A Mentira Envenena - Ronilda Iyakemi

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RESUMO ESTENDIDO

A mentira envenena o sangue do mentiroso.


Dinamismo psíquico e fidelidade à palavra
no âmbito da religião iorubá

Ronilda Iyakemi Ribeiro1

Rodrigo Ribeiro Frias2

Eduardo Ribeiro Frias3

Apoiados em conhecimentos advindos da Psicologia, da Antropologia e de fontes


originárias do saber iorubá, ensaiando movimentos pró diálogo da Psicologias com o
Saber Tradicional Iorubá (negro-africano), o tema por nós abordado beneficia-se da
adoção de uma perspectiva etnopsicológica, fundamentada na contribuição teórico-
metodológica de Pichón-Rivière e seguidores.

No presente contexto retomamos temas abordados em publicações anteriores


(RIBEIRO; SÀLÁMÌ; DIAZ, 2004 e RIBEIRO; SÀLÁMÌ, 2008; FRIAS, E. R., 2015; FRIAS,
R. R., 2015), resultantes de anos de diálogo com Sikiru Sàlámì, doutor em Sociologia e
babalorixá nigeriano (iorubá) e com Ricardo Borys Córdova Diaz, babalaô cubano,
Ogunda Leni em Ifá. Nós brasileiros, autores deste texto, falamos apoiados em
conhecimentos advindos da Psicologia, da Antropologia e de fontes originárias do saber
iorubá. O diálogo estabelecido com os referidos sacerdotes e o diálogo estabelecido entre
os autores deste texto beneficiam-se do fato de compartilharmos conhecimentos e
convicções brotados da mesma fonte: o Corpus Literário de Ifá, imenso acervo da
sabedoria iorubá, zelosa e carinhosamente preservado por babalaôs africanos ao longo
de milhares de anos, através da longa cadeia de tradição oral. Os ensinamentos, assim
preservados, foram trazidos para os países da diáspora africana.

1
Docente e pesquisadora. Universidade de São Paulo e Universidade Paulista.
2
Doutorando Psicologia Social. Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.
3
Docente e pesquisador. Universidade Paulista.

X Seminário de Psicologia e Senso Religioso, Curitiba, PUCPR, 2015.


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A perspectiva etnopsicológica de Pichón-Rivière subsidia a compreensão do tema aqui
abordado e reconhecemos que a adoção de uma perspectiva etnológica em psicologia
exige a capacidade de articular mais de um ECRO, Esquema Conceitual Referencial
Operativo - esquema de conceitos que serve de referencial para a leitura da realidade e a
partir do qual se opera sobre ela.

Grande é o desafio de compreensão do que seja o povo brasileiro, com sua alma
mestiça, suas diversas matrizes étnico-raciais, seu rico simbolismo. Primeiro colocado em
população negra fora da África, nosso país exige, para compreensão das identidades
individuais e coletivas, um conhecimento da sabedoria tradicional africana, pois muito do
que podemos chamar ECRO brasileiro acha-se constituído de elementos trazidos por
africanos: suas concepções de tempo, espaço, universo e pessoa, cujo conhecimento
pode favorecer a ação psi. Das muitas possibilidades de leitura negro-africana da
realidade elegemos a dos iorubás, cujo território de origem estende-se pelos países
Nigéria, Togo e República do Benin, e que marca forte presença na constituição
demográfica, social, cultural e religiosa do povo brasileiro.

Para os africanos o mundo visível manifesta um mundo invisível. O sagrado permeia


todos os setores da vida, sendo impossível distinguir nitidamente o espiritual do material
nas atividades cotidianas. Uma força, poder ou energia permeia tudo e o valor supremo é
a força vital, não apenas física, que entre os iorubás é denominada axé.

Os iorubás consideram a pessoa constituída de partes que estabelecem relações entre


si e com forças naturais, sociais e cósmicas. Dessas partes, somente o corpo físico (ará) -
é visível. As demais partes (ojiji, okan, emi e Ori) são invisíveis. Consideram, ainda, na
constituição do humano, alguns elementos extrínsecos (egbé, ojó e ilê). As limitações
próprias desta publicação impossibilitam a exposição pormenorizada desses
componentes humanos. No entanto, para nós psicólogos, é interessante particularizar
detalhes sobre a compreensão iorubá de dinamismo psíquico: ele envolve, basicamente,
três instâncias: Ori, ori e iwá.

O sentido literal de ori é cabeça. Ribeiro, R. I. (2015) vem sugerindo a adoção de dois
modos de grafia dessa palavra: com letra inicial minúscula (ori) quando se faz referência à
cabeça física e maiúscula (Ori) quando se faz referência ao Orixá Ori, divindade pessoal,
equivalente, mantidas as devidas proporções, àquilo que conhecemos por Self ou Eu

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Superior. Considerado uma divindade, Ori é cultuado, recebe oferendas e orações, pois
se Ori inu (cabeça interior) estiver bem o homem estará em boas condições. Segundo
narram os mitos, ori, cabeça física, é modelado por Oxalá e Ijalá. Oxalá é a divindade que
foi incumbida pelo Ser Supremo de criar a terra sólida, povoá-la e modelar a forma física
do homem.

Iwá é o conceito iorubá que sintetiza o que chamamos de caráter, personalidade,


atitudes e comportamentos. A educação e a religião têm por meta formar omoluwabi,
pessoas de iwá bem desenvolvido, o que implica, necessariamente, na formação de
indivíduos solidários. As pessoas podem ser iwapelé, dotadas de bom iwá ou iwabuburú,
dotadas de mau iwá. Os iwapelé, reverentes, serenos, responsáveis, pacientes,
equilibrados e harmoniosas, são chamados alakoso: onde quer que estejam favorecem
bons acontecimentos à sua volta. Indispensável dizer que os iwabuburú são exatamente o
contrário disso tudo. Diz o ditado: Iwá re ni o nse e! Teu iwá proferirá sentença contra ti!
(ou em teu favor).

Como cada ori pode ser rere (ori de sorte, bom ori) ou buruku (ori de azar, mau ori), as
dinâmicas psicossociais resultam da interação entre ori rere ou ori buruku com iwápelé ou
iwábuburu, em todas as possibilidades combinatórias desses fatores.

Um olori buruku (portador de um mau ori) pode ter suas condições atenuadas pelo fato
de ser iwápelé, isto é, uma pessoa “azarada” pode ter boas chances de progresso caso
seja dotada de bom iwá e discipline a si mesma no sentido de proceder corretamente. Por
outro lado, um olori rere, (portador de um bom ori) poderá ver-se prejudicado pelo próprio
iwá se ela for iwábuburu, ou seja, pode estragar as próprias oportunidades de progresso
em decorrência de ações incorretas. Ori rere é mantido e fortalecido por iwápelé ou
prejudicado por iwábuburu. Não há ritual que isente de obedecer às regras do código
ético moral estabelecido.

No contexto iorubá, de tradição oral, à palavra é conferida origem divina, nela se


reconhece um poder sagrado, criador, capaz de preservar e destruir. Hampate Bâ (1982),
referindo-se às sociedades orais, assinala que nessas sociedades é muito forte o vínculo
estabelecido entre o homem e a palavra por ele enunciada: o homem permanece ligado à
palavra que profere. A tradição africana concebe a fala como um dom de Deus. Divina no
sentido descendente e sagrada no sentido ascendente, materializa ou exterioriza as

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vibrações das forças. A fala humana, eco da fala divina, pode colocar em movimento
forças latentes nos seres e objetos, como um homem que levanta e se volta ao ouvir seu
nome. É, por essa razão, o grande agente ativo da magia africana (p. 186). Sendo o
universo visível concebido e sentido como a concretização ou envoltório de um universo
invisível constituído de forças em perpétuo movimento, a ação mágica (manipulação das
forças) geralmente almeja restaurar o equilíbrio perturbado e restabelecer a harmonia.

Naturalmente, o poder da palavra de um homem depende de como ele utiliza sua fala.
O poder criador e operativo da palavra encontra-se em relação direta com a conservação
ou com a ruptura da harmonia no homem, no mundo que o cerca e na relação entre o
homem e o mundo. Por isso a mentira é considerada uma verdadeira lepra moral. Dizem
os adágios (Hampate Bâ, 1982, p. 182): A língua que falsifica a palavra envenena o
sangue daquele que mente; aquele que corrompe sua palavra corrompe a si próprio;
cuida-te para não te separares de ti mesmo: é melhor que o mundo fique separado de ti
do que tu separado de ti mesmo.

Quando alguém pensa uma coisa e diz outra, separa-se de si mesmo, rompe a unidade
sagrada, reflexo da unidade cósmica. Cria desarmonia ao redor de si e em seu próprio
interior. A relação homem-palavra, em que a mentira não tem lugar, é particularmente
enfatizada quando se trata de transmitir palavras herdadas de ancestrais ou de pessoas
idosas, na corrente de transmissão oral. O tradicionalista é disciplinado interiormente,
preparado para jamais mentir, considerado senhor das forças que o habitam. Ao seu
redor as coisas se ordenam e as perturbações se aquietam (HAMPATE BÂ, 1982, p. 182).

Disciplinar a palavra significa, também, não utilizá-la imprudentemente. Se constitui a


exteriorização das vibrações de forças interiores, inversamente, a força interior nasce da
interiorização da fala. O grau de evolução de um adepto no Komo, por exemplo, não é
medido pela quantidade de palavras que conhece e sim pela conformidade de sua vida a
tais palavras. (HAMPATE BÂ, 1982, 1982)

Assinala Leite (1992) a existência de duas grandes modalidades da palavra: a


exotérica, de domínio mais extenso e comum, ligada aos processos menos complexos de
socialização e a esotérica, de domínio restrito aos nela iniciados, que atinge os mais
elevados níveis de conhecimento e abstração.

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A noção iorubá de pessoa, de caráter holístico, supõe saudável o indivíduo que, de
modo solidário, realiza o próprio destino. Supõe também a saúde psíquica associada a
uma indispensável solidariedade entre os diversos homens no Homem e entre os diversos
componentes – visível e invisíveis de sua constituição. Através do conhecimento de
aspectos de seu ipin Ori, ou seja, dos desígnios de seu destino pessoal, a pessoa define
os passos de sua caminhada, respeitando os valores fundamentais do grupo a que
pertence.

O homem íntegro, omoluwabi, busca harmonizar, gradual e crescente, a dinâmica


estabelecida entre Ori, ori e iwá e, para isso, trata de fazer bom uso de sua palavra.

Palavras-chave: iorubás; etnopsicologia; psicologia e religião; palavra.

Referências

Frias, Eduardo Ribeiro; Ribeiro, Ronilda Iyakemi. A professora destruiu minha pulseira de
Orixá e todo mundo riu. O psicólogo escolar diante da discriminação religiosa. II
Seminário - Psicologia, Religião e Direitos Humanos (13.06.2015), São Paulo, CRPSP,
2015.
Frias, Eduardo Ribeiro. Ótica negro-africana (iorubá) na formação em Psicologia Escolar e
Educacional. São Paulo, CRPSP, III Seminário - Na fronteira da Psicologia com Saberes
Tradicionais - técnicas e práticas (25.09.2015), São Paulo, CRPSP, 2015.
Frias, Rodrigo Ribeiro. Matriz iorubá da religiosidade afro-brasileira: levantamento de
teses e dissertações de Psicologia abrigadas pela Universidade de São Paulo. São Paulo,
CRPSP, II Seminário - Psicologia, Religião e Direitos Humanos (13.06.2015), São Paulo,
CRPSP, 2015.
Frias, Rodrigo Ribeiro. Psicologia, concepção iorubá de pessoa e religiosidade afro-
brasileira: diálogo possível. São Paulo, CRPSP, III Seminário - Na fronteira da Psicologia
com Saberes Tradicionais - técnicas e práticas (25.09.2015), São Paulo, CRPSP, 2015.
Hampate Bâ, Hamadou. A tradição viva. In: História Geral da África: Metodologia e pre-
história da África. São Paulo: Ática; [Paris]: UNESCO, 1982. Páginas 181-218.
Lasch, Cristopher. A cultura do narcisismo: a vida americana numa era de esperanças em
declínio. Rio de Janeiro: Imago, 1983.
Noronha, Marcos. La aproximación de la Psicología a la Etnología: producto y historia (II).
Rev. Psiquiatría Fac. Med. Barna, 21,1, 16-22, 1994.
Pichón-Rivière, Enrique. El proceso grupal: del psicoanalisis a la psicología social. Buenos
Aires: Nueva Visión, 1977.

X Seminário de Psicologia e Senso Religioso, Curitiba, PUCPR, 2015.


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Ribeiro, Ronilda Iyakemi. Alma Africana no Brasil. Os iorubás. São Paulo: Oduduwa,
1996.
Ribeiro. Ronilda Iyakemi. Por uma psicoterapia inspirada na sabedoria iorubá. São Paulo,
CRPSP, III Seminário - Na fronteira da Psicologia com Saberes Tradicionais - técnicas e
práticas (25.09.2015), São Paulo, CRPSP, 2015.
Ribeiro, Ronilda Iyakemi, Sàlámì, Sikiru, Diaz, Ricardo Borys Córdova. Por uma
psicoterapia inspirada nas sabedorias negro-africana e antroposófica. In: Angerami,
Valdemar Augusto (org.). Espiritualidade e Prática Clínica. São Paulo: Thomson, 2004, pp
85-110.
Ribeiro, Ronilda Iyakemi; Sàlámì, Sikiru. King. Omoluwabi, Alakoso, teu caráter proferirá
sentença a teu favor! Valores pessoais e felicidade na sociedade iorubá. In Angerami,
Waldemar Augusto (org.). Psicologia e Religião. São Paulo: Cengage Learning, 2008.
Sàlámì, Sikiru; Ribeiro, Ronilda Iyakemi. Exu e a ordem do universo. 2. Ed. São Paulo:
Oduduwa, 2015.

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