"A Tríplice Realeza de Cristo e Seu Poder Tripartite Na Encíclica Quas Primas e A Noção de "Nova Cristandade" Proposta Pelo Humanismo Integral"

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A TRÍPLICE REALEZA DE CRISTO E SEU PODER TRIPARTITE NA

ENCÍCLICA QUAS PRIMAS E A NOÇÃO DE “NOVA CRISTANDADE”


PROPOSTA PELO HUMANISMO INTEGRAL 1

André Abdelnor Sampaio

INTRODUÇÃO

A Realeza de Jesus Cristo é componente essencial da profissão de Fé


Católica, tratando-se uma implicação necessária da Divindade de Jesus Cristo,
Sua Soberania absoluta sobre todas as coisas e o consequente dever de toda
criatura reconhecer e manifestar a seu modo sua dependência d’Ele, bem
como é consequência da aplicação de Sua Redenção em todas as realidades
humanas. Entretanto, surgem muitas incompreensões acerca do que
propriamente consiste o Reinado de Jesus Cristo e suas implicações
intrínsecas nas relações entre ordem política e a ordem eclesiástica, no que
pode se denominar de “Cristandade”2. Outras versões e definições de ordem
social cristã surgiram, sobretudo no século XIX e no século XX, com a noção
de “nova Cristandade” difundida pelos adeptos do humanismo integral de
Jacques Maritain3 (1882-1973).

1
Humanismo integral é a mais famosa teoria elaborada pelo filósofo neotomista francês
Jacques Maritain (1882-1973). Propõe uma espécie de humanismo católico, em contraposição
ao humanismo renascentista e burguês, e busca abarcar todo o aspecto de vida humano, tanto
da esfera temporal como da esfera espiritual, partindo do princípio de que o homem é pessoa e
deve ser totalmente compreendido, desde a vida político-social do Eu-cidadão ao contato com
o transcendente e o Absoluto, a considerar o homem apoiado num fundamento transcendente,
mas sem resumir-se neste.
2
“Diz o Padre Calderón em El Reino de Dios: “A relação da Igreja com a cultura – que,
entendida em sentido amplo, envolve não só a ciência e a arte, mas também a maneira de
levar a vida familiar, econômico-social e política – é o ponto onde eclode a diferença entre a
concepção tradicional e a ‘humanista’.” Com efeito, tudo (ciência, arte, educação, economia,
política, etc.) deve conformar-se mais ou menos diretamente à luz da Revelação, como sucedia
nas Universidades medievais. Ora, tal como nelas, prossegue o Padre Calderón, “a faculdade
de teologia deve ser o centro e alma das demais, projetando a visão cristã em todos [destaque
nosso] os campos do saber, em maior grau quanto mais humanos. Ao assumir esta função, a
Igreja tomou tudo o que de verdadeiro os homens tinham pensado, purificando-o de seus erros,
e criou a Cultura Cristã […], universal como a própria Igreja. Falar de Cultura Cristã e de
Cristandade é falar da mesma coisa, pois aquela é o princípio formal desta, e é o mesmo que
falar da Igreja. Evangelizar e cultivar, ou seja, educar os povos na Cultura Cristã, sempre foi
para a Igreja sua própria missão: Ide e ensinai”. Disponível em:
https://www.santotomas.com.br/sob-o-cristo-senhor-o-verdadeiro-rei/
3
Jacques Maritain (1882-1973) foi um pensador, escritor e filósofo católico francês, um dos
grandes expoentes da escola filosófica neotomista do século XX. Converteu-se ao catolicismo
Este trabalho se propõe a estudar os ensinamentos magisteriais da Igreja
segundo o grau de autoridade infalível e meramente autêntico4 e as sentenças
teologicamente certas que explicitam os ensinamentos destes órgãos
autênticos do Magistério(O Sumo Pontífice principalmente e os bispos), em
particular a Encíclica Quas Primas5 e sua doutrina sobre a Realeza Tríplice de
Cristo e seu Poder Judiciário, Legislativo e Executivo, para posteriormente
analisar a noção de “nova cristandade” e verificar se há alguma mudança
substancial no ensinamento do Reinado Social de Jesus Cristo, sobre as
relações entre a ordem política e ordem eclesiástica, quanto à doutrina da
realização do Fim Último, sobre as devidas relações entre a ordem da natureza
e a ordem da Graça, no intento de investigar se a doutrina do humanismo
integral em sua concepção de “nova Cristandade”, suas considerações sobre
lei e as relações entre a ordem política e eclesiástica permanecem fiéis à
Doutrina da Realeza de Cristo como ensinada pelo Magistério infalível e certo
da Igreja ou está em uma ruptura com este. Tem-se a finalidade de explicitar o
ensinamento católico sobre a Realeza de Cristo expressa na encíclica Quas
Primas e suas implicações nas relações entre a jurisdição temporal e a
jurisdição eclesiástica, bem como verificar a Doutrina Católica sobre a ordem
da natureza e a ordem da a Graça e suas consequências na política teológica,
bem como se há e quais seriam os desvios no que se refere às considerações
do modernismo teológico, especificamente quanto ao liberalismo humanista
integral acerca do Magistério autenticamente católico sobre o Reinado Social
de Jesus Cristo.

em 1906, pela influência do escritor francês Léon Bloy, e, em suas ideias, foi um dos grandes
influenciadores dos principais documentos do Concílio Vaticano II, como Dignitatis Humanae e
Gaudium et Spes, e dos papas católicos desde João XXIII, mas principalmente Paulo VI.
4
O Concílio Vaticano I, através da Constituição Dogmática Pastor Aeternus, definiu o dogma
católico da infalibilidade papal, isto é, de que o papa é infalível quando fala ex cathedra, a partir
da cátedra, segundo as chamadas “condições vaticanas”.
5
Encíclica escrita e promulgada pelo Papa Pio XI (1857-1939) em 1925, declarando a festa
litúrgica de Cristo Rei e definindo a necessidade do culto público societário a Deus através da
Igreja Católica.
O material utilizado será a Encíclica Quas Primas como eixo gravitacional e as
regras remotas da Fé6 que versam sobre a teologia política católica sobretudo
acerca da configuração cristã das nações, sobre as relações entre Igreja e
Estado e sobre a Lei em seus diversos âmbitos, bem como as explicitações e
sentenças certas expostas pelo Doutor Comum da Igreja e seus principais
mestres auxiliares, e os principais tópicos do humanismo integral referentes ao
tema, especificamente os que exerceram influência no seio eclesial na segunda
metade do século XX.

PRINCÍPIO E FUNDAMENTO

É de Fé Divina e Católica que Nosso Senhor Jesus Cristo é o Verbo de Deus7,


a Sabedoria divina incriada que fez todas as coisas, e ao criar o homem, desde
o início lhe havia conferido um destino sobrenatural. É parte essencial do dado
revelado que Deus havia dito ao homem para sujeitar a terra e exercer seu
domínio “sobre os peixes do mar e sobre as aves do céu, e sobre todos os
animais que se movem sobre a terra”, como se atesta no Gênesis. Porém,
todos esses objetivos naturais foram pensados por Deus como fins
intermediários que se destinariam essencialmente a um Fim Último, a própria
glória de Deus, isto é, a manifestação clara e laudatória da Bondade divina de
modo participado pelas criaturas. Adão fora criado por Deus com dupla ciência
infusa: a ciência sobrenatural pela qual se ordenara diretamente a Deus, e a
ciência natural, pela qual poderia viver e ensinar a viver seus descendentes
nesta terra. O Fim último sobrenatural que Deus concebeu para o homem não
anula, não elimina os fins naturais inscritos em suas potencialidades, de modo
que o fim natural é assimilado é condicionado ao fim sobrenatural, como
determinação extrínseca designada por Deus ao homem, pois segundo a
Doutrina Católica, a Graça não tolhe, nem contraria a natureza, mas a
pressupõe e a aperfeiçoa, tendo a Graça principalmente dois efeitos em uma
única operação: sanar as vicissitudes da natureza ferida pelo pecado original, e

6
Por regras remotas da fé, entende-se a autoridade da Sagrada Escritura e da Divina Tradição
subordinadas sempre ao Magistério da Igreja, definido pelo Papa Pio XII (1876-1958) em
Humani Generis como sendo a regra próxima da Fé.
7
Cf. João I, 1-3.
elevar a natureza para a ordem sobrenatural, coisas que aquela nunca
conseguiria lograr por si mesma, sem esta qualidade infundida por Deus na
alma de modo totalmente gratuito, e por isto se denomina esta qualidade infusa
por Deus na alma humana como “Graça”.

Mesmo com a entrada do pecado no mundo, e a consequente perda do estado


de justiça original, ensina a Revelação divina que Deus Se fez Carne e habitou
entre nós. Remiu os pecados dos homens mediante Sua Dolorosa Paixão na
Cruz, e os justificou diante do Pai, mas não apenas isso: mediante a Paixão,
Morte e Ressurreição de Jesus Cristo e o envio do Espírito Santo em
Pentecostes, nasce a Igreja Católica, que é a sociedade divina hierárquica que
tem Jesus Cristo como Divino Autor e cujo chefe é o Papa, Vigário de Cristo,
Sucessor de São Pedro. A Igreja guarda o ensinamento de Jesus Cristo e
aplica Sua Redenção sobretudo pelos Sacramentos, pela instrução dos seus
fiéis e governo das almas em ordem à beatitude eterna, comunicando Graças
entre seus membros que estão na Terra, No Céu e no Purgatório pela
comunhão dos santos e abre novamente para todos os homens o caminho de
união com Deus pela instituição dos sacramentos, que são canais da Graça
Divina operados materialmente, para assim podermos seguramente participar
de Sua Natureza, herdar o Reino de um Pai Amorosíssimo e obter plenamente
a filiação Divina. Cristo é o Criador de todas as coisas, pois por Ele tudo foi
feito, e por isto ele possui domínio absoluto sobre todas as criaturas, que
recebem o ser d’Ele. Ao Encarnar-Se, redime e santifica tudo o que é
propriamente humano, ordenando à finalidade sobrenatural a que o homem
fora concebido desde o início, e mediante Sua Paixão e Morte resgata o
homem do cativeiro de satanás e do pecado, que é justamente a tendência
decaída que os homens possuem de desordenar seus atos, de conspurcar
suas operações, de subverter a hierarquia objetiva dos bens, viciando sua
ação. Jesus Cristo é, então, o Verdadeiro Rei. Rei por direito de natureza, pois
sendo Cristo de condição Divina, Uno em Divindade com o Pai e o Espírito
Santo, possui governo sobre o mundo, domínio supremo sobre todas as
criaturas, que por Ele foram feitas e Para Ele se destinam. Ele é Rei com pleno
direito de todas as atividades próprias do homem, por meio de Sua União
Hipostática8 presente pela Sua Encarnação.

Ensina a Doutrina Católica que Cristo é Verdadeiro Deus e Verdadeiro Homem9


, e todos os atos realizados por Sua Humanidade Santíssima ordenam-se à
Sua Divindade e assim adquirem valor infinito, santificando e possibilitando a
santificação10 – mediante o exemplo e operação de Sua Graça – de todos os
atos humanos feitos n’Ele, com Ele e por Ele11. Por conseguinte, toda situação
concreta adquire sentido Redentor quando feita em Cristo, com reta intenção,
para a Glória de Deus e Salvação das almas. Ele é Rei por direito adquirido
mediante o resgate do gênero humano, pago com Seu Preciosíssimo Sangue
Redentor. Pois ao morrer na Cruz, Cristo extingue a dívida pelos pecados dos
homens, libertando-os do poder do pecado e de Satanás, que tinha domínio
sobre o gênero humano após a queda, quando este perdeu o estado de Justiça
original. Cristo resgatou o gênero humano mediante Seu Preciosíssimo Sangue
na Cruz. Como ensina o Papa Pio XI (1857-1939)12, na encíclica Quas Primas,
a realeza de Cristo manifesta um triplo poder: Judiciário, Executivo e
Legislativo. Realeza de natureza espiritual e temporal, sendo a segunda um
reflexo da primeira e essencialmente subordinada à primeira, que constitui a
parte principal Seu reinado. Este Reinado Social de Jesus Cristo não é um
mero costume, uma mera festa, está longe de ser uma mera “metáfora”, sem
consequências práticas e apostólicas. É uma realidade espiritual fundamental a

8
É elemento essencial do pilar do segundo pilar da Fé Católica, depois da Trindade (a
Encarnação do Verbo), a doutrina da União Hipostática. Ela se refere às duas naturezas
humana e divina de Jesus Cristo. O Verbo Encarnado é a Segunda Pessoa da Santíssima
Trindade, que possui no mesmo supósito duas naturezas, que estão intimissimamente unidas,
mas não mescladas; e perfeitamente distintas, mas jamais separadas. Duas Naturezas em uma
única Pessoa: a Pessoa do Filho. É a União Hipostática que possibilita Cristo sofrer enquanto
Homem na Santa Cruz, e merecer infinitamente diante de Deus em favor dos homens, pois Sua
Natureza Humana está hipostaticamente unida à Sua Pessoa Divina e, portanto, todos os atos
de Jesus Cristo possuem mérito infinito diante do Pai, e, de modo especialíssimo, o Sacrifício
da Cruz.
9
Catecismo Maior de São Pio X, questões 87 a 89.
10
Santidade é o cume da vida cristã, termo da Salvação, e consiste na Perfeição da Caridade,
pela plena conformação da nossa vontade com a Vontade de Deus, mediante o enraizamento
pleno da Graça de Jesus Cristo na alma, segundo Deus dispõe.
11
Cf. Romanos XI, 36.
12
Pio XI (1857-1939), nascido Ambrogio Damiano Achille Ratti, foi Papa da Igreja Católica de
1922 até sua morte, em 1939.
ser observada de forma indispensável. Quis Deus a cooperação do homem
para n’Ele tudo instaurar, participando de Sua missão salvífica e disseminando
seus abundantes frutos em todos os cantos da Terra. Assim ensina a Doutrina
Infalível da Santa Madre Igreja.

Como ensina Santo Tomás de Aquino13, Doutor Comum da Igreja, no seu


Comentário às Sentenças de Pedro Lombardo, IV, dist. 49, q. 1, art. 2:

A expressão “Reino de Deus” se entende, por antonomásia, de duas


maneiras: ou como a congregação dos que caminham na Fé, e assim
se diz que o Reino de Deus é a Igreja militante; ou, de outra forma,
como o consórcio daqueles que já estão fixados no fim [os
bem-aventurados], e assim se diz que o Reino de Deus é a Igreja
triunfante.

Da Sã Doutrina, tira-se os seguintes princípios:

1. Não há separação entre Reino de Deus e Igreja, apenas distinção entre


suas modalidades e formas de atuação. Mas sempre existirá a
identificação entre Reino de Deus e Igreja, seja em seu modo de Igreja
Militante (aqui na Terra, dos que lutam para desenvolver a vida
sobrenatural e alcançar a salvação eterna), Padecente (no purgatório) e
Triunfante( No Céu dos bem-aventurados).

2. Deve haver uma subordinação essencial entre as realidades temporais


para a ordem espiritual, sem haver jamais uma confusão entre as
competências dos dois campos, mas uma síntese de tal modo que as
realidades exteriores e temporais sejam de fato e de direto, um
testemunho da vida Graça e ao mesmo tempo um instrumento que
favoreça a sua eficácia, dispondo todas as realidades naturais e terrenas
para que recebem o influxo da Graça comunicado pelos sacramentos
administrados pelo Clero e pela vida de piedade dos fiéis, e santifiquem
todas as pessoas em todos os ambientes e realize a configuração
católica da sociedade. Sem jamais perder de vista que o Reino definitivo
de Deus remata-se na Pátria dos Bem-Aventurados, este Reino se inicia
sobre este mundo, com a Fundação da Igreja, e se consuma
plenamente no Céu. A Igreja é o Reino de Deus.

3. Tal realidade não deve ter uma dimensão meramente privada, mas sim
pública, não somente de fato, mas de direito, de princípio. Cristo não é
Rei apenas das sacristias, mas Rei de tudo. Sua Realeza é

13
Tomás de Aquino (1225-1274) foi um frade dominicano, filósofo e teólogo católico italiano,
canonizado em 1323 pelo Papa João XXII. Considerado o Príncipe da Escolástica, sua doutrina
filosófica e teológica, de base aristotélica, foi a mais importante e influente para a Igreja
Católica, especialmente a partir do Concílio de Trento, com os papas Bento XIV e Leão XIII a
classificar o tomismo, i.e., a doutrina de Tomás, como a própria filosofia católica.
oniabrangente, universal. Realeza esta que se dá a Triplo-Título, como
está claramente expressa na encíclica Quas Primas, de Pio XI:

A) por Geração Eterna, pois Cristo é o Verbo Divino, da Mesma Natureza


do Pai, gerado Eternamente de Sua Substância Divina Simplíssima.
Todo o Poder do Pai é do Filho. Por Ele foram feitas todas as coisas,
para manifestar sua Glória.

B) Por União Hipostática, pois o Verbo Divino se fez Carne e habitou entre
nós. Santificou todas as realidades humanas concretas, deu-nos a
possibilidade de realizar toda e qualquer atividade honesta sob a
espécie da eternidade, se fizermos em comum união com Cristo, Verbo
Divino Encarnado.

C) Por Redenção, já que Cristo resgatou o gênero humano do Inferno, do


pecado e da morte, por Seu Santo Sacrifício na Cruz, nos justificou
diante de Deus, com o preço do seu Preciosíssimo Sangue. É Rei e
Senhor. Atrai todos para Si. Fez-nos partícipes de Sua Vida, por Seus
Méritos Infinitos oriundos de Sua Condição Divina, e comunicados até
nós por Sua Santíssima Humanidade. É o Verdadeiro Deus-Homem, que
Vive, Reina e Impera.

A Cidade, quando não está essencialmente ordenada para a Lei de Cristo,


impede que a Graça opere de modo profícuo em todos os ambientes, e assim
menos pessoas se salvam. Quanto maior for a operação da Graça em nossos
corações e em todas as instâncias da vida em sociedade, maior será a
incoação de Glória no Céu. A Realeza Social de Jesus Cristo, no tempo
presente, consiste buscar a ordenação da melhor forma possível, de que todas
as esferas terrenas sejam testemunhos e instrumento da vida da Graça para
que no Céu se torne em glória dos bem-aventurados (consumação do Reino de
Deus). O Reino de Deus não se consuma neste mundo, mas já se dá sobre
este mundo, pela Igreja e sua ação Salvífica que converte as almas ao
Evangelho e consequentemente informa o tecido social pela Lei de Cristo,
findando com as estruturas de pecado, purificando dos erros todas as
instâncias da sociedade, e elevando-a para ordem da Caridade sobrenatural,
buscando fazer o máximo possível para que toda a vida social se oriente a
amar ao Deus verdadeiro, e ao próximo por amor a Deus, de modo a propiciar
o máximo acúmulo de méritos para o Céu em cada setor e atividade
propriamente humana, para que sejam feitas em união com o Santo Sacrifício
da Missa. A Igreja é a sociedade divina de natureza hierárquica fundada por
Jesus Cristo para guardar Sua Doutrina e aplicar a todos os povos em todos os
tempos a Sua Redenção até o fim dos tempos. Ela o Reino de Deus Vivo na
história que se realiza definitivamente no Céu.

A ordenação do Estado à Igreja se dá de modo análogo à ordenação do corpo


à alma no composto humano; à ordenação da razão à Fé na Sagrada Teologia,
e à ordenação da natureza à Graça no justo. A natureza se ordena à Graça,
dispondo-se para ela, ao modo de potência obediencial, isto é, uma potencia
passiva de receber o influxo da Graça de Cristo e assim participar da Natureza
Divina sem anular as operações naturais. Todas estas analogias se dão em
sentido próprio e não metafórico.

Como explicita o Pe. Álvaro Calderón (1956)14 referente ao Estado e à Igreja:

▪ Não são duas realidades completas na sua ordem, senão dois


co-princípios que constituem um todo único. Assim como o corpo e a
alma não são duas substâncias que existem de modo separado, senão
que são dois princípios que se complementam para que exista a única
substância composta que é o homem, assim também a ordem espiritual
e a temporal não são duas sociedades que possam existir de modo
separado como realidades completas, senão que são dois elementos
complementares da única e mesma realidade social: A Igreja.

▪ À objeção que diz que a Igreja e o Estado são duas sociedades perfeitas
responde-se que são sociedades perfeitas no aspecto jurídico, no
sentido em que ambas as potestades são supremas na sua ordem, mas
ambos ordenamentos jurídicos têm por sujeitos os mesmos homens e
ambos são necessários para alcançar o mesmo e único fim último
sobrenatural.

▪ No segundo lugar, afirma-se que são princípios realmente distintos, com


origem distinta e capazes de se separarem: Assim como a alma tem sua
origem em Deus e o corpo nos pais, e depois de unidos poderiam
separar-se, deixando a alma a sua condição de temporal e passando o
corpo a cadáver, assim também o poder espiritual vem de cima e o
poder temporal tem suas raízes na história pátria e poderiam separar-se,
ficando no Céu a Igreja triunfante e na terra cadáveres de cidades. Mas,
assim como a separação total do corpo e da alma implica a morte do
homem, também a separação completa do poder espiritual de toda

14
Álvaro Martín Calderón (1956) é um sacerdote, filósofo, teólogo e engenheiro nuclear católico
argentino, membro da Fraternidade Sacerdotal São Pio X e professor de variadas disciplinas no
seminário de La Reja, pertencente à mesma Fraternidade.
sociedade temporal implicaria a morte da Igreja militante, o que Cristo
prometeu que não iria acontecer.

Demonstrada a analogia própria que há entre os dois poderes e as realidades


do corpo e da alma no composto humano, constata-se que a divisão de
jurisdição instaurada por Jesus Cristo não implica de modo algum em ausência
de subordinação entre uma jurisdição e outra, nem em subordinação acidental
quanto aos fins, ainda que haja subordinação indireta quanto às potestades,
mas ambas se ordenam a Cristo Rei essencialmente, sendo o estado membro
da Igreja a título de pessoa moral, cabe explicitar a índole da Realeza de
Cristo. E assim declarou o Papa Pio XI:

A Cristo Rei cabe o poder Legislativo, Judicial, Executivo. Para dizer,


em poucas palavras, a importância e índole desta realeza, será apenas
necessário asserir que abrange um tríplice poder constitutivo,
essencial de toda realeza verdadeira. Provam-no de sobejo os
testemunhos de toda a Escritura no tocante à dominação universal do
nosso Redentor, e é dogma de fé católica: Cristo Jesus foi dado aos
homens não só como Redentor, no qual devemos depositar toda
confiança, mas também como Legislador, a quem devemos prestar
obediência15. E, com efeito, não dizem os Evangelhos tão só que
promulgou leis, mas no-lo representam no ato de promulgar as leis. A
quantos observarem os seus preceitos, declara o Divino Mestre, em
várias ocasiões e de diversos modos, que com isto mesmo Lhe hão de
provar o seu amor e permanecer em sua caridade (Jo 14,15; 15,10). —
Quanto ao “Poder judicial”, declara o próprio Jesus havê-lo recebido de
seu Pai, em resposta aos judeus que o haviam acusado de violar o
descanso do sábado, curando milagrosamente, neste dia, a um
paralítico. “O Pai – disse-lhes o Salvador – a ninguém julga, mas deu
ao Filho todo o poder de julgar” (Jo 5,22). Esse poder judicial
igualmente inclui o “direito” — que não se pode dele separar — de
“premiar” e “punir” aos homens, mesmo durante a vida. — A Cristo
compete o “poder executivo” porquanto devem todos sujeitar-se ao seu
domínio, e quem for rebelde não poderá evitar a condenação e os
suplícios que Jesus prenunciou.16

15
Cf. Concílio de Trento, Sessão VI, cânon 21.
16
Cf. PIO XI, Quas Primas, 1925.
Jacques Maritain, no intento de contrapor ao humanismo ateu e materialista
que cerra o homem nas realidades imanentes sem abertura para a
transcendência e na tentativa de se opor ao que ele denomina como
concepção “ministerialista” de Estado próprio da Cristandade Medieval, elabora
uma ideia de “nova cristandade” que não corresponderia aos modelos
anteriores. Buscando salvaguardar a ideia de autonomia do temporal e
pluralismo social mantendo a marca da vida cristã. Eis que descreve sua
concepção de Estado:

Desembaraça-se destarte e se precisa a noção de cidade leiga


vitalmente cristã ou de Estado leigo cristãmente constituído, isto é, de
um Estado em que o profano e o temporal possuem plenamente seu
papel e sua dignidade de fim e de agente principal, - porém não de fim
ultimo nem de agente principal mais elevado. Eis aí o único sentido em
que o cristão pode reconhecer a palavra "Estado leigo", que doutra
maneira tem apenas um sentido tautológico – a laicidade do Estado
significando então que ele não é a Igreja, – ou um sentido errôneo, – a
laicidade do Estado significando então que é ou neutro ou
antirreligioso, isto é, está a serviço de fins puramente materiais ou de
uma contra-religião. (MARITAIN, 1941, p. 170)

Defendendo então um pluralismo jurídico em que a religião católica não


possuiria mais uma autoridade formal como regente do bem comum espiritual,
sem haver uma subordinação essencial e direta de fins com relação ao poder
temporal e ao poder espiritual, mas estatutos jurídicos pluriformes que se
adaptem às configurações histórico-sociais e sobretudo que esteja adaptado às
legítimas conquistas da modernidade, sem aderir ao caráter “sacral” do
medievo, que desconhecia a centralidade da pessoa como fundamento de
organização da sociedade.

Voltemos, porém, a nossas considerações sobre a unidade da cidade


pluralista. Tal unidade temporal não seria, como era a unidade sacral
da idade media, urna unidade máxima: seria ao contrario urna unidade
mínima seu centro de formação e de organização sendo situado na
vida da pessoa, não ao nível mais elevado dos interesses
supratemporais desta, mas ao nível do plano temporal ele próprio. E é
em virtude disto que esta unidade temporal ou cultural requer de si
mesma a unidade de fé e de religião, e que pode ser cristã agrupando
em seu seio não-cristãos. (Idem, ibidem, p. 165)

Denomina Maritain a noção de estado “infra-valente”, isto é, um agente


instrumental inferior à Igreja, e que pode colaborar com ela na sua Missão; sem
se considerar um meio ou parte da Igreja, como uma espada temporal que se
ordena essencialmente à espada espiritual no que concerne aos fins. Assim
Maritain sustenta o pluralismo e a autonomia do temporal de sua “nova
Cristandade”:

No caso de urna civilização de tipo profano, é procurando seu fim


próprio (infravalente), e é a título de agente principal (infraposto) que a
cidade temporal cristã desempenha seu dever para com a Igreja :
então é antes integrando, segundo seu modo pluralista que foi aqui
descrito, as atividades cristãs na propria obra temporal (por exemplo
dando ao ensino cristão seu justo lugar na estrutura do regime escolar
ou pedindo aos institutos religiosos de misericórdia para concorrer com
uma justa porção nas obras de assistência social), e recebendo assim,
como agente autônomo em livre acorde com um agente de ordem mais
elevada, o auxílio da Igreja, que a cidade auxilia a efetuar sua missão
própria; e é "o modo das atividades mais especificas da cidade eterna,
isto é, das atividades espirituais e morais", que se torna então o modo
dominante da colaboração dos dois poderes. (Idem, ibidem, p. 173)

Maritain propõe um cristianismo de “fermento”, que busca cristianizar as


pessoas, sem cristianizar as estruturas social e política, mantendo-as “neutras”,
como se o catolicismo fosse uma mercadoria avariada que entre de
contrabando ou de modo mais ou menos incidental como uma injeção
intravenosa, sendo este um dos principais pontos de sua “nova cristandade”.

Como afirma padre Calderón:

El primer motivo lo lleva a Maritain a defender a rajatabla el título de


«cristiana» para la sana filosofía; porque si no merece llamarse
cristiana la filosofía, tampoco lo merecería su sociedad humanista. El
segundo motivo es el naturalismo místico de que hablamos más arriba.
Como puede suponerse, este nuevo cristianismo deberá ser muy puro
pero también muy escondido, como la levadura en la masa: “No se
puede realizar más que con la ayuda de los médios de la cruz, no digo
la cruz como insígnia exterior y símbolo colocado en la corona de los
reyes cristianos, o decorando honorables pechos, me refiero a la cruz
del co­razón, a los sufrimientos redentores asumidos en el seno mismo
de la existência”. El maritainismo triunfo, y es así que nuestros òbispos
le hablan al mundo de ética, y nuestros franciscanos hacen ecologia.
(CALDERÓN, 2017, p. 43)

Este cristianismo “energético” e “intravenoso” proposto por Maritain não toma


forma institucional pública e formal, não trata o Estado como membro da Igreja
enquanto pessoa moral, e que não estabelece a essencial subordinação de fins
do poder temporal com relação ao poder espiritual; confere liberdade para
falsas religiões (exceto alguns limites materiais), não combate e pune heresias,
colidindo com a doutrina dos dois gládios ensinada pelo Papa Bonifácio VIII17
(1230-1303):

As palavras do Evangelho nos ensinam: este poder comporta dois


gládios, ambos estão em poder da Igreja: o gládio espiritual e o gládio
temporal. Mas este último deve ser usado para a Igreja, enquanto o
primeiro deve ser usado pela Igreja. O espiritual deve ser manuseado
pela mão do sacerdote; o temporal, pela mão dos reis e cavaleiros,
com o consenso e segundo a vontade do sacerdote. Um gládio deve
estar subordinado ao outro gládio; a autoridade temporal deve ser
submissa à autoridade espiritual.18

Com os ideais de pluralismo, autonomia do temporal, e uma noção própria de


liberdade das pessoas(que é distinta do mero indivíduo), as consequências da
doutrina de Maritain são a ausência de coordenação e efetividade do estado no
que se refere ao bem comum espiritual, isto é, a beatitude eterna de todos os
súditos que vem unicamente através do Divino Salvador, Jesus Cristo, que
comunica aos homens a vida da Graça; a licença pública para os falsos cultos,
difusão e propaganda de doutrinas heréticas que corroem as inteligências,
atrofiando a capacidade de distinguir o verdadeiro dos falso cultos, e, portanto,

17
Bonifácio VIII (1230-1303), nascido Benedetto Gaetani, foi Papa da Igreja Católica de 1294
até sua morte, em 1303.
18
Cf. BONIFÁCIO VIII, Unam Sanctam, 1302.
dificultando sua submissão a Deus do modo digno que Ele dispôs e
consequentemente prejudicando a liberdade para a Igreja exercer a sua missão
divina de evangelizar todos os povos sem peias e sem freio algum; privando
assim a própria estrutura política das Graças para que ela logre seu fim mesmo
temporal; e se ordene ao fim sobrenatural, onde o “marco cristão” da sociedade
agora se dá pela prudência, articulação e “energia espiritual” dos portadores da
concepção cristã a dar uma razão secular aos não cristãos mostrando que
suas concepções estão de acordo com a “sã razão” e com o bem comum,
tratando-se mais de uma articulação constante de um arranjo prudencial dos
governantes do que um princípio a ser observado de direito de maneira formal
e substancial, judicial, executiva e legislativamente:

Parece-nos clara a lição dessa experiência: nada é mais vão do que procurar
unir os homens sob um minimum filosófico. Tão pequeno, tão modesto, tão
tímido que se faça, daria ele sempre lugar a contestações e a divisões. E essa
pesquisa de um comum denominador para convicções contrastantes não pode
ser senão uma corrida para a mediocridade e a frouxidão intelectuais,
enfraquecendo os espíritos e traindo os direitos da verdade.

Mas então será preciso renunciar a procurar em uma comum profissão de fé,
quer se trate do símbolo dos apóstolos como na idade média, ou da religião
natural de Leibniz, ou da filosofia positiva de Augusto Comte, ou do minimum
de moral kantiana invocado em França pelos primeiros teóricos da laicidade,
será preciso renunciar a procurar em uma comum profissão de fé a fonte e o
princípio da unidade do corpo social.

Entretanto a simples unidade de amizade de que falamos nao basta para dar
uma forma a esse corpo social, - essa especificação ética, sem a qual não tem
a cidade bem comum verdadeiramente humano; - ou antes, para existir como
unidade de amizade, ela mesma pressupõe tal forma e tal especificação.

Se é cristã essa forma é que, portanto, terá prevalecido a concepção cristã, -


segundo o modo profano e pluralista de que falamos.

Mas porque meio? Porque terão tido os portadores dessa concepção cristã
bastante energia espiritual, força e prudência política para mostrar
praticamente aos homens capazes de o compreender que tal concepção é
conforme a sã razão e ao bem comum ; e também - pois são o pequeno
número os homens capazes de o compreender, - para suscitar, e merecer, a
confiança dos outros, e conduzi-los com a autoridade de verdadeiros chefes, e
para exercer o poder em urna cidade que é licito imaginar provida de uma
estrutura política organicamente constituída. (MARITAIN, 1941, p. 167-168)

Sobretudo, Maritain propõe a licença para as falsas religiões:

Destarte seria a cidade 'vitalmente cristã e as famílias espirituais não


cristãs gozariam nela de uma justa liberdade. (Idem, ibidem, p. 161)

Tais concepções foram condenadas nos documentos papais, especificamente


em Syllabus19 (1864) e Quanta Cura20 (1864).

É de doutrina católica que ninguém deve ser coagido a crer, nenhuma violência
é legítima para que um infiel se converta, mas isto não implica em equiparar
em direitos os falsos cultos com o verdadeiro culto, no máximo tolerá-los para
garantir a paz social, na medida em que se causaria um mal maior se
extirpasse-os em determinado momento. Mas tolerância se aplica sempre a um
mal, não a um bem.

19
Proposições condenadas n° 77 e 78: “Na nossa época já não é útil que a Religião Católica
seja tida como a única Religião do Estado, com exclusão de quaisquer outros cultos. Por isso
louvavelmente determinaram as leis, em alguns países católicos, que aos que para aí emigram
seja lícito o exercício público de qualquer culto próprio.”
20
“Sabeis muito bem, Veneráveis Irmãos, que em nosso tempo há não poucos que, aplicando à
sociedade civil o ímpio e absurdo princípio chamado de naturalismo, atrevem-se a ensinar "que
a perfeição dos governos e o progresso civil exigem imperiosamente que a sociedade humana
se constitua e se governe sem preocupar-se em nada com a religião, como se esta não
existisse, ou, pelo menos, sem fazer distinção nenhuma entre a verdadeira religião e as falsas".
E, contra a doutrina da Sagrada Escritura, da Igreja e dos Santos Padres, não duvidam em
afirmar que "a melhor forma de governo é aquela em que não se reconheça ao poder civil a
obrigação de castigar, mediante determinadas penas, os violadores da religião católica, senão
quando a paz pública o exija". E com esta ideia do governo social, absolutamente falsa, não
hesitam em consagrar aquela opinião errônea, em extremo perniciosa à Igreja católica e à
saúde das almas, chamada por Gregório XVI, Nosso Predecessor, de feliz memória., loucura,
isto é, que "a liberdade de consciências e de cultos é um direito próprio de cada homem, que
todo Estado bem constituído deve proclamar e garantir como lei fundamental, e que os
cidadãos têm direito à plena liberdade de manifestar suas ideias com a máxima publicidade -
seja de palavra, seja por escrito, seja de outro modo qualquer -, sem que autoridade civil nem
eclesiástica alguma possam reprimir em nenhuma forma". Ao sustentar afirmação tão
temerária, não pensam nem consideram que com isso pregam a liberdade de perdição, e que,
se se dá plena liberdade para a disputa dos homens, nunca faltará quem se atreva a resistir à
Verdade, confiado na loquacidade da sabedoria humana, mas Nosso Senhor Jesus Cristo
mesmo ensina como a fé e a prudência cristã hão de evitar esta vaidade tão danosa.”
A posição de Maritain, embora tenha exercido influência em muitos locais,
encontrou alguma resistência de prelados católicos, dentre eles, o Arcebispo
Dom Marcel Lefebvre21 (1905-1991), que se posiciona em defesa da doutrina
católica tradicional do Reinado Social de Jesus Cristo:

“Mas, diriam a Maritain, o que sucede com o Reino Social de Nosso


Senhor na sua “sociedade vitalmente cristã”, se o Estado já não
reconhece a Jesus Cristo e a sua Igreja? Escutem bem a resposta do
filósofo: a cristandade (ou o Reino social de Jesus Cristo) é suscetível
de várias realizações históricas sucessivas, essencialmente diferentes,
mas analogicamente idênticas; à cristandade medieval do tipo “sacro”
e “teocrático” (quantos equívocos nestes termos!), caracterizada pela
abundância de meios temporais a serviço da unidade da fé, deve
suceder hoje em dia uma “cristandade” caracterizada, como vimos,
pela emancipação recíproca do temporal e do espiritual e pelo
pluralismo religioso e cultural da cidade.

Que habilidade no uso da teoria filosófica da analogia para


simplesmente renegar o Reino social de Nosso Senhor Jesus Cristo! É
evidente que a cristandade se pode realizar de maneira diferente na
monarquia de São Luiz e na República de Garcia Moreno; mas o que
eu nego absolutamente é que a sociedade maritanista, a cidade
pluralista “vitalmente cristã” seja ainda uma cristandade e realize o
Reino social de Jesus Cristo. “Quanta Cura”, “Immortale Dei” e “Quas
Primas” me asseguram que Jesus Cristo não tem trinta e seis
maneiras de reinar sobre a sociedade: ele reina “informando”,
modelando as leis civis segundo Sua lei divina. Uma coisa é suportar
uma sociedade em que há de fato uma pluralidade de religiões, como
por exemplo no Líbano, e fazer o possível para que Jesus Cristo seja o
“polo” de todas; outra coisa é pregar o pluralismo em uma cidade em
que sua maioria é ainda católica e, para cúmulo, querer batizar este
sistema com o nome de cristandade. Não! A “nova cristandade”
imaginada por Jacques Maritain não passa de uma cristandade

21
Dom Marcel François Marie Joseph Lefebvre, CSSp, FSSPX, (1905-1991) foi um arcebispo e
missionário católico francês. Ficou marcado na história da Igreja Católica no século XX pela
sua destacada resistência ao Concílio Vaticano II, que intendia modernizar a Igreja e realizar
sua “abertura ao mundo moderno”.
moribunda que apostatou e rechaçou seu Rei.”.(LEFEBVRE, 2013, p.
76)

Como ensina a doutrina católica, a Graça não tem apenas a função de elevar o
homem a um estado acima de sua natureza, mas tem o efeito de sanar a
própria natureza de suas vicissitudes e feridas, elevá-la para um modo de
operação no qual a natureza jamais alcançaria por si mesma, mas sem abolir
ou eliminar as operações naturais. Tal princípio se aplica no âmbito da
sociedade política, pois na concepção tradicional, o homem é um animal
político, e o indivíduo, que não distinto da “pessoa”, sendo esta uma substância
22
individual de natureza racional, no ensinamento de Boécio tende para
sociedade como a parte tende ao seu modo para o todo, com subsidiariedade23
e de totalidade24. Portanto, o estado, enquanto criatura de Deus, deve
reconhecer Sua soberania, deve reconhecer a verdadeira religião pelos sinais
certíssimos (as profecias e os milagres) e pelos motivos de credibilidade que
invencivelmente comprovam a origem divina da religião católica, e precisa
portanto render culto a Deus enquanto pessoa moral do estado, pois não
somente os indivíduos, mas o estado enquanto tal deve render culto a Deus e
precisa se subordinar (sem se mesclar) à sociedade divina que Jesus Cristo
fundou, para que justamente a estrutura política não seja impedida de exercer
de modo pleno e permanente seus próprios fins, para que não se degenere em
suas vicissitudes oriundas do pecado original.

O Papa Leão XIII25 (1810-1903) em sua encíclica Immortale Dei, deixa claro o
dever dos estados em favorecer e professar a verdadeira religião, que só pode
ser uma, como um só é o verdadeiro Deus26.

22
Segundo Boécio, a pessoa é o que há de mais perfeito na natureza, pois consiste no modo
mais digno de existir.
23
Princípio no qual o superior não deve atuar naquilo que o inferior consegue realizar em seu
âmbito próprio.
24
A ordenação das partes ao todo.
25
Leão XIII (1810-1903), nascido Vincenzo Gioacchino Raffaele Luigi Pecci, foi Papa da Igreja
Católica de 1878 até sua morte, em 1903.
26
Devem, pois, os chefes de Estado ter por santo o nome de Deus e colocar no número dos
seus principais deveres favorecer a religião, protegê-la com a sua benevolência, cobri-la com a
autoridade tutelar das leis, e nada estatuírem ou decidirem que seja contrário à integridade
dela. E isso devem-no eles aos cidadãos de que são chefes. Todos nós, com efeito, enquanto
Quando Jesus Cristo disse “Meu Reino não é deste mundo” (Jo 18, 36), Ele
não estava advogando por uma autonomia ou independência do poder
temporal com relação ao poder espiritual, mas estava afirmar que Seu Reino
possui raiz divina, não possui origem neste mundo, mas se dá sobre este
mundo com a fundação da Igreja que dispensa Sua Graça aplicando a
Salvação a todos os homens e se consuma na Pátria Celeste; do mesmo modo
quando Cristo diz “dai a Deus o que é de Deus e a César o que é de César” (Mt
22, 21), não estava a advogar por uma separação entre Estado e Igreja, nem
uma subordinação acidental de fins entre um poder e outro, mas a distinção de
jurisdições em que cada um cuidaria de seu âmbito próprio, porém, o âmbito
inferior se subordina direta e essencialmente aos fins do âmbito superior, tendo
ambos de prestar vassalagem a Cristo Rei, Criador, Senhor e Redentor do
gênero humano.

Como ensina o Papa Pio XI na Encíclica Quas Primas:

O fundamento sobre que pousa esta dignidade e poder de Nosso


Senhor define-o exatamente S. Cirilo de Alexandria, quando escreve:

existimos, somos nascidos e educados em vista de um bem supremo e final ao qual é preciso
referir tudo, colocado que está nos céus, além desta frágil e curta existência. Já que disso é
que depende a completa e perfeita felicidade dos homens, é do interesse supremo de cada um
alcançar esse fim. Como, pois, a sociedade civil foi estabelecida para a utilidade de todos,
deve, favorecendo a prosperidade pública, prover ao bem dos cidadãos de modo não somente
a não opor qualquer obstáculo, mas a assegurar todas as facilidades possíveis à procura e à
aquisição desse bem supremo e imutável ao qual eles próprios aspiram. A primeira de todas
consiste em fazer respeitar a santa e inviolável observância da religião, cujos deveres unem o
homem a Deus.
Quanto a decidir qual religião é a verdadeira, isso não é difícil a quem quiser julgar disso com
prudência e sinceridade. Efetivamente, provas numerosíssimas e evidentes, a verdade das
profecias, a multidão dos milagres, a prodigiosa celeridade da propagação da fé, mesmo entre
os seus inimigos e a despeito dos maiores obstáculos, o testemunho dos mártires e outros
argumentos semelhantes, provam claramente que a única religião verdadeira é a que o próprio
Jesus Cristo instituiu e deu à sua Igreja a missão de guardar e propagar.
Porquanto o Filho único de Deus estabeleceu na terra uma sociedade a que chamamos a
Igreja, e encarregou-a de continuar através de todas as idades a missão sublime e divina que
Ele mesmo recebera de seu Pai. “Assim como meu Pai me enviou, eu vos envio” (Jo 20, 21). “E
eis que eu estou convosco até a consumação dos séculos” (Mt 28, 20). Do mesmo modo, pois,
que Jesus Cristo veio à terra a fim de que os homens “tivessem a vida e a tivessem mais
abundantemente” (Jo 10, 10), assim também a Igreja propõe-se como fim a salvação eterna
das almas; e, nesse intuito, é tal a sua constituição que ela abrange na sua extensão a
humanidade inteira e não é circunscrita por limite algum nem de temo, nem de lugar. “Pregai o
Evangelho a toda criatura” (Mt 16, 15).”) baseados não na força, mas na evangelização, na
educação e ensino dos povos, pelo reconhecimento dos preâmbulos da Fé que dão razões
apodícticas que mostram a credibilidade da religião católica e a falsidade das demais religiões,
e tais considerações possuem peso público em ordem ao bem comum.
“Numa palavra, possui o domínio de todas as criaturas, não por ter
arrebatado com violência, senão em virtude de sua essência e
natureza” (In Lucam, 10). Esse poder dimana daquela admirável união
que os teólogos chamam de “hipostática”. Portanto, não só merece
Cristo que anjos e homens O adorem como a seu Deus, senão que
também devem homens e anjos prestar-Lhe submissa obediência
como Homem. E, assim, só em força dessa união hipostática, a Cristo
cabe o mais absoluto poder sobre todas as criaturas, posto que,
durante Sua vida mortal, renunciasse ao exercício desse domínio. —
Mas haverá, outrossim, pensamento mais suave do que refletir que
Cristo é nosso Rei não só por direito de natureza, mas também a título
de Redentor? Lembrem-se os homens esquecidos de quanto
custamos a nosso Salvador: “Não fostes resgatados a preço de coisas
perecíveis, prata e ouro, mas com o sangue precioso de Cristo, como
de cordeiro sem mancha nem defeito” (1 Pd 1,18-19). Já não nos
pertencemos, pois que deu Cristo por nós “tão valioso resgate” (I Cor
6,20). Até nossos corpos são “membros de Cristo” (I Cor 6,15). 27

Enfatiza ainda o Santo Padre que tal realeza é universal, sobre todos os povos
e nações, cristãos e não-cristãos, sendo de dimensão eminentemente
espiritual, possuindo também uma necessária e devida dimensão temporal:

Esta realeza, porém, é principalmente interna e respeita, sobretudo, a


ordem espiritual. Provam-no com toda evidência as palavras da
Escritura acima referidas, e, em muitas circunstâncias, o proceder do
próprio Salvador. Quando os judeus, e até os Apóstolos, erradamente
imaginavam que o Messias libertaria seu povo para restaurar o reino
de Israel, Jesus desfez o erro e dissipou a ilusória esperança. Quando,
tomada de entusiasmo, a turba, que O cerca, O quer proclamar rei,
com a fuga furta-se o Senhor a estas honras e oculta-se. Mais tarde,
perante o governador romano, declara que seu Reino “não é deste
mundo”. Neste Reino, tal como nos descreve o Evangelho, é pela
penitência que devem os homens entrar. Ninguém, com efeito, pode
nele ser admitido sem a fé e o Batismo; mas o Batismo, embora seja
um rito exterior, figura e realiza uma regeneração interna. Este Reino
opõe-se ao reino de Satanás e ao poder das trevas; de seus súditos
exige o desprendimento não só das riquezas e dos bens terrestres,

27
Cf. PIO XI, Quas Primas, 1925.
como ainda a mansidão, a fome e sede da justiça, a abnegação de si
mesmo, para carregar com a Cruz. Foi para adquirir a Igreja que
Cristo, enquanto “Redentor”, verteu o seu sangue; para isto é que,
enquanto “Sacerdote”, se ofereceu e de contínuo se oferece como
vítima. Quem não vê, em consequência, que sua realeza é de índole
toda espiritual e participa da natureza deste seu duplo ofício?

Todavia, seria erro grosseiro negar a Cristo Homem a soberania sobre


as coisas temporais todas, sejam quais forem. Do Pai recebeu Jesus o
mais absoluto domínio das criaturas, que Lhe permite dispor delas
todas como Lhe aprouver. Contudo, enquanto viveu sobre a Terra,
absteve-se totalmente de exercer este domínio temporal e desprezou a
posse e regência das coisas humanas, que deixou — e deixa ainda —
ao arbítrio e domínio dos homens. Verdade graciosamente expressa
no conhecido verso: “Não arrebata os reinos mortais, quem distribui os
celestes – Non eripit mortalia, qui regna dat caelestia” (Hymn. Crudelis
Herodes, of. da Epif.).

Assim, pois, a realeza do nosso Redentor abraça a totalidade dos


homens. Sobre este ponto, de muito bom grado fazemos Nossas as
seguintes palavras de Nosso Predecessor Leão XIII, de imortal
memória: “Seu império não abrange tão só as nações católicas ou os
cristãos batizados, que juridicamente pertencem à Igreja, ainda quando
dela separados pelo erro ou pelo cisma: estende-se igualmente e sem
exceções a todos os homens, mesmo alheios à fé cristã, de modo que
o império de Jesus Cristo abarca, em todo rigor da verdade, o gênero
humano inteiro” (Encícl. Annum Sacrum, 25 de maio de 1899). E, neste
particular, não cabe fazer distinção entre os indivíduos, as famílias e os
Estados; pois os homens não estão menos sujeitos à autoridade de
Cristo em sua vida coletiva do que na vida individual. Cristo é fonte
única de salvação para as nações como para os indivíduos. “Não há
salvação em nenhum outro; porque abaixo do Céu nenhum outro nome
foi dado aos homens, pelo qual nós devamos ser salvos” (At 4,12).
Dele provêm ao Estado como ao cidadão toda prosperidade e
bem-estar verdadeiro. “Uma e única é a fonte da ventura, assim para
as nações como para os indivíduos, pois outra coisa não é a cidade
mais que uma multidão concorde de indivíduos” (S. Agostinho, Epist.
ad Macedonium, III). Não neguem, pois, os homens de governo dar,
em seu nome pessoal e no de seus povos, públicas homenagens de
veneração e de obediência ao império de Cristo se querem conservar
incólume a sua autoridade e promover a felicidade e a prosperidade da
pátria.”28

CONCLUSÃO

Expostos os princípios norteadores da Doutrina Católica acerca da Realeza de


Cristo, seus fundamentos teológicos e suas implicações na sociedade política
no que se refere às jurisdições temporal e espiritual, seus âmbitos de atuação,
e partir da exposição concisa da relação da ordem da natureza e da Graça, e
comparando com os princípios do pluralismo, autonomia do temporal, e a
concepção de liberdade na obra Humanismo Integral de Jacques Maritain,
pode-se extrair que as concepções apresentadas pelo escritor francês
constituem uma ruptura com o Magistério infalível ordinário da Igreja, não
exprimem o ensinamento católico, e se afastam da doutrina de Cristo Rei
sobretudo no que tange ao poder legislativo, executivo, e judiciário tal como
ensina a encíclica Quas Primas, seus antecedentes e desenvolvimentos
teológicos posteriores amparados na Sagrada Escritura, Sagrada Tradição e no
ensinamento sobretudo de Santo Tomás de Aquino, Doutor Comum da Igreja,
que atestam que o estado deve almejar sempre o favorecimento da verdadeira
religião, subordinar-se à ela essencialmente e render-lhe culto oficial enquanto
pessoa moral, recebendo de Deus as graças necessárias para levar a cabo sua
finalidade de garantir o bem comum temporal e auxiliar na salvação das almas
no âmbito em que lhe compete; deve coibir sempre que possível desvios da
verdadeira religião, sem no entanto forçar infiéis à conversão, podendo
inclusive ao modo de juízo prudencial, tolerar de mesmo provisório e
circunstancial certos cultos falsos, caso se perceba que causaria um mal maior
caso o coibisse de imediato; por fim, como criatura de Deus, a espada temporal
deve se subordinar a Cristo Rei de ofício, não por conveniência, mas por dever
de religião que não somente os indivíduos e famílias, mas a sociedade política
deve render ao Criador e se pôr ao Seu serviço segundo os termos e

28
Cf. PIO XI, Quas Primas, 1925.
condições que Ele estabeleceu, sendo tal dever exercido por meio da
sociedade que Deus instituiu, a Igreja Católica Apostólica Romana.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

MARITAIN, Jacques. Humanismo Integral: uma visão nova da ordem cristã. 1ª


edição. Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional, 1941.

PIO X. Catecismo Maior de São Pio X: terceiro catecismo da doutrina cristã. 1ª


edição. Niterói: Editora Permanência, 2010.

CALDERÓN, Padre Álvaro. El Reino de Dios: La Iglesia y el orden político. 1ª


edição. Buenos Aires: Ediciones Corredentora, 2017.

LEFEBVRE, Dom Marcel. Do Liberalismo a Apostasia: a tragédia conciliar. 2ª


edição. Niterói: Editora Permanência, 2013.

BONIFÁCIO VIII. Unam Sanctam. 18 de novembro de 1302. Disponível em:


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<http://www.montfort.org.br/bra/documentos/enciclicas/silabo/> Acessado em
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LEÃO XIII. Immortale Dei. 01 de novembro de 1885. Disponível em:


<https://www.vatican.va/content/leo-xiii/pt/encyclicals/documents/hf_l-xiii_enc_0
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PIO XI. Quas Primas. 11 de dezembro de 1925. Disponível em:


<https://www.estudostomistas.com.br/2012/07/quas-primas-de-pio-xi.html>
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PIO XII. Humani Generis. 12 de agosto de 1950. Disponível em:
<https://www.vatican.va/content/pius-xii/pt/encyclicals/documents/hf_p-xii_enc_
12081950_humani-generis.html> Acessado em 01 Nov. 2021, 18:09.

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