14 Texto Exus e Pombas Giras
14 Texto Exus e Pombas Giras
14 Texto Exus e Pombas Giras
ANDRADE JUNIOR, Lourival. Exus, Pomba-giras e Pretos Velhos: o cemitério como espaço
sagrado de pertencimento.
Diálogos
2177-2940
mas isso não foi simples, nem tão pouco inquestionável. A Umbanda nascida a partir de Zélio
Fernandino de Moraes e que se espalhou por todo o país, estava assentada em práticas muito mais
próximas de um kardecismo à brasileira permeada de crenças católicas. No início da Umbanda
houve toda uma tentativa de branquear seus rituais e de aproximar a religião de uma cientificidade
desejada no início do século passado, buscando abandonar qualquer relação entre as macumbas e
feitiços tão combatidos pelos poderes políticos e científicos, sobretudo a partir das instituições
republicanas. A Umbanda não queria estar na lista das práticas atrasadas e vistas como selvagens.
Um dos responsáveis em buscar esta mudança de olhar da sociedade em relação a Umbanda,
foi o intelectual, poeta e jornalista Leal de Souza, que em plena ditadura Vargas, em 1932, começou
a publicar artigos em jornais cariocas discutindo a Umbanda e suas diversas formas de relação com
o sagrado. Vale salientar que Leal de Souza foi formado como umbandista no Centro Espírita Nossa
Senhora da Piedade, fundado por Zélio Fernandino de Moraes, tornando-se um dos primeiros pais
de santo nascidos na Umbanda e sendo responsável por seu próprio terreiro, o Centro Espírita Nossa
Senhora da Conceição.
Buscando aproximar a Umbanda do espiritismo kardecista e do catolicismo, Leal de Souza
foi o primeiro a propor uma codificação, “ou melhor, foi o primeiro a tentar definir, em diversos
artigos, o que era umbanda, ou o que viria a ser no futuro esse outro lado que já denominava de
‘linha branca de umbanda’ e demanda’” (TRINDADE, 2010, p. 21). Até aquele momento o que
havia era um entendimento equivocado de que tudo era macumba, termo utilizado de forma
pejorativa para as práticas mediúnicas e com características estranhas ao mundo cristão
conservador. Leal de Souza, entre outros intelectuais umbandistas, contribuíram para forjar um tipo
de Umbanda mais branca e com forte influência cristã. Mas, não podemos deixar de citar outros
umbandistas que caminharam por outras direções de entendimento desta religião, entre eles,
Tancredo da Silva Pinto, o Tatá Tancredo.
Escritor, compositor, sambista e pai de santo, Tatá Tancredo (Tati Tí Ínkice Tancredo de
Oxossi) tornou-se uma voz ativa contrária ao branqueamento da Umbanda e a tentativa de
dessafricanização da religião, sobretudo a partir dos discursos proferidos no I Congresso de
Espiritismos de Umbanda no Rio de Janeiro em 1941. Segundo Tatá Tancredo a “Umbanda é
africana, é um patrimônio da raça negra” (FREITAS e PINTO, 1957, p. 58). Na sua defesa de uma
Umbanda africanizada, Tatá Tancredo afirmava que “terreiro de Umbanda que não usar tambores e
outros instrumentos rituais, que não cantar pontos em linguagem africana, que não oferecer
sacrifício de preceito e nem preparar comida de santo, pode ser tudo, menos Terreiro de Umbanda.”
(KLOPPENBURG, 2005, p. 41).
Indiscutivelmente Tatá Tancredo buscava a origem da Umbanda na cultura religiosa banta,
identificada com as Inquices e com o culto aos mortos. Ou seja, a sua Umbanda, que será conhecida
como Omolocô, termo da língua banta quimbundo que significa “juramento” (LOPES, 2012, p.
192), redefinia a religião nascida com o intuito de combinar o kardecismo e o catolicismo numa
mesma prática, e a aproximava de uma ancestralidade africana sulsaariana, incômoda para muitos,
mas reforçada pelo próprio hibridismo que fez da Umbanda uma religião tão dinâmica e em
constante transformação.
A tentativa de mostrar que na formação da Umbanda não há consensos fáceis, é justamente
para estabelecer uma ponte, na verdade diversos caminhos possíveis, para se entender suas variadas
formas de culto. As tentativas de codificação nunca obtiveram a sua completa aceitação, nem tão
pouco conseguiríamos encontrar nos milhares de terreiros espalhados pelo Brasil e em outros países
do mundo, como Portugal, Alemanha, Inglaterra e Japão, uma forma unificada de culto. A
Umbanda é diversa e constantemente recebendo novas possibilidades de ritual. Mas uma questão é
determinante para que, independentemente da forma como ocorre a ritualística no terreiro, seja
Umbanda: o trabalho com entidades.
Umbanda Branca, Umbanda Pura, Umbanda Popular, Umbanda Tradicional, Umbanda
Esotérica ou Iniciática, Umbanda Trançada ou Mista, Omolocô, Umbanda de Caboclo, Umbanda de
Jurema, Umbandaime, Umbanda Eclética, Umbanda Sagrada ou Natural, Umbanda Cristã,
Umbandomblé e Umbanda de Almas e Angola, todas tem em comum os espíritos desencarnados
que atuam a partir da incorporação de médiuns que se preparam para esta missão religiosa. Não há
Umbanda sem suas entidades, também conhecidas como guias. São elas que ditam as regras do
próprio culto e de todos os passos que devem ser tomados pelos participantes umbandistas. Tipos de
oferendas e locais onde devam ser depositadas, pontos cantados e riscados, obrigações religiosas,
regras morais e de convivência, hierarquia, dinâmica do terreiro, entre outras questões, são ditadas
por elas. Suas participações na vida do terreiro e dos seguidores da Umbanda são indispensáveis.
Até mesmo na origem da Umbanda com Zélio Fernandino de Moraes, que não tinha como prática o
uso da fumaça e de guias (colares rituais), foi alterada a partir da incorporação em Zélio do preto-
velho Pai Antônio, que exigiu um cachimbo e guias para si e para os outros espíritos que faziam
parte do ritual no Centro Espírita Nossa Senhora da Piedade. Houve certo desconforto, com certeza,
mas se a entidade pediu, não haveria como negar, visto ser ela a detentora de conhecimento
espiritual inquestionável.
O panteão umbandista é formado por uma infinidade destas entidades espirituais, que
incorporam em médiuns (cavalos) e que através de seu corpo e sua fala, dialogam e estabelecem
relações entre os vivos e os mortos. O cavalo é o receptáculo que dará movimento e voz e estes
espíritos desencarnados. Cada um com suas características específicas, formam um conjunto
A constante incorporação de entidades a este panteão, faz da Umbanda uma religião vista
como inclusiva, já que não faz distinção entre as qualidades, ou a falta delas, de suas entidades. A
morte e o retorno como espíritos, de certa forma, purga um passado vivido, dando a oportunidade
de redenção deste espírito retornado ao mundo dos vivos. O presente vivido na gira serve para que
estes guias possam utilizar seu conhecimento do mundo dos vivos e do mundo dos mortos para
ajudar quem os procura, da mesma forma que serve como catalizador de energias positivas para
seus médiuns, seus cavalos. Pelo menos é o que se espera.
A depender da entidade, podemos perceber nas giras, comportamentos observáveis em todos
nós com a diferença de que estamos vivos e elas não. Nos aproximamos por identificação e
curiosidade. Obviamente que na performance das entidades, por estarem no seu ambiente ritual, se
apresentam como melhor lhes convier ou ainda, da melhor maneira que gostariam de ser
identificadas e reconhecidas. Beber com os consulentes é uma dessas pontes. Entregar doces dados
por uma entidade criança é outra. Oferecer frutas benzidas pelos caboclos também. Materializar o
contato e estabelecer empatias são formas de aproximação e de confiança compartilhadas. Tudo isso
sem perder o respeito, visto as entidades serem consideradas superiores aos mortais, por já terem
superado aquilo que ainda estamos vivenciando.
Na Umbanda o corpo do médium deve estar a serviço dos guias espirituais e sua
performance, também estabelecendo um diálogo visual absolutamente compreensível para quem
assiste o ritual. O corpo é a uma casa que recebe muitos espíritos e se comporta conforme seus
desígnios, multiplicando seu repertório de gestos, falas, movimentos e comportamentos a cada
entidade que se apresenta.
Desde a primeira incorporação, o corpo do pai ou mãe de santo passará a ser vários, irá se transformar
continuamente e viver diversos padrões de corporeidade: da criança ao velho, do malandro ao boiadeiro ou
vaqueiro, do índio ao preto velho, ao cigano, do exu à pomba gira, à mulher de sexualidade desinibida.
(OLIVEIRA, 2011, p. 58)
A religião discriminada é uma forma de religião de força e resistência, portanto seus praticantes são fortes e
resistentes. Fortes na fé e resistentes contra a intolerância, a discriminação e o preconceito (...) Ser umbandista
é ser livre de amarras. Umbanda deve ser e é sinônimo dessa liberdade de praticar uma espiritualidade muito
leve e tranquila, ao mesmo tempo que é forte e poderosa em nossas vidas e de quem procura nossos guias.
(CUMINO, 2015, p. 43-46)
Endereçado aos umbandistas, esta obra de Cumino (2015) mostra o compromisso que os
umbandistas precisam demonstrar e defender ao incluir em seu panteão entidades que são
consideradas marginais para outras crenças, e por consequência, a Umbanda que as absorveu,
tornou-se alvo de discriminações e perseguições de toda ordem. Assim, segundo o autor, é preciso a
união e a resistência.
Para efeito deste artigo, vamos nos debruçar sobre três tipos de entidades da Umbanda,
justamente elas que possuem também como espaço de culto, para além do terreiro, o cemitério,
objetivo central deste trabalho. Estas entidades são os Exus, as Pomba-giras, os Pretos-velhos e as
Pretas-velhas.
Como a intensão deste artigo é perceber a relação de pertencimento de algumas entidades de
Umbanda com os cemitérios, nosso caminho percorrerá as narrativas, através da análise de imagens,
Exu é um portador, mensageiro, um Hermes africano. (...) Exu não tem a maldade congênita, medular, alheia à
provocação inconsciente do olvido devoto. Sua suscetibilidade, caráter irascível, turbulento, inquieto,
vingativo, são invariavelmente reações, réplicas, represálias. Satanás não guarda a casa de ninguém. Exu,
repleto e tranquilo, é guardião incomparável. (CASCUDO, 2002, p. 109)
Cascudo (2002) afirma em diversos trechos de seu texto esta incompatibilidade entre o
Diabo cristão e o Exu africano, cultuado como o mensageiro, guardião, o que movimenta o mundo e
a própria existência humana a partir da sexualidade. Esta relação construída entre o Exu e uma
imaginada perversidade nata, contraria tudo que se experenciava nas práticas religiosas africanas
sulsaarianas anteriormente a chegada dos invasores, muçulmanos e cristãos, já que não existia para
A necessidade de Exu é vital. Isso é constatado em qualquer ato de cerimônia, quando inicialmente as atenções
são voltadas ao mensageiro, ao Mercúrio afro-negro, como velocidade de vento e sagacidade de fera. O axé,
sua dinamicidade e latenticidade em todos os santos-deuses, só aciona seus mecanismos através da ação do
Exu. Assim, possibilita ao agente mercurial do culto uma multiplicidade funcional e comprometimentos com o
espaço sagrado, sendo leitor atento e conhecedor de todos os signos do axé. (LODY, 2006, p. 108)
corpos desossados, mãos com unhas longas, dentes de vampiros, pelos, múltiplas cabeças 1, sendo
que “estas descrições foram um prato cheio para os santeiros produzirem as imagens aberrantes que
ainda hoje são comercializadas nas casas de artigos religiosos de Umbanda e que distorceram a
verdadeira essência dos Exus” (TRINDADE, 2013, p. 134).
Vale salientar que uma das explicações dadas por muitos umbandistas é que tanto as
imagens e os nomes dados aos exus, seriam como atos de resistência contra a perseguição e
repressão dos órgãos públicos que desde o nascedouro da Umbanda empreenderam campanhas de
desqualificação e até mesmo de invasão de terreiros. Dar nomes aterradores e possuir imagens
repugnantes, serviam como forma de manter longe os assustados policiais que eram enviados para
missões de fechamento destes espaços sagrados. E cada vez mais a associação entre as entidades e o
espírito demoníaco se consolidaram nos discursos dos perseguidores e nas conversas entre os
próprios umbandistas. Este amálgama foi dia-a-dia se tornando mais concreto e para muitos,
indissociável. Sabemos que a relação entre Exu e Diabo são incoerentes, mas no imaginário coletivo
e até mesmo nos terreiros, muitos mantém esta ligação visceral. Para os não umbandistas isto causa
terror e apreensão. Para os umbandistas isso não é um problema já que exu dá e recebe a todos que
se achegam a ele, sem preconceitos e discriminações. Todos se sentem acolhidos pelos exus. Os
exus são percebidos como as diversas faces de nós mesmos, sem filtros, sem dissimulações. Nós em
nossa inteireza, sensível e caótica. Nós, bons e maus, como se os antagonismos fossem
complementares. Exu é a dúvida e a certeza ao mesmo tempo.
Não diferente das imagens, as nominações dos exus também demonstram a variedade de
possibilidades de seus poderes e locais de origem e atuação. Sendo os nomes de exus uma forma de
identificação do mesmo dentro do ritual e do panteão umbandista, de certa forma também geram
especulações sobre sua ligação com o demoníaco, o escatológico, o macabro e até mesmo o
inusitado.
Exus bastante conhecidos são os que em seus nomes aparecem o número sete como
identificação, numeral este bastante utilizado na Umbanda como forma de demonstração de poder e
conhecimento das formas misteriosas da religião e da magia que ampara seus cultos: Exu Sete
Giras, Exu Sete Estrelas, Exu Sete Pedras, Exu Sete Mirongas, Exu Sete Estradas, Exu Sete
Curimbas, Exu Sete Teias, Exu Sete Velas, Exu Sete Sinos, Exu Sete Chifres, Exu Sete Brumas,
Exu Sete Caminhos, Exu Sete Facas, Exu Sete Lados, Exu Sete Vidas, Exu Sete Serras, Exu das
Sete Montanhas, Exu das Sete Portas, Exu Sete Encruzilhadas, Exu das Sete Encruzas, Exu Sete
Pontas, Exu Sete Cadeados, Exu Sete Ferrolhos, Exu Sete Cruzes, Exu Sete Poeiras, Exu Sete
Sua figura é representada pela beleza, pela sensualidade, pelas coisas materiais. Ela vem da morte e é ambígua
porque é morta, mas viva porque pode ser essa voz que fala pelas mulheres de um outro mundo que ficou no
passado e dialogam com o presente aflorando no seu discurso os tantos tempos e lugares em que se apresenta.
(MENEZES, 2009, p. 102)
liberdade de atuação das mulheres como um todo. As pomba-giras não aceitam estas amarras e
rompem com elas a todo momento. Assim, “as Pombagiras, nos parecem uma brecha para as
mulheres, pois por meio da sua manifestação permite às mulheres que se coloquem como poderosas
e por isso, maravilhosas” (MENEZES, 2009, p.103).
Uma das pomba-giras mais conhecidas e cultuadas no Brasil é Maria Padilha. Dada a
importância de sua presença na Umbanda, Meyer (1993) publicou uma biografia de uma suposta
origem ibérica e tendo sido amante do rei de Castela no século XIV. Sua trajetória de vida é
remontada, com lapsos documentais, até chegar aos terreiros de Umbanda espalhados pelo Brasil.
Independentemente da veracidade histórica, a Maria Padilha castelhana é descrita como forte,
determinada, transgressora, sedutora e até mesmo como possuidora de poderes mágicos, entendidos
como feitiços, que não se diferem da imagem da Pomba-gira que encontramos nos terreiros
brasileiros de Umbanda. Suas histórias e gestos se cruzam e se identificam.
Outra pesquisadora que também encontrou em Maria Padilha uma interlocutora privilegiada
foi Cardoso (2012), que ao observar e conversar com esta Pomba-gira e relatar seus
comportamentos em giras que frequentou, concluiu que de certa forma “a performance de Padilha
aponta para o desalinhamento das fronteiras do feminino, desnaturalizando a própria construção
cultural de tais fronteiras e limites” (CARDOSO, 2012, p. 202). Esse jogo performático que quebra
condutas vistas como adequadas para o feminino, produz na existência das Pomba-giras muitas
provocações que “assombram as fronteiras do feminino, dramatizando a persistente possibilidade de
sua perturbação e rearticulação” (CARDOSO, 2012, p. 202). No Brasil, a Pomba-gira Maria Padilha
ganhou um túmulo, potencializando sua presença na cultura religiosa brasileira.
Da mesma forma que os exus, as pomba-giras possuem nominações as mais diversas e
também inumeráveis. O número sete nos nomes formam um grande grupo de pomba-giras,
reforçando a influência deste número na Umbanda: Pomba-gira Sete Camas, Pomba-gira Sete
Canas, Pomba-gira Sete Cornos, Pomba-gira Sete Maridos, Pomba-gira Sete Becos, Pomba-gira
Sete Alcovas, Pomba-gira Sete Homens, Pomba-gira Sete Chifres, Pomba-gira Sete Véus, Pomba-
gira Sete Esquinas, Pomba-gira Sete Vidas, Pomba-gira Sete Caveiras, Pomba-gira Sete Dedos,
Pomba-gira Sete Anéis, Pomba-gira Sete Marafos, Pomba-gira Sete Noites, Pomba-gira Sete
Pembas, Pomba-gira Sete Velas, Pomba-gira Sete Grutas e Pomba-gira Sete Saias.
Nas suas múltiplas aparições, fica evidente as adjetivações que encontramos em seus nomes
que vão desde desqualificadoras, pelo menos aos nossos olhos, até a evidente sexualização ou a
falta dela. Elencaremos algumas destas nominações, tendo sempre à frente o nome Pomba-Gira:
Profana, Presepeira, Mundana, Pervertida, Preguiçosa, Perdição, Assanhada, Alcoviteira, Catingosa,
Cheirosa Maria Tentação, Virtuosa, Pega-Homem, Elegante, Pomposa, Soberana, Dengosa,
Resistir com a luta e resistir com a bondade, que parecem ações antagônicas, fizeram parte
da constituição destes pretos e pretas velhas. Suas presenças são sempre aguardadas nos terreiros e
suas festas comemoradas pela grande maioria dos terreiros no dia 13 de maio, são regadas de muita
feijoada, bebidas, músicas e alegria. Seus conselhos são ouvidos por todos quando das giras e nas
consultas individuais, convocando orixás, santos e santas católicos e Nossa Senhora, normalmente a
do Rosário. Isso fez destas entidades representantes inequívocas do hibridismo religioso da
Umbanda. Para muitos, são a representação do negro que aceitou a escravização e incorporou ao
seu discurso as práticas do negro fiel ao seu escravizador. Para outros representam a resistência
permanente e teimosa.
Muita gente não entende o que realmente representam (os pretos velhos), pois, por terem sido associados à
doçura, ao cuidado, à tranquilidade, esses espíritos acabam sendo vistos como resignados. Mas não é nada
disso. Pelo contrário, são eles os responsáveis por manter preservada a lembrança de que todo dia é ainda dia
de batalha e que o cativeiro ecoa nas favelas, nos presídios, nos manicômios, e que a carne mais barata do
mercado ainda é a carne negra. (HADDOCK-LOBO, 2020, p. 159)
Polêmicas à parte, são os pretos e pretas velhas que colocam a Umbanda com pelo menos
um dos pés na África sulsaariana. Guias que conhecem sua origem, sua condição de escravizados e
que buscam na ação espiritual a paz para sua nova existência. Os umbandistas praticantes e os
clientes veem nas palavras e benzimentos destas entidades uma possibilidade de melhorar sua vida
terrena. Pretos que sofreram acolhem os que sofrem. Mundos e temporalidades diferentes que se
encontram na gira, no terreiro, no cemitério e na incorporação de um médium.
Quando nos referimos a sua origem africana, as nominações deixam claro isso, quando
apresentam etnias, lugares marcadamente utilizados como portos ou espaços de escravização na
África e que encheram os porões dos tumbeiros e senzalas no Novo Mundo: Pai Tomé de Luanda,
Tia Zefa do Congo, Pai Jacó de Angola, Vovó Ana Angolense, Tio Moçambique, Pai Congo
d’Angola, Vovô Miguel do Congo, Vovô Preto Congo, Rei da Guiné, Pai José de Angola, Pai João
do Congo, Vovó Ana da Guiné, Vovô Tiago Uganda, Vovô Limpopo, Vovó Mombaça, Vovô Luiz
Zambeze, Vovó Matamba, Vovó Lunda-Quioco, Vovó Rita do Daomé, Pai Monjolo, Mãe Preta
Zulu, Tio Luiz de Iorubá, Tia Maria de Nagô, Tia Chica Africana, entre muitos e muitas outras.
Ser da África, ser trazido a força para o Brasil para aqui trabalhar e depois da morte retornar
como entidade para fazer o bem, mostra de forma resumida a trajetória dos pretos e pretas velhas. O
Brasil negro, tantas vezes negligenciado, é na Umbanda um espaço privilegiado e de profundo
respeito.
Este retorno do mundo dos mortos faz deles mais uma marca assentada na africanidade, em
que o culto aos ancestrais é marca determinante de sua existência. Sobretudo nas religiões bantas
“os espíritos dos ancestrais são os intermediários entre a divindade suprema e o homem” (LOPES,
2006, p. 163). Ter a presença viva de ancestrais na cultura africana demonstra que sua relação com
o passado, que precisa ser observado, copiado e muitas vezes compreendido em sua dinamicidade, é
determinante para sua relação com o presente vivido e religiosamente sentido e corporificado. A
voz que faz a conexão entre estes tempos idos e o hodierno é a dos ancestrais.
Para o africano em geral e para o banto em particular o ancestral é importante porque deixa uma herança
espiritual sobre a Terra, tendo contribuído para a evolução da comunidade ao longo de sua existência e por isso
é venerado. Ele atesta o poder do indivíduo e é tomado como exemplo não apenas para que suas ações sejam
imitadas mas para que cada um de seus descendentes assuma com igual consciência suas responsabilidades.
Por força de sua herança espiritual, o ancestral assegura tanto a estabilidade e a solidariedade do grupo no
tempo quanto sua coesão no espaço. (LOPES, 2006, p. 166)
espaços e também nos pedidos de autorização para entrar nestes lugares, mesmo que seja apenas
para visitar. Os donos precisam permitir a entrada e permanência.
Na crença umbandista as entidades exus e pomba-giras trabalham nas linhas dos Exus,
enquanto os pretos e pretas velhas pertencem a linha de Omulu. Obviamente que isto pode variar de
terreiro para terreiro e de região para região, mas o que temos observado é a constatação de que a
grande maioria acredita nestas conexões. Omulu também conhecido como o Senhor da Morte, tem
no cemitério seu reino, sobretudo no universo umbandista e por conta disso “aparece como uma
Divindade pouco compreendida em seu mistério pelo temor que todos tem da morte, por não
entenderem ser ela tão natural quanto o nascimento” (CUMINO, 2016, p. 117).
Não diferente no Candomblé, Omulu também é reconhecido como aquele que conhece os
segredos da morte e do morrer, e por isso é também relacionado seu poder em demandar e curar
doenças, pragas, pestes e epidemias. A vida e a morte passam por Omulu.
O homem nasce, cresce, desenvolve-se, torna-se forte diante do mundo, mas continua frágil diante de Omulu,
que pode devorá-lo a qualquer momento, pois Omulu é a terra, que vai consumir o corpo do homem por
ocasião de sua morte, por isso é que se diz que Omulu mata e come gente” (EYIN, 2008, p. 120)
Esta aproximação de Omulu com a morte e para muitos umbandistas com o cemitério, ou
calunga-pequena, foi imediata e tendo os pretos e pretas velhas como representantes espirituais do
Orixá, negros e negras desencarnados que conheceram o sofrimento e a morte, mantiveram sua
memória ancestral africana trazendo para os cultos a magia, o mistério e a sabedoria do
sobrenatural.
Já Exu no Candomblé é pouco associado com a morte e o espaço da calunga. O que
normalmente encontramos é sua associação com as “ruas, esquinas e estradas” (LODY, 2006, p.
112) e “encruzilhadas e mercados” (EYIN, 2008, p. 80) demarcando seu poder comunicador e do
movimento.
Mas, alguns pesquisadores das culturas religiosas afro-brasileiras demonstram que esta
associação Exu-morte é possível, quando pensada a partir da ligação deste orixá com outra
divindade do panteão yorubano, Icú (Morte), “responsável pelo retorno e restituição de axé do aiê
para o orum, a fim de que o ciclo vital, o equilíbrio do universo, esteja assegurado. Exu obé,
responsável pelo manejo da faca que separa, que tanto auxilia o nascimento como propicia a morte”
(LUZ, 2002, P. 65). É aqui que pode estar a ponte entre o orixá Exu e as entidades exus e pomba-
giras da Umbanda. A morte e o cemitério colocam o orixá e os guias num mesmo lugar que os
identifica e os une. Exus e pomba-giras da Umbanda não deixam as encruzilhadas e os caminhos,
eles expandem seus domínios para além destes espaços já consagrados pelo Candomblé e pela
tradição africana.
Este vai e vem de pessoas e espíritos no cemitério, levando em conta que o que não é visto é
tão importante, e muitas vezes até mais, para o mundo do sagrado, destoa da ideia de um espaço
apenas da saudade e na melancolia, tão bem poetizado pela escritora norte-americana Emilly
Elizabeth Dickinson em seu poema “Cemitério” escrito na segunda metade do século XIX e
traduzida para o português por Manuel Bandeira.
doado há décadas por um senhor que teria alcançado uma graça”4. A não presença de um corpo
possibilitou que os umbandistas realizassem fundamentos religiosos no túmulo, podendo então os
crentes depositarem suas oferendas em local adequado e sacralizado.
Na placa comemorativa da reinauguração, fica claro a preocupação dos responsáveis pela
manutenção do espaço, reforçado por um panfleto distribuído para todos os presentes e assinado
pelo coletivo Saravaxé - Amigos da Umbanda e Candomblé do Estado de São Paulo e pela
Associação das Comunidades Tradicionais de Matriz Africana de Campinas e Região, que informa
questões importantes que devem ser seguidas por todos os que se acheguem ao túmulo.
Neste local não é permitido o abate de animais; não é permitido o descarte de restos ou parte de animais não é
permitido a violação de patrimônio público ou violação e degradação dos jazigos (túmulos) particulares do
entorno. Estas práticas não condizem com as religiões de matrizes africanas e com o respeito que devemos ao
campo santo (cemitério). Esta é a morada de Tranca Ruas, cuide dela como se fosse a sua. A ignorância leva ao
repúdio, o conhecimento leva ao respeito! (MARTINS, 2016, p. 187)
Percebe-se que o espaço dedicado para o Exu Tranca Rua das Almas fortalece a ideia do
cemitério como espaço privilegiado de atuação deste exu e por consequência de todos os outros. A
própria realização da cerimônia de reinauguração e todas as recomendações de uso do espaço
demonstraram que o mesmo pretende ser vivo, utilizado e representativo.
No Rio Grande do Sul, mais especificamente na cidade de Alvorada, no dia 06 de maio de
2020, tendo o prefeito da cidade José Arno Apollo do Amaral como responsável em cortar a fita da
cerimônia e proferir um discurso, ocorreu a inauguração do Túmulo Santuário da Pomba-gira Maria
Padilha das Almas5. Todo o evento e o próprio espaço foi organizado pela Mãe Michelly da Cigana
que com a ajuda de 18 doadoras construiu o túmulo inspirado no túmulo do Exu Tranca Rua das
Almas em Campinas/SP. Em vários momentos a própria Mãe Michelly citou o nome da entidade
como sendo Maria Pandilha, da mesma forma que aparece esta grafia em alguns locais do túmulo e
em sua volta. Fica evidente que a Maria Padilha ou Pandilha é da linha das ciganas, visto todo o
discurso se referir a esta falange e seus poderes. Também chama a atenção que ao se referir ao culto
utiliza-se o termo Quimbanda e não Umbanda como comumente observamos em rituais desta
natureza. O que se pode perceber é que ao se tratar de uma linha de esquerda, conforme a própria
lógica da Umbanda, a Mãe de Santo optou por identificar seu terreiro e sua prática religiosa com o
termo banto quimbundo kimbanda que significa “sacerdote e médico ritual (...) mas que na
Umbanda se refere a linha que trabalha principalmente com exus” (LOPES, 2012, p. 214).
Este túmulo de Maria Padilha é o primeiro do Brasil dedicado a uma Pomba-gira e sua
inauguração contou com poucos convidados por conta das restrições relacionadas ao controle da
pandemia da COVID-19. De qualquer forma, o túmulo suntuoso, com azulejamento preto, ladeado
de coroas de flores (das que são usadas em velórios), com muitas imagens de exus, pomba-giras e
ciganas, e tendo em sua cobertura um ponto em ferro de Maria Padilha, ocorreu com uma salva de
fogos, o canto de um ponto da pomba-gira acompanhado do som de atabaque e xequerê e aplausos
de todos os presentes na cerimônia. Após o corte da fita, Mãe Michelly da Cigana jogou sobre o
túmulo pipoca, demonstrando neste caso a relação da pomba-gira com Omulu, visto ser esta uma
das oferendas deste orixá e que para a Mãe de Santo simboliza também a clareza, a limpeza e a
prosperidade.
Da mesma forma que na reinauguração do túmulo de Tranca Rua das Almas, também em
Alvorada foi conclamado que todos respeitassem o túmulo e que levassem oferendas ecológicas,
não jogassem copos no chão, descartassem as garrafas nas lixeiras e não fizessem sacrifícios com
animais no local.
Dois túmulos sem corpos, mas que simbolizam a força das entidades homenageadas e da
reafirmação do pertencimento de exus e pomba-giras ao cemitério como espaço de morada e poder.
Da mesma forma que famílias abastadas constroem túmulos suntuosos para manter o status social
mesmo após a morte, os umbandistas têm demonstrado poder ao construírem túmulos majestosos
para demarcar território de sua religião e de seu panteão. Como sempre o cemitério sendo um
espaço vivo e em constante disputa.
Uma das marcas da Umbanda e de seus terreiros, sobretudo os congás e cangiras, é a
utilização de imagens que tem a pretensão de dar materialidade as figuras das entidades, ajudando
os médiuns e os frequentadores na construção visual destes guias e reforçando os arquétipos que
constituem sua presença na religião. No colorido vivo de muitas imagens é possível observar que
elas buscam reforçar elementos que identificam em algum aspecto as entidades, e no caso daquelas
que tem como morada e influências os cemitérios isso não é diferente.
No didatismo das formas, as imagens na Umbanda cumprem um papel de aproximação entre
o mundo invisível e o palpável, transformando os seres desencarnados e imateriais em figuras de
gesso pintado, na sua maioria, mas que detém o poder mágico da presença. As imagens não são
apenas observadas, elas fazem parte da própria ritualística umbandista, e compõem uma rede de
laços visuais e sensíveis que vão além da própria materialidade. Velas são queimadas, bebidas são
oferecidas, fumos são acesos, cantos são entoados, tendo as imagens como presença necessária para
a concretização da relação entre o mundo dos vivos e o dos mortos. Imagens podem ser portais e
caminhos entre o médium e seu guia espiritual. A imagem junta e facilita compreensões. A imagem
cumpre a função de dar corpo ao incorpóreo.
Urnas funerárias são encontradas em imagens de entidades da Umbanda para representar a
ligação destas com o espaço cemiterial. Quanto mais didática for a imagem, maior será a
identificação de seus domínios, características e até mesmo desejos. Quando temos uma figura em
que ícones ligados aos cemitérios e a morte aparecem, já é um indicativo muito forte que a entidade
deseja que ao serem depositadas oferendas em sua homenagem, que estas sejam em espaço
cemiterial, já que lá está sua morada e espaço de atuação.
Podemos observar isto em imagens em que o numeral sete é presente, tendo esquifes
facilmente reconhecíveis, normalmente na parte de baixo da imagem (chão) como são nos casos do
Exu Sete Campas6, Exu Sete Catacumbas7 e Pomba-gira Sete Calungas8. Uma urna funerária
também pode aparecer solitária no chão (parte de baixo da imagem) junto a entidade, como
exemplo temos o Exu Catacumba9. Ainda observamos imagens de entidades ajoelhadas sobre um
esquife: Exu Cemitério10 e Pomba-gira das Almas11. E por último destacamos a imagem de Exu
Omulu12, com cabeça em formato de caveira e segurando com mãos esqueléticas uma urna
funerária. Lembrando que não se trata do Orixá Omulu e sim da representação de uma entidade de
Umbanda, mas que ligam elementos muito convergentes no entendimento de seus domínios: o
cemitério e a morte.
Não há como negar que uma das marcas da Umbanda e seu ritual são as presenças dos
pontos riscados e cantados, que podem ser visualizados e ouvidos nas giras, em festas e na própria
organização da religião.
Pontos riscados são mais que desenhos que identificam as entidades de Umbanda, eles são
forças energéticas que ligam planos espirituais e o mundo terreal. Entender a potência e a
importância destes grafismos para a Umbanda é de fundamental relevância para a percepção de
como esta religião lida com suas entidades e esta relação com os vivos.
Os pontos riscados são espaços mágicos traçados pelos Guias Espirituais, onde firmam suas identificações,
realizam as firmezas de trabalhos e evocam as magias necessárias para a realização dos mais diversos trabalhos
e atendimentos. Assim, o ponto riscado é um dos elementos utilizados pelas entidades dentro dos Trabalhos
Espirituais na Umbanda, para criar um campo energético que traz para esses trabalhos, a proteção, a energia e a
força, conectando uma situação específica que está sendo realizada na sessão espiritual com o astral. (GRUPO
DE ESTUDOS DO TERREIRO DO PAI MANECO13, 2014, p. 6)
Portanto, as imagens riscadas nos terreiros com pemba e que podem ser utilizadas de
diversas formas dentro dos rituais e do dia-a-dia do terreiro, nos impõe compreender que os
chamados pontos riscados, “além de um sinal de identificação da entidade e do trabalho, é um
espaço mágico de energia que canaliza e/ou expande suas forças, estabelecendo uma sinergia entre
o Guia Chefe do Terreiro, as Entidades que trabalham naquele Terreiro, os demais espíritos, os
médiuns e o astral” (GRUPO DE ESTUDOS DO TERREIRO DO PAI MANECO, 2014, p. 17).
Em relação aos pontos riscados, consultamos 1.463 deles e catalogamos 241 que apresentam
algum elemento que nos remetam ao espaço cemiterial ou que constituem seu universo simbólico,
sobretudo Cruzeiros e urnas funerárias14. Apresentaremos deste total catalogado, 07 pontos que
buscarão dar conta destas representações.
Indiscutivelmente o que mais identifica o espaço das almas dentro do cemitério é o
Cruzeiro. Local que todos os mortos são representados e que se tornou um espaço votivo muito
visitado pelos umbandistas. Por se tratar de uma religião completamente ligada no culto dos
desencarnados, esta relação com o Cruzeiro enquanto espaço do todo, colaborou para que entidades
tomassem este espaço de destaque na necrópole como se fosse a sua própria identidade. No nome,
nos pontos cantados e riscados, o Cruzeiro das Almas é presença constante. Identificado como uma
cruz sobre um pedestal, normalmente com degraus, ele se diferencia da cruz sem este aparato, que
simboliza a própria morte, comumente depositada em locais de enterramentos. A cruz é a boa
morte. O Cruzeiro é o espaço do culto a todos os mortos, e por consequência as almas, tão caras aos
umbandistas.
13 O Grupo de Estudos do Terreiro do Pai Maneco, localizado em Curitiba/PR, possui a seguinte formação: Ana Paula
Torquato Dalmaz, Carolina Schlenker Affonso da Costa, Denise Freitas de Oliveira, Eliézer Manoel de Sousa Junior,
Flavia maria de Lara Schmidt, Izabel Cristina dos Santos, Laércio Ricardo Mattana Carollo, Leonardo Macharette Silva,
Lucilia Guimarães, Marco Antonio Souza Martins Junior, Nelson Reis Minku, Rodrigo Dalmaz, Samanta Serpa Sussi,
Silvia Marilei Marques Tabaca, Simone Franco e Walkiria Ferreira Gomes.
14 Estes pontos riscados foram consultados nas seguintes referências: A EDITORA. 3000 Pontos riscados e Cantados
na Umbanda e no Candomblé. Rio de Janeiro: Eco, 1974; GRUPO DE ESTUDOS DO TERREIRO DO PAI MANECO
(GETPM). Pontos riscados do Terreiro do Pai Maneco. Curitiba: Livro de Xangô, 2014.
Preto Velho Benedito do Cruzeiro das Almas Preta Velha Vovó Conga do Cruzeiro
(EDITORA ECO, 1974, p. 271) (EDITORA ECO, 1974, p. 268)
Os pontos cantados são músicas entoadas pelos umbandistas em seus rituais e podem ser
divididos em dois grupos: pontos de raiz e pontos terrenos. Os primeiros são criados pelas próprias
entidades de Umbanda e tem um poder energético determinante para a prática ritualística e por
conta disso não podem ser alterados de forma alguma. Já os pontos terrenos têm como compositores
pessoas encarnadas que desejam homenagear algum guia espiritual.
Os pontos cantados são verdadeiras preces que dinamizam forças naturais, e nos fazem entrar em contato
íntimo com as Potências Espirituais que nos regem, em especial os Orixás, Guias e Protetores do Astral. Nesta,
as cantigas são pronunciadas em português ou num misto deste com dialetos afro e indígenas. (MATTOS,
2008, p. 50)
Assim, os pontos cantados dizem para além da mera identificação e homenagem das
entidades que trabalham nos terreiros, já que também cumprem uma função sagrada ao entoar
cânticos que criam fluxos energéticos entre o astral e o sublunar. A vivacidade de uma gira também
é percebida pela forma como os pontos são cantados e tocados, sobretudo no uso de atabaques,
deixando o ambiente preparado para receber os guias espirituais e com isso desempenharem seus
papeis na sacralidade umbandista. Não é à toa que sempre que a energia da gira diminui por
diversos motivos, os responsáveis pelo terreiro, gritam para que todos possam ouvir: “Segura o
ponto”. É um chamado à concentração e ao foco do ritual que tem na musicalidade um dos seus
pilares fundamentais.
Para efeitos deste artigo, tendo como premissa o levantamento de pontos cantados que de
alguma forma tem o cemitério em sua letra e por consequência trazendo este espaço para dentro do
ritual através da música, consultamos 647 pontos e catalogamos 52 que trazem o espaço cemiterial e
suas referências.15 Utilizaremos 16 deles para destacar nossas teses sobre a relação Umbanda,
15 Estes pontos cantados foram consultados nas seguintes referências: A EDITORA. 3000 Pontos riscados e Cantados
na Umbanda e no Candomblé. Rio de Janeiro: Eco, 1974; BURGOS, Arnaldo. Jurema Sagrada do nordeste brasileiro à
Península Ibérica. Fortaleza: Expressão; laboratório de Estudos da Oralidade/UFC, 2012.
entidades e cemitérios.
O termo calunga é um dos que mais aparecem nos pontos cantados de exus, pomba-giras e
pretas velhas. Essa relação entre a Umbanda e termos utilizados no vocabulário banto dão conta da
íntima relação entre práticas ancestrais africanas e o universo religioso no Brasil praticado nos
terreiros. A calunga é um espaço de lá e de cá, por fazer o contato de duas cosmogonias culturais
que se hibridam no Brasil.
Ponto cantado 1
POMBA GIRA DO CRUZEIRO
Lá no Cruzeiro da calunga
Eu vi uma farofa amarela
Quem não acredita em Pomba Gira do Cruzeiro
É muito bom não mexer nela (EDITORA ECO, 1974, p. 64)
Ponto cantado 2
EXU LALU
Lalu era anjo do céu
E do céu foi despejado
Na tronqueira da calunga
Tem seu ponto confirmado
O seu ponto é firme, ele é Exu
O seu ponto é firme, é Exu Lalu (EDITORA ECO, 1974, p. 71)
Ponto cantado 3
EXU SETE COVAS
Eu não tenho patrão
Calunga foi quem me criou
Meu nome é Sete Covas
Minha quimbanda ele já louvou (EDITORA ECO, 1974, p. 77)
Ponto cantado 4
EXU TATA CAVEIRA
Ancorou, ancorou na calunga
Olha que eu sou Caveira
Oh Calunga!
Ancorou, ancorou na calunga,
Olha que eu sou João Caveira
Oh Calunga! (EDITORA ECO, 1974, p. 182)
Ponto Cantado 5
TIA BENEDITA DA CALUNGA
Tia Benedita é preta velha,
Não promete pra não faltar
Traz sempre da sua calunga,
A força do seu patuá (EDITORA ECO, 1974, p. 113)
Ponto Cantado 6
TIA CHICA DA CALUNGA
Via meu Santo Antônio de Pemba,
Tia Chica é de lei maior
Tia Chica vem da Calunga,
Quando chega não vem só. (EDITORA ECO, 1974, p. 114)
Ponto cantado 7
Sr. Tranca-Ruas, é um moço excelente
Acorda quem está dormindo
E levanta quem está doente
E se duvidar
Pra quem bambear
Ele é da calunga e pode até lhe exemplar. (BURGOS, 2012, p. 205)
Ponto cantado 8
Salve seu sete encruzilhadas
Sete encruzas já chegou
É na porteira da calunga é
Que ele trabalha com Marabô (BURGOS, 2012, p. 206)
O termo calunga, que define um espaço aglutinador que coloca no mesmo âmbito entidades
diversas, é pouco conhecido por uma ampla gama da população, inclusive de frequentadores não tão
assíduos aos rituais umbandistas. Para tanto é preciso que os pontos cantados tornem-se canais
comunicativos entre os espíritos e os vivos, destacando que o cemitério é domínio de guias, assim
este termo precisaria aparecer de forma mais direta nestes pontos e é exatamente isso que ocorre em
vários deles. Muitos pontos vão abandonar o termo calunga e utilizar o termo cemitério em suas
canções. Ao ouvir um destes pontos, o visitante, os médiuns ou os clientes, tem a noção de onde
vem e para onde vão determinadas entidades. Isso facilita a compreensão material do espaço
religioso para além do próprio terreiro. O cemitério se constitui a partir das cantigas sagradas da
Umbanda como um lugar de grande dinamicidade.
Ponto cantado 9
EXU DOS CEMITÉRIOS
Firma a curimba, Exu
Sua banda tem mironga e mistério
Seu trabalho é pr’o bem e mal
Sua morada é dentro do cemitério (EDITORA ECO, 1974, p. 74)
Ponto cantado 10
EXU CAVEIRA
Portão de ferro
Cadeado de madeira,
Na porta do cemitério
Quem mora é Exu Caveira. (EDITORA ECO, 1974, p. 76)
Ponto cantado 11
EXU SETE CATACUMBAS
Na sétima cova do cemitério
Sete Catacumbas gemeu
Saravou sua encruza
E levou o mal que é meu. (EDITORA ECO, 1974, p. 78)
Ponto cantado 12
EXU CAVEIRA
Quando vou ao cemitério,
Peço licença pra entrar.
Bato com o pé esquerdo,
Pra depois eu sarava!
Eu saravo Omulu,
E seu Caveira também,
Assim faço a obrigação,
Pra os filhos do Além! (EDITORA ECO, 1974, p. 182-183)
Ponto cantado 13
TIA BENEDITA DO CEMITÉRIO
No Cruzeiro do cemitério
Eu vi preta velha rezar
Era a Tia Benedita,
Com sua sacola e seu patuá (EDITORA ECO, 1974, p. 113)
Ponto cantado 14
De meia-noite pro dia
Eu passei no cemitério
A catacumba pegou fogo
Atém quem estava morto gemia
E não fosse o coveiro
O meu cruzeiro se queimava
Ai, ai, ai, ai
O meu cruzeiro se queimava. (BURGOS, 2012, p. 194)
Ponto cantado 15
PAI ANDRÉ DO CRUZEIRO
No Cruzeiro do Campo Santo
Um velhinho trabalhava
Chorando com contrição
Se do cativeiro lembrava
Pai André foi sofredor,
Na mão do branco senhor,
Hoje em dia na Umbanda
É o nosso salvador. (EDITORA ECO, 1974, p. 105)
Ponto cantado 16
TIA CHICA DO CEMITÉRIO
Na pousada do Campo Santo
Tia Chica sempre trabalhou,
Sete figas de guiné, sete vinténs de ouro puro
Ela já encomendou. (EDITORA ECO, 1974, p. 114/115)
Ampliar o entendimento do cemitério para além de um espaço para corpos mortos e sem
dinamicidade, tem sido uma permanente luta de pesquisadores que escolheram este espaço como
locus principal de análise. Por vieses diversos, englobando patrimônio, arte funerária, milagreiros,
geografia, memória e tantos outras possibilidades de entendimento da necrópole na história social,
política, cultural, econômica e religiosa de povos em temporalidades e espacialidades múltiplas. O
cemitério agrega conhecimentos e experiências dos vivos em relação a finitude, mas também é o
lugar da não-morte, dos espíritos que teimam em não deixar o contato com os vivos esfriar. O corpo
sepultado desaparecerá, mas a memória visual em fotos e epitáfios manterá viva a imagem do
morto. O túmulo é a materialidade da limitação imposta a nossa permanência carnal na Terra. A
calma que aparentemente observa-se no campo santo esconde a fluidez do movimento de espíritos
que compartilham espaços. Nossos olhos não veem, mas a crença umbandista crê piamente no
movimento, na correria, no trabalho e na dinâmica que preenchem os espaços percebidos como
tranquilos, e como no oceano “a aparente tranquilidade escondia o que estava se passando nas
profundezas” (GAARDER, 2012, p. 338).
Num tempo de intolerâncias e perseguições ao campo religioso afro-brasileiro e mediúnico,
discutir as diversas formas de cultuar os mortos é reafirmar a imperiosa necessidade de dar
credibilidade para todas as crenças, sem escalonamentos e hierarquias, fazendo do campo religioso
um digo representante da pesquisa científica, no nosso caso, da História, sem se deixar tomar por
paixões sectárias e proselitistas. Dar voz aos que acreditam e professam a brasileira Umbanda e
todo seu panteão de entidades é dizer que todas as possibilidades são válidas no campo do sagrado e
não cabe a nós, pesquisadores, qualificar ou desqualificar aquilo que pertence as vivências de
milhões de crentes. Como tantos outros espaços, o cemitério também pertence a Umbanda e sua
cosmogonia.
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