O Fim Da Historia e o Ultimo Homem - Francis Fukuyama
O Fim Da Historia e o Ultimo Homem - Francis Fukuyama
O Fim Da Historia e o Ultimo Homem - Francis Fukuyama
O FIM DA HISTÓRIA
E O ÚLTIMO HOMEM
CÍRCULO de Leitores
Título original:
Tradução:
MARIA GOES
Capa:
F. ROCHINHA DIOGO
ISBN 972-42-0562-2
Para Julia e David
ÍNDICE
Agradecimentos…11
À guisa de introdução…13
PARTE I
1 O nosso pessimismo…27
10 No país da educação…121
14 O primeiro homem…160
18 Domínio e servidão…194
9
PARTE IV
SALTANDO SOBRE RODES
23 A irrealidade do “realismo”…242
25 Interesses nacionais…260
O ÚLTIMO HOMEM
27 No reino da liberdade…279
29 Livres e desiguais…302
Notas….327
Bibliografia…371
10
AGRADECIMENTOS
O “Fim da História” nunca teria existido, seja como ensaio, seja na forma
da presente obra, sem o convite para proferir uma conferência sob esse
título, efectuado, durante o ano académico de 1988-89, pelos Profs. Nathan
Tarcov e Allan Bloom, do Centro John M. Olin para a Investigação sobre a
Teoria e Prática da Democracia, da Universidade de Chicago. Ambos são
professores e amigos de longa data, com quem, no decorrer dos anos,
aprendi muito - a começar, mas não apenas, pela filosofia política. Essa
conferência transformou-se no bem conhecido artigo, graças, em grande
parte, aos esforços de Owen Harries, chefe de redacção da revista The
National Interest, e ao trabalho da sua pequena equipa editorial. Erwin
Glikes, da Free Press, e Andrew Franklin, de Hamish Hamilton,
contribuíram, com o necessário encorajamento e conselhos, para a
transformação do artigo em livro, bem como colaboraram na revisão do
manuscrito final.
Por último, mas mais importante que tudo, foi a minha mulher, Laura, que
me encorajou a escrever tanto o ensaio original como este livro e que me
acompanhou durante a subsequente crítica e controvérsia. Ela leu o
manuscrito cuidadosamente, contribuindo de múltiplas maneiras para a sua
forma e conteúdo finais. Os meus filhos Julia e David, o último dos quais
resolveu nascer enquanto o livro estava a ser escrito, contribuíram também
pelo simples facto de estarem presentes.
12
À GUISA DE INTRODUÇÃO
13
Este livro não é uma reafirmação do meu artigo original, nem um esforço
para prosseguir o debate com os seus muitos críticos e analistas. Menos
ainda constitui ele um balanço do final da guerra fria ou de qualquer outro
tópico premente da política contemporânea. Embora este livro seja
enformado por acontecimentos mundiais recentes, o seu tema regressa a
uma questão muito antiga: se, no final do século XX, faz sentido para nós
falar, uma vez mais, de uma história da humanidade, coerente e
direccionada, que eventualmente conduzirá a maior parte da humanidade
para a democracia
14
liberal. A resposta a que chego é afirmativa, por duas razões distintas. Uma
tem a ver com a economia, outra com aquilo que se denominou “luta pelo
reconhecimento”.
15
16
17
instante, está relacionado com a sua disposição para arriscar a vida numa
luta pelo puro prestígio. Porque apenas o homem é capaz de vencer os seus
instintos animais mais básicos - o mais importante dos quais é o instinto de
autopreservação -, em nome de princípios e objectivos mais elevados e
abstractos. Segundo Hegel, o desejo de reconhecimento leva inicialmente
dois guerreiros primordiais a apostarem as suas vidas numa batalha de
morte para que o outro “reconheça” a sua humanidade. A relação senhor-
escravo nasce quando o receio natural da morte leva um dos guerreiros à
submissão.
primeira vez descrito por Platão n’A República, quando este autor observou
a existência de três partes na alma: uma parte que deseja, uma parte racional
e uma parte a que ele chamou thymos, “ânimo”. Muito do comportamento
humano pode ser explicado como uma combinação das duas primeiras
partes, o desejo e a razão: o desejo induz os homens a procurarem coisas
exteriores a si próprios, enquanto a razão ou cálculo lhes revela a melhor
maneira de as conseguirem. Mas, além disso, os seres humanos procuram o
reconhecimento do seu próprio valor, ou do das pessoas, das coisas ou dos
princípios a que atribuem valor. A tendência para revestir o eu de um
determinado valor e para exigir o reconhecimento desse valor é aquilo a
que, na linguagem popular de hoje, chamaríamos “amor-próprio”*. A
tendência para sentir amor-próprio brota da parte da alma chamada thymos.
18
Mas a relação domínio e servidão, que passou por uma enorme variedade de
formas em todas as sociedades aristocráticas desiguais que caracterizaram a
maior parte da história humana, não foi capaz, em última análise, de
satisfazer o desejo de reconhecimento tanto dos senhores como dos
escravos. O escravo, evidentemente, não era de forma alguma reconhecido
como um ser humano. Mas o reconhecimento de que gozava o senhor era
igualmente deficiente, uma vez que não era reconhecido por outros
senhores, mas por escravos, cuja humanidade era ainda incompleta. A
insatisfação com o imperfeito reconhecimento alcançável nas sociedades
aristocráticas constituía uma “contradição” que engendrou posteriores
etapas da história.
19
Mas não conseguem explicar a luta pela democracia liberal, que deriva, em
última instância, do thymos, a parte da alma que exige o reconhecimento.
20
Isto sugere que o sucesso das economias liberais não se deve apenas aos
princípios liberais, mas requer igualmente as formas irracionais do thymos.
21
22
23
24
PARTE I
1
O nosso pessimismo
Um teólogo tão santo como Tomás de Aquino podia argumentar com toda a
convicção que os tiranos servem fins providenciais, visto que sem tiranos
não haveria oportunidade para o martírio. Após Auschwitz, quem utilizasse
este argumento seria acusado de blasfémia… Depois desses temíveis
acontecimentos, ocorridos no coração do mundo moderno, iluminado e
tecnológico, pode alguém ainda acreditar no Deus que é necessariamente
Progresso, tanto quanto no Deus que manifesta o Seu Poder sob a forma do
superdesígnio da Providência?
27
28
foram, nas palavras de Paul Fussell, “um terrível embaraço para o mito
meliorista existente, que havia dominado a consciência pública durante um
século”, subvertendo “a ideia de progresso”5. As virtudes da lealdade, do
trabalho árduo, da perseverança e do patriotismo foram aplicadas na
chacina
Estas harmonias estão ocultas para mim. Eu só consigo ver uma emergência
após outra, tal como uma onda após outra onda” 8.
29
30
havido consenso sobre esta questão. A democracia liberal foi desafiada por
duas importantes ideologias rivais - o fascismo e o comunismo - que
ofereciam visões radicalmente diferentes de uma sociedade boa. No
Ocidente, as pessoas chegaram a questionar se a democracia liberal seria, de
facto, uma aspiração geral de toda a humanidade e se a sua anterior
confiança nesse princípio não reflectiria antes um etnocentrismo limitado da
sua parte.
31
32
33
34
Mesmo assim, apesar das poderosas razões para o pessimismo geradas pela
nossa experiência da primeira metade deste século, os acontecimentos da
segunda metade têm vindo a apontar para uma direcção muito diferente e
inesperada. Ao atingirmos os anos 90, o mundo, como um todo, não deu
35
Contudo, nos anos 80, todos eles tinham realizado uma transição bem
sucedida para democracias funcionais e estáveis, na realidade tão estáveis
(com a possível excepção da Turquia), que os seus povos quase não
conseguiam imaginar qualquer outra situação.
36
foi derrotado com eleições livres, no início de 1990, por uma coligação
liderada por Violetta Chamorro. Muitos observadores sentiram menor
confiança na continuidade das novas democracias latino-americanas do que
na das do Sul da Europa. Nessa região, as democracias vão e vêm e quase
todas atravessavam uma crise económica aguda, cuja manifestação mais
visível era o seu endividamento. Além do mais, países como o Peru e a
Colômbia enfrentavam graves desafios internos, que iam da insurreição à
droga.
Mesmo assim, estas novas democracias provaram ser de uma notável
elasticidade, como se a sua anterior experiência de autoritarismo as tivesse
inoculado contra um regresso fácil ao regime militar. O facto a acentuar é
que, se, nos anos 70, se registava o nível mínimo de um punhado de países
da América Latina que eram democráticos, já no início dos anos 90 Cuba e
Guiana eram os únicos países do hemisfério ocidental a não permitirem
eleições minimamente livres.
força os seus filhos, os velhos, ou talvez a sua mulher, mas não é provável
que consiga dominar mais de duas ou três pessoas desta forma, e nunca uma
nação de milhões2. Quando dizemos que um ditador como Hitler governou
“pela força”, o que queremos dizer é que os seus apoiantes, incluindo o
38
retrospectiva, aos olhos da maior parte das pessoas, o apelo do fascismo foi
minado pela sua derrota3. Ou seja, Hitler havia fundamentado a sua
legitimidade na promessa de domínio mundial; em vez disso, os Alemães
sofreram uma horrível destruição e a ocupação por raças alegadamente
inferiores.
39
Nenhuma delas foi capaz, como fez Hitler, de formular uma doutrina
coerente acerca de nação que pudesse justificar um governo autoritário
perpétuo. Todas tiveram de aceitar o princípio da democracia e da soberania
popular, utilizando o argumento de que, por razões várias, os seus países
não estavam preparados para a democracia, quer isso fosse devido à ameaça
do comunismo, ou do terrorismo, quer à má gestão económica do anterior
regime democrático. Cada uma delas teve de se justificar como sendo de
carácter transitório, aguardando o inevitável regresso da democracia4.
40
Devido a divisões internas nas suas fileiras, que reflectiam uma perda de
convicção no direito de governar, abriram o caminho para a autoridade
civil.
42
regime foi a decisão voluntária, por parte de, pelo menos, alguns elementos
do antigo regime, de ceder o poder a favor de um governo
democraticamente eleito. Embora esta retirada voluntária do poder tenha
sido sempre provocada por uma crise imediata, ela foi tornada possível, em
última análise, por uma crescente convicção na democracia como única
fonte legítima de autoridade no mundo moderno. Assim que realizaram os
objectivos limitados a que se tinham proposto - a eliminação do terrorismo,
a restauração da ordem social, o fim do caos económico e assim por diante
-, os autoritários de direita, na América Latina e na Europa, deixaram de
poder justificar a sua continuidade e perderam a confiança em si
43
De pouco vale, pois, aquele rasgo de sabedoria tradicional que sustenta que
“ninguém cede o poder voluntariamente”.
45
prendiam.
A visão popular que os Europeus tinham dos Russos no século XIX foi
retratada pelo viajante francês Custine, que os caracterizou como um povo
“subjugado à servidão, (que) apenas […] leva a sério o terror e a
ambição”4.
46
entre as elites governantes, reflectindo a inclinação natural daquela
sociedade para o totalitarismo. Assim, enquanto os observadores ocidentais
estavam prontos a acreditar no desejo do povo polaco de derrubar o
comunismo se tal fosse possível, o mesmo não era tido como verdadeiro em
relação aos Russos. Estes eram, por outras palavras, os inquilinos satisfeitos
do manicómio, que ali permaneciam não por sujeição a grades e camisas-
de-força, mas pela sua própria ânsia de segurança, de ordem, de autoridade
e de alguns outros benefícios extras que o regime soviético conseguia
proporcionar, como a grandeza imperial e o estatuto de superpotência. O
forte estado
Desde o início dos anos 80, o ritmo de mudança no mundo comunista tem
sido tão rápido e contínuo que, por vezes, somos levados a olhar a mudança
como um dado adquirido e a esquecer a magnitude de tudo o que aconteceu.
Será portanto útil passar em revista os marcos principais deste período:
No início dos anos 80, os dirigentes comunistas chineses começaram a
autorizar os camponeses - 80 % da população chinesa - a produzir e vender
os seus próprios alimentos. Na realidade, a agricultura foi descolectivizada
e começaram a reaparecer as relações capitalistas de mercado, não apenas
no campo, mas também na indústria urbana.
47
49
Depressão, o PIB real dos EUA caiu quase um terço, mas isso não levou ao
descrédito generalizado do sistema americano. A grave fraqueza da
economia soviética era conhecida há já algum tempo, existindo uma
panóplia de reformas tradicionais que poderiam ter sido ensaiadas para
fazer frente ao declínio 11.
50
(N. da T.)
51
Esta maturidade foi mais uma vez demonstrada quando o povo soviético
respondeu ao apelo de Yeltsin para defender as suas novas instituições
democráticas contra o golpe conservador de Agosto de 1991. Tal como os
europeus do Leste antes deles, os Russos provaram não estarem nem inertes
nem “atomizados”, mas sim espontaneamente prontos a defender a sua
dignidade
terror tão mortífero para os seus próprios executantes foi, por consequência,
quase obrigatório, assim que a morte de Estaline tornou possível que os
dirigentes de topo o fizessem.
53
Um sistema destes não pode ser descrito como totalitário; também não é
apenas uma outra forma de autoritarismo do tipo das ditaduras da América
Latina. Para descrever a União Soviética e a Europa do Leste da era
Brejnev, talvez o melhor rótulo seja o que foi usado por Václav Havel, que
chamou a estes regimes “pós-totalitários”, sugerindo que os mesmos, não
sendo já os sangrentos estados policiais dos anos 30 e 40, viviam ainda à
sombra da prática totalitária anterior 16. O totalitarismo não foi suficiente
para matar a ideia democrática nestas sociedades, mas o seu legado afectou
Um estado totalitário que permite um amplo sector privado deixa de ser, por
definição, totalitário. Na China, entre 1978 e a repressão de 1989, a
sociedade civil -sob a forma de organizações comerciais espontâneas,
empreendimentos, sociedades informais, etc. - regenerou-se muito
rapidamente; numa atmosfera de liberdade relativa. Os dirigentes chineses
julgavam poder garantir a sua própria legitimidade assumindo o papel de
agentes da modernização e da reforma na China, em vez de defenderem
obstinadamente as ortodoxias marxistas.
54
manipulador.
55
eleições livres.
56
Tem sido defendido que, embora o comunismo esteja morto, está a ser
rapidamente substituído por um nacionalismo intolerante e agressivo. De
acordo com este argumento, é prematuro celebrar a morte do estado forte,
pois onde o autoritarismo comunista soçobra é simplesmente substituído
57
nacionalistas e de coronéis; em certas áreas, os comunistas poderão até
reassumir o poder, mas o autoritarismo que representam será localizado e
não sistemático. Tal como os vários ditadores militares da América Latina,
confrontar-se-ão, eventualmente, com a falta de uma fonte de legitimidade
O totalitarismo comunista era tido como uma fórmula para acabar com os
processos naturais e orgânicos da evolução social, substituindo-os por uma
série de revoluções impostas de cima: a destruição das classes sociais, a
rápida industrialização e a colectivização da agricultura. Este género de
engenharia social em grande escala manteria supostamente apartadas as
sociedades comunistas das não totalitárias, porquanto a transformação
social provinha do estado, e não da sociedade. As regras normais da
economia e
58
59
60
61
62
Também é possível um país ser democrático sem ser liberal, isto é, sem
proteger os direitos dos indivíduos e das minorias. Um bom exemplo é a
actual República Islâmica do Irão, que tem levado a cabo eleições regulares
e, de acordo com padrões terceiro-mundistas, razoavelmente justas, o que
torna o país mais democrático do que era na época do xá. Todavia, o Irão
islâmico não é um estado liberal; não existem garantias de liberdade de
expressão, de associação e sobretudo de religião. Os direitos mais
elementares dos cidadãos iranianos não são protegidos pela lei, sendo a
situação das minorias étnicas e religiosas particularmente má.
64
inverso, uma vez que essas ideias atraíram inúmeros e poderosos aderentes
muçulmanos no último século e meio. O actual renascimento
fundamentalista deve-se, em parte, ao sentimento de que os valores liberais
do Ocidente representam uma ameaça para as sociedades islâmicas
tradicionais.
65
Seguindo a moda actual nas ciências sociais, somos tentados a afirmar que
factores políticos imponderáveis, como a chefia e a opinião pública,
dominam o processo de democratização e asseguram que cada caso será
único, tanto no processo como no resultado.
Se olharmos, porém, não apenas para os últimos quinze anos, mas para
todo o curso da história, a democracia liberal começa então a ocupar um
lugar especial. Ainda que tenham existido ciclos na evolução da democracia
ao nível mundial, também se tem verificado uma pronunciada e secular
tendência em direcção à democracia. O quadro das pp. 65-66 ilustra este
66
Canadá x x x x x x
Suiça. x x x x x x x x
Grã-Bretanha x x x x x x x
França x x x x x x
Bélgica x x x x x x
Países Baixos x x x x x x
Dinamarca x x x x x
Piemonte/Itália x x x x x
Espanha x
Portugal x
Suécia x x x x x x
Noruega x x x
Grécia x x x
Áustria x x x x
Alemanha Ocidental x x x x
Alemanha Oriental x x
Polónia x x
Checoslováquia x x
Hungria x
Bulgária x
Roménia x
Turquia x x x
Letónia x
Lituânia x
Estónia x x
Finlândia x x x x x
Irlanda x x x x
Austrália x x x x x
Nova Zelândia x x x x x
Chile. X x x x
Argentina x x x
Brasil. x x
Uruguai x x x x
Paraguai x
México x x x x
Colômbia x x x x x
Costa Rica x x x x x
Bolívia x x
Venezuela x x x
Peru x x
Equador x x
El Salvador x x
Nicarágua x
Honduras x
Jamaica x x
República Dominicana x
Trinidad x x
Japão x x x
Índia x x x
Sri Lanka. X x x
Singapura. X x
Coreia do Sul x
Tailândia x
Filipinas x x
Maurícias x
Senegal x x
Botswana x
Namíbia x
Líbano x
Totais 3 6 13 27 13 37 32 62
integrada. Esses mesmos padrões têm tido também significado para povos
da América Latina, Europa do Leste, Ásia e muitas outras partes do mundo.
O sucesso da democracia numa enorme variedade de locais e entre povos
tão diferenciados sugere que os princípios da liberdade e igualdade em que
se basearam não são nem acidentais nem o resultado de um preconceito
etnocentrista, mas sim descobertas sobre a natureza do homem enquanto
homem, cuja verdade, em vez de diminuir, é mais evidente à medida que o
ponto de vista de cada um se torna mais cosmopolita.
69
70
PARTE II
A ANTIGUIDADE
DA HUMANIDADE
73
mais geral, cujo destino poderia ser entendido à luz do plano geral de Deus
para a humanidade. Além disso, o cristianismo introduziu o conceito de
uma história finita no tempo, começando com a criação do homem por
Deus e terminando com a sua salvação final 6. Para os cristãos, o fim da
história
terrena seria marcado pelo dia do Juízo Final, que conduziria ao reino dos
Céus, momento em que a Terra e os acontecimentos terrenos deixariam
literalmente de existir. Como a apreciação cristã da história põe a claro, em
todas as obras sobre uma história universal está implícito um “fim da
história”. Os acontecimentos específicos da história têm sentido somente
em
Um espírito bem educado contém, por assim dizer, todos os espíritos dos
séculos anteriores; trata-se de um único e idêntico espírito que se foi
desenvolvendo e aperfeiçoando ao
em dez estádios, o último dos quais - ainda por atingir - caracterizado pela
igualdade de oportunidades, liberdade, racionalidade, democracia e
educação universal 9. Tal como Fontenelle, Condorcet postulava que a
perfectibilidade humana não tinha fim, sugerindo a possibilidade de um
décimo-primeiro estádio da história, desconhecido pelo homem na altura.
Kant tinha perfeita consciência de que “este curso aberrante das coisas
humanas” parecia não revelar, à superfície, qualquer modelo especial, que a
história humana aparecia como uma história de guerras permanentes e de
crueldade. Não obstante, Kant questionava-se se existiria ou não um
movimento regular na história humana, de tal forma que aquilo que parecia
caótico do ponto de vista do indivíduo, considerado isoladamente, não
pudesse ser revelador de uma lenta e progressiva evolução durante um
longo período de tempo. Isto era particularmente verdadeiro em relação ao
desenvolvimento da razão humana. Por exemplo, nenhum indivíduo poderia
esperar, por si só, descobrir toda a matemática, mas a natureza cumulativa
do conhecimento matemático permitia à geração seguinte basear-se nos
avanços da anterior”.
75
Kant sugeriu que a história teria um fim, ou seja, um objectivo final que
estava implícito nas potencialidades correntes do homem e que tornaria
toda a história inteligível. Este fim seria a realização da liberdade humana,
pois “uma sociedade na qual a liberdade sob leis exteriores esteja associada,
ao mais alto nível, com um poder inquestionável, o mesmo é dizer, uma
constituição civil perfeitamente justa, é o maior problema que a natureza
coloca
os Bárbaros, que, por sua vez, a destruíram, e assim sucessivamente até aos
nossos dias; se acrescentarmos episódios das histórias nacionais das nações
esclarecidas, descobriremos um progresso regular na constituição dos
estados do nosso continente (que, eventualmente, ditarão a lei a todos os
outros)”. A história seria feita de sucessivas destruições de civilizações,
mas cada mudança preservava algo do período anterior, preparando assim o
caminho para um nível de vida mais elevado. A tarefa de escrever esta
76
história, concluía ele modestamente, estava além das suas capacidades, mas,
se bem sucedida, poderia contribuir para o estabelecimento de um governo
republicano universal por dar ao homem uma visão mais nítida do seu
futuro 13.
77
era livre*; o mundo greco-romano sabia que apenas alguns eram livres
enquanto nós sabemos que todos os homens (o homem enquanto homem)
são absolutamente livres”. Para Hegel, o moderno estado constitucional, ou
aquilo a que chamamos democracia liberal, personificava a liberdade
humana. A história universal da humanidade não seria senão a elevação
progressiva do homem à racionalidade plena e à tomada de consciência de
que essa racionalidade se exprime na autogovernação liberal.
Hegel tem sido frequentemente acusado de idolatrar o estado e a sua
autoridade e, por isso, de ser inimigo do liberalismo e da democracia. Uma
apreciação mais exaustiva desta acusação ultrapassa o âmbito desta obra.
Basta dizer que, segundo a sua própria consideração, Hegel foi o filósofo da
liberdade, que viu todo o processo histórico culminar na realização da
liberdade em instituições políticas e sociais concretas. Em vez de ser
conhecido como apologista do estado, Hegel bem podia ser também
considerado
78
outra solução. Para Hegel, a dialéctica ocorre não apenas ao nível das
discussões filosóficas, mas também entre sociedades ou, no dizer dos
sociólogos contemporâneos, entre sistemas socioeconómicos. Poder-se-ia
descrever a história como um diálogo entre sociedades, em que aquelas que
apresentam graves contradições internas se extinguem e são sucedidas por
como a fome ou o sono, mas acreditava que, nas suas características mais
essenciais, o homem não estava determinado, sendo portanto livre de criar a
sua própria natureza 23.
80
do Terceiro Mundo, cujo tempo será gasto na procura de bens mais básicos,
como segurança e alimento. O consumismo e a ciência de marketing que o
alimenta reportam-se a desejos literalmente criados pelo próprio homem, os
quais darão lugar a outros no futuro25. Os nossos desejos actuais são
condicionados pelo nosso meio social e este, por sua vez, é produto de todo
o nosso passado histórico. E os objectos específicos do desejo são apenas
um dos aspectos da “natureza humana” que têm mudado ao longo dos
tempos; a importância do desejo em relação aos restantes elementos da
natureza humana também evoluiu. Assim, a história universal de Hegel dá
conta não apenas do progresso do conhecimento e das instituições, como
também da natureza mutável do próprio homem. É característica da
natureza humana não ter uma natureza permanente, não ser, mas tornar-se
algo que antes não era.
81
82
dúvida, o seu maior intérprete do século XX. Tal como Marx, Kojève não se
sentia apenas obrigado a explicar o pensamento de Hegel, utilizando-o
criativamente para elaborar a sua própria compreensão da modernidade.
Raymond Aron dá-nos uma ideia do brilhantismo e originalidade de
Kojève:
83
84
A última significativa versão de uma história universal que viria a ser
escrita no século XX não foi obra de um indivíduo apenas, mas fruto do
esforço colectivo de um grupo de cientistas sociais - principalmente
americanos - que escreveram, depois da segunda guerra mundial, sob o
título
85
86
6
O mecanismo do desejo
88
89
90
uma União Soviética sem reformas iria ter sérios problemas para continuar
competitiva, económica e militarmente no século XXI. Em particular, a
Iniciativa de Defesa Estratégica (IDE), do presidente Reagan, apresentou-se
como um severo desafio, porque ameaçava tornar obsoleta uma geração
inteira de armas nucleares soviéticas e desviou a competição entre as
superpotências para áreas, como a microelectrónica e outras tecnologias de
ponta, em que a União Soviética estava em clara desvantagem. Os
dirigentes soviéticos, incluindo muitos militares, compreenderam que o
corrupto sistema económico herdado de Brezhnev seria incapaz de competir
num mundo dominado pela IDE e mostraram-se dispostos a aceitar uma
redução de despesas a curto prazo, em benefício de uma sobrevivência a
longo prazo 10.
91
Komeini se defender de vizinhos ambiciosos como o Iraque. O Irão
islâmico pôde atacar o racionalismo ocidental que produziu essas armas,
porque as pôde comprar com as receitas provenientes dos seus recursos
petrolíferos. O facto de os mullahs que governam o Irão nada mais terem
que fazer senão
92
93
A organização racional do trabalho não deve ser vista como um
fenómeno essencialmente independente da inovação tecnológica; ambas são
aspectos da racionalização da vida económica, a primeira na esfera de acção
da organização social e a última na esfera de acção do mecanismo de
produção. Karl Marx acreditava que a produtividade do capitalismo
moderno se baseava, primacialmente, mais na mecanização da produção
(isto é, na aplicação da tecnologia) do que na divisão do trabalho e estava
esperançado em que a última poderia um dia ser abolida”. A tecnologia iria
permitir a eliminação das distinções entre cidade e campo, barão do
petróleo e operário, banqueiro e empregado do lixo, e criar uma sociedade
em que se poderia “caçar pela manhã, pescar à tarde, criar gado ao
entardecer e criticar depois do jantar” 18. Nada do que aconteceu na história
subsequente
94
95
determinada sociedade - que só com grande dificuldade podem ser
explicados. Além do mais, embora a ciência natural moderna possa ser
olhada como um “regulador” possível da transformação histórica
direccional, não deve, de modo algum, ser vista como a causa definitiva da
mudança. Se assim fosse, seríamos imediatamente levados a perguntar
porquê a ciência
Por enquanto, não iremos tecer juízos de valor morais ou éticos sobre a
direccionalidade histórica subentendida pela ciência natural moderna. Deve
ser assumido que as implicações na felicidade humana de fenómenos como
a divisão do trabalho e a crescente burocratização são profundamente
ambíguas, como foi realçado por Adam Smith, Marx, Weber, Durkheim e
outros cientistas sociais, que os apontaram como características intrínsecas
da vida moderna. Presentemente, nada nos leva a concluir que a capacidade
da ciência moderna de aumentar a produtividade económica torna os
homens mais íntegros, felizes e com melhor qualidade de vida. Para já, e
como ponto de partida da nossa análise, queremos demonstrar, por um lado,
que existem boas razões para pensar que a história, como consequência do
desenvolvimento da ciência natural moderna, segue uma única direcção
coerente e examinar, por outro, as consequências que derivam dessa
conclusão.
96
97
98
não o vai tornar mais feliz, uma vez que então já os Japoneses terão
inventado qualquer outro engenho electrónico que passará a ser objecto do
seu desejo.
99
100
outra opção senão a de explorar os próprios recursos naturais, ou os que não
possuem a disciplina social para fazer cumprir as leis de protecção do meio
ambiente. Apesar da devastação provocada pela chuva ácida, o
florestamento do Nordeste dos Estados Unidos e de muitas áreas da Europa
é
meio ambiente, que, apesar dos nossos melhores esforços, mina a base
física da vida humana contemporânea. É sem dúvida possível destruir os
frutos da ciência natural moderna; de facto, a tecnologia moderna põe à
nossa disposição os meios para o conseguir numa questão de minutos. Mas
será possível destruir a própria ciência natural moderna e libertarmo-nos do
domínio do método científico sobre as nossas vidas, lançando toda a
humanidade para um permanente nível civilizacional pré-científico?4
101
103
O nosso pais não tem tido sorte. De facto, foi decidido levar a cabo esta
experiência marxista entre nós - o destino empurrou—nos precisamente
nessa direcção. Em vez de um qualquer país de África, foi connosco que
começaram esta experiência. Acabámos por provar que não há lugar para
esta ideia. Ela afastou-nos, pura e simplesmente, do percurso dos países
civilizados do mundo. Como resultado, 40 % da população vive abaixo do
limiar da pobreza, sofrendo, além disso, uma constante humilhação ao ter
de apresentar senhas de racionamento em troca de bens. Esta humilhação é
constante, uma lembrança a toda a hora de que se é escravo neste país.
para a industrialização, que, por seu turno, gera fenómenos sociais como
urbanismo, burocracia, redução do núcleo familiar e dos laços tribais e
aumento dos níveis de educação. Mostrámos também não ser possível
inverter o domínio da ciência natural moderna sobre a vida humana, mesmo
104
Apesar do péssimo odor moral que o capitalismo teve, tanto para a direita
tradicionalista-religiosa como para a esquerda marxista-socialista, a sua
vitória final como único sistema económico viável do mundo é mais fácil
de explicar em termos do mecanismo do que é a vitória da democracia
liberal na esfera política. Porque o capitalismo tem provado ser muito mais
eficiente do que o sistema económico centralizado no desenvolvimento e
utilização da tecnologia e em se adaptar às características de constante
mudança de uma divisão global de trabalho, no quadro de exigência de uma
economia industrial adulta.
105
grosseiros - não produzem, mas pensam. Isto inclui não apenas cientistas e
engenheiros, mas todas as estruturas que os apoiam, como escolas públicas,
universidades e indústria de comunicação. O alto índice de “informação” da
moderna produção económica está espelhado no crescimento
107
veremos depois, na parte IV, há boas razões para acreditar que a profunda
ética do trabalho existente em muitas sociedades não nasceu com o
processo de modernização, mas foi antes herdada das tradições e da cultura
pré-moderna dessas sociedades. Uma forte ética do trabalho pode não ser
uma
108
109
viável.
110
9
111
112
desenvolvidos controlavam as condições do comércio mundial e, através
das suas empresas multinacionais, forçavam os países do Terceiro Mundo
àquilo a que se chamava “desenvolvimento desequilibrado” - isto é, à
exportação de matérias-primas e outros produtos com fraco valor
acrescentado. O Norte desenvolvido tinha-se assenhoreado do mercado
mundial de produtos sofisticados, como automóveis e aviões, deixando os
países do Terceiro Mundo na situação de serem, de facto, “cortadores de
madeira e tiradores de água globais” 8. Muitos dependencistas * ligavam a
ordem económica internacional aos regimes autoritários que recentemente
tinham assumido o poder na América Latina, no rescaldo da Revolução
Cubana9.
113
114
Num último esforço para salvar a teoria da dependência, alguns dos seus
proponentes argumentaram que o sucesso das economias recém-
industrializadas asiáticas se devia ao planeamento, sendo fruto de políticas
industriais, e não do capitalismo” 17. No entanto, embora o planeamento
económico jogue um papel relativamente maior nas economias asiáticas do
que nos Estados Unidos, os sectores mais bem sucedidos daquelas tendem a
ser os que permitem um maior grau de competição nos mercados internos e
de integração nos internacionais 18. Além do mais, a maior parte da
esquerda que cita a Ásia como um exemplo positivo da intervenção estatal
na economia dificilmente suportaria o estilo semiautoritário do planeamento
asiático, supressor de reivindicações laborais e sociais. O planeamento
preferido pela esquerda, com uma acção intervencionista a favor das
vítimas do capitalismo, tem, tradicionalmente, dado resultados muito mais
ambíguos.
115
116
estado como instrumento de redistribuição da riqueza, no interesse da
“justiça social” 22. Este objectivo foi perseguido por diversas maneiras,
incluindo a legislação laboral, introduzida em países como a Argentina, o
Brasil e o
Veja-se também o caso do Peru. No seu livro The Other Path, Hernando de
Soto documenta como o seu instituto, em Lima, tentou abrir uma fábrica
fictícia seguindo o curso legal regulamentado pelo governo peruano. Foram
precisos 289 dias e um custo total de 1231 dólares em despesas e salários
perdidos (incluindo o pagamento de dois subornos), ou seja, trinta e duas
vezes o salário mínimo mensal, para ultrapassar os onze processos
burocráticos exigidos 24. Segundo Soto, as barreiras da regulamentação
constituem o maior obstáculo ao empreendimento empresarial no Peru, em
particular entre a camada mais pobre, e explica o florescimento da enorme
economia “paralela” (isto é, ilegal ou extralegal) empreendida por quem
não está disposto ou não consegue ultrapassar as barreiras que o estado
impõe ao comércio. Todas as principais economias latino-americanas têm
grandes
sectores “paralelos”, que produzem de um quarto a um terço do PIB. É
óbvio que empurrar a actividade económica para canais ilegais dificilmente
resulta em eficácia económica. Nas palavras do romancista Mario Vargas
Llosa, “um dos mitos mais difundidos sobre a América Latina é o de que o
seu atraso resulta da filosofia errada do liberalismo económico […]”. De
facto, argumenta Vargas Llosa, nunca existiu tal liberalismo, mas sim uma
forma de mercantilismo, isto é, “um estado burocrata e exageradamente
regulamentador que considera a redistribuição da riqueza nacional mais
importante do que a sua produção” e em que a redistribuição é feita sob a
forma “de concessão de monopólios ou estatutos privilegiados a uma
pequena elite que depende do estado e de quem este, por seu turno, é
dependente” 25.
117
118
Actualmente, este tipo de argumento é cada vez menos convincente. Os
Alemanha do Leste dos anos 60 ou 70. E isso já não seria esperar pouco;
mas saberia também que esse nível se iria manter por muito tempo. Caso
este dirigente quisesse ultrapassar o nível de desenvolvimento de uma
Alemanha do Leste, com todos os seus custos ambientais e socialmente
desmoralizantes, teria de antever uma segunda revolução, na qual o
mecanismo socialista de planeamento centralizado fosse esmagado, por sua
vez, e as instituições capitalistas restauradas. Também esta não seria uma
tarefa fácil, dado que, por essa altura, já a sociedade teria absorvido um
sistema de preços completamente irracional, os gestores teriam perdido o
contacto com as práticas modernas do exterior e a classe operária teria sido
privada de toda a anterior ética de trabalho. À luz destes problemas
antecipadamente previstos, seria muito mais fácil ser antes um guerrilheiro
de mercado livre e avançar directamente para a segunda revolução
capitalista sem passar pela fase socialista. Isto é, derrubar as antigas
estruturas estatais regulamentadoras e burocratas, minar a riqueza, os
privilégios e a condição social das antigas classes, submetendo-as à
competição internacional, e libertar as energias criativas da sociedade civil.
119
120
#10
No país da educação
disse […)
121
122
de perto, atingindo a democracia estável nos anos 70. No Sul da Europa, foi
em Portugal que se verificou a mais vacilante transição para a democracia,
em meados dos anos 70, e isso por ter partido de uma base socioeconómica
mais baixa; a necessária dose de mobilização social teve de ocorrer depois,
123
das populações.
Foram apresentados três tipos de argumento para explicar por que razão o
avanço da industrialização produz a democracia liberal. Cada um é de certa
forma imperfeito. O primeiro é de ordem funcional, defendendo que apenas
a democracia é capaz de mediar a complexa teia de conflitos de
124
125
126
127
São estes, pois, os argumentos que podem ser apresentados para relacionar
os altos níveis de desenvolvimento económico com a democracia liberal. É
inegável a existência de uma conexão empírica entre ambos. No entanto,
nenhuma destas teorias é, em última análise, suficiente para estabelecer o
necessário nexo de causalidade.
128
Mesmo assim, nem a democracia americana tem sido muito bem sucedida
na resolução do seu problema étnico mais persistente, o dos Negros
americanos. A escravatura negra constituiu a principal excepção à
generalização de que os Americanos tinham “nascido iguais” e, na
realidade, a democracia americana não conseguiu resolver a questão da
escravatura por meios democráticos. Muito depois da sua abolição, na
realidade bastante depois de os Negros americanos terem conseguido a total
igualdade perante a lei,
129
talvez por a família da Sr.a Aquino ser uma das maiores proprietárias de
terras das Filipinas. Desde a sua eleição, os esforços para empreender um
programa sério de reforma agrária fracassaram devido à oposição de uma
legislatura controlada maioritariamente pelas próprias pessoas que iriam ser
visadas. Neste caso, a democracia é impotente para obter uma espécie de
ordem social igualitária, que seria necessária como base para o crescimento
capitalista ou para a estabilidade duradoura da própria democracia 26.
Nestas circunstâncias, a ditadura podia potencialmente ser muito mais
eficaz para conduzir uma sociedade moderna, como aconteceu quando o
poder ditatorial foi utilizado para pôr em prática a reforma agrária durante a
ocupação americana do Japão.
130
131
132
educação superior nos Estados Unidos e outros países ocidentais incute nos
jovens a perspectiva historicista e relativista do pensamento do século XX.
133
134
como para os países asiáticos recém-industrializados, as chamadas
“políticas industriais”, nas quais o estado subsidia ou apoia determinados
sectores económicos em detrimento de outros, tenham constituído mais uma
ajuda do que um obstáculo. Mas este tipo de intervenção estatal no
mercado, executado com competência e mantido dentro dos amplos
paramêtros de um mercado competitivo, promoveu o crescimento com
bastante sucesso. Os planificadores da Formosa de finais dos anos 70 e
início dos anos 80 conseguiram transferir os investimentos das indústrias
leves como os têxteis para outras mais avançadas, como a electrónica e os
semicondutores, não obstante o considerável custo social e o desemprego
que provocou naquelas.
mundial.
135
#11
136
137
E, se a tolerância da geração dos anos 30 foi arrancada à sua complacência
pela explosão de ódios supostamente “ultrapassados” pelo progresso da
civilização, quem poderá garantir que não iremos ser surpreendidos por
uma nova erupção vinda de uma outra fonte até agora desconhecida?
Não basta citar simplesmente o holocausto para pôr termo ao debate sobre a
questão do progresso ou racionalidade da história humana, embora o horror
desse acontecimento nos deva obrigar à pausa e à meditação. Há uma
tendência para não discutir racionalmente as causas históricas do
holocausto, tal como os activistas antinucleares se opõem à discussão
racional da détente ou do uso estratégico de armas nucleares. Nos dois
casos está subjacente a ideia de que a “racionalização” minimizará o
genocídio. Entre os escritores que vêem o holocausto, de certa forma, como
o evento principal da modernidade, é comum defender-se que o holocausto
é historicamente singular na sua maldade e, ao mesmo tempo, uma
manifestação de maldade potencialmente universal, latente em todas as
sociedades.
Não pode, por conseguinte, ser de forma alguma visto como um aspecto
necessário da modernidade. Por outro lado, se se considerar uma
manifestação de maldade universal, não será mais do que uma versão
extrema do terrível, mas familiar, fenómeno de excesso nacionalista, que
pode fazer abrandar, mas não descarrilar, a locomotiva da história.
138
Por outro lado, também o facto de as suas vidas terem sido desperdiçadas e
a sua dor não redimida não nos deve tornar incapazes de enfrentar a questão
da existência ou não de um padrão racional da história. Subsiste uma
expectativa generalizada de que uma história universal, a existir, deve
140
12
141
ou crítica, uma vez que tal as atiraria imediatamente para a cadeia; esse
tempo era gasto em bichas, a beber, ou a maquinar possibilidades de tirar
férias numas termas lotadas ou numa praia poluída. Mas, se o “tempo
necessário de trabalho”, bastante para satisfazer as necessidades físicas
Kaiser”; era, de facto, muito mais alto do que o da maior parte das
sociedades
142
143
mantém grande parte das nossas vidas numa grilheta de ferro, mas o
processo que lhe deu forma não é coincidente com a própria história, nem
suficiente para explicar se chegámos ao fim da mesma. Para tal, é preferível
144
145
satisfaça completamente as características mais essenciais dos seres
humanos.
Isto não quer dizer que aqueles que seguem esta abordagem devam
simplesmente adorar o poder e o sucesso de acordo com a máxima “o poder
faz a razão” *. Não é preciso apoiar todas as tiranias e todos os presumíveis
construtores de impérios que se pavoneiam fugazmente no palco da história
mundial, mas tão-só aquele regime ou sistema que sobrevive a todo o
processo da história mundial. Isto implica que o sistema tenha capacidade
para resolver o problema da satisfação humana, que tem estado presente na
história desde o seu início, assim como capacidade de sobrevivência e
adaptação ao ambiente humano em transformação5.
Uma abordagem tão “historicista”, qualquer que seja o seu grau de
sofisticação, padece, mesmo assim, do seguinte problema: como ter a
certeza de que uma aparente falta de “contradições” num sistema social
aparentemente triunfante - neste caso, a democracia liberal - não é ilusória e
que o
tempo não porá a descoberto novas contradições, exigindo uma nova fase
na evolução histórica da humanidade? Sem um conceito-base da natureza
146
O simples facto de a natureza humana não ter sido criada “de uma vez e
para sempre”, mas se criar a si própria com o “decurso do tempo histórico”,
não evita a necessidade de falar da natureza humana, quer como estrutura,
no quadro da qual o homem se modela a si próprio, quer como um fim, ou
telos, em direcção ao qual parece mover-se o desenvolvimento
148
PARTE III
A LUTA PELO RECONHECIMENTO
13
tenha arriscado a sua vida pode, sem dúvida, ser reconhecido como pessoa;
mas não atinge a verdade desse reconhecimento enquanto autoconsciência
independente.
151
boas e este elogio parece ter ressonância nos povos de todo o mundo.
152
153
humanos.
Mas o “primeiro homem” de Hegel diverge dos animais de uma outra forma
muito mais fundamental. Este homem não quer apenas ser reconhecido por
outros homens, mas ser reconhecido como homem. E aquilo que constitui a
identidade do homem como homem, a característica humana mais singular
e fundamental, é a sua capacidade de arriscar a própria vida. Foi assim que
o encontro do “primeiro homem” com outros homens deu origem
154
risco de uma morte violenta. O senhor fica então satisfeito, pois arriscou a
sua vida e em troca recebeu o reconhecimento de um outro ser humano.
Para Hegel, tal como para Marx, a sociedade primitiva estava dividida em
classes sociais. No entanto, ao contrário de Marx, Hegel acreditava que as
mais importantes diferenças de classe não eram de origem económica, tal
como um ser proprietário e outro camponês, mas sim a atitude individual
155
156
que a primitiva batalha do início da história tenha sido apenas pelo prestígio
ou por uma aparente ninharia, como uma medalha ou um bandeira que
signifique reconhecimento. A razão por que luto é que um outro ser humano
reconheça o facto de eu estar disposto a arriscar a minha vida e de ser, por
isso, autenticamente humano e livre. Caso a sangrenta batalha tivesse sido
travada por outros objectivos (ou, como diríamos nós, burgueses modernos,
na esteira de Hobbes e Locke, objectivos “racionais”), tais como a
protecção da nossa família ou a posse das terras e bens dos nossos
opositores,
a batalha teria então sido simplesmente travada pela satisfação de uma outra
necessidade animal. De facto, muitos animais inferiores são capazes de
157
arriscar a sua vida numa batalha para, por exemplo, proteger as suas crias
ou delimitar território onde procurar alimento. Em qualquer dos casos, este
comportamento é determinado instintivamente e explica-se num quadro
evolucionista de preservar a sobrevivência da espécie. Apenas o homem é
capaz de travar uma batalha sangrenta com o simples objectivo de
demonstrar desprezo pela própria vida e de mostrar que é algo mais do que
uma máquina complicada ou um “escravo das suas paixões”, em resumo
que por ser livre, possui uma dignidade especificamente humana.
158
159
14
O primeiro homem
Todo o homem procura que o seu semelhante o valorize tanto quanto ele
se valoriza a si próprio; e, perante sinais de desprezo ou subvalorização,
procura, naturalmente, tanto quanto se atrever […) forçar uma maior
valorização aos que o desprezam, inflingindo-lhes mal, e aos restantes pelo
exemplo.
160
tem por objectivo definir a condição humana que emerge da interacção das
paixões humanas mais elementares e permanentes 2.
As semelhanças entre “o estado de natureza” de Hobbes e a batalha
sangrenta de Hegel são notáveis. Em primeiro lugar, ambos são
caracterizados pela violência extrema: a realidade social primária não é o
amor ou a concórdia, mas uma guerra de “todos os homens contra todos os
homens”. Embora Hobbes não use a expressão “luta pelo reconhecimento”,
o que está
161
162
virtude superior, o carácter nobre que o faz lutar contra as suas limitações
“humanas, demasiado humanas”, deve ser persuadido de que o seu orgulho
é uma estultícia. Assim, a tradição liberal, gerada por Hobbes, está
explicitamente dirigida para os poucos que procuram transcender a sua
natureza “animal”, refreando-a em nome de uma paixão que constitui o
menor denominador comum do homem - a autopreservação. Na verdade, é
um denominador comum não só ao ser humano, como a todos os animais
“inferiores”. Ao contrário de Hegel, Hobbes acredita que o desejo de
reconhecimento e o nobre desprezo pela “simples” vida não constituem o
início da liberdade do homem, mas a fonte da sua miséria 10. Daí o título
do mais famoso livro de Hobbes: ao explicar que “Deus, tendo
desencadeado o grande poder de Leviatã, lhe chamou Rei do Orgulho”,
Hobbes compara o seu estado ao Leviatã, porquanto é “Rei de todos os
filhos do orgulho””. O Leviatã não satisfaz esse orgulho, subjuga-o.
163
A distância que vai de Hobbes ao “espírito de 1776” e à moderna
democracia liberal é muito curta. Hobbes acreditava na soberania
monárquica absoluta, não por força de um qualquer direito de governar
próprio dos reis, mas porque acreditava que um monarca pudesse ser
investido com base em
popular em si.
164
Locke não discutiria a avaliação relativa, feita por Hobbes, quanto aos
méritos morais do reconhecimento versus autopreservação: o primeiro tinha
de ser sacrificado em nome do segundo, sendo este o direito fundamental da
natureza, do qual derivam todos os outros. Locke, ao contrário de Hobbes,
argumentaria que o homem não tinha apenas direito à mera existência
física, mas também a uma existência confortável e potencialmente próspera;
a sociedade civil existia não apenas para preservar a paz social, mas
também para proteger o direito de os “diligentes e racionais” gerarem
abundância para todos através da instituição da propriedade privada. A
pobreza natural é substituída pela abundância social, de tal forma que “um
rei de um vasto e rico território [na América] se alimenta, abriga e veste
pior do que um operário na Inglaterra”.
civil não apenas para proteger os bens materiais que possui no estado de
natureza, mas também para abrir caminho à possibilidade de obtenção
ilimitada de mais bens.
165
que arrisca a sua vida numa batalha pelo prestígio tem uma ressonância
francamente teutónica e perversa. Não que estes pensadores anglo-saxões
não tenham reconhecido no primeiro homem de Hegel uma autêntica
espécie humana. Mais exactamente, eles viram o problema da política como
um esforço para persuadir o senhor em potência a aceitar a vida do servo,
numa espécie de sociedade sem classes de escravos. Isto porque eles
avaliavam a satisfação produzida pelo reconhecimento em menor grau do
que Hegel, particularmente quando sopesada com a angústia da morte. Eles
acreditavam, de facto, que o receio da morte violenta e o desejo de uma
autopreservação confortável eram tão fortes que, na mente de
mais desejável do que outro. Toda a satisfação positiva que a vida possa
conter tem de ser preenchida pelo próprio indivíduo. Satisfação que tanto
pode ser de elevado interesse público e generosidade privada, como de
baixo prazer egoísta e mesquinhez pessoal. O estado, como tal, é
indiferente. De facto, o governo está empenhado na tolerância de diferentes
166
Para além da questão prática de saber se uma sociedade onde falte todo e
qualquer espírito de serviço público é viável, existe a questão ainda mais
importante de saber se um homem que não consegue elevar o seu
pensamento para além dos seus próprios interesses mesquinhos e
necessidades físicas não é algo profundamente desprezível. O senhor
aristocrata de Hegel, arriscando a vida numa batalha pelo prestígio,
constitui apenas o exemplo mais extremo do impulso humano para
transcender a mera necessidade física ou natural. Não será possível que a
luta pelo reconhecimento traduza uma aspiração de autotranscendência que
esteja na base não apenas da violência, própria do estado de natureza e da
servidão, mas também de paixões nobres, como o patriotismo, a coragem, a
generosidade e o espírito de serviço público? Não estará o reconhecimento,
de certa forma, relacionado com toda a parte moral da natureza do homem,
a parte do homem que se satisfaz sacrificando as preocupações mesquinhas
do corpo por um
167
15
“Então expurgaremos todas essas coisas [da cidade justa], disse eu, “a
começar nestes versos:
168
No livro IV, Sócrates faz uma análise mais detalhada do thymos, que
inclui a sua famosa divisão tripartida da alma*’. Sócrates observa que a
alma humana tem uma parte de desejo que é feita de uma série de desejos
diferentes, sendo os mais intensos a fome e a sede. Todos estes desejos se
conjugam para impulsionar o homem em direcção a algo exterior - alimento
ou bebida. Mas Sócrates nota que há ocasiões em que o homem se
* Divisão tripartida da alma: Sócrates (ou Platão por ele, uma vez que
este, seu discípulo e biógrafo, mistura o seu próprio pensamento com o do
mestre) dizia que a alma assemelha-se a um carro alado, puxado por dois
altivos corcéis - um branco e outro negro, dirigidos por um auriga
moderador”.
Adimanto está pronto a concordar que o thymos não é mais do que uma
outra espécie de desejo, quando Sócrates relata a história de um certo
Leôncio que queria olhar para um monte de cadáveres jazendo ao lado do
carrasco público:
Teve um grande desejo de os ver, ao mesmo tempo que isso lhe era
insuportável e se desviava; durante algum tempo lutou consigo mesmo e
desviou o rosto; por fim, vencido pelo desejo, abriu muito os olhos e correu
em direcção aos cadáveres, exclamando: “Aqui tendes, génios do mal,
saciai-vos deste belo espectáculo!“6.
170
mérito -, maior será a sua ira ao ser tratado injustamente: o seu espírito
“ferve e torna-se sombrio”, formando uma “aliança de guerra com o que
parece justo”, mesmo que “sofra de fome, frio e tudo o mais […)“9.
ser reconhecido por uma outra consciência para se obter uma certeza
subjectiva do valor que cada um confere a si próprio. É por isso que o
thymos impele o homem, típica, mas não inevitavelmente, a procurar o
reconhecimento.
Deve permitir que o merceeiro possa dizer: “Que mal há na unidade dos
trabalhadores do mundo?” Assim, o letreiro ajuda-o a ocultar de si próprio
as vis razões da sua obediência e ocultar, simultaneamente, as vis razões do
poder. Esconde-as por detrás da fachada de algo mais elevado. E esse algo é
a ideologia”.
172
mesmo que não consiga articular essa convicção, que é um agente moral
com capacidade de escolha, conseguindo resistir às necessidades naturais
em nome de um princípio.
Como observa Havel, é claro que o merceeiro consegue evitar este debate
interno, porque pode simplesmente exibir um letreiro profundamente
comunista e julgar-se um homem de princípios, e não um ser medroso e
abjecto.
Por outro lado, Havel nota que, em maior ou menor grau, “cada indivíduo
consegue acabar por viver com a mentira”. A sua condenação do estado
comunista pós-totalitário gira à volta do mal que o comunismo fez ao
carácter moral dos indivíduos ou à sua convicção de que são capazes de agir
como agentes morais - veja-se a ausência do sentido de dignidade do
merceeiro, demonstrada quando ele concorda em exibir o letreiro
TRABALHADORES DO MUNDO, UNI-VOS! A dignidade e o seu
oposto, a humilhação, são as duas palavras mais utilizadas por Havel
quando descreve a vida na Checoslováquia comunista 12. O comunismo
humilhava as pessoas comuns ao forçá-las a tomar uma miríade de
compromissos morais, por vezes triviais, outras nem tanto, que iam da
colocação de um letreiro na montra à assinatura de uma petição,
denunciando um colega por fazer algo de que o estado
173
De acordo com estes escritores, uma ordem política digna deve ser algo
mais do que um pacto de não agressão mútua; deve também satisfazer o
desejo do homem de reconhecimento da sua dignidade e valor.
175
16
A besta de faces vermelhas
176
177
Na Teoria dos Sentimentos Morais, Smith defende que a razão que impele
os homens a procurarem riquezas e a rejeitarem a pobreza tem escassa
relação com as necessidades físicas. Isto acontece “porque o salário do
trabalhador mais insignificante” pode satisfazer as necessidades naturais,
como a “alimentação, o vestuário, o conforto doméstico e a manutenção da
família”, e porque grande parte do rendimento, mesmo de pessoas mais
pobres, é despendido em coisas que são, de uma forma geral,
“conveniências, que podem ser consideradas como supérfluas”. Assim,
porque é que os homens tentam “melhorar a sua condição” procurando a
labuta e a
178
da sua pobreza. Acha que isso o coloca fora das vistas da humanidade ou,
se por acaso nele repararem, raramente demonstrarão qualquer
solidariedade com a miséria e os problemas que o afligem […] 3
179
Existem outros casos em que o thymos tem sido confundido com o desejo.
Os historiadores, ao tentarem explicar a Guerra Civil Americana, devem
esclarecer porque é que os Americanos estavam dispostos a suportar o
enorme sofrimento provocado por uma guerra que dizimou 600000 homens
num total de 31 milhões de pessoas, quase 2 % da população. Alguns
historiadores do século XX, realçando os factores económicos, tentaram
interpretar a guerra como um conflito entre o Norte, industrializado e
capitalista, e o Sul, tradicionalista e agrícola. No entanto, estas explicações
são de alguma forma insatisfatórias. Inicialmente, a guerra desencadeou-se
por
intérpretes, disse que “toda a gente sabia” que a escravatura era “de certa
forma a causa do conflito”. Muitos nortistas opunham-se, obviamente, à
emancipação e tinham esperança de acabar com a guerra através de um
compromisso. Mas a determinação de Lincoln de levar a luta por diante,
patente no seu severo aviso de que estava disposto a prosseguir a guerra,
mesmo que esta consumisse os frutos “da riqueza acumulada pelo escravo
durante duzentos e cinquenta anos de trabalho não reconhecido”, era, em
termos económicos, incompreensível. Estas manifestações só fazem sentido
para a parte tímica” da alma 7.
Existem muitos exemplos do desejo de reconhecimento na política
americana contemporânea. O direito ao aborto, por exemplo, tem sido uma
das questões nevrálgicas do programa social americano da última geração,
e, no entanto, esta é uma questão sem qualquer base económica. O debate à
volta do direito ao aborto centra-se no conflito de direitos entre nascituros e
mulheres, mas traduz, de facto, uma divergência sobre a dignidade relativa
da família tradicional e do papel da mulher no seu seio, por um lado, e
sobre o papel da mulher auto-suficiente e trabalhadora, por outro. As partes
em conflito tanto se indignam em nome dos fetos abortados como em nome
das mulheres que morrem às mãos de parteiras incompetentes, mas também
se indignam por si próprias: a mãe tradicional, por achar que o aborto
degrada, de certa forma, o respeito devido à maternidade, e a mulher
trabalhadora, porque a inexistência do direito ao aborto diminui a sua
dignidade enquanto parceira do homem, em igualdade de circunstâncias. A
indignidade do racismo na América moderna só parcialmente assenta nas
privações originadas pela pobreza entre os Negros: muito desse mal deve-se
ao facto de, aos
180
181
182
Muro de Berlim. Contudo, até mesmo nessa altura não era linear que o
socialismo tivesse morrido na Alemanha Oriental; o que afastou
definitivamente do poder o Partido da Unidade Socialista e desacreditou os
seus novos dirigentes, Krenz e Modrow, foram as revelações acerca da
opulência da residência privada de Honecker, nos subúrbios de Wandlitz 10.
Hoje, rigorosamente falando, a tremenda ira que estas revelações
provocaram teve algo de irracional. Havia muitas razões de queixa contra a
comunista Alemanha Oriental, principalmente no que respeitava à
inexistência de liberdade política no país e ao seu baixo padrão de vida
relativamente ao da República Federal da Alemanha. Honecker, por outro
lado, não vivia numa versão moderna do Palácio de Versailles; a sua casa
assemelhava-se à de um bem estabelecido burgomestre de Hamburgo ou
Bremen. No entanto, as conhecidas e antigas acusações contra o
comunismo na Alemanha Oriental não conseguiram provocar, nos alemães
do Leste da classe média o mesmo grau de cólera “tímica” que sentiram
depois de ver na televisão a residência de Honecker. A tremenda hipocrisia
que essas imagens revelaram a respeito de um regime que era
ostensivamente a favor da igualdade ofendeu profundamente o sentido de
justiça do povo e foi o bastante para o fazer sair para a rua a exigir o fim
total do poder do Partido Comunista.
17
185
Não existe também garantia de que, ao avaliar o seu próprio valor, o ser
humano permaneça dentro dos limites do seu eu “moral”. Havel acredita
que todos os homens possuem um germe de capacidade crítica moral e um
sentido de “rectidão”; mas, mesmo que aceitemos esta generalização,
teremos de admitir que essas qualidades estão muito mais desenvolvidas
nalgumas pessoas do que noutras. Pode exigir-se o reconhecimento não só
do valor moral próprio, como também da riqueza, poder ou beleza física.
Mais importante ainda, não há razão para acreditar que todos se avaliarão
como iguais aos outros. Antes, poderá cada um tentar ser reconhecido como
superior aos outros, possivelmente com fundamento num verdadeiro valor
interior, mas, mais provavelmente, devido a uma auto-avaliação
inflacionada e presunçosa. O desejo de ser reconhecido como superior aos
outros será, a partir de agora, rotulado com uma nova palavra com raízes na
Grécia
antiga, megalothymia. Esta pode manifestar-se tanto no tirano que invade e
escraviza um povo vizinho para ver a sua autoridade reconhecida, como no
pianista que quer ser reconhecido como o maior intérprete de Beethoven. O
seu oposto é isothymia, o desejo de ser reconhecido como igual aos outros.
Megalothymia e isothymia são as duas manifestações do desejo de
reconhecimento que ajudam a compreender a transição histórica para a
modernidade.
bem comum. Mas Sócrates acredita também que o thymos tanto pode
destruir as comunidades políticas como cimentá-las. N’A República refere
isso mesmo, por exemplo, quando compara o guardião “tímico” a um feroz
cão de guarda, que, se não for adequadamente treinado, tanto pode morder o
dono como um estranho5. A construção de uma ordem política justa exige
187
188
189
faculdades do homem, em especial a “faculdade diferenciada e desigual de
adquirir propriedade” 15.
190
seu apetite, mero animal” 19. O maior e mais coerente defensor do thymos
nos tempos modernos e profeta do seu ressurgimento foi Friedrich
Nietzsche, o padrinho do relativismo e do niilismo actuais. Nietzsche foi
certa vez descrito por um contemporâneo como um “aristocrata radical”,
caracterização que não contestou. Larga parte do seu trabalho pode ser
vista, num certo sentido, como uma reacção ao que ele entendia como
nascimento de uma civilização inteira de “homens sem verticalidade”, uma
sociedade de burgueses que não aspirava senão a uma confortável
autopreservação.
Para Nietzsche, a própria essência do homem não era nem o seu desejo nem
a sua razão, mas o seu thymos: o homem era sobretudo uma criatura
valorizadora, a “besta de faces vermelhas”, cuja vida dependia da sua
capacidade de pronunciar as palavras “bem” e “mal”. Como a sua
personagem
Zaratustra diz,
Para Nietzsche, os valores criados pelos homens não eram a questão central,
porquanto existiam “mil e um objectivos” para o homem seguir Cada povo
da Terra tinha a sua própria “linguagem do bem e do mal”, que os seus
vizinhos não conseguiam compreender. O que constituía a essência do
homem era o próprio acto de valorização, o acto de conceder valor a si
próprio e exigir o concomitante reconhecimento21. O acto de avaliação era
intrinsecamente desigual, porquanto requeria a distinção entre o melhor e o
pior. Por isso, Nietzsche estava apenas interessado na manifestação do
thymos que leva alguns homens a afirmarem-se melhores do que os outros,
a megalothymia. Consequência terrível da modernidade foi o esforço dos
seus criadores, Hobbes e Locke, em despojar o homem do seu poder
avaliador em nome da segurança física e da acumulação material. A
conhecida doutrina de Nietzsche da “vontade de domínio” pode ser
entendida como uma tentativa para reafirmar o primado do thymos em
relação ao desejo e à razão e de desfazer o dano provocado pelo liberalismo
moderno ao orgulho e auto-afirmação do homem. O seu trabalho constitui
uma exaltação do senhor aristocrático de Hegel e da sua luta de morte pelo
puro prestígio e uma monumental condenação de uma modernidade que
aceitou tão totalmente a moralidade do servo que nem sequer se apercebeu
de que tal escolha tinha sido feita.
Não obstante o diferente vocabulário que tem sido utilizado para descrever
o fenómeno do thymos, ou o desejo de reconhecimento, está bem patente
que esta “terceira parte” da alma tem constituído uma preocupação fulcral
da tradição filosófica que se estende de Platão a Nietzsche, sugerindo uma
leitura muito diferente do processo histórico, não como relato do desenrolar
da moderna ciência natural ou da lógica do desenvolvimento, mas antes
como o aparecimento, crescimento e eventual declínio da megalothymia. O
mundo económico moderno só podia, de facto, nascer depois da libertação
do desejo à custa do thymos, por assim dizer. O processo histórico que
começa com a sangrenta batalha do senhor acaba, num certo sentido, com o
moderno habitante burguês das democracias liberais contemporâneas, que
busca o lucro material em detrimento da glória.
192
sem ela muito do que satisfaz as nossas vidas não seria possível. No
entanto, em termos do que dizemos sobre nós próprios, foi eticamente
banida do mundo moderno.
193
18
Domínio e servidão
O homem completo, absolutamente livre, definitiva e totalmente
satisfeito com o que é, o homem que se aperfeiçoa e se completa através
desta satisfação, será o Servo que “venceu” a sua Servidão. Se o Domínio
ocioso é um impasse, a Servidão laboriosa, pelo contrário, é a fonte de todo
o progresso humano, social e histórico. A História é a história do Servo
trabalhador.
como nota Kojeve, pode ser morto, mas não pode ser educado. O senhor
pode, claro, arriscar a sua vida repetidamente em combates mortais contra
outros senhores, a fim de controlar outra região ou conseguir a sucessão de
um trono. Mas o acto de arriscar a vida, ainda que profundamente humano,
195
moderna não é uma invenção de senhores ociosos que possuem tudo o que
desejam, mas de servos forçados a trabalhar e que não gostam da sua
condição actual. Através da ciência e da tecnologia, o servo descobre que
pode mudar a natureza, não apenas o ambiente físico em que nasce, mas
também a sua própria natureza.
196
liberdade, uma ideia que lhe ocorre em resultado do seu trabalho. O servo,
no entanto, não tem liberdade sobre a sua própria vida; há uma discrepância
entre a sua ideia de liberdade e a sua condição real. O servo é, assim, mais
197
198
199
alguma coisa para além de uma vida de mera servidão. O seu thymos
exprimia-se no orgulho pelo trabalho, na capacidade de manipular “os
materiais quase imprestáveis” da natureza e transformá-los em objectos
concretos.
200
19
201
202
Por outro lado, o estado liberal é racional por conciliar estas exigências
de reconhecimento em confronto na única base mutuamente aceitável, ou
seja, na base da identidade individual como ser humano. O estado liberal
deve ser universal, quer dizer, reconhecer todos os cidadãos por serem seres
humanos, e não membros de um determinado grupo nacional, étnico ou
racial. E deve também ser homogéneo, na medida em que cria uma
sociedade sem classes assente na abolição da distinção entre senhores e
escravos.
203
mutuamente, quer dizer, sempre que o estado concede direitos aos seus
cidadãos e estes concordam em agir em conformidade com as leis
estabelecidas, o reconhecimento torna-se reciproco. O único limite destes
direitos ocorre quando se tornam autocontraditórios, quer dizer, quando o
exercício de um direito colide com o de outro.
204
Por outro lado, Kojeve realçou uma importante verdade quando afirmou
que a América do pós-guerra, ou os membros da Comunidade Europeia,
constituíam a corporização do estado de reconhecimento universal de
Hegel.
205
206
207
thymos, pode ter requerido uma marcha histórica de 10000 anos ou mais,
mas não foi uma parte menos constitutiva da alma para Kojève do que era
para Platão.
208
PARTE IV
SALTANDO SOBRE RODES
20
Algures existem ainda povos e rebanhos, mas não onde vivemos, meus
irmãos: aqui existem estados. Estados? Que é isso? Bem, escutai, pois vou
agora falar-vos da morte dos povos.
Esta é a mensagem que vos dou: cada povo tem a sua própria linguagem
do bem e do mal, que o vizinho não compreende. Inventou a sua linguagem
própria de costumes e direitos. Mas o estado mente em todas as linguagens
do bem e do mal; e tudo o que diz é mentira - e tudo o que tem foi roubado.
NietzscHe, Assim Falava Zaratustra
211
212
213
214
Por outro lado, não é provável que a democracia surja num país onde o
nacionalismo ou a etnia dos seus grupos constituintes é tão extremado que
estes não partilhem um sentido de nação nem aceitem os direitos mútuos.
215
de ser tolerante e igualitária. Já observámos que Hegel acreditava que, ao
estabelecer o princípio da igualdade de todos os homens com base na sua
capacidade de fazer escolhas morais, o cristianismo abriu o caminho para a
Revolução Francesa. Uma larga maioria das democracias actuais tem
heranças religiosas cristãs e Samuel Huntington já observou que, desde
1970, grande parte das novas democracias surgiram em países católicos.
Mas a religião per se* não produziu sociedades livres; de certa forma, o
cristianismo teve de se auto-abolir, através da secularização dos seus
objectivos, antes que o liberalismo pudesse emergir. É geralmente aceite
que o agente desta secularização no Ocidente foi o protestantismo. Ao
tornar a
216
século XVII. O Brasil e o Peru, por seu lado, herdaram estruturas de classe
profundamente estratificadas, mutuamente hostis e desconfiadas.
Esta capacidade, por seu turno, tem sido muitas vezes relacionada com o
carácter da sociedade pré-moderna que deu origem à democracia. Tem sido
defendido que aquelas sociedades pré-modernas que integravam estados
fortes e centralizados, nos quais se destruíam sistematicamente todas as
fontes intermédias do poder, tais como aristocracias feudais ou déspotas
regionais, estavam mais inclinadas para produzir governos autoritários,
após a modernização, do que as sociedades feudais em que o poder era
partilhado entre o rei e alguns chefes poderosos”. Assim, a Rússia e a
China, vastos impérios centralizadores na época pré-revolucionária,
tornaram-se estados totalitários comunistas, enquanto a Inglaterra e o Japão,
predominantemente feudais, mantiveram democracias estáveis 12. Este
argumento explica as dificuldades que países da Europa ocidental, como a
França e a Espanha, tiveram para estabelecer democracias estáveis. Em
ambos os casos, o feudalismo foi substituído, nos séculos XVI e XVII, por
uma monarquia centralizada e modernizadora que deixou como legado um
poder estatal forte e uma sociedade civil fraca e desencorajada, dependente
da autoridade do estado.
218
A democracia não pode entrar pela porta de serviço; deve brotar de uma
decisão política deliberada nesse sentido. O domínio da política continua
autónomo relativamente ao da cultura e encontra a sua dignidade específica
no ponto de intersecção entre o desejo, o thymos e a razão. A democracia
liberal não nasce sem estadistas sensatos e experientes, que compreendam a
arte da política e consigam converter as inclinações latentes nas pessoas em
prol de instituições políticas duradouras. Os estudos de transições para
democracias bem sucedidas sublinham a importância de factores tão
intrinsecamente políticos como a capacidade dos novos dirigentes
democratas para neutralizarem as forças armadas enquanto procuram as
causas dos erros passados, a sua habilidade para manter uma continuidade
simbólica com o passado (bandeiras, hino, etc.), a natureza do sistema de
partido que foi estabelecido, ou o tipo de democracia (presidencial ou
parlamentarista)15.
219
Agosto de 1991.
Uma análise mais profunda deste ponto sugere que a linha divisória entre
cultura e política, povos e estados, não é nítida. Os estados podem ter um
papel muito importante na formação dos povos, isto é, na determinação da
“linguagem do bem e do mal”, e no estabelecimento de hábitos, costumes
220
Por outro lado, a importância dos povos e da sua cultura realça os limites
do racionalismo liberal ou, dito de outra forma, a dependência das
instituições racionais liberais do thymos irracional. O estado racional liberal
não pode surgir de uma única eleição nem sobreviver sem um determinado
grau
221
21
222
Todavia, pressente-se que as diferenças de política constituem apenas parte
do problema e que a cultura influencia o comportamento económico tão
profundamente quanto influencia a capacidade de um povo em manter uma
democracia estável. Isso torna-se ainda mais evidente nas atitudes em
ao valor relativo das culturas em questão. Ninguém gosta que se diga que a
sua cultura promove a preguiça e a desonestidade; de facto, esse tipo de
juízo poderá ser considerado abusivo.
Mesmo assim, quem viaje ou viva no estrangeiro não pode deixar de notar
que as atitudes em relação ao trabalho são fortemente influenciadas pela
cultura nacional. Estas diferenças são, em certa medida, empiricamente
aferíveis, por exemplo, no que respeita ao desempenho económico relativo
223
O próprio termo “ética do trabalho”, por seu lado, sugere que a apetência
e o comportamento individual ou colectivo em relação ao trabalho são
determinados pela cultura e pelos costumes e, assim, estão de certa forma
relacionados com o thymos. De facto, é muito difícil descrever um
indivíduo ou
um povo com uma forte ética de trabalho nos termos estritamente utilitários
da economia liberal tradicional. Veja-se a personalidade “tipo A”
contemporânea - o advogado ou executivo de empresa dedicado, ou o
empregado japonês contratado por uma empresa multinacional japonesa
altamente
225
226
para os jovens da classe média do Ocidente. Todavia, incute nos crentes
uma espécie de torpor e inércia “terrenos” que, em muitos aspectos, estão
em oposição com o espírito do capitalismo. Existem muitos empresários
indianos bastante bem sucedidos, mas estes (tal como os emigrantes
chineses) parecem ter mais sucesso fora das fronteiras da sua cultura. Ao
verificar que muitos dos grandes cientistas da Índia trabalhavam no
estrangeiro, o romancista V. S. Naipaul observou:
227
228
humano, que continua a empurrar as pessoas para trabalhar até ao limite das
suas forças. A importância do desejo racional para estimular uma ética do
trabalho torna-se evidente quando se compara a produtividade dos
trabalhadores das Alemanhas Ocidental e Oriental, que partilham a mesma
cultura, mas têm incentivos materiais diferentes. A persistência de uma
forte ética de trabalho no Ocidente capitalista dever-se-a menos à
durabilidade daquilo a que Weber chamou “fantasmas de crenças religiosas
mortas” e mais ao poder do desejo ligado à razão.
229
230
empenho para o bem das suas famílias do que para seu próprio bem e que,
em tempo de guerra ou crise, se põem ao serviço da nação. Por outro lado, o
liberalismo económico profundamente individualizado dos Estados Unidos
ou da Grã-Bretanha, assente exclusivamente no desejo racional, torna-se, a
partir de certa altura, economicamente contraprodutivo. Isto pode acontecer
quando os trabalhadores deixam de sentir orgulho no seu trabalho,
considerando-o nada mais do que um bem para ser vendido, ou quando
trabalhadores e patronato se consideram não colaboradores potenciais em
competição com os seus colegas de outras nações, mas adversários num
jogo de tudo ou nada 19.
231
232
22
Impérios de ressentimento
impérios de deferência
233
de um conjunto mais antigo e mais puro de valores que teriam existido num
passado distante, que não eram nem “os valores tradicionais”
desacreditados do passado recente, nem os valores ocidentais tão mal
transplantados para o Médio Oriente. Neste aspecto, o fundamentalismo
islâmico assemelha-se superficialmente ao fascismo europeu. Tal como
aconteceu com este, não surpreende que o revivalismo fundamentalista
tenha atingido mais implacavelmente os países aparentemente mais
modernos, pois foi aí que as culturas tradicionais foram mais
profundamente ameaçadas pela importação de valores ocidentais. A força
do revivalismo islâmico apenas poderá ser
234
235
Esta tirania pode ser ilustrada por alguns exemplos da sociedade japonesa
que têm paralelo em todas as outras culturas da Ásia oriental. A família é o
principal grupo social a que os Japoneses devem respeito e a autoridade
236
uma relação de respeito mútuo com os pais, já não como dependente, mas
em pé de igualdade. No Japão, pelo contrário, quase não existe o
equivalente da rebeldia juvenil: a deferência inicial para com os mais velhos
prolonga-se pela vida fora. O thymos de cada um não está tão vinculado ao
eu
individual e às qualidades pessoais que alimentam o orgulho próprio, mas à
família, cuja reputação se sobrepõe à de qualquer um dos seus membros 5.
237
238
239
240
de reconhecimento racional como única base legítima de governação. Por
outro, cresce a resistência a essa homogeneização e uma reafirmação, em
grande parte ao nível subpolítico, de identidades culturais que acabam por
consolidar as barreiras entre os povos e as nações. O triunfo do mais frio de
todos os monstros tem sido incompleto. Embora tenha havido uma redução
do número de fórmulas aceitáveis de organização económica e política nos
últimos cem anos, são ainda várias as interpretações possíveis dos modelos
sobreviventes, o capitalismo e a democracia liberal. Isso indicia que,
mesmo que se diluam as diferenças ideológicas entre os estados, subsistirão
entre estes diferenças substanciais, embora transpostas para os planos da
cultura e da economia. Estas diferenças sugerem ainda que o corrente
sistema de estados não se transformará literalmente num estado homogéneo
e universal no futuro próximo 10. A nação continuará a ser o pólo central de
identificação, apesar de um número cada vez maior de nações partilhar
formas comuns de organização política e económica.
241
23
A irrealidade do “realismo”
242
económica, os conceitos de legitimidade política - estão sujeitos à evolução
histórica, as relações internacionais são consideradas imutáveis: “a guerra é
eterna” 2.
243
Esta luta por poder não é condicionada pelas características internas dos
estados - sejam teocracias, autocracias esclavagistas, estados policiais
fascistas, ditaduras comunistas ou democracias liberais. Morgenthau
observou que “a política compele inexoravelmente o actor da cena política a
utilizar ideologias para encobrir o objectivo imediato da sua acção”, que
sempre foi o poder 6. Por exemplo, a Rússia expandiu-se sob o regime
czarista, tal como
do povo russo 8. O Japão pode ser agora uma democracia liberal, e não a
ditadura militar que era nos anos 30, mas continua sempre, e antes de tudo,
a ser o Japão, dominando agora a Ásia, não com armas, mas com ienes 9.
sobre todos os outros. Foi o que aconteceu com Atenas e Esparta, na época
da Guerra do Peloponeso, com Roma e Cartago, uns séculos mais tarde, e
com a União Soviética e os Estados Unidos, durante a guerra fria. A
alternativa é um sistema “multipolar”, em que o poder está dividido por um
a Alemanha, que, anos mais tarde, tentaram perturbar o status quo europeu.
245
246
Não foi por acidente que os primeiros realistas, como Metternich, foram
diplomatas, e não guerreiros, e que um realista como Kissinger,
desdenhando embora das Nações Unidas, tivesse sido o arquitecto do
desanuviamento entre os Estados Unidos e a União Soviética no início dos
anos
247
cenário, a lei internacional era uma fraude a força militar a única solução
eficaz para o problema da segurança. O realismo parecia pois a estrutura
adequada para entender o funcionamento do mundo e proporcionar o apoio
intelectual necessário à criação da OTAN e de outras alianças militares,
com a Europa ocidental e o Japão, depois da guerra.
A manutenção da estrutura teórica para além do seu tempo útil deu origem a
propostas bastante estranhas sobre o modo de pensar e agir no mundo pós-
guerra fria. Foi, por exemplo, sugerido que o Ocidente deveria tentar
manter o Pacto de Varsóvia, uma vez que a divisão bipolar da Europa havia
sido responsável pela paz que reinou nesse continente desde 1945 18;
argumentou-se igualmente que o fim da divisão da Europa iria aí provocar
um período de maior instabilidade e perigo do que no tempo da guerra fria,
um problema que poderia ser solucionado através da proliferação
controlada de armas nucleares na Alemanha 19.
Afim de tratar uma doença que já não existe, os realistas propõem curas
dispendiosas e perigosas para pacientes saudáveis. Para compreender
porque é que o doente está essencialmente saudável precisamos de analisar
de novo as pressuposições realistas sobre as causas subjacentes à doença,
isto é, à guerra entre as nações.
248
24
O poder dos sem poder
Não há, por exemplo, razão para presumir que qualquer estado de uma
ordem internacional anárquica deva sentir-se ameaçado, a não ser que
houvesse bases para pensar que as sociedades humanas são inerentemente
agressivas. A ordem internacional descrita por realistas é muito semelhante
ao estado de natureza de Hobbes, onde o homem se encontra num estado
de guerra de todos contra todos. Mas o estado de guerra de Hobbes não
provém do simples desejo de autopreservação, mas do facto de a
autopreservação coexistir com a vaidade ou o desejo de reconhecimento.
Caso não
249
Deste modo, o realista nada pode deduzir dos simples factos relativos à
distribuição do poder dentro do sistema de estado. Tal informação apenas
fará sentido a partir de determinadas presunções sobre a natureza das
sociedades que constituem o sistema, nomeadamente de que, pelo menos,
alguns estados procuram o reconhecimento, e não a mera autopreservação.
250
tentam ficar mais pequenos exemplos de luta pelo poder semelhantes aos
que buscam o alargamento pela conquista e desenvolvimento militar?
251
É óbvio que todos os estados devem procurar poder para atingir os seus
objectivos nacionais, mesmo que estes se restrinjam à simples
sobrevivência. A busca pelo poder é, neste sentido, efectivamente universal,
mas o seu significado torna-se trivial. Coisa completamente diferente é
afirmar
252
253
humanas, nem poderia ter sido causado pela busca abstracta de segurança
por parte das sociedades de servos. Surgiu antes em determinadas épocas e
lugares, tal como no Egipto, depois da expulsão dos Hyksons (a dinastia
semita que governou o país do século XVIII ao XVI a. C.), ou após a
conversão dos Árabes ao islamismo, devido à emergência de uma ordem
aristocrata cuja base moral estava orientada para a guerra 9.
255
Por outro lado, os custos económicos da guerra, tão deplorados por Kant,
aumentaram exponencialmente com o avanço tecnológico. Já por altura da
primeira guerra mundial, a tecnologia convencional tornara a guerra tão
dispendiosa que sociedades inteiras que nela participaram foram
prejudicadas, mesmo as que se encontraram do lado vencedor. É escusado
dizer que as armas nucleares vieram aumentar ainda mais o potencial custo
social da guerra. O papel das armas nucleares na preservação da paz durante
a guerra fria tem sido reconhecido por todos15. Muito dificilmente se
poderão desligar os efeitos das armas nucleares de factores como a
bipolarização na explicação para uma ausência de guerra na Europa após
1945. Em retrospectiva, pode porém especular-se que qualquer crise da
guerra fria - fosse por causa de Berlim, de Cuba ou do Médio Oriente -
poderia progressivamente ter conduzido a uma guerra real, caso as duas
superpotências não tivessem consciência do horrífico custo potencial do
conflito16.
256
combater estados não democráticos, como aconteceu com os Estados
Unidos nas duas guerras mundiais, na Coreia, no Vietname e, mais
recentemente, no golfo Pérsico. O entusiasmo com que travam essas
guerras pode mesmo exceder o das monarquias e despotismos tradicionais.
Mas, entre si, as democracias liberais manifestam pouca desconfiança ou
intenção de domínio; partilham entre si princípios de igualdade e direitos
universais, pelo que não têm bases para contestar a legitimidade de cada
um. Nestes estados, a megalothymia encontrou outros escapes que não a
guerra, ou então atrofiou-se de tal forma que já não consegue inflamar-se ao
ponto de provocar uma versão moderna da sangrenta batalha. Não tanto
porque a democracia liberal restrinja os naturais instintos do homem para a
agressão e a violência, mas porque tem transformado as características
fundamentais dos próprios instintos, eliminando assim a motivação para a
guerra.
257
advogar a conquista do Canadá por parte dos Estados Unidos, dada a janela
de oportunidade aberta pelo fim da guerra fria - isto, claro, se o realista for
americano. Pensar que a ordem europeia que emerge da guerra fria retomará
o comportamento competitivo de grande potência do século XIX é ignorar o
carácter consumadamente burguês da vida na Europa de hoje. O sistema
anárquico de estados da Europa liberal não promove a desconfiança e a
insegurança, devido ao grande entendimento existente entre a maior parte
dos estados europeus, que sabem que os seus vizinhos são demasiado auto-
indulgentes e consumistas para arriscarem a vida. Vizinhos repletos de
empresários e gestores, mas sem príncipes ou demagogos, cuja ambição é
necessária para travar a guerra.
Apesar disso, esta mesma Europa burguesa foi abalada pela guerra
durante a existência de muita da sua actual população. O imperialismo e a
guerra não desapareceram com o advento da sociedade burguesa; as guerras
258
burguesas até ao fim da primeira guerra mundial, a fonte das suas classes
dirigentes continuou a ser a aristocracia, cujos conceitos de grandeza e
glória nacional não foram abalados pelo comércio. O ethos belicista das
sociedades aristocratas pode ter sido herdado pelos seus descendentes
democratas acabando por vir à superfície em tempos de crise ou
entusiasmo.
259
25
Interesses nacionais
261
deu origem fossem entidades sociais intemporais, tão antigas como o estado
ou a família. O senso comum considera que o nacionalismo, quando
desperta, representa uma força tão elementar da história que outros laços de
união, como a religião ou a ideologia, são incapazes de lhe fazer frente e
que ele acabará por triunfar sobre credos mais fracos, como o comunismo
ou o liberalismo4. Nos últimos tempos, este ponto de vista parece ter sido
provado com a emergência de sentimentos nacionalistas por toda a Europa
do Leste e União Soviética; de tal forma que alguns observadores prevêm
que a era pós-guerra fria irá testemunhar o renascimento do nacionalismo, à
semelhança do século XIX 5. O comunismo soviético defendia que a
questão nacional não era mais do que uma excrescência de uma questão de
classes mais fundamental, afirmando tê-la resolvido para todo o sempre
com a sua doutrina de sociedade sem classes. Numa altura em que os
nacionalistas expulsam os comunistas dos seus cargos em cada república
soviética, uma após outra, bem como por toda a antiga Europa do Leste
comunista, a evidente falsidade daquela asserção veio abalar a credibilidade
das ideologias universalistas que pretendiam ter acabado com o
nacionalismo de uma vez por todas.
revelado sentimentos patrióticos para com grupos sociais mais vastos, mas
só com a revolução industrial estes grupos se definiram como entidades
linguísticas culturalmente homogéneas. Nas sociedades pré-industriais, as
diferenças de classe entre os indivíduos que partilhavam a mesma
nacionalidade eram generalizadas, o que constituía uma barreira insuperável
à sua interacção. Um nobre russo tinha muito mais em comum com outro
nobre francês do que com o camponês que vivia na sua propriedade. Não só
tinham condição social semelhante, como seriam capazes de falar a mesma
língua; todavia, era frequente não conseguirem comunicar directamente
com os seus próprios camponeses 7. As entidades políticas não levavam em
consideração a nacionalidade: o imperador Carlos V governou
simultaneamente partes da Alemanha, da Espanha e dos Países Baixos,
enquanto os Turcos otomanos governaram Turcos, Árabes, Berberes e
cristãos
europeus.
262
identidade destes grupos. Isso vem demonstrar que, através dos tempos, as
nações não são fontes permanentes ou “naturais” dos laços entre indivíduos.
263
264
separada, mas igual à dos seus vizinhos, a base nacionalista que gera o
imperialismo enfraquecerá 12. Muita gente acredita que as actuais medidas
para uma integração europeia são uma aberração momentânea, resultante da
experiência da segunda guerra mundial e da guerra fria, e que a tendência
global da moderna história europeia vai mais no sentido do nacionalismo.
Mas pode ser que as duas guerras mundiais tivessem provocado um efeito
semelhante ao que as guerras religiosas dos séculos XVI e XVII
provocaram em relação à religião, afectando a consciência não apenas da
geração imediatamente seguinte, mas de todas as gerações futuras. Se se
quiser diluir gradualmente o nacionalismo como força política, é preciso
torná-lo mais tolerante, como aconteceu com a religião no passado.
Esse tipo de evolução tem vindo a ocorrer, nas últimas gerações, nas
democracias liberais mais desenvolvidas da Europa. Embora o
nacionalismo das sociedades europeias contemporâneas seja ainda bastante
pronunciado, tem uma natureza muito diferente do nacionalismo do século
passado, quando o conceito de “povos” e as identidades nacionais eram
uma relativa novidade.
Não quer isto dizer, claro, que a Europa fique de futuro livre dos conflitos
nacionalistas, particularmente dos nacionalismos recentemente libertos da
265
Europa do Leste e da União Soviética, reprimidos e por cumprir sob o
regime comunista. O fim da guerra fria pode efectivamente ocasionar um
aumento de conflitos nacionalistas na Europa. Nestes casos, o nacionalismo
é um complemento necessário para propagar a democratização, à medida
que os grupos étnicos e nacionais, cuja voz foi reprimida durante muito
tempo, se expressem pela soberania e por uma existência independente. Por
exemplo, as eleições livres ocorridas na Eslovénia, na Croácia e na Sérvia
em 1990, que levaram ao poder governos pró-independentes não
comunistas nas duas últimas repúblicas, geraram condições para a guerra
civil na Jugoslávia. O desmembramento de antigos estados multiétnicos
promete tornar-se um acontecimento violento e sangrento, considerando,
além do mais, quão emaranhados se encontram os grupos nacionais. Na
União Soviética, por exemplo, cerca de 60 milhões de pessoas (das quais
metade são russas) vivem no exterior das suas repúblicas de origem,
enquanto um oitavo da
266
268
26
269
271
Seria natural que a democracia liberal, que visa abolir a distinção entre
senhores e servos, tornando os homens senhores de si próprios, tivesse
objectivos de política externa completamente diferentes. A paz a que chegar
o mundo pós-histórico não será devida ao facto de os principais estados
partilharem um princípio comum de legitimidade. Esse tipo de situação já
existiu no passado, por exemplo, quando todas as nações da Europa eram
monarquias ou impérios. A paz resultará antes da natureza específica da
legitimidade democrática e da sua capacidade de satisfazer as aspirações
humanas de reconhecimento.
É claro que ninguém iria advogar uma política de desafio militar aos
estados não democráticos poderosamente armados, em particular com
armas nucleares. Revoluções como as que ocorreram na Europa do Leste
em 1989 são acontecimentos raros, sem precedentes, e uma democracia não
pode determinar a sua política externa com base no colapso iminente de
cada
272
273
Desde o seu início que as Nações Unidas não seguiram estas condições,
A Carta das Nações Unidas eliminou qualquer referência a uma liga de
“nações livres” em favor do princípio mais fraco da “igualdade de soberania
de todos os seus membros”. Isto é, a admissão nas Nações Unidas ficava
possibilitada a qualquer estado que respeitasse determinados critérios
mínimos de soberania, quer esta se fundamentasse quer não na soberania
popular. Foi assim que a União Soviética conseguiu ser um membro
fundador da organização, com assento no Conselho de Segurança e direito a
veto. Depois da descolonização, a Assembleia Geral passou a ser composta
da natureza dos direitos, não surpreende que as Nações Unidas não tenham
conseguido qualquer realização importante desde a sua fundação, em
particular na crítica área da segurança colectiva. Não constitui também
surpresa que a ONU fosse sempre olhada com grande desconfiança pelo
povo americano. A sua predecessora, a Liga das Nações, era um pouco mais
homogénea no que respeita ao carácter político dos seus membros, embora
tenha acabado por incluir a União Soviética, depois de 1933. No entanto, a
sua capacidade para desenvolver princípios de segurança colectiva ficou
francamente diminuída com o facto de actores importantes do sistema de
estados - o Japão e a Alemanha - não serem democracias nem estarem
dispostos a aceitar as regras da Liga.
274
275
276
PARTE V
O ÚLTIMO HOMEM
27
No reino da liberdade
279
liberal venceu os seus rivais e que, num futuro próximo, não enfrenta sérias
ameaças externas à sua sobrevivência. Entregues a si próprias, poderão as
estáveis e duradouras democracias liberais da Europa e da América manter-
se indefinidamente, ou irão um dia ruir de podridão interna, tal como
aconteceu com o comunismo? As democracias liberais estão sem dúvida
ameaçadas por uma série de problemas, como o desemprego, a poluição, as
drogas, o crime e outros, mas, além destas preocupações imediatas, resta
saber se existem outras fontes mais profundas de insatisfação no interior da
280
Não poderá acontecer que o que satisfaz o desejo não satisfaça o thymos, e
vice-versa, de tal sorte que nenhuma sociedade humana agrade ao “homem
enquanto homem”?
insiste em que o problema da sociedade liberal não tem a ver com uma
inadequada universalização do reconhecimento, mas com o próprio
objectivo em si do reconhecimento igualitário. Esse objectivo é
problemático porque os seres humanos são intrinsecamente desiguais; tratá-
los como iguais não é afirmar, mas antes negar, a sua humanidade.
Analisemos cada
281
notou Madison, igual destreza para adquirir bens. Rapazes bem parecidos e
raparigas bonitas têm mais facilidade em arranjar pretendentes do que os
que são menos atraentes Existem igualmente formas de desigualdade
directamente devidas ao funcionamento do mercado capitalista: a divisão do
trabalho dentro de uma economia e o próprio funcionamento impiedoso dos
mercados. Estas formas de desigualdade não são mais “naturais” do que o
próprio capitalismo, mas estão necessariamente implícitas na escolha de um
sistema económico capitalista. A produtividade de uma economia moderna
só pode ser alcançada através da divisão natural do trabalho e da criação de
vencedores e vencidos, à medida que o capital transita de indústria para
indústria, de região para região e de país para país.
New Deal* foi aceite pelos conservadores e tem vindo a afirmar-se como
irreversível.
razão, que as políticas sociais levadas a cabo para ajudar a subclasse negra
acabaram por a ferir, ao corroerem o sentido de família e ao aumentarem a
sua dependência do estado. Ninguém resolveu o problema da “criação da
cultura” - isto é, da regeneração dos valores morais internos - em termos da
política pública. Assim, embora o princípio da igualdade tenha sido
correctamente estabelecido na América de 1776, a sua concretização plena
não foi ainda possível para muitos americanos dos anos 90.
283
284
285
Toda esta despesa e este esforço foram efectuados não tanto para aliviar o
desconforto físico dos deficientes, dado haver formas menos dispendiosas
para o fazer, mas para evitar afrontas à sua dignidade. Tratava-se de
proteger o seu thymos, vencendo a natureza e demonstrando que um
deficiente
286
que era difícil não a considerar como algo totalmente esgotado por todo o
mundo industrializado. Um futuro desafio de esquerda à democracia liberal
poderá revestir mais uma forma de liberalismo, mudando embora o seu
significado interno, do que configurar um ataque frontal contra as
instituições e princípios democráticos de base.
Por exemplo, quase todas as democracias liberais foram testemunhas, no
decorrer da última geração, de uma proliferação maciça de novos “direitos”.
Não contentes com proteger apenas a vida, a liberdade e a propriedade,
muitas democracias instituíram igualmente o direito à privacidade, à
deslocação, ao emprego, ao lazer, à preferência sexual, ao aborto, aos
direitos dás crianças, etc. Desnecessário será dizer que muitos destes
direitos são ambíguos quanto ao seu conteúdo social e mutuamente
contraditórios. É fácil prever situações em que os direitos elementares
definidos, digamos, pela Declaração de Independência e pela Constituição
sejam seriamente prejudicados por direitos recentemente criados sob o
pretexto de uma mais profunda igualização da sociedade.
287
era em parte animal, mas ele dispunha de razão e, portanto, de uma virtude
humana específica que as outras espécies não partilhavam. Para Kant e
Hegel, e para a tradição cristã que lhes serviu de base, a distinção entre
homem e não homem era absolutamente essencial. Os seres humanos
tinham uma dignidade superior a tudo que havia na natureza porque só eles
eram livres isto é, eles eram causas incausadas, não estavam determinados
pelo instinto natural e eram capazes de escolha moral autónoma.
Hoje, todos falam da dignidade humana, mas não existe consenso sobre o
porquê de ela existir. Certamente poucas pessoas acreditam que o homem
tem dignidade por ser capaz de opções morais. Todos os esforços da ciência
natural moderna e da filosofia, desde a época de Kant e Hegel, têm sido no
capaz de seguir as leis que ele próprio criou, ficou reduzido a um mito auto-
satisfatório.
288
inteligência mais elevadas; assim, porque é ilegal matar seres humanos, mas
não estas criaturas?
Mas esta argumentação não acaba aqui. Como se faz a distinção entre
animais superiores e outros progressivamente inferiores? Quem pode
determinar o que é que sofre na natureza? De facto, porque deverá a
capacidade de sentir a dor ou a posse de um grau de inteligência mais
elevado ser o
Se, de facto, acreditarmos que ele não é capaz de opções morais ou do uso
autónomo da razão, se ele pode ser totalmente compreendido em termos do
sub-humano, não só é possível, mas inevitável, que os direitos do homem se
estendam gradualmente aos animais e outros seres naturais. O conceito
liberal de uma humanidade igual e universal, com uma dignidade
especificamente humana, sofrerá ataques cruzados: será atacado por aqueles
que asseveram que determinadas identidades de grupos são mais
importantes do que a qualidade de ser humano e por aqueles que acreditam
que o ser humano em nada se distingue do não humano. O impasse
intelectual em que
289
290
28
Homens sem peito
no moralismo.
291
292
vil que sejam as suas vidas, têm, mesmo assim, dignidade, são alguém. Não
estão dispostos a excluir, como indigno, qualquer acto ou pessoa. Ora pode
acontecer que uma pessoa que esteja completamente em baixo e totalmente
sem sorte seja, em determinado momento, salva por alguém expressando-
lhe uma ajuda imprópria para a dignidade ou “humanidade” dessa pessoa.
Mas, no fim, uma qualquer mãe sempre terá consciência de ter
negligenciado o filho, um pai de ter voltado a beber, uma filha de ter
mentido, pois “os truques
293
que funcionam para os outros de nada valem nessa viela iluminada em que
nos encontramos connosco mesmos”. O respeito próprio tem de estar ligado
a uma certa realização pessoal, por mais modesta que seja. E, quanto mais
difícil o feito, maior o sentimento de orgulho: por exemplo, sente-se mais
orgulho em ter feito a recruta como fuzileiro naval do que em recorrer à
sopa dos pobres. No entanto, em democracia, nós somos fundamentalmente
avessos a dizer que uma certa pessoa, maneira de viver ou actividade é
melhor e vale mais que outra 6. Há um problema suplementar com o
reconhecimento universal, sintetizado na pergunta: “Quem avalia?” Pois
não será que a satisfação decorrente do reconhecimento depende, em grande
parte, da qualidade da pessoa que faz a avaliação? Não é muito mais
gratificante ser reconhecido por alguém
cujo julgamento se respeita do que por muitos que nada sabem? E não será
que as formas de reconhecimento mais elevadas e, portanto, mais
satisfatórias, terão de provir de grupos cada vez mais reduzidos, uma vez
que os mais elevados graus de realização apenas poderão ser julgados por
pessoas realizadas a esse nível? Por exemplo, é naturalmente muito mais
gratificante para um físico teórico ver o seu trabalho reconhecido pelos
melhores físicos do que pela revista Time. E, mesmo que não estejam em
causa formas tão sublimes de reconhecimento, mantém-se crucial a questão
da qualidade desse reconhecimento. Por exemplo, será que o
reconhecimento concedido em razão da cidadania numa grande democracia
contemporânea é, necessariamente, mais gratificante do que o
reconhecimento obtido por pessoas enquanto membros de uma pequena e
unida comunidade agrícola pré-industrial? Embora estes últimos não
tivessem “direitos” políticos, no sentido moderno, eram membros de grupos
sociais pequenos e estáveis, unidos por laços de parentesco, trabalho,
religião, etc., que mutuamente se “reconheciam” e se respeitavam, apesar
de frequentemente sujeitos à exploração e abusos dos seus senhores feudais.
Pelo contrário, os residentes de cidades modernas, que vivem em grandes
blocos de apartamentos, podem ser reconhecidos pelo estado, mas não
passam de estranhos para as muitas pessoas com que eles vivem e
trabalham.
294
Nem todos os homens sentem este impulso, mas, para aqueles que o
sentem, o thymos não lhes permite que se satisfaçam com o mero
entendimento de que são iguais a todos os outros seres humanos.
295
296
desaparece com a aproximação, dando lugar a um outro horizonte. É por
isso que o homem moderno é o último homem, exausto pela experiência da
história e desenganado quanto à possibilidade de uma experiência directa de
valores.
297
Acima desta raça de homens paira um poder imenso e tutelar, que chama
exclusivamente a si assegurar as suas satisfações e zelar pelos seus destinos.
Esse poder é absoluto, minucioso, regular, prudente e moderado. Seria
como a autoridade de um pai se, tal como essa autoridade, o seu objectivo
fosse preparar os homens para a idade adulta; mas, pelo contrário, o que
procura é mantê-los numa infância perpétua; contenta-se com o regozijo
das pessoas desde que estas não pensem senão em se regozijar 14.
Num país tão grande como a América, os deveres dos cidadãos são
mínimos e a pequenez do indivíduo, quando comparada com a grandeza do
país, faz que aquele não se sinta, de modo algum, senhor de si próprio, mas
298
299
300
301
29
Livres e desiguais
ou da paz.
302
que uma pessoa sem pernas não é apenas espiritual, mas fisicamente igual a
outra sem deficiências físicas, então, a seu tempo, a tese desmentir-se-á a si
própria, tal como aconteceu com o comunismo. Isto não é uma
possibilidade que nos deva deixar particularmente reconfortados, uma vez
que a
303
304
meio para aquisição de bens para consumo pessoal. Eles não arriscam as
suas vidas, mas arriscam as suas fortunas, posição social e reputação por
uma certa espécie de glória; trabalham arduamente, abdicando dos
pequenos prazeres em nome de outros mais vastos e intangíveis; muitas
vezes, o seu
305
306
futebol multinacional. Também não é por acaso que, na região mais pós-
histórica dos Estados Unidos, a Califórnia, há uma maior obsessão por
actividades lúdicas de alto risco, sem outro objectivo senão o de abanar o
participante da letargia da sua existência burguesa: escalar rochedos,
praticar
307
asa delta, pára-quedismo acrobático, maratona, triatlo, etc. Sempre que não
sejam possíveis formas tradicionais de luta, como a guerra, e sempre que a
prosperidade material torne a luta económica desnecessária, os indivíduos
“tímicos” buscam outros tipos de actividades sem significado que lhes
possam trazer reconhecimento.
Numa outra das irónicas notas de rodapé das suas conferências sobre Hegel,
Kojève observa que foi obrigado a rever a sua anterior opinião - de que o
homem deixaria de ser humano e regressaria a um estado de animalidade -
depois de ter feito uma viagem ao Japão em 1958 e aí ter tido um romance
de amor. Ele argumentou que, depois da subida ao poder do xógum
Hideyoshi, no século XV, o Japão conheceu, durante centenas de anos, uma
fase de paz interna e externa muito semelhante ao fim da história postulado
por Hegel. Não havia conflito entre as classes mais altas e as mais baixas e
não era necessário trabalhar muito. No entanto, em vez de buscar
instintivamente o amor ou o entretenimento como animais - isto é,
tranformarem-se numa sociedade de últimos homens -, os Japoneses,
através da invenção de uma série de artes formais perfeitamente vazias de
significado, como o teatro Noh, o cerimonial do chá, arranjos florais etc.,
demonstraram ser possível continuarem humanos 2. Um cerimonial de chá
não serve nenhum propósito político ou económico explícito; o seu
significado simbólico perdeu-se mesmo no tempo. Mesmo assim, constitui
um palco para a megalothymia na forma de puro snobismo: existem escolas
que competem, no ensino do cerimonial do chá e dos arranjos florais, com
os seus mestres, noviças, tradições e critérios de melhor e pior. Foi
precisamente o formalismo desta actividade - a criação de novas regras e
valores divorciados de qualquer objectivo útil, exactamente como no
desporto - que levou Kojève a aceitar a possibilidade de continuarem a
existir actividades especificamente humanas mesmo depois do fim da
história.
308
publicamente expressos.
309
30
Direitos perfeitos e deveres imperfeitos
310
311
filhos.
312
313
314
31
Guerras imensas do espírito
quando se enterram nos macios estofos dos seus BMW, sabem, no seu
íntimo, que já houve pistoleiros e senhores que sentiriam um total desprezo
pelas mesquinhas virtudes necessárias para se ser rico e famoso na América
moderna. Resta saber por quanto tempo irá a megalothymia satisfazer-se
com guerras metafóricas e vitórias simbólicas. Suspeita-se que algumas
pessoas só se realizarão quando provarem o que são, precisamente através
desse acto que, no início da história, originou a sua humanidade: arriscar a
vida numa batalha violenta, provando desta forma, sem sombra de dúvida, a
si próprios e aos outros, que são livres. Procurarão deliberadamente o
desconforto e o sacrifício, porque a dor será o único meio de
definitivamente provar que podem pensar bem de si, que continuam
humanos.
Este aspecto do pensamento de Hegel deu azo à acusação de que ele era
militarista. No entanto, a sua glorificação da guerra não era a glorificação
da guerra em si ou como objectivo principal do homem; a importância da
guerra residia nos seus efeitos secundários sobre o carácter humano e sobre
era uma força como nenhuma outra, capaz de levar os homens a darem o
melhor de si mesmos e recordar-lhes que não eram átomos isolados, mas
membros de comunidades erguidas em torno de ideais partilhados. Uma
democracia liberal que pudesse travar uma guerra rápida e decisiva, mais ou
menos em todas as gerações, para defender a sua liberdade e independência
seria muito mais saudável e realizada do que aquela que apenas conhecesse
a paz contínua.
316
Uma tal psicologia pode ser apontada como estando por detrás da
erupção dos événements* franceses de 1968. Os estudantes que tomaram
temporariamente Paris, derrubando o general de Gaulle, não tinham
qualquer razão “racional” para se revoltar, pois eram, na sua maioria, filhos
mimados de
317
Em 1914, a Europa tinha conhecido cem anos de paz desde que o último
e mais importante conflito continental fora resolvido pelo Congresso de
Viena. Esse século tinha assistido ao florescimento de uma moderna
civilização tecnológica à medida que a Europa se industrializava,
civilização essa que trazia consigo uma extraordinária prosperidade
material e a emergência de uma sociedade de classe média. As
manifestações a favor da guerra, que ocorreram nas diferentes capitais da
Europa em Agosto de 1914, podem ser vistas como revoltas contra essa
civilização mediana, segura e próspera, mas vazia de desafios. A crescente
isothymia da vida quotidiana já não era suficiente. A megalothymia
ressurgia em grande escala: não a megalothymia pessoal dos príncipes, mas
de nações inteiras em busca do reconhecimento do seu valor e dignidade.
Na Alemanha, a guerra foi, sobretudo, vista por muitos como uma revolta
contra o materialismo do mundo comercial produzido pela França e pelo
arquétipo da sociedade burguesa, a Grã-Bretanha. É certo que a Alemanha
tinha muitas queixas específicas contra a ordem existente na Europa, desde
a política colonial e naval que era praticada à ameaça da expansão
económica da Rússia. No entanto, ao analisar as justificações alemãs para a
guerra, salta à vista a insistência na necessidade de um tipo de luta sem
objectivo, uma luta que teria efeitos morais purificantes,
independentemente de a Alemanha conquistar colónias ou de ganhar a
liberdade de navegação.
318
Nietzsche de que “a questão decisiva é sempre a disposição para o
sacrifício, e não o objecto do sacrifício”5. O Pflicht, ou dever, não era
entendido como uma questão de interesse próprio ou de obrigação
contratual; era um valor moral absoluto, demonstrativo da força interior e
da superioridade em relação ao materialismo e à determinação natural. Era
o começo da liberdade e da criatividade.
sido debatida até à exaustão e, embora possa ser ilibado das acusações
tacanhas de ter sido o fundador das doutrinas simplistas do nacional-
socialismo, a relação entre o seu pensamento e o nazismo não é acidental.
Tal como aconteceu com o seu seguidor, Martin Heidegger, o relativismo de
Nietzsche destruiu todos os apoios filosóficos que davam consistência à
democracia liberal ocidental, substituindo-a por uma doutrina de força e
319
320
Isto é também válido para a democracia liberal. Não se trata da
incompletude da revolução democrática, quer dizer, do facto de as bênçãos
da liberdade e da igualdade não se terem ainda estendido a todos os povos.
Aristóteles acreditava que a história seria mais cíclica que secular, porque
todos os regimes eram de algum modo imperfeitos e essas imperfeições
levariam as pessoas a um constante desejo de mudar o regime em que
viviam.
321
322
razão, o desejo e o thymos. Mas, mesmo que não fosse possível nos regimes
existentes satisfazer totalmente o homem, o melhor regime oferecia um
padrão pelo qual se poderiam aferir os regimes existentes. O regime que
melhor satisfizesse em simultâneo as três partes da alma era o melhor.
Quando este modelo é comparado com as alternativas históricas
disponíveis, parece ser a democracia liberal a que oferece melhores
perspectivas às três partes. Se não puder ser considerada, “em teoria”, o
regime mais justo, poderá servir, “na prática”, como o mais justo dos
regimes. Como
323
324
que as utilizam, mas apenas o produto das suas posições distintas ao longo
do caminho.
32
5
NOTAS
À GUISA DE INTRODUÇÃO
1 “The End of History”, in The National Interest, vol. 16, 1989, pp. 3-18.
5 Paul Fussell, The Great War and Modern Memory, Nova Iorque,
Oxford University Press, 1975.
6 Este ponto é tocado em Rites of Spring: The Great War and the Birth of
the Modern Age, de Modris Ecksteins, Boston, Houghton Mifflin,1989,
pp.176-191; ver também Fussel,1975,
pp. 18-27.
1977, p. 302.
329
16 Reve1 (1983), p. 17. Não é totalmente claro até que ponto Revel
acreditava nos seus próprios enunciados mais radicais acerca das relativas
forças e fraquezas da democracia e do
Press, 1982.
331
3 Mikhail Heller, Cogs in the Wheel The Formation of Soviet Man, Nova
lorque, Knopf, 1988, p. 30.
332
8 Ibid.
334
3 Ver A República, liv. VII, pp. 543c-569c, e Politica, liv. vlll, pp. 1301a-
1316b.
Nisbet, Socáal Change and History, Oxford, Oxford University Press, 1969.
8 Cit. em Nisbet (1969), p. 104. Ver também Bury (1932), pp. 104-Ill.
335
12 Ibid., p.16
No que respeita a Hegel, nem sequer penso que ele tenha talento. É um
escritor indigesto.
Como mesmo os seus mais ardentes apologistas têm de admitir, o seu estilo
é “inquestionavelmente escandaloso”. Quanto ao conteúdo da sua obra, é
apenas notável na falta de originalidade […] Dedicou, incansavelmente,
mas sem qualquer réstia de brilhantismo, pensamentos e métodos plagiados
a um único propósito: lutar contra a sociedade aberta e, assim, servir o seu
patrão, Frederick William, da Prússia […] De facto, a história de Hegel não
mereceria ser relatada, não fossem as suas consequências mais sinistras, as
quais demonstram como é fácil um palhaço tornar-se “um fazedor de
história. [Karl Popper, The Open Society and Its Enemies, Princeton
University Press, 1950, p. 227.)
17 “Hegel (1956), p. 19
conceito pode ser lido como uma crítica esotérica da prática de então. É
certo que Hegel se opunha a eleições directas e advogava a organização da
sociedade em estados. Mas isso não
336
política, para ser efectiva e significativa, tem de ser medida por uma série
de organizações e associações. Num estado, a cidadania não assenta no
nascimento, mas na profissão, estando aberta a todos. Quanto à questão da
alegada glorificação da guerra por parte de Hegel, ver parte v.
23 Isto quer dizer, entre outras coisas, que os seres humanos não estão
totalmente sujeitos às leis da física que governam o resto da natureza.
Inversamente, muita da ciência natural moderna fundamenta-se na premissa
de que o estudo do homem pode ser integrado no estudo da natureza, dado
que a essência do homem não difere da essência da natureza. Talvez seja
esta premissa a responsável pela incapacidade das ciências sociais em
serem consideradas “ciência”.
24 Ver a discussão de Hegel sobre a natureza mutável do desejo nos
parágrafos 190-195 da Filosofia do Direito.
desconforto para outras épocas e estas descobertas não têm fim. Daí que a
necessidade de um maior conforto não seja algo inato: é-nos sugerido por
aqueles que querem lucrar com isso.” (Sublinhados meus) Filosofia do
Direito, adenda ao parágrafo 191.
27 Sobre alguns destes pontos ver Shlomo Avineri, The Social and Political
Thought of Karl Marx, Cambridge, Cambridge University Fress, 1971.
337
338
339
340
16 Charles Linblom salienta que, nos finais dos anos 70, metade da
população americana trabalhava no sector privado e 13 milhões
trabalhavam para o governo federal, estadual ou
local. Ver a sua obra Politics and Markets: The World’s Political-Economic
Systems, Nova Iorque, Basic Books, 1977, pp. 27-28.
Ver Maurice Meisner, aMarx, Mao and Deng on the Division of Labor in
History”, in Arif Dirlk e Maurice Meisner (eds.), Marxism and the Chinese
Experience, Boulder, Colo., Westview Press, 1989, pp. 79-116.
20 Durkheim realça que o conceito da divisão do trabalho tem sido cada vez
mais utilizado nas ciências biológicas para caracterizar organismos não
humanos e que um dos exemplos
341
342
zado na América do Norte por André Gunder Frank. Ver Osvaldo Sunkel,
“Big Business and “Dependencia”, in Foreign Affairs, vol. 50, 1972, pp.
517-531; Celso Furtado, Economic Development ofLatán America: A
Surveyfrom Colonial Times to the Cuban Revolution, Cambridge,
Cambridge University Press, I970; André Gunder Frank, Latin America:
Underdevelopment or Revolution, Nova Iorque, Monthly Review Press,
I969. Na mesma linha, Theotónio dos Santos, “The Structure of
Dependency”, in American Economic Review, vol. 40, I980, pp. 231-236.
343
civil do que o estado”. “Entrepreneuss and the Transition Process: The
Brazilian Case”, in O’Donnell e Schmitter (1986b), p. 140.
13 Id.
14 Estatísticas de “Taiwan and Korea: Two Paths to Prosperity”, in
Economist, vol. 316, nº 7663, 1990, pp. 19-22.
The Political Economy of the New Asian Industrialism, Ítaca, N. I., Comel
University Press, 1989, pp. 45-83 e 203-226.
24 Hemando de Soto, The Other Path: The Invisible Revolution in the Third
World, Nova Iorque, Harper and Row, 1989, p. 134.
1984, p. 182. Ver também Linz (1979), p. 176. Estes índices de crescimento
eram mais altos do que os dos seis primeiros membros da CE ou do que os
dos nove membros, depois do alargamento inicial da Comunidade, para
períodos comparáveis.
6 Coverdale (1979), p. 1
8 Pye (1990d), p. 8.
11 No infcio dos anos 60, Peter Wiles salientou que a União Soviética
estava a começar a educar a sua élite tecnocrática por critérios mais
funcionais do que ideológicos, o que os
345
anos 90.
346
vol. 4, Latin America, Boulder, Colo., Lynne Reinner, 1988b, pp. 353-358.
347
4 Isto foi referido por Tsvetan Todorov na sua crítica à obra Modernity and
the Holocaust, de Sygmunt Bauman, em The New Republic de 19 de Março
de 1990, pp. 30-33. Todorov salientou correctamente que a Alemanha nazi
não pode ser apresentada como um exemplo de modernidade; ao contrário,
continha elementos modemos e antimodemos, ajudando estes
348
349
6 A comparação entre Hobbes e Hegel é feita por Leo Strauss, The Political
Philosophy of Hobbes, Chicago, University of Chicago Press, 1952, pp. 57-
58. Numa nota, Strauss explica
350
estado liberal moderno e dos direitos humanos liberais foi, assim,
inicialmente construído no universalismo do receio de morte violenta
456a, 465a, 467e, 536c, 547e, 548c, 550b, 553e-553d, 572a, 580d, 581a,
586c-586d, 590b e 606d. Esta caracterização multipartida da natureza
humana teve uma longa história depois de Platão, tendo sido contestada
seriamente pela primeira vez por Rousseau. Ver Melzer (1990), pp. 65-68 e
69.
6 A República, 439c-440a.
9 A República, 440c-440d.
352
Ver Posner, Parting with Illusions, Nova Iorque, Atlantic Monthly Press,
1989.
10 Ver, por exemplo, “East German VIPs Now under Attack for Living
High Off Party Privileges”, in Wall Street Journal de 22 de Novembro de
1989, p. A6.
2 Ver o curto, mas brilhante, ensaio de Joan Didion sobre esta questão, “On
Self-Respect”, in Didion, Sloucháng Towards Bethlehem, Nova lorque,
Dell, 1968, pp. 142-148.
353
inimigo.
9 Ver liv. I, cap. 43, de Discourses, intitulado “Those only who combat
for their own glory are good and loyal soldiers”. Nicolau Maquiavel, The
Prince and the Discourses, Nova Iorque, Modern Library, 1950, pp. 226-
227. Ver também Michael Doyle, “Liberalism and World Politics”, in
American Politica! Science Review. vol. 80, n.” 4, 1986, pp. 1151-1169, e
Mansfield (1989), pp. 137 e 239.
20 De “On the Thousand and One Goals”, in Thus Spoke Zarathustra, liv. I
(em The Portable Nietzsche, Nova Iorque, Viking, 1954), pp. 170-171.
355
8 Sobre estas questões ver Smith (1989a), p. 120, e Avineri (1972), pp.
88-89.
1 Esta frase tem tido várias versões, tais como “O estado é a marcha de
Deus no mundo, isto é o que o estado é” ou “O caminho de Deus no mundo,
isso deve ser o estado”. Da adenda ao parágrafo 258 da Filosofa do Direito.
356
4 Todos estes termos têm origem na ciência social moderna, numa tentativa
de definir os “valores” que tornam possíveis as democracias liberais
modernas. Segundo Daniel Lerner, por exemplo, “Neste estudo, a hipótese
mais importante é a de que uma capacidade de elevada empatia só é uma
característica pessoal predominante na sociedade moderna, nitidamente
357
Martinho Lutero. Ver Samuel Huntington, “Religion and the Third Wave”,
in The National Interest, vol. 24, 1991, pp. 29-42.
House assinalava em 1984 que vinte e um “não eram livres”, quinze eram
“parcialmente livres” e nenhum era “livre”. De Huntington (1984), p. 208.
10 Ver a discussão sobre a Costa Rica em Harnson (1985), pp. 48-54.
17 Sobre esta questão geral ver de novo Diamond et al. (1988b), pp. 19-
27. O estudo académico da política comparativa até ao fim da segunda
guerra mundial privilegiava o direito constitucional e as doutrinas judiciais.
Sob a influência da sociologia continental, a “teoria da modernização” do
pós-guerra ignorou a lei e a política, atendendo quase exclusivamente aos
factores económicos, culturais e sociais subjacentes para explicar as origens
e o sucesso da democracia. Nas últimas décadas tem-se assistido a um
retorno à perspectiva inicial, associada a Juan Linz, da Universidade de
Yale. Embora não negue a importância dos factores económicos e culturais,
Linz e os seus colegas salientaram a autonomia e a dignidade da política,
colocando-a num plano mais equilibrado com o da realidade subpolítica.
358
feito à imagem de Deus, que trabalhou para criar o mundo, mas é também
um castigo para o homem, por ter caído em pecado. Diz-se que a essência
da “vida eterna” não é o trabalho, mas “o descanso eterno”. Ver Jaroslav
Pelikan, “Commandment or Curse: The Paradox of Work in the Judeo-
Christian Tradition”, in Pelikan et al., Comparative Work Ethics, Judeo-
Christian, Islamic, and Eastern, Washington, D. C., Library of Congress,
1985, pp. 9 e 19.
6 Este ponto de vista foi também sustentado por Locke, que vê o trabalho
como um simples meio de produzir objectos de consumo.
Eis algumas das criticas à tese de Weber: R. T. Tawney, Religion and the
Rise of Capitalism, Nova Iorque, Harcoun, Brace and World, 1962; Kemper
Fullerton, “Calvinism and Capitalism”, in Harvard Theological Review,
vol. 21,1929, pp.163-191; Emst Troeltsch, The Social Teaching of the
Christáan Churches, Nova Iorque, Macmillan, 1950; Wener Sombart, The
Quintessence of Capitalism, Nova Iorque, Dutton, 1915; e H. H. Robertson,
Aspects of the Rise of Economic Individualism, Cambridge, Cambridge
University Press, 1933. Ver também a discussão de Weber em Strauss
(1953), nota 22, pp. 60-61. Strauss salienta que a Reforma foi precedida por
uma revolução no pensamento filosófico racional, que também
Quanto a isto, ver David Gellner, “Max Weber, Capitalism and the Religion
of India”, in
360
Hour Week Is Part Time for Those on the Fast Track”, in Los Angeles
Times de 22 de Março de 1990, parte T, p. 8. Agradeço estas referências a
Doyle McManus.
1 Para uma discussão mais alargada deste tópico ver Roderick McFarquhar,
“The Post-Confucian Challenge”, in The Economist de 9 de Fevereiro de
1980, pp. 67-72; Lucian Pye, “The New Asian Capitalism: A Political
Portrait”, in Peter Gerger e Hsin-Huang Michael Hsiao (eds.), In Search of
an East Asian Development Model, New Brunswick, H. J., Transaction
Books, 1988, pp. 81-98; e Pye (1985), pp. 25-27, 33-34 e 325-326.
4 Isto não é fortuito; Locke defende os direitos das crianças contra certas
formas de autoridade paterna em Second Treatise.
361
1959.
8 Para uma versão deste argumento ver Samuel Huntington, “No Exit: The
Errors of Endism”, in The National Interest. vol. 17, 1989, pp. 3-11.
10 Sobre esta questão ver Waltz (1979), pp. 70-71 e 161-193. Em teoria, um
sistema multipolar, tal como o clássico concerto europeu das nações, traria
mais vantagens do que
um sistema bipolar, uma vez que qualquer desafio ao sistema poderia ser
equilibrado por uma rápida mudança de alianças; além disso, e porque o
poder está mais genericamente
362
distribuído, as mudanças no limiar de um equilíbrio tornam-se menos
decisivas. No entanto, isto funciona melhor num mundo dinástico, em que
os estados são perfeitamente livres de
pp. 78-79, e “The Prestige and Power of the `Great Powers’”, pp. 159-160.
States, and World Orders”, in Robert O. Keohane (ed.), Neorealism and Its
Critics, Nova Iorque, Columbia University Press, 1986, pp. 213-216. Ver
também George Modelski, “is
363
8 Id., ibid., p. 5.
13 Algumas destas questões foram levantadas por John Mueller no seu livro
Retreat from Doomsday: The Obsolescence of Major War, Nova Iorque,
Basic Books, 1989. Mueller salienta o desaparecimento da escravatura e
dos duelos como exemplos de práticas sociais duradouras abolidas no
mundo moderno e sugere que as guerras importantes entre países
desenvolvidos poderão ter o mesmo fim. Mueller tem razão ao salientar
estas mudanças, mas, como nota Carl Kaysen (1990), elas são apresentadas
como fenómenos isolados que ocorrem fora do contexto geral da evolução
social humana dos últimos séculos. As abolições da escravatura e da prática
de duelos encontram a sua raiz comum na abolição da relação
domínio/servidão, originada pela Revolução Francesa, e na conversão do
desejo de reconhecimento do senhor no reconhecimento racional do estado
homogéneo e universal. No mundo moderno, a prática do duelo é um
resquício da moralidade do senhor, demonstrativo da sua disposição para
arriscar a sua vida numa batalha sangrenta. A causa primeira para o declínio
secular da escravatura, da prática do duelo e da guerra é a mesma, isto é, o
advento do reconhecimento racional.
pp. 42-64.
pp. 27-71.
364
365
7 A francofilia da aristocracia russa talvez constitua um exemplo extremo,
mas em quase todos os países existiam diferenças pronunciadas na língua
falada pela aristocracia e pelo campesinato.
tiranias.
2 Para uma descrição de uma politica externa não realista ver Stanley
Kober, ” Idealpolitik”, in Foreign Policy. n ” 79, 1990, pp. 3-24.
5 Para uma opinião de que o próprio Kant não considerava a paz perpétua
um projecto prático, ver Kenneth Waltz, “Kant, Liberalism, and War”, in
American Political Science Review, vol. 56, 1962, pp. 331-340.
7 Ibid., p. 98.
9 É claro que o GATT não exige que os seus membros sejam democracias,
mas tem critérios rigorosos quanto ao liberalismo das suas políticas
económicas.
p. 1.
367
Books, 1966, aforismos 46, 50, 51, 199, 201, 202, 203, 229.
3 Ver Beyond Good and Evil, aforismo 260; ver também o aforismo 260
a respeito da vaidade e do reconhecimento do “homem vulgar” nas
sociedades democráticas.
7 Ver, por exemplo, Beyond Good and Evil, aforismos 257 e 259.
368
de jornais”. “Science as a Vocation”, in From Max Weber: Essays in
Scoiology, Nova Iorque, Oxford University Press, 1946, p. 143.
15 Ibid., p. 45.
369
4 Para uma discussão desta questão ver Thomas Pangle, “The Constitution’s
Human Vision”, in The Public Interest, vol. 89, 1987, pp. 77-90.
Por outro lado, Kojève sugere que o fim da história significará o fim de
todas as grandes disputas e, por isso, da necessidade de luta. Não é clara a
razão por que Kojève assume esta posição tão anti-hegeliana. Ver Smith
(1989a), p. 164.
2 Bruce Catton, Grant Takes Command, Boston, Little, Brown, 1986, pp.
491-492.
6 Ver Twilight of the Idols,1986a, pp. 56-58; Beyond Good and Evil, Nova
Iorque, Vintage Books, 1966, p. 86; e Thus Spoke Zarathoustra, em The
Portable Nietzsche, 1954, pp. 149-151.
370
B IB LIOGRAFIA
ALmorrn, Gabriel A., e Sidney Verba, 1963, The Civic Culture, Boston,
Little, Brown.
AvuvERi, Shlomo, 1968, The Social and Political Thought of Karl Marx,
Cambridge, Cambridge University Press.
RaEL, Jeremy, 1987, The Soviet Civilian Leadership and the High
Command,1976-1986,
BAssT, Dean V., 1972, “A Force for Peace”, in Industrial Research, vol. 14,
pp. 55-58.
Praeger. q,
vol. 68, pp. 49-70. BELL, Daniel, 1967a, “Notes on the Post-Industrial
Society I”, in The Public Interest, n.o 6,
pp. 24-35.
pp. 102-118.
BELL, Eric Temple, 1937, Men of Mathematics, Nova Iorque, Simon &
Schuster.
373
University Press.
BLooM, Allan, 1987, The Closing of the American Mind: How Higher
Education Has Failed
Schuster.
CArroN, Bruce, 1968, Grant Takes Command, Boston, Little and Brown.
CHERRINGTON, David J., 1980, The Work Ethic’ Working Values and
Values that Work, Nova
Iorque, Amacom.
on Foreign Relations.
Praeger.
374
CusTtNE, marquês de, 1951, Journeyfor Our Time, Pelegrini and Cudahy,
Nova Iorque.
Africa.
DEYo, Frederic C. (ed.), 1987, The Political Economy of the New Asian
Industrialism, Ítaca,
DWLIK, Arlf, e Maurice Meisner (eds.), 1989, Marxism and the Chinese
Experience Issues
Praeger.
DOYLE, Michael, 1983a, “Kant, Liberal Legacies, and Foreign Affairs I”,
in Philosophy and
DOYLE, Michael, 1983b, “Kant, Liberal Legacies, and Foreign Affairs II”,
in Philosophy and
D< xIIEIM, Emile, 1964, The Division of Labor in Society, Nova Iorque,
Free Press.
ExsTEINs, Modris, 1989, Rites of Spring: The Great War and the Birth of
the Modern Age,
ErsrEnv, David F., 1984, The Political Theory of the Federalist, Chicago,
University of
Chicago Press.
375
FussEt.I., Paul, 1975, The Great War and Modern Memory, Nova Iorque,
Oxford University
Press.
GADDIS, John Lewis, 1986, “The Long Peace: Elements of Stability in the
Postwar International Situation”, in International Security, vol. 10, n ” 4, pp.
99-142.
Press.
pp. 33-35.
Mass., Adddison-Wesley.
376
HARxAsI, Yehoshafat, 1988, “Directions of Change in the World Strategic
Order: Comments
Strategic Studies.
pp. 54-89.
HAVEL, Václav, et. al., 1985, The Power of the Powerless, Londres,
Hutchinson.
Publications, Inc.
University Press.
Knopf.
pp. 24-26.
Hor MAN, Stanley, 1965, The State of War, Nova Iorque, Praeger.
University Press.
HouGH, Jerry, com Merle Fainsod, 1979, How the Soviet Union is
Governed, Cambridge,
HuNrrNGroN, Samuel P., 1991, <iReligion and the Third Wave”, in The
National Interest,
University Press.
Publishers.
KAssor F, Allen (ed.), 1968, Prospects for Soviet History, Nova Iorque,
Council on Foreign
Relations.
KosER, Stanley, 1990, “Idealpolitik”, in Foreign Policy, n.” 79, pp. 3-24.
University Press.
377
McKIBBEN, Bill, 1989, The End of Nature, Nova Iorque, Random House.
MELzER, Arthur M., 1990, The Natural Goodness of Man. On the System
of Rousseau’s
pp. 166-184.
Press.
Basic Books.
Viking Press.
Bobbs Merrill.
NIE rzscHE, Friedrich, 1967, On the Genealogy of Morals and Ecce Homo,
Nova Iorque, trad.
Press.
378
Press.
pp. 77-90.
PARsoNs, Talcott, 1951, The Social System, Glencoe, I11., Free Press.
University Press.
PLATno, 1968, The Republic, Nova Iorque, trad. A. Bloom, Basic Books.
POPPER, Karl, 1950, The Open Society and Its Enemies, Princeton, N.
J., Princeton University
Press.
PvE, Lucian W., 1985, Asian Power and Politics: The Cultural
Dimensions of Authority,
PvE, Lucian W., 1990b, “Tiananmen and Chinese Political Culture. The
Escalation of Confrontation”, in Asian Survey, vol. 30, n.” 4, pp. 331-347.
i pp. 99-103.
379
RosE, Michael, 1985, Re-working the Work Ethics: Economic Values and
Social Cultural Politics, Nova lorque, Schocken Books.
na 4, pp. 75-91.
Books.
Brothers.
SmITH, Adam,1976, An Inquiry into the Nature and Causes ofthe Wealth
ofNations, 2 vols.,
SMITH, Steven B., 1983, “Hegel’s Views on War, the State, and
International Relations”, in
380
Rand McNally.
SuNxEL, Osvaldo, 1972. “Big Business and `Dependencia’”, in Foreign
Affairs, vol. 50,
pp. 517-531.
World.
Ttrrs, Dean C., 1973, “Modemization Theory and the Comparative Study of
Societies: A
Macmillan.
Press.
WALRZ, Kenneth, 1959, Man, the State, and War: A Theoretical Analysis,
Nova Iorque,
WEBER, MaX, 1930, The Protestant Ethic and the Spirit of Capitalism,
Londres, Allen &
WEBER, MaX, 1946, From Max Weber: Essays in Sociology, Nova Iorque,
Oxford University
Press.
WEBER, Max, 1947, Max Weber¨ The Theory of Social and Economic
Organization, Nova
End of Modemity”, in Western Political Quarterly, vol. 26, n.o 1, pp. 109-
129.
381
in Greece, Italy, Spain and Portugal, Nova Iorque, Harper and Row.