Moedas Digitais Entenda o Que Sao Criptomoedas Stablecoins e CBDCs White Paper Instituto Propague
Moedas Digitais Entenda o Que Sao Criptomoedas Stablecoins e CBDCs White Paper Instituto Propague
Moedas Digitais Entenda o Que Sao Criptomoedas Stablecoins e CBDCs White Paper Instituto Propague
Moedas
digitais
entenda o que
são criptomoedas,
stablecoins e CBDCs
CARLOS RAGAZZO
B R U N A C ATA L D O
Sumário executivo
Moedas digitais
As moedas digitais têm recebido grande cartão, por exemplo). Como a criptomoeda
destaque nos debates do sistema financeiro não é denominada na moeda oficial do país
e isso está relacionado ao crescimento do e até usa sistema de registros eletrônicos,
mercado e surgimento de uma variedade de mas não centralizado em alguma instituição
categorias, sendo 3 principais: criptomoe- financeira, as duas não devem ser confun-
das, stablecoins e moedas digitais emitidas didas.
pelo Banco Central (CBDC). O mercado de
criptomoedas chegou a 8,9 mil moedas e Já as stablecoins surgiram como respos-
USD 2 trilhões de capitalização do merca- ta para um dos principais obstáculos das
do em 13 de agosto de 2021, segundo o site criptomoedas: a volatilidade dos preços.
Coingecko. Em 2009 foi lançada a primeira São moedas digitais que buscam oferecer
criptomoeda, passados 5 anos eram 500. estabilidade através de uma paridade 1:1
Em 2021, pouco mais de uma década depois, com ativos seguros, inclusive moedas fidu-
quase 9 mil. A principal stablecoin do mer- ciárias de curso legal como o dólar. A título
cado (Tether) multiplicou sua capitalização comparativo, as stablecoins podem ser con-
no mercado mais de 13x entre fevereiro de sideradas criptomoedas que visam manter
2020 e junho de 2021. O número de Bancos estabilidade de valor frente algum ativo/
Centrais trabalhando ativamente para emi- grupo de ativos previamente definido.
tir uma moeda digital própria saiu de apro- Por fim, as moedas digitais emitidas pelos
ximadamente 33% em 2016 para 86% em Bancos Centrais — conhecidas pela sigla
2020. São dados que mostram a relevância CBDC — eram consideradas apenas uma
do tema e a necessidade de compreendê-lo. ideia pouco prática e de difícil implemen-
Essa relevância das moedas digitais é tação há poucos anos, até que nos últimos
tangível e se reflete na constante presen- dois a situação mudou completamente e
ça na mídia e nos trendings de rede social. elas passaram a dominar o debate da digita-
Compreender o fenômeno, no entanto, não lização dos sistemas financeiros. A definição
é tarefa simples porque o desenvolvimento mais abrangente de CBDCs é que são uma
do mercado e da tecnologia trouxeram dife- moeda digital emitida por Bancos Centrais e
rentes categorias com conceitos, objetivos, denominadas na unidade de conta nacional,
benefícios e desafios diferentes. Para acom- representando um passivo da instituição.
panhar os debates desse mercado hoje em Simplificando, elas têm como objetivo ser o
dia, é necessário entender cada uma, a dife- equivalente digital do dinheiro físico.
rença entre elas e suas potencialidades.
Mesmo com as definições dadas, não é
Resumindo os conceitos explicados ao simples entender o que está por trás delas,
longo deste White Paper, criptomoedas como cada uma dessas moedas digitais fun-
são moedas digitais privadas criadas em ciona, para o que cada uma delas serve e é
redes descentralizadas de computadores usada no dia a dia. Por isso, ao longo deste
e protegidas por criptografia. É comum ha- documento, cada um desses elementos é
ver confusão entre criptomoedas e moeda explicado de modo simplificado a fim de ca-
eletrônica, mas a última é a representação pacitar o leitor a consumir materiais sobre
eletrônica da moeda emitida pela autorida- moedas digitais e participar ativamente de
de monetária do país (depósitos à vista pos- discussões sobre esse mercado em cresci-
teriormente usados para pagamentos em mento.
2
1 O fenômeno das moedas digitais
Dois movimentos que aconteceram em para- A crise de 2008, portanto, delineou a direção
lelo no final dos anos 2000 e início dos 2010 da busca de alternativas. Mas ainda era neces-
contribuíram para que as moedas digitais sur- sário o como: aí entra o pilar do desenvolvimento
gissem e se tornassem o centro de múltiplas de novas tecnologias. O período em questão es-
discussões no sistema financeiro: a crise de tava envolto em notáveis avanços tecnológicos
2008 e o desenvolvimento de novas tecnolo- que viabilizaram o desenvolvimento de moedas
gias que permitiram a aceleração da digitaliza- digitais, como a criptografia, os “Distributed Led-
ção do sistema financeiro. Foi na esteira desses ger Technologies” (DLT) e o blockchain. A junção
acontecimentos que surgiu a primeira moeda desses movimentos culminou no surgimento do
digital, o Bitcoin, que inaugurou o que se torna- Bitcoin como alternativa para fazer transações
ria o mercado de criptomoedas. “por fora das instituições financeiras, segura e
com garantia de privacidade” e no posterior sur-
A crise financeira de 2008 foi um catalisador gimento de um mercado de criptomoedas1 .
para o processo porque, quando ela estourou
nos EUA e se espalhou pelo mundo, uma das Desde então, moedas digitais alcançaram
consequências foi a queda da confiança nas ins- um crescimento representativo e uma varieda-
tituições financeiras. O contexto de crise e des- de de categorias, sendo 3 principais: criptomoe-
confiança também trouxe uma crescente de- das, stablecoins e moedas digitais emitidas pelo
manda por privacidade e a situação como todo Banco Central (CBDC). O mercado de criptomoe-
culminou em uma busca por formas alternativas das chegou a 8,9 mil moedas e USD 2 trilhões
de realizar transações financeiras que fossem de capitalização do mercado2 em 13 de agos-
seguras, não estivessem associadas ao sistema to de 2021 segundo o site Coingecko3 . Apesar
bancário e às autoridades governamentais, e de a capitalização ser mais volátil de acompa-
que mantivessem a privacidade do usuário. nhar e haver pequenas diferenças nos núme-
1 Vale pontuar que os avanços tecnológicos têm gerado novos modelos de negócios e um processo acelerado de digitalização
que pode gerar até USD 100 trilhões para a sociedade na próxima década. Sendo assim, em mundo cada vez mais digitalizado,
era questão de tempo até o processo alcançar a moeda. A crise de 2008 foi mais um gatilho.
2 “A capitalização total do mercado é o valor total em dólares de todas as ações de uma empresa ou, no caso do Bitcoin ou de
outra criptomoeda, de todas as moedas mineradas. Em criptomoedas, a capitalização total do mercado é calculada multiplican-
do o número total de moedas mineradas pelo preço de uma só moeda numa determinada altura” (https://www.coinbase.com/
pt/learn/crypto-basics/what-is-market-cap).
3 https://www.coingecko.com/en
3
Moedas digitais
ros entre diferentes sites de acompanhamento do movimento por estar com seu projeto em es-
(o Coin Market Cap indica USD 1,95 trilhão de tado avançado 7.
capitalização em 13 de agosto, por exemplo), a
tendência de crescimento no número de crip- A relevância das moedas digitais na atualida-
tomoedas oferecidas é bem definida e expo- de, portanto, é tangível e se reflete na constante
nencial. Em 2009 foi lançada a primeira cripto- presença no dia a dia das pessoas, nas menções
moeda. Em 2014, passados 5 anos, eram 5004. na mídia e nos trendings de rede social. Com-
Em 2021, passado pouco mais de uma década, preender o fenômeno, no entanto, não é tarefa
quase 9 mil. simples porque o desenvolvimento do mercado
e da tecnologia trouxeram diferentes categorias
9.000 com conceitos, objetivos, benefícios e desafios
diferentes. Para acompanhar os debates des-
500
se mercado hoje em dia, é necessário entender
1
cada uma, a diferença entre elas e suas poten-
cialidades.
4 Kumar, A; Smith, C. (2017). Crypto-currencies – An introduction to not-so-funny moneys. Disponível em: https://ideas.repec.
org/p/nzb/nzbans/2017-07.html. Acessado em: 26 de julho de 2021.
5 Kumar, A; Smith, C. (2017). Crypto-currencies – An introduction to not-so-funny moneys. Disponível em: https://ideas.repec.
org/p/nzb/nzbans/2017-07.html. Acessado em: 26 de julho de 2021.
6 Boar, C; Wehrli, A. (2020). Ready, steady, go? - Results of the third BIS survey on central bank digital currency. Disponível em:
https://www.bis.org/publ/bppdf/bispap114.htm. Acessado em: 3 de fevereiro de 2021.
7 As Bahamas foram pioneiras na emissão de moeda digital própria do Banco Central com o Sand Dólar, mas a representativi-
dade populacional e da economia chinesa fazem com que a escala e alcance do projeto do Yuan Digital se destaque.
4
2 O conceito de moeda
A moeda surge como resposta para as ne- fazer a transação. Esse processo é lento, des-
cessidades derivadas do processo de divisão gastante e ineficaz sem a presença de um inter-
do trabalho, que tornou os agentes econômi- mediário como a moeda8. As funções da moe-
cos interdependentes por meio da necessidade da derivam, portanto, dessa demanda por um
de fazer compras e vendas repetidamente em
bem que garanta o funcionamento do proces-
curtos espaços de tempo. Basicamente, a moe-
so indireto de trocas monetárias na economia.
da evita o problema da troca conhecido como
“coincidência mútua e complementar de neces-
sidades”: sem moeda, a pessoa que tem um sa- A definição mais básica das funções da moe-
pato e quer leite precisa encontrar alguém que da coloca que, para ser classificada como tal, é
tenha leite e queira um sapato para conseguir necessário 9.
1 Ser um meio de troca: permitir que compras e vendas aconteçam em momentos diferentes,
eliminando fricções de transações comerciais. A pessoa que produz leite pode vendê-lo
por moeda e usar essa moeda para, em outro momento, comprar o sapato sem depender
do interesse do sapateiro por leite.
2 Ser uma unidade de conta: ter capacidade de atribuir uma referência de valor aos bens
transacionados, ou seja, ser uma unidade de medida, um instrumento que coordene as
decisões dos agentes econômicos. A unidade de conta garante que seja possível deter-
minar a quantidade de unidades monetárias responsáveis por liquidar obrigações entre
agentes em uma transação. É o que se chama representação intangível da moeda, a moe-
da-de-conta. É atribuído um valor de moeda-de-conta para todos os bens e serviços na
economia e deriva disso a função de moeda de troca: se tudo tem um valor na unidade de
conta, ela é a moeda corrente da economia e será amplamente aceita como intermediária
de trocas. O sapateiro consegue expressar na unidade de conta o valor do sapato que
produz para trocá-lo por moeda corrente em uma venda. O mesmo vale para o leiteiro, que
expressa o valor do leite na mesma moeda corrente podendo aceitar a moeda do sapatei-
ro pelo produto. Para ser referência de valor, no entanto, é necessário que seja considera-
velmente estável, ou seja, o poder de compra de uma moeda recebida no presente precisa
ser razoavelmente parecido com o que ela terá no futuro.
3 Ser uma reserva de valor: reter valor para pagamentos futuros, ou seja, no momento
que o sapateiro vende o seu produto e recebe recursos na forma de moeda, ele pode sim-
plesmente guardá-los por um longo período de tempo retendo poder de compra e sem
custo de carregamento. Em geral, essa função se perde em períodos de hiperinflação:
reter moeda passa a ter um alto custo porque há perda de valor muito rápido e o poder de
compra se deteriora na mesma velocidade.
8 Cardim, F.; Souza, F.; Sicsú, J.; De Paula, L.; Studart, R. (2007). Economia Monetária e Financeira. 2. Ed. Rio de Janeiro: Elsevier,
pp. 385.
9 Cardim, F.; Souza, F.; Sicsú, J.; De Paula, L.; Studart, R. Op.cit
5
Moedas digitais
Ainda há quem separe uma quarta função 1000 no banco, este pode realizar empréstimos
chamada “No questions asked”10. Basicamente, com parte desse valor porque as pessoas rara-
se espera que todos os envolvidos na transa- mente tiram todo o saldo da conta de uma só vez.
ção concordem e aceitem sem perguntas que,
por exemplo, uma nota de dez reais vale exa- De forma geral, o Banco Central determina,
tamente dez reais. É preciso, portanto, que haja por segurança, uma fração que deve ser guar-
mais do que ampla aceitação: esta deve ocorrer dada como reserva e o resto pode ser empres-
de forma automática a partir do entendimento tado. Se essa fração de reserva for 20%, o banco
e confiança comum no valor do que está sendo empresta 80%, ou seja, R$ 800,00 para um se-
usado como meio de troca. A representação fí- gundo cliente. Se a pessoa que pegou esses R$
sica da moeda emitida pelos Bancos Centrais e 800 usar o dinheiro para pagar por algum pro-
usada no dia a dia - chamada popularmente de duto em uma loja e o lojista depositar o valor no
dinheiro - possui as quatro características aci- banco, 20% serão colocados na reserva, mas os
ma. Inclusive, é a característica de “No questions outros 80% serão novamente usados para fazer
asked” que garante um grau de conveniência empréstimos. Assim, R$ 160 serão guardados e
em carregá-lo, mesmo sem retorno pecuniário. R$ 640 emprestados. Esse ciclo ocorre várias
e várias vezes, funcionando como um multipli-
No entanto, a moeda emitida pelo Banco Cen- cador de moeda conhecido como multiplicador
tral com representação física no dinheiro não é a bancário, que é de fato uma forma de criação de
única disponível, há também a chamada moeda moeda para circular entre os agentes da eco-
escritural. Ela é criada pelos bancos comerciais nomia. Essa moeda criada pelo processo de in-
no processo de intermediação financeira. É pos- termediação dos bancos é chamada de moeda
sível usar um exemplo para tornar o processo escritural. A figura mostra esse processo11.
mais tangível. Quando uma pessoa deposita RS
Depósitos
R$ 640
Reservas
R$ 128
Banco C
+ R$ 512 Reservas
R$ 160
Depósitos + R$ 640
R$ 1000
+ R$ 800 Depósitos
R$ 800
Banco A Banco B
11 Instituto Propague. (2021a). Moedas digitais: como afetam o sistema financeiro e as soluções dos bancos centrais.
Disponível em: https://institutopropague.org/noticias/moedas-digitais-como-afetam-o-sistema-financeiro-e-as-solucoes-dos-
-bancos-centrais/. Acessado em: 27 de julho de 2021
6
Moedas digitais
Juntas, a moeda emitida pelo Banco Cen- processos hiperinflacionários, que fazem essas
tral e a moeda escritural criada pelos bancos funções se perderem aos poucos.
comerciais representam a moeda fiduciária do
país. Moeda fiduciária é aquela que não tem las- Com a modernização da economia, da tecno-
tro em metal: o valor da moeda só existe por- logia e, por consequência, da moeda, o Comitê
que o governo, a economia e a sociedade como de Pagamentos e Infraestrutura de Mercado
todo confiam no valor enquanto moeda devido à (CPMI) do Banco de Compensações Interna-
existência de procedimentos e responsabilida- cionais (BIS) desenvolveu uma lista de dez pro-
des bem atribuídos e monitorados com previsão priedades básicas que devem ser analisadas
de punição quando não cumpridos. A palavra para diferenciar os tipos de moeda para além
fiduciária, inclusive, vem do latim para confian- da conceituação básica e funções apresenta-
ça. Basicamente, o governo declara que aquela da acima. No mesmo trabalho, apresenta uma
moeda tem curso legal (legal tender) e, a partir versão resumida e visual no formato chamado
daí, pessoas e empresas dentro do país confiam “money flower”13 focada em 4 das propriedades,
no valor atribuído e aceitam como meio para li- de modo que a combinação entre elas caracte-
quidação de dívidas. Sem essa ampla confiança riza diferentes tipos de moeda. As propriedades
na determinação da instituição emissora, uma utilizadas são: emissor (Banco Central/centrali-
nota de real é apenas papel12. Essa moeda fi- zada ou descentralizada), forma (digital ou físi-
duciária oficial respeita as funções da moeda ca), acessibilidade (universal ou restrita) e tec-
descritas acima, a não ser que haja crises como nologia (token ou conta).
Amplamente
acessível Token-based
Contas de reserva
depósitos e liquidação dos
bancários Bancos Centrais
Tokens digitais
Contras dos dos Bancos
Bancos Centrais Centrais
(varejo) (atacado
somente)
Tokens
digitais
dos Bancos
Centrais Tokens digitais
(varejo) privados
(atacado
somente)
Dinheiro físico
Nota: o diagrama de Venn ilustra as 4 propriedades da moeda: emissor (banco central ou não), forma (digital ou física),
acessibilidade (ampla ou restrita) e tecnologia (baseada em contas ou token).
Fonte: Elaboração própria baseada no Bech e Garrat (2017)
12 Ward, O.; Rochemont, S.(2019). Understanding Central Bank Digital Currencies (CBDC). Disponível em: https://cointhinktank.
com/upload/CBDC%20-%20Understanding%20CBDCs.pdf. Acessado em: 27 de julho de 2021
Sistematizadas quais funções são necessá- intercambiável com significados diferentes. Por
rias para compor uma moeda e quais são os cri- isso, a figura abaixo tem o objetivo de uniformi-
térios que podem ser usados para diferenciar os zar a terminologia que será utilizada a partir da
mais variados tipos que têm surgido, é preciso próxima seção, na qual são explicadas as dife-
uniformizar o uso de terminologias, já que mui- rentes categorias de moedas digitais, em espe-
tas não são consensuais e são usadas de forma cífico: criptomoedas, stablecoins e CBDCs14.
Antes de falar sobre os tipos de moeda di- Sendo assim, ao comparar as cópias, é possível
gital, cabe um momento para explicar termos e saber se alguém mudou algo, garantindo a se-
conceitos referentes às tecnologias que torna- gurança da informação. Para que tudo esteja ok,
ram a existência delas possível. As tecnologias os livros devem ser iguais ao comparados.
de destaque são: (1) criptografia; (2) “Distributed
Ledger Technology” (DLT), livremente traduzido
como tecnologia de registros distribuídos; e (3)
blockchain.
O DLT é equivalente ao livro de registro con- O diferencial desse tipo de tecnologia é per-
tábil. Ele guarda informações criptografadas so- mitir que transações possam ser realizadas de
bre a propriedade dos ativos e transações, e es- maneira segura mesmo sem intermediários,
ses dados podem ser acessados por quaisquer sem que informações precisem ficar concentra-
pessoas que tenham acesso à rede. Já para que das na mão de apenas uma instituição. A segu-
uma transação seja finalizada, são criados pro- rança é garantida pela criptografia usada para
cessos que precisam ser seguidos pelos múlti- incluir as informações na rede e pelos proces-
plos usuários na rede de modo a garantir que sos que cada membro precisa seguir e concluir
as informações batem e é possível prosseguir adequadamente até que seja possível confirmar
com a validação, como se os agentes estives- a validade de uma transação. Trazendo de novo
sem comparando as informações dentro do li- para a analogia do mundo físico, deixou de ha-
vro físico do exemplo anterior. ver necessidade de um contador concentrando
em si todas as informações e tendo que assinar
o livro de registro ao final para que elas sejam
Outra analogia, essa já no mundo digital, e
validadas. A existência de múltiplas cópias que
mais próxima do dia a dia, é com as contas ban-
passam por processos padronizados chega ao
cárias. DLTs são um sistema eletrônico de con-
mesmo resultado sem precisar desse grau de
tabilidade: fazem o acompanhamento das tran-
centralização.
sações feitas e reajustam o saldo para refletir o
montante restante a cada novo gasto. No caso Dentre os DLTs, um tipo específico se destaca
das contas bancárias, no entanto, a rede é cen- no meio das moedas digitais: o blockchain, que
tralizada: o banco centraliza todas as informa- surgiu com o Bitcoin. O blockchain é um tipo es-
ções e é o responsável por validar transações pecífico de DLT no qual, como sugere o nome, a
que você faz e ajustar o saldo remanescente. No base de dados é organizada na forma de blocos
mundo do DLT, essa autoridade central é subs- encadeados sequencialmente, sendo a tecnolo-
tituída pela figura dos múltiplos membros da gia usada nas principais criptomoedas e stab-
rede, todos com as mesmas informações, que lecoins. O fato de ser organizada dessa forma,
exercem a mesma função de validação e liqui- em que um bloco novo adicionado à sequência
dação através dos processos de comparação torna o anterior imutável é uma forma encon-
mencionados acima, que são chamados meca- trada para que nenhum usuário possa gastar
nismos de consenso. duas vezes a mesma criptomoeda.
Centralizada: todos os participantes são dependentes Descentralizada: todos os participantes guardam uma
de um agente central que guarda o registro. Esse agente cópia do registro, reduzindo o poder de cada agente
central tem poder sobre os dados e pode modificá-los sobre os dados e criando accountability sobre quem
sem conhecimento prévio de outros agentes. os modificou e quando.
Fonte: https://openinnovation.blog.gov.uk/2018/02/19/is-distributed-ledger-technology-the-answer/
10
Moedas digitais
Como mencionado, redes dados original gera uma função bloco a partir de critérios pré-
descentralizadas como o blo- chamada “hash” que deve ser -definidos que variam entre
ckchain dependem de proces- resolvida e chega sempre a um moedas digitais. Como fazer
sos chamados mecanismos de resultado único. Se os agentes parte do processo gera uma
consenso para validar registros da rede resolvem a função, a remuneração em taxas, é de in-
de transações na rede. Apesar informação da sua base de da- teresse dos agentes participar.
de detalhes do funcionamen- dos corresponde à original. Se a Para isso, devem colocar uma
to da tecnologia não serem o maioria dos membros resolve- proporção de seus próprios
objetivo deste trabalho, é im- rem a hash, a transição pode ser ativos na rede e, como uma
portante trazer em paralelo validada. O modelo é desenha- espécie de garantia, eles ficam
uma menção aos mecanismos do como uma competição para bloqueados por um período.
de consenso mais comuns en- incentivar os membros a conti- Quanto maior a proporção co-
tre moedas digitais: o “proof of nuar validando informações. No locada na rede, maior a chance
work” e “proof of stake”. caso do Bitcoin, por exemplo, a de ser selecionado. O escolhido
recompensa por ser o primeiro a verifica se as transações são
O “proof of work” é mais fa- resolver a hash é uma quantida- válidas, assina o bloco e o adi-
moso por ser o mecanismo de de da criptomoeda. ciona à blockchain. Caso haja
consenso usado no Bitcoin. Ele discordância entre as infor-
funciona como uma competição O “proof of stake” é uma al- mações, o próprio mecanismo
de solução de problemas mate- ternativa ao “proof of work” na pode punir a atitude fraudulen-
máticos entre participantes da qual o algoritmo da rede é pro- ta ao não retornar o montante
rede chamados “mineradores”. gramado para escolher quem colocado como garantia para
De forma resumida, a base de será responsável por validar o participar.
Os principais elementos relacionados à tec- tipos de DLTs, para armazenar e validar informa-
nologia necessários para prosseguir são, por- ções e transações sem um intermediário. Com
tanto, a capacidade da criptografia de garantir esse breve resumo do significado de alguns ter-
confidencialidade, identidade e integridade dos mos relacionados à tecnologia por trás de moe-
dados envolvidos na transação; e o uso de redes das digitais, é possível passar para a explicação
descentralizadas, sejam blockchains ou outros de cada uma.
11
4 Criptomoeda, stablecoin ou CBDC?
Os diferentes tipos de moeda digital
16 É daí que deriva o nome criptomoeda e é dessa forma que os sistemas conseguem manter anonimizados o registro das
transações.
17 Pedrosa-Garcia, J. Almeida, Y. (2018). Regulation of Cryptocurrencies: Evidence from Asia and the Pacific. Disponível em:
https://ideas.repec.org/p/unt/wpmpdd/wp-18-03.html. Acessado em 27 de julho de 2021.; Bos, A. (2018). Cryptocurrencies and
Regulation, a Master Thesis on the best practices for regulating cryptocurrencies within the EU. Disponível em: https://student-
theses.universiteitleiden.nl/handle/1887/64833. Acessado em: 26 de julho de 2021.
12
Moedas digitais
A B
os depósitos à vista e a moeda que fica em con-
tas no Banco Central para liquidar transações
interbancárias. São representações eletrônicas
da moeda emitida pela autoridade monetária
do país de forma centralizada. Já criptomoedas
não são denominadas na moeda fiduciária ofi-
cial do país e até usam um sistema de registros
Os mineradores, então, recebem a tarefa de eletrônicos, mas ele não é centralizado em al-
verificá-las na blockchain. Como a blockchain guma instituição financeira19. Considerando as
contém informações sobre envios, recebimen- 4 características listadas na money flower para
tos e quantidades, é possível verificar quantas diferenciar tipos de moeda, fica mais claro que a
Bitcoins pertencem a cada carteira, da mesma diferença existe, já que eles não compartilham o
forma que é possível calcular o saldo de uma mesmo emissor nem tecnologia.
conta bancária tendo acesso a todas as transa-
ções de entrada e saída. A verificação ocorre por Além de fazer esse tipo de diferenciação, é
meio de proof of work. O processo de verificação possível ir mais longe e analisar se as cripto-
ocorre a cada 10 minutos e, em geral, pode levar moedas sequer se configuram como uma moeda.
até 6 desses ciclos para garantir que foi real- Esse é um dos principais debates na área porque
mente adicionado à blockchain. Isso significa
influencia como são usadas e também por quem
que a verificação leva em torno de uma hora, o
e como devem ser reguladas. A questão é abor-
que pode ser muito ou pouco tempo a depender
dada na seção seguinte.
19 Broby, D. Baker, S. (2018). Central Banks and Cryptocurrencies. Disponível em: https://strathprints.strath.ac.uk/64632/. Aces-
sado em: 26 de julho de 2021;
Manaa, M. et. al. (2019). Crypto-Assets: Implications for Financial Stability, Monetary Policy, and Payments and Market Infras-
tructures. Disponível em: https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=3391055. Acessado em: 26 de julho de 2021.
13
Moedas digitais
4.1.2 Para que é usada e quais as vantagens tomoedas, uma vez que esta depende — por de-
e desafios? finição — de algum grau de estabilidade no valor
da moeda para poder ser usada como mecanis-
Quando o Bitcoin foi lançado, inaugurando o mo de comparação de preços de diferentes bens
mercado de criptomoedas, o objetivo declarado e serviços. Na prática, comerciantes que aceitam
era o de permitir pagamentos digitais anônimos criptomoedas como meio de pagamento tendem
que não passassem por instituições financeiras a determinar preços em unidades de moeda fidu-
ou governamentais. Desse modo, o uso primário ciária e cobram o equivalente em criptomoedas
deveria ser para realização de transações com o a partir da taxa do momento da conversão, não
benefício de privacidade e uso de uma rede glo- sendo a criptomoeda em si a unidade de conta22.
bal. No entanto, o Bitcoin e outras criptomoedas O mesmo vale para a função de reserva de va-
ganharam espaço até aqui mais como ativo es- lor: a volatilidade faz com que não seja garantido
peculativo que meio de pagamento. Essa questão que guardá-las por um longo período de tempo
está associada a um dos principais debates en- reterá poder de compra sem custo de carrega-
volvendo criptomoedas: se elas podem ser clas- mento23.
sificadas como moeda em primeiro lugar. O argu-
mento central é que o objetivo original quando Criptomoedas, portanto, não exercem bem as
o Bitcoin foi criado não pôde ser atingido justa- funções da moeda e, por isso, têm dificuldade de
mente porque criptomoedas não poderiam ser alcançar o objetivo original de sua criação. Ainda
consideradas moeda. Cabe explorar o que está assim, há indício de crescimento de utilizações
por trás desse argumento para além da mera detenção especulativa com
motivações associadas a menores custos de
Retomando as características definidoras de transação, privacidade e o potencial de criar uma
uma moeda, ela precisa respeitar três funções: nova base de clientes. Em geral, as pessoas que
meio de troca, unidade de conta e reserva de as usam para fazer pagamentos alegam redução
valor (podendo-se considerar a adicional de ser de custos de transação (consideravam as taxas de
aceita para trocas “No questions asked”). Olhan- cobradas por bancos tradicionais caras, por exem-
do uma função por vez e começando por meio de plo) e querem garantir privacidade maior do que a
troca, a capacidade de uso nessa função tem au- disponível no caso de transações eletrônicas in-
mentado cada vez mais, mas ainda não é possível termediadas por bancos, que são obrigados a se-
falar em ampla aceitação e certamente não em guir protocolos de protocolos de segurança (know
“No questions asked”. Segundo pesquisa do BIS, your customer). Já comerciantes que usam usam
a maioria dos Bancos Centrais ainda considera o criptomoedas tendem a fazer isso, além dos me-
uso de criptomoedas para transações um mer- nores custos, pela sua característica de não pos-
cado nichado, apesar de reconhecer que tem ha- suir mecanismos de devolução24. Também existem
vido um forte crescimento20. Isso se deve, dentre criptomoedas que não são desenvolvidas para
outros motivos, às dificuldades de escalabilidade fins transacionais de compra/venda, mas para ex-
associadas a um grande número de transações perimentos sem fins lucrativos focados em gerar
terminando na fila de espera de confirmação21 e inovações, por exemplo25.
à grande volatilidade que faz com que seja con-
siderado complicado usar uma criptomoeda para Um tipo de uso de criptomoedas inesperado e
fazer pagamentos simples do dia a dia. recentemente anunciado foi sua aceitação como
moeda de curso legal em El Salvador a partir
A função de unidade de conta também fica de setembro de 2021, quando a moeda passará
prejudicada pela volatilidade de preço das crip- a ser considerada oficial junto do dólar e todos
os negócios com acesso à internet vão ser obri- resolver os problemas que aparecerem. O risco
gados a aceitar pagamentos com a criptomoeda. ambiental vem, principalmente, de blockchains
O país entende como benefício dessa tomada de que usam o mecanismo de validação por proof
decisão a facilitação do recebimento de transfe- of work: ele consome quantidades muito grandes
rências internacionais, que compuseram 24% do de energia e depõe contra os esforços de desen-
PIB do país em 202026. Também foi destacado na volvimento de um sistema financeiro mais sus-
mídia27 que a ação visa diminuir a dependência do tentável. No caso do risco sistêmico, o problema
país do padrão-dólar e das restrições impostas está no uso das criptomoedas para especulação
a sua economia. Seria uma medida diplomática e excessiva volatilidade de preços. Tal comporta-
para evitar indisposições com o governo ameri- mento pode prejudicar a estabilidade de preços e
cano. No entanto, há críticas de organismos in- o sistema de pagamentos, por influenciar tanto a
ternacionais: o Banco Mundial destacou as limi- oferta, como a velocidade de circulação da moe-
tações ambientais e de transparência da Bitcoin, da, além de ter impacto na política monetária.
enquanto o FMI ponderou que tal movimento re-
quer cuidado com a situação macroeconômicas, Esses desafios podem ser materializados pelo
financeira e jurídica do país. exemplo dos esforços dos países como EUA, Chi-
na, Índia e outros de como lidar com o assunto.
Um uso de criptomoeda que também esteve Em julho de 2021, o governo americano propôs
associado à tentativa de contornar algum pro- financiar projetos de infraestrutura com taxa-
blema com a moeda oficial do país aconteceu ção de corretores de criptomoedas, mas a pro-
na Venezuela: a hiperinflação venezuelana ficou posta gerou reações negativas e está passando
tão grave que a perda das funções do Bolívar por emendas. Não muito antes, o diretor da SEC,
Venezuelano induziram uma fuga para cripto- equivalente da Comissão de Valores Mobiliários
moedas no país, em especial para o Bitcoin28. (CVM) dos EUA, chegou a falar da necessidade de
Em apenas dois dias em fevereiro de 2019, fo- regular de forma mais dura as criptomoedas que
ram transacionados 17 bilhões de bolívares para tenham características de equity. Também esse
Bitcoin . Percebe-se então que, apesar de não ano a Índia começou a discutir mecanismos de
exercer adequadamente as funções da moeda, proibição e a proposta segue em debate. A Chi-
as pessoas usam as criptomoedas para fugir de na resolveu bater de frente com a mineração de
situações de hiperinflação ou para tentar reduzir criptomoedas no país, levando a uma queda de
a dependência monetária externa, como no caso 35%29 na capacidade de validação mundial em
de economias dolarizadas. junho de 2021.
Com relação aos desafios impostos pelas O cenário indica que a hesitação com relação
criptomoedas, podemos destacar alguns dos a regular criptomoedas está diminuindo, o que
mais mencionados: o de responsabilização, o não necessariamente indica que as dificuldades
ambiental e o sistêmico. No caso do primeiro, a envolvidas em saber como regulá-las foram su-
natureza descentralizada das criptomoedas faz peradas. O que sabemos é que a movimentação
com que elas não possuam uma autoridade res- para lidar com os desafios impostos pelas cripto-
ponsável, dificultando processos de intervenção, moedas começou a andar e será necessário en-
demandando a busca por instrumentos regulató- tender as diferentes abordagens sendo seguidas
rios e estruturas de governança alternativas para e suas possíveis consequências.
26 Instituto Propague. (2021b). Bitcoin será moeda oficial em El Salvador, entenda riscos e benefícios esperados com a cripto-
moeda. Disponível em: https://institutopropague.org/noticias/bitcoin-sera-moeda-oficial-em-el-salvador-entenda-riscos-e-be-
neficios-esperados-com-a-criptomoeda/. Acessado em 27 de julho de 2021.
27 Infomoney. (2021) El Salvador inova ao adotar Bitcoin como moeda: quais motivações e impactos econômicos da decisão?
Disponível em: https://www.infomoney.com.br/colunistas/convidados/el-salvador-inova-ao-adotar-bitcoin-como-moeda-
-quais-motivacoes-e-impactos-economicos-da-decisao/. Acessado em: 28 de julho de 2021
28 Ward, O.; Rochemont, S. Op. cit.
29 The Verge. (2021). What we know about China’s cryptocurrency crackdown. Disponível em: https://www.theverge.
com/2021/6/23/22544367/china-crypto-crackdown-bitcoin-mining-sichuan-ban-hydro-cryptocurrency-trading. Acessado
15
Moedas digitais
30 Arner, D.; Auer, R.; Frost, J. (2020). Stablecoins: risks, potential and regulation. Disponível em: https://www.bis.org/publ/
work905.pdf. Acessado em: 26 de julho
16
Moedas digitais
O mecanismo mencionado até aqui para ga- contratos inteligentes já têm novas aplicações
rantir estabilidade — lastrear em uma cesta de desenvolvidas para além da manutenção da es-
ativos — é o mais comum, mas não é o único. tabilidade das stablecoins e mais próximas dos
Quando este é o mecanismo utilizado, podemos usuários que são explicadas na seção seguinte.
chamá-las de “asset-linked stablecoins” (o que
em tradução livre seria algo como stablecoins Independente dos mecanismos de funciona-
parametrizadas por um ativo, como por exemplo, mento, o objetivo é o mesmo: corrigir as falhas
uma moeda). Também existem as “algorithm-ba- das criptomoedas em corresponder às funções
sed stablecoins” (o que em tradução livre é algo da moeda e efetivamente funcionar como um
como stablecoins baseadas em algoritmos)32. instrumento monetário e de pagamento. As sta-
Elas usam algoritmos chamados de contratos blecoins apareceram para resolver não só essas
inteligentes para ajustar a oferta da moeda di- falhas, mas passaram a ter a função adicional de
gital quando há choques na demanda de modo fornecer um instrumento de hedging entre crip-
a manter a estabilidade do seu valor. Esses tomoedas e moedas fiduciárias de curso legal.
Como visto a partir da semelhança com de- usadas como substitutas da moeda fiduciária
pósitos à vista e fundos de mercado monetário, a de curso legal em uma escala relevante. No en-
lógica por trás das stablecoins — principalmen- tanto, elas estão evoluindo e há preocupação
te as asset-linked — não é nova. Ainda assim, de que se tornem algo parecido com o que foi a
a tecnologia de redes descentralizadas como o chamada “Free Banking Era” nos EUA: um perío-
blockchain e alternativa de estabilidade algo- do em que bancos comerciais circulavam moe-
rithm-based modernizam a proposta trazendo das privadas próprias com cada um usando uma
novas possibilidades de aplicações no sistema taxa diferente de conversão variável no tempo e
de pagamentos e capacidade de escalabilidade baseadas em fatores geográficos e no risco do
frente à moeda de curso legal, demandando di- emissor, resultando em caos financeiro35. Para
ferentes abordagens dos reguladores. Por en- evitar esse problema e garantir o alcance dos
quanto, o alcance ainda é limitado, mas a ten- benefícios esperados, o tema passou a ser de-
dência é de crescimento33, principalmente com batido por reguladores e autoridades governa-
as gigantes da tecnologia se propondo a entrar mentais.
nesse mercado, emitindo stablecoins próprias
de alcance global como a Diem. Nos EUA, a questão da transparência do
lastro e garantia de paridade das stablecoins
Vale pontuar, no entanto, que a estratégia chegou às cortes de Nova York: As empresas
das stablecoins para corrigir a volatilidade de Bitfinex e o Tether foram processadas pela ad-
criptomoedas não opera sem suas dificulda- vogada geral do estado sob alegações de que
des e barreiras e é importante compreendê-las. a afirmação de que ambas seriam permanente-
Gorton e Zhang34 destacam que emissores de mente lastreadas em paridade 1:1 com o dólar
stablecoins enfrentam um importante trade-off americano não se sustentava e não era verdade.
entre opacidade e transparência, a fim de que No processo, a acusação alegou que as empre-
o lastro das suas moedas digitais fosse opaco sas escondiam dos investidores o real risco en-
o suficiente para que não fosse lucrativo para frentado. O resultado foi um acordo para que as
terceiros buscar e produzir informações sobre empresas pagassem uma multa de quase USD
quais ativos estão na cesta. Ao mesmo tempo, 20 milhões36, mas o ponto é que teria acendido
se o lastro não for crível, haverá incentivos para o alerta de que não necessariamente as stable-
que o mercado queira produzir tais informações. coins seriam tão estáveis e a paridade tão ga-
rantida, de modo que haveria risco de corrida
O resultado é que emissores de stablecoins contra elas maior do que o originalmente imagi-
enfrentam um problema que os autores ex- nado a partir do que ela se propõe a ser.
plicam que era comum aos dos bancos: se as
stablecoins não são percebidas como seguras Do ponto de vista dos desafios, que ainda
porque seus detentores suspeitam do lastro, vamos abordar, essas questões levaram a um
eles podem iniciar uma corrida contra o emissor, debate entre reguladores americanos — que
demandando o resgate na paridade 1:1 em mas- transborda para o resto do mundo — sobre
sa ao mesmo tempo. Para os bancos, a solução como classificar stablecoins. Emissores deve-
em relação aos depósitos à vista foi a criação riam ser regulados como bancos porque elas
da figura de seguros federais para os depósitos. seriam fundamentalmente depósitos à vista?
Como não há uma figura central que possa fazer Deveriam seguir a regulação de fundos de mer-
isso no caso das stablecoins, seus emissores cado monetário? Como há diferentes tipos de
precisam convencer os detentores que elas são stablecoins com mecanismos de paridade dife-
lastreadas por ativos seguros. rentes para as quais uma classificação ou ou-
tra pode fazer mais sentido, o debate fica ainda
Vale ressaltar que stablecoins ainda não são mais complexo. De qualquer forma, o primeiro
37 Instituto Propague. (2021c). Moedas digitais vão transformar pagamentos internacionais, segundo pesquisa do BIS. Disponí-
vel em: https://institutopropague.org/noticias/moedas-digitais-vao-transformar-pagamentos-internacionais-segundo-pesqui-
sa-do-bis/. Acessado em 27 de julho de 2021.
38 EXAME. (2021). O que são contratos inteligentes? Disponível em: https://exame.com/future-of-money/blockchain-e-dlts/o-
-que-sao-contratos-inteligentes/. Acessado em 10 de setembro de 2021 19
Moedas digitais
Como é praticamente impossível garantir trazer economia de tempo e dinheiro com auto-
contratos completos, eles não são substitutos matização de processos. Nesse caso, o contrato
automáticos ao sistema convencional, mas tra- inteligente tem linhas de código que determi-
zem algumas vantagens para transações mais nam um gatilho de quando o poder de proces-
simples como a execução de micropagamen- samento não é mais suficiente. Quando esse
tos em atividades relacionadas à “Internet das gatilho acontece, o contrato inteligente auto-
Coisas”. É o caso de computadores que pagam maticamente realiza a transação financeira para
automaticamente para aumentar o poder de comprar mais seguindo critérios definidos em
processamento quando necessário, podendo seu código e validados na rede descentralizada.
Também é possível usar contratos inteligen- cesso em Nova York, descobriu que, diferente
tes para funções de “dinheiro programável”, em do alegado, a moeda não era lastreado apenas
analogia à funcionalidade original de manter a em dólar e possuía inclusive criptomoedas em
estabilidade das stablecoins. Tornando mais tan- sua cestas de ativos. O contexto levou a identi-
gível, seria o caso de usá-los na implementação
ficação por diversos órgãos, com destaque para
de políticas públicas como as de transferência
o FSB, da necessidade de regulação para lidar
de renda e vouchers. Ao invés de identificar um
preço limite no qual se tem que comprar/vender com os desafios39. Independente disso, as stab-
stablecoins, seria programado para fazer a foca- lecoins realmente se mostraram menos voláteis
lização de certos programas e identificar quem que o Bitcoin e outras criptomoedas.
entrou ou saiu do recorte de renda definido de
maneira automática. Há questões operacionais O argumento geral é, basicamente, que emis-
e políticas debatíveis com relação a esse tipo de sores de stablecoins possuem forte incentivo
aplicação, mas o importante é identificar que a para investir em ativos de risco, ou emprestar
tecnologia a tornou uma possibilidade. ativos que respaldem a moeda estável para al-
cançar maiores retornos. Na ausência de regu-
Para garantir que poderá alcançar o máximo
lação, eles poderiam obter lucros investindo em
do seu potencial de aplicabilidade, no entanto,
ativos de maior retorno ou ilíquidos enquanto
as stablecoins dependem de realmente ter es-
tabilidade em seu valor, mas, na prática, houve pagam juros baixos ou nenhum aos detentores
alguma volatilidade recentemente. E daí surgiu da stablecoin. Tentando resumir os principais in-
o debate sobre elas não serem nem moedas, sights sobre a origem dos riscos relacionados
nem estáveis. Como já mencionado, um pro- às stablecoins, 4 se destacam:
20
Moedas digitais
1 O valor ainda pode flutuar mais do que ins- um desmembramento em múltiplas categorias
trumentos digitais previamente existentes que de modo a tratar cada grupo de stablecoins de
não sejam criptomoedas, como a moeda ele- forma mais específica e criar critérios diferentes
trônica; para os diferentes tipos. Não há, portanto, con-
senso sobre como lidar com os desafios coloca-
2 Elas são, por definição, menos suscetíveis dos para as stablecoins.
à bolha que criptomoedas, mas ainda assim a
capitalização pode variar rápido devido às com-
pras e retiradas de investidores;
4.3 CBDC (Central Bank Digital Currency) Por quaisquer que tenham sido os motivos
para iniciar os projetos, o fato é que as CBDCs
Fenômeno mais recente dos explorados se tornaram uma questão de “quando” e não
aqui, as moedas digitais emitidas pelos Bancos mais de “se”42: No último mapeamento do BIS43,
Centrais — conhecidas pela sigla CBDC — eram em 2020, 86%44 dos Bancos Centrais indicaram
consideradas apenas uma ideia pouco prática estar ativamente trabalhando em algum tipo de
e de difícil implementação há poucos anos, até projeto de CBDCs. O contexto, portanto, mostra
que nos últimos dois a situação mudou comple- que, apesar de poucas CBDCs realmente lança-
tamente e elas passaram a dominar o debate das, elas são uma tendência relevante no mun-
da digitalização dos sistemas financeiros40. Em do das moedas digitais que precisa ser acompa-
trabalho apresentado como Working Paper do nhada e compreendida.
Banco Central do Brasil, Burgos e Batavia41 des-
tacam que as CBDCs chamaram a atenção por 4.3.1 O que é e como funciona?
poderem ser fixadas em termos nominais, uni-
Assim como as outras duas, CBDCs não têm
versalmente aceitas, e válidas como moeda de
um conceito bem definido. O mais simples e
curso legal para todas as transações públicas e
abrangente é que são uma moeda digital emitida
privadas — diferente das criptomoedas e stab-
por Bancos Centrais denominadas na unidade
lecoins.
de conta nacional que representam um passivo
da instituição. Têm como objetivo ser o equiva-
Mas o que motivou a busca dos Bancos Cen- lente digital do dinheiro físico e podem ser de
trais por emitir tais CBDCs? O primeiro grande si- uso geral/varejo ou atacado. A CBDC de atacado
nal de atenção foi o anúncio da Libra, hoje Diem, tem um público-alvo diferente da de varejo: ela
pelo Facebook em 2019: a estrutura do projeto é desenhada para ser de uso restrito das insti-
sugeria uma real possibilidade de competição tuições financeiras, sendo semelhante às con-
de stablecoins globais como ela com as moedas tas de reserva e liquidação que o Banco Central
de curso legal, o que traria consequências inde- possui hoje45. Seu objetivo é realizar atividades
sejadas para as autoridades regulatórias. Mais como a liquidação de pagamentos em grandes
para frente, acompanhamentos sistemáticos do volumes e entre instituições46. Colocando as
BIS indicaram que as motivações variam entre CBDCs de atacado e varejo na estrutura da mo-
os países e que a “ameaça” das stablecoins fo- ney flower, a diferença está na propriedade da
ram igualadas e até superadas em importância acessibilidade: a de varejo é universal, enquanto
por outras questões, como inclusão financeira. a de atacado é restrita.
40 The Economist (2021b). When central banks issue digital money. Disponível em: https://www.economist.com/special-re-
port/2021/05/06/when-central-banks-issue-digital-money. Acessado em: 26 de julho de 2021.
41 Burgos, A.; Batavia, B. (2018). Currency in the digital era. Disponível em: https://www.bcb.gov.br/htms/public/inovtec/Curren-
cy-in-the-Digital-Era.pdf. Acessado em: 6 de janeiro de 2021.
42 OMFIF. (2021a). Five trends shaping the future of digital currencies. Disponível em: https://www.omfif.org/2021/05/five-
-trends-shaping-the-future-of-digital-currencies/. Acessado em: 28 de julho de 2021
43 Boar, C; Wehrli, A. Op. Cit. 22
Moedas digitais
Além de identificar qual a diferença entre todas as obrigações serão extintas para elimi-
os tipos de CBDCs, é importante estabelecer nar riscos residuais no processo de pagamento;
diferenças para outras estruturas associadas (2) garante liquidez intradiária através do sis-
ao Banco Central, como saldos de reservas e tema de liquidação sob demanda mencionado
liquidações dos Bancos Centrais, moedas ele- no ponto anterior e (3) age como emprestador
trônicas e sistemas de pagamento instantâneo. de última instância em tempos de crise48. É por
Como o próprio diretor geral do BIS afirmou: as meio dessas características que o sistema de
CBDCs são mais facilmente compreendidas a pagamentos tem sua segurança, confiabilidade
partir do que elas não são47. Para esclarecer es- e eficiência garantidas.
sas diferenças, vale explicitar o funcionamento
dos sistemas de pagamento. Começando pela comparação entre CBDCs e
as reservas dos bancos comerciais, o BIS con-
Basicamente, há o que chamamos de “two- sidera que as últimas podem ser efetivamente
-tier system”, ou seja, um sistema de duas ca- consideradas uma forma de CBDC de atacado
madas. O Banco Central tem em seu balanço do ponto de vista prático. Pensando na money
patrimonial os depósitos em dinheiro e reservas flower, elas são digitais, emitidas pelo Banco
dos bancos comerciais. Na segunda camada, Central, restritas (como toda CBDC de ataca-
esses bancos comerciais recebem dinheiro dos do) e baseada em contas (CBDCs podem ser
agentes do setor privado por meio de depósitos baseadas em tecnologias de conta ou token). O
à vista. Os usuários, por sua vez, acessam os re- que está sendo desenvolvido nos projetos mais
cursos depositados por meio de transferências, atuais voltados para o atacado, no entanto, são
cartões, saque e as mais variadas formas de pa- CBDCs de token. No primeiro semestre de 2021,
gamento disponíveis. Com relação aos papeis o programa interno do BIS Innovation Hub cha-
do Banco Central no sistema, o diretor geral do mado “Projeto Helvetia” conseguiu demonstrar
BIS pontua 3: (1) é ele quem finaliza a liquida- a viabilidade de integração entre ativos tokeni-
ção de todos os pagamentos, garantindo que zados e moeda retida no Banco Central.
44 Foram entrevistados 65 Bancos Centrais de localidades que representam grande parte do PIB mundial.
45 Contas que as instituições financeiras reguladas pelo Banco Central são obrigadas, ou facultadas a depender da categoria
em que estão enquadradas, a ter na instituição para depositar as reservas determinadas pela regulação e para a realização e
liquidação de operações interbancárias.
46 Boar, C; Wehrli, A. Op. cit.
47 Bech, M; Garratt, R. Op. cit.
48 Carstens, A. (2021). Central bank digital currencies: putting a big idea into practice. Disponível em: https://www.bis.org/spee-
ches/sp210331.pdf. Acessado em: 28 de julho de 2021.
23
Moedas digitais
Outra possível comparação das CBDCs é 4.3.2 Para que é usada e quais são as vanta-
com sistemas de pagamento instantâneos como gens e desafios?
o Pix, que viabilizam os recursos do pagamen-
to passados pelo pagador e ao recebedor em Considerando que as CBDCs estão em fase
tempo real 24/7. Do ponto de vista da interação mais de estudos que de implementação, ainda
do usuário, a experiência entre tais sistemas e é preciso operar na base das expectativas para
CBDCs de varejo podem ser de fato iguais. A di- falar sobre quais serão seus usos. No máximo
ferença, em geral, está no processo por trás do é possível tirar alguns resultados das poucas
pagamento e que os consumidores não enxer- experiências já implementadas. De qualquer
gam, na interação entre os bancos onde cliente forma, uma análise geral dos possíveis usos e
e lojista possuem conta e o Banco Central. De funções para as moedas digitais emitidas pelo
forma resumida, apesar do dinheiro sair de uma Banco Central são: aceleração da digitalização,
conta e chegar na outra em tempo real quan- promoção da inclusão financeira, competição
do alguém usa um meio de pagamento como o que iniba o crescimento das moedas digitais pri-
Pix, não necessariamente isso é verdade para vadas, mecanismo eficiente para realização de
a liquidação dos valores entre os bancos en- pagamentos transfronteiriços, realização de pa-
volvidos. No caso das CBDCs, a tecnologia e o gamentos programáveis e outros.
desenho da moeda podem fazer com que tanto
a relação entre consumidores como entre ins- No que se refere à digitalização, processo já
tituições ocorra em tempo real49. A diferença é, em andamento no sistema financeiro e que foi
portanto, de infraestrutura. acelerado pela pandemia de Covid-19, a CDBC
se apresenta como uma alternativa segura, ba-
Os sistemas de pagamento instantâneos rata e eficiente para realizar pagamentos. Como
como o Pix, na verdade, se assemelham mais já mencionado, e válido para todas as moedas
às moedas eletrônicas derivadas dos depósitos digitais, as medidas sanitárias de isolamento so-
à vista. A diferença para outros meios de paga- cial aceleraram a mudança de hábitos que favo-
mento com moeda eletrônica é a relação entre recem alternativas digitais de pagamento. Essa
os usuários: se os recursos trocados são dispo- motivação, portanto, não seria exclusiva de uma
nibilizados de um para outro em tempo real ou CBDC, já que hoje em dia os pagamentos já são
não. Na verdade, a moeda eletrônica e a CBDC facilitados não só por moedas digitais, mas por
de varejo possuem relação entre si parecida outras soluções como sistemas de pagamentos
com a que existe entre as CBDCs de atacado e instantâneos públicos como o Pix e carteiras di-
as reservas dos bancos comerciais: ambas têm gitais privadas50.
as mesmas 4 propriedades, mas há diferenças
de infraestrutura e operação. No caso, a CBDC Nesse sentido, a CBDC se apresentaria ape-
de varejo pode usar tecnologias de contas ou nas como uma opção adicional. No entanto, a
tokens, enquanto a moeda eletrônica é exclusi- CBDC é a única que tem chance de reproduzir
vamente baseada em contas. certas conveniências do dinheiro físico, enquan-
to mantém as 3 funções da moeda e os bene-
Com relação a como funcionam, ainda é fícios da estrutura digital, a depender do dese-
difícil determinar já que poucas experiências nho que for utilizado. Pagamentos instantâneos,
realmente saíram do papel, com destaque para cartões e carteiras digitais dependem do acesso
as Bahamas pelo pioneirismo e China pela re- a alguma forma de conta, o que não resguarda o
levância na economia global. O que é mais anonimato. Criptomoedas e stablecoins mantêm
passível de discussão no estágio atual de de- anonimato, mas têm vulnerabilidades no funcio-
senvolvimento do tema são os usos potenciais, namento como moeda. As CBDCs podem usar
vantagens e desafios. como atrativo o fato de que conseguem manter
as principais características que fazem o público ro físico), mesmo assim, em muitos países — o
usar o dinheiro físico (a privacidade e o fato de a Brasil inclusive —, ele ainda é o principal e pre-
transação ser finalizada em tempo real de pon- ferido meio de pagamento. Assim como no caso
ta a ponta, não só entre cliente e comerciante) dos pagamentos digitais, no entanto, a pande-
mantendo os benefícios da digitalização. Para mia acelerou a queda do uso do dinheiro físico e
manter a questão da privacidade, no entanto, escancarou algumas de suas limitações, como a
teria que optar por uma tecnologia baseada em dificuldade de fazer transferências do governo
token e lidar com a necessidade seguinte de para a população em momentos de necessidade
avaliar eventuais implicações na rastreabilidade de distribuição de recursos de massa sem pos-
para fins de governança, como no caso de com- sibilidade de aglomeração.
bate à corrupção e lavagem de dinheiro.
A CBDC, nesse sentido, pode funcionar como
Caso as stablecoins de alcance global se fir- um substituto para o dinheiro físico que mine
mem no mercado, a vantagem das CBDCs de- essas limitações e que o governo possa induzir
penderá da capacidade dos emissores de sta- a adesão de forma a estimular a inclusão digital
blecoins de garantir a credibilidade do lastro,
e financeira. Com a moeda digital, todos pode-
para que elas possam realmente representar
riam ter uma conta junto ao banco central ou re-
uma competição frente a modalidades de paga-
ceber um token que equivale a uma certa quan-
mento em moeda de curso legal. Uma vantagem
tia de CBDCs para utilizar nos estabelecimentos
também poderia vir do fato de ter mais camadas
de sua escolha, de modo a facilitar a inserção de
de privacidade, pois ainda que a CBDC seja de-
senhada com tecnologia de token, só o fato de populações vulneráveis que estão por fora do
haver um emissor centralizado já faz com que sistema bancário via políticas públicas.
fique em uma posição relativamente pior nesse
quesito. De qualquer forma, não é claro como É interessante notar, inclusive, que os países
seria a convivência de CBDCs e stablecoins de com projetos de CBDC mais avançados — al-
alcance global no que tange o uso para paga- guns países do Caribe e China — possuem um
mentos, já que há prós e contras para cada um. baixo grau de bancarização e a moeda funciona
como um primeiro vínculo entre a população e o
Além de ser usada como meio de pagamento sistema bancário tradicional. O problema tam-
digital eficiente, a CBDC pode ser um instrumen- bém se mostra relevante no Brasil: 32% dizem
to do Banco Central para promover a inclusão não ter conta pela falta de instituições financei-
financeira e colocar a sociedade em direção ao ras perto de casa, enquanto 57% alegam pro-
cashless – sem dinheiro físico. Como já mencio- blema com os altos custos dos serviços finan-
nado, o mundo já andava transicionando para ceiros. Nesse sentido, as CBDCs, dependendo
pelo menos “less cash” (menos uso do dinhei- do desenho, podem endereçar a questão51.
Na mesma linha de ser instrumento para ma- o que poderia levar a uma redução nos custos e
nutenção e promoção de políticas públicas, as tempo necessários para fazer as remessas in-
CBDCs também podem ser usadas para garantir ternacionais.
o controle da política monetária e da estabili-
dade financeira, ao evitar o crescimento de al- Um último destaque de uso das CBDCs é a
ternativas privadas de moeda digital que consi- possibilidade de programar pagamentos, desta-
gam replicar as funções da moeda. A criação da cada por Ward e Rochemont53. Os autores apon-
CBDC, nesse caso, teria a função de criar uma tam que pagamentos programáveis são aqueles
competição para as stablecoins, evitando que o em que é possível permitir que transferências
Banco Central deixe de conseguir desenvolver sejam realizadas ou bloqueadas quando condi-
suas tarefas mais básicas de garantia da estabi- ções pré-determinadas são cumpridas, podendo
lidade financeira e da manutenção da transmis- essas transações serem a criação de limites de
são da política monetária. Essa postura é mais gastos diários ou pagamentos recorrentes. Algo
importante em países de alta inflação, já que como um débito automático em conta corrente,
alternativas privadas se tornam mais atraentes mas mais sofisticado e com condicionalidades
nesses cenários em que a moeda fiduciária ofi- mais específicas e personalizadas, aumentando
cial está perdendo suas funções. a conveniência para os usuários.
to de CBDCs na conta direta no Banco Central. em dois níveis”, ou seja, o Banco Central emite
Sem receber o depósito dos clientes, os bancos a moeda digital e administra o sistema de liqui-
comerciais teriam dificuldades de ofertar crédi- dação, mas as instituições financeiras ficam res-
to e todo o processo do multiplicador monetá- ponsáveis por abrir contas para o público. O sand
rio seria prejudicado. Um problema ainda mais dólar é assim. Na China, o projeto do yuan digital
grave dessa decisão do usuário é que ela efeti- está contando com a participação conjunta não
vamente pode representar uma corrida genera- só dos bancos, mas das gigantes da tecnologia,
lizada contra os bancos se for o entendimento a exemplo da Tencent, dona do WeChat Pay e o
geral. Tal cenário seria provável em contexto de Ant Group, do AliPay. As diretrizes do Real di-
incerteza no qual o público desconfie de uma gital vão na mesma abordagem de dois níveis
crise financeira, já que as CBDCs se apresenta- e sem recebimento de rendimentos. A escolha
riam como uma alternativa sem riscos. Esse, in- faz sentido inclusive quando comparada com a
clusive, é um dos principais argumentos usados atuação recente do BCB, já que o modelo é simi-
para justificar a postura de cautela do Deutsche lar ao do Pix, no sentido de que o Banco Central
Bundesbank com relação às CBDCs. é responsável pelo arranjo e agentes privados
são licenciados para operar no sistema. Um
O desafio dos Bancos Centrais, portanto, é destaque a ser feito com relação à opção pela
desenvolver um desenho para a CBDC com me- arquitetura de dois níveis é que ela pode limitar
canismos que mitiguem tais riscos. Dentre eles e/ou dificultar o uso de tecnologias de token, fa-
está criar restrições para a atratividade da de- vorecendo modelos baseados em conta55.
tenção de CBDCs frente aos depósitos. Exemplos
muito falados envolvem impedir que CBDCs te- O terceiro desafio de destaque das CBDCs é
nham retorno de juros e limitar a quantidade de mais abrangente, de caráter jurídico e um impe-
dinheiro que pode ser alocada nesse formato. dimento prático a qualquer desenvolvimento da
A abordagem prática dos países, em geral, têm política: para que Bancos Centrais emitam uma
sido a de pensar nos projetos de modo a impedir CBDC, precisam de um estrutura legal robus-
que CBDCs compitam com os depósitos. Os mo- ta, mas ¼ deles explicitamente não têm auto-
delos já em operação, inclusive, apostaram na rização para fazer a emissão e quase metade
integração com as instituições financeiras e de está em cenário de incerteza jurídica. Segundo
pagamento como forma de mitigar esses riscos. o mapeamento do BIS, essa alta proporção de
Tal medida tem sido acompanhada da limitação Bancos Centrais sem esclarecimento sobre o
dos valores que podem ser mantidos em CBDC tema reflete diretamente no fato de que, apesar
e controle das funcionalidades. Nas Bahamas, o de 86% estarem pesquisando o tema, a maioria
limite é de 8 mil sand dólares na conta e 10 mil não chegou a desenvolver pilotos56. Apesar das
gastos em transações no mês por pessoa, por diferenças, portanto, as CBDCs também são ino-
exemplo54. vações recentes como as criptomoedas e stab-
lecoins, o que contribui para que os instrumen-
A integração com as instituições financeiras tos legais tenham dificuldade de acompanhar a
têm ocorrido no que chamam de “abordagem velocidade dos acontecimentos.
O fenômeno das moedas digitais ainda é um parativo importante é a taxonomia das moedas:
mar de complexidades e poucos consensos, no o que elas são, o que elas não são e como elas
entanto, é possível fazer algumas comparações se diferenciam. Juntando as construções, fica-
e tirar algumas conclusões que ajudem na nave- mos com o quadro abaixo.
gação desse mercado. Um primeiro ponto com-
Reservas
Moeda CBDC CBDC dos bancos
Característica Criptomoeda Stablecoin
eletrônica Varejo Atacado comerciais
Há casos em que a diferença entre as moe- DCs podem ser efetivamente classificadas como
das digitais não está nas propriedades defini- moeda. Criptomoedas possuem dificuldade de
doras da “money flower”, mas em algo relacio- atender às três funções básicas e stablecoins va-
nado à operação ou infraestrutura. No caso de riam na proximidade a depender da credibilidade
criptomoedas e stablecoins, a diferença está na do lastro. Já a CBDC respeita tanto as funções da
criação de um lastro em uma cesta de ativos ou moeda quanto a categoria adicional de ser aceita
algoritmos que mantenham a estabilidade da “No questions asked”, uma vez que — se emitida
moeda. O mesmo vale para a comparação en- — será moeda de curso legal.
tre CBDCs de atacado e as contas de reservas
no Banco Central: se a CBDC for account-ba- Conseguir ou não exercer as funções da
sed, a diferença entre elas passa a ser apenas moeda, no entanto, não necessariamente signi-
o sistema que opera cada uma. fica que todas as demandas serão atendidas por
CBDCs. As diferentes características fazem com
O ponto mais importante a destacar a título que cada uma tenha aplicações diferentes que
de comparação conceitual, no entanto, não está valorizam um aspecto diferente da demanda do
relacionado às propriedades de cada moeda di- usuário. Um exemplo é a questão da privacida-
gital, o que faz com que consigamos identificar de: uma pesquisa da OMFIF indicou ser a carac-
qual é qual, mas no fato de que apenas as CB- terística mais importante para o público em uma
Meio de troca
Unidade de conta
Reserva de valor
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Moedas digitais
CBDC. Nos EUA e Alemanha, chegou a 70% dos zação de investimentos, algo específico a elas e
entrevistados dando essa resposta57. fora do escopo das CBDCs.
Esse tipo de resultado indica que há deman- Com relação aos desafios, há maiores dife-
da por alternativas que reproduzam no digital o renças a serem exploradas. Como cada uma das
que o papel moeda é no mundo físico. No caso três se desenvolveu como resposta um proble-
da CBDC isso só é possível se ela for token-ba- ma diferente gerado no período anterior — crip-
sed e, mesmo assim, por ser emitida pela au- tomoedas à insegurança no sistema financeiro,
toridade monetária um mínimo de informação stablecoins à volatilidade das criptomoedas e
sempre será demandada. Sendo assim, mesmo CBDCs à necessidade de garantir a soberania
que as 3 tenham como vantagens a possibilida- na emissão da moeda e evitar a substituição por
de de facilitar pagamentos transfronteiriços, por moedas privadas além de inclusão financeira,
exemplo, ainda é possível que faça mais sentido seus desafios e demandas por regulação são
para o usuário em questão preferir uma stable- bastante diferentes. Todas têm em comum, no
coin como a Diem a uma CBDC account-based. entanto, o fato de o processo estar no início e
Também existe o fato de que criptomoedas e sem tendência de direcionamento traçada devi-
stablecoins são usadas como ativos para reali- do à contemporaneidade do fenômeno.
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AUTORES
Carlos Ragazzo
Professor da FGV-Rio, Presidente do Conselho do
Instituto Propague e Ex-Superintendente Geral do CADE
Bruna Cataldo
Pesquisadora do Instituto Propague e doutoranda
em Economia
DIAGRAMAÇÃO
Gabriel Madeira