Flávia Piovesan - Direitos Humanos
Flávia Piovesan - Direitos Humanos
Flávia Piovesan - Direitos Humanos
HUMANOS
Flavia Piovesan
Professora doutora da Faculdade de Direito da PUC/SP de Direitos Humanos e Direito Constitucional
Membro do Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher
Visiting fellow do Human Rights Programs da Harvard Law School (1995 e 2000)
Procuradora do Estado de São Paulo
Sumário
1. Introdução. 2. O que são direitos humanos? Qual é a concepção
contemporânea de direitos humanos. 3. Como relacionar os direitos
humanos com os direitos reprodutivos? 4. Como compreender os
direitos reprodutivos sob a perspectiva dos direitos humanos? Quais
são os principais desafios e perspectivas? 5. Bibliografia.
1. INTRODUÇÃO
1
Cf.ARENDT, Hannah. As origens do totalitarismo. Trad. de Roberto Raposo, Rio de Janeiro, 1979. A
respeito, ver também: LAFER, Celso. A Reconstrução dos Direitos Humanos: Um diálogo com o
pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Cia das Letras, 1988, p.134. No mesmo sentido, afirma
Ignacy Sachs: “Não se insistirá nunca o bastante sobre o fato de que a ascensão dos direitos é fruto de
lutas, que os direitos são conquistados, às vezes, com barricadas, em um processo histórico cheio de
vicissitudes, por meio do qual as necessidades e as aspirações se articulam em reivindicações e em
estandartes de luta antes de serem reconhecidos como direitos”. (SACHS, Ignacy. Desenvolvimento,
Direitos Humanos e Cidadania. In: Direitos Humanos no Século XXI, 1998, p.156). Para Allan Rosas:
“O conceito de direitos humanos é sempre progressivo. (…) O debate a respeito do que são os direitos
humanos e como devem ser definidos é parte e parcela de nossa história, de nosso passado e de nosso
presente.” (ROSAS, Allan. So-Called Rights of the Third Generation. In: Asbjorn Eide; Catarina Krause;
e Allan Rosas. Economic, Social and Cultural Rights, Boston e Londres: Martinus Nijhoff Publishers,
1995, p. 243).
definição de direitos humanos aponta a uma pluralidade de significados. Tendo em vista
tal pluralidade, destaca-se, neste estudo, a chamada concepção contemporânea de
direitos humanos, que veio a ser introduzida com o advento da Declaração Universal de
1948 e reiterada pela Declaração de Direitos Humanos de Viena de 1993.
Esta concepção é fruto do movimento de internacionalização dos direitos
humanos, que constitui um movimento extremamente recente na história, surgindo, a
partir do pós-guerra, como resposta às atrocidades e aos horrores cometidos durante o
nazismo. Apresentando o Estado como o grande violador de direitos humanos, a era
Hitler foi marcada pela lógica da destruição e da descartabilidade da pessoa humana,
que resultou no envio de 18 milhões de pessoas a campos de concentração, com a morte
de 11 milhões, sendo 6 milhões de judeus, além de comunistas, homossexuais,
ciganos,… O legado do nazismo foi condicionar a titularidade de direitos, ou seja, a
condição de sujeito de direitos, à pertinência a determinada raça – a raça pura ariana. No
dizer de Ignacy Sachs, o século XX foi marcado por duas guerras mundiais e pelo
horror absoluto do genocídio concebido como projeto político e industrial2.
É neste cenário que se desenha o esforço de reconstrução dos direitos
humanos, como paradigma e referencial ético a orientar a ordem internacional
contemporânea. Se a 2a Guerra significou a ruptura com os direitos humanos, o Pós-
Guerra deveria significar a sua reconstrução.
Neste sentido, em 10 de dezembro de 1948, é aprovada a Declaração
Universal dos Direitos Humanos, como marco maior do processo de reconstrução dos
direitos humanos. Introduz ela a concepção contemporânea de direitos humanos,
caracterizada pela universalidade e indivisibilidade destes direitos.
Universalidade porque clama pela extensão universal dos direitos
humanos, sob a crença de que a condição de pessoa é o requisito único para a dignidade
e titularidade de direitos.
Indivisibilidade porque a garantia dos direitos civis e políticos é condição
para a observância dos direitos sociais, econômicos e culturais e vice-versa. Quando um
deles é violado, os demais também o são. Os direitos humanos compõem assim uma
unidade indivisível, interdependente e inter-relacionada, capaz de conjugar o catálogo
de direitos civis e políticos ao catálogo de direitos sociais, econômicos e culturais. Ao
examinar a indivisibilidade e a interdependência dos direitos humanos, leciona Hector
Gros Espiell:
2
Cf.SACHS, Ignacy. O Desenvolvimento enquanto apropriaçao dos direitos humanos. In: Estudos
Avançados 12, (33), 1998, p.149.
efetivo dos direitos e das liberdades fundamentais (Resolução n.
32/130)”.3
3
ESPIELL, Hector Gros. Los derechos económicos, sociales y culturales en el sistema interamericano.
San José: Libro Libre, 1986, p. 16-17.
4
SIKKINK, Kathryn. Human Rights, Principled issue-networks, and Sovereignty in Latin America. In:
International Organizations. Massachusetts: IO Foundation e Massachusetts Institute of Technology,
1993, p.413. Acrescenta a mesma autora: “Os direitos individuais básicos não são do domínio exclusivo
do Estado, mas constituem uma legítima preocupação da comunidade internacional.” (op. cit. p. 441).
5
Destaque-se a afirmação do Secretário Geral das Nações Unidas, no final de 1992: “Ainda que o respeito
pela soberania e integridade do Estado seja uma questão central, é inegável que a antiga doutrina da
soberania exclusiva e absoluta não mais se aplica e que esta soberania jamais foi absoluta, como era então
concebida teoricamente. Uma das maiores exigências intelectuais de nosso tempo é a de repensar a
questão da soberania (...). Enfatizar os direitos dos indivíduos e os direitos dos povos é uma dimensão da
soberania universal, que reside em toda a humanidade e que permite aos povos um envolvimento legítimo
em questões que afetam o mundo como um todo. É um movimento que, cada vez mais, encontra
expressão na gradual expansão do Direito Internacional.” (BOUTROS-GHALI. Empowering the United
Nations. In: Foreign Affairs, vol.89, 1992/1993, p.98-99, apud Henkin [et alii]., International Law –
Cases and Materials, p.18).
“Em termos de Ciência Política, tratou-se apenas de transpor e
adaptar ao Direito Internacional a evolução que no Direito Interno já
se dera, no início do século, do Estado-Polícia para o Estado-
Providência. Mas foi o suficiente para o Direito Internacional
abandonar a fase clássica, como o Direito da Paz e da Guerra, para
passar à era nova ou moderna da sua evolução, como Direito
Internacional da Cooperação e da Solidariedade”.6
10
Gênero, aqui, concebido como uma relação entre sujeitos socialmente construídos em determinados
contextos históricos, atravessando e construindo a identidade de homens e mulheres. O gênero é também
um dos pilares fundantes das relações sociais, pois regula as relações homem-mulher, homem-homem e
mulher-mulher. Socialmente construído, o gênero corporifica a sexualidade (não o inverso), que é
exercida como uma forma de poder. Logo, as relações de gênero são atravessadas pelo poder e a
sexualidade, portanto, é o ponto de apoio da desigualdade de gênero.(Saffioti e Almeida, 1995).
Neste cenário as mulheres devem ser vistas nas especificidades e
peculiaridades de sua condição social. Ao lado do direito à igualdade, surge, também,
como direito fundamental, o direito à diferença. Importa o respeito à diferença e à
diversidade, o que lhes assegura um tratamento especial.
Firma-se, assim, no âmbito do sistema global, a coexistência dos sistemas
geral e especial de proteção dos direitos humanos, como sistemas de proteção
complementares.
O sistema especial de proteção realça o processo da especificação do
sujeito de direito, no qual o sujeito passa a ser visto em sua especificidade e
concreticidade (ex: protege-se as mulheres, as crianças, os grupos étnicos minoritários,
os povos indígenas, os refugiados...). Já o sistema geral de proteção (ex: Pactos da ONU
de 1966) tem por endereçado toda e qualquer pessoa, concebida em sua abstração e
generalidade.
Os sistemas geral e especial não são dicotômicos, mas complementares.
Inspirados pelos valores e princípios da Declaração Universal, compõem o universo
instrumental de proteção dos direitos humanos, no plano internacional. Ante este
complexo universo de instrumentos internacionais, cabe ao indivíduo, que sofreu
violação de direito, a escolha do aparato mais favorável, tendo em vista que,
eventualmente, direitos idênticos são tutelados por dois ou mais instrumentos de alcance
global ou regional, ou ainda, de alcance geral ou especial. Nesta ótica, os diversos
sistemas de proteção de direitos humanos interagem em benefício dos indivíduos
protegidos.
É neste cenário que as Nações Unidas aprovam, em 1979, a Convenção
sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher. A Convenção
conta hoje com 165 Estados-partes, o que inclui o Brasil, que a ratificou em 1984. Foi
resultado de reivindicação do movimento de mulheres, a partir da primeira Conferência
Mundial sobre a Mulher, realizada no México, em 1975.
A Convenção se fundamenta na dupla obrigação de eliminar a
discriminação e de assegurar a igualdade. Logo, a Convenção consagra duas vertentes
diversas: a) a vertente repressiva-punitiva (proibição da discriminação) e b) a vertente
positiva-promocional (promoção da igualdade). A Convenção objetiva não só erradicar
a discriminação contra a mulher e suas causas, como também estimular estratégias de
promoção da igualdade. Combina a proibição da discriminação com políticas
compensatórias que acelerem a igualdade enquanto processo, mediante a adoção de
medidas afirmativas, enquanto medidas especiais e temporárias voltadas a aliviar e
remediar o padrão discriminatório que alcança as mulheres. Isto é, para garantir a
igualdade não basta apenas proibir a discriminação, mediante legislação repressiva. São
essenciais estratégias capazes de incentivar a inserção e inclusão social de grupos
historicamente vulneráveis. Alia-se à vertente repressiva-punitiva a vertente positiva-
promocional.
Para a Convenção, a discriminação contra a mulher significa “toda
distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado
prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo, exercício pela mulher, independentemente
de seu estado civil, com base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos
e das liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural e civil
ou em qualquer outro campo.” (art.1º). Isto é, a discriminação significa toda distinção,
exclusão, restrição ou preferência que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular
o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher, em igualdade de condições, dos
direitos humanos e liberdades fundamentais.
Dentre suas previsões, a Convenção consagra a urgência em se erradicar
todas as formas de discriminação contra as mulheres, a fim de que se garanta o pleno
exercício de seus direitos civis e políticos, como também de seus direitos sociais,
econômicos e culturais. Acolhe-se, assim, a tônica da Declaração Universal, com
relação à indivisibilidade dos direitos humanos. Ao ratificar a Convenção, os Estados-
partes assumem o compromisso de, progressivamente, eliminar todas as formas de
discriminação, no que tange ao gênero, assegurando efetiva igualdade entre eles. No
dizer de Andrew Byrnes:
11
BYRNES, Andrew. The "other" human rights treaty body: the work of the Committee on the
Elimination of Discrimination against Women. In: Yale Journal of International Law, v. 14, 1989, p. 1.
12
A taxa de mortalidade materna no Brasil é cerca de 110 mortes por 100.000, contra 3,6 no Canadá.
Conforme conclusões da CPI da Mortalidade Materna, o Brasil apresenta um índice de mortalidade
materna de cerca de 10 a 20 vezes da considerada aceitável. Observe-se que a distribuição do óbito
materno não é homogênea no país, sendo mais alta na região Norte, e mais baixa na região Sudeste. O
aborto é a terceira causa de óbito materno no país como um todo. Estudo realizado em 15 municípios do
país apontam a eclampsia, as síndromes hemorrágicas e a cardiopatia como as principais causas de óbitos
maternos nos municípios considerados.
À luz do disposto no artigo 12 da Convenção, já surgem os
delineamentos iniciais dos direitos reprodutivos, como direitos que exigem um duplo
papel do Estado: a) eliminar a discriminação contra a mulher nas esfera da saúde
(vertente repressiva/punitiva) e b) assegurar o acesso a serviços de saúde, inclusive
referentes ao planejamento familiar (vertente promocional). Percebe-se aqui a semente
de todo um desenvolvimento normativo posterior no tocante à construção conceitual dos
direitos reprodutivos, como direitos que demandam do Estado um duplo papel (de um
lado negativo, por outro positivo e promocional). Daí a complexidade dos direitos
reprodutivos, que não pode ser confinada à tradicional dicotomia dos direitos civis x
direitos sociais, na medida em que apresentam uma dimensão própria dos direitos civis
(a não discriminação; o espaço da autonomia e da autodeterminação no exercício da
sexualidade e reprodução) e dos direitos sociais (o direito à saúde, mediante a
implementação de políticas públicas positivas pelo Estado).
Observe-se, contudo, que embora esta Convenção signifique um grande
avanço para a proteção internacional dos direitos humanos das mulheres, ela apenas
apresenta como mecanismo de implementação a sistemática de relatórios. Vale dizer,
cabéra aos Estados-partes enviar relatórios sobre as medidas legislativas,
administrativas e judiciais adotadas para a implementação dos direitos enunciados na
Convenção. Tais relatórios são encaminhados ao Comitê para Eliminação da
Discriminação contra a Mulher. Ainda assim, esta foi a Convenção que mais recebeu
reservas por parte dos Estados signatários.13
Diversamente da Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de
Discriminação Racial ou da Convenção contra a Tortura, a Convenção sobre a
Eliminação da Discriminação contra a Mulher se restringe a conter a sistemática dos
relatórios, não prevendo, a exemplo das mencionadas convenções, a sistemática de
petição individual ou comunicação inter-estatal, nem tampouco sistemática que permita
a investigação “in loco”. Tais mecanismos permitem um maior e mais eficaz
monitoramento internacional do modo pelo qual o Estado-parte está implementando os
direitos internacionais, que se comprometeu a respeitar.
13
Trata-se do instrumento internacional que mais fortemente recebeu reservas, dentre as Convenções
internacionais de Direitos Humanos, considerando que ao menos 23 dos mais de 100 Estados-partes
fizeram, no total, 88 reservas substanciais. A Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de
Discriminação da Mulher pode enfrentar o paradoxo de ter maximizado sua aplicação universal ao custo
de ter comprometido sua integridade. Por vezes, a questão legal acerca das reservas feitas à Convenção
atinge a essência dos valores da universalidade e integridade. A título de exemplo, quando da ratificação
da Convenção, em 1984, o Estado brasileiro apresentou reservas ao artigo 15, parágrafo 4º e ao artigo 16,
parágrafo 1º (a), (c), (g), e (h), da Convenção. O artigo 15 assegura a homens e mulheres o direito de,
livremente, escolher seu domicílio e residência. Já o artigo 16 estabelece a igualdade de direitos entre
homens e mulheres, no âmbito do casamento e das relações familiares. Em 20 de dezembro de 1994, o
Governo brasileiro notificou o Secretário Geral das Nações Unidas acerca da eliminação das aludidas
reservas. Cabe acrescentar que a Conferência de Direitos Humanos de Viena, em 1993, reafirmou a
importância do reconhecimento universal do direito à igualdade relativa ao gênero, clamando pela
ratificação universal da Convenção sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher. Nos termos do
artigo 39 da Declaração de Viena, fica estabelecido que: "A Conferência Mundial de Direitos Humanos
clama pela erradicação de todas as formas de discriminação contra a mulher, tanto explícitas como
implícitas. As Nações Unidas devem encorajar a ratificação universal por todos os Estados da Convenção
sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher até o ano 2000. Ações e
medidas para reduzir o particularmente amplo número de reservas à Convenção devem ser encorajadas.
Dentre outras medidas, o Comitê de Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher
deve continuar a revisão das reservas à Convenção. Estados são convidados a eliminar as reservas que
sejam contrárias ao objeto e ao propósito da Convenção ou que sejam incompatíveis com os tratados
internacionais."
Considerando a frágil sistemática de monitoramento dos relatórios (que
pode ganhar maior relevância com a adoção dos “relatórios paralelos” ou “relatório
sombra”, elaborados pela sociedade civil), no sentido de aprimorar os mecanismos de
monitoramento da Convenção, proclamou o Programa de Ação de Viena de 1993:
15
Neste sentido, ver a Declaração e Programa de Ação de Viena de 1993 e a Declaração e Plataforma de
Ação de Pequim de 1995, ao enfatizarem que os direitos das mulheres são parte inalienável, integral e
indivisível dos direitos humanos universais.
da probreza, na medida em que empobrece as mulheres e, por sua vez, a mulher com
dependência econômica torna-se mais vulnerável à violência doméstica, o que, por seu
turno, ainda agrava o empobrecimento das mulheres. Deflagra-se, assim, um perverso
ciclo vicioso, em que a violação de direitos civis leva à violação de direitos sociais e
vice-versa.
A Convenção elenca um importante catálogo de direitos a serem
assegurados às mulheres, para que tenham uma vida livre de violência, tanto na esfera
pública, como na esfera privada. Consagra ainda, a Convenção, deveres aos Estados-
partes, para que adotem políticas destinadas a prevenir, punir e erradicar a violência
contra a mulher.
A partir da Convenção de Belém do Pará surgem também valiosas
estratégias para a proteção internacional dos direitos humanos das mulheres, merecendo
destaque o mecanismo das petições à Comissão Interamericana de Direitos Humanos.
Considerando este cenário, marcado pelo destaque a dois grandes temas
relativos aos direitos humanos das mulheres – a discriminação e a violência – indaga-se:
De que modo esta sistemática internacional protege os direitos reprodutivos?
Reitere-se que a Convenção sobre a Eliminação da Discriminação contra
a Mulher, em seu artigo 12, trouxe os primeiros delineamentos internacionais acerca dos
direitos reprodutivos.
Estes delineamentos foram aprimorados e consolidados a partir do Plano
de Ação da Conferência sobre População e Desenvolvimento do Cairo de 1994 e pela
Declaração e Plataforma de Ação de Pequim de 1995. Embora não sejam tratados
internacionais, mas declarações, ambos apresentam valor jurídico, na medida em que
deles extraem-se princípios internacionais, que constituem importante fonte do Direito
Internacional, a nortear e orientar a interpretação e a aplicação do Direito.
Em 1994, na Conferência do Cairo, ineditamente 184 Estados
reconheceram os direitos reprodutivos como direitos humanos. Em 1995, as
Conferências internacionais de Copenhaguem e Pequim reafirmaram esta concepção.
Com efeito, a Conferência do Cairo sobre População e Desenvolvimento
de 1994 estabeleceu relevantes princípios éticos concernentes aos direitos
reprodutivos16, afirmando o direito a ter controle sobre as questões relativas à
sexualidade e à saúde sexual e reprodutiva, assim como a decisão livre de coerção,
discriminação e violência, como um direito fundamental. Nesse sentido, merece
destaque o princípio 4 da Conferência Internacional sobre População e
Desenvolvimento, do Cairo, de 1994:
16
Note-se que o Plano de Ação do Cairo recomenda à comunidade internacional uma série de objetivos e
metas, tais como: a) o crescimento econômico sustentado como marco do desenvolvimento sustentável;
b) a educação, em particular das meninas; c) a igualdade entre os sexos; d) a redução da mortalidade neo-
natal, infantil e materna e e) o acesso universal aos serviços de saúde reprodutiva, em particular de
planificação familiar e de saúde sexual.
A Conferência do Cairo realça ainda que as mulheres têm o direito
individual e a responsabilidade social de decidir sobre o exercício da maternidade,
assim como o direito à informação e acesso aos serviços para exercer seus direitos e
responsabilidades reprodutivas, enquanto que os homens têm uma responsabilidade
pessoal e social, a partir de seu próprio comportamento sexual e fertilidade, pelos
efeitos desse comportamento na saúde e bem-estar de suas companheiras e filhos.
Como explica Leila Linhares:
17
LINHARES, Leila. As Conferências das Nações Unidas influenciando a mudança legislativa e as
decisões do Poder Judiciário. In: Seminário “Direitos Humanos: Rumo a uma jurisprudência da
igualdade”, Belo Horizonte, de 14 a 17 de maio de 1998.
liberdade e autonomia individual, em que se clama pela não-interferência do Estado,
pela não-discriminação, pela não-coerção e não-violência (dimensão típica dos direitos
civis).
Por outro lado, o efetivo exercício dos direitos reprodutivos demanda
políticas públicas, que assegurem a saúde sexual e reprodutiva. Nesta ótica, fundamental
é o direito ao acesso a informações, meios e recursos seguros, disponíveis e acessíveis.
Fundamental também é o direito ao mais elevado padrão de saúde reprodutiva e sexual,
tendo em vista a saúde não como mera ausência de enfermidades e doenças, mas como a
capacidade de desfrutar de uma vida sexual segura e satisfatória e reproduzir-se com a
liberdade de fazê-lo ou não, quando e com que frequência. Inclui-se ainda o direito ao
acesso ao progresso científico e o direito de receber educação sexual. Portanto, aqui é
essencial a interferência do Estado, no sentido de que implemente políticas públicas
garantidoras do direito à saúde sexual e reprodutiva (dimensão típica dos direitos
sociais).
A Declaração e a Plataforma de Ação de Pequim de 1995 endossam esta
concepção, adicionando a idéia da interdependência e indivisibilidade dos direitos
humanos, ao afirmar: “na maior parte dos países, a violação aos direitos reprodutivos
das mulheres limita dramaticamente suas oportunidades na vida pública e privada, suas
oportunidades de acesso à educação e o pleno exercício dos demais direitos”. A
privação dos direitos reprodutivos tem implicado a morte de milhões de mulheres, além
de doenças e impedimentos evitáveis.
Note-se que ambos os instrumentos internacionais afirmam que a
temática do aborto deve ser considerada sob o prisma da saúde pública, encorajando os
Estados a revisar as legislações que estabelecem medidas punitivas a tal prática.18
Há que se observar que a Carta de 1988, em seu artigo 226, parágrafo 7o,
está afinada com os parâmetros internacionais, na medida em que afirma o
planejamento familiar como livre decisão do casal (e dos indivíduos), cabendo ao
Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício deste direito
(prestação estatal positiva, típica dos direitos sociais), vedada qualquer coerção
(prestação estatal negativa, típica dos direitos civis). A Lei 9.263, de 12 de janeiro de
1996, veio a regulamentar o aludido preceito constitucional, tratando do planejamento
18
Segundo o Alan Gutmacher Institute, em 1994, teriam ocorrido 1.400.000 abortos clandestinos no país.
Correa e Freitas (1997), estimam a ocorrência de 728.100 abortos provocados no país para o ano de 1996.
Oficialmente, o aborto figura como a quinta causa de internação hospitalar de mulheres no Sistema Único
de Saúde, contribuindo com 9% dos óbitos maternos e com 25% dos casos de esterilidade por causa
tubária. Outros estudos apontam a ocorrência de 37,5 abortos para cada 1000 mulheres ou 31,0 para 100
gravidezes (Costa, 1998). Vale ressaltar a implantação pelo país de serviços que realizam abortos nos
casos previstos por lei. Embora o número ainda reduzido destes serviços (cerca de trinta e cinco em todo
o território nacional, com estruturas variadas e diferentes graus de implantação), não permita que haja um
impacto quantitativo na magnitude do problema do aborto inseguro no país, a importância política e
sanitária destas iniciativas têm sido incontestáveis. A respeito, consultar “Diagnóstico sobre a situação
dos direitos sexuais e reprodutivos na América Latina”, elaborado pelo CLADEM (Comitê Latino-
Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher) e Rede Nacional Feminista de Saúde e
Direitos Reprodutivos, julho de 2001. Ainda em relação ao direito ao aborto, deve ser assinalada a
importante e bem sucedida articulação entre feministas, sindicalistas e profissionais de saúde que
conseguiram aprovar na Conferência Nacional de Saúde, instância máxima do Sistema Nacional de
Saúde, uma moção de apoio à realização do aborto previsto por lei, direito constantemente ameaçado por
projetos apresentados por parlamentares ligados à CNBB, que pretendem suprimir todo e qualquer direito
à interrupção da gravidez. (“Diagnóstico sobre a situação dos direitos sexuais e reprodutivos na América
Latina”, elaborado pelo CLADEM e Rede Nacional Feminista de Saúde e Direitos Reprodutivos, julho
de 2001).
familiar, no âmbito do atendimento global e integral à saúde.19 Em seu artigo 2º, a Lei
define o planejamento familiar como o conjunto de ações de regulação da fecundidade
que garanta direitos iguais de constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher,
pelo homem ou pelo casal. O parágrafo único deste artigo proíbe a utilização de tais
ações para qualquer tipo de controle demográfico.
20
ÁVILA, Maria Betânia de Melo. Modernidade e cidadania reprodutiva. In: ÁVILA, Maria Betânia de
Melo; BERQUÓ, Elza. Direitos reprodutivos: uma questão de cidadania. Brasília: Centro Feminista
de Estudos e Assessoria - CFEMEA, 1994. p. 9. A respeito, acrescenta a mesma autora: “Por muito
tempo, as questões referentes às mulheres foram postas como pontos separados de uma agenda que
privilegiava a luta pela descriminalização do aborto e o acesso à contracepção. A concepção e o exercício
da maternidade eram possibilidades que, do ponto de vista moral, já estavam dadas, inclusive como
prerrogativas fundamentais ou essenciais da existência das mulheres”. (op. cit., p. 9).
21
Note-se que, com fundamento no artigo 12 da Convenção, será possível encaminhar casos de violaçåo a
direitos reprodutivos.
22
Cf.PIMENTEL, Silvia. Direitos Reprodutivos e Ordenamento Jurídico Brasileiro: subsídios a uma
ação político-jurídica transformadora. In: Cadernos CCR 2, Comissão de Cidadania e Reprodução, São
Paulo, 1993 (mimeo), p. 94.
5. BIBLIOGRAFIA