Mentiras Na Verdade Da República: Lies in The Truth of The Republic
Mentiras Na Verdade Da República: Lies in The Truth of The Republic
Mentiras Na Verdade Da República: Lies in The Truth of The Republic
RESUMO ABSTRACT
A revisão da concepção de verdade implica no The revision of the conception of truth implies the
questionamento da duplicação metafísica do questioning of the metaphysical duplication of
mundo, que encontra na “República” de Platão the world, that has in Plato’s Republic a definitive
uma formulação lapidar, mas tem lá também, formulation, but has there also, in the parable of
na parábola da caverna, uma ficção que permite the cave, a fiction that allows an inverse
uma interpretação inversa ao que formulado na interpretation to what is formulated in the
argumentação lógica. logical argumentation.
Professor titular de Estética na FAU/UnB, autor de obras sobre o cânone literário brasileiro, a narrativa trivial, a teoria
literária e a arte comparada, tradutor de Nietzsche, Marx, Kafka, Benjamin, Adorno, Habermas e outros, autor de
poemas, contos e novelas.
http://dx.doi.org/10.18830/issn.2238362X.n2.2017.02 11
Se moquer de la philosophie,
c’est vraiement philosopher. reacionárias, ainda que por omissão. Sob
Pascal aparência de ciência cai em miopia alienada,
que não enxerga suas limitações como não vê o
que projetou. Sob o distante e antigo, fica
NA TERRA COMO NO CÉU presente o imposto pelo presente. Não por acaso
Assim na terra como no céu: perdidos Nietzsche e Heidegger foram usados pelo
estaremos enquanto não nos recuperarmos nazismo e o classicismo antigo foi modelo
da alienação metafísica. Estamos num país estético para regimes totalitários. Os Estados
em que a oligarquia nos três poderes tem Unidos se apresentam como democracia, mas
aparecido cada vez mais como corrupta e são uma plutocracia imperialista, cuja capital
mentirosa. Isso não acontece por acaso, tem foi construída imitando os gregos.
raízes metafísicas, não somos melhores que
outros nisso. Se estas não forem expostas, Aristófanes apresentou, em As nuvens, Sócrates
não serão superadas; explicitá-las não como o maior sofista. Isso é mais do que uma
garante cura, pois é mais cômodo ficar preso piada, é uma tragédia amarga, em que estamos
a elas. Calar é conformar-se; falar, suicidar- mergulhados ainda. Se “o filósofo” não vive do
se. Como se fizer, vai se fazer errado. ensino, de que vive ele? Do trabalho escravo.
Como Platão e Aristóteles. Um truque filológico
A duplicação metafísica do mundo, consagrada é, então, empurrar o “erro” para um
pelo cristianismo, pelo romantismo e por personagem como Sócrates, a fim de preservar o
movimentos totalitários, é pregada em Platão, autor Platão. Embora se deva distinguir o que
especialmente nas falas de Sócrates, que, sob a Sócrates diz do que ele pensa, do que Platão
aparência de filósofo e antissofista, é um pensa sobre o que Sócrates pensa sobre o que
declarado missionário de Athon. A lógica do Sócrates diz, Platão não é tão inocente. Há
“mito da caverna” é impositiva: quem visitou omissões e distorções graves. Temos de ler
uma caverna sabe que existe o mundo fora da Platão contra Platão para chegar a Platão.
caverna, portanto existem o céu e seus deuses. Mesmo que na República haja a transição de um
Sócrates pretende ser superior aos “sofistas”, Sócrates dogmático para um que parece pensar,
que são professores pagos e, só por isso, esse “progresso” não é acompanhado por uma
aparecem como grandes mentirosos. Alguém evolução de Glauco, em geral um coroinha a
ser pago ou não por uma aula não faz a dizer amém em vez de ser um antagonista. O
diferença entre ela ser ou não verdadeira. diálogo é apenas aparente, não há dialogismo.
Platão não foi platônico, mas propiciou o
platonismo. Carrega culpa. Na República, as formas de governo decorrem
umas das outras por suas características, mas
A tradição de estudos clássicos costuma passar por baixo desse laicismo aparente há a teologia
batido o problema do escravismo dizendo ser de que só poderá bem governar quem tiver
anacrônico, para daí se perder em detalhes sangue divino: o aristocrata. Sócrates propõe-se
filológicos (sem ter uma edição crítica histórica criar um Estado mais justo, uma forma de
confiável) e acaba por endossar posturas governo que seja capaz de exercer o bem
- E não vês também homens a passar ao longo - Torna a olhar agora e examina o que
desse pequeno muro, carregando toda espécie naturalmente sucederia se os prisioneiros
fossem libertados de suas cadeias e curados
Ele não se preocupa com a fogueira interna, a Ao ver de outro modo, ele passaria a agir de
única que lhe restaria para ver algo, pois se modo diferenciado. Não ficaria do modo
supõe predestinado a contemplar a grandeza do conformado, iria se voltar para outros
Sol, único objeto digno de sua contemplação. companheiros, para outros lugares. Se ele fosse
Acha que conhecer é estar iluminado pelo alto, aquele que nasce com mais agilidade mental e,
pelo poder de que faz parte. Ele se crê por isso, é invejado, correndo o risco de ser
iluminado porque se vê como iluminado, dileto morto por aqueles que estão ao seu redor, seu
filho do divino. Ele é tanto mais arrogante risco não decorreria apenas da inveja, e sim da
quanto mais ignorante; tanto mais prepotente crítica ideológica, da tensão política. Quem
quanto mais conivente. representa o futuro, pode ficar sem presença no
presente, pode se tornar mero passado, e um
Sob a aparência de se preocupar com o mundo, passado esquecido. Quem se mete na política
esse filósofo é um alienado: só vale para ele o corre o risco de ser morto.
mundo iluminado lá de fora, aquele mundo que
quem vive na caverna não pode, oficialmente,
O que significa aí emprestar o cabelo, perder o 4 Kothe, Flávio R. A poesia hermética de Paul Celan,
cabelo? No poema “Com a mão cheia de horas”, Brasília, Edunb, 2016, p. 51.
que se sabe ter sido inspirado no relacionamento 5 Idem, p. 43.