Mentiras Na Verdade Da República: Lies in The Truth of The Republic

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Mentiras na verdade da República

Lies in the truth of the Republic


Flávio R. Kothe

RESUMO ABSTRACT
A revisão da concepção de verdade implica no The revision of the conception of truth implies the
questionamento da duplicação metafísica do questioning of the metaphysical duplication of
mundo, que encontra na “República” de Platão the world, that has in Plato’s Republic a definitive
uma formulação lapidar, mas tem lá também, formulation, but has there also, in the parable of
na parábola da caverna, uma ficção que permite the cave, a fiction that allows an inverse
uma interpretação inversa ao que formulado na interpretation to what is formulated in the
argumentação lógica. logical argumentation.

Palavras-chave: Verdade; Metafísica; Keywords: Truth; Metaphysics; World


Duplicação do mundo; Mito da caverna. duplication; The myth of the cave.

Professor titular de Estética na FAU/UnB, autor de obras sobre o cânone literário brasileiro, a narrativa trivial, a teoria
literária e a arte comparada, tradutor de Nietzsche, Marx, Kafka, Benjamin, Adorno, Habermas e outros, autor de
poemas, contos e novelas.

http://dx.doi.org/10.18830/issn.2238­362X.n2.2017.02 11
Se moquer de la philosophie,
c’est vraiement philosopher. reacionárias, ainda que por omissão. Sob
Pascal aparência de ciência cai em miopia alienada,
que não enxerga suas limitações como não vê o
que projetou. Sob o distante e antigo, fica
NA TERRA COMO NO CÉU presente o imposto pelo presente. Não por acaso
Assim na terra como no céu: perdidos Nietzsche e Heidegger foram usados pelo
estaremos enquanto não nos recuperarmos nazismo e o classicismo antigo foi modelo
da alienação metafísica. Estamos num país estético para regimes totalitários. Os Estados
em que a oligarquia nos três poderes tem Unidos se apresentam como democracia, mas
aparecido cada vez mais como corrupta e são uma plutocracia imperialista, cuja capital
mentirosa. Isso não acontece por acaso, tem foi construída imitando os gregos.
raízes metafísicas, não somos melhores que
outros nisso. Se estas não forem expostas, Aristófanes apresentou, em As nuvens, Sócrates
não serão superadas; explicitá-las não como o maior sofista. Isso é mais do que uma
garante cura, pois é mais cômodo ficar preso piada, é uma tragédia amarga, em que estamos
a elas. Calar é conformar-se; falar, suicidar- mergulhados ainda. Se “o filósofo” não vive do
se. Como se fizer, vai se fazer errado. ensino, de que vive ele? Do trabalho escravo.
Como Platão e Aristóteles. Um truque filológico
A duplicação metafísica do mundo, consagrada é, então, empurrar o “erro” para um
pelo cristianismo, pelo romantismo e por personagem como Sócrates, a fim de preservar o
movimentos totalitários, é pregada em Platão, autor Platão. Embora se deva distinguir o que
especialmente nas falas de Sócrates, que, sob a Sócrates diz do que ele pensa, do que Platão
aparência de filósofo e antissofista, é um pensa sobre o que Sócrates pensa sobre o que
declarado missionário de Athon. A lógica do Sócrates diz, Platão não é tão inocente. Há
“mito da caverna” é impositiva: quem visitou omissões e distorções graves. Temos de ler
uma caverna sabe que existe o mundo fora da Platão contra Platão para chegar a Platão.
caverna, portanto existem o céu e seus deuses. Mesmo que na República haja a transição de um
Sócrates pretende ser superior aos “sofistas”, Sócrates dogmático para um que parece pensar,
que são professores pagos e, só por isso, esse “progresso” não é acompanhado por uma
aparecem como grandes mentirosos. Alguém evolução de Glauco, em geral um coroinha a
ser pago ou não por uma aula não faz a dizer amém em vez de ser um antagonista. O
diferença entre ela ser ou não verdadeira. diálogo é apenas aparente, não há dialogismo.
Platão não foi platônico, mas propiciou o
platonismo. Carrega culpa. Na República, as formas de governo decorrem
umas das outras por suas características, mas
A tradição de estudos clássicos costuma passar por baixo desse laicismo aparente há a teologia
batido o problema do escravismo dizendo ser de que só poderá bem governar quem tiver
anacrônico, para daí se perder em detalhes sangue divino: o aristocrata. Sócrates propõe-se
filológicos (sem ter uma edição crítica histórica criar um Estado mais justo, uma forma de
confiável) e acaba por endossar posturas governo que seja capaz de exercer o bem

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comum. Aparece, portanto, repleno de boas fundos para ascender ao poder, no qual não vai
intenções: aparenta querer o bem comum, cumprir o prometido. A democracia leva à
quando de fato pretende, sob a aparência de manipulação demagógica. No poder, o
meritocracia, aperfeiçoar a aristocracia demagogo vai ficando cada vez mais sozinho,
escravista de sangue. tendendo a locupletar-se: ele é o principal
beneficiário do seu povo.
Nem todo aristocrata tem vocação e jeito para o
poder. O filho mais novo pode ser mais hábil do Frustradas as expectativas, ele só se mantém no
que o mais velho, como se mostra nos filhos de governo pela força, e pela força é que acaba
Édipo ou de patriarcas bíblicos. O mundo das sendo apeado. Tem-se então a ditadura militar.
ideias é proposto como contrapartida ao Os militares no poder vão tomando gosto pelas
“mundo das cópias”, para “resolver” de modo benesses do poder, ficam se regalando e
mágico um impasse para o qual o autor parecia corrompendo, privatizam o bem público e
não ter a solução, ou seja, sob a aparência de acabam perdendo as virtudes militares.
como se pode chegar à identidade de coisas Provocam assim uma rebelião popular que, ao
diversas, ver como se escolheria o mais hábil ter êxito, restabelece a democracia, reiniciando
dos herdeiros senhoriais para garantir o todo o ciclo perverso.
domínio de sua classe.
Para romper esse círculo, considerado vicioso
A Igreja Católica implantou esse sistema, e ele devido aos enormes desgastes e sofrimentos do
funciona há milênios, sem que se questione seu seu moinho de carne, Sócrates propõe outra
fundamento: qual é o mérito do mérito? Quem forma de governo: a aristocracia do mérito. Ela
questionou isso foi reprimido, pagou com diferiria da aristocracia do sangue, pois o filho
exclusão, tortura e morte. Platão aparenta de um homem de ferro poderia ser um homem
buscar o que é justiça, já que não basta a de ouro, assim como o filho de um homem de
resposta de que ela é a vontade do mais forte, ouro poderia ser apenas de ferro. Esse modelo
mas pressupõe como justas a escravidão e a já existia sob a forma da teocracia, em que a
aristocracia de sangue. Aparenta propor a casta sacerdotal governava, como aconteceu na
melhor forma de governo, já que todas as antiga Grécia e no Egito.
existentes são problemáticas, mas não
problematiza a sua. A Igreja Católica adotou essa forma de governo,
com a variante única de ter a monarquia eleita,
Ao contrário da crença democrática hodierna, em que os pares escolhem seu príncipe, dizem
dominada por pressupostos teológicos cristãos que iluminados pelo Espírito Santo, mas nem
de igualdade, Sócrates não está convencido de todos conseguem sintonizar bem a voz do alto.
que a melhor forma de governo seja a O celibato religioso foi imposto para enriquecer
democracia, pois ela é para ele uma feira livre a instituição, seja por herança e seja evitando
em que todos gritam, achando que podem dar gastos com a família, mas resolveu em parte a
palpite em tudo, especialmente no que não questão do nepotismo (podem ocorrer
entendem. Nela o político promete mundos e “sobrinhos espirituais”). O porta-voz de Platão,

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Sócrates, não discute se o homem de ouro não Hoje, a “escravidão” se disfarça de salário
teria a propensão de fazer seus filhos aparecerem mínimo, empreitada e diária, que são formas
como homens de ouro. Não garante que um mais baratas do que manter escravos
homem de ouro poderia t er nascido escravo, mas permanentes. Por essa semelhança estrutural,
o “mito da caverna” nos indicia uma resposta: tendemos a não ver o que mais deveríamos.
não há homem de ouro parido por escrava. Sócrates é o sofista maior, e sobre ele repousa a
cultura ocidental. Aparece como representante
MENOS IGUAIS da verdade, quando é um ideólogo do
escravismo. Não agrada falar do que mais dói.
Em Eurípides, nas Troianas, mulheres da
aristocracia vencida lamentam ter sido Platão chega a aventar, através de Sócrates, que
reduzidas a escravas, mas dentro da concepção um escravo poderia ter “alma”, à medida em
de que quem nasceu livre e tem sangue azul que ele é capaz de intuir princípios de
não está predestinado a ser escravo. Nas Leis, proporção geométrica e matemática, já que sua
Platão, ao falar da posição da mulher no “psiquê” poderia ter contemplado o mundo das
casamento, toca por analogia na questão da ideias. Aristófanes resolveu isso com uma
escravidão, no sentido de que nenhuma pessoa risada: quando escravos disputam o direito de
sensata iria duvidar da legitimidade do serem levados para os Campos Elísios, diz que
escravismo, do direito de um povo escravizar eles não têm dinheiro, não podem pagar o
os vencidos (assim como, podemos transporte. Mesmo que tivessem “alma”, seu
depreender, cabia aos patriarcas submeter as destino seria ficar vagando: almas penadas pelo
mulheres). Ele recomendava equilíbrio no mundo (conforme haviam feito em vida). No
trato com escravos: nem despótico a ponto de Direito Romano, um escravo equivalia a um
provocar vingança contra familiares, nem cavalo ou a um boi: seu dono podia bater nele,
íntimo a ponto de se tornar dependente. Ele podia até matá-lo, que não seria
tinha, portanto, noção da “política” nesse responsabilizado por crueldade ou assassinato.
setor, o que ele ignora na República.
Platão não leva adiante, contudo, a suposição de
Reiteradamente tem-se nele a assertiva de que o escravo ter alma: o cristianismo deveu seu
os “sofistas” são indecentes e inconfiáveis na sucesso à democratização da imortalidade antes
argumentação porque “vendem reservada a deuses e raros descendentes. Ao
conhecimentos”, ou seja, são professores preço de três gotas e palavras mágicas, cada um
assalariados. A contrapartida é um “mestre” que queria a sua. Na perspectiva antiga, somente as
não precisa ser pago para ficar lecionando. Ora, famílias nobres tinham um ascendente divino e,
quem sustenta esse mestre? Que mestre é esse portanto, lhes corria nas veias um “sangue
que não precisa de dinheiro para sobreviver? azul”, que lhes dava superioridade social, a
Qual seu segredo? Ora, simples: já que o Estado capacidade de realizar feitos históricos, dando-
não intervém, tem escravos que o sustentam, lhes o direito de ter governança, gado e gente.
ele vive, e bem, às custas de escravos: como Aquilo que os tornava superiores à média dos
professor, prepara novas elites de comando. homens livres era terem uma anomalia, uma

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ruptura com a ordem natural das coisas, o que Lukács, ao falar no “irracionalismo na filosofia
levava também ao seu final trágico, pelo qual se alemã”, propôs que a escravidão havia deixado
corrigia a “aberração”. O gênio virou nobre de ser condição necessária para a produção
espiritual moderno. intelectual, já que a tecnologia proporciona uma
abundância de produção que permite sustentar
O Sermão da Montanha é a inversão da ética dos grupos sociais que se dedicam à produção
patrícios. Cristo gosta de débeis mentais (pobres intelectual. Quanto maior a tecnologia, maior
de espírito), pescadores que não tinham sequer pode ser, contudo, a exploração do trabalho e a
terra, mulheres adúlteras, prostitutas, doentes e manipulação das mentes. Benjamin propôs que
defuntos. Ele não gostava de gente inteligente, a produção artística faria parte das forças de
forte, organizadora, inventiva, não gostava de produção e, como tal, teria uma função
artistas, cientistas, estadistas, empresários. inovadora nas relações sociais: a burguesia
Quanto pior, melhor. Ele era tão perverso na sua percebeu isso melhor que ele.
inversão quanto era o patriciado na arrogância.
Adorno achou que a condição de mercadoria
Hegel, no final da introdução à História da degradava a obra de arte. Para o artista e o
Filosofia, admite que a escravidão tenha estado intelectual, no entanto, conseguir que suas
subjacente à produção de filosofia e arte em obras sejam adquiridas significa que alguém
Atenas, mas diz que a ele só interessava o decidiu trocar um tempo do seu trabalho pelo
resultado. Este, porém, era determinado pelas tempo deles. Isso envolve uma valorização do
condições de produção, ele está no cerne do que produto e não apenas a sua degradação. O pior
se propõe como filosofia: não é um vetor que para quem produz é não conseguir vender.
possa ser descartado. Se a verdade é a Dizer que a arte tem função no capitalismo por
percepção do objeto em suas múltiplas não ser útil é não perceber quão útil é a
determinações, esse fator é a condição de estetização para a dominação social. Basta ver
subsistência da produção. os santinhos que se vendem nas épocas de
eleição e os capetas que estão por baixo.
Nietzsche admitia que, na história, a escravidão
tinha sido a condição possibilitadora da Com a industrialização capitalista, o direito de
produção artística e filosófica, e até falava da comprar e vender no mercado e a semelhança
“metamorfose do escravo”, ou seja, que o nas condições de trabalho, bem como a crença
trabalhador moderno, do século XIX, era um cristã numa comunidade fundamental,
escravo mais barato que um escravo, pois este impuseram a igualdade como paradigma. Ela não
precisa ser comprado, cuidado e mantido, é, contudo, um valor apenas necessário à
enquanto o assalariado ou o diarista são mecânica do mercado. Foi herdada pela
contratados para determinadas tarefas, por um revolução socialista, mas já é um tema central na
preço que em geral é menor do que o de um Grécia antiga. Esse princípio vem sendo lido como
escravo, com a vantagem de o patrão poder se igualação do desigual, mas pode ser interpretado
livrar dele mais facilmente. Ter um mau escravo também como respeito à desigualdade do
é ter um péssimo casamento. desigual. Igual nos humanos é serem desiguais e

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finitos (com a pretensão de serem infinitos). Crê- roupas, sandálias, alimentos, massagens,
se que todos devam ter iguais oportunidades. aromas –, enquanto pinturas e esculturas,
Mesmo que essa crença seja praticada, quem é música e peças teatrais, casas e praças eram
desigual não aproveita igualmente feitas por trabalhadores livres. A diferença de
oportunidades iguais. E quem mais aproveita corpo e alma decorria da diferença do valor
pode se tornar um malandro melhor treinado. social do labor. Platão achava que na língua
grega seria inapropriado dizer uma bela
Se a estrutura social continua sendo de uma comida, um belo perfume, mas na linguagem
minoria que vive bem às custas do trabalho da brasileira isso já não soa tão estranho, só que
maioria, pode-se entender que não se tenha para ele não se poderia filosofar senão em
desenvolvido uma sensibilidade para a grego. Não há por que a língua grega deva ser
desigualdade. Os filósofos tendem a estar parâmetro mundial, conforme impera na lógica
mancomunados com a exploração de classe e até hoje. Não está no Gênesis que ela tenha sida
não se preocupam com isso. A inovação a língua adâmica.
filosófica moderna deu-se, porém, quando a
noblesse de robe, ou seja, a burguesia Subjacente a isso deve haver algo mais. A obra de
esclarecida, pôs-se a pensar. Heidegger, por arte é mais significativa que o artesanato, mesmo
exemplo, discute vários aspectos do mito da quando este seja adornado. A significação da
caverna, mas não considera o problema social obra de arte tem sido vista como expressão da
subjacente. Não é problema para ele. E ele era ideia, a manifestação da verdade, a revelação da
mais inteligente. alétheia. Ela é, porém, algo mais do que um
agente transmissor de algo cuja validade
MÉRITO pretende estar fora dela. De qualquer modo, fica
impresso que o “escravo” não teria nada a dizer.
No Hipias Maior como em outros textos, E isso se confirma no livro VII da República.
Platão afirma, categórico, que a arte se volta
apenas para os sentidos da visão e da Outro ponto central que não é discutido na
audição. Essa proposição foi repetida por Politeia é o que se entenderia por mérito. O que
filósofos como Solger e Hegel, mantendo-se a uns parece mérito, conforme determinado
inquestionada até hoje nas universidades. A paradigma, pode ser visto como demérito ou
divisão de obras feitas pelo homem entre carência de méritos segundo outros
arte e artesanato é proposta como uma paradigmas. A correta aplicação parece
divisão sensorial: haveria dois sentidos verdadeira para quem não vai além deles. Juízes
superiores, espirituais, e três inferiores, julgam, conforme paradigmas, apenas o que
corporais. Ora, aqueles são corporais assim consta nos autos do processo, mas quem
como estes são também “espirituais”. Há algo garante que tudo o que é atinente ao caso
mais nesse erro. consta dos autos e quem julga os paradigmas, a
leitura que fazem os juízes? Na Igreja essa
O que ia para o consumo da boca, do nariz e da questão é reprimida pelo voto de obediência,
pele era gerado por trabalho feito por escravos – pela propaganda sacralizadora, pela crença no

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absoluto. Até mesmo Freud disse, ao querer a Um vetor central na “República” é que a
expulsão de jovens brilhantes da sociedade sucessão de formas de governo ocorre pelas
psicanalítica, que preferia a instituição aos características de cada uma delas, pela
gênios. A universidade brasileira é uma dialética interna de suas contradições, e não
instituição marcada pela perseguição e pela ação externa de uma entidade como uma
discriminação contra o talento. Divina Providência. A rigor, nesse sentido,
dispensa-se a autoridade de um “mundo das
Não discutir o mérito do mérito não é ocasional, ideias” que ditasse as regras do devir laico dos
mas determinado pelo movimento ideológico governos. Quando os cardeais escolhem um
subjacente à obra, que leva a olvidar o sentido deles como papa, diz-se que eles foram
de verdade como “alétheia”, como um inspirados por Deus, como se fossem meros
desvelamento, para optar pela “correção executantes, coroinhas da vontade divina. Nem
conforme paradigmas”. Há um paradigma todos estão, no entanto, bem antenados. A
básico na “casa” que é a caverna e que não é Igreja Católica é uma monarquia eletiva, que
questionado. Nessa moradia coletiva tem-se a foi durante séculos dominada pela aristocracia
síntese alegórica da sociedade antiga. Sob a italiana. Agora tem um papa Chico disfarçado
aparência de iluminar, tem-se antes um de argentino. Se ele fosse preto ou amarelo não
obscurecimento do que a busca radical da faria diferença estrutural.
verdade. A atmosfera é sufocante.
Se não há fator divino na evolução da história, o
Seja quando Sócrates propõe que há um mundo mundo das ideias também não precisaria existir
das ideias, anterior a tudo, do qual a realidade como algo à parte. A “visão grega do mérito”
seria uma “cópia”, seja quando “se redime como não admitia mérito em quem não tivesse sangue
filósofo” e propõe que esse mundo ideativo é nobre: o “filósofo” somente pode surgir entre os
como um espelho, um reflexo do real na mente, membros da “classe ociosa”, assim como, na
os dois modelos se complementam numa trilogia tebana de Sófocles, aquele que chega ao
relação de “adequação” como verdade. Isso poder por mérito aparente, ser o mais esperto,
provém de um modelo matemático: X = Y. Tanto Édipo, é filho do rei anterior. Quem diz que a
faz dizer: Y = X, para distinguir materialismo de esfinge se matou? Édipo. A esfinge do poder não
idealismo. Quando Descartes faz sua “revolução se suicida só porque alguém enunciou ou
moderna”, ele se mantém no mesmo parâmetro denunciou sua natureza. Ela tem cara de pau e
de ideias claras e distintas, de modelo adeptos que votam nela. Ela sai do encontro
geométrico e matemático. Aí, um triângulo é disfarçada de Édipo, que nem sabe quem ele é.
uma figura geométrica com 3 ângulos, que não
pode ter 4, 5 ou 6, embora os três outros estejam A tese implícita de Sócrates é que alguém nasce
nela; um quadrado tem 4 lados, quando se pronto para governar, mas precisa ter uma
esquecem de somar os de dentro com os de fora. formação escolar especial. Somente há de se
O princípio da não-contradição é um meio de desenvolver o país que tiver escolas de elite.
reprimir a liberdade de pensar. Ele está Como escolher, no entanto, os mais aptos?
embutido na alegoria da caverna. Platão deixa isso por conta do milagre de

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- Exatamente.
alguém se libertar das cadeias que o prendem.
Dribla assim o problema político. - Pois bem: com que parte da nossa natureza
percebemos as coisas visíveis?
Na parte final da obra, Sócrates diz que Glauco
poderia criar também um “mundo das ideias”, - Com a vista – respondeu ele.
bastaria ir pelo campo com um enorme espelho,
veria nele refletidas as nuvens, as árvores, até a - E com o ouvido percebemos o que se ouve, e
por meio dos demais sentidos tudo o que é
si mesmo. As “ideias” são derivadas da
perceptível?
realidade, a mente é como um espelho que
reúne e sintetiza a imagem das coisas. Platão - Sem dúvida.
não é platônico. Se ele tem o mérito de ter
desconstruído a proposição de um mundo de - Nunca notaste quão generoso foi o artífice
protótipos anterior a todas as coisas, no qual o dos sentidos para com a faculdade de ver e de
cristianismo acreditou, não foi capaz de ser visto do que para com as outras?
perceber que a inversão do mesmo não alterava
o paradigma mimético básico, a verdade como - Não, nunca.
adequação, como correspondência de X = Y.
- Reflete, então: existe alguma coisa de espécie
Parou de pensar onde devia começar.
diferente que seja necessária ao ouvido para
ouvir ou à voz para ser ouvida – algum terceiro
DO SENTIDO ESPIRITUAL elemento sem o qual não possa haver audição?

Entre a linha do argumento dito filosófico e a - Nenhum – respondeu.


linha do que é narrado na Politeia (que não é
“republicana”, como traduz), há contradições - Nenhum, com efeito – disse eu – e creio que o
que precisam ser lidas. Talvez o autor não as mesmo sucede com todas ou quase todas as
tenha percebido, talvez as tenha outras faculdades. Ou podes citar-me alguma
intencionado. Tanto faz, ele está morto. Resta que necessite de tal adição?
o que se tem do texto. A leitura sinedóquica
- Não, por certo.
tenta decifrar o todo pela parte, como se o
horizonte dela pudesse ser mais amplo por - Exceto a faculdade de ver e de ser visto. Não
ter a liberdade da ficção, que acaba percebeste que essa, sim, necessita?
sugerindo mais do que o autor gostaria de
dizer. O todo aqui não é apenas um livro, - Como?
mas a estrutura da tradição metafísica.
- Porque ainda que haja vista nos olhos e o
Na parte final do livro VI, trava-se o seguinte dono destes deseje ver, e ainda que a cor
esteja presente nas coisas, se não se
diálogo:
acrescentar um terceiro elemento
“ – E do múltiplo dizemos que é visto, mas não especialmente adaptado a esse fim, nem a
concebido, ao passo que as ideias são vista perceberá coisa alguma nem as cores
concebidas e não vistas? serão visíveis?

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- A que elemento te referes?
Se “Deus é luz”, estratégico era filtrar sua
- Aquele que chamas luz, respondi. iridescência para que aparecesse aos homens
como visão da transcendência: assim se ergueram
- Tens razão.”1 em Chartres paredes mais altas na catedral, para
que lá em cima a rosácea desse uma visão do
Como não se pode conceber o múltiplo? Por que divino, trazendo o deus cristão à terra. Do mesmo
ele só pode ser “visto”? Quando Kant propôs o modo, a catedral da Sagrada Família em
que ele chamou de “esquematismo”, na Crítica Barcelona cria um grande berço de luzes coloridas
da razão pura, estava pensando em imagens que pelos vitrais para induzir à contemplação do
são concepções complexas, sínteses figurativas mistério, enquanto a Beinecke Library, em New
de multiplicidades, de maneira que se poderia Haven deixa passar a luz em camadas finais de
visualizar a ideia na configuração esquemática. mármore colorido e gera uma visão do encanto
A alegoria procura ser uma representação dos grandes livros raros. A pura descrição técnica
concreta, visível, de uma ideia abstrata. Quem dos recursos utilizados para fazer isso é míope,
compõe uma sinfonia tem uma imagem acústica incapaz de pensar o sentido deles.
complexa que pouco tem de visual. Seria
possível, portanto, refutar a primeira frase Platão afirma que, ao contrário do que ocorre na
citada. Além disso, há coisas visíveis que podem visualização, na audição não é necessário
ser percebidas por outros sentidos que não a nenhum terceiro elemento, além do ouvido e algo
vista, como o tato, o olfato, o som e até o gosto. a ser ouvido. Ele está errado. Se não houver ar,
água, metal ou algum outro meio para transmitir
A seguir se apresenta aí uma distinção entre o som até o ouvido, não haverá audição. No
visão e audição, sendo que na visão não vácuo perfeito não há audição, embora haja um
bastaria ter um olho para ver e uma coisa para ouvido e algo a ser ouvido. Por que ele erra? Por
ser olhada: é preciso haver luz para que se que um erro tão evidente não foi apontado?
possa ver. A luz é “ágathon”, condição de
possibilidade, que foi traduzida, segundo Esse “terceiro elemento” é mais que uma coisa
Heidegger, na Idade Média por “Sumo Bem”, ou só. Também não basta haver luz para ver. Se
seja, Deus como condição de possibilidade de alguém sofre de cegueira psíquica, não vai
todo o conhecimento: o parâmetro do enxergar, ao menos conscientemente, mesmo
conhecimento teria de ser o saber divino. Desse que seus órgãos funcionem perfeitamente.
modo são formuladas ainda hoje as leis Também não basta ter um olho bom e algo
científicas, como universais e necessárias, com iluminado a ser visto para que haja visão: é
as características divinas da eternidade, da preciso que os nervos transmissores funcionem
onipresença, da onipotência. e que os neurônios façam as devidas sinapses.
Dentro da proposição de Platão, o cego não tem
aquilo que mais caracteriza o homem. Como
havia cegos na Antiguidade também, por que
ele não levanta essa questão? Ele apenas
1 Platão, Diálogos III – A república, Porto Alegre, Editora
Globo, 1964, tradução de Leonel Vallandro, p. 196-197.
expulsa os cegos da condição humana.

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Em suma, não se pode reduzir tudo a apenas sujeito: quer-se que não apareça a possibilidade
um terceiro elemento, um “ágathon” para que de se ver as coisas pelo avesso. Em vez de ser
haja visão. Não seria preciso, portanto, haver um princípio de correção, é um gesto de
apenas um “Sumo Bem”. Isso vai também se repressão do outro, da voz alternativa, do olhar
tornar relevante, no entanto, se considerarmos pelo avesso.
que, na busca da Verdade que se anuncia no
livro VII, é preciso saber se ela é um meio para Os gregos, parece, não tinham boa noção do
algo mais elevado que ela própria, como a vácuo, mas poderiam ter tido. Se Aristóteles, no
Justiça, o Bem Comum, a Salvação Eterna, a Livro IV da Física, insiste tanto na noção de que,
sociedade perfeita, um povo eleito, uma classe ao colocar um líquido dentro de um cântaro, ele
salvadora. Toda vez que se submete a verdade não é colocado em um recipiente vazio e sim
aos interesses de uma instância considerada expulsa o ar que está aí dentro, ocupando o
mais alta, ela acaba sendo sacrificada. mesmo volume, ele tinha aí contada a noção de
ausência de ar, de vácuo. Seria dialética
O que é o Sumo Bem na escravidão? Para o primária. Por que Sócrates cai no erro de negar
senhor, ter escravos dóceis e produtivos; para o a existência de um terceiro elemento na
escravo, ter um bom senhor. Qual é o Sumo transmissão do som? Por que ele se engana? Por
Mal? Para o escravo, ser escravizado; para o que Platão não dá indícios de que há um erro
senhor, ter escravos vingativos. Platão trata aí? Por que Glauco é tão burro?
disso? Sim, nas Leis, ele sugere um bom meio
termo para o senhor poder controlar os Sócrates insiste que somente a visão teria esse
escravos, não sendo muito íntimo nem terceiro elemento. Quando sentimos um
dependente, mas também não sendo agressivo perfume, se não houver ar que transmita o odor
arbitrariamente para não provocar vinganças. ao nariz não vai haver percepção; quando
Aristóteles, no seu testamento, deu a liberdade a degustamos um sabor, é preciso que haja mais
alguns escravos bons e presenteou outros a que língua e papilas, ou seja, saliva; quando
amigos e familiares quando morresse. Ele sabia, sentimos algo na pele, é preciso que haja a
portanto, que não era bom ser escravo, mas transmissão de um toque, algo mais que uma
confundia virtude com ter noção de como as coisa a ser percebida e o tato para perceber: um
coisas são. toque que não seja forte nem fraco demais,
sendo que somos mais sensíveis em certas
Se para o leão é bom matar e comer a corça, partes da pele do que em outras.
para ela isso é bastante ruim, já dizia Nietzsche.
O altruísmo feito para si mesmo é considerado Sócrates queria privilegiar a visão para
egoísmo. O mesmo ato pode ser bom ou mau privilegiar o Sol como divindade da qual tudo
conforme a perspectiva com que seja visto. No dependeria, centro do universo. Esse modelo
Sumo Bem deve estar, portanto, o mal supremo persiste. Hoje, ele poderia insistir que a vista é o
também. Isso significa que o “princípio da não órgão que mais provoca reações neuronais
contradição” é um exorcismo, para que não se quando o sujeito é submetido a estímulos. “Você
veja que o contrário pode estar contido no viu” significa percebeu, verificou, constatou.

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de objetos, cuja altura ultrapassa a da parede,
Teria sido tão fácil dizer que cada sentido e estátuas e figuras de animais feitas de pedra,
precisa de um terceiro elemento, uma condição de madeira e outros materiais variados?
de possibilidade. Por que insiste em negar? Ele Alguns desses carregadores conversam entre
queria ver no sol a forma mais parecida com o si, outros marcham em silêncio.
olho, o ícone do próprio saber. Ele diz isso. A
fogueira dentro da caverna como um sol em - Que estranha situação descreves, e que
miniatura, de uso doméstico. estranhos prisioneiros!

- Como nós outros – disse eu. – Em primeiro


Sócrates nega as evidências para impor sua
lugar, crês que os que estão assim tenham
interpretação. Ele força a barra, ele mente. Ele é
visto outra coisa de si mesmos ou de seus
o sofista que ele acusa outros de serem. Por quê?
companheiros senão as sombras projetadas
Para quê? pelo fogo sobre a parede fronteira da caverna?

O INICIADO - Como seria possível, se durante toda a sua vida


foram obrigados a manter imóveis as cabeças?
No início do livro VII, tem-se o mais famoso
texto da filosofia, uma fábula: - E dos objetos transportados, não veriam
igualmente apenas as sombras?
“- E agora – disse eu – compara com a
seguinte situação o estado de nossa alma com - Sim.
respeito à educação ou à falta desta. Imagina
uma caverna subterrânea provida de uma - E se pudessem falar uns com os outros, não
vasta entrada aberta para a luz e que se julgariam estar se referindo ao que se
estende ao largo de toda a caverna, e uns passava diante deles?
homens que lá dentro se acham desde
meninos, amarrados pelas pernas e pelo - Forçosamente.
pescoço de tal maneira que tenham de
permanecer imóveis e olhar tão só para a - Supõe ainda que a prisão tivesse um eco
frente, pois as ligaduras não lhes permitem vindo da parte da frente. Cada vez que falasse
voltar a cabeça; atrás deles e num plano um dos passantes, não creriam eles que quem
superior, arde um fogo a certa distância, e falava era a sombra que viam passar?
entre o fogo e os encadeados há uma caminho
elevado, ao longo do qual faze de conta que - É indubitável.
tenha sido construído um pequeno muro
semelhante a esses tabiques que os titiriteiros - Para eles, pois – disse eu – a verdade,
colocam entre si e o público para exibir por literalmente, nada mais seria do que as
cima deles as duas maravilhas. sombras dos objetos fabricados.

- Vejo daqui a cena – disse Glauco. - Também é forçoso.

- E não vês também homens a passar ao longo - Torna a olhar agora e examina o que
desse pequeno muro, carregando toda espécie naturalmente sucederia se os prisioneiros
fossem libertados de suas cadeias e curados

Mentiras na verdade da República 21


da sua ignorância. A princípio, quando se - Não conseguiria – disse ele – pelo menos no
desate um deles e se obrigue a levantar-se de primeiro momento.
repente, a virar o pescoço e a caminhar em
direção à luz, sentirá dores intensas e, com a - Precisaria acostumar-se, creio eu, para poder
vista ofuscada, não será capaz de perceber chegar a ver as coisas lá de cima. O que veria
aqueles objetos cujas sombras via mais facilmente seriam, antes de tudo, as
anteriormente; e se alguém lhe dissesse que sombras; depois, as imagens de homens e
antes não via mais do que sombras inanes e é outros objetos. Alçaria então os olhos para a
agora que, achando-se mais próximo da Lua e as estrelas, e veria o céu noturno muito
realidade e com os olhos voltados para melhor do que o Sol ou a sua luz durante o dia.
objetos mais reais, goza de uma visão mais
verdadeira, que supões que responderia? - Como não?
Imagina ainda que o seu instrutor lhe fosse
mostrando os objetos à medida que - E por fim, creio eu, estaria em condições de
passassem e obrigando-o a nomeá-los: não ver o Sol – não suas imagens refletidas na
seria tomado de perplexidade, e as sombras água ou em qualquer outro lugar que não
que antes contemplava não lhe pareceriam seja o seu, mas o próprio Sol em seu próprio
mais verdadeiras do que os objetos que agora domínio e tal qual é em si mesmo.
lhe mostram?
- Necessariamente – disse ele.
- Muito mais – disse ele.
- Mais tarde, passaria a tirar conclusões a
- E se o obrigassem a fixar a vista na própria respeito do Sol, compreendendo que ele
luz, não lhe doeriam os olhos e não se produz as estações e os anos, governa o
escaparia, voltando-se para os objetos que mundo das coisas visíveis e é, de certo modo,
pode contemplar, e considerando-os mais o autor de tudo aquilo que o nosso prisioneiro
claros, na realidade, do que aqueles que lhe libertado e seus companheiros viam no
são mostrados? interior da.

- Assim é – respondeu. - É evidente – concordou Glauco – que veria


primeiro o Sol e depois raciocinaria sobre ele.
- E se o levassem dali à força, obrigando-o a
galgar a áspera e escarpada subida, e não o - E quando se lembrasse de sua anterior
largassem antes de tê-lo arrastado à presença habitação, da ciência da caverna e de seus
do próprio Sol, não crês que sofreria e se amigos companheiros de cárcere, não crês
irritaria, e uma vez chegado até a luz teria os que se consideraria feliz por haver mudado e
olhos tão ofuscados por ela que não sentiria piedade deles?
conseguiria enxergar uma só das coisas que
agora chamamos realidades? - Com efeito.”2

2 Platão – idem, p. 203-205.

22 Revista Estética e Semiótica | Volume 7 | Número 2


A ação se passa em quatro momentos distintos: (madeira por exemplo) e a inspiração para o
1) o status quo de funcionamento da caverna, teatro que encenam? Ou seja, antes de o
com sua encenação de sombras; 2) um “filósofo oriundo da classe ociosa” conseguir
prisioneiro se liberta; 3) ele sai da caverna; 4) sair, os escravos já saíram e já voltaram, mas
ele volta para a caverna. A “ação” que conta é a isso não conta, pois só o saber da classe alta é
que é contada, a do protagonista: não importa o que conta. Kant era filho de um carpinteiro.
quanto façam os serviçais físicos e espirituais. Cristo também.
Da perspectiva cristã, ele só pode sair da
caverna morrendo. Há alguns iluminados que Essa parábola, que fundamenta a gnosiologia
acham que com a contemplatio mystica Dei já ocidental, ignora seus fundamentos, repousa em
chegaram lá. Há gênios e artistas e malucos que deformações. A caverna é uma casa, uma
acham que dão esse giro também. moradia coletiva, uma síntese social, um modo
de compreender o mundo em miniatura. Ela é,
Se a caverna é o mundo em que estamos, não se nesse sentido, uma estrutura psíquica, um modo
pode sair dela em vida. Quem vive sabe, porém, de entender o mundo, a estrutura social. Glauco
que a caverna é exceção, não regra. Todos é quase débil mental, não apresenta as objeções
sabem que há um mundo fora da caverna. Por mínimas que deveria. Ele não cresce com o
isso, é muito estranho que acabe voltando quem questionamento. Deixa passar o evidente, ajuda
dela saiu. Há um sofisma na própria imagem, a cegar, não constitui voz alternativa.
ela dita suas consequências.
Na “parábola do Bom Samaritano” não se
Um missionário cristão ou um militante questiona a lógica proposta de dividir todos os
partidário é alguém que acredita ter encontrado recursos, escassos, conforme as necessidades,
uma saída: ele volta para salvar os demais, infindáveis. Quando se lê isso no púlpito, não se
convertendo-os à “boa nova”. Querer que o está propondo uma discussão. Há uma
mundo externo seja visto como imaginário se sacralização da palavra, como professores
contrapõe ao bom senso. O argumento de Platão sacralizam textos filosóficos, sociológicos ou
quer induzir, no entanto, a contemplar a literários. Há uma canonização da leitura
fogueira de verdade, o Sol, e não sua pequena canonizante do canonizado. Assim não se vai
imitação como fogueira. além do texto e, por isso, não se chega até ele.
Quem respeita demais a santa não dorme com
O “mundo da caverna” não consegue se ela.
sustentar, porém, sem o mundo externo. De
onde se vai tirar a lenha para alimentar a A “República” tem a forma de um diálogo, é um
fogueira, já que não se tem uma fonte de diálogo aparente, mas não é dialógica, não tem
petróleo? De onde os escravos vão buscar os a dialética do argumento e do contra-
alimentos para cuidar dos preguiçosos que não argumento, de vozes que se contrapõem e
fazem nada? Para onde os enfezados vão levar entrelaçam É um catecismo doutrinário. A
seus excrementos? E os escravos artistas, não é única polifonia que apresenta é quando
lá de fora que eles vão buscar o material Sócrates apresenta uma objeção a si mesmo, em

Mentiras na verdade da República 23


relação ao modo de existência do mundo das O problema da aristocracia é encontrar o mais
ideias. Mesmo aí, onde deveria surgir a questão capaz para governar, não substituí-la por outra
da identidade homoiética de protótipo ideal e forma de governo. Os escravos aceitam ser
reflexo mental em relação às coisas, não se escravos, sofrem menos assim. Eles sim é que
desenvolve o argumento. gostariam de sonhar com outro mundo, melhor
do que esse em que estão. Os “artistas” aí são
Essa parábola, uma alegoria em forma de escravos como os outros que cuidam do corpo
narrativa, é apresentada como mito da caverna senhorial: eles tratam de entreter as mentes,
embora não seja (o mito tem autoria anônima, sem acrescentar nada que induza a ver um
coletiva): tem algo incompatível entre estrutura mundo mais verdadeiro.
significativa e sentido atribuído. Há um gap aí. A
leitura alegórica serve para reforçar o caráter O olhar dos ociosos, manietado e manipulado, é
autoritário do que pretende ser mítico e não o olhar do técnico e do cotidiano. Obedece a
ficcional. Mistifica-se. O milagre da libertação, o paradigmas, pensa conforme o sistema quer que
afloramento do gênio, serve para efetivar a se pense. Pensam que pensam, para não pensar
escolha daquele que tem aptidão para questionar a valer. Toda vez que suas elucubrações
as coisas, o filósofo, que há de ser o governante. poderiam destoar – há luz alternativa que vem
da entrada da caverna, há movimento de
Essa “eleição” é misteriosa. Depende do acaso. corpos, há fímbrias de luz em torno das
Não há critério. Serve para omitir a política: essa sombras –, cessam o pensar, não pensam
é a sua política. A aparência de se livrar das adiante, não tiram as consequências. Neles se
cadeias tem sentido figurado, significa quem é tem o eterno retorno do mesmo.
capaz de ver as coisas de uma perspectiva
inusitada, quem detecta as sombras como O DONO DA VERDADE
sombras e não como aparição de coisas. Isso é
mais problemático do que se soltar de correntes. Aparenta-se procurar o filósofo, para buscar
o governante. Ele não pode provir dos que
Os que estão submersos nas sombras e aqueles trabalham: essa é a ideologia aristocrática de
que sustentam com seu trabalho essa estrutura Platão, como era de Sófocles. Um problema
não estariam dispostos a aceitar o golpe de sério da nobreza é que nem sempre o
Estado do “filósofo”. Como iria ele viabilizar predestinado ao poder tem vocação e
sozinho o governo? Ele não saberia fazer habilidade para governar. O aparente
coalizões, concessões. Colocar filósofos a filósofo, pois filósofo das aparências, aparece
governar o Estado seria um desastre. Eles marcado pela ânsia de poder, o que tende a
tendem a não governar do melhor modo o fazer com que aceite todos os jogos de
próprio departamento. Na época de Kant, simulação inerentes à política. Platão, o
Fichte, Solger e Hegel, a universidade colocou escritor, faz uma caricatura do filósofo como
filósofos como reitores de suas universidades, o alguém que ama mais o poder do que o
que é um modo eficiente de matar o pensador saber. Assim como o sofista é criticado pelo
com tarefas burocráticas. amor ao dinheiro, esse “filósofo” pode ser

24 Revista Estética e Semiótica | Volume 7 | Número 2


visto como aquele que ama o poder. A ânsia não cogita libertar os que trabalham. Aqueles
de ver o fundamento de todas as coisas, de que mais precisam de liberdade não são
conferir o caráter de conhecimento absoluto, considerados. Não são gente.
esconde a ânsia desmesurada de ter o
controle de tudo. Outra “iluminação” é que esse “iniciado” não
apenas acha que é o dono da verdade e, por
Tem-se aí uma síntese imagética, um isso, se considera no direito de assumir o poder,
“esquema”, da sociedade da época sob a forma mas consegue transformar todo o sistema sem
de duas classes presas dentro da caverna: a uma ação política partidária. São passes de
classe ociosa, dos aristocratas, e a classe dos que mágica para dissolver impasses. Supõe que está
servem a ela, os escravos. Estes se subdividem gerando um mundo mais justo, como se pessoas
em dois tipos: aqueles que cuidam do sustento mais escoladas já estivessem por isso mais
material e aqueles que providenciam diversão. dispostas a trabalhar pelo bem comum, não em
Radical nessa crítica é que não há razão para os amealhar benesses. Não se admite aí crime do
ociosos serem servidos: são parasitas colarinho branco. Há leniência.
manietados, amarrados, iludidos por
aparências. Eles tomam sombras projetas na O modo estratégico de defender aí a nova
parede como se fossem a própria realidade, e proposta é deixar o “antagonista” apenas a dizer
não querem sair disso. Como poderiam impor amém, feito um coroinha, não admitir críticas
sua vontade, obrigar outros a servi-los nem ver a necessidade de reformular o sistema,
continuamente? não estabelecer controles para preservar o
interesse público, para impedir a corrupção e a
Para resolver o impasse de selecionar um manipulação. O antagonista é um pseudo-
escolhido sem fazer política nem eleição, um antagonista. Seu “diálogo” é como o do
dos manietados se solta das amarras e vai em catecismo, em que a pergunta não serve para
direção à saída, onde será iniciado no segredo questionar nada, mas está aí apenas para
de que o Sol tudo determina e é o centro do propiciar a doutrinação, cuja resposta é
universo. Ele acha que o Sol determina tudo anterior à pergunta.
sozinho, inclusive as estações do ano, como se o
movimento da Terra não tivesse importância. O Quem iria propor a revisão do sistema
que parece mais verdadeiro também é fundado instituído seria o gênio: ele teria de ser, então,
na aparência. Ou seja, o que Sócrates propõe é a expulso. Ou seja, a dialética cessa aí quando
doutrina egípcia de Athon (monoteísmo que foi convém se tornar conservador, preservar uma
imposto ao povo judeu e endossado pelo forma de governo. Não se admite mais a
cristianismo). No primeiro momento, o liberto antítese nem o contraditório. Que o sujeito não
não consegue olhar as coisas muito iluminadas queira admitir isso não significa, no entanto,
e precisa se voltar para suas sombras e seus que a negatividade, a repressão, a propaganda
reflexos na água; no segundo, ele volta à falsificadora e a contradição não continuem a
caverna para libertar seus colegas do ócio, mas existir em atos e fatos.
estes não querem sair de sua acomodação. Ele

Mentiras na verdade da República 25


Aquele que se apresenta aí como “filósofo” acha alcançar o poder. Ignora a atividade dos
que é dono da verdade. O senso comum e a escravos e dos artistas, ignora que já saíram da
religião grega acreditavam que o Sol gira em caverna antes dele. Ele é um teólogo, um
torno da Terra levado por uma carruagem missionário à toa de Athon. Logo essa casta
conduzida por Apolo (um deus antropomórfico poderia considerar parte do bem comum
que ainda persiste na versão loira de Cristo). O eliminar os que ela consideraria inimigos do
pretenso filósofo está certo ao dizer que a Terra Estado. Portanto, a obra Politeia não é a
gira em torno do Sol, mas erra ao supor que este proposição de uma “República”, conforme vem
é o centro do universo e determina tudo sozinho. sendo traduzido como algo progressista,
contrário à monarquia e à aristocracia de
Ele pretexta ser o primeiro a sair da caverna e sangue, mas é uma proposta reacionária, a
contemplar a realidade externa, mas antes dele já teocracia de uma casta sacerdotal escravista, em
tiveram de ir lá os manipuladores de bonecos, ao que se extingue o avanço de separar poder civil,
buscarem seus modelos, e os escravos, ao militar e religioso.
procurarem alimentos, roupas e madeira para a
fogueira. O que a classe dominada faz e pensa é DILEMAS DA MERITOCRACIA
considerado como não tendo valor, é como se não
existisse. O sabichão é arrogante, prepotente e A posição do artista, nesse sistema da
totalitário. Se ele já é assim quando está sozinho e caverna, é precária. Ele não tem o que dizer.
ainda não tem o poder, pode-se imaginar o que O labor dele só quer ser diversão agradável,
ele faria quando tivesse o governo, a máquina do não leva à elevação da consciência, não tem
Estado e um partido organizado. compromisso com a verdade ou, se tem
alguma, isso não é reconhecido pelo público.
Se aquilo que esse pseudofilósofo, o candidato Tudo o que ele faz não muda nada. Ele é um
ao poder, supõe e afirma ser a verdade é escravo dos ociosos, existe para passatempo.
fundamentalmente corrompido e não é Ele é inútil como os inúteis para os quais se
verdadeiro, o sistema daí derivado não vai esforça. Se serve para manter as relações
poder ser mais justo nem mais voltado ao bem sociais, sequer serve para restaurar as forças
comum. Esse bem comum acaba sendo, na de produção. Ele não se dedica a quem
prática, o bem privado de uma classe, em trabalha. Vale menos que artista de
detrimento do bem comum de outras telenovela. Função da arte é divertir a
comunidades exploradas. Assim como não é oligarquia em suas festas, como o rapsodo
questionada a exploração interna dos escravos, que aparece em Homero.
também não seria questionada a espoliação de
outras comunidades. Pelo contrário, O único artista maior aí é o autor de toda a
considerando-se mais justa, ela iria se sentir no proposição, Platão, que via no tirano a pior
direito de explorar as outras. espécie de homem. Como delega o monopólio do
dizer a Sócrates, que fala praticamente sozinho,
O termo “filósofo” revela-se inadequado. Ele gera um tirano da fala. O “artista” é como o
não ama o saber, ele ama o poder. Mente para “antagonista” que não chega a ser antagônico:

26 Revista Estética e Semiótica | Volume 7 | Número 2


fica apenas concordando. Nem aplaudido ele é, Não se discutir o caráter histórico e classista do
pois não fez mais que a obrigação. Que Platão mérito, os paradigmas de sua avaliação,
era capaz de articular contraposições mais supondo que possam ser sempre os mesmos,
contundentes, isso ele demonstrou no Simpósio. isso é sintomático. Acaba sendo de ouro quem
consegue mais poder, por piores que tenham
Na República se sugere que há três tipos de sido os métodos adotados. Pode-se objetar que,
pessoas: homens de ouro, homens de prata e na Igreja Católica, o filho de um camponês
homens de ferro. As mulheres não contam. polonês ou da classe média alemã chegou a ser
Democraticamente diz-se que não é pelo fato de papa. Demorou vinte séculos para chegar a isso.
alguém ser um homem de ouro que o seu filho Nunca houve até hoje um papa preto, chinês.
há de ser de ouro. Na teoria, um filho de ouro Não faria diferença: ele seria parte do esquema,
pode surgir de um pai de ferro. Estranho é que traindo sua origem. Roma chegou a ter um
ele não aplique esse princípio na organização César de origem espanhola, sem que a província
da vida dentro da caverna e exclua do acesso à ibérica fosse emancipada. Um sujeito só vai
filosofia todos os que fazem trabalhos manuais chegar ao poder e se manter nele caso se sujeite
ou artísticos. Os escravos, que precisam ter uma aos esquemas e propósitos da instituição.
resistência de ferro para fazer tudo, não são
sequer homens de ferro. O ferro é mais útil do A meritocracia é tão problemática quanto
que ouro e prata, mas menos valioso nessa outras formas de governo, pois pressupõe que
lógica do adorno. quem chega ao poder tenha todo mérito por
isso, sendo ele divinizado e impedindo-se que se
Não se rompe fácil com a aristocracia de sangue relatem fatos denegridores. Sufoca-se a
se ela está na base do sistema teológico politeísta. discussão pública do que seja mérito. O Santo
Os homens de ouro tenderiam a considerar como tem todo espaço na mídia. Dá-se a ele uma
parte de sua obrigação promover os estudos e a autoridade moral que a instituição não merece.
profissionalização dos filhos em termos A escolha dele feita por um colegiado de
dourados, tratando de gastar mais na formação eminências rubras é alardeada como se
deles. Por outro lado, se criaria o máximo de decorresse de uma inspiração divina. A
dificuldades a “espertos oportunistas” oriundos autoridade dele é vista como decorrente de ele
das classes baixas. A maneira de definir a ser o representante de Deus ou do Ideal na
diferença entre os metais, em sua passagem para Terra. Nos Estados governados pelo partido
o plano simbólico, já não seria mais tão clara. comunista pretendeu-se a meritocracia e
Demandaria interpretações. A exegese tenderia a acabou-se tendo uma dominação russa e uma
ser feita de acordo com as conveniências de gerontocracia incapaz de fazer as mudanças
quem estivesse no poder. Se desde o começo a que gerassem melhores condições de vida. A
luta pelo poder demanda a mentira sistemática, divinização de genocidas se baseia em o líder
na manutenção do poder isso tenderia a piorar. ser visto como representante do ideal, caminho
Quanto mais acerba a luta de classes, maior o para toda a humanidade.
sacrifício da verdade.

Mentiras na verdade da República 27


A meritocracia proposta por Platão apenas modificada altera a parte maior seguinte. Não
aparenta ter caráter revolucionário. O que ela há um todo, pois ele é sempre parte. Como não
propõe é uma ditadura escravista. As famílias há todo, não há espaço para totalitarismos.
aristocráticas gregas se diziam descendentes de
alguma divindade, o que supunham lhes dava o Ao não se entrar no jogo ideológico aí instituído,
direito a terras, gado e gente. Mesmo quem cabe perguntar onde a imagética proposta por
ousava pouco já ousava demais: não por acaso Platão deixa de ser filosófica para corresponder
Sócrates, Platão, Eurípides e outros foram à perspectiva aristocrática, ainda que também
perseguidos. Viver em Atenas seria intolerável seja profundamente crítica em relação à
para nós. nobreza dos nobres. Por que a necessidade de só
a visão ter um terceiro elemento, a luz, como
Platão percebeu o perigo totalitário da utopia da condição de possibilidade? Para priorizar a
“República”: para manter real a sua ficção, teria contemplação do Sol, como divindade, valor
de eliminar todo gênio criativo que fosse capaz supremo. Só quem sai da caverna pode chegar
de imaginar uma alternativa a ela. Não apenas ao poder: não vale o valor agregado dos demais
teria de ser banido um escritor admirável como sentidos, a mobilidade dentro da caverna como
Homero, mas também o próprio autor ou seu mudança. Se a caverna é aceita como modelo, é
equivalente. Platão expulsa Platão. Assim ele preciso aceitar suas consequências e sequelas.
sepulta o próprio projeto, que vale como teoria, Uns são mais iguais que os outros.
não como prática, embora tenha virado religião
no ocidente. A LEITURA DE HEIDEGGER
O passo adiante em Platão, que o leva além do Heidegger fez a leitura desse mito da caverna
platonismo, é que ele questiona o mundo que em diversas partes de sua obra, como as
ele propôs: ele é uma ficção virtual, como as aulas de 1933-34, fez um livro específico
imagens que aparecem num espelho. Não se sobre o mito da caverna, o tema reaparece
questiona, porém, o regime político e sua base quando ele trata da concepção de verdade,
social. É preciso distinguir, portanto, o que nos livros sobre Nietzsche, etc. Ele queria
Sócrates diz, como personagem, daquilo que fazer uma leitura exata e profunda da
Sócrates pensa e não diz; aquilo que é dito em concepção de “verdade” aí fundada e do que
conceitos e o que é mostrado em imagens; deveria ser o filósofo como protótipo do
aquilo que Platão escreve como dramaturgo de homem. Ele foi omisso, porém, no político e
ideias e o que ele sugere. ideológico. Heidegger fez em 1933-34 uma
crítica explícita ao marxismo, mas, em plena
Além desse sistema de caixinhas em caixas, ou vigência do nazismo, ele defendeu a
de bonecas dentro de bonecas, há o que se pode liberdade como fundamento da verdade.
pensar para além do conteúdo manifesto do Depois da guerra, ele foi impedido de
escrito. Na matrioska se espera que a próxima lecionar por cinco anos, durante a era da
boneca seja igual à anterior. Cada ampliação “libertação democrática”. Se alguém, no
modifica o sentido de cada parte; cada parte período das aulas de 1933-34, tivesse feito

28 Revista Estética e Semiótica | Volume 7 | Número 2


observações como as seguintes, ele poderia questionar o que entende por mérito; 11)
ter se tornado suspeito. A ditadura militar no apresenta-se como filósofo quem é guardião dos
Brasil eliminou professores heideggerianos interesses de uma classe; 12) apresenta-se como
da universidade, enquanto a ditadura nazista verdade o que oculta verdades mais substanciais
tolerou Heidegger, embora ele fosse vigiado da situação; 13) a pretexto de só buscar a
pela Gestapo. verdade, busca-se uma instância mais elevada,
da qual ela se torne dependente; 14) sendo a
O que Heidegger parece não perceber no mito verdade dependente de algo maior, ela abdica de
da caverna é: 1) a espoliação do trabalho a que si; 15) nesse sentido, há coerência entre o
são submetidos escravos e artistas; 2) os artistas proposto e o praticado na parábola.
saíram antes do filósofo para fora da caverna,
porque se não eles não teriam modelos visuais e Nietzsche já havia, no entanto, colocado sob
sonoros para imitar nas projeções dentro da suspeita a figura do filósofo, por sua pretensão
caverna; 3) os escravos também saíram antes, de ser dono da verdade e do poder. Heidegger
para prover madeira para o fogo e alimentos leu Nietzsche intensamente, leu essa suspeita,
para os senhores ociosos; 4) Sócrates tinha acha que seria ruim para o governo se
origem não aristocrática, mas apregoa que o catedráticos de filosofia assumissem altos
filósofo não pode se originar senão da postos, mas não entendeu bem a política do
aristocracia ociosa, embora artistas e escravos texto. Sendo a central na filosofia a verdade,
estivessem já a fazer o percurso para fora e Marx não a examinou explicitamente e isso se
dentro da caverna; 5) o que ele chama aí de mostra no modo confuso como usa o termo
filósofo não é um filósofo e sim um ideólogo “ideologia”: 1) falsa consciência; 2) consciência
oligarca, que quer um modo novo de assegurar o histórica revolucionária do proletariado; 3)
antigo poder; 6) o “filósofo” não tenta libertar conjunto de áreas do saber que envolvem
escravos e servos, que tinham menos a perder e relações sociais. Aí, uma vez a ideologia é
mais a ganhar, pois se volta apenas para falsidade e outra vez pretende ser a verdade da
membros da classe ociosa; 7) o “filósofo” não história. Freud também não deixou bem claro
tem aí um compromisso vital com a verdade, como distinguir um raciocínio de uma
mas ele ajuda a ocultá-la, para conseguir o poder racionalização. Interesses podem impedir o
para si; 8) a “verdade” central do filósofo não é conhecimento como podem promovê-lo.
verdadeira, pois o Sol não é o centro do universo
nem determina sozinho o calor e a luminosidade O impasse do filósofo afeta o que se entende por
na Terra; 9) o aí apregoado culto ao monoteísmo, verdade. Se o “filósofo” é um ideólogo de classe,
baseado no culto egípcio ao deus Rah-Athon, não ele não se reconhece como tal; se ele se reconhece,
é reconhecido como crença religiosa, mas tanto isso não garante que seja verdadeiro o que diz. Ele
melhor serve para fundar o platonismo cristão; poderia ser um ideólogo dos escravos ou dos
10) comprometido com o poder da aristocracia serviçais e artistas, mas isso não significaria ter
de sangue, o pseudofilósofo busca apenas um maior compromisso com a verdade. Ele
modo de aperfeiçoar seu modelo, sem ver os defenderia apenas a anterioridade da saída destes
impasses de uma meritocracia que se recusa a da caverna, poderia até propor que senhores e

Mentiras na verdade da República 29


servos invertessem suas posições, sem que isso ingênuo. Filosofia não é, porém, teoria
alterasse a estrutura fundante. Nada mais sociológica: é ir além dos limites ideológicos.
conservador que tal “revolução”.
Que a figura do filósofo possa se originar de
Problema similar aparece na trilogia tebana de classes que não a aristocracia de sangue é fato
Sófocles. Aparentemente, já se tem nela a histórico. Descartes e Pascal provinham da
proposta revolucionária de uma monarquia do burguesia, não eram da aristocracia tradicional
mérito, em vez de ser de sangue. Édipo assume francesa. Kant era filho de um carpinteiro.
o poder porque foi o único, diz-se, a conseguir Vários nomes do pensamento alemão só
decifrar o enigma da esfinge, figura que causava conseguiram se formar porque foram internos
graves prejuízos sociais. Ninguém sabia, diz-se, de escolas de elite do Estado ou da Igreja
que Édipo tivesse sangue real. Ele ascende ao Luterana: Fichte, Hölderlin, Schelling, Hegel,
poder por mérito. Só que, como no mito da Nietzsche. Poucos eram, como Schopenhauer,
caverna, o que melhor pensa somente pode oriundos de famílias ricas, não tendo de
surgir da aristocracia. Com isso, anula-se o trabalhar para sobreviver.
avanço. Desloca-se a questão para a de
conseguir determinar quem teria mais mérito Dificuldades políticas estimularam talentos
entre os aristocratas. Nem sempre seria o filho pobres a pensar, mas sem condições materiais
mais velho. A alternativa seria transformar a não podiam produzir. A repressão quebra a
classe do mérito em nova aristocracia. espinha do pensador ao lhe tirar condições de
produzir, mas não faz produzir quem as têm. A
Sendo apresentado só como filósofo quem aristocracia, que pode fornecer as condições
também é ideólogo político e religioso, num educacionais, ambientais e materiais para que
texto que não propicia a abertura a um debate seus jovens membros evoluam e se tornem
sobre isso, propõe-se como guardião da verdade filósofos, artistas ou cientistas, não produziu
quem é depositário da confiança de uma classe tantos membros de destaque. É como se
(mas como se não fosse, fazendo-se um teatro condições a mais ou a menos sabotassem
da libertação): se apresenta como ameaçado resultados. Heidegger provinha de uma família
pela classe dominante enquanto está a serviço católica relativamente pobre e só conseguiu se
dela, sendo seu agente disfarçado. Ainda que desenvolver com auxílio da Igreja, da qual se
Heidegger admita que a inverdade faça parte da tornou um apóstata.
verdade, que todo desencobrimento envolve
encobrimentos, ele não decifra esse Heidegger não saiu da Alemanha durante o
condicionamento para estudar a possibilidade período nazista não só por causa de simpatias
de ir além dele. Como é que alguém tão que chegou a ter com aspectos do movimento,
inteligente não viu aspectos tão básicos? É como mas porque estava preso à língua alemã. A
se não houvesse classes nem política para a Áustria deixara de existir; a Suíça não tinha
filosofia. Elas também não são por si garantia de tradição de receber filósofos germânicos,
verdade ou mentira. Heidegger tem dificuldades Nietzsche foi professor de grego e latim lá,
no horizonte ideológico, ele é politicamente recusado pelo departamento de filosofia.

30 Revista Estética e Semiótica | Volume 7 | Número 2


Heidegger assumiu a reitoria da universidade provedores da caverna. Como no processo
de Freiburg, para impedir o expurgo e histórico a verdade e o desvelamento se
professores judeus, mas ousou se demitir modificam e elevam.”3 Ele é solitário ao
quando voltaram a ocorrer. Ele ainda não tinha tentar ser solidário (com o grupo errado
o renome que hoje tem, embora Sein und Zeit talvez) e dizer o que não seja apenas
fosse uma obra logo reconhecida. conversa corriqueira. O homem é o animal
que tenta ser divino e quer a transcendência
Heidegger supõe que somente o ser humano que não lhe cabe. Ele se torna prisioneiro de
pensa e tem linguagem e senso para o ser. Isso suas crenças.
parece teologia cristã disfarçada: somente ao
homem seria dada uma alma por Deus. Assim se A noção de verdade aí é de algo que muda
facilita o domínio do planeta, a utilização objetivamente, não sendo mera opinião. Ela não
indiscriminada e cruel de todos os seres vivos, é absoluta, mas uma tensão entre luz e sombra.
faz-se uma massagem no ego narcisista de quem Há um duplo sentido da verdade, conforme ela
pretende ser superior. É um erro central. Não se se refira à fogueira ou ao Sol. Ao se falar em
trata de bater boca à base de uma crença. Quem caverna, é inevitável que se fale de um mundo
já conviveu com animais, sabe que eles se fora da caverna, além dela, um mundo do
comunicam, têm noção do próprio morrer, divino. Não se fala de seres humanos capazes de
conseguem derivar conclusões a partir de sobreviver apenas dentro da caverna, como
experiências singulares, são éticos ainda que peixes cegos, aranhas e crustáceos.
sua ética varie conforme a espécie. Nietzsche
viu isso com bastante clareza e estava, nesse Propor a caverna como fábula implica admitir
sentido, mais avançado que Heidegger. um mundo além. Há uma imposição do
significante. Fica difícil, porém, admitir que a
DA ESSÊNCIA DA VERDADE única alternativa do filósofo seja voltar para a
caverna e se debater com seus coevos. Ele seria
No curso de inverno de 1933-1934, Da mais esperto se saísse para sempre, como
essência da verdade, Heidegger retomou o emigram do seu país os que não estão contentes
mito da caverna. Enfatizou, na quarta etapa com ele. Outro jeito de sair seria ter um céu
do percurso no mito da caverna, o papel feito de livros e manuscritos, mas seria preciso
libertador do filósofo: “o homem não é que o sujeito fosse sustentado por escravos,
enquanto está preso na caverna, se sente mesmo que sob a forma de impostos. A noção
bem e conversa, mas o homem é como de ameaça latente nos colegas pode levar o
transição da caverna à luz e de volta à sujeito a produzir para a posteridade, deixando
caverna. (...) O filósofo é tanto mais solitário um baú ou uma pilha de manuscritos, como
quanto menos pode se retirar da caverna. O fizeram Pascal, Marx, Nietzsche, Heidegger,
que ele vê é diferente do que avistam os Fernando Pessoa. Muitos manuscritos acabam
sendo queimados numa faxina póstuma.
3 Heidegger, Martin. Sein und Wahrheit, HGA 36/37,
Frankfurt a.M., Klostermann Verlag, 2001, p. 182 - 183.

Mentiras na verdade da República 31


A necessidade de sair da caverna serve não para tão errados os medievos católicos ao entender a
ver as coisas como elas são, mas para se condição de possibilidade como Sumo Bem,
certificar da existência do Sol, como Deus, e Deus como luz. Quem tudo cria, propicia
representação do “ágathon”, desde condição de todo conhecimento. Se há uma instituição que o
possibilidade de conhecimento até Sumo Bem. representa, tudo se faz em nome desse valor
Poderia ser a Justiça, ou o Bem Comum também. supremo. A verdade é “adaptada” a ele. Ela é
A verdade não é a última instância, ela se extinta em nome de algo maior.
subordina a algo mais elevado. Quando isso
acontece, passa-se a tomar por verdade, no O que distinguiria o “filósofo” não é que ele não
entanto, o que esteja de acordo com o que se fique vendo sombras, mas que perceba as
quer como “ágathon”. sombras como sombras, enquanto os ociosos
comuns as tomam por coisas reais. Será que, no
Para isso foi preciso dizer, no livro VI, que entanto, os manipuladores de bonecos não
apenas a visão necessita de um terceiro sabem que estão projetando sombras? Devem
elemento, a luz, para que funcione, embora saber o que estão fazendo. O domínio da técnica
todos os demais sentidos também tenham envolve saber a verdade. Que o trabalhador
necessidade de um terceiro, um quarto e um domine a técnica é menosprezado. O filósofo
quinto elemento. Sócrates engana, mente. Nega- profissional não é o primeiro nem o último dos
se que os demais sentidos precisem de um sabichões. Quando ele idolatra um filósofo do
terceiro elemento além do órgão e da coisa para passado, do qual se torna gigolô, ele vê uma
que se privilegie a visão da divindade, o Sol. Se a sombra, não o pulsar vivo que levou ao
única verdade está fora, não se percebem, dentro filosofar. Toda filosofia é engajada, mas ela não
da caverna, alternativas que abram outro modo pode se perder na circunstância imediata.
de “conceber” (não apenas “ver”) as coisas.
Da verdade fazem parte tanto a parte iluminada
Se ninguém pode sair inteiro da “caverna”, quanto as sombras. Ambas são constitutivas do
como é que dentro dela se poderia ter maior ser. Não é verdadeiro dizer apenas sombras;
noção da verdade? Ou a verdade é o valor também não é se deslumbrar apenas com luzes.
supremo, doa a quem doer, ou ela é sacrificada Quando um Heidegger lê o “mito da caverna”,
ao mais elevado, ao “correto” conforme ele o aceita como tal, como se mito fosse, não um
paradigmas “superiores”. Crimes são cometidos arranjo feito por um autor. Será que o “mito”
em nome da virtude e criminosos dormem reproduz em síntese uma imagem correta do
sossegados na cadeia enquanto homens de bem que se passa na sociedade? Sua idealização nos
se revolvem inquietos na cama, já dizia “estudos clássicos” não percebe suas inverdades:
Nietzsche. Caso se admita o “terceiro elemento” isso é reacionarismo acadêmico.
para todos os sentidos, pode-se concluir a
necessidade de ter um princípio superior de Para manter a boa vida, a classe dita ociosa
referência, ao qual se subordine toda precisa agir, não ficar sentada. O trabalho
descoberta da verdade. Ela então pouco forçado dos serviçais exige coação; se não, logo
importa, já que há algo superior. Não estavam seria interrompido. A quem interessa a imagem

32 Revista Estética e Semiótica | Volume 7 | Número 2


de que os escravos trabalham direito, sem No primeiro gesto, de se livrar das cadeias, ele
reclamar? Assim querem os senhores. Eles não iria olhar em torno e começar a entender o
ficam apenas se iludindo com aparências, teatro encenado dentro da caverna. Não se
procuram ver o que se passa, para controlar a conta isso. Ele iria, portanto, perceber a
situação. A eles interessa que se acredite que o fogueira e a projeção das sombras a partir delas.
Sol representa um Deus, um Sumo Bem, um Ele iria ver que tudo é projeção de sujeitos.
princípio absoluto superior à verdade. Esta acabaQuando ele saísse e visse a grande fogueira lá
se tornando apenas adequação à sua vontade. fora, o Sol, ele iria se contaminar pela crença da
própria superioridade, de ver aquilo que supõe
Poder é também monopólio da informação. Por ver. Ele vê como vê porque crê ser o iluminado,
que os escravos iriam voltar à caverna se podem aquele que recebe a projeção da luz e discerne
ir lá fora, onde não tem ninguém, para continuar como as coisas efetivamente são. Ele não viu o
servindo? Na lógica do mito, eles servem porque que precisava ver e acha que já viu tudo.
querem servir, não porque são obrigados. Essa é
uma lógica senhorial, não deles. Na prática, de O fogo é um símbolo do espírito humano. Na
escravos atarefados dia e noite não se pode mitologia judaica, Deus aparece como sarça
esperar que tenham lazer para produzir arte, ardente; na grega, Apolo, o deus solar, é
estudar filosofia e ciências, mas isso não é também o patrono das artes e dos sonhos; na
causado por seu DNA e sim pela espoliação em mitologia cristã, o Espírito Santo aparece como
que vivem. Entre eles podem surgir talentos línguas de fogo; no poema de Schiller, Die
iguais ou até superiores aos dos ociosos. Estes Glocken (Os sinos), fala-se de “Götterfunken” de
não são apenas ociosos: ao menos uma parte centelhas divinas que caracterizam o
deles age, organiza o corpo social, mantém a diferencial humano. Em Platão, mais de uma
ordem vigente. Não se pode confiar na narrativa vez Sócrates fala do “daimon”, esse espírito que
de Platão como parâmetro absoluto: há furos toma conta dele e o induz a fazer filosofia (como
demais entre a imagem e a argumentação. poderia levar outros a fazer arte).

LEITURA ALTERNATIVA Quando se toma essa história da caverna como


mito, ela se torna uma crença da qual não se
Se a leitura do “mito da caverna” se revela duvida. Como nós, porém, não cremos nos
ideológica e incoerente como texto social, deuses e em instituições como a aristocracia
resta buscar ler o texto como parábola, como hereditária e a escravidão, não precisamos
narrativa alegórica. O que há de importante acreditar no que seus pensadores pregavam. A
aí? Tudo é determinado pelo percurso do Grécia antiga é barbárie. Não pode mais ser
“filósofo”, ele é o centro da atenção, o que ele modelo para nós. Temos de desconfiar do que
faz é mais importante do que o fazer de diz. Ao tomar a caverna como parábola,
todos os demais. Então é preciso ver o que devemos nos abster da postura de rabinos,
ele significa. padres e pastores. Na parábola do Bom
Samaritano, a proposta de dividir o manto em
dois ignora que as duas metades vão se deparar

Mentiras na verdade da República 33


com novas carências, o que vai levar a divisões contemplar. O “illuminati” acha que pode ditar
sucessivas: e com um confete não há muito o leis, pois só ele sabe como as coisas são, diz ele.
que tapar... Aquilo que os trabalhadores e artistas viram, isso
não conta: para ele, eles não têm nada a dizer.
O que significa ler ceticamente a parábola Onde parece estar sua força reside sua fraqueza.
desse filósofo da montanha? Ele acha que é o Ele sempre parece falar em nome de algo
único a ver o sol e sair da caverna. Os que superior, mas é mais soberbo do que elevado.
trabalham também tem esse contato, ainda que
não seja validado. Se em vez de tomarmos, então, a caverna como
moradia coletiva, como síntese da sociedade
O que significa ler ceticamente essa parábola? O escravista grega, se em vez de tomarmos tudo
primeiro passo, vindo do desassossego de quem como um templo ou uma academia presidida
não aceita a escravidão, é olhar em torno e tentar por um deus, nós a virmos como projeção de
entender o mundo como ele é. Faz isso o uma interioridade psíquica, como uma biografia
aristocrático? Não, ele não toma conhecimento espiritual, como um percurso de formação? O
dos escravos, não se preocupa em libertá-los, que temos aí é a parábola de alguém que
ainda que eles mais precisem de libertação do começa a ver as coisas e instituições do seu
que os ociosos. Pouco percebe, no entanto, que meio e do seu tempo de um modo diferenciado,
há uma fogueira e sombras projetadas na parede, em contrapartida ao modo dominante. Ao olhar
ou seja, pouco percebe as aparências como ao redor de modo inconformista, ele começaria
aparências. Se não percebe a aparência como a enxergar. Até então ele tinha olhos para não
aparência, não percebe a essência como essência. ver. Como Édipo, enquanto olhos tinha, não via:
Ele não quer a desconstrução ideológica da quando passasse a encarar a realidade, ele
opressão. Gosta dela, ela lhe é vantajosa. poderia se desfazer dos hábitos de ver.

Ele não se preocupa com a fogueira interna, a Ao ver de outro modo, ele passaria a agir de
única que lhe restaria para ver algo, pois se modo diferenciado. Não ficaria do modo
supõe predestinado a contemplar a grandeza do conformado, iria se voltar para outros
Sol, único objeto digno de sua contemplação. companheiros, para outros lugares. Se ele fosse
Acha que conhecer é estar iluminado pelo alto, aquele que nasce com mais agilidade mental e,
pelo poder de que faz parte. Ele se crê por isso, é invejado, correndo o risco de ser
iluminado porque se vê como iluminado, dileto morto por aqueles que estão ao seu redor, seu
filho do divino. Ele é tanto mais arrogante risco não decorreria apenas da inveja, e sim da
quanto mais ignorante; tanto mais prepotente crítica ideológica, da tensão política. Quem
quanto mais conivente. representa o futuro, pode ficar sem presença no
presente, pode se tornar mero passado, e um
Sob a aparência de se preocupar com o mundo, passado esquecido. Quem se mete na política
esse filósofo é um alienado: só vale para ele o corre o risco de ser morto.
mundo iluminado lá de fora, aquele mundo que
quem vive na caverna não pode, oficialmente,

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Quem enxergar mais que os outros não deve trabalhadores mergulhados em suas
contar o que vê a mais se quiser sobreviver. Ao ocupações? Ou ele só finge que tenta libertar
se negar a palavra, ao fingir um percurso os companheiros, enquanto não liberta a
externo, ele mesmo se aniquila. O herói quem mais precisa?
antecipa o futuro, ele é aquele que veio cedo
demais para o seu tempo. Somente se torna herói, Ele parece um gauche. Drummond disse de si
porém, aquele mártir atrás do qual todo um que uma entidade lhe havia dito “vá ser gauche
exército vem marchando; se não, ele não apenas na vida”. Isso significou para ele, na prática, ser
é esquecido, mas é difamado quando lembrado. chefe de gabinete de Capanema, ministro da
Educação e Saúde do governo fascista de Vargas.
Se o escravo e o artista precisam sair da caverna Assim é fácil. Dizer que é, sem ser. Nessa moda
para exercer suas funções, por que ainda de ser gauche, não é gauche quem serve à
retornam? Por que o filósofo, estando lá fora, não extrema-direita.
vai pescar e cuidar de sua vida, em vez de voltar
e se esgoelar com quem não quer se incomodar Não é, no entanto, tão absurda a versão de
com ele por estar todo acomodado? Ele quer que Drummond. Ela corresponde ao que a Igreja
se vejam as sombras na parede como sombras, Católica fez, ao que a Luterana fez e ao que
mas não se preocupa com as sombras humanas fazem todas as outras. Não só as igrejas. Os
que circulam em trabalho serviçal, escravos monarcas, se não se viam como rei-sol coroado,
reduzidos a sobras de gente, como são sobras como Louis XIV, ao menos recebiam santos
também os ociosos que nada mais fazem do que óleos que lhes permitiam penetrar no reino do
consumir, aquele que se aposentam antes além, transcender seu corpo. Não só os
mesmo de começar a fazer algo. monarcas. Também os líderes ditos democratas
regem não em nome de uma oligarquia que lhes
INTERMEZZO POÉTICO dá abrigo e força, mas em nome de princípios
superiores, como justiça social, Estado de
O libertador não quer libertar. Ele é como os Direito, representação democrática, equilíbrio
“pais da pátria” americana, que declararam de forças, sensatez fiscal.
a independência com liberdades e
mantiveram a escravidão; é como os E os artistas então, será que eles se enxergam
inconfidentes mineiros, donos de escravos a como meros coadjuvantes do sistema,
proclamar o “libertas quae sera tamen”; é destinados a entreter a classe dominante e, na
como os proclamadores da independência melhor das hipóteses, despertarem um sorriso e
das colônias ibéricas que mantiveram suas fazerem os escravos modernos recuperar suas
fazendas e seus escravos. Assim é fácil. O que forças, para continuar a trabalhar do mesmo
ganharia o filósofo libertador além da jeito, dia após dia, ano após ano? A esperança se
chance de levar surras? Ganha a esperança tornou apenas uma fugaz mensageira entre o
de se tornar governante. Como vai fazer isso, aquém e o além, ela não tem mais deuses que a
porém, se não parece ser aceito pelos usem para enviar mensagens de salvação,
membros de sua classe e, menos ainda, pelos palavras sábias. Tem-se o gosto de fel na boca.

Mentiras na verdade da República 35


Daí é ensinado que se está a caminho da de Celan com a poetisa suíça Ingeborg
salvação, pois é divino sentir fel na boca. Esse Bachmann, que era loira e cujo pai foi nazista,
fel tem o gosto da cicuta. Cabe perguntar ao ele diz no fim: “A folhagem dos anos é castanha,
carrasco o que melhor fazer quando o veneno o teu cabelo não”.5 O judeu se distancia de quem
começar a fazer efeito, e ele dirá que o melhor é não tiver a sua própria história; ser judeu não é,
caminhar um pouco para lá e para cá, continuar no entanto, aí garantia de proximidade, de um
a conversar com os discípulos e amigos, até que relacionamento que funcione.
o corpo cansado peça repouso e nada mais se
possa fazer. O problema não é pessoal, e sim existencial.
Inverte-se o platonismo: ter conseguido
De Paul Celan é o poema “Lembrança da França”: perceber como as coisas realmente são leva a
um duplo exílio: exilado dentro da caverna, por
Recorda comigo: o céu de Paris, o imenso
ter vislumbrado um mundo melhor, onde seria
narciso do outono...
Compramos corações na florista: mais adequado viver; exilado dentro da
eram azuis e floresceram na água. caverna, pela lembrança opressiva do que nela
Começou a chover em nosso recanto, se passa e a necessidade de abandonar o mundo
e veio o nosso vizinho, Monsieur Le Songe, melhor para retornar à desgraça de onde se saiu
franzino homenzinho. por algum tempo. Esse é o drama hoje, por
Nós jogamos cartas, perdi os olhos da cara: exemplo, não só de milhões que procuram sair
tu me emprestaste o teu cabelo, eu o perdi, ele do mundo subdesenvolvido para ir viver em
nos derrotou. países desenvolvidos, mas do número muito
Ele saiu pela porta, a chuva o seguiu. maior daqueles que gostariam de estar fora e
Nós estávamos mortos e podíamos respirar.4 não vão poder sair. A globalização ativa e
destrói esperanças. Quem está onde está
Aqui ocorre algo pior: a utopia, o sonho, o gostaria de estar num lugar melhor; quem está
mundo além, embora sejam apenas um numa situação melhor teme que ela lhe seja
franzino homenzinho, faz com que percamos o tomada. No trânsito e na transição, todos se
jogo. Em vez de ser nossa distinção, é nossa tornam infelizes.
maldição. Em vez de salvação, morte. Não
somos mais, como no dito de Fernando Pessoa, O sonho é Monsieur Le Songe, um elemento
“cadáveres adiados que procriam”: embora estranho, que não nos traz para perto o que em
possamos respirar, embora possamos fingir que nós está e nos é ignoto: ele é perda e estranheza,
estamos vivenciando coisas, estamos mortos. um jogo em que se tenta ganhar e, quanto mais
Talvez o modo mais simples de ler isso seja se tenta, mais se perde. Narciso é uma flor, uma
supor que se está morto para um droga, um remédio, um perfil psicológico e a
relacionamento. síntese do céu de Paris, que tudo encobre e

O que significa aí emprestar o cabelo, perder o 4 Kothe, Flávio R. A poesia hermética de Paul Celan,
cabelo? No poema “Com a mão cheia de horas”, Brasília, Edunb, 2016, p. 51.
que se sabe ter sido inspirado no relacionamento 5 Idem, p. 43.

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recobre. O lugar ideal de se morar não é como “organização formal do projeto de
garantia de felicidade. Não há paraíso, no pesquisa”, “relatórios”, “ciência”. Só nos resta o
entanto se está exilado dele. Não há um saber silêncio como se ele pudesse abrigar mais
absoluto, mas somente ele vale. verdades do que a palavra que se torna
palavrório. Calar é o melhor modo de falar.
Somos sombras de nós mesmos, apenas uma
pálida citação do que poderíamos ter sido se Hoje não podemos mais salvar nem a nós
tivéssemos vivido fora da caverna. O sonho nos mesmos, menos ainda a outros e ao mundo
lembra sempre o que olvidamos no dia a dia, inteiro! Não temos autorização nem autoridade.
aquilo que nos machucou, aquilo que lembre a Ainda que vejamos muita coisa errada, não há
fragilidade de nossa pele. Jogamos como se um mundo certo a partir do qual julgar. Somos
tivéssemos chance de ganhar. O poema lírico a perda das nossas melhores alternativas, somos
lembra a perda do amor. A duplicação apenas a alternativa que restou. Ela é o nada do
metafísica do mundo nos deixou exilados na que poderia ter sido. Resta o nada numa vida
Terra, exilados de nós mesmos. Não feita de perdas. Somos o espaço em que o nada
acreditamos mais num “mundo das ideias institui seu discurso. Assim acaba o nosso
verdadeiro”, temos de nos conformar em viver tempo, não acaba o tempo que conosco acaba.
à sombra de nós mesmos, pálidos palhaços
empalhados, ausência de real vida a fingir que O RETORNO DOS QUE NÃO FORAM
vivenciamos o que mais aspiramos.
A caverna de Platão é a cabeça de Platão, a
A filosofia procura superar a duplicação mentalidade de uma aristocracia escravista.
metafísica e acabamos sem nenhum mundo Nela, os escravos apenas procuram, sem
verdadeiro. Somos ceguetas. Cegos guiam cegos, reclamar, servir a seus senhores: não há
todos falam, raramente alguém diz algo que se comandos nem punições. Eles não são
aproveite. Quando nos entregamos às sombras propriamente gente. Não há espírito neles a
da televisão, do cinema, do bate papo, mora ser salvo. Com nenhum deles conversa o
conosco a inquietação de estarmos enganando a filósofo que diz que se liberta. Ele pode
nós e a outros, encenando um teatro como se ele pretender libertar todo o mundo, menos os
fosse real. escravos da escravidão. O mais evidente ele
não vê, porque não quer ver.
Nesse mundo de ficção, o que pode nos redimir
um pouco é a ficção: ela ao menos não finge ser Em nenhum momento Heidegger toca nessa
real. Construir fábulas constitui nosso último questão crucial. Como em toda a recepção
reduto. Quando conseguimos, finalmente, dizer apolínia da Grécia, esse problema não existe,
algo válido, o poder do meio se impõe e o texto como aliás também não existe para Nietzsche,
não é divulgado. Aquilo que mais vende, vende mesmo quando defende a existência do
mais por ter menos a dizer. Todos correm atrás dionisíaco: escravos são, no máximo, um mal
de números, como se a essência do mundo fosse necessário para que se produza arte e filosofia,
numérica. Vivemos a grande farsa postulada como se elas não se contaminassem por essa

Mentiras na verdade da República 37


condição de produção. O próprio Hegel escapou Como pode Heidegger, definir o ser humano a
dessa questão, na parte final da introdução à partir daquele membro da classe ociosa que
História da Filosofia, dizendo que sabia que a finge que se libertou e que somente ele saiu da
escravidão tinha sido a condição possibilitadora caverna? Ele nega as evidências. É um pregador,
para que uma minoria pudesse se dedicar a um escravagista, um político oligarca, não O
filosofar: ele teve de reconhecer a existência do Homem. Cada classe marca o modo de ser e de
problema, mas não se dedicou a examinar como pensar de uma época. Ela define por si o que
isso poderia ter afetado a estrutura do seja o homem em geral, só que ele não é apenas
pensamento. Depois dele, o problema como que isso que ela diz.
evapora da filosofia alemã. Mesmo Marx fica
restrito à observação superficial de que a Grécia A perspectiva de que possa haver uma
teria sido a infância da humanidade, como se igualdade básica dos humanos não seria apenas
traumas de infância não tivessem uma retroprojeção anacrônica. Sófocles já havia
consequências na vida adulta. proposto, na peça Ajax, que os homens são
iguais diante da doença grave e da morte:
A caverna platônica não é um lugar qualquer. passam a depender de outros. Poderia ter
Ela é a base da distinção entre verdade e acrescentado que são igualmente dependentes
mentira, entre episteme e doxa. Ela é o lugar quando nascem e nos seus primeiros anos de
onde se pergunta se o conhecimento liberta. Se vida: se não tiverem ajuda de outros, morrem.
ela própria é ideologia de uma classe, não pode Eurípides também havia dito, em As troianas,
ser fundamento do conhecimento que que a escravidão vilaniza, sendo indigna de
transcenda as classes. Não é um sujeito quem nasceu livre (ainda que tenha cuidado de
transcendental absoluto. Uma visão parcial e não dizer que todo homem deveria nascer livre:
falsa não pode ser o fundamento para se ver não dizer não impediu que tivesse de fugir de
tudo e todos por todos os tempos. Atenas para salvar a pele). A visão idealizada,
apolínea, da Grécia é macabra.

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