Melo & Godoy (2017)
Melo & Godoy (2017)
RESUMO
Neste artigo apresentamos nosso percurso de pesquisa, partindo de nossos trabalhos
realizados no espaço carcerário, até nossas recentes observações acerca do que
Conceição Evaristo, poeta, contista, romancista e ensaísta afro-brasileira, define como
escrevivência. Intencionamos, com as reflexões que propomos, pensar a escrevivência
como meio de emancipação e retomada de poder sobre meios de produção de
subjetividades negras pelo povo negro. Esse movimento, de colocação de si na posição
de narrador da própria história, por meio do qual se recobra o poder de produção da
própria memória e subjetividade, pôde ser observado, por nós, em nossas pesquisas
iniciais no espaço carcerário, tendo como sujeitos desse processo, os apenados. Dessa
forma, este artigo visa trançar as pontas de nossas duas pesquisas, reconstruindo um
pouco de nossas contribuições acerca do contato com a arte como meio de resistência à
adversidade e tomada de poder sobre o próprio corpo.
Molhar os pés
5 UEL, Centro de Letras e Ciências Humanas, Departamento de Letras Vernáculas e Clássicas. Rua Rio
Amazonas, 46, Jd. Santo Amaro, CEP: 86185-280, Cambé, Paraná, Brasil – [email protected]
(bolsista CNPQ).
UEL, Centro de Letras e Ciências Humanas, Departamento de Letras Vernáculas e Clássicas. Rua Prof.
Samuel Moura, 665 ap. 802 edifício Graciosa, bairro Judith, CEP: 86061-060, Londrina, Paraná, Brasil –
[email protected] (apoio a pesquisa CNPQ e Fundação Araucária).
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uma intensa depressão. Charlotte Delbo, na solidão de sua cela, resiste com Fabrice del
Dongo, de Stendhal; e Alceste, o misantropo de Molière, faz-lhe companhia em
Auschwitz. O próprio Todorov não pode dispensar as palavras dos poetas, as narrativas
dos romancistas, pois que elas lhe permitem dar forma aos sentimentos que
experimenta; a “prosa incandescente de Marina Tsvetaeva” é seu único recurso quando
mergulhado em desgosto. “A literatura pode muito” é o que diz o autor, “Ela pode nos
estender a mão quando estamos profundamente deprimidos, nos tornar ainda mais
próximos dos outros seres humanos que nos cercam, nos fazer compreender melhor o
mundo e nos ajudar a viver” (Todorov, 2010:73-5).
O início de nossas pesquisas se deu no espaço carcerário, durante o ano de 2013.
Vinculados ao programa Remição pela leitura, da Secretaria de Justiça, Cidadania e
Direitos Humanos do Estado do Paraná, implementamos um projeto de pesquisa sob o
título: As marcas dos momentos de entrada no mundo da leitura nas construções
textuais-discursivas de alunos-detentos: vestígios de infâncias encarceradas. A ideia
surgiu com o objetivo de buscar formas de lidar com os sujeitos apenados; expostos
constantemente a uma série de mecanismos de contenção e sufocamento subjetivo.
Amparados em estudos sobre o potencial (trans)formador da literatura (Candido,
Todorov, Petit), na psicanálise winnicottiana (em especial o conceito de espaço
transicional), e passando pelo conceito de performance (Zumthor), procuramos pensar o
ensino de literatura no espaço carcerário como recurso de reinscrição de si e do próprio
espaço e (re)tomada do poder de narrar a própria vida pelos rapazes em detenção.
Estabelecemos como meta contínua e circular a observação do ambiente
carcerário e de cada apenado, atentando especialmente para textos, orais ou escritos,
onde pudéssemos notar a emersão de referências às subjetividades contidas pelo
sistema. Memórias de infância, de família, de tragédias ou alegrias impronunciáveis por
detentos, estes homens sobre quem pesa o silêncio e o medo da repressão por um
simples olhar não baixado (visto como resistente, insistente, subversivo). Vasculhar e
reunir as pontas soltas da tessitura que se pretende homogênea da população carcerária
consistia no primeiro passo para um objetivo mais amplo: revigorar, nos apenados, o
sentido de tecer as próprias narrativas de vida, de colocar-se no centro do próprio
caminho e perceber-se como capaz de criar, criar-se e buscar um caminho de inserção
social, objetivo fundamental do ensino no espaço carcerário.
De posse de nossos registros de observações e das resenhas e resumos
produzidos pelos alunos, de acordo com as normas do projeto Remição pela Leitura,
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conseguiam, com letras apertadas, preenchendo esse outro espaço com o que
transbordava de seus corpos e não poderia caber entre as quatro paredes de seus
pequenos cubículos: poesias, peças teatro, contos, romances e canções. Ainda que não
tivéssemos acesso à maioria das produções artísticas dos apenados, encontrar essas
pontas soltas que destoavam da repressão, nos instigou a promover oficinas de leitura e
escrita, nas quais procurávamos dar maior abertura e liberdade de escritura e fala aos
alunos, libertando-nos da abordagem marcada pelas avaliações que tendem a engessar a
criatividade, solidificar normas e padrões.
A partir do trabalho que realizamos na penitenciária, começamos a perceber que
as reflexões que desenvolvemos naquele espaço, poderiam nos servir como ponto de
partida para pensarmos outras escritas, outras leituras. Nesse sentido, encontramos na
escrevivência (Evaristo, 2005) de Conceição Evaristo, um ponto chave para
continuarmos a pensar a criação artística como meio de emancipação.
Não há povo e não há humano que possa viver sem fabular, aponta Antônio
Candido (1995:242-3). Inúmeros relatos nos mostram como a arte se torna recurso de
resistência ao sofrimento. Para Conceição Evaristo “Ler foi (…) um exercício
prazeroso, vital, um meio de suportar o mundo”, é nessa esteira que tencionamos
construir nossas reflexões: que pode a literatura? Que potência é essa que, segundo
Todorov, resgatou Mill do fundo de uma depressão? Que é isso que Evaristo chama de
escreviver? Esse “modo de ferir o silêncio imposto”, esse “movimento de dança-canto
que o meu corpo não executa” (Evaristo, 2005:202).
Em A identidade cultural na pós modernidade (2005), Stuart Hall traz a
literatura como um dos aspectos mais importantes na construção da identidade de um
povo. O capítulo 3, As culturas nacionais como comunidades imaginadas, nos é caro na
medida em que podemos pensar o significado da literatura afro-brasileira para a
constituição de um povo negro como (com)unidade. Amparados em Winnicott,
procuraremos explorar o quanto a arte e a criação artística são importantes na
constituição das subjetividades.
As culturas nacionais são compostas não apenas de instituições culturais, mas
também de símbolos e representações. Uma cultura nacional é um discurso –
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publicado em 2015, em livro que leva o título do conto; faremos isso esboçando pontes,
ao longo da leitura, que nos servirão às reflexões posteriores. Na medida em que
avançarmos, retomaremos as linhas esboçadas, na intenção de aprofundar as ideias em
diálogo com alguns teóricos, ampliando nossa perspectiva de modo a observar a escrita
de Conceição Evaristo.
2. Inundar
2.1. Mergulhar
Estamos agora no meio da noite, ela acorda bruscamente, o chão sob os seus pés,
o teto e as paredes, o quarto: é tudo dúvida, é tudo exílio, diáspora. De que cor são os
olhos de sua mãe? A voz do griot, que cantava a cor dos olhos das mães parece tão
longe... Atordoada, custa a “reconhecer o quarto da nova casa” em que está morando e
não consegue lembrar-se de como “havia chegado até ali” (Evaristo, 2015:15).
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Durante os dias de forte chuva, quando a mãe agarra as filhas em cima da cama,
na voz da narradora “alguma coisa se perde e por isso se acrescenta.” (Evaristo,
2011a:9). Os olhos da mãe se confundem com os olhos da natureza, chove e chora,
chora e chove; e a voz do griot novamente se faz ouvir de longe: a mãe se expande, é
um corpo-refrão que contorna o mundo com suas notas. E a mesma pergunta retorna,
rebordando o texto.
Movida pela dúvida sobre a cor dos olhos da mãe, ela retorna à cidade natal. Ela
nunca se esquecera das mulheres da família, e já naquele tempo “entoava cantos de
louvor” (Evaristo, 2015:18) às ancestrais “que desde a África vinham arando a terra da
vida com as suas próprias mãos, palavras e sangue.” Ela não se esquecera das
ancestrais, mas não se lembrava ainda da cor dos olhos de sua mãe. A dúvida repete,
encarnada num ritmo que desestabiliza. “Tomada pelo desespero” ela abre o círculo,
não “do lado onde vêm acumular-se as antigas forças do caos, mas numa outra região,
criada pelo próprio círculo. Como se o próprio círculo tendesse a abrir-se para um
futuro, em função das forças em obra que ele abriga ” (Deleuze; Guattari, 1997:116-7).
Ela sai de casa “no fio de uma cançãozinha”, resquício da voz do griot? É essa canção
que ainda mantém o chão sob os seus pés, mesmo que se lance para fora de um
território.
Na viagem a protagonista vive a sensação de estar “cumprindo um ritual em que
a oferenda aos Orixás deveria ser descoberta na cor dos olhos de” sua mãe; “a partir de
ritmos, de cantos, de danças, de máscaras, de marcas no corpo, no solo nos Totens, por
ocasião de rituais e através de referências míticas que são circunscritos outros tipos de
Territórios existenciais coletivos” (Guattari, 1992:27).
Estamos diante dos rios caudalosos que escorrem pela face da mãe. A filha
entende que a mãe traz, “serenamente em si, águas correntezas”, ela traz, porta as
águas, “riacho sem início nem fim, que rói as duas margens e adquire velocidade no
meio” (Deleuze; Guattari, 1995:36). A cor dos olhos da mãe é cor de olhos d’água,
águas de Oxum, que é a vida em si, puro rio, sempre no meio, intermezzo.
No abraço as lágrimas se misturam, desaguam num mesmo rio, não é mais só o
corpo da mãe que se expande, mas o da filha também, não há mais sujeito e objeto, só
um rio, um rizoma. E isso fica ainda mais claro (ou confuso?) quando, posteriormente, a
pergunta se repete, mas agora tudo se inverteu, ou se con(fundiu) (Evaristo, 2011a:9), e
a canção do griot segue a se repetir, de olhos em olhos, ela mantém os elos da corrente,
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e, ao mesmo tempo, abre os círculos para outros círculos, é onda que ora empurra para a
praia, ora para alto mar.
2.2. Desaguar
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seja na própria demolição da favela, no grande buraco que cresce próximo aos barracos
ou no vazio que resta em Tio Totó, após atravessar o rio “são, salvo e sozinho”. A
reconstrução. “Quando ela já estava quase dormindo, escutou longínquos sons da caixa
de congada de Tio Totó. Ele ficara lá, era um dos últimos, vinha tocando a caixa pelo
caminho. Ela apurou os ouvidos. O batuque vinha de fora e de dentro dela. Vinha de
suas raízes, vinha do seu recôndito eu” (Evaristo, 2013:245). O refrão de dentro-fora
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pela fissura no “real”, a alteridade e colocar-se em cena como sujeito, para que, então,
possa narrar e narrar-se, recolar os estilhaços das constantes quebras de si?
A protagonista de Olhos d’Água lembra-se das brincadeiras com a mãe-boneca-
negra, recorda a rainha sentada em seu trono, recebendo as flores das princesas. Traz
também à memória os dias em que se sentavam na soleira da porta onde, das nuvens, a
mãe fazia algodão-doce. Maria Nova (Evaristo, 2013:30) insiste que precisa contar a
história de seu povo, de homens, mulheres e crianças que se amontoavam dentro dela,
como amontoados eram os barracos da favela. É um modo de tomar posse da própria
história, assumir o controle. Lumbiá (Evaristo, 2011b) contava histórias de mentira, no
início por safadeza, mas, no contar, encontrava-se nelas, e “em meio às lágrimas
ensaiadas, o choro real, profundo, magoado se confundia” (Evaristo, 2011b:34-40).
Ponciá Vicêncio (Evaristo, 2003) faz do barro sua memória, sua resistência, seu corpo-
avô, por meio do qual resiste. Duzu-Querença (Evaristo, 1993) enfeita a vida e o
vestido, e desfila num outro espaço, onde a dor se torna arte. Mary Benedita e Rose
Dusreis (Evaristo, 2011a) dançam e pintam com seus corpos, são meios de ocupar o
espaço, de transbordar-se e marcar o chão, ser e tomar posse de si.
Assim, a escrevivência alterna entre a ruína (como vimos no item anterior) e a
(re)construção. Indo e vindo, diluindo e inventando terras sob os pés das personagens.
Essa alternância se dá em oscilações entre o que Deleuze e Guattari chamam de
ritornelos (Deleuze; Guattari, 1997; Guattari, 1992). Durante a leitura de Olhos d’Água,
referimo-nos, por vezes à voz do griot; falamos dessa voz como algo que funciona como
um centro de atração e repetição, ritornelo que contribui no movimento das ondas que
reterritorializam e desterritorializam dentro da escrevivência de Evaristo.
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O conjunto das condições que torna possível que instâncias individuais e/ou
coletivas estejam em posição de emergir como território existencial auto-
referencial, em adjacência ou em relação de delimitação com uma alteridade
ela mesma subjetiva (Guattari, 1992:19).
Nesse sentido, a subjetividade é entendida como linhas que ora se cruzam numa
individuação, ora se espalham numa coletividade, sendo esta última compreendida
como multiplicidade não exclusivamente social, que se desenvolve tanto além do
indivíduo, no socius, quanto aquém dele, “junto a intensidades pré-verbais, derivando
de uma lógica dos afetos mais do que de uma lógica de conjuntos bem circunscritos”
(Guattari, 1992:20).
As condições de produção evocadas nesse esboço de redefinição implicam,
então, conjuntamente, instâncias humanas inter-subjetivas manifestadas pela
linguagem e instâncias sugestivas ou identificatórias concernentes à etologia,
interações institucionais de diferentes naturezas, dispositivos maquínicos, tais
como aqueles que recorrem ao trabalho com computador, Universos de
referência incorporais, tais como aqueles relativos à música e às artes
plásticas... Essa parte não-humana pré-pessoal da subjetividade é essencial,
já que é a partir dela que pode se desenvolver sua heterogênese” (Guattari,
1992:20).
Dessa forma, quando tratamos de subjetividade aqui, estamos lidando mais do
que com subjetividades individualizadas, mas também máquinas de subjetivação
posicionadas tanto em regiões pré-pessoais e não-humanas quanto no meio social.
Consideramos importante apresentar esse conceito de subjetividade, pois que é em
paralelo com ele que Guattari, recorrendo constantemente a Bakhtin novamente,
discorre sobre o conceito de Ritornelos Existenciais.
Os ritornelos são fragmentos que se destacam do conteúdo, por uma função de
isolamento semelhante ao que acontece com a música, cuja composição torna-se relevo
no silêncio-de-fundo, e ainda o que acontece com o refrão dessa música, que se torna
relevo na música como um todo. Os ritornelos são como espaços onde se enroscam
diversas linhas temporais, provocando a cristalização de:
Agenciamentos existenciais, que eles encarnam e singularizam.
Os casos mais simples de ritornelos de delimitação de Territórios existenciais
podem ser encontrados na etologia de numerosas espécies de pássaros cujas
sequências específicas de canto servem para a sedução de um parceiro sexual,
para o afastamento de intrusos, o aviso da chegada de predadores... Trata-se a
cada vez, de definir um espaço funcional bem-definido. Nas sociedades
arcaicas, é a partir de ritmos, de cantos, de danças, de máscaras, de marcas no
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3. Transbordar
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Até aqui, procuramos demonstrar como o rio dos olhos da mãe – refletido na
pergunta insistente ao longo de Olhos d’Água – funciona como ritornelo existencial da
protagonista, e, mais ainda, da cadeia geracional da qual ela faz parte, ou seja, é na
verdade um ritornelo existencial em torno do qual giram produções de subjetividades
coletivas de um povo. Mas ainda há uma outra relação a ser pensada, a qual nos
referimos como cadeia de ritornelos da escrevivência. Para tanto, recorreremos a mais
algumas palavras de Conceição Evaristo a respeito da escrevivência, desta vez em
entrevista a Eduardo Assis Duarte:
O ponto de vista que atravessa o texto e que o texto sustenta é gerado por
alguém. Alguém que é o sujeito autoral, criador/a da obra, o sujeito da
criação do texto. E, nesse sentido, afirmo que quando escrevo sou eu,
Conceição Evaristo, eu-sujeito a criar um texto e que não me desvencilho de
minha condição de cidadã brasileira, negra, mulher, viúva, professora,
oriunda das classes populares, mãe de uma especial menina, Ainá etc.,
condições essas que influenciam na criação de personagens, enredos ou
opções de linguagem a partir de uma história, de uma experiência pessoal que
é intransferível (Duarte, 2011:115).
Com essa afirmação, é possível observar como Conceição Evaristo produz
mecanismos de referenciação: o texto literário é puxado para fora das letras que o
compõem (ou mergulhado mais fundo em sua composição?), as frases, as imagens, os
sons são afirmados como parte do corpo da escritora, mas, mais que isso, seu corpo é
distribuído sobre vários dentes-do-tear nos quais se enrosca e tece sua escrevivência.
Ao destacar esses dentes-do-tear (brasileira; negra; mulher; viúva; professora;
etc.), Conceição Evaristo levanta universos de referência, ritornelos que ressoam em
direções diferentes, atraindo a escrita-vida de um lado para outro, alternando os fios na
tessitura escrevivente. Deleuze e Guattari começam Mil Platôs 1 com a seguinte frase:
“Escrevemos o Anti-Édipo a dois. Como cada um de nós era vários, já era muita gente”
(Deleuze; Guattari, 1995:10). O discurso da escrevivência cria um elo entre os ritornelos
da escrita ficcional de Evaristo e os seus próprios como sujeito, projetando, ainda, uma
cadeia que se estende na produção de memórias coletivas em torno de um devir-negro
(também um devir-mulher e outros devires).
[A respeito de uma obra de Kafka] O rato Josefina renuncia ao exercício
individual do canto para fundir-se na enunciação colectiva da «inúmera
multidão de heróis do [seu] povo». Passagem do animal individuado à
matilha ou à multiplicidade colectiva: sete cães músicos. Ou então, ainda nas
Pesquisas de um cão, os enunciados do investigador solitário tendem para o
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
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Memória (Evaristo, 2013) e Ponciá Vicêncio (Evaristo, 2003); contos publicados nos
Cadernos Negros (2011b; 1993), e nos livros: Insubmissas Lágrimas de Mulheres
(Evaristo, 2011a) e Olhos d’Água (Evaristo, 2015).
Juntando as linhas, tecemos observações a respeito de três aspectos, buscando
demonstrar como eles funcionam, nas memórias da narradora, e em outros textos em
prosa de Evaristo, dentro de um movimento oscilatório entre ritornelos, ora estilhaçando
os territórios, ora inventando outros campos de possível a partir dos cacos
desterritorializados.
Ao fim aproximamo-nos mais das falas de Conceição Evaristo acerca da
escrevivência, procurando demonstrar como sua escrita parece retomar a função do
griot, resgatando o poder sobre meios de produção da memória relacionada ao devir-
negro. Conceição Evaristo dialoga muito também com a representação do feminino, e
mais especificamente do feminino negro, no entanto optamos por nos focar mais, aqui,
na questão afro-brasileira.
É importante ressaltar novamente que por vezes preferimos nos referir a um
“devir-negro” mais que a um “povo negro”, essa opção se dá por acreditarmos que a
escrevivência atua num campo maior que apenas na construção da memória do povo
negro. Ao dizermos que sua escrita abre campos de possível de um devir-negro,
apontamos para uma construção emancipatória narrativa e memorialística que extrapola
a história do povo negro, na verdade a voz de Evaristo (quando pensamos na questão
afro-brasileira), acreditamos, pode atuar como ritornelo existencial coletivo para além
de uma minoria (seja negra, feminina, etc.), engrenando de forma importante na
produção de subjetividades através de processos de singularização inclusive naquele
campo pré-pessoal, não-humano, das subjetivações parciais.
Com este artigo esperamos contribuir com os estudos em torno da obra de
Conceição Evaristo e da literatura afro-brasileira. Como já dito anteriormente, este não é
um trabalho fechado, ainda estamos em movimento em nossos questionamentos e
reflexões, e não pretendemos com ele dar respostas mais do que levantar perguntas.
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Deleuze, Gilles; Guattari, Félix. 1995. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, v. 1. São
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