Texto Sambaquis
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Agência Fapesp
Cáries são indício de que sociedades que viveram no litoral da Mata Atlântica tinham alimentação rica em carboidratos
Sambaquis são formados pelo descarte de conchas e de restos de animais marinhos, acumulados ao longo de
centenas ou de milhares de anos. Tais formações foram construídas entre 8 mil e mil anos atrás por povos que viveram
no litoral da Mata Atlântica. A região tradicionalmente é vista como periférica aos primeiros centros de produção de
alimentos na América do Sul, os Andes e a Amazônia. Mas um novo estudo apresenta fortes evidências de que as
sociedades que estariam por trás da construção dos sambaquis não eram caçadoras-coletoras comuns. O trabalho indica
manejo ou cultivo de vegetais e uma dieta rica, com elevado consumo de carboidratos.
Os resultados do estudo, feito por pesquisadores do Brasil e do Reino Unido, foram publicados na Royal Society
Open Science. O trabalho foi feito a partir de dados coletados nos sambaquis Morro do Ouro e Rio Comprido, em Joinville
(SC). “O alto consumo de alimentos ricos em carboidratos nesses dois sambaquis sugere que o sustento de suas
populações estava baseado em uma economia mista. Uma economia que aliava a pesca e a coleta de frutos do mar com
alguma forma de cultivo de plantas”, disse o bioarqueólogo Luis Nicanor Pezo-Lanfranco, do Instituto de Biociências (IB)
da USP, primeiro autor do artigo, cujo estudo teve apoio da Fapesp. Pezo-Lanfranco desenvolveu o estudo no Laboratório
de Antropologia Biológica do IB, liderado pela professora Sabine Eggers em parceria com arqueólogos da University of
York, no Reino Unido, e do Museu do Sambaqui de Joinville (SC).
De acordo com a visão tradicional da arqueologia pré-histórica na América do Sul, os caçadores-coletores que
habitavam os sambaquis proveriam seu sustento primordialmente a partir da exploração de recursos marinhos. Tal ideia
começou a ser contestada nos anos 1980, a partir do surgimento de evidências dando conta de que teria existido nos
sambaquis uma economia muito mais diversificada. A alta frequência e o grande volume de alguns sambaquis na costa
sul do que é hoje o Brasil, contendo centenas de enterramentos humanos, são considerados evidências da alta densidade
populacional, de arquitetura monumental e da complexidade social dos sambaquis durante o Holoceno Médio e Tardio.
Um dos principais indícios a sugerir a ocorrência de uma dieta mais variada nos sambaquis foi a constatação da
existência de cáries nos dentes dos esqueletos enterrados, interpretada como decorrência direta do elevado consumo de
carboidratos. Outra pista importante foi a identificação – graças a escavações arqueológicas – de restos de possíveis
culturas incipientes, como tubérculos (inhame e batata-doce), milho, palmeiras e anonáceas (a família da fruta-do-conde
e da graviola). O novo estudo tem base em evidências de patologia oral e em resultados isotópicos extraídos
diretamente dos esqueletos. As análises revelaram o consumo inesperadamente alto de recursos vegetais, ou seja, de
carboidratos, entre as populações que habitaram o sambaqui Morro do Ouro do litoral norte de Santa Catarina durante o
Holoceno Médio (de 8 mil a 4 mil anos atrás).
O litoral norte do Estado de Santa Catarina tem a maior concentração de sambaquis da costa brasileira. Centenas
de locais estão distribuídos em torno da Baía de Babitonga. “Realizamos análises de saúde bucal e isótopos estáveis em
esqueletos humanos de enterramentos nos sambaquis do Morro do Ouro e Rio Comprido, para desvendar seu
comportamento dietético durante o Holoceno Médio e Tardio”, disse Pezo-Lanfranco. Escavações arqueológicas feitas no
local nos anos 1980 obtiveram grandes quantidades de vestígios de fauna terrestre e marinha, artefatos, estruturas
domésticas e enterramentos humanos. Os vestígios da fauna incluem diversas espécies de moluscos, peixes e mamíferos
terrestres, como paca (Cuniculus paca) e porco-do-mato (Pecari tajacu). Também foram achadas ferramentas de pedra
polida e restos carbonizados de frutos de palmeiras. Segundo Pezo-Lanfranco, no total foram encontrados 116
enterramentos humanos em várias expedições arqueológicas entre 1960 e 1984. A partir da datação do colágeno de
ossos realizada por este estudo, sabe-se que o local foi ocupado entre 4,8 mil e 4,1 mil anos atrás, no Holoceno Médio.
Análises de minúsculos restos de cálculo dentário realizadas por Verônica Wesolowski, do Museu de Arqueologia e
Etnologia da USP, em 2010, já tinham identificado amostras com batata-doce, inhame e frutos de palmeiras neste sítio.
No sambaqui Rio Comprido, distante 4 quilômetros, foram encontrados, na década de 1970, facas e machados de pedra
polida, bem como 67 enterramentos humanos. O local foi ocupado durante duas fases. A fase denominada Rio Comprido
1 (RC1) se deu entre 5,6 mil e 4,3 mil anos atrás, no Holoceno Médio. A fase Rio Comprido 2 (RC2), entre 4 mil e 3,4 mil
anos atrás, já no Holoceno Tardio.
Estimativas alimentares baseadas na análise isotópica de carbono e nitrogênio obtidos do colágeno de dentes e
ossos revelaram a composição da dieta. A principal fonte de proteína foi o peixe, variando de um mínimo de 33% nos
indivíduos de Morro do Ouro e de cerca de 87% a 90% em Rio Comprido 2. Essas estimativas sugerem que o consumo
de vegetais forneceu a maior parte das calorias em Morro do Ouro (em média 48%), seguido por peixe (44%) e, em
menor grau, por mamíferos terrestres (média de 8%), provenientes da caça. Os resultados obtidos com o colágeno dos
indivíduos de Rio Comprido 1 indicam a pesca como principal fonte de calorias na dieta (em média 48%), seguida de
vegetais (44%) e mamíferos terrestres (7%).
“Esta pesquisa coloca os neotrópicos no mapa dos centros mundiais de produção de alimentos da antiguidade. O litoral
da Mata Atlântica tem sido amplamente periférico nessa narrativa, apesar de sua biodiversidade única e dos registros
arqueológicos da densa ocupação humana desde o Holoceno Médio. O novo estudo desafia tal visão tradicional.
Reunimos evidências bastante convincentes da ocorrência de dietas ricas em carboidratos entre os caçadores-coletores
da região de Joinville há 4.500 anos. A confirmação de que se trata de sistemas de produção de cultivares e o estado de
domesticação dessas espécies aguardam estudos futuros”, disse Pezo-Lanfranco.