
possa apreciar a importância e a grandeza.
Eles esclarecem com luz nova o problema do destino humano, oferecendo-nos novas
soluções para a natureza divina e o verdadeiro destino reservado a todos os seres humanos.
Com efeito, os filósofos espiritualistas de nossos dias se têm ocupado pouco com a
origem da alma; se o futuro dela nos tem interessado, o mesmo não acontece com o seu
passado. Parece, entretanto, que os dois problemas se ligam e que são iguais em mistério.
Os teólogos têm tido mais zelo com esta questão; ela diz de perto com a base em que
repousa o Cristianismo; a transmissão do pecado original. As suas opiniões podem reduzir-se
a duas hipóteses. Uns admitem que todas as almas estavam contidas na de Adão e que se
transmitiam pela geração: tal era em particular a opinião de Tertuliano, S. Jerônimo e Lutero;
Leibniz e Mallebranche filiaram-se a essa doutrina. Ela não foi universalmente admitida, e a
opinião comum é que é preciso um ato da vontade divina para que se crie uma alma a cada
nascimento. Mas esbarramos aqui com dificuldades logicamente insuperáveis, porque esta
hipótese é inconciliável com a bondade e a justiça de Deus.
Às provas clássicas referentes à demonstração da existência da causa primária, o
Espiritismo veio acrescentar uma nova, de alguma sorte experimental, que resulta de nossas
relações com os Espíritos desencarnados.
O estudo das comunicações espíritas provou-nos, de maneira irrefutável, que a situação
da alma depois da morte é regida por uma lei de justiça infalível, segundo a qual os seres se
encontram em condições de existência que são rigorosamente determinadas por seu grau
evolutivo e pelos esforços que faz para melhorar.
Nossas relações com o Além ensinaram-nos, ainda, que não existe inferno nem paraíso,
mas que a lei moral impõe sansões inelutáveis àqueles que a violaram, enquanto reserva a
felicidade aos que se esforçaram por praticar o bem, sob todas as formas.
A bondade e a justiça do Todo-Poderoso parecem falhas, quando examinamos as
inúmeras desigualdades físicas, morais e intelectuais que existem entre todos os seres, desde
seu nascimento.
Por que, diremos com Allan Kardec, se o fim que devemos atingir é o mesmo para todos,
favoreceria a Potência Divina certas criaturas, recusando a outras as mesmas faculdades para
que chegassem à felicidade futura? É evidente que existem entre as raças que povoam a Terra
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Gabriel Dellane – A Reencarnação
diferenças profundas de mentalidade, e mesmo em cada nação, desde o nascimento, uma
incalculável desigualdade entre todos os indivíduos.
É absolutamente certo que a alma da criança apresenta, desde tenra idade, aptidões
diversas e independentes da educação. Por que revelam alguns, desde a infância, aptidões
para as artes e para as ciências, enquanto outros permanecem medíocres e inferiores durante
toda a vida?
Donde vêm em uns as idéias inatas ou intuitivas, que não existem em outros?
Como admitir que uma alma nova, vinda pela primeira vez à terra, já esteja gafada de
vícios e demonstre irresistíveis propensões para o crime, enquanto outras, ainda que em
meios inferiores, possuam sentimentos perfeitos de dignidade e doçura?
Qual será a sorte das crianças mortas em pouca idade, e por que cria a Potência Infinita
almas que devem habitar corpos de idiotas e de cretinos, sem utilidade social?
É claro que a educação é impotente para dar aos homens as faculdades que lhes fazem
falta, e ela desenvolve, apenas, as que eles trazem do berço.
Se a nossa eternidade futura depende de uma só passagem aqui (o que não passa de um
segundo na imensidade do tempo), por que Deus, eterno, infinito, onisciente, para quem não
existe passado nem futuro, sabendo a sorte que está reservada a cada criatura, dá-lhe a
existência?
Estamos com o direito de perguntar por que cria ele estes monstros, cuja vida é uma
série de crimes, e que devem ser castigados com suplícios sem-fim.
Assim, também sabendo o que deve suceder a cada um de nós, por que favorecerá a uns,
à custa dos outros, o que é contrário, ao mesmo tempo, à bondade e à justiça de quem Jesus
chamou Pai celestial, e cujo amor se deve estender a todos os que saem dele?
Quando uma doutrina filosófica ou um dogma religioso conduz a tais inconseqüências,
pode-se assegurar que esse dogma ou essa doutrina são erros manifestos, e temos o direito
de procurar uma explicação melhor para essas aparentes anomalias. Desde então, a
explicação pelas vidas sucessivas adquire um valor incontestável, pois que oferece uma
solução racional a todos os problemas que sem ela permaneceriam insolúveis.
De fato, se admitirmos que o nascimento atual é precedido por uma série de existências
anteriores, tudo se esclarece e se explica facilmente. Os homens trazem, ao nascer, a intuição
daquilo que já adquiriram e são mais ou menos adiantados, segundo o número de existências
que percorreram. Sendo contínua a criação, existem em uma sociedade, ao mesmo tempo,
seres cuja idade espiritual difere consideravelmente. Daí provêm as desigualdades morais e
intelectuais que as diversificam. Podemos, pois, dizer com Allan Kardec:
“Deus, em sua justiça, não podia criar almas mais ou menos perfeitas; mas, com a
pluralidade das existências, a desigualdade que vemos nada tem de contrário à mais
rigorosa eqüidade; é que nós encaramos o presente e não o passado.
Este raciocínio repousa em um sistema, uma suposição gratuita? Não. Partimos de
um fato patente, incontestável, a desigualdade das aptidões e do desenvolvimento
intelectual e moral, e achamos esse fato inexplicável por todas as teorias em curso,
enquanto a sua explicação é simples, natural, lógica, por uma outra teoria. É racional
preferir a que não explica, àquela que explica?”
Se as almas devem passar por todas as situações sociais e por todas as condições físicas
para desenvolver-se moral e intelectualmente, as desigualdades de toda a natureza, que se
verificam entre os seres, compensam-se na série das vidas sucessivas. Cada qual, a seu tempo,
191
Gabriel Dellane – A Reencarnação
ocupará todos os degraus da escala social, o que cria uma perfeita igualdade nas condições do
desenvolvimento dos seres; em virtude da lei de justiça, todos se encontram na condição
social que melhor convém ao seu progresso individual, porque todo renascimento é
condicionado pelas conseqüências das vidas anteriores.
Toda falta acarreta efeitos inelutáveis; já mostrei como se opera, de alguma sorte
automaticamente, essa justiça distributiva, que é infalível.
O esquecimento do passado
O progresso
O mal já não é uma fatalidade inelutável de que não nos poderíamos libertar; ele aparece
como um aguilhão, como uma necessidade destinada a compelir o homem para a estrada do
progresso. Apesar dos sofismas dos retóricos, o progresso não é uma utopia. A existência do
homem, na época quaternária, errante através das florestas ou vivendo nas cavernas, não é
comparável à do mais miserável camponês de nossos modernos países.
À medida que penetramos no mecanismo da Natureza, vamos podendo utilizar-nos da
Ciência para melhorar nossa situação física; foi o que sucedeu no correr das idades, pela
transformação gradual das plantas, que são úteis à nossa alimentação, pelo saneamento das
regiões insalubres, pela dragagem e regularização dos cursos d’água, que suprimem as
inundações; assim, também, os flagelos naturais como a cólera, a peste, a difteria, a raiva,
diminuem dia a dia de intensidade, graças aos imortais descobrimentos de Pasteur e seus
discípulos. Temos o direito de esperar que, pelos progressos da ciência, a tuberculose e
outras doenças epidêmicas, que dizimam, ainda, a Humanidade, não serão mais, daqui a
alguns anos, que um mau sonho, dissipado pela luz da Ciência.
A Civilização dá ao homem uma segurança que seus precursores não conheciam; a
agricultura e a indústria lhe têm proporcionado um bem-estar, que os antepassados nunca
teriam ousado sonhar. As comunicações rápidas fizeram desaparecer as fomes periódicas,
esse flagelo da Antigüidade e da Idade Média, assim como a higiene diminuiu as epidemias.
No ponto de vista moral, o progresso tem sido mais lento; a luta pela existência é ainda
cruel, mas quem compararia o proletariado atual com a escravidão antiga? Se as guerras não
parecem desaparecer, já não se arrancam as populações dos seus lares para serem vendidas
em leilão, e os soberanos não gastam os seus ócios, como os da Assíria ou do Egito, furando
os olhos dos prisioneiros ou elevando pirâmides com seus membros mutilados.
O sentimento da solidariedade afirma-se hoje pela multiplicação dos hospitais, pelas
pensões aos velhos, pelo auxílio aos enfermos, pelas associações contra os riscos da doença e
do desemprego.
Sente-se que um novo estado de coisas está em via de elaboração; se ainda se acha
rudimentar e defeituoso em muitos pontos, é de crer que vá tomando vôo. A evolução para
melhor surge como conseqüência da elevação intelectual da massa social, que a instrução,
liberalmente distribuída, começa a fazer sair do seu torpor. Não se espera mais a felicidade
por uma intervenção sobrenatural. Compreende-se que ela será o resultado do esforço
coletivo. É preciso deixar aos amadores os paradoxos fáceis da negação do progresso, porque
este aparece como a lei espiritual que rege o Universo inteiro.
193
Gabriel Dellane – A Reencarnação
Daí resulta que somos criadores de um determinismo ulterior, que será a conseqüência
de nossas ações passadas; possuímos a possibilidade de modificar nossas existências futuras,
no mais favorável sentido, conforme o grau de liberdade moral e intelectual, em relação com
o ponto de evolução a que tenhamos chegado.
Conseqüências morais
FIM
Notas:
i Para a parte histórica, consulte-se a muito bem feita obra de André Pezzani, intitulada A
Pluralidade das Existências; veja-se, igualmente, o livro do Dr. Pascal A Evolução Humana; A
Palingenesia, de Charles Bonnet e o Ensaio de Palingenesia Social, de Ballanche.
ii Timée de Locres, em grego e em francês, pelo Marquês d’Argens. Berlim, 1763, pág. 252.
Traduzo o texto
iii Ver Isaías, cap. XXIV, v. 19, e Job, cap. XIV, vv. 10 e 14. Tradução de Ostervald.
iv Ver Frank: A Kabbala, pág. 51.
v Guerra das Gálias, livro VI e XIV. Veja-se também o capítulo XIX ad finem.
vi Livro XV, cap. IX.
vii Veja Revista Científica e Moral do Espiritismo (Revue Scientifique et Morale du Spiritisme),
números de agosto e setembro de 1913.
viii Les Apparitions Matérialisées des Vivants et des Morts, pág. 266, t. I.
ix Ibidem, t. I, pág. 275.
x Ibidem, pág. 400.
xi Durand de Gros – Le Merveilleux Scientifique, pág. 148.
xii Dr. Gustave Geley – De l’Inconscient au Conscient, pág. 51.
xiii Veja-se o meu livro A Evolução Anímica, no qual atribuo ao perispírito esse mecanismo
psicodinâmico.
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Gabriel Dellane – A Reencarnação
xiv Ver, para justificação, as experiências do Prof. Bottazi, no tomo I de Les Apparitions
Matérialisées des Vivants et des Morts. Ver também os trabalhos do Prof. de Crawford, Revue
Métapsychique, 1921.
xv Les Apparitions Matérialisées des Vivants et des Morts, t. I, págs. 452 e seguintes.
xvi Veja-se Les Apparitions Matérialisées des Vivants et des Morts, vol. 1, cap. V; Essai
d’Apparitions Volontaires (Ensaios de Aparições Voluntárias), pág. 199.
xvii Chama-se agente aquele de quem se vê o fantasma e percipiente aquele que percebe a visão.
xviii Ver os três volumes de C. Flammarion, A Morte e seu Mistério.
xix Durand de Gros – Le Merveilleux Scientifique (O Maravilhoso Científico), pág. 61.
xx Ver a Revue Métapsychique, novembro-dezembro, 1922, pág. 162.
xxi Les Apparitions Matérialisées des Vivants et des Morts, t. II, pág. 493.
xxii Ibidem, pág. 496.
xxiii Les Apparitions Matérialisées des Vivants et des Morts, t. II, pág. 497.
xxiv Charles Richet pôde também cortar e conservar os cabelos de uma aparição; veja-se o seu
livro Tratado de Metapsíquica, pág. 649. O mesmo sucedeu com a Sra. Bisson; leiam-se os
pormenores em sua obra: Les Phénomènes de Matérialisations.
xxv Charles Richet – Tratado de Metapsíquica, pág. 690.
xxvi Les Apparitions Matérialisées des Vivants et des Morts, t. II, pág. 498.
xxvii Fundação de Jean Meyer, reconhecida de utilidade pública, à Avenue Niel, nº 89 – Paris.
xxviii Esta moldagem aproxima-se das de Lilly e d’Akosa, de que apresento as fotografias em
meu livro Les Apparitions Matérialisées des Vivants et des Morts, t. II, págs. 269-271.
xxix Revue Métapsychique International, nº 5, 1921, págs. 226-227.
xxx Deixamos de traduzir algumas transcrições, que se encontram no original, por se acharem
elas em O Trabalho dos Mortos, do Dr. Nogueira de Faria, obra muito conhecida no Brasil
(N.T.).
xxxi Bourdeau – Le Problème de la Vie (O Problema da Vida).
xxxii Allan Kardec – A Gênese.
xxxvii Para o método de educação de von Osten, vejam-se os Annales des Sciences Psychiques
(Anais das Ciências Psíquicas), janeiro de 1913, pág. 1).
xxxviii Para os pormenores, consultar o Relatório do Dr. Assagioli, nos Annales, nº 7, janeiro,
1913.
xxxix Maeterlinck – L’Hôte Inconnu.
xl Ver os Annales des Sciences Psychiques, outubro, 1913, págs. 290 e seguintes.
xli Ibidem, número de janeiro-fevereiro, 1914, e os Archives de la Suisse Romande.
xlii Les mémoires topographiques et la capacité calculative chez les animaux (As memórias
topográficas e a capacidade de calcular dos animais).
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Gabriel Dellane – A Reencarnação
xliii Lola ein Beitrag Zun den Ken und Sprechen der tiere, Contribution à l’étude de la pensée et du
langage des animaux, por Henry Kindermann, com uma nota de Ziegler. (Editado por R.
Jordan, Stuttgart).
xliv As pessoas desejosas de saber como ela procedeu poderão consultar o número de
Psychique, de março, 1922, págs. 10 e 12; o artigo está assinado por Maillard.
xlv Op. cit., pág. 42.
xlvi A palavra “desobediente” faz alusão a um corretivo que a cadela acabava de receber, por
ter ido sozinha para a caça, e a expressão “muitas vezes mal” aplica-se às dores de cabeça e
à fadiga de que ela se queixa em vários momentos, nas suas comunicações.
xlvii Journal of the Society Psychical Research (Jornal da Sociedade de Pesquisas Psíquicas). Ver
também a revista Luce e Ombra, outubro de 1922 e seguinte, e a Revue Psychique de agosto
de 1905.
xlviii Este caso se aproxima do de Calthrop, que encontrou seu cavalo afogado depois de ter
lxxv Veja-se, igualmente, as obras de Léon Denis – O Problema do Ser, do Destino e da Dor; do Dr.
Pascal – A Evolução Humana; do Dr. Lancelin – A Vida Póstuma.
lxxvi Ribot – Les Maladies de la Mémoire, pág. 150.
lxxvii Entre outros, Angel, Armand, Dugas, Fouillée, Jensen, Maudsley, Ribot, Wigan, Leroy, etc.
lxxviii Armand Sylvestre – La Russia.
lxxix Proceedings of S. P. R.
lxxx Journal da S. P. R., v. XIII, págs. 90-96.
lxxxi Veja-se Le Spiritisme à Lyon, nº 40: “Os Pioneiros da Luz”. O mesmo jornal no nº 72 cita um
artigo da Gazeta de Paris de 19/04/1872, que contém uma palestra entre Alexandre Dumas
e Méry, em que ambos afirmam ter vivido muitas vezes.
lxxxii Grande Edition, Pierre Tréguier, 1917, págs. 13-14.
lxxxiii De Rochas – Les Vies Successives, pág. 311.
lxxxiv Revue Scientifique et Morale du Spiritisme, março de 1907. Caso extraído dos Annales des
Sciences Psychiques.
lxxxv AfirmaQuintin Lopez, diretor do jornal Lumen, de Tarrassa, que, por seu inquérito, o caso é
inteiramente autêntico.
lxxxvi No original há vários atestados e testemunhos que comprovam o relato do Dr. Samona;
deixam de ser traduzidos para não tornarem excessiva e superfluamente desenvolvido
aquele longo trabalho. (N.T.)
lxxxvii Veja-se G. Delanne – Les Apparitions Matérialisées des Vivants et des Morts, t. II.