(N - A) VOLTAIRE - Romances e Contos

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ROMANCES E CONTOS

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post ou então o seo mais e7icantadorq?tea naturezahavia feito. ('Vel
vol. 1, pág. 57.)
Ilustraçãode Moreau,o Jovem, gravadapor Duclos. (Ediçãode Kehl das
Obras de Voltaire, 1784-1789.)
CL. HURAULT.
CLÁSSICOS GARNim
DA DIFUSÃOEUROPÜÃ DO LIVRO
%
B
%
Coleção dirigida por VÍTOR RAMOS

VOLTAIRE

ROM. '( ,E) ( :ONTOS


'l T'q /n

texto calcado na edição de 1775


com apresentação
e notasde
laNRI BÉNAC

Tradução de
LÍVIO PEIXEIRA
Professor Catedrático de História da Filosofia da Faculdade
de Filosofia.
Ciênciase Letrasda U.S.P

l.o Volume

JEANNOT E COUN DnUSÃO EUROPEIA DO LIVRO


Tu me aband07Laste, ãiz Co\im,; mas ãa € importa que secas um Rua Bento Frestas, 362
homem importante, continuarei a amai-te do mesmo modo:' tIVer
Rua Marquês de ltu. 79
vol. 1, pág. 161.)
SÃO PÃULO
Ilustraçãode Moreau,o Jovem, gravadapor Duclos. (Ediçãode
Kehl das Obras de Voltaire, 1784-17B9) 1959
Título do original
ROMANA

CONTES
+

APRE SE NTAÇÃO

ASES.t///l/OS, na presf#fe edição.dos Romances e Contos deJroja.


''/ paire, o texto dü última edição üparecidü ainda em Tida do
CLutor, isto ê, a ediçã,o "ertqucüradd' in 8o, em, '10 volumes, wm
titulo de conjunto, publicada en'LGenebra, em 1775, pebs CrameT.
É mister obserliür, todavia, que êsk texto não traz, Wrü os que o
precederam, correções oügtmis: é mais ou menos certo qu,e Vol-
baire não revi.u est,üedição e que os Cramer usüTam simpksmenk
Q texto dü edi,ção in 4.', de 1771, Tla qual o tomo Xlll comünha
os Romancese ContosFilosóficos. roZI(üresegüramen&e
reuü
)s primeiros volumes dn edWão de 1771, mm Ttão se sabe se cor-
rigiu, o tomo XIII. O único méüto da edKão de 1775 ê, pois,
[L; nos dür uma reprodução, no conjunto, fiel de teoctos fixados
nLuito anteriormerLk sob uma forma que é possível julgar deti-
nitiua. Alas teria silvo eh definitiva, se Vottaire tivesse Divido
mais alguns anos? Sabe-se cure, desconunte com a ddi.Qão de
1775, êle decidira, em 1778, corrigi.-la, a tim de preparar uma
rtouü edição que daria a Pancltouclte. VotUire morreu e Panc-
kouclce cedeu CL Beüu.alt,ürcticús um certo núm,ero de manuscritos,
até então inéditos, e mais ou, menos trinM volumes da edição de
1775, nos qu,ais Vo\tüire ia ha iü feito-coTreÇÕes. Foi com êsses
Lnêditos, com eshs correções 8 sõbTe o k)cto düs edições p-àque-
las e das gerais dczs OBnAS,qüe se eszabeZeceü{z ecltçaoposlü'
mü, composm, que apareceuem Kehl a partir de 1784. Condorcet
organizou-lhe o phT\o, Decroioç, aTtúgO secreÚrio iie Vottüire, esU-
beleceu-theo texto. Somos tentados G crer que, tâdü uez que
os editores de Kehl movi.ficaram o texto de 1775, teriam
Lesadoüs correçõesde VottüiTeque sÓ êles conhecimn. Dêss
modo, certos.editorespreferiram seguir o texto de Kehl,. No
Copyright da presente edição by zrühnto, nada prouct qu,e Volt(úre tenha corrigida os tom,os da-
Editicns Garnier Frêres, Paria :luetü edQão que contin mm os Roulances e Contos. Quanto
nos inédita)s,Ttãoê certo que Vottaire os tenlw publicado na toT-
e
nlü em que chegaram aos edil,ares de l<ehl e no lugar que estes
Z)i/usão EuroPé a do l,lura, São Paulo lhes deram. Além disso, o tesctode Kehl aparece, {reqilenkmeitte,
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ligeiramenh adaptado pelos editores à compreeítsãodo grande herdade mora (O Carregador Zarolho, Cosa-Sanita, compostospor
púbZüo. uoZfa de .2747; O Mando Tal Qua] É, impresso em ]748,

I'ümbém Ttão Ihe deDeTnosdar Q imporúncia que, por emm,- Memnão ou a Sabedoria Humana, em ]749, Carta de Um Turco,
No, 1em o lexia da exemplar de Bordéis lera os Ensaios de JI/on- em 1750); a forma deItoU, por urzes, um certo preciosismo,a
migne: quando muito terá o mesmo calar que a edição que dêl,es LrLttuênciüdo conto oriental, é clara, Q ÍiLosotiü, sobretudo CL.filo-
}êz, em 159S, Mlh de Gournay. A edição de Kehl in,sta.tirou, sofia ntoral reuelü um equilíbrio indulgente e todo impregnado,de
porém, um,ü tradição. A edição de 1775 só taziebconshr dos razão. Mas üto ê, em ;umü, pouquíssimacoisclao óxidodos dois
fomosXXX.r e XXX//, sob o zí&üZc} de RomancesAlegóricos, Filo- romcln.ces:
Zaü\%(ed. ong. 1747), que apreserbLa
o probllmüdo
sóficos etc., quinze romances, os quinze primeiros de üma edi- destino humano e o resotue, com ülgumcl veticêltcia, segundo Leib-
ção.,de Zadig âs Cartas de Amabed. Condorcefreliroü daí o rLitz e Pode, em umcl ncurrütiua que pTocüra tanto ctgradür à ima-
Pot-pourri e acrescerlZoü-Z#e
nade oü]ros lexfos qüe, em ]775, girzação qüünfo insfrüír, e Micrõmegas Í'ed. orla. .17S21 .qüe
/ígürauam üm nos ])iversos e ozólrosnas Peças destacadas atribuí hLuezseja apenaso deseltuoluimento
de umn outra obra, À-'V\a-
das a diversoshomenscélebrese delasnarrações: Cosa-Sanitae O gem do Barão de Gangan. Micrâmegas origizza-sedas medímções
Carregador Zarolho güe roZlaire manca ínseríra em suas obras. cicnttti.cas
de Vottaire,dUrüTlte
o períodode Cirey e terminana
Esta moditüação toi feliz para obra que, como jenni ou O 'lauto idéü' do relüti isbn,o. Mccs esM ideia, Voltaire uüi deseítuotuê-tü
Branco, dizem respeílo ê fécníca do conto, mas eZa é cora/esláueZ no sumido moral,: se o homem,é ünMmente um ponto imper-
em relação ao Sonho de Platão oü ê PequenaDigressão; Con- aepttuel,no Universo, parti que êsse orgulho que o twü a verse'
lorcet toi, aliás, obvigado,para Justifica-ln,Q modificar o titulo guia o seu semethnnle, sob o pretexto de que êbe é o centro de
tla obra e separa-ln de seü conboxl,a. No entanto, ost)nbeteceu-se tudo e só ête conhece o segrêdo de todas as coisa.s? Mehttsica
o üso de chamarmos de Romances e Contos a fadas as obras q e intoterâjtcia est.ãodoravante ligadas. A libertação do homem só
Condorcei cZassí/icoücom êste Zí/üZo,acrescüías do Pot-Pourri. poderá ser realizada pela destruição do preconceito ou do abuso
Contorlnamo-nos com isto e com isto nada perderá também ie corLtiünça que ê a metüttsicü. Êste é o ponto de partida da
) l,ei,tor. Mas o que teria peltsado Voltaste a respeito? Luta que Voltaste uai, desencadear.
+
/Vogrupo]75ó-1759,
Os Dois Consolados
r'p. Imp {?lló) é
símpZeslnenle üm apóZogoe o Sonho de Platão r'p. ímp' 275ó,) é
Uambénlapenas uma nota filosófica que se poderia ligar às ç,alias
Filosóficas. Z)ofs rontarzces,dos quais o primeiro nada mczísé do
Imprimidos os quinze pritneiros romüTlces nü ordem adorada güe o esquema do segürüo Í'As Viagens de Scarmentado, p.. í-
pela edição de 1775. Para üs outras obrcLS,chssiticamolas i7SÓ, e o Cândido, ed. orla. ]759), marcam porém uma etapaim'
segundo ü ordem desm Tn.esmoedição. Tal ordem lúo esta ezatü- portürLtenü lutei tilosótüa e tambêlrluma evolução lu técnüü do
mentecontormlecom a cronotogh, mas, se:conhecemosa llata das Conta. É que nl.esseímerim, Voltaire con.sagrou,tnboriosls alt,os,
pümeiras impressõese das -eleiçõesori,finais, ignorarnrosàs Dêles de ]752 a -Z755,a preparar o Ensaio sabre os Costumes. rê agoTla
ü datcl dü composição dos contos. É posstuet, porém, relacionar aom maior amplitude no espaço e no tempo; o destino da
c(üü umn das duns com um peTiodo bem preciso do pemamemo homem iTtScreue-se, nn forma de símbolos, no mapa do mundo
iLe Voliidre. Sdu,s püm,eiras trabaltios Twük género püRwm e na histórh. Assim, o conto torna-se agora plaruetário e tanto
datar da Viagem do Barão de Gangan,obra qm enviou a Scarmen.Lado como Cândida seguem o velho método picctresco,
Frederico,em julho de 1739. alas ü obra perdeu-see temosque lgorü fetais ümptiiEdo e ambos andam por tôdas as regiões do Uni-
:sperür até 1747 pura assistir üo üpard(ãmentodos primeiros con- am en.centram Q tristeza de Voltüire em jüce do espe-
tos. Vottaire tinlm então 53 ÜTLOS
e sms contemporâneos comi- tãcul,ode horrorese l,oucurasdcbhistórh do mundo,das guer-
leranüm-no princi@mentecomo o primeiro poeh dü Frün$a. ras e das in\coerências de seu kmpo, de certos acontecia,entes
O primeiro grupo de Gomos (entre 1747 e 1752) com- com,o o Hrremoto ãe Lisboü. Ambos ir tam,-se, com.o o prõpv o
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irtspiradclem Wol,t e em Leibnitz, que afoga num mar de con- sensívelao desespêPO de dois sêres quz a naturezatêz um parcao
siderações puramente teóricas, os sofrimentos reais dos miserá- outro e que 08 jesuitm e a. c\ienteiüseparam,. A intençãoera boa
veis e a injustiça TÚo men,os real. dos poderosos. É esta exa.o- e hábil,, müs lustimüri,amos mais, talvez, o furão se, perdendo
peração, cada uez maior, qüe explica o Cândida, eln qtéea [ronü ü nohcb, não tivesse êLe desfasado Q filosofia. A seguir uem,
uiotenm, n,eruosa, temi.sa,doLoroscl, contrasta. com ü luminosi- com O Homem dos Quarenta Escudos r'ed. ong. /7óaJ o grande
dade sorrídenfe do Zadig e do Micrâmegas. ]Vão poderia, no lesjile dos clwrlnMes de toda a espécÜ: ecoThomistas
distintos,
!ntnnto, tratar-se de pessimismo, se se chamasse pessimismo à ügricuttores dipLoTnndos,monges ladrões, paRtI,etários esfaimados,
:rena. de que Lt do uüi m,d no pior dos mulüos posstueis. sénl conUr cçquêl,es
que sabem explicar Q OTigerndcbTida e do
Na.s paixões desen.cadecdm .do Urüuerso, a uUü tihsótüa multo. . . N«da de mrrül;hüs. na(],ü de h,eróis uivos -- s(üno

é aindcupossível para Câíüido como lmrct Votüúre. A ProuUênci.a um bom homemque,no tim, sai,bem do t.egócio
-- m,üs,ao
corLtinuü a e=çistir, na escala cósmica, mas TÚo na escala httmnna, contrário, umcusérie de cartas, di,átomos,invectivas que transfor-
3 0 que VoLtairenos quer ensin.aré, no fundo, qu.eos que pre- mam essa mís/zóra da Apologia de Raimundo de Sebonda :e de
tendem cona,ecer, em detdhz, os desígnios de Deus acêrcü do; TW- Bouvard e Pecuchet, mamaperdadeíra caixczde pancada. 7oda-
gõci,oshumün,os,são, ou, bandUos ou imbecis. É essa Q ideia oia, não se trem aqui de um, libelo contra.a razão como em
do Micrâmegas, exagerada a&éo paradoxo e repelida, raít;osa- Montaigne, nem tampouco de um balanço düs üsnices que pode
rnente,como jú se dose, em ulnü série de demont,straçõespor provocar ü ciência mal compreendidapor dois tolos, como no
absurdo. caso da obra de Fhubert. Trata-sede mostrar que ü ciên.
:ia, nüs mãos dos fanáticos ou, dos interesslidos, pode ser, como
Essa case de tutor e de tristezaprolonga-se
n.osáreasqüe l memtísica, um bom, mgócio e, para gente honesta, um pcügo
se seguem. O grupo 1761-1768manitesm-ae dela tira as pzZbJlao. A Princesa da Babilânia f'ed. oríg. -Z7ó8) marca üma
conseqiLên.cin.s.
Deixemosde lado ü arrúuel moralidadeqüe é uottaà forma do conto, mas a.gotacom ml. tanmsü e com tal
Jeannote Collinrp. í. -Z7ó41,
a PequenaDigressãorp. í. 27óóJ desprezo â uerossím!/Ãalzçaqüe zillrapmsa o Cândida,/acendo
]ue ltüda tem de Coreto. Alguns curtos fragmentosrevelam dessa obra, coisa b.emdi/eren&eda Ingênuo e do Zadig. roZMíre
üm Geria desânimoem raZ&üfre:História de Um Bom Brâmane
ptirecebater renunciadoao poder sugestivodo contopara au-
r'p. i. -Z7ó-ZJdá Z)emo fom de üma crise de celfcismo,O Bran rrünhr o seu, potencial {íe idéias, que ü irrealidade tlagrünte
co e o Negrorp. i. -Z7ó4,)é de üm maniqueísmo
no génerode Ía narr(Kão mostrclcom tanto vigor que temos até a impres-
/l/arlírtão; a Aventura Indiana rp. í. J7óóJ é üma Irísle a en são lie estarmos.diante de outro autor. Ao mesmo kmpo, o som-
tuta' Tetra cl tilosotiü. Mas Vothire nunca medi,tou mui,to Lim- brio caos do Urtiuerso güntm aqui mais alguma tuz. Tratar-se-ia
po sem agir: se os chartatães e as seus homens teóricos exploram de um caso de lisonja cl certos déspotas do "norte", que Q hi,stó-
) mundo, é mister combütêlos; e em primeiro Lugar os ria julgou ríwts müquiauétüos do que CLcredit.üraVoltaird? É
=hürtütães dü Tetigtão, ctquêles que TW mesma época toítttram mister pensar qüe, pata Voltüire, tôda vitória do poder poli'
Lü Barre, Calas, Situem,etc. Desde en,üo tem inicio uma ;ico sabre o poder espiütunl represenm ü um progresso do espí-
série de uaHaçãessôbre o le/7m: Tantum religío potestsuadere rito humano. Hoje pensaremos antes o contrário. b/la$isto não
maXonam\ é, desde logo, ü tormcb do paTLfletOilliurioso qu,e tira o direitoao nossofil,ósofode publicar,udiantaTÚo
o seu
.s.í,«ÍZ« . críszü"is"'o a :'ma e«,p,é;a de m«ío«ks(Fot- ataque, bokün.s iie vitória, o qüc, atina, é \leito. Todmia, üs
'pourri p. i. 1765); depois yoLtaire apela para o sentimento; Cartas de Amabed red. orla. ]7ó9,), czgora sob /clima gm lembra
de lidas as obra é O Ingênuor'ed. orla. 17ó71a qüe [zs Cartas Persas, concentram de nodo sôbre a reZígião üm es/ór.
leis perto esta dü forma romanesca Wlo estârço que reue- ço que prouisàriümemese dbpersarü: úda CLerudição do E.n-
n para individualizar os personcLBens, dar-Lhes um ser que TIOS saio sabre os Costumes é ülíZízada a /zórzdo neste Zit;ro, engzóanm
baque,ptLrctcentralizar suü auentttrclem terno de um dranm, em ]ue se procura atrair o nosso interesse para CLhistória de dum
.ugür de a dispersar em umü série de acontecimentos esquemá- )oas criatura.s, tão tocürLtcsquanto o Ingénuo e Mole de Súnt-
:ices demais para parecerem reais. É preciso comover o. público Des
10 ROMANCES E CONTOS A. P R E S E N T A Ç ÃO 11

Todas estas discussões sabre cbanúgttU(üe das re\igiões po- ditarcl haver demorLstrcüo ü geração espantarem. Os materialistas
dem nos parecer rabuhces e cronoti)ricamente in,acata,s. Mas de tinham tais eocperiênciasem gTündecorttü, porque pareciam pensar
que se trata? Trata se de demoTLstrar ao no:sso espiHto, apro- que ü vida podia rmscer de simples con\biTwçõesquímicas. Vol,paire
ueitürdo da. emoção, que ü reltgiã-ocatólicclnão é a única. quxeo não ctprecia êste materialismo, porque, em primeiro lugar, êle
mundo não toi .organizado pela ProliUên,cia para a maior glória ítão the parece, de modo algum, demonstrado,e Pasteur provou
do podojudeu,a qu,e,por conseguinte,
tudo quantonolconm, que Vottaire tiT\lmbastarLterazão pürctdesconfiar € em segun-
zzão'pmsu de háblZmerlürapara cobrir as üuenfürasdos Fa tutta do lugar, porque,reduzindoas anõeshuinntta,s
Q simplesrea-
e dos Fa mo\to e de seus colegas e superiores "preferidos", "Gonzos ções da maürin, suprime-setôda dütin4ão entre o bem e o mnl.
de Farias", Dica-Z)eüs e tutti quanta. e, em c-onseqiLêntcio
disso, tâdct uidcl moral e social.
É sempre o m,esmoprego que Voltaire martela e, no enmnto, Ora, um dos temas permanemes do pemümento de VoLtaire,
qunnm difere Qa en,tre ú ironü. tusti,galüe d irütcLdcbde Cãnaldo, ctUm do dáslrto, é a mcessi(hde de uma orgaítizcLçãosocül sólida
e a ironia falsamente
irtgênuia,
hipócrita,segurade si, dm Cartas que sõm,enwpolia repousar sõbr.e uma moral clara e büsUnte hu-
de Aimabed. mana para que possa ser reconhecixlae üceitü por todos os
O Cândida é üm sobressaZfode ret;o/la; as Cartas, zõmbrin- tnembrosdo corpo social. Os últimos C.aBlossão, de mala for-
quedo de uentcedoT. ma, a indagaçãodesçamoral; a História de Jenni r'ed.oHg. /77SJ,
Os Contos irão aparecer 7z&ais
nifüamenle czíndacomo obras após um brilhante comêço escrito l],ü melhor veia anui-rêh©osa,
expõe grauelnentecunecessidlidedo deismo e Tetomüüs duas pro'
iLe combUe, se pensarmos li.ü atiuida(k de Vol,paire durante esta
época, se passarmos em seus püntktos, nm suas múltiptm inber- z?ascanlüas no Dicionário Filosófico: a ezisfêncüde üma /!/zalí-
(hãe lio Universo e Q utüilhãe moral de Deus. Vottaire nunca
ueTKÕesü tutor dm Itimas do fanatismo, em suas próprias cartas,
rbüsquais, sem cessar, retoma os temas de seus romaTlces. Os cessou,de crer em umüProulxíência
geral que reguladaa ordem
C.on\as estão estreitamenteligados ü estctatLuid(üe e não são mo. ão mundo; ü Prouiãência que Vottaire atacada ercl, apenas, u
rn,BRIosde descanso de um potemistütaúgcúo pela.ssua,slutas. Ao Prouidên,cia pata uso dos Inquisidores. Quünboao otimismo de
contrãrl,o, são as suas prõprtas aTm,as. FTeind,é um atimiómo'pensado que não nega o mnl e não aceita
ConsideremosO Touro Branco f'ed. orfã. 17741,qüe per' ü tirania, ttão ilnporm qual seja. Mas, como Voltaire nos seus
llltimos anos, Freira espera, apesar de tudo quanto ainda resta
lance ao ÚZ/imogrupo dos Contos, o de ]774]775. Z, /za
ü fazer, que ü sabedoria e ü razão ücctbempor melh,orarQ sorte
üparênci,a,um ioga dct mais alta tanwsiü: o númerodos do domem. Os Ouvidos do Conde de Chesterfield red. orla. -Z77SJ
persa/vagens aZegóríqos noa dó, mais ainda qüe lza Püncesa testemunham a evolução de Volta;Lre para umn espécü de reli-
da Babilânia,a impressãode üma uoZunMrlaírreaZMade.
. . e, gião ILütiLrdposta ncl moda por Diderot e Rousseau. Não se
n,o entanto, ü demomtraçã,o, que é sempre a mesma, impõe-se. trata de uma simples concessão üo entusiasmo pelo bon\ selva-
Esta serpente, êste peixe, êsk touro etc. . . são símbolos bizarros
mscidosdos deuartehsdos fanáticose dürtçam,dente de gem. O deismo fundamental e permanente de Voltüire devia cõn.
duzi-!o à coitclüsão lógicct de que cl ordem de Deus se eltcontrctua
nós [lm esfran#o ballet: depois de Bouvard e Pécuchet, eís enl certos sêres simples; estes não são irLteirünLente
bons, pois
a Tentação de Santo Antro. Estes zíZlímos contos, porém,
parecem oríerzlar-separa noz/aspreocupações: o Elogio Histórico é condição própria do homem, o ser imperfeito, m,as o homem
da Razão é o ÚZflmo óolelím des a lula cola.fra os cÀarZa&ães, guarda em si colho que umü imagem ingênu,üdü ordem geral
luta de mds de ante anos e. como todos os boletins de do Urüuerso e ü razão não date esquecer esh imagem, pondo-se
vitória, êle hoje nos parecebem otimista. Müs, depoisde haver em gu,ardacontraas intençõesdos vendedores
de droga que
puLuLam nas velhas civilizações.
Lriuntadoà direita, Vottüire procura ter cui,d(üo à esquerda, pois,
sob cbintlxún.ciade certos encübpedistüs, o materialismo e o ateís- Há pois, contràrinmel\teao que se ütirmcl tantas urzes, umü
mo desenuoZz,eram-se..rá O Homem dos Quarenta Escudos desrms- unidade no pen,sümentode VoLmire, td como cc que n,os oferecem
=araua, entre os exploradores da crendice pública, Needhum qu,e os C.altos. Est.a unia(üe en.contra-se tàcilmenk lw.s obras corL-
jübricüua engu;i.üscom tarinlm, ou dito de outro modo, que acre- femporâneczs,como o Ensaio sôbre os Costumes, o Dicionário Fi-
12 ROMANCES E CONTOS APRESENTAÇÃO 13

losófico eZc. Há Zczmbér7L ürn progresso, no senZído de gele ê suficiente,nü maioria dos casos, reportar-seàs obras históricas
os dois pHmeíros- grupos de Contos correspondem ao momento ãe VottaiTe. Estas nos dão, caIR todos,os seus müzes, « idê
en'bque Vottaire tonta comciêncü dü necessUcde de consagrar-s?, da qul.al apeTms Demos umcl ponta; elas nos mostram, ao mesmo
qual.se que exclui,siuamenU, à Luta tiLosóticü e que os Contos do tempo, ü passagem do abstrato ao con.Grelo, do Tücioclnio ao
terceiro grupo são outros tantos golpes que üssestctnesU Lüm, símbolo e nisso c.onsisk cbarte de yothire. O mesmo aconkce
Enquanto que os Últimos, ao fada de algumas escaramuças püm com todos os detalhesque uêm dcbtida e não dos livros: em
limpar o terreno, Teuêlnma procurcbsérh. de uma tüosoÍiclcapaz suas carros, Vottaire comenta ü atunlid(de, int.erprelaos talos,
ãe sduügunrdar ü digna(üe humana e a ordem social. simptijica-os para tirar dêles um sentido, resume êsse gemido eTn
umü tónltulcbque procur% ao escreverü diversos dos seus corres-
poTtdentes;quando eítconLrctessa fórmula, não receia repeti'la
#
várias uêzes o que é o próprio prilutln,o dü polémica-- eé
essa /órmüh píucz qüe passa para os Contos.
O l elhor comentar o dos Contos encontra-se, assim, nas
É Geria qüe Ãá unidade de pemamenfo nos Contos. ]l/as
hâ hmbém diuersixí(üe e riqueza, se consta,erarmos a uariedüdê obras titosóticm e históri.cas, e também nü coTrespoTÜêíwiü.
e a exuberârbcia dos temas que enuotuem o tem,cu cento(ü. Vot-
iaire escreuetlos séüsContos em üma épocade szmuMa em qüe +

iá acumulara umü consideráuet sclma de conhecilnzntos em ma-


ção ao seu, tempo, sobretudo eítl história, e em que deixarcl para
trás um passado de polémicas que lastreüram o seu espírito com Quantoà forma ürústicüdos (-.Oitos,Voltaire não precisouin.
certos leitmotive. Z)e oüfro. fado, roZzaire Irada/Àaz;a depressa: venta,uh, pois o seu, tempo oferecia-lhe umü enorme possibilidade de
um Conto parti êle ercb um parti.eto e não um,ü obTÜ de erudição escolhade formas de narração. Ascoti mostrou CLvoga das }ústóriüs
e de tógüca. Não tomadao chia(üo de eliminar tudo quantonão oríerzfais an/es de Zadig, ]l/oríze expZícoucorra a técnica do Cân-
se relacionasse com o seu propósit(b não especificada as tartes que dida derivada dos romances de auerziüra, Calão rzíi piada. Gú-
litilizauü; CLssim,umclideia charro a outra e, em génerotão Livre liver ezpZícaMicrâmegas, üs Cartas Persas, as Cartas de Amabed.
quürLtoé o conto, tôdas as tünmsia.ssão perniittdas. Isto nos vate, Müs, o que é intereSSaTLte notar é que as diversas técnicas, que
em suas obras, alusões rápiÁias, digressões que passam pelo texto /oLtaire tinlm à disposição, visavam atingir dois tiras ãijerenus:
como raios, aproximações qu,esurpreendem, um ritmo, atiml, que Amas pTOcurüDüm falar à iirtctginxição e à sensibilüade, alhear
TtlinCa lhos dá repouso. ) leitor arrastando-o parti estranhas Quenturas, e interessa-tona
Se consüZ&armos
as -ediçõeserüdíMsde Zadig, por .4scoZÍ,oü sorte de um herói. dct obra; as outras falavam à sua inbeügên,ciae,
do Cândida, por 71/oríze, espanfamo-nas com a abürzdáncü de /eí- perturbando-llLe a visão habitual do muT\do, despertavam nêk
luras de Voltaste; müs esh pTÓprÜtriqueza permite dar uma l crltücü. Talvez nas primeiras obras de Voltaste huiü contces-
Ideia talsü dü mctrteirapeLclqual Vottaire compunha um conto. Ête sões ci primeira/arma: o e/zoanfo
arieniaZde Zadig czi/üaes/á
tão trabalha ü, de nenhum ma(],o, à manei'a do rolmncis re prósçímo das Mil e Uma Noites, lzms depressa roZZaíre uoZM-se
.btcl que acumula ü docum)erttaçãosól;Ldasôbre a qual constrói a:çclusiuümentepara ü tUrmA intelectual e ütastcbde sua primeira
sua narrativa. Os conhecimentos de Vottdre iú estãoadquirmos intenção üs formas sugestiva.s,como o conto oriental ou o romance
antesdos Contas, suas Uéüs iú estão tornadas. Ête wm à dis- de apenttura.s. A tnl ponto acertttm êle cb inuerossimilhüítça
posição tôda umü documentação histÕTicü e, üo escreversuas lue ü nosscl razão se recuscc cb dar livre curso à imaginação. A.
obras de h;i.stória,iú et(ü)orou,suas Uéias, isto é, guardou-asno Princesa da Babilâniaé /nüifomenospoélícaque o Zadig: nesse
seu espírito sob a toro,cbde uivo resumo, de um dentre con- livra jú não seprocurclfazercrer queo cenárioé real; o Cândida
creto que cls simboti,m. É isso que acontece n.os Cantas: são feitos é üma paródia e não üma ímíüção. do ropzmnce de aueMüras
ãe kmbrünças e caxía unw del,ü6 é esquematizüdcl e, ao mesmo e eslczsat;enlzórasserão ainda me/ios Gripaisna Princesa da
tempo,ímpressíonan&e
e ínezafa. assim, para c0/7ze/zlczr
os Contos, Babilânia e no Touro Branco. 7VümZimfleextremo,o quadro ro-
14 ROMANCES E CONTOS A. P R E S E N T A Ç ÃO 15

manesco acclbou por desaparecer. VotUire esquece-o no meio dm ins mais santas, reduz tudo ao burlesco e, simplificando parcafazer
avenfüras de /enni, e O Homem dos Quarenta Escudos oü Os rir, acaba por matar ü verdade? Será verdadeque não tem mais
Ouvidos do Conde de Chesterfield ferzdern para o díáhgo /iZosó- atuaüdüde e que o otimismo de Leibnitz desctpareceu, do mesmo
tico ou para o artigo de dicionário; bem entendido, dicionário n(Üo qüe as mclsmaTras dü Inquisição?
tilosõtic.o. Uma técnicadêstegêrteTO pdua, evidentemente, o. CorLtessemos,porént, o llosso prazer CLOsentir êste sopro de
Zeílor'de üm dos erzcanlosdo corro, a selamügü romanesca. .4 libera(úe qm anima os (=onlos: o multo alarga-see (hscobre-se,
InuerossimiltmnÇÜ ê tão mate(da. que pTocuTam,osantes colHI»een- l inteligênciacessou
de ter mêdo dos monstros,os povos,as ciuili-
ãer o que ela signiticü do que nos deixará,os lz:uür pelo maraNi- aações,os p(ases longínquos, os outros mundos testehnunhamo
Ihoso. SaLDoem raros trechos,a. miragemdo Or-ienesõ nos despertcLr
tíiunta;íLte
da razão humana. É o início de umü
recozzdüz,
com mais espírílocrítico, âs margerzsdo Selz,a. Os épo.cüe estesprimziTos passos têm sempre algo de exaltante. Mas
próprios personagensnão nos interessam,pelo seü próprio ser, rLõs que estamos ncb outra extremis(üe do caminho, coltsMtamos
como indiutdu,os reais. Sentimos que ates não uiuem o setç prõ' qüe essa gloriosa partida. Ttãonos levou ainda ao tim; continuam
Frio destino e que são apenas s\mbotos, verdadeiros bonecos de 3xi,saindomasmonas nas qua.b se enctüusuram homens por delitos
engon&onns mãos de um hábil artista,que st)rnl,ente
os mnrtiptln le penóümento; há ainda vice-deuses que é precisa' ueTleTaíe
para Jazer o que é útil, à sua demonstração. Não lamenhmos respeit06amente alimentar, aLguazis Q serviço dos vice-deuses que
pessoalmentenem Zadig, nem Câí\digo, nem mesmo, talvez, o Im aproveitam dü (ütct IÂrlude dêstes parca ficar com ü mulher
gênüo e sala zzoia oü ,4mabed e szm esposa. Corzcebemgsgue a los outros; filósofos persa'(lidos de que alguns jogos de idéias
suü soro é hmentáuel,,luas não ch.egümosü remir piellaáe. Por- zxplÜanb tubo e que eTLContrarão sempre no seu cérebro
com o que deírLonstrar CL necessidade dos Dica-iieuses. Tudo
que, se a sensibúMade /tão está azósen&e dos .Contos, eh se .apre-
senta treqiLentementeintetectunhzada. VolUire ítão ê u.m inmn- andou e nada mudou,. Compreendemos
então que não
sluel, w chamarmos dê inserustuet üquÊk que não sente a.s misé- $e deve pedir aos Contas a organização( tinitiuü do melhor dos
rias dos que o rodeiam: ninguém mais do que ête teve piedade do mundos: devemos, pelo contrário, procurar nêtes a coragem para
homem\.Mccsesta piedade não se exprime por um transtorno do co- rúo ndo.rmecermose Ti,ãodeixarmos qüe se taça o mal,.' Assim, ü
ração : consiste em conceber, exatamente, no abstrato, a dor dos .ho- ;uü irreverência parece-nosjustificada, pois as coisas que pareciam
mem.s. Devemos hm,dr\.tclr isso? A ucpTessão dü sensibilidade m.ais santas não Datem m,üis que as vetTms roupas u-suam, quando
Daria segundo as épocas, e os impulsos do cotação de Rousseau :sLüs iã servem apenas para m'üscarar interêsses e para ]uBtiticá-los
oü de Z)[derof, para 7tãocí]ar o palhas dos adt;ogadosde Calas oü aom puros fogos intelectuais,acarreMndo a miséria e o embru-
ILc Morttbaitli,'parecem-nos, por u'êles, bem torcedü moda. Ao Lecimento
do homem. Em ta.cedos construtores
de sistemasü
contrário,as idéüs tüam. Assim como Monmigne,VotUire nos qualquer preço e dos (üiuiTthos e pitonisas que interpretam
obriga ü pensar. Mas êsse pertsürítão se taz por umclmol,ee l,ente xs prouidên.chs e üs ta üLidadesdü histórü, dos simples tiranos, de
Lodos aquêles para quem cutida humctnn não conta ao lado dos seus
meditação através dos meündTos de um pen.sameruLo que se pro-
cura e qüe se cria; tüz-sepoí umcbsérie de pi(}adüs que nos desper- interêssesou de suü geologia, os Can\os TIOSconuUctmQ atermo-
nos, modestamente,aos fatos; e, como tôdas as obras de Vottaire.
tam, nos acossam, nos obrigam a, correr atrás de um pensamento
que uoü iá completamentearmado, com todo o brilho que Ihe dá o
sugereTn-nosuma ideia simples: ensiítam-nos ü gritar quandofe-
inesperado, o burlesco, o esquemático, o símbolo e a. ironia. nos que se übenMcontra a digniiladedo homem, qUaTrOse o
quer matar, sem que ête tQnlw realmente Tixda feito de reprmn-
sipelcontraü ordemnatal ou social. Düi por queaiitdaestá
por tir o teme.o em que os possamos dispensar.
+

HENRI BÉNAC
Será exito que êste peTLSameTltO
não ê bashTLteanda.ciosoe
conkMü-se com cúbicas parciais, sem chegar a apresentar o ver-
ti(deito probtemctsocial? Seta uerdtüe que escarnecedcts coü
ROMANCES
E
CONTOS

2
b

ZADIG 0U 0 DESTINO1
HISTÓRIA ORIENTAL

EPÍSTOLA DEDICATÓRIA DE ZADIG À SULTANA XERAA


por Sana2

10 do mês de Schewal,ano 837 da Hégira

E NCANTO dos olhos, tormentodos corações,luz do espírito,


não beijo a poeira de vossospés porque não andais ou andais
apenassôbretapêtesdo Irã ou sabrerosas. Ofereço
vos a tra.
dução de um livro de um velhosábio que, tendo a felicidadede
não ter o que fazer, teve,no entanto,a de divertir-seem escre.
ver a história de Zadig, obra que diz muito mais do que parece
dizer. Peço que a letais e que manifesteisa vossa opinião sôbre
ela, pois, embora estejais ia primavera de vossa vida, embora
todos os prazeresvos procurem, embora sejais bela e os vossos
talentos se ajuntem à vossa beleza, embora vos louvem, da ma-
nhã à noite,e por tôdasestasrazõestenhaiso direitode não
possuirdes senso-comum,tendes, no entanto, o espírito sábio e
gastofino e já vos ouvi discorrermelhorque os velhosdervi-

(1) Edição origina] em 1747: ]/emnozz, J7isfoíre arie?zfa/e. Lon-


l
dres, por conta da Companhia, in-12.
Na realidade,!. livro fará impressoem Amsterdã,como se prova
por uma carta de Voltaire ao conde d'Argenson, que na época era mi-
nistroda Guerra. Esta carta,datadade 1747.'dia4 da lua cheia
(talvezse trate de julho de 1747,depoisda vitóriade Lawfeldou.
segundoA?comi, de 27 de maiodo mesmoano, depoisda quedadas
cidadelasdo Escalda,ou de 21 de setembro, depoisda vitóriade
Berg-op-Zoom) : "Permitis que vos envie, para a vossa sublime tenda.
um.grande pacote, em nome de Memnon,' que o mandaria da úmida
habitação dos batavos? . Se! que poderíeis busca-lo pessoalmente, mas
como ê?te pacote poderia chegar aos vossospés antes de estardesem
Amsterdã, . peço-vos licença. para manda-lo por intermédio de Chiquet,
para a cidade onde entrarão triunfantes as 'vossas armas. Vossa Gran-
20 ROMANCES E CONTOS ZADIG, HISTÓRIA ORIENTAL 21

xes de longas barbas e de Barro pontudo. Sois discreta e não distrair o célebresultão Ulug-beb3. Isto foi no tempoem que os
sois desconfiada; sois meiga sem ser fraca; sois misericordiosa árabes e os persas começavam a escrever as ]]/ÍZ e Z/ma ]Voíles4,
com discernimento; amais os vossos amigos e não procurais os ]l/ÍZ e Um dias ezc. Ulug gostavamais da leitura de Zadig,
fazer inimigos. Vosso espírito nunca pede Q seu sal aos traços mas as sultanaspreferiam os A/ÍZe Um. "Como podeispreferir,
da maledicência;não dizeis ou fazeis nada de mal, apesarda dizia-lheso sábio Ulug, contos que não têm sentido e que nada
prodigiosa facilidade que teríeis para o. fazer. Enfim, vossa alma significam?" "É precisamente por isso que nós gostamos dêles",
sempreme pareceupura como a vossa beleza. Tendes até.um.pe' diziam as sultanas.
quentefundo de filosofia que me.faz crer que..tereismais gôsto Alegra-meque não vos pareçais com elas e que sejais um
do que qualqueroutraao ler a obra de um sábio. verdadeiro Ulug. Ouso esperar até que, quando estiverdescansada
Esta obra foi escrita inicialmente em antigo caldeu que, nem das conversasgerais,quemuitose assemelham
aos il/ÍZe Um,
vós, nem eu, compreendemos.Traduziram-naem árabe para embora aquelas tenham menos graça, disparei de um minuto para
ter a honra de vos falar de coisassensatas. Se tivésseissido Ta-
lestris5, do tempode Scander,filho de Fílipe; se tivésseissido
deza poderia ordenar que êste pacote fosse levado até a cidade impe- a rainha de Sabá6, do tempo de Sulaiman, teriam sido êsses
rial de Paria entre as vossasimensasbagagens.
Assim. no verão de 1747, Voltaire pediu a d'Argensonque trouxesse reis que teriam feito a viagem.
para a Fiança, na sua bagagem, a. obra intitulada a/emnon: ora, êste
Memnan é Zadig, menos seis capítulos e .com uma única,xiiferença. é certo que Voltaire nunca pensou em incorpora-los no romance, o que
o seu herói chama-se Memnon. 'É impossível pois, como Longchamp
conta nas .i/émoíres star yoZfa re ef szzrses ouurages (1825), que Vol- nos levou a publica-losem apêndice.

Êã:ÊÜUúx:n:xx;spi ÜH;
Em 1929 foi publicada a edição crítica de Zadig, de Ascoli, (Sociáfé
dei fexfei /ra7zçair modernos, Hachette).
(2) Na edição de 1748 e em todas as que foram publicadas em
champ julga Talvez Voltaire .tenha! pura e simplesmente, lido em vida de Voltaire,excetona de 1775,o romanceera precedido
pelo
Sceaux os três capítulosque mais tarde acrescentar;la
à sua.edição.de seguinte texto, parodiando as aprovações dos doutores favoráveis à
li48 0 mesmoLongchampconta que, para ter a certezade que po- publicação de um livro:
deria distribuir exemplaresde Zadig' a todos os !eus amigos antes do
público tomar contactocom a obra, Voltaire teria confiado esta.edi- APROVAÇÃO
ção de 1748 a doi? tipógrafos difg'entes, Prault e Machuel, aanao,ia
cadaum metadedo romance. Enquantoum esperavaa parte do Eu, abaixo-assinado,que me iz passar poT sábio, e mesmopo?
outro, Voltaire teria mandado brochar as duas partes impressase reTIE- honrem tnteltgente,it êste r7zanuscrttoe achei-o, embora contra a uoãÊade,
tido o livro aos seusamigos. Ascoli demonstrouque, na verdade,a edi- diz;e tido, cu ipso, moral e filosófico, digno de agradar alé aos que odeiam
ção de 1748 parece ter sido composta por dois impressores; intitula- Assim, esotzliproibi-!oe garantiao cedi-!esqu
e que se !ra-
va-se Zadíg ou' o destino, Aisfória arie!ea! (s. 1)., .1748, in-12, 195 págs. taua de u,ma ob'ra detestável,.
e foi publicada
a 10 de setembro.
Voltaire,ironicamente,
negouser O cedi-/esguierera um dignitárioturco encarregadode defendera
o seu autor (carta a d'Argental, 12 de setembro,e.lO de outubro de religião e as leis que correspondiaao Chanceler francês. Os contempo-
1748). Esta edição comportava mais três capítulos do que a do râneos de Voltaire pensavamque Xeraa representava a marquesa de
Ã/emnon de 1947: Ceia, ds Entreuisfas e O Pescador. No mesmo ano Pompadour. Quanto ao poeta persa Saadi(Sadi), conhecido em França
foi publicadaoutra edição de Zadig, em 176,páginas, certamentepos- pelo seu GuZistan (traduzido em 1634) e por diversoslivros de viagens
à Pérsia, viveu duzentosanos antes da data que Voltaire finge julgal'.
(3) Êste descendentede Tamerlão viveu entre 1390e 1449, ou
seja, duzentosanos depoisde Saadi. O capítulo88 do Estai .sar Zes
data de 1748. moewr.s descreve-o como um déspota esclarecido.
(4) Js .4/i/ e Uma Noites, contos árabes, tinham sido traduzidos
por Galan-d,1704-1708;
Os il/i/ e üm Dim, contospersas}foramver-
tidos para o francêspor Pétis de la Croix (1710-1712).
(5) Rainha das Amazonas que procurou Alexandre (Scander para
dois capítulos, '.À J)anca e Os Olhos azuis, que. se teriam encontrado os árabes) para ter uln filho dêle.
nas notas de Voltaire. ' Embora estesdois capítulos pareçam autênticos, (6) A Rainha de Sabá que veio procurar Salomão (Sulaiman).
22 ROMANCES E CONTOS ZADIG, HISTÓRIAORIENTAL 23

Eu peço às virtudes celestes que os vossos prazeres sejam margensdo Eufrates, viram que para êles se dirigiam homens
sem mistura, que vossa beleza seja duradoura e vossa felicidade armados de sabres e flechas. h'am satélites do jovem Or-
sem fím. can7, sobrinhodo ministro,e ao qual os cortesãosde seu tio
haviam feito crer que tudo Ihe era permitido. Orcan não possuía
O ZAROLHO nenhumadas graças nem das virtudesde Zadig. Mas, acredi-
tando valer muito mais, desesperava-se por não ser o preferido.
Esta inveja, que só vinha de sua vaidade,fêz-lhepensarque
No tempodo rei Moabdar, havia na Babilânia um maço cha- êle amava loucamente Semira e, por isso, quis raptá-la. Os rap-
mado Zadig, nascidocom bom caráter que se fortifícara com a tores seguravam remira e, no ímpeto de sua violência, feriram-
educação. Embora rico e jovem, sabia moderar as suas paixões. na, fazendocorrer o sanguede uma pessoacujo aspectoteria
Não era nada afetado; não pretendiaestar semprecom a razão enternecidoos próprios tigres do Monte Emaús 8. Suas queixas
e sabia respeitar a fraqueza dos homens As pessoas espanta- dilaceravam o céu. Gritava: "Meu querido esposo! Separam'
vam-sepor verem que, com muita inteligência,êle nunca zom- me do que adoro!" Ela não se preocupavacom o perigo que
bava dessas frases vagas, descosidas, tumultuosas, dessas maledi- corria, apenaspensava no seu querido Zadig. Êste, ao mesmo
cências temerárias, dessas decisões ignorantes, dessas chalaças tempo,defendia-acom toda a força que só o amor e a bravura
grosseiras, dêsse vão ruído de palavras, que se chamava co/zuersa podemdar. Ajudado apenaspor dois escravos,Zadig pâs os
na Babilânia. Zadig aprendera,no primeiro livro de Zoroas' raptores em fuga e reconduziu Semira, desmaiada e ferida, para
tro, que o amor-próprio é um balão cheio de vento do qual saem sua casa. Ao retomar os sentidos, Semira viu o seu libertador e
tempestades,quando se Ihe dá uma picada. Também não se ufa- disse: "O' Zadig! Eu vos amava como meu esposo; amo-vos
nava de desprezar as mulheres e de as subjugar. Era generoso, agora como aquêle a quem devo a honra e a vida"'. Nunca houve
não receava prestar serviço aos ingratos, segundo êste grande coração mais sincero do que o de Semira. Nunca baga mais
preceito de Zoroastro: Qzzardo comes, dcí de comer aos cães, encantadoraexprimiu sentimentosmais tocantes,com essas pala-
aí/zdaqüe Ze mordam. Era tão sábio quanto se pode ser; pois pro- vras de fogo inspiradas pelo sentimentodo maior benefícioe do
curava viver com sábios. Instruído nas ciências dos antigos cal- mais legítimo amor. Os ferimentos de remira eram leves e logo
deus, não ignorava os princípios físicos da natureza, tais como ficou curada.
então eram conhecidos, e sabia da metafísica aquilo que dela
se soubeem tôdas as épocas,isto é, bem pouco. Estava firme- Zadig estava mais gravementeferido, pois uma flechada que
mente persuadido de que o ano tinha trezentos e sessenta e cinco o atingira perto de um dos. olhos Ihe fizera um profun(b
dias e um quarto,apesarda nova filosofiade seu tempo,e de ferimento. remira só pediaaos deusesa cura de seu noivo.
que o Sol era o centro do mundo. E quando os principais magos Vivia noite e dia banhada em lágrimas e esperava, com ansie-
diziam-lhe, com altivez verdadeiramente insultante, que êle pos- dade, o momentoem que os olhos de Zadig poderiam gozar de
suía maus sentimentose que era ser inimigo do Estado crer que seu olhar. Mas um abcessoque sobreveiono alho ferido, deu
causa a temores. Foram buscar em Mênfis9, o grande médico
o Sol girava sabre si mesmo e que o ano tinha doze meses,cala- germes que veio com um grande cortejo. Examinou o doentee
va-se sem cólera e sem desdém.
declarou que êle perderia o ôlho, predisse mesmo o dia e a hora
Zadig, possuidor de grandes riquezas e, por conseguinte, em que êste funestoacontecimentose daria. "Se fôsse o direito,
de amigos, tendo saúde, um aspecto agradável, um espírito justo disseHermes, eu o curada, mas as feridas do alho esquerdosão
e moderado, um coração sincero e nobre, acreditou que podia ser incuráveis". Tôda a Babilânia, lamentando embora o destino de
feliz. Deveria casar-secom remira, a qual, pela sua beleza,pelo
seu nascimento,pela sua fortuna, era o melhor partido da Babi-
(7) Êste come é talvez um anagrama aproximado de Rohan, o
lânia. Zadig tinha por remira um abeto sólido e virtuoso e fidalgo que tratou mal Voltaire em 1726.
Semira, amava o dom paixão. Chegavam ao momento feliz (8) O Himalaia.
em que se deviam unir quando, passeandocerta vez juntos por (9) Capital do Egito, Mênfis fica muito longe da Babilânia;
uma das portas da Babilânia, sob as palmeiras que ornavam as mas esta geografia do Oriente é bastante fantasista.
24 RouANcns E CONTOS ZADIG.9 HISTÓRIA ORIENTAL 25

Zadig, admirou a profunda ciência de Hermes. Dois dias depois, lentas contra a jovem viúva, que aquêlefausto de virtude não
o abcesso furou por si e Zadig sarou completamente. Hermes! agradou a Zadig.
porém, escreveuum livro em que provava que não era possível Êste tinha um amigo chamadoCador e que era um dos
ter saradoo alho de Zadig. Êste não leu o livro, maslogo que jovensno qual Azora achavamais probidadee méritodo que
pede sair, preparou-separa visitar aquela que era uma esperança nos outros. Zadig tornou-o seu confidente e assegurou-se, tanto
ão felicidade em sua vida, pois só para ela desejava ter olhos. quanto podia, da fidelidade dêsse amigo, graças a um bom pre-
Semira tara para o campo havia três dias. Mas soube, no cami- sente. Azora, tendopassadodo.isdias com uma amigano campo,
nho, que aquela bela senhora, tendo declarado em altas vozes que voltoupara casa no terceirodia. Os criados, a chorar, anuncia-
sentia uma aversão intransponívelpor zarolhos, acabava de se ram-lhe então que o marido morrera, sùbitamente, naquela mesma
casar com o próprio Orcan. Com esta notícia, caiu sem sentidos; noite, que ninguém tivera coragem para ]he levar a notícia fu-
sua dor quase o levou ão túmulo. Durante muito tempo estêve nesta e que haviam acabado de enterrar Zadig no túmulo de seus
doente,mas, afinal, a razão acabou por dominar sua aflição, e a pais, no fundo do jardim. Azora chorou, arrancou os cabelos
atrocidadedaquilo que experimentava
serviu até para o con- e prometeu morrer. Ã noite, Cador pediu licença para falar-lhe
solar
oia
e amboschoraramjuntos. No dia seguinte,chorarammenose
"Visto que sofri um tão cruel capricho de uma maça edu- jantaram juntos. Cador confiou-lheentão que seu marido havia
cada na carte, é mister que eu me case com uma cidadã 10". Es- ;deixadoa êle, Cador, a maior parte de sua fortuna e deu a en-
colheuAzora, a maça mais virtuosa e bem nascida da cidade. tendera Azora que, para êle, seria uma felicidadepoder parti-
Esposou-ae com ela viveu um mês, nas doçuras da mais terna lhar com ela aquela fortuna. A dama chorou, brigou e, por fim,
união. Apenas notava nela uma certa leviandade e muita ten- ficou mais calma. A ceia foi mais longa que o jantar; falaram-
dência a achar sempre que os jovens mais bonitos eram os mais se com mais confiança. Azora elogiou o defunto,mas confes-
virtuosos e inteligentes. sou que êle possuía defeitosdos quais Cador era isento.
No meio da ceia, Cador queixou-sede uma violentador no
O NARIZ l l baço. Azora, inquieta e pressurosa, mandou que trouxessem todas
as essênciascom que se perfumava,para ver se não havia
Um dia, Azora voltoude um passeiocheia de cólerae aos entre elas alguma que fosse boa para o baço. Lamentou muito
gritos: "Que tendes, minha querida esposa?''' perguntou-lhe ,Za- que o grande germes já não estivessena Babilânia e chegoumes-
dig. "0 que foi que vos pâs assim?" "Ah! retrucou-lheAzora, mo a apalpar o lugar de onde vinhatn as violentas dores de que
estâríeis como eu se tivésseis visto o espetáculo que acabo do tes- se queixadaCador. "Sois sujeitoa essa cruel doença?"dis-
temunhar. Fui consolar a jovem viúva Cosru, que acaba de cons- se-lheela com compaixão. "EJa me põe, às vêzes,à beira do
truir, há dois dias, um túmulo ao seu jovem esposo, colocado perto túmulo!", respondeu-lhe
Cador, "e só há um remédio para isso:
do riacho que margeia esta planície. Ela prometeu aos deuses, é o de me aplicarem, neste lugar, o nariz de um homem que
na sua dor, que haveria de ficar ao lado dêste túmulo enquanto tenha morrido na véspera". "Eis um estranho remédio'', disse
a água do riacho corressejunto dêle". "Muito bem, disse Zadig, Azora. "Não é mais estranho,respondeu-lheCador, que os saqui-
é uma mulher de grande valor e que amava verdadeiramenteo nhos do Sr. Amou (a) contra a apoplexia". Esta razão, e mais os
marido!" "Ah! se soubésseis com que se ocupavaquandofui grandes méritos do maço acabaram por decidir a dama. "Afi-
visita-la!" "Em que, bela Azora?" "Ela desviava o riacho"
Azora desfêz-seem invectivastão compridas,em críticas tão vio-
(a) Havia nesse tempo um babilânio chamado Amou :', que
alinhava curar e prevenir a apoplexia,nas gazetas,com um saquinho
( 10) Uma burguesa. pendurado ao pescoço (Nota de Voltaire}.
(11) O tema geral dêste capítu]o é o da ]/afrolza de Z/eio, mas (12) O "saquinhoanta-apoplético" era uma invençãode um far-
Voltaire inspirou-seprincipalmentenum conto chinês incluído na Des- macêutico chamado Arnoult (na edição de 1747, vinha o seu nome com
criPfion. . . 2e Za Cái7ze(tomo 111, págs. 324-338), obra publicada em todas as letras), que fazia grande publicidadedo seu produto nos perió-
1735 pelo Padre du Raide. dicos da época.
26 ROMANCES E CONTOS ZADIG, HISTÓRIA ORIENTAL 27

nal, disse ela, quando meu marido passar do mundo de ontem para dades dos animais e das plantas; assim, adquiriu logo uma saga-
o mundode amanhã,na ponteTchinavar13, o anjo Asrael dar- cidade que Ihe permitia descobrir mil diferenças, onde outros ho-
.Ihe-ámenospassagempor ter o nariz um poucomais curto na mens apenas viam coisas uniformes.
segunda vida que na primeira?"' Apanhou então uma navalha 6 Um dia 18, passeandoperto de um bosque, viu que corria
foi para o túmulo do marido, regou-o com lágrimas e aproxi-
para êle um eunuco da rainha, seguido de vários oficiais, que
mou-separa cortar o nariz de Zadig que se achavaestendidono pareciambastanteinquietose que corriam, para cá e para
túmulo. Zadig levanta-seentão, segurandocom uma das mãos lá, como homensatarantadosà procura de algo de muito pre-
o nariz e com a outra, a navalha. "Minha Senhora,não griteis
cioso, que haviam perdido. "Maço, disse-lhoo primeiro eunu-
tantocontra a jovem Cosru; a intençãode me cortar o nariz co, não vistes o cão da rainha?''' Zadig respondeu modestamente:
vale 'bem a de desviar o riacho
"É uma cadela e não um cão". "Tendes razão", retrucou o pri-
meiro eunuco: "É uma coc#er spanieZbem pequena,acrescentou
O CAO E O CAVALO
Zadig; há pouco teve cria; manca da pata dianteiraesquerdae
Zadig sentiuque o primeiro mês de casamentoé o da lua tem orelhasmuito compridas"'. "Então a vistes?" perguntouo eu-
de mel, como está escrito no livro do Zend, e que o segundo é o nuco, já sem fôlego. "Não, respondeu Zadig, nunca a vi e nunca
da lua de absinto. Foi obrigado,algum tempodepois,a repudiar soubese a rainha possuía uma cadela"
Azora que se tornaradifícil de aturar e procurousua felici- Precisamente ao mesmo tempo, por um dêsses acasos curio-
dade no estudo da natureza. sos da fortuna, o mais belo cavalo das cavalariças do rei, escapava
"Nada mais feliz, dizia êle, do que um filósofoque lê no das mãos de um palafreneiro nas planícies da Babilõnia. O mon.
grandelivro que Deus nos pâs sob os olhos. As verdadesque tenro-more todos os demaisoficiais coroam atrás dêle, com tanta
descobre são dêle: nutre e eleva sua alma, vive tranquilo, inquietação quanto o primeiro eunuco atrás da cadela. O mon-
nada temo dos homens e sua terna esposa não Ihe pretende cor- teiro-mor dirigiu-se a Zadig e perguntou-lhese êle não vira pas-
tar o nariz". Com essas idéias, retirou-separa uma casa de sar o cavalodo rei. "É, respondeuZadig, o cavalode me-
campo nas margens do Eufrates. Ali, não se ocupava em cal- lhor galope; tem cinco pés de altura, o casco muito pequeno e
cular quantaspolegadasde água corriam em um segundosob os uma cauda de três pés e meio de comprimento;as chapas do
arcos de uma ponte14, ou se caía uma linha cúbica de chuva a freio são de ouro de vinte e três quilates; suas ferraduras são de
mais no mês do rato do que no mês do carneiro15. Não ima- prata de onze quilates19". "Que caminho tomou? Onde está?"
ginava fazer sêda com teias de aranha16, nem porcelanacom perguntou o morteiro-mor. "Não o vi e nunca ouvi falar dêle",
garrafas quebradas17, mas estudavaprincipalmenteas proprie- respondeu Zadig.
O monteiro-more o primeiro eunuco não tiveram dúvi-
(13) Toda a erudição de Voltaire sabre os persas provém do livro das: Zadigroubarao cavalodo rei e a cadelada rainha. Assim,
de Hyde, ]7isforia reZigíoni:z,eferzlmPersarum ( 1700)., que publica extra- conduziram-no diante da assembléia do grande Desterham 20, que
tos do Sadder, resumo do 4ueita, que conta a lenda de Zoroastro o condenouao knut e a passaro restode seusdias na Sibéüa.
Voltaire não conheciao Jz/esta e as citaçõesesparsasque faz de Zoroas-
tro são de sua invenção. Nem bem terminara êste julgamento, foram encontrados o cava-
(14) Ê o assuntode uma .4/emóríade Pitot à Academia das
Ciências em 1732.
(15) As .4/emórfasda Academia das Ciências publicavam todos (.18) .Adaptação de um conto árabe muito conhecido no tempo de
os anos as observaçõesmeteorológicasfeitas à Academia Voltaire. Segundo Fréron (.4n?zée Z,ifféraire, 1767, 1, 145), Voltaire ins-
(16) Em 1710, o PresidenteBon de Saint-Hilaire publicara uma pirou-se .particularmente na versão dêste conto, publicado em Z,e Poyage
.Z);sserfafion sur Z'araignée etc, que Réaumur cobrira de elogios ef reJ Jue/zfures des fro;s pfilzcei de Sare7zdíP, adaptada do italiano,
em 1719, pelo Cavaleiro de Mailly. ' '
(17) Réaumur havia apresentado diversas memórias à Academia
das Ciênciassabrea possibilidade de fazer porcelanacom vidro. As (19) Isto é, o ouro e a prata são quasepuros. Cf. vol. 1, n. 23.
caçoadas de Voltaire "explicam-se pelo fato de que não fará apoiado (20) Leia-se de/herdar,o grande tesoureiroentre os persas e os
turcos.
por Réaumur quando pretendeu entrar para a Academia das Ciências.
ROMANCES E CONTOS ZADIG, HISTÓRIAORIENTAL 29
28

lo e a cadela.Os juízes tiveramassimde reformar,não sgm esfregouas chapas contra uma pedra que eu verifiquei ser de
toque. Verifiquei, por fim, que as ferraduraseram de prata de
certa dor, a sentençaque haviamdado. Mas condenaram Za- onze quilates 23 pelas marcas que haviam deixado em calhaus de
dig a pagar quatrocentas
onçasde ouro por ter dito bluevira o outra espécie''
que não vira.' Foi preciso, inicialmente, pagar esta multa; depois
então é que se permitiu a Zadig pleitear a sua causa no conse- Todos os juízes muito admiraramo profundoe sutil dis-
lho do grandeDesterham,ondefalou, nestestêrmos: "Estrê- cernimentode Zadig, e a notícia chegouaté ao rei e à rainha. SÓ
las de justiça, abismos de ciência, espelhosde verdade,vós que se falava em Zadig, nas antecâmaras,câmarase gabinetes. E, em-
tendes'o pêsodo chumbo,a durezado ferro, o brilho do dia- bora vários magos opinassem que o deveriam queimar como feiti-
mantee muita afinidadecom o ouro 21, visto que me é permi- ceiro, o rei ordenou que Ihe devolvessema multa de quatrocentas
tido falar diante desta grande assembleia,juro-vos por Orosma- onças de ouro a que fera condenado.
da22 que nunca vi a respeitável cadela da rainha, nem o cavalo O escrivão,oficiaisde justiçae procuradores
foramà casa
sagradodo rei dos reis. Eis o que me aconteceu:eu.pas' de Zadig com grande pompa para devolverem-lhe as quatrocen-
ceava no pequeno bosque, onde encontrei depois o venerável eu- centas onças. Apenas retiveram trezentas e noventa e oito para
nuco e o ilustre monteiro-mor. Na areia vi os traços de um as custas do processoe mais algunshonoráriospara os ser-
animal e fàcilmente percebi que eram os de um cãozinho. Sulcos ventes.
leves e longos, impressos nas pequenas elevações da areia, e que Assim Zadig viu como algumasvêzesé perigososer sábio
se apresentavamentre os traços das patas, fizeram-meciente de demais. Prometeua si mesmonada dizer do que tinhavisto,
que se tratava de uma cadela com tetas pendentes e, daí, que ela na primeira ocasião que aparecesse.
dera cria há poucos dias. Outros traços num sentido di- E esta ocasião logo apareceu. Fugindo, um prisioneiro de
verso, dando a impressãode que a superfícieda areia, ao lado Estado passou sob as janelas da casa de Zadig. Interrogaram
das patas dianteiras, fera raspada, levaram-me a concluir Zadig e êle nada respondeu. Mas provaram-lheque êle vira alguma
que a cadela tinha orelhasmuito compridas;e, como verifi- coisa pela janela. Assim, foi condenado por êste crime a pagar
quei ainda que os buracos feitos pelas patas, na areia, estavam cluinhentasonças de ouro e, ainda por cima, a agradecer aos juízes
menos fundos em um lugar do que nos outros três, concluí que a indulgência, segundo o costume da Babilõnia.
a cadela de nossa augustarainha era um tanto manca, se assim
ouso dizer. "Santo Deus! dizia Zadig, como se é digno de lástimapor
passearnum bosque pelo qual passaramo cavalo do rei e a
"Quanto ao cavalo do rei dos reis, sabei que, passeandonas cadelada rainhas Comoé perigosopõr-seà janela! E como
aléias dêste bosque, percebi as marcas das ferraduras de um ca- é difícil ser feliz nesta vida!"
valo; estavamtodas a igual distância. "Eís, dissea mim mesmo,
um cavalo que tem um galope perfeito". Por outro lado, numa
estrada estreita, de apenas sete pes de largura, à esquerda e à di- O INVEJOSO
reita, nas fôlhas das árvores não havia pó. Daí concluí que o Resolveu Zadig consolar-se dos males da sorte, voltando-se
cavalo deveria ter uma cauda de três pés e meio de comprimento, para a . filosofia e para a amizade. Possuía, nos arrabaldes
que, movimentandose da esquerda para a direita! varria e?ta poli' da Babilânia, uma casa decoradacom muito gasto, onde reunia
ra. Vi sob as árvores, que formavamuma abóbadade cinco as artes e os prazeresdignos de um homemeducado. Pela ma-
pés de altura, as falhas dos ramos recentement:caídas; e.perco' nhã, sua biblioteca estava aberta a todos os sábios; à noite,
bi, por isso, que o cavalodeviater cincopésde altura. Quanto sua mesa era franqueadaàs pessoasde boa companhia. Mas
ao freio, êle deve ser de ouro de vinte e três quilates, pois o cavalo não tardou muito para que Zadig compreendessecomo os sábios são
perigosos. Isto foi a propósitodo uma disputaque se travou
(21) Cumprimento com sentido duplo: "sois de ouro e postais
de ouro:
(22) O princípio do bcm na religião dos magos.
(23) Isto é, onzedozeavosdo lingotesão de prata pura
30 ROMANCES E CONTOS ZADIG, HISTÓRIA ORIENTAL 31

acêrcade uma lei de Zoroastro que proibia comer carne de gri- mais encantadoras conversas, das quais êle soubera banir o
fo24. "Mas comoproibir que se coma grifo, se êsseanimal afã de mostrar.o espírito, que é, aliás, a maneiramais segura
não existe?" dizia um. "É misterque exista,pôstoque Zoro- e certa de se demonstrar que não se o possui, e que estraga
a mais brilhante sociedade.
astro não quer que se coma destacarne", retrucava outro. Zadig
pretendeupâ-losde acordo, observando: ."Se há grifos, não co- Nema escolhadas iguarias,nemtampoucoa escolhados
mamos dêles,e, se não os há, comamos ainda menos e, dêssemodo, convidados,eram feitas por vaidade; pois,'em tudo, Zadig pre-
todos obedeceremos a Zoroastro". feria o ser ao parecere, por essa razão, atraía a verdadeiracon-
Um sábio, que havia compostotreze volumessôbre as pro' sideração,o que Ihe era, aliás, indiferente.
priedadesdo grifo, e que, além disso, era grande teurgo25: apres' Em frente da casa de Zadig, morava Arimaze, personagem
sou-seem acusar Zadig peranteo arquimagochamadoY?bor .26, cuja. alma. !uim estava retratada na sua grosseira 'fisionomia.
o mais tolo dos caldeuse, portanto,o mais fanático. Êste ho- Roído do fel e cheio de orgulho, era, ainda por cima, um sujeito
mem teria mandado empatar Zadig para maior glória do sol e bem aborrecido. Como nunca conseguira' triunfar, vingava-se
recitaria então o breviário de Zoroastro com um tom bem mais dizendo mal de tudo 28. Embora fosse rico, tinha dificuldades
satisfeito. O amigo Cador (um amigo vale mais do que. (lem em reunir em sua casa algunsaduladores. O ruído dos carros,
sacerdotes) foi procurar o velho Yebor e assim Ihe falou: "Viva que entravamà noite em casa de Zadig, impOrtuTlaVa-o e, mais
o sol e os grifos l Atentai: não deveispunir Zadig que é um do que isso, o? elogios que se faziam a'Zadig punham-no'irrita-
santo e que, possuindo grifos no galinheiro, não os come. Seu díssimo. Também ia,.algumas vêzes, à casa de Zadig e punha-se
acusador'é que é um herético que ousa sustentaLque.os coelhos à mesa sem ser convidado. Estragava a alegria da lista'do mes-
têma pata fendida27e não são imundos".. "Pois bem,.disso mo modo que, como é costume' dizer-se, as harpias infectam
Yebor, 'sacudindo sua calva, é preciso empolar Zadig por haver as carnes em que tocam. Certa vez, Arimaze convidou uma senho-
dito mal dos grifos e o outro por haver faladomal dos coe- ra para Tma festa em sua casa e esta, em lugar de atenderao
lhos". Cador apaziguouo negóciopor meio de uma dama da convite, foi cear com Zadig. Em outra oca pião, conversando
carte a quem êle fizera um filho, e que tinha muita influência com êle no. palácio, abordaram os dois um ministro que, con
no colégio dos magos. Ninguém foi empzülado, o que deu .oca- vidandoZadig para uma ceia, não convidouArimaze. 'Os mais
sião a que alguns doutores murmurassem e presa?giassem a deca- implacáveisódios têm, às vêzes, tais fundamentos. Êste Arimaze,
dência da Babilânia. Zadig exclamou: "A felicidade é coisa que era tido cf?mo invejoso na Babilõnia, põs na cabeça que havia
bem relativas Tudo me perseguenestemundos Até os sêres de perder Zadig porque êste era tido como feliz. Ocasião para
que não existem!" Amaldiçoou os sábios e. só quis viver com fazer o mal encontra-se
cem vêzespor dia e, para fazer o bem,
os que sabemconstituir uma boa e alegre sociedade. só uma vez por ano, como diz Zoroastro.
Reunia em sua casa as pessoasmais finas da Babilânia, bem O inv?jogo dirigiu-se à casa de Zadig, que passeava no jar-
como as mais amáveis damas. Zadig esmerava-seem dar ceias dim com.dois amigose uma dama, à qual êle dirigia, às vêzes,
deliciosas, muitas vêzes precedidas de concertos e animadas pelas frases galantes, sem outra intenção do que a de dízê-las. A con:
versa era acêrca de uma guerra que o reí acabara de terminar,
(24) A lei de Zoroastroproíbe que se coma qualquercarne. É com .êxito, contra o príncipe da Hircânia, seu vassalo. Zadig,
a lei juliaica (Z)eu&efonõmio,
XIV, 12-13) que proíbe que se coma que demonstrará a sua coragem nessa curta guerra, louvava muito
a carne desta ave da fábula. o rei, e aindamaisa dama. Apanhouas suas tabuinhase es-
(25) Teólogo. creveu quatro versos, que fêz imediatamentee deu-os a ler à linda
(26) Anagrama de Boyer (1675-1755), bispo d! Mirepoix, que
se achava em boa posição junto do cardeal Fleury. Boyer protestara senhora. Os amigos pediram-lhe que também lhos mostrasse: a
contra as l,etfres pAI/osophiquese levantara intrigas contra Voltaile? na modéstia ou, antes, um amor-próprio bem compreendido impe-
ocasiãoem que êsteprocurava voltar a merecer as boas graças da Côrte.
'Já que não podemos atingi-la,
(27) Trata-se do l)euferonómio (XIV, 7), que proíbe que se .coma ( 28) Montaigne, Estais, 111, 7
carne de coelho,animal que não tem a pata fendida e, portanto, é imun- vinguemo-nos dizendo mal dela'
do, embora seja ruminante.
ROMANCES E CONTOS ZADIG) IIISTÓRIA ORIENTAL 33
32

diu-o de mostra-los. Zadig sabia que versos improvisadossó O príncipe amava a poesia e há sempre salvação com os príncipes
são bons para aquelaem honra de quem.são feitos.. Quebrou que amam os versos: a aventura do papagaio fê-lo divagar. A
em duas partes as tabuinhassôbre as quais acabavade escrever, rainha, que se lembrava do que tara escrito na outra parte da
e jogou-as num roseiral, onde a? procuraram iqtilmente. So«-
tabuinha de Zadig, mandou busca-la. Confrontaram-seos dois
breveio então um chuvisco, e todos entraram. O.invejoso? que pedaços que, aliás, ajustavam-se perfeitamente; leram-se então os
ficou no jardim, tanto procurou que achou um pedaço da tabui- versos tais como Zadig os tinha feito:
nha. Fará ela de tal maneira quebrada, que cada' metade do
vemo, que cobria uma linha, fazia sentido,sendo.de metro Patife e bandido, ête taz trem,er cb terra
ais curto; mas, por um acasoaindamais estranho,êstesversi- Mas, firme no cerro, o rei sabe domina-l.o.
nhos formavam um sentido que continha as piores injúrias con- Na públüct paz, só o amor taz guerra:
tra o rei. Ali se lia: É o único espectro: devemos rece&to.
Patife e büíüião,
Mas, firmeno cerro: Logo o rei deu ordenspara que fizessemvir Zadig e para
que libertassemos dois amigos e a dama. Zadig prostrou-seaos
Na pública paz
pés do rei e da rainha o lhes pediu, humildemente, perdão pelos
É o único especlro- maus versos que fizera. Falou com tanta graça, espírito e razão
que o rei c a rainha quiseram revê-lo. Voltou e agradou ainda
Pela primeiravez em sua. vida, o invejoso,sentiu-sefeliz. mais. Deram-lhetodos os bens do invejoso, que o havia tão in-
Tinha nas mãos com o que perder um homemamável e virtuoso. justamente acusado. Mas Zadig devolveu-os e o invejoso apenas
Tomado por cruel alegria, fêz.chegar ao rei esta sátira escrita foi afetado pelo prazer de não perdê-los. A estima do rei por
pela mão'de Zadig que, logo dep.ois,com .os amigosé a dama, Zadig aumentavadia a dia. Convidava-opara todas as suasfestas
e consultava-o em todos os seus negócios. A rainha olhava-o
desde então com um complacência que podia tornar-se perigosa
para ela, para o rei, seu augustoesposo,para o próprioZadig
que os versos não valiam nada. Zadig não se vangloriava de ser e parao reino. Zadigcomeçava
a crer quenão é difícilser
bom poeta, mas estava desesperado.por ser condenado como cri- e

minoso de lesa-majestadee por saber que presos.estavamuma


linda dama e dois amigos, e por um crime que êle, Zadig: não. co- OS GENEROSOS
metera. Não Ihe permitiram falar porque suas tabuinhas fala-
vam por êle: tal era a lei da Babilânia.. Mandaram-no,pois: Chegou o tempo de uma grande festa, celebrada de cinco
para o suplícioatravésde uma multidão.de curiosos,dos quais em cinco anos. Era costume,na Babilânia, declarar-seentão,
nenhum ousava lastima.lo, e que se precipitav?m para examinar solenemente,qual dos seus cidadãos realizara a anão mais gene-
o seu rosto e para vev se êle morria com dignidade. Apenas seus Os grandesda cidadee os magoseramos juízes. O pri-
pais estavam anitos,. pois não . herdariam nada. . Três quartos meiro sátrapa, encarregado do govêrno da cidade, expunha quais
dos bens de Zadig foram confiscadospara o rei e um quarto as mais belas ações que se tinham dado sob seu govêrno e en.
tão votava-se, pronunciando o rei o julgamento.
para o inveJ oso.
Enquanto Zadig se preparava para a morte, o papagaio do De toda a terra vinha gentepara assistir a esta festa. O
rei voos do seu balcão e desceuno roseiral do jardim de Zadig, vencedorrecebia das mãos do monarcauma taça de ouro guar-
onde caíra um pespego,trazido de uma árvore vizinha pelo vento. necida de pedras preciosas e o rei dizia-lhe estas palavras: "Rece-
bemo prêmio da generosidade e possam os deuses dar-me muitos
O pêssegocaíra sôbre um pedaçoda tabuinhaao qual ficara
colado. O pássaro levou o pêssego e a tabuinha e pâ-los nos súditos que sejam iguais a vós!"
joelhos do rei. O príncipe, curioso,. leu então aquelas.palavms Tendo chegadoêste memoráveldia, o rei apresentou-seàs se.
que não faziam sentido e que pareciam partes finais de versos. lenidades rodeado de pessoas importantes, de magos, delegados
34 ROMANCES E CONTOS ZADIG, HIISTÓRIAORIENTAL

de todas as naçõesque vinham para estesfestejosem que a glória pois que, sendo rei, não vos aboiiecestescontra o vosso escravo
era adquirida, não pela rapidez dos cavalosnem pela força física, quando êste contradisse a vossa paixão"
mas pela viTtudo. O primeiro sátraparelatouentão, em voz Todos admiraram muito o rei e Zadig. O juiz que dera
alta, as ações que podiam merecer para os seus autores o inesti- sua fortuna,o namoradoque cederaa noiva ao amigo,o
mável prémio. Não se referiu à grandeza de alma q?m que soldado que preferira a salvação da mãe à da amante recebe-
Zadig Í;avia devolvido ao invejoso toda sua fortuna. Não era ram presentesdo monarca e tiveram seus nomes inscritos no livro
uma anão que merecessedisputar o prémio de mérito dos generosos. Zadig ganhou a taça. O rei adqui-
Apresentouprimeiro um juiz que, por engano de que não riu a reputaçãode um bom príncipe, que não guardoupor muito
era responsável, fizera perder um considerável processo a tempo Êste dia foi consagrado a maiores festas do que a lei
um cidadão e que, por isso, Ihe dera todos os bens que possuía, previa. A lembrançade tal dia ainda é conservadana Ásia.
no valor do que o outro havia perdido. Zadig dizia: "Enfim sou feliz". Mas enganava-se.
Apresentou-se, a seguir, um jovem que, estando loucamente O llINISTRO 29
apaixonado por uma maça com a qual deveria casar-se, a cedera
a' um amigoquasea morrer de amor por ela e ao qual, ainda O rei perdera o seu primeiro ministro. Escolheu então Zadig
por cima, pagara o dote da maça. para ocupar o lugar. Tôdas as lindas mulheres da Babilânia
Veio depoisum soldadoque, na guerra da Hircânia, dera aplaudiram a escolha pois, desde a fundação do império, nunca
um exemplo ainda mais llotável de generosidade. Soldados ini- houvera ministro tão jovem. Os cortesãos, porém, não gosta-
migos tentavam arrebatar-lhe a amante e êle a defendia contra O invejoso começou a cuspir sangue e o nariz inchou-lhe
êles. Vieram dizer-lhequc outros soldadoshircanianosarreba- de maneira extraordinária. Zadig, depois de agradecer ao rei e à
tavam.Ihe a mãe a alguns passos daquele lugar; êle correu para rainha, foi agradecer ao papagaio. "Bela ave, disse-lhe, fostes vós
libertar a mãe, deixando em lágrimas a amante. Quando voltou que me salvastesa vida e.que me fizestesprimeiro ministro:
a socorreraquelaque amava,encontrou-a
a expirar. Quis ma- a cadelae o cavalode Suas Nlajestades muitomal me fize-
tar-se, mas como a mãe Ihe fizesse ver que só possuía aquêle ram, ma? vós só me haveisfeito bem. Eis do que dependeo
destino dos homensl Mas, acrescentou êle, uma 'felicidade tão
filho para socorrê-la, teve coragem de suportar a vida.
grande poderá talvez logo desfazer-se"'. O papagaio respondeu:
Os juízes estavam inclinados a dar o prêmio ao soldado. 'Sim". Isto impressionouZadig. No entanto,como Zadig fosse
Mas o rei tomou a palavra e disse: "A ação dêste homem assim bom físico 30, e como não acreditasse que os papagaios fossem
coco a dos outros são belas, mas não me causam espanto; ontem profetas, tranqüilizou-se logo e pâs-se a exercer, da melhor ma-
Zadig fêz uma que me espantou. Eu pusera em desgraça, havia neira possível, a tarefa que Ihe haviam dado.
alguns dias, meu ministro favorito Corei. Queixava-me dêle com
violência e todos os meus cortesãos me asseguravam que eu ainda Fêz sentir a todos o poder sagrado das leis e a ninguém, o
fazia pouco: começavamtodos à porfia a dizer mal do Corei. pêso de sua dignidade. Não perturbou a voz do Divã 31 e cada
Perguntei a Zadig o que achava, e êle ousou falar-me bem de
Coreb. Confesso que vi, nas nossas histórias, exemplos de casos (29) Êste capítulo e o seguinteconstituemo desenvolvimento,
a
em que se pagou o próprio êrro com a fortuna, em que se cedeu partir.de 1756,de um capítuloúnicoque, nas ediçõesanteriores,
se
a amante,em que se preferiu a mãe ao objetode .amor; intitulava O; juZgame?zfoi. Êsse capítulo começava assim: .Embora
mas nunca li sabre um cortesãoque tenha falado bem de um jõsse àquem, toi nomeado juiz supremo de todos os tvibuTtaisdo Impé-
rio. Desenzpelthou ta{ cargo ceIRa unl honre?n a quem Deus concedeu
ministro mal visto por seu soberano. Dou vinte mil peças de a ciência e a jtiifiça. Foi de Zadig que.. . (início do 3o parágrafo
ouro a cada um daquelesde que se falou há pouco, mas dou a do capítulo atual) .
taça a Zadig". (30) Sábio especializado nas ciências da natureza, por oposição
aos matemáticos e aos metafísicos.
"Sire, .disse-lheêste, é Vossa Majestade quem merece a (31) O Divã corresponde ao Conselhodo Rei. Um vizír é um
taça, pois foi Vossa Majestadequem fêz a ação mais inédita, ministroou Conselheirodo Estado.
36 ROMANCES E CONTOS ZADIG, llliSTÓRiA OKiENTAL 37

vizir podia ter sua opinião, sem que isso Ihe desagradasse. Quan- Uma maça33 muito rica havia prometidocasamentoa dois
do julgava um negócio de Estado, não era êle que julgava, era magos e, após haver recebido instrução durante alguns meses,
a lei; mas, quando esta era severa demais temperava-a, e quando de um e de outro, ficou grávida. Ambos queriamdesposá.la. "De-
faltavam leis, sua eqüidade agia de tal modo que era possível sejava para marido, disse ela, aquêle que me pâs em condições
pensar que vinham do próprio Zoroastro. de dar um cidadão ao império." "Fui eu que fíz essa boa obra",
Foi do Zadig que veio êste grande princípio que as nações dizia um. "Fui eu que tive êsse privilégio", dizia outro. "Pois
guai'daram: mais vale arriscar-se a salvar um culpado do que bem, respondeu ela, reconhecerem como pai da criança aquêle
condenarum inocente. Zadig acreditavaque as leis eram feitas que puder dar-lhe a melhor educação." Ela deu à luz um filho.
para socorreros cidadãostantoquantopara intimida-los. Seu Cada um dos magosquis educa-lo. A causafoi levadaa Za-
principal talento era deslindar a verdade que todos os homens dig, que mandouvir os dois magos. "Que ensinarása teu pupí'
procuram embrulhar. Desde os primeiros dias de sua adminis- lo?", perguntou ao primeiro. ''Ensinar-lhe-ei, disse o doutor,
tração, Zadig põs êsse grande talento em uso. Um famoso negocian- as oito partes da oração 34, a dialética, a astrologia, a demono-
te da Babilâniamorrera nas índias e havia deixadopor herdeiros mania; o queé a substânciae o acidente35, o abstratoe o con-
dois filhos, que teriam partes iguais, depois de casar-se a filha. Dei-
xava um presentede trinta mil peças de ouro àqueledos filhos iemunha irtepreensiuet. Prestou grande sevuiço à pátria descobTndo
que mais o amasse. O mais velho mandoufazer-lheum túmulo D autor do crime cometidohá seis anos, no nuerno,na época do sols-
e o segundoaumentou,com uma parte da sua herança,o dote tício, às sete horas da !a de, em plena tuz do se!." "À eu senhor, res-
da irmã. Toda gentedizia: "É o mais velho que mais amava >oadeu-lhe a acusador, zão sei o que é o se\sticio, mas a caso passou-se
o pai; o mais novo gostamais da irmã. É ao mais velhoque no terceirodia da semana,e foi en%P eno sat." "Vá em.paz, e seja
sempre um homem de bem
devemdar as trinta mil peças de ouro".
Àiandou então chamar a out a testemunhae disse-lhe: "Q.ue a
Zadig fê-losvir à sua presença,um depois do outro. Ao mais oirtude uos acomltanhe em todos os Bossas passos; haveis gtoviticado
velho disse: "Vosso pai não mordeu; sarou e voltará logo para z ueTdade e mereceis recompensas or tendes acusado um cidadão de
Babilânia". "Deus seja louvado,respondeuo rapaz. Mas foi üm crime abomináue!cometidohá ses altos, à tuz dos raios sagrados
pena gastar tanto dinheiro no túmulo." Zadig, a seguir, disse a ia tua cheia, l\a altura em qKeesta se acha a no mesmosigno e no
mesmacoisa ao mais novo. "Deus seja louvado, respondeuêle. mesmo grau que o soZ (a)." ".4/eu ie7zÀor, resp071deu a fesfemunha,
ão conheçosigltosnem graus,mas fazia naquelaaltura o mais belo
Vou entregar tudo a meu pai, mas desejaria que êle deixasse .uav do mundo." Então Memnonmandouentrar novamenteo pvi-
à minhairmã o que já Ihe dei." "Não devolvereisnada, disse mei o e disse aos dais: "Sois dois celeraãas que haoeis açKsado com
Zadig, e ainda tereis as trinta mil peças: sois aquêleque mais falsidadeam inocente: um ãe uós gata'nteque o c ime foi cometida
amava a vosso pai." 32 às sete botas, antesdo sot desaparecer10 ho izante, e nessedia o se!
põs-seàs seis Rotas; antro aiirnta que o caso se passou em tente!ua e
lesse dia não havia tua; sereis ambos enforcados Po sevães {aEsasteste-
(32) Depois dêste parágrafo, a edição de 1747 continha a se- mu,n,hos e mau,s astTõm,amos.
guinte historieta: &4e?nltanpronunciada todos os dias sentençasdêste gêneTa qae mos-
Algum tempo depois trouxe alz-the um homem acusado de ter auama sutitezaáa sua ndolee a bondade,desua alma. E a ado ado
cometido um assassínio, seis anos antes. Duas testemunhas ativma- pe\os povos e querida Feto ve{. Os +rivvteivoscontvatem+as da sua vida
uam tê-to z;isto e ind caçam o !ocas, o dia e a ho a em que isso acon- iauam ainda mais ualovà sua fe\icidaãepTeseKte;m tâãas as noites
tecera. Os doistestemunhos
coinçaliam. O acusado{õTamimgo decla- filzAa um s07záogue Jãe causava certo desgósfo. Parecia-lhe. . . (cf. vol. l,
rado da morto. Várias pessoaso tinham Distopassar armado zo cami- pág. 41 ) .
nho onde tõ a cometidao assassínio.Nunca hotoe P ovastão tartes. B
l\a entaltto êste homem pratestaua a sua inocência cona aqtête acento de (a) SÓ há lua cheia quando a Lua está em oposiçãoao Sol.
t;erdadeque pode {a=er balança as P abas, mesma aos olhos de um (33)
(33) Êste parágrafo foi introduzido em 1748
juiz esclarecido.SÓ podia, porém,ecc ar piedadee zão ez;ia a con- (34) A oração é a frase, o discurso; trata-se, pois, da gramática
denação. Nãa se quexaua dos juízes: acusada apenas o seu destino teórica.
e resignava-seà morte. Àãemnonapiedou-se dê\e e vesotueudescobir
a herdade. M.andou chama os dois áenunc odores, um após outro. Disse (35) Distinção metafísica entre o que existe em si(a substân
ao P imeãro: "Sei, meu amigo, que é um homem de bem e uma tes- cia) por oposição às qualidades não essenciais do objeto (o' acidente)
38 RObIANCES E CONTOS ZADIGJ lilsTÓRIA ORIENTAL

creto,as manadase a harmoniapreestabelecida


36". "Eu, disse AS DISPUTAS E AS AUDIÊNCIAS 38
o segundo, procurarei fazê-lo justo e digno de possuir amigos'
Zadigentãodisse: "Sejas ou não o pai, desposarás
a mãe da Assim mostravaZadig, todos os dias, a sutilezado seu espí-
criança 37
rito e a bondade de sua alma. Era admirado e, no entanto, tam-
bém amado. Passava pelo mais feliz dos homens e o império
(S6) Esta caçoada das teorias de Leibnitz só foi acrescentada em todo repetia seu nome. Todas as mulheres o olhavam de sos-
1752, numa época em que Voltaire se afastava cada vez mais da meta- laio 39, todos os cidadãos louvavam sua justiça, os sábios consi-
física e do otimismo dêste filósofo. deravam-nocomo verdadeiro oráculo e os próprios sacerdotes
(37) O texto de 1748 acrescentava, depois dêste parágrafo, a se- confessavamque êle sabia mais que o velho arquimagoYebor.
guinte historieta, suprimida a partir de 1756 e retomada pelos editores Longe estavamde processa-lopor causa de grifos, só se acredi-
de Kehl:
tava naquilo que êle considerava crível.
CÃegauamlodos os dias à córfe quexas contra o itimaduleto(a)
da Média. chamado!vax. ETa um grandeseatbor,Guio ando não Havia uma grande querelana Babilânia, querela que já du-
era mau, mas que }õTa coTToultPidopela vaidadee pera uolüPia. Rara- rava mil e quinhentosanos e que dividia o império em duas
mente conselttaque the {alasseTlle nunca que o contTaãissessem.Os
balões não são mais vaidosos,as penlbas,mais uo\untuosas, as tartaru- seitas obstinadas: uma pretendia que só se devia entrar no tem-
gas, mais preguiçosas;êle respivauaal)eras falsa glória e falsospraze- plo de Mitra com o pé esquerdo;a outraabominavaêstecostu-
res; Zadig resolveu corrigi-to. me, e achava que sòmentese devia entrar com o pé direito. Es-
Enzliou-\he,
da parteão Tei,um 7nestve
de ntüsica,comdozecan- perava-sepelo dia soleneda festa do Fogo Sagrado 40 para saber
ioles e ilinte e quatro violinos,um chefe de capa com seis cozinheiros,e a qual das seitas tendia Zadig. O' Universo tinha os olhos pre-
quatro camareirosque tinham ordensde não o deixaremum instante sos aos seus pés e toda a cidade estava agitada e suspensapor
sozinho. Por ordem do rei ouse uar-se-ia {nciolàoelmente a segtlinte eti-
queta. Eis como as coisas se passaralz. essa grave questão. Zadig entrou no templo saltando de pés jun-
No p imeiro dia, logo qle o uotutltuoso ITax acordou, o mesETa tos e provou, em seguida, com um eloqüentediscurso, que o Deus
ELemüstca entrou, seguido Pelos cant07es e os otcttntstas. EztoavaTn do céu e da terra, que não abre exceçõespara qualquerpessoa,
uma cantata que durou duas botas e, de três em três minutos, o vetrão não faz caso da perna esquerda ou direita.
desta cantata e'ra o seg'uinte:
O invejoso e a mulher pretenderam que o discurso de Zadig
Como é extremo o seu mérito! não era ornadode figuras suficientese que êle não fizera alusão
Quantas graças! Ç2uantagrandezal bastante à dança das montanhas e das colinas 41. "É sêco e sem
Ah ! Como Monsenhor
Deve estar contente consigo mesmol espírito, diziam; não se vê ali o mar fugir, nem as estrêlascaí-

Depoisda execução
da cantata,um camareiro
pronunciou
um dis- e dizer que tinha üzão e de cu i discursosde elogiotodosos dias
curso, qae durou três quartos de bota, no qual tcuuaua exl) essamente à mesma hora, escreveu à cõ te alara pedir aa rei que mandasse regres-
bõáasas boas qualidadesque faltavam a ITax. Q ando esta avença ter- sar os camareiros,os músicose a chee da copa. Prometeudo avante
minou, começouo jantar que durou três horas, ao som da músicasmat s-er menos uatdoso e 7rtats a$ítcado, {ez-se incensar meras, deu TÍteRes
Irüx alivia a baga para talas, o pTimeivocamaTeivoexctamctua: "ÊLe uai festas e {oi fetais feliz, pois, como diz SaddeT Ça), "teT sempre pvazeT
lev lazão". Pvonunciauaête apenas quarTOtalão as e toga o segundo nãa ãá t)lazer.
camaTeivo gritada: "Ête tem vazão". Os Guitas dois cantaTeà70s solta- (a) Voltaire confunde um livro com um homem; cf. vol. 1, n. 13.
uüm landes risadas, saudando os ditos de espivito que ITax diria, (38) Êste capítulofoi introduzidoem 1756. Cf. vol. 1, n. 29.
8 0s que ête deueTia tev dito. Depois do canta epeti7ama cantata.
(39) A PRINCESA DA BABILâNIA (VOI. II, Pág. 89): "...OlhOU-O
Neste primeiro dia tudo !he pareceu deliciosoe Irai }utgou que..o de soslaio, mo'do que vários séculos depois foi indicado pela expressão
rei dos fieis o honvaua segundo os seus méritos; o segundo l)areceu-the 'requebrar os olhos:
já menos agradáuet; o terceiro foi incomodo; o quarto foi insuportável;
o quinto,um suplício. Finalmente,farto de anuir semprecantar: "Àh! (40) Na religião persa, Mitra representa o fogo sagrado e o So!.
Como À4onsezkovãeue esta contente consigo mesmo!", de ouvi sem- (41) Para além dêste estilo oriental, Voltaíre pretende caçoar do
estilo bíblico. Cf. Sa/mos CXl11, 3, 4, 5, 6; /sczÍas,XIV, 12; .Íudife,
(a) Espécie de vice-rei. XVI, 18; Êxodo, XVI, 21
40 R,OMANCES E CONTOS ZADIG, IIISTÓRIA ORIENTAL 41

rem, nem o sol fundir-se como a cêra: decididamenteêle não pos bou deixando cair a liga: Zadig apanhou-acom a sua costumeira
sui o bom estilooriental". Zadig contentava-se
como estiloda polidez, lhas não a recolocou no joelho da dama. Esta pequena
razão. Todos foram a seu favor, não porque estivesseno bom }
falta -- se é que foi falta -- foi causa dos mais hora'íveisin-
caminho,não porque estivessecom a razão, não porquefosse fortúnios. Zadig não pensou nisso, mas a mulher do invejoso,
amável, mas porque era o primeiro vizir. ao contrário, pensoumuito.
Zadig também terminou, com felicidade, o grande processo Outras senhoras apresentavam-se todos os dias. Os anais
entre os magos brancos e os negros. Os brancos sustentavamque secretos da Babilânia pretendem que Zadig sucumbiu uma vez,
era uma impiedadevoltar-se,ao orar a Deus, para o orientedo mas que êle muito se espantoucom o fato de gozar sem volúpia
inverno; os magosnegros afirmavamque Deus abominavaas e de beijar sua amante distraidamente. Aquela a quem êle dera,
preces dcpshomens que se voltam, ao orar, pala o poente do quase sem perceber o que fazia, sinais inequívocos de distinção,
verão. Zadig deu ordens,a êsterespeito,para que cada um era uma dama de honra da rainha AstaNéia. Esta terna babilâ-
se voltasse para onde quisesse. nia dizia a si mesma,à guisa de consolo: "Êsse homemtem tantos
negócios na cabeça, que nêles pensa até quando ama"
Assim, encontrouêle o segrêdode dar expediente,pela
manhã, aos negóciosparticularese gerais; no resto do dia, ocupa- Escapara a Zadig, porém, no momento em que certas pes-
va se apenas em emlbelezara Babilânia. Mandava representar tra- soas nada dizeme em que outras apenaspronunciampalavras
gédias que provocavam lágrimas e comédias que faziam rir 42, sagradas, dizer repentinamente: "A rainha". A babilânia acre-
o que passara de moda há muito tempoe o que êle fêz renascer ditou que êle tivesse, enfim, voltado a si num bom momento,e
porque tinha bom gôsto. Zadig não pretendiasaber mais que os que Ihe dizia "Minha Rainha". Mas Zadig, sempremuito distraí-
artistas; recompensava-os
com benefíciose distinçõese não tinha do, pronunciouo nome de Astartéía. A damaque, nestafeliz
inveja, em segrêdo,dos seustalentos. À noite, distraía muito o circunstância,tudo interpretouem seu proveito,imaginouque
rei e, sobretudo, a rainha. O rei dizia: "Que grande minis- isto queria dizer: "Sois mais bela que a rainha Astartéia"
tro!" e a rainha: "Que ministro gentill" e ambos acrescenta- Depois disto deixou o serralho 45 de Zadig com belos presentes,
vam: "Como teria sido desastroso se tivesse sido enforcado!" o foi contarsua aventuraà invejosa,da qual era íntima. Esta,
cruelmente ferida pela preferência que fera dada à outra, disse:
Nunca um homem de destaque foi obrigado a dar tantas
"Não se dignou sequer colocar-me esta liga, da qual eu nem quero
audiências a mulheres. A
maioria vinha llae falar de negó- mais me servir'' "Ohl, dissea outra,tens as mesmasligas
cios que não tinha, para ter algum com êle. A mu- que usa a rainhas Quer dizer que tu as compras da mesma
lher do invejosofoi uma das primeirasa apresentar-se.Jurou fabricante?". A invejosa ficou a pensar nestas palavras; nada
poJ' 'Mitra, por Zenda Vasta 43 e pelo Fogo Sagrado que detes-
disse e foi consultar o marido, o invejoso.
tara a condutado marido; confiou-lheem seguidaque o ma-
Entretanto Zadig percebia que, ao dar audiências e quando
rido era um ciumento,um brutal,e deu-lhea entenderque os
deuses o punham, recusando-lhe os preciosos efeitos dêste fogo sa- julgava, se distraía muito freqüentemente. Não sabia a que
atribuir isto e era essa a sua única infelicidade.
grado44, pelo qual o homem é semelhanteaos imortais. Aca-
Teve certa vez um sonho; parecia-lheestar deitado inicial.
i
mente sôbre er\-as sêcas, entre as quais havia algumas que o in-
(42) Voltaire não gostava de comédias que provocassem lágri-
mas, nem de dramas burguesese pensava que a tragédia devia tender comodavam,pois tinham espinhos; e que, em seguida, repousava
maispara a ternurado que para o terror. molemente sabre um leito de rosas, do qual saía uma serpente
(43) Neste ponto Voltaire também confunde um livro com um que o feria no coração, com sua língua acerada e envenenada.
deus. A ortografia carreta, aliás, é Ze7zd 4uesfa (Ze7zd comentário; "AI de mim! dizia êle, durante muito tempo estive deitado sabre
Zueifa, texto sagrado), mas o engano de Voltaire explica-sepor uma falsa ervassêcase picantes. Agora tenhoum leito de rosas. Mas
etimologia, ligando a palavra ao latim resta, graças a uma aproximação qual será a serpente?"
inexata entre esta deusa e o culto do fogo pelos antigos persas.
(44) Mitra, princípio do fogo sagrado, era tambémo deus da
reprodução. (45) No sentido próprio de palácio da senhor
42 ROAIANCES E CONTOS ZADIG, IIIISTÓRIA ORIENTAL 43

A INVEJA portar. Na violência de sua agitação, confiou seu segrêdo ao


amigo Cador. Zadig -eracomo um homem que, havendo supor-
A desgraça de Zadig adveio de sua própria felicidade e, tado durante muito tempouma dor muito viva, dava a conhe-
cer agora o seu mal, com um agudíssimogrito e com o suor
principalmente, de seu mérito. que Ihe escorria da fronte.
Costumavater longas conversasdiárias com o rei e com As-
tartéia, sua augusta esposa. Os encantos de sua conversação eram Cador disse-lhe então: "Já deslindei os sentimentos que
ainda redobradospor êste desejo de agradar, que é, para o es- quereis esconder a vós mesmo; as paixões apresentam sinais que
pírito, o que o enfeiteé para a beleza;sua juventudee suas não podemosnegligenciar. Visto que eu li em vosso coração,
graças determinaram insensivelmente,sabre Astartéia, uma im- pensam um pouco, Zadig, se o rei não descobrirá aí um senti-
pressão de que ela inicialmelatenão se apercebeu. Sua paixão mento que o ofenda. O seu úílico defeito é ser o mais ciumento
crescia no seio de sua inocência. Astartéia dava-se, assim, sem dos homens. Tendes resistido à vossa paixão com mais larga do
oscrúpuloe receio,ao prazer de ver e ouvir um homemque que a rainha combate a sua, porque sois filósofo e porque sois
era caro ao seu esposoe ao Estado; não cessavade elogia-loao Zadig. Astartéia é mulher; ela deixa que seus olhos falem
rei. Falava dêle às damas que a rodeavam, que corroboravam com tanto mais imprudênciaquanto não se sente ainda culpada.
ainda mais os elogios que ela fazia. Tudo servia para mergulhar Infelizmente, certa de sua inocência, ela esquece as aparências
ainda mais no seu coração a flecha que ela não sentia. Dava pre' necessárias. Temo por ela enquantonada tiver a se censurar.
sentesa Zadig, e nelesia mais galanteriado que ela supu- Se estivésseis de acordo, saberíeis enganar a todos. Uma paixão
nha; acreditava falar-lhe apenas como rainha satisfeita com seus nascente e combatida explode; unl amor satisfeito sabe escon-
serviços e, às vêzes, suas expressões eram as de uma mulher sen- der-se". Zadig tremeu com a proposta de trair o rei, seu benfeitor;
sível e nunca se sentiu mais. fiel a seu príncipe do que quando se sen-
tiu culpado, em relação a êle, de um crime involuntário. A rai-
Astartéia era muito mais bela que aquela Semita que tanto
odiava os zarolhose que a outra, a que queria cortar o nariz ao nha, porém, pronunciavatão freqüentemente
o nome de Zadíg,
seu rosto ruborizava-se tanto ao pronuncia-lo, ficava ora tão ani-
seu esposo. A familiaridade de Astartéia, seus discursos ternos,
pelos quais ela começava a corar, seus olhares, que ela queria mada, ora tão coibida quando Ihe falava, na presençado rei; per-
manecia mergulhada num devaneio tão profundo quando êle saía,
afastar e que se fixavam nos de Zadig, deitaram fogo ao cora'
ção dêsteque, com isto, de certo modo se apavorou. Lutando, que o rei ficou perturbado. Acreditou em tudo que via 46 e ima-
apelou para a filosofia, que sempre o socorrera. Esclareceu o ginou tudo o que não via. Notou, principalmente,que as babu-
espírito, mas não encontrou nisso consolo algum. O dever, o
chas de sua mulher eram azuis como as de Zadig, que as fitas
reconhecimento, a violação (h majestade soberana apresenta- de sua mulher eram amarelascomo o barrete de Zadig. Isso era
um tei'rível indício para um príncipe delicado, e as suspeitas trans-
vam-se a seus olhos como deusesvingadores. Combatia e triun-
formaram-se logo em certeza no seu espírito amargurado.
fava, mas esta vitória -- que era preciso alcançar em todos os
momentos custava-lhe lágrimas e gemidos. Não ousava mais Todosos escravosdos reis e das rainhassão tambémes-
falar à rainha com aquela doce lidei'dade que tantos encantos piões do que se passa no seu coração. Logo se percebeu que As-
tivera para ambos. Seus olhos cobriam-sede um véu, suas tartéia amava e que Moabdar estava com ciúmes. O invejoso 47
conversas eram constrangedoras e sem seqüência. Zadig baixava
os olhos e quando, contra a sua vontade, êles se voltavam para (46) Texto de 1747: Acre'ditou em tudo o que via e obseruaucz
Astartéia, encontrava os dela cheios de lágrimas que despediam tudo o que não uia. Notou que a Tainha trazia no vestido os diamantes
chamas. Pareciam dizer um ao outro: "Nós nos adoramos e te- que Àeemnon tour:cavaa tibe7dade de the otevecer, na presença dc pró-
mos mêdo de nas amar. Andemosambosnum fogo que con- prio vei e caril SKa alttoTização. Esqueceu que estesdiamantes lePreseu-
denamos :ruam a homenagem
respeitosade um sádico; oiu zêtes apenaso
pendor de um amor temerário. As suspeitastransformaram-se...
Zadig deixava a rainha tonto, desesperado,sentindo o cora- (47) Texto de 1747e 1748: O invejoso,gue não ie rorrigÍra,
ção sobrecarregadocom um fardo que êle não podia mais su- porque as ped as nu7ic@amolecem e os animais oenenosos conservam
44 ROMANCES E CONTOS ZADIG, HISTÓRIA ORIENTAL 45

mandou que a mulher enviasse ao rei a sua liga, que se parecia ''Se ousardes ver a rainha, disse-lhe Cador, precípital'eis sua morte.
com a da rainha; para cúmuloda desgraça,esta liga era azul. So, procurardes o rei, perdê-la-eis. Eu me encarrego do destino
O monarca passou a pensar apenas na maneira de vingar.se. dela. .Segui agora o vosso. Espalharemo rumor que fostes para
Uma noite resolveu envenenar a rainha e estrangular Zadig as índias. Logo .irei encontrar-me convosco e colltar-vos-ei o que
logo pela manhã. Foi dada esta ordem a um implacáveleunuco, se passou na Babilânia."
executordas vingançasdo rei. Havia entãono quartodo rei Cador imediatamente mandou que aprontassem dois camelos,
um anãozinho que era mudo, mas não surdo. Ninguém se in- dos mais ligeiros.na estrada, a uma porta secreta do palácio;
comodava com êle; era, como um animal doméstico, testemu- num dêles mandouinstalar Zadig, que precisou ser barre.
nha do que se passava de mais secreto. Êste mudinho era muito gado, pois estava a ponto de morrer' Apenas um criado o acom-
ligado à rainha e a Zadíg. Ouviu, assim, com tanta surprêsa panhou; e logo dador, mergulhadoem espantoe em dor, perdeu
quanto hall'or, a ordem que o reí dera. Mas como f?zer pajla de vista o amigo.
impedir aquela horrível ordem que seria executadadentro de
poucas horas? O anão não sabia escrever; mas aprendera. a Êste ilustre fugitivo, chegando junto de uma coliiJa de onde
pintar e sabia, sobretudo, fazer retratosparecidos com o modêlo. se via Babilõnia, voltou os olhos para o .palácio da rainha e des-
À.ssim, passou uma parte da noite a desenhar o que desejava faz?r maiou. SÓ retomou os sentidos para verter lágrimas e desejar
a.mora?. .Enfim, depois de se haver ocupado com o destino de-
compreender à rainha. Seu desenho representava o rei tomado de
fúria, num canto do quadro, dando ordens ao seu eunuco; um plorável da mais amáveldas mulherese'da primeira rainha do
cordão azul e um vaso em cima de uma mesa, com as ligas azuis mund?,voltou-se
para si mesmoe pensou: 2'Queé a vida hu-
e as fitas amarelas. A rainha, llo meio do quadro, expirando mana? Oh! virtude! Para que' me serviste? Duas ju-
nos braços das damas, e Zadig, estrangulado a seus pés. O hori- res. enganaram-me.dgmodo indigno; a terceira, que não é
culpadae qle é mais bela que as outras, vai agora morrer! Tudo
zonte representava o Sol que se levantava, servindo. isto para in'
picar que a horrívelexecuçãoseria levada a efeitoao? pri- quanto.fiz de bgm tem sido para mím uma fonte de maldições,
meirosraios da aurora. Logo que terminouêste trabalho,o e só fui levantadoao ápice das grandezaspara cair no mais hor:
anão correu à procura de uma das damas de honra de Astartéia, rível precipíciodo infortúnio. Se eu tivessesido mau como
acordou-a e fêz-lhe compreender que era preciso, naquele mes- tantos outros, seria feliz com êles". Abatido com estas funestas
mo instante, levar aquêle quadro à rainha. Entretanto, no meio reflexões,com os olhos nub-ladosde dor, com a palidezda morte
da noite vêm bater à porta de Zadíg; acordam-no, dão-lhe no rosto, e com a alma abismada em sombrio desespero, Zadig
um.bilhete da rainha e êle chega a pensar que sonhava. Abre continuava seu caminho para o Egito.
a carta com mãos trémulas. Qual não foi sua surprêsa,e
quem poderia exprimir a consteTTação.eo desespêroque o to- A MULHER ESPANCADA
maramao ler estaspalavras: ''Fuja, fuja agoramesmo. Que-
rem tirar-lhe a vida. Fuja, Zadig, eu vos ordeno em nome Zadig dirigia sua rota pelasestrêlas. A constelaçãode órion
de nosso amor e das minhas fitas amarelas. Não era culpada, e o brilhanteastro Sírius guiavamno para o pólode Canopo48.
mas sinto que vou morrer como uma criminosa Êle admirava êssesvastos globos de luz, que apenas parecem dé-
beb fagulhas a nossos olhos, enquanto que a Terra, que não é, com
Zadig mal teve força para falar. Mandou chamar Cador e, efeito, senão um ponto.imperceptível na natureza, parece à nossa
sem nada Ihe dizer, passou-lheo bilhete. Cador obrigou o a obe-
decer a ordem e a tlomar, imediatamente, o caminho de Mênfis. cupidez alguma coisa de tão grande e de tão nobre. Represen.

(48) Calopus é uma estrêla da constelação do Navio ou Arco. A


sempre o veneno, o inuejclso, di ia eu, escTeueua Moabdar uma. carta expressãoo pó/o de Ccz?topopareceu obscura, embora se encontre em
anónima, TecuTSOinfame de espíritos perversos, que é sempre despre- todas. as edições. Alguns editores, seguindo a opinião de Decroix,
zado, mas que, desta t:ez, atingiu o abjetiuo porque rainha corroboram
os sentimentos tttnestos que ditacevauam o caução da príncipe. Finat-
znenfe ]Woabdar passou a pensar apenas na maneira de vingar-se... :l=:;:. 3lÍte.;F .:;::Ê=,'=.'1:'%l::'?,81':'$
#lf.E
46 RObIANCES E CONTOS ZADIG, IIISTÓRIA ORIENTAL 47

tava então os homenstais como são, efetivamente:insetos que O egípcio.eramais robustoque seu adversário; Zadig era mais
se devoramuns aos outros sabre um pequenoátomode lama. destro. Êste batia-se como um homem cuja cabeça conduzia
Esta imagemverdadeira parecia liquidar a sua infelicidade,mos- o braço, e aquêle, como um desesperado,cuja cólera cega guia-
trando-lheo nada do seu sar e o da Babilânia. Sua almalan- va seus movimentos ao acaso. Zadig escapa-lhe49 e desarma-o.
çava-se para o infinito e contemplava, desprendida dos sentidos, Quando o egípcio, mais furioso ainda, quer lançar-se sabre Za-
a ordem'imutáveldo universo. Mas quando,em seguida,voltando dig, êste agarra-o,aperta'!, lança-oao chão e põe-lhe a espada
a si e consultando seu coração, êle pensava que Astartéia estava no peito. AÍ, dá-lhea escolherentre a vida e a morte. O egípcio,
talvez morta para êle, o universo desaparecia a seus olhos e fora de si, tira o punhal e fere Zadig quandoêste Ihe oferecia
êle só via, na naturezainteira, Astartéia morta e Zadig des- o perdão Indignadoentão,Zadig enfia-lhea espadano peito.
graçado. C) egípcioda um grito horrívele morre debatendo-se.Zadig
Deixando-se tomar por êste fluxo e refluxo de filosofia subli- dirige-se então para a dama e diz-lhe, com voz submissa: "Êle
me e de dor lancinante,ia Zadig avançandoem direção das fron- forçou me a mata-lo e assim tive ocasião de vingar-vos. Libertei-
teiras do Evito, quando seu fiel criado já se encontrava na primei- vos do homemmais violento que já vi. Que quereis agora de
ra aldeia,à procura de alojamento. Zadig, enquantoisso, pas' mim, senhora?" "Que morras, celerado, respondeu-lhe a mu-
ceava nos jardins da aldeia. Viu, então, não longe da estrada lher; que morras! Mataste o meu amante; eu desejaria comer-te
principal, uma mulher que bradava aos céus por socorro e um o coração!" "Na verdade, senhora, tínheis um estranho homem
homemfurioso que a seguia. A mulher, já atingida por êle, abra- como amante. Êle vos batia com tôda a força que possuía e ain-
çava-w-lhe aos joelhos, enquanto era coberta de pauladas e ofen- da queria tirar a minha vida porqueme pedistessocorro". "Eu
sas. Zadig julgou, pela violência do egípcio e pelo reiterado per- queria que êle me batesseainda, respondeua dama, a gritar. Eu
dão que a mulher implorava, que o [al homem era algum ma- bem merecia isso?.pois fizera com que êle sentisse ciúmes. Qui-
rido ciumento e a mulher, uma esposa infiel. Mas, quando viu sesseo céu que êle me batesseainda e que tu, isso sim, é que
estivesses mortos" Zadig, mais surpreendido ainda, mais encole-
que a mulher era encantadorae que até se parecia um pouco com
a infelizAstaitéia,sentiu-se
tomadode compaixão
por ela e de rizado que em outro qualquer momentode sua vida, disse en-
horror pelo egípcio. "Socorrem-me,
gritava ela em soluços. Ti- tão a tal dama: "Senhora,por bela que sejais,mereceisque,
rai-me das mãos dêste bárbaro, salvai-me a vida" por minha vez, eu tambémvos bata, pois sois demasiadoextra:
vagante, mas não me darei êsse trabalho 50. E então, montou
Ouvindo êssesgritos, Zadig correu lançando-seentre ela e o no seu camelo e dirigiu-.se para o burgo. Dera apenas
bárbaro. Como êle possuísse algum conhecimento da língua egíp-
alguns passos quando ouviu o tropel que faziam quatro correios
cia, disse ao homem, nesse idioma: "Se tendes algum sentimento da Babilânia, que vinham a toda brida. Um dêles, vendo .a mu-
de humanidade, peço-vos respeitar a beleza e a fraqueza. Coma lher, gritou: "É ela mesma! É parecidacom .a descri.
podeis insultar assim uma obra-prima da natureza que está a
vossospés e que para defesasó tem lágrimas?'' "Ahl ah!, ção que dela nos..fizeram."' Sem cuidarem do morto, prenderam
disse-lhe o homem furioso. Então tu também a amas? Então incontinenti.a mulher, que não cessava de gritar para Zadig: "So-
é de ti que me devo também vingar." E, assim dizendo, deixou correm-me
ainda uma vez, generosoestrangeiro! Peço-vosper-
dão por me haver queixado de vós, socorrem.mee serei vossa escra-
a mulher que êle seguravacom uma das mãos pelos cabelose,
tomandode uma lança, quis com ela atravessarZadig. Êste, va até a morte". Mas passara em Zadig a vontade de bater-se
que era dotado de grande sangue frio, evitou fàcilmente o golpe; por aquelamulher. "Vai contar isto a outro! respondeu-lhe
êle.
Não mo apanhasmais."
apanhou a lança pela parte junto do ferro. Um pretende retirá-
la, o outro, arranca-ladas mãos do adversário. A lança que-
brou-senas mãos dêles. O egípciotoma de sua espada. Zadig (49) Isto é, escapaà paradapara atingi-locom a parte forte da
desembainha
a sua tambéme entrama duelar. Enquantoum dá sua espada (cf. vol. 1, n. 83) e desarma-lo ou agarra-lo.
golpes precipitados, o outro sustenta-os com agilidade. A dama,
;enfada' num canteiro, endireita o cabelo e assiste ao combate. ma-dano Cândida recordao i/édlco à fôrça (cena 11) e será reto-
48 R,OMANCES E CONTOS
ZADIG, IEitSTÓniAOKinNVAL 49

Aliás, Zadig estava ferido, seu sangue corria o êle necessi-


tava de socorro. Os quatro babilânios, provàvelmente enviados ter visto passar uma cadela; tive receio de ser empatadopor
pelo rei Moabdar, punham-noinquieto. Dirigiu-semais depressa causa de um grifo. Fui enviado ao suplício porque fiz versos
para a aldeia,não conseguindo imaginarpor que razão os qua- em louvor do..rei; estive a ponto de ser estranguladoporque a
tro correios da Babilânia vinham prender esta egípcia, mas mais rainha usava fitas amarelas e eis.me, agora, escmvo contigo poi'
que um brutamontes sovava a amante. ' Vamos, não percamos a
espantadoainda com o caráter da tal senhora.
coragem. .Tudo isto acabará talvez; é necessárioque os comer.
ci.antesárabes possuam escravos, e por que não seria eu um dêles.
A ESCRAVIDÃO visto que sou um homemcomo os outros? Êste comerciantenão
deve ser.tão mau, pois é preciso que trate bem dos' seus escra.
Ao entrar na aldeia egípcia viu-se Zadig envolvido pelo povo. vos, se dêles quiser obter serviçosÕ. Assim falava Zadig mas,
Todos gritavam: "Foi êste que raptou a bela Missuf e que acaba rainha da Babílâniaração, êle estava preocupadocom a sorte da
de assassinar Cletófisl" "Senhores, disse êle, preserve-me Deus
de raptar a bela Missuf, pois ela é por demaiscaprichosae, Setoc, o comerciante,partiu dois dias depoispara a Arábia
quanto a Cletófis, não o assassinei. Eu simplesmente me defendi. deserta51com seusescravose camelos. Sua tribo habitavao
Êle queria matar-meporque eu Ihe pedira humildemente perdão desertode Horeb: A caminhadafoi longae penosa. Setoc,na
para a bela Missuf, na qual batia sem piedade. Sou um es- viagem, fazia muito mais caso do.criado que do dono, porque o
trangeiro que vem em busca de asilo llo Egíto e não tem propó- primeiro sabia carregar.muito melhor os camelos,e assim, todas
sito que, vindo pedir a vossa proteção, eu tenha começado por as pequenasatençõesde Setoceram para o antigocriado de
Zadig
raptar uma mulher e por assassinarum homem"
Os egípcioseram, então,justos e humanos. O povo condu- Um camelo.morreu quando estavam a dois dias de Horeb e,
pot.isso, repartiram sua carga entre cada um dos servidores.
ziu Zadig ao Palácio da cidadee ali começarampor Ihe pensar
os ferimentos. A seguir interrogaram-no e ao criado que tra- Zadig teve sua parte: Setqc pâs-se a rir ao ver que os escra-
zia, separadamente, a fim de conhecer a verdade. vos andavam.curvados. Zadig tomoua liberdadede expli-
car-lhe.a razão disso, e ensinou-lheas leis do equilíb.rio. O
Reconheceramque Zadig não era um assassino,mas era cul- comerciante, .espantado, começou a considera-lo de 'outro modo.
pado de haver morto um homem. E a lei condenava-oa ser es- Zadig, percebendo qu: excitara -a curiosidade do comerciante,
cravo. Venderam, em proveito da aldeia, seus dois camelos e redobrou-a
ensinando-lhe
muita.scoisasúteis para o seu co.
cli$tribuiu-se
o ouro que Zadig trazia consigoentre os habi- mêrcio: os pesos específicos dos metais e das mercadorias em
tantes do lugar. Zadig foi exposto à venda em praça pública, volume igual; as propriedades de diversos animais úteis; o meio
assim como também o seu companheiro de viagem. Uln comer- do tornar úteis os que não o eram; enfim, Zadig pareceu-lheum
ciante árabe, chamado Setoc, entrou no leilão e comprou-o; sábios Setoc passou a preferi-lo a seu camarada, de quem tinha
mas o criado, mais próprio para o trabalho,foi vendidobem gostado tanto. Tratou-o bem e não teve motivo para arrepen-
mais caro, pois não era possível comparar, sob êste aspecto, der-se disso.
os dois homens. Zadig ficou, assim, escravo subordinadoao
seu antigo criado. A seguir, amarraram ambos com uma corrente, (negados à tribo, Setocpediu as quinhentasonçasde prata
que se lhes prendia aos pés e, dêste modo, seguiram para a casa por,êle emprestadas q.um judeu que 'lhas pedira na presença
de duas testemunhas. Mas estas duas testemunhastinham morrido
do comerciante árabe. Zadig, no caminho, procurava conso- e o judeu, não. podendo ser obrigado a reconhecer a sua dívi.
lar o criado e exortava-o a que tivesse paciência. E, segundo
o seu costume, fazia reflexões sôbre a vida humana. da, apropriara-selo dinheiro do comerciante, agradecendo a Deus
t?r-lhe dado êste meio de enganar um árabe. Setoc confiou seu
"Vejo, dizia êle, que as desgraçasdo meu destinose es- aborrecimentoa Zadig que se tornara seu conselheiro. "Em que
palham sabre o teu. Tudo tem me acontecido,até agora, de
modo muito estranho. Fui condenadoa pagar uma multa por (51 ) O deserto da Síria
4
50 ROMANCES E CONTOS ZADIG, IIISTÓRIA ORIENTAL 51

lugar emprestastesas quinhentas onças de prata a êste infiel?" como os outros e que não mereciam mais as suas homenagens
"Numa grande pedra que está perto do monte Horeb''', respondeu e o seurespeitoque as árvoresou as pedras. "Mas, disseSetoc,
o outro. "Qual é o caráter de vosso devedor?" perguntou ainda são sêres eternos dos quais tiramos proveito; êles animam a
Zadig. "É de um sem-vergonhas""Não, eu vos perguntose êle natureza; regulam as estaçõese estão tão longe de nós que não
é vivo ou fleugmático,
avisadoou imprudente". "É de todos
os maus pagadores o mais vivo que eu conheço", respondeu Setoc. podemosdeixar de reverenciá-los". "Tendes mais proveito, res-
pondeuZadig, com a água do Mar Vermelho que'leva as vos-
"Pois bem! se me permitirdes, pleitearei vossa causa perante ci sas mercadorias às Índias. E por que não seria essa água mais
juiz". Com efeito, Zadig chamou o judeu ao tribunal e assim antiga que as estrêlas? Se adorais o que está longe de vós deveis
falou ao juiz: "Ouvidor do Trono da Eqüidade,eu venhopedir então adorar a terra dos Gangáridas52, que está ainda mais
a êste homem que pague a meu senhor as quinhentas onças de
longe, na extremidadedo mundo.'' ''Não, dizia Setoc, as estrê-
prata que êle não quer pagar" :'Tendes testemunhasdessa dí- las são brilhantesdemaispara que eu deixede adora-las". Quan-
vida?" disse o juiz. "Não, elas morreram, mas existe uma grande do anoiteceu, Zadig acendeu um grande número de tochas na ten-
pedra sôbre a qual o dinheiro foi contado e se apraz à Vossa da onde devia cear com Setoc e, quando êste chegou, Zadig pros-
grandeza ordenar que se vá buscar a pedra, esperoque ela dará trou-se de joelhos diante destas tochas acesas, dizendo.lhes:
testemunho
do ocorrido. Nós ficaremos
aqui,o judeue eu, "Eternas e ibrilhantes claridades, sêde sempre propícias".
Tendo
esperandopela pedra e eu a mandarei buscar à custa de meu pjloferido estas palavras, pâs-se à mesa sem olhar para Setoc.
senhor Setoc". "Pois muito bem", disse o juiz, e pâs'se a resol-
ver outros negócios. 'Que fazes?" disse-lheSetoc,espantado. "Faço comovós, res.
pondeu Zadig; adoro as velas e esqueço o seu senhor e o meu"'
No fim da audiência,voltando-se
para Zadig, disseo juiz: Setoc compreendera o sentido profundo dêste apólogo. A sabe-
"Então, sua pedra ainda não chegou?" O judeu, rindo, respon- doria de seu escravo penetrou-lhea alma e êle, daí por diante,
deu: "Mesmo que Vossa Grandezaficasse aqui até amanhã, a nao mais gastouo seu incensocom as criaturas e adorou o Ser
pedra não chegaria. Ela está a mais de seis milhas daqui e são Eterno que as fêz.
necessários quinze homens para carrega-la". "Pois bem, disse
Zadig, eu'bem vos havia dito que a pedra testemunhada,pois, Havia então, na Arábia, um costumehorrível, que viera da
se êste homem sabe onde ela se encontra, confessa, portanto, que Cítia e.que, estabelecido
nas índias graçasao créditoque ali
sabre ela foi o dinheirocontado". O judeu, desconcertado, foi têm os brâmanes, ameaçava invadir todo o Oriente! Quando um
então obrigado a tudo confessar. O juiz ordenou que êle seria homem casado morria e sua bem-alhada esposa queria ser sarlta,
prêsa à pedra, sem comer nem beber, até que tivossepago as ela queimava-seem público sabre o corpo de seu marido. Esse
quinhentasonças de prata que devia ao árabe, o que determinou costumeconstituíauma festa soleneque era coam.adaa /ogzieíra
o judeu a fazer ali mesmoo pagamentodevido. da uiüuez. A tribo onde houvesse maior número de mulheres quei-
O escravo Zadig e a pedra foram, assim, um grande sucesso madasera a mais considerada. Um árabe da tribo de Setocmor.
na Arábía. rera e sua viúva, chamada Almona, muito devota, anun-
A FOGUEIRA ciou o dia -e a hora em que se lançaria na fogueira, ao som de
tambores e trombetas. Zadig mostrou a Setoc como era con-
Setoc, encantado,transformou o escravo em seu amigo ín- trário ao bem do género humano êste horrível costume, que per-
timo. Não podia mais passar sem êle, como já acontecera mitia..que se queimassem todos os dias viúvas jovens, que podiam
com o rei da Babilânia, e Zadig considerava-semuito feliz pelo dar filhos ao Estado ou, pelo menos,educar os seus; chegouassim
fato de Setoc não ser casado. Além disso, notava em seu senhor a convencerSetoc de que era preciso, se possível, abolir um uso
um temperamento
que era dado ao bem, uma natui'ezarota e tão bárbaro. Setoc respondeuentão: "Há mais de mil anos que
muito bem dotada de bom senso. Lamentou apenas que êle ado- as mulheres costumamqueimar-see quem ousará mudar uma 'lei
rasse o exército celeste, isto é, o Sol, a Lua, as estrêlas, segundo
o velho uso da Arábia. Falava-lhedisso, algumasvêzes e com
muita discrição. Enfim, disse-lheque tudo aquilo eram corpos (52) Para lá do Ganges;cf. A PRINCESA
nA BABA.uNiA,vol. ll
pág. 83.
52 ROMANCES E CONTOS ZADIG, IIISTÓRIA ORIENTAL 53

que o tempo consagrou? Que pode haver de mais respeitável destruído, em um dia, um tão cruel costumeque durava há tanto
que um abuso antigo?" "A razão é mais antiga, retrucou Zadig tempo. Zadig foi, assim, um grande benfeitor da Arábia.
Falai aos chefesda tribo que eu falarei à jovem viúva!"
Zadig apresentou-se à viúva e depois de se haver insinuado A CELA 54
no seu espírito,por meio de elogiosà sua beleza,depoisde Ihe
haver dito como era uma verdadeirapena lançar ao fogo Setoc, que não podia mais separar-se dêsse homem no qual
tantos encantos, louvou-a, elogiou-apela sua constância e pela sua habitava a própria sabedoria, levou-o à grande feira de Balzo-
coragem. "Então, amáveis tanto vosso marido?'' disse-lhe Za- ra 55, à qual deviam comparecer os maiores negociantes da terra
dig. "Eu? Nada,respondeu
a damaárabe. Era um bruto,um habitável. Isto foi, para Zadíg, uma grandeconsolação:a de
ciumento, um homem insuportável. Mas estou firmemente deci- ver tantos homens de tão diversas regiões reunidos num mes-
dida a lançar-meà fogueira." "É preciso então, retrucou Zadig, mo lugar. Parecia-lhe que o universo constituía, assim, uma
que haja um prazer delicioso em ser queimadaviva." "Ah, isso grande família que se encontrava em Balzora. Encontrou-se à
é horroroso e contra a natureza, disse a dama, mas que se há mesa,logo nos primeiros dias, com um egípcio, um hindu gan-
d-efazer? Sou devota,perderiaminhareputaçãoe todos me gárida, um habitantede Catai 56, um grego, um celta e diversos
criticariam se não me lançasseà fogueira". Zadig chegou a con- outros estrangeirosque, nas suas frequentesviagens ao golfo
vencê-lade que ela se queimada p-orcausa da opinião dos ou- Pérsico, haviam apl'endidoárabe, o suficienh para se fazerem
tros e por vaidade, assim como Ihe falou longamentedas manei entender. O egípcio parecia encolerizado : "Que abominável país
ras pelas quais se ama um pouco a vida, chegandoaté a des- êstede Balzora!dizia. Recusamemprestar-me
mil onçasde
pertar na jovem viúva um certo interêssepor quem assim Ihe ouro, tomando como garantia a melhor mercadoria do mundo" 57
falava: "Que faríeis, enfim, disse-lhe êle, se não fósseis "Como? disse Setoc, sôbre que mercadoria recusaram-lhe essa im-
tomadapela vaidadede vos lançardesà fogueira?" "AI de portância?" ''O corpo de minha tia, respondeu o egípcio, e ela
mim!, respondeuela, creio que vos pediria para casar comigo." era a mais excelente mulher do Egito. Acompanhava-me sem-
Zadig ainda estava prêsa demais à lembrança de Astartéia pre e morreuquandofazia a viagem. Com ela fiz uma das
para não contornar esta declaração. Foi, assim, naquele mesmo mais belas múmias qu-epossuímos e, no meu país, dar-me-iam
momento,procurar os chefes da tribo, contou-lheso que se havia tudo quanto eu quisesse por ela 58. É bem estranho que não me
passado e aconselhou-osa que fizessem uma lei segundo a qual queiram emprestar mil onças de ouro por uma hipoteca tão só-
não seria periútido às viúvas lançarem-seà fogueira antes de lida". Embora encol-erizado, aprontava-se êste egípcio a comer
haverem conversado com um jovem qualquer, a sós, durante toda
um:i hora. Desde essa lei, nenhuma senhora lançou-se mais às uma excelentegalinha cozida, quando o hindu, tomando-opela
mão, disse-lhe em tom dolorido: "Que ides fazer?" "Comer esta
fogueiras,na Arábia. Deveu-seapenas53a Zadig o haver galinha", disse o homem da múmia. "Não façais isso! disse o
hindu. Bem poderia ser que a alma da vossa defunta tia tenha
(53) Texto de 1747: Deveu-se apenas a ]/emnon a obrigação passado para o corpo desta galinha e vós não desejais, por certo,
de ter destTuião,em um ãia, uv costuntetão cruel que duraoahá
tantos séculos; mas Gamo o destino de ÀÍemnoz estabelecia que todo o nos expordes a comer vossa tia. Cozinhar galinhas é ultrajar
bem que fizesse !he seria funesto, os sacerdotes e as estrêlas desencadea-
ram-se contra ête. As jóias e os en cites das damas que mandassem
bata a {ogueiía Pe tendam-lhesde direito; pera am assimseusmaioresho- (54) Capítulo acrescentado em 1748. Cf. Z,effres persa7zes, XLIV.
norários. E a de esPeTar, pais, qu.e mandassem queimar Merrlnon Po (55) Baçorá, no Tigre, junto da foz dêste rio e, portanto,muito
causa da partida que !hesfizera; acusaram-zode ter sentimentoseiva- longe da região de Horeb, no desertoda Síria.
dos quantoàs estrêlase seia queimadasem lnisevicóvdia,
em tugaTda (56) China oriental e setentrional.
dama, se Setoc, seu senhor, não tivesse a bondade ãe conseguir a sua
evasão; ê-ta partir secretamente com êste antigo aviado, companheiro (57) Isto é, um bem que existerealmente,que pode servir de
da sua escravidão, e deu-!he dinheiro l)ara se goz;e na ; separaram-se penhor.
chorando,jurando amizade eterna, e prometendoque o primeiro que (58) Heródoto (11, 136) conta que, para impedir os pedidos de
f cesse/orfwnacomunicar a ao outro. Memnontomouo rumoda Síria. .. empréstimo desonestos, uma lei obrigava os egípcios a darem como penhor
(a continuaçãoé igual ao fim do cap. .4s E?zfreuisfai). o corpodo própriopai.
54 ROMANCES E CONTOS ZADIG, HISTÓRIA ORIENTAL 55

claramentea natureza". "Que quer o senhor dizer com essa pois êle é tão grande quanto a terra do Evito, da Caldéia e da
história de natureza e de galinhas? retrucou, colérico, o egípcio. índia juntas. Não disputo também quanto à antiguidade, por-
Adoramoso boi e comemosboi." "Vós adoraís o bois que é bastanteser feliz e pouco significa ser antigo. Mas, se se
Será possível?" exclamou o homem do Ganges. "Nada menos trata de almanaquesdirei que toda a Ária usa os nossoso que
impossível, retrucou o outro. Há cento e trinta e cinco mil anos já possuíamos alguns muito bons arltes que se soubessearitmética
que assim fazemos e ninguém acha isso ruim". "Ahl cento na Caldéia 9

e trinta e cinco mil anos! disse o hindu. Esta conta é um pouco "Sois todos uns ignoramteslgritou o grego, então não
exagerada.SÓ há oitentamil que a Índia é povoadae o certo sabeis que o caos é o pai de tudo e que a forma e a matéria
é que somosmais antigosdo que vós59. E Bramajá nos puseram o mundo no estado em que está?'' 61 Êste grego falou
proibiu de comer carne de vaca antes de vos perdes lembrado muito tempo, mas foi, finalmente,interrompido pelo celta que,
de pâr o boi nos altarese nos espetos". "-Gozadíssimo ani- tendo bebido enquanto os outros discutiam, acreditou-se então
mal, êsse vosso Brama, para compara-loa Ápisl disse o egípcio. mais sábio do que todos, e afirmou, blasfemando,que só havia
Que fêz de bom êsse vosso Brama?" O brâmane respondeu: i'Foi Teutath e o visco do carvalho. SÓ êles tinham importância e
êle que ensinouos homensa ler e a escrever e a êle deve, a terra, só sôbre êlesvalia a pena falar; e que êle trazia sempreêsse
o jogo de xadrez."' "Enganai-vos,disseentãoum caldeu que es- visco no bolso. Ainda disse que os Citas, seus antepassados,
tava ali perto. É ao peixe Oanes que se deve os maiores benefí- eram as únicas pessoasde bem que existiamno mundo62, em-
cios e é justo que se Ihe rendam estas homenagens. Todos vos bora tivessem, na verdade, algumas vêzes comido homens, mas
dirão que era um ser divino de cauda dourada, com uma bela que isso não impedia que se devesseter muito respeito pela sua
cabeçade homem, e que saía da água para vir piegas, na terra, nação e que, enfim, se alguém falasse mal de Teutath, êle Ihe
três horas por dia. Teve diversos filhos que foram reis, como ensinaria a viver. A briga começou a esquentar e Setoc viu o
todos sabem. Tenho o retrato dêle em minha casa e presto-lhe momentoem que a mesa seria ensangüentada. Zadig, que ficara
o cu]to que ]he é devido. Pode-secomer carne de vaca o quanto até então em silêncio,levantou-se. Começou por se dirigir ao
se quiser, mas é, sem dúvida, uma impiedadefritar peixe. Aliás, celta, que era o mais furioso, e disse-lheque êle tinha razão
vós sois, ambos,de origempouco nobre e bem recentepara dis- e pediu-lhe o visco; louvou o grego acêrca de sua eloqüência
putar comigo. A nação egípciasó conta cento e trinta e cinco e acalmou, pouco a pouco, todos os espíritos que estavam um
mil anos e os hindus vangloriam-se dos oitenta mil que dizem tanto esquentador. Quase nada disse ao homem de Catar porque
ter, enquanto que nós possuímos almanaques de quatro mil sé- êste fera o Jbais razoável de todos. A seguir disse-lhes: "Meus
culos. Podeis crer-me; renunciamà vossa loucura e vos darei, a amigos, ides brigar por nada, pois sois todos da mesma opi-
cada um, um belo retratode Oanes". O homemde Cambalu60, nião." Houve então um protesto geral. "Não é verdade,
tomando a palavra, assim disse: "Eu respeito muito os egíp- disse Zadig ao celta, que não adorais êste visco, mas aquêle que
cios, os caldeus,os gregos, os celtas,Bruma, o boi Ápís, o belo fêz o viscoe o carvalho?" "É certo",respondeu
o celta. "E
peixe Danes; mas talvez o Li ou o Tien (a), como se Ihe queira vós, senhor egípcio, vós não adorais num certo boi aquêle
chamar, vale bem os bois e os peixes. Nada direi do meu país,
(61) Hesíodo (Teog07zia, v. 116) e Ovídio (il/efamor/ases, início),
falam do caos. A distinção entre a forma e a matéria é uma idéia
(59). .Trata-se de uma idéia cara a Voltaire que sempreconside- de Aristóteles que Voltaire considera como uma divagação metafí-
rou.?s higdls como uma nação primitiva; cf. PAI/oiopAe de /'Aisfoire, saca
XVl1 (1765): "Se nos é permitido fazer conjetu;as dêste tipo, os
hindus da região do.Ganges são talvez os homens que, como povo, (62) Voitaire considera os Citas como bárbaros e reage contra
se acham reunidoshá mais tempo. os louvoresque Rollin lhes prodigalizara,guiando-sepelos Antigos, na
(60) Pequim. Quantoà tolerânciae à sabedoriadoschineses.cf. sua Hisfoire
Z'Aisfoire, XIV
azcie7z7ze dei ZgrPf e?zs etc. (1740); cf.
e l)icfíon7zaire PAiZosop#ique; "Por mais que Rollin
PÀilosoPÀ g de

SÍêcZe de l.Quis .r/7, cap. 39.


transcrevetudo o que se disse da justiça dos antigosCitas, que pilha-
(a) Palavras chinesasque significam: l,i, a luz natural, a razão; e ram a Asmacom tanta freqüência, e que ocasionalmentecomiamhomens,
ríalz, o céu; significam
tambémDeus (Nota de Voltaire)l a verdade é que as pessoassérias ficam um pouco incrédulas
56 ROMANCES E CONTOS ZADIG, ]]IISTÓRIA ORIENTAL 57

que vos deu os bois?" "Sím", respondeuo egípcio. "0 peixe Perfumou-setôda, deu realceà belezade que era dotada
danes, continuou Zjidig, pão deve ceder o passo aquele que criou com o maisrico e galantevestidoquepossuía,e foi pediruma
o mar e os peixes?" "De acordo", dissepor sua vez o caldeu. audiência secreta ao chefe dos sacerdotesdas estrêlas. Quando
O hindu e o chinês reconhecemcomo vós um primeiro prin- se apresentoudiante do venerável ancião, assim falou: "Filho
cipio. Eu não compreendibem as coisas admiráveis que o grego mais velho da Grande Urna, innão de Touro, primo do Grande
disse,. mas estou certo de que admite também um ser supe' Cão (eram os títulos dêste pontífice), venho confiar-vos os meus
dor de quem a forma e a matéria dependem". O grego,que escrúpulos. Receio muito haver cometido um enorme pecado
todos admiravam, disse que Zadig havia apreendido bem o seu por não me haver lançado à fogueira de meu querido marido.
pensamento. "Vós sois todos, portallto,da mesma opinião, Com efeito,que tinha eu para conservar? Uma carne que há de
replicou Zadig, e não há, pois, razão para querelas" perecere que já começaa murchar". Ao dizer isto, tirou das
Todos o abraçaram então. Setoc, depois de haver ven- longas mangas de sêda do vestido os braços, que eram lindos
dido bem caro as suas mercadorias, reconduziu seu amigo Zadig e de uma brancuraadmirável. "Vêde o poucoque isto vale"
à tribo. Zadig aí soube,então,que durantea sua ausênciaIhe O pontifica achou, no íntimo, que valia muito. Seus olhos
haviam movido um processo e que êle deveria ser queimado o disseram e sua baga o confirmaria, pois jurou que nunca,
em fogo brando. em sua vida, vira braços tão belos. "AI de mim, disse-
Ihe a viúva, os braços ainda estão um pouco 3belhorque o
AS ENTREVISTAS 63 resto. Mas haveisde convir que o colo não é digno das mi-
nhas atenções. Mostrou então o seio mais encantadorque a
Enquanto fazia sua viagem a Balzora, os sacerdotes das es- naturezahavia feito. Um botão de rosa num pomo de mar-
trêlas64 haviam resolvido punir Zadig. As pedrarias e os or- fim pareceria garanta sabre buxo, ao lado dêste seíol Os cor.
namentosdas jovens viúvas, que êles enviavam para a fogueira, meirinhossaindo do banho, perto dêle, pareceriamde um ama-
pertenciam-lhes
de direito. Assim, era compreensível
que relo acastanhado! O colo, os olhos negrosque brilhavamdoce-
fizessemqueimar Zadig pelo prejuízo que êste lhes havia dado. mentecom um terno fulgor, o lindo rosto em que a púrpura se
Acusaram, pois, Zadig de possuir sentimentoserrados acêr. misturavaao branco do leite, o nariz, que não era como a tôrre
ca do exército celeste; depuseramcontra êle e juraram que Zadig do Monte Líbano 65; os lábios que eram comoduas orlas de
afirmara que as estrêlas não se deitam no mar. Esta horrível coral que continham as mais belas pérolas do mar da Arábia,
blasfêmia agitou os juízes, que quase chegaram a rasgar as suas tudo isto levou o velho a pensar que êle ainda tinha vinte
vestes quando ouviram estas ímpias palavras, e teriam feito isto, anos, levando-o a fazer ali mesmo, gaguejando, uma terna de-
sem' dúvida alguma, se Zadig tivesse com que paga-las. Mas, claração. Vendo-oassimentusiasmado,
Almoça pediuIhe que
no excesso de dor em que estavam, êsses juízes' cÕntentaram-se perdoasse a Zadig. "AI de mim, minha linda senhora, ainda
em condena-]o a ser queimado em fogo lento. S.etoc, desespe- que eu Ihe desse o meu perdão, minha indulgênciade nada
rado, empregou em vão todo o seu prestígio para salvar' o serviria. É mister que ela seja assinada por mais três outros
amigo,mas logofoi obrigadoa calar-se. A jo;em viúva Al- confrades meus". "Mas assinam em todo caso", disse Almona.
mona, que retomara grande gasto à vida, e que devia isso a "Com todo o prazer, disse o sacerdote, mas com a condição de que
Zadig,resolveusalva-loda fogueira. Deu tratosà bola, fêz (

vossos favores sejam o preço de minha resolução". "Dais-me


o seu plano e a ninguém falou sabre êle. Zadig deveria ser muita honra, disse Almona, tende apenasa gentilezade vir ao
executado no dia seguinte e ela só tinha a noite para salva-lo. meu quarto depois do pâr do sol, quando a brilhante estrêla
Eis como procedeu, como mulher caridosa e prudente. Xeat estiver no horizonte. ]!:ncontrar-me.eís
em um sofá câr-de.
-rosa e usareiá como vos aprouver desta vossa criada". Almo-
(63) Capitulo .acrescentado em 1748, desenvolvendo um para
grafo do capítulod /ogzleira,que citamosna nota 53 do vol. l. (65) Paródia do Cárzf co doi Cá7zficos, Vl1, 4 ;0 vosso nariz
(64) Isto é, os sacerdotes da religião árabe: cf. H /ogueíra, é como a tôrre do Líbano que olha para Damasco Almoça tinha
pág. 50. sem dúvida um nariz muito pequeno.
58 ROMANCES E CONTOS ZADIG, HisTÓKiA OKIENTAL 59

na saiu levandoconsigoa assinaturado velho. Êste passaria O BANDIDO


o dia confiandono seu amor e desconfiandodas suas largas,
a banhar-se,a beber um licor compostode canelade Ceilão
e das especiariasde Tedor e de Ternata66,esperando,impa- Ao chegar às fronteiras que separam a Arábia Pétrea da
ciente, que a estrêla Xeat aparecesse. Síria, como passasse por um castelo fortificadíssimo, alguns árabes
bem armados saíram dêle e Zadig viu-se envolvido por êles. "Tudo
Nesse ínterím, a bela Almona foi à procura do segundopon o que vos pertence e também vossa pessoa ficam agora ]aa pos'
tífice. Êste assegurou-lhe que o Sol, a Lua e todos os demais se de nosso senhor". Zadig como resposta tirou sua espada, e
fogos do firmamento eram apenas fogos-fátuos comparados com o criado, que era corajoso, fêz a mesma coisa. Mataram assim
os encantosda viúva. Almoça pediu-lhea mesmagraça e os primeiros árabes que haviam pasto a mão sabre êles, mas
propusera-lhe que ela fizesse o preço. Deixou-se ela vencer o número dêstes dobrou. Zadig e o criado não se amedron-
e marcououtraentrevistapara o segundopontíficequandose taram .com isso e resolveram morrer lutando. Eram dois ho-
levantasse no céu a estrêla Algênib. Da casa dêste sacerdote, mens a lutar contra uma multidão. Um combate assim não podia
passou Almoça às do terceiro e do quarto sacerdote,apanhando durar muito. O senhor do castelo, chamado Arbogad, vendo de
uma assinatura e marcando uma entrevista de estrêla em es- uma janela os prodígios de valor que Zadig fazia, tomou-sede
trêla. Então solicitouque os juízes fossema sua casa para simpatia por êle. Desceu depressa e afastou os atacantes, man-
um importantenegócio. Todos êlesali compareceram.Almona dandolibertar os dois viajantes. "Tudo o que passapor mi'
mostrou-lhes as quatro assinaturas e contou-lhes o preço pelo nuas terras me pertence, disse êle, assim como tudo quanto en-
qual os sacerdoteshaviamvendidoa graça para salvar Zadig contronas terras dos outros. Mas vós sois tão valenteque
Cada um dêssessacerdoteschegou à hora marcada. Espantados vos isentoda lei comum". Fêz Zadíg entrarno castelo,orde-
ficaram de aí encontraros confradese mais ainda, os juízes nando à sua gente que o tratasse bem, e à noite Arbogad quis
diante dos quais a sem-vergonhice era clara. Zadig salvou-se, cear com Zadig.
e Setoc, encantadocom a habilidadede Almoila, tomou-apor O seTlhordo casteloera um dêssesárabes que são cha-
mulher.
mados de ladrões; mas, às vêzes, praticava boas ações dentro de
Zadig partiu depois de se haver lançado aos pés de sua bela uma porção de outras más. Roubava com uma furiosa rapaci'
libertadora. Setoce Zadig separaram-se
a chorar, jurando ami- dade e tambémlibelalmentedava: intrépidona anão, afável
zade eterna e prometendoque o primeiro que fizesse fortuna, no trato, glutão, pândegoe, sobretudo,franco. Zadig agra-
dália parte disso ao outro. dou.Ihe muito e a conversa, aniJnando-se,prolorlgou o jantar.
Zadig tomou o ]'umo da Síria, pensando sempre na infeliz Por fim, Arbogaddisse: "Aconselho-vos
a alistar-vos
no meu
Astartéia e ]'efletindosemprena sorte que se obstinava em cHar- bando, pois nada podeis fazer de melhor. Êste trabalho não é
Ihe armadilhase em persegui-lo. "Quatrocentasonças de ouro mau e um dia talvezpodereis ser o que sou
por tel' visto passar uma cadela! Condenado a ser decapitado "D-esdequando exerceis vossa nobre profissão?" perguntou
por haver feito quatro maus versos de elogio ao lei! Quase Zadig. "Desde a mais tellra idade"', retrucou o senhor árabe.
Eu era criado de um árabe muito hábil, mas a minha situação
{

estrangulado porque a rainha tinha babucl;as da câr do 'meu


barrete! Reduzido à escravidão por haver socorrido uma mu- era insuportável.Desesperava-me
vendoque, na terra que
lher que estava sendo espancada! E, por fim, quase queimado pertencia igualmente a todos os homens, o destino não me reser-
vivo por haver salvo a vida a todas as jovens viúvas árabes! vara uma porção. Confiei o meu pesar a um velho árabe que
É muito ! . . ." 67 me disse: "Meu filho, não desesperei. Havia outrora um grão
de areia que se lamentava de ser apenas um átomo ignorado
(66) Cidades do arquipélago das Malucas.
(67) Entre êstecapítulo e os seguintes,os editoresde Kehl enter gou-osa cortar o capítulo das Erzf?euisfasapós "que cz fra7zifonzozie?rz
calaram os dois capítulos póstumos que citamos em apêndice. Isso obra sua mzóZÀer." (Cf. vol. 1, n. 84).
60 ROMANCES E CONTOS ZADIG, HISTÓRIA ORIENTAL 61

nos desertos. Ao fim de algunsanos, êle transformou-seem cursões tomei diversas mulheres, mas não guardei nenhuma.
diamantee é agorao mais beloornamento da coroado rei das Vendo-as caro quando são belas, sem me informar quem são.
Índias". Esta história impressionou-me:
eu era o grão de areia f Ninguém compra linhagem. Uma rainha feia não encontraria
e resolvi tornar-me diamante. Comecei roubando dois cavalos: comprador. Talvez tenha vendido Astartéia e talvez também
associei-me a alguns companheiros e col-neceia assaltar peque- esteja ela morta. Mas pouco importae creio que não vos
nas caravanas. Assim quebrei, pouco a pouco, a despropor' deveis ocupar mais disso do que eu".Falando assim e bebendo
ção.que existiaentremim e os homens. Tive a minhaparte valentemente,o árabe confundia de tal maneira as coisas que
nos bens dêste mundo e fui mesmo indenizado com usura. Come. Zadíg nada Rêde saber com clareza.
param a .considerar-me e tornei-me senhor bandido. Adquiri Zadig continuava
imóvel,pasmado,atónito. Arbogadbe-
êste castelopor vias de fato68. O sátrapa da Síria quis me bia sempre,contavacoisas, repetiu que era o mais feliz dos
desapossar. dêles. ma?. 1lu já era suficientemente rico para temer homens, exortando Zadig a fazer como êle. E finalmente, domi-
alguma coisa. Dei dinheiro ao sátrapa, mediante o que conservei
nado pelos vapores do álcool, foi dormir. Zadig passou uma
o casteloe aumentem
meus domíniose chegueiaú a ser no- noite em violenta agitação. "Mas que t-Criaacontecidos O rei
meado tesoureiro dos tributos que a Arábía Pétrea pagava ao ficou louco e foi morto. Lamento a morte do pobre homem.
rei dos reis. Desempenhei
meu cargo de recebedor,'mas não O império está num caos e êste bandido é feliz. O' sorte, o' des-
de pagador.
tino! Um ladrão é feliz e o que a natureza produziu de mais amá-
"0 grandeDesterhamda Babilâniaenvioupara aqui, em v-eltalvez tenha perecido de um modo horrível ou vive agora
nome do rei Moabdar, um pequeno sátrapa para me estran. num estado pior que a morte! O' Astartéia, que aconteceu
guiar. Êste homemchegoucom .a sua ordemmas eu sabia contigo?
) )-

de tudo. Mandei estrangular, em sua presença, as quatro pes- Logo de madrugada, Zadig interrogou todos os que encon-
soas que trouxeraconsigo para apertaremo laço que me trou no castelo. Mas toda a gente estava ocupada; ninguém
era destinado, depois do que perguntei-lhe quanto valia a comis- Ihe respondeu. Durante a noite haviam feito novas conquistas
são a que viera. Disse-me que os seus honorários podiam e dividiam os despojos. Tudo quanto Zadig pede obter nessa
subir a trez-entas
moedasde ouro. Fiz-lhever que êle teria tremenda confusão foi que Ihe dessem permissão do partir.
mais a ganharcomigo. Fiz dêle, assim,sub-bandidoe êle é, Aprontou-se então sem mais tardança, mais abismado do que
hoje, um dos pneusmelhoresoficiais e dos mais ricos. Se me nunca em suas dolorosas reflexões. Zadig partiu inquieto, agi-
crêdes, haveis de ter tanto sucesso quanto êle. Nunca, como tado, com o espírito ocupado com a infeliz Astartéia, com o rei
agora, a estação de roubo foi melhor, desde que Moabdar foi da Babilânia, com a sorte do seu fiel Cador, com o feliz ban-
morto e que tudo se encontra em confusão na Babilânia." dido Arbogad, com essa mulher tão caprichosa que os babilõ-
"Moabdar foi moi'to! exclamou Zadig. E que aconteceu nios tinham raptado nos confins do Evito e com todos os contra-
com a rainha Astartéia?" "Nada sei, retrucou Arbogad, tudo tempos e infortúnios pelos quais passara.
que sei é que Moabdar ficou louco, que foi morto, que a Babi-
lânia está em anarquia, que todo o império está a saque, que f O PESCADOR 69
há negócios follmidáveisa fazer ainda e que, de minha parte,
já fiz algunsadmiráveis." ''Mas a rainha? tornouZadig.' Por A algumas léguas do castelo de Arbogad estava Zadig à
favor, nada sabeisacêrcada rainha?" "Falaram-mede um margem de um ribeiro deplorando o destino e considerando que
príncipe da Hírcânia e ela talvez esteja entre as suas concubi. era o próprio modêloda desgraça. Então reparou que, também
nas, se não foi mortano tumulto. Mas eu tenhomais curio- naquelamargem do riacho, achava-seum pescador que tinha na
sidade pelo saque do que pelas novidades. Nas minhas in- mão, quasesemlarga, uma rêdeque nempareciasegurar. Levam
tando os olhos para o céu dizia o pescador: "Sou certa-
(.68).. Isto é, pela força, sem qualquer direito; por oposição a
Dias de direito. (69) Capítulo acrescentadoem 1748
62 ZADIG, IIISTÓRIA ORIENT'AL 63
RORIANCES E CONTOS

menteo mais infeliz dos homens. Fui, segundovoz geral, o à minha querida mulher uma carta de desesperadoe ela disse
mais célebre negociantede queijos da Babilânia e arrumei.me. ao portador: "Ahl Ahl sei qual foi o homem que me escreveu,
Tinha a mais bela mulher que um homem como eu podia dese- já ouvi falar dêle; dizem que faz queijos excelentes. Que mos
jar e fui por ela traído. SÓ me restou uma pobre casa e eu a tragam e que se Ihe pague
vi saqueada e destruída. Refugiado numa cabana, só tenho "Remoendo a minha desgraça, quis dirigir-me à justiça. SÓ
a pesca como recurso para viver, luas não consigo apanhar me restavam seis onças de ouro. Foi necessário dar'duas
nenhumpeixe. Oh! rêde! Não te lançareimais à água. Sou ao homemda lei que eu consultara,duas ao procuradorque
eu que me devolançar à água". Ao dizer isto, o homemle- deu andamentoao meu caso, duas ao secretáriodo primeiro
vanta-see tomaa atitudede quemse vai lançar à água com JUIZ
ideia de se suicidar.
"Quando tudo isto já estava feito, nem começadoestava o
Então, dizia Zadig com' os seus botões,há homenstão meu processo e já gastara mais dinheiro do que valiam os meus
infelizes quanto eu!" A ideia de salvar a vida ao pescador foi queijos -e minha mulher. Voltei para a aldeia com a idéia do
tão pronta quantoesta reflexão. Zadig correu para onde estava vender minha casa para reaver minha mulher.
o homem, segurou-oe passou a interroga-lo,com palavras con- "A casa valia bem .sessentaonças de ouro, mas todos sa-
soladoras e ternas. Diz-se que mal de muitos, consolo é. Mas, biam que eu empobreceue estava apressadoem vendo-la. A
segundo Zoroastro, isto não é devido à maldade mas à n.ces-
primeirapessoaa quemme dirigi, ofereceu-me trinta onças;
sidade. Sentimo-nosatraídos pelo infeliz como nosso seme- a segunda, vinte e a terceira, dez. Estava prestes a concluir
lhante. A alegriade um homemfeliz seria um insulto. Mas êste'negócio, tão cego me encontrava, quando um príncipe da
dois infelizes são assim como dois fracos arbustos qu.e, ao se Hircânia apareceuna Babilõnia e destruiutudo na sua passa'
apoiarem, ganham mais força contra a tempestade. gem. Minha casa foi saqueada e depois incendiada.
"Por que sucumbiaàs desgraças?'' disse Zadig ao pescador. "Tenho perdido, assim, dinheiro, mulher e casa, ]'atireime
"É porque não vejo saída para elas. Fui o homemmais consi- para esta terra onde hoje me vê. Procurei viver com o ofício
derado de Derlback, que fica perto da Babilânia, e fabricava, com do pescador. Alas os peixeszombamde mim como os homens.
a ajuda de minha mulher, os melhoresqueijos do Império. Nada apanho,morro de fome e sem vós, meu augustoconsola'
A rainha Astartéia e o famoso ministro Zadig gostavam muito dor, eu me afogada nesterio
dêles. Fornecera-lhesmais de seiscentosqueijos. Certo dia fui
O pescador não fizera esta narrativa sem interrupção, pois
à cidade pala receber a importância correspondente aos queijos e a todo momento, Zadig, emocionado e angustiado, dizia-lhe : "Mas
soube, ao chegar à Babilânia, que a rainha e Zadig haviam desa- nada sabeis da rainha?" "Não, senhor, respondia o pescador.
parecido. Corri à casa do senhorZadig, queeu nuncavira, e SÓ sei que a rainha e Zadig não me pagaram os queijos, só
encontrei 06 arqueiros do grande Desterham que, munido.s de sei que he roubaram a mulher e que estou nesta miséria.
urn decreto real, pilhavam legal e ordenadamente a casa. Corri "Estou certo, disse Zadig, de que não ireis perder todo vosso di-
então às cozinhas da rainha. Alguns dos empregados disseram- nheiro. Ouvi falar dêsseZadíg. É honestoe, se voltar à
me. que a rainha morrera; outros, que estava prêsa; outros, Babilânia como espera, dar-vos-á mais do que vos deve. Mas
ainda, que fugira, mas todos asseguravam-me que os meus quei- quantoà vossamulher,que não é honesta,aconselho-vos a dei-
jos. não.seriam pagos. Fui com minha mulher à procura do xa.la de uma vez -por todas. Acreditai-me, ide à Babilânia.
senhor Orcan que era das minhas relações.' Pedimos-lheque Eu ali estarei antes de vós, porque estou a cavalo e vós estais
nos protegessena nossa desgraçae êle concedeusua proteçãoà a pé.- Dirigi-vosao ilustreCador. Dizei-lheque encontrastes o
minha mulher, mas recusou-ma a mim. Minha mulher era mais
seu amigoe esperaipor mim em casa dêle. Ide, talveznão
branca que os queijos que originaram minha desgraça, e o brilha sereis sempre infeliz.
da púrpura de Tiro não era mais brilhanteque o encarnadoque
anim?va aquela brancura. Foi isso que determinou Orcan a "Ó poderoso Orosmada! continuou êle, vós vos servis de
guardarminhamulhere a me pâr pelaporta a fora. Escrevi mim para consolarêstehomem. De quemvos servireispara
ZADIG, HISTÓRIA ORIENTAL 65
64 ROAIANCES E CONTOS

me consolar?" Falando assim, Zadig deu ao pescador a metade faça o favor, pois bem pode imaginaro que me custariase eu
de todo o dinheiro que trouxera da Arábia, e o pescador, con- fosse precedida pelas minhas companheiras"
fuso e tomadode alegria,beijava os pés do amigo de Cador Zadig deixouali a mulher, que era uma síria, e as outras
e dizia: "Vós sois um anjo salvador" à procura do tal basilisco, e continuou a andar pela planície.
Enquanto isto, Zadig pedia sempre notícias e derramava lá. Ao chegarà margemde um ribeiro, encontrouali deitadana
grimas. "Mas como, Senhor? perguntou o pescador, sereis tão relva uma outra mulher, e que nada procurava. Seu porte era
infeliz, vós .que fa?eis o bem?" "Mais infeliz cem vozesdo que majestoso, mas seu rosto estava coberto por um véu. Inclina-
tu", respondeuZadig. "Mias como pode acontecerque quem dá va-se para o ribeiro e de sua baga saíam profundos suspiros
seja mais infeliz do que quem recebe?'' Na mão tinha uma varinha com a qual traçava letras na areia
C

fina que se achava entre a relva e o ribeiro. Zadig, curioso


E que a tua maior desgraç% tornou Zadig, era a neces- de ver o que essa mulher escrevia, aproximou-se. Viu a
sidade e o meu infortúnio reside no coração". ' an vos teria
letra Z, depois um A, e começou a espantar'se. Depor? apare'
roubado a esposa?" disse o pescador. Estas pa]avras lembra- ceu D, e êle tremeu. Nunca surprêsa alguma foi igual à sua
ram a Zadig tôdas as suas aventurase êle repetiu a lista de seus quando viu as duas últimas letras de seu nome. Durante algum
infortúnios? a ?omeçar pela cadela da rainha, até sua chegada ao tempo ficou imóvel e enfim, rompendo o silêncio, disse com voz
castelo do bandido Arbogad. "Ahl, disse êle ao pescador, Orcan entrecortada: "ó generosa dama! perdoai a um estrangeiro,
mereceser punido. .Mas g?ralmentesão homens assim os que o a um infeliz, que ousevos perguntarpor que espantosoacaso
destinofavorece. De qualquermodo,vai ao senhorCador e eu encontroaqui o nome de ZADiCtraçadopor vossa divina
espera por mim mão!" Ao ouvir esta voz, estas palavras, a senhora levantou
Sepal'aramse: o pescador pâs-se a andar, agradecendo ao seu seu véu com mão trêmula,olhou para Zadig, lançouum terno
destinoe Zadig a correr, acusandoo seu. grito de alegria e surprêsa e, sucumbindo a tão variados sen'
cimentos,desmaiounos braços de Zadig. Era Astartéia,era
O BASILISCO a rainha da Babilânia, aquela que Zadig adorava, que êle tantas
vêzes lamentava por ter adorado, aquela pela qual êle tanto
Numa bela planície, Zadig viu diversas mulheres que pro' chorara e por cujo destino tanto temera. Por um momento
curavam qualquer coisa com muito cuidado. Aproximou-se de sentiu-seprivado do uso dos sentidose, quandopousou seu
uma delas e perguntou-lhe se podia ter a honra de ajuda-las olhar no de Astartéia,que se abria agora com um langor em
naquela procura. . "Não faça isso, disse-lhe a mulher, pois o que que se misturava a ternura -e o recato, disse: "O', poderes imor-
prõcu:lama)s
só deve ser tocadopor mulheres". "Que coisa tais, que presidiaaos destinosdos fracos sêres humanos,vós
estranha!" disse Zadig. "Mas poderia perguntar que coisa é me devolveisAstartéia? ]:m que tempo,em que lugar e em
essa em que só as mulheres podem tocar?" "É o basilisco 70", que estado eu a r.evejo!" Caiu de joelhos diante de Astartéia e
disse a mulher. "Um bls1lisco, minha senhora! mas por que ra- chegou sua cabeça à poeira dos seus pés. A rainha da Babi-
zão andam à procura dêle?" "É para o nosso senhor' Ogul, lõnia levantou-oe fê-lo sentar a seu lado na margem do ribeiro.
cujo castelovêdesali à beira do rio, lá no fím da planície. So- Muitas vozes Astartéia limpou as lágrimas, que não paravam
mos suas escravas e Ogul está doente. Seu médico receitou-lhe de correr, e mais de vinte vêzes retomou a narrativa que os
que comesseum basilisco cozido em água de rosas e, como é seus gemidosinterrompiam. Indagavasôbre o acaso que os
uln animal muito raro e que só se deixa apanhar por mulhe- unirá e precipitavasuas respostascom outras tantas pergun'
res, o Senhor Ogul prometeuescolherpara sua bem-amadaesposa tas. Contava as suas desgraças e perguntava acêrca das que
aquela de nós que Ihe levasse um basilisco. Deixe-me procurar, haviam atingido Zadig. Enfim, havendo ambos tranqüilizado
um pouco o tumultoque lhes ia na alma, Zadíg contou-lhe,em
poucas palavras, as aventuras que o haviam levado àquele
(70).. Espécie de serpentefabulosa cujo olhar era mortal. Segundo prado. "Mas, oh! infeliz e respeitável rainha, como viestes
alguns afirmavam, esta serpenteperdia a sua força contra as mu-
eres parar neste lugar afastado, vestida de escrava e acompanhada
66 ROMANCES E CONTos ZADIG» HISTÓRIA ORIENTAL 67

de outras mulheres escravas que procuram um basilisco para diante dela, e como êste se tivesse recusado, perseguiuo com
o cozerem água de rosas, de acordocom a receitade um mé. violência. Ordenou ao grande escudeiro que Ihe fizesse uma torta
digo? "
de geleia. Por mais que o escudeiroIhe afirmasseque não era
:Enquanto elas procuram o basilisco, disse a bela Astar- doceiro, teve que fazer a torta, e acabou por ser expulso, por'
téia, vou contar tudo o que sofri e que agora perdão ao céu, qiie esta se queimara. A bela caprichosadeu. o lugar
depois que vos revi. Sabeis que o rei meu marido não pôde de grão-escudeiro
ao anãoda cartee o de claanceler
ao seu
suportar o fato de serdes o mais amável dos homens e foi por pajem. Governou assim a Babilõnia. Todo o mundo lamen-
isso que, naquelanoite, êle tomoua resoluçãode vos fazer tavaa minhapartida. O rei, quefará um homembastantebom
estrangulare de me envenenar. Sabeis tambémque os céus per- até ao momento em que pretendeu estrangular-me e mandar-vos
mitiram que o pequenomudo me avisasseda ordem que sua Subli- envenenar,parecia ter afogado as suas virtudes no amor prodi-
me Majestadedera. Apenas o fiel Cador vos forçara a obede- gioso que consagravaà bela caprichosa. No grande dia do
cer-me e a partir, que êle ousou entrar nos meus aposentos,no fogo .sagrado dirigiu-se ao templo. Vi-o fazer preces aos deu-
meio da noite, por uma porta secreta. Tirou-me dali e condu- ses, em favor de Missuf, junto da estátua onde me achava fecha-
ziu-me ao templo de Orosmada onde o mago, seu irmão, fe- da. Então, elevei a voz e grite-lhe: "Os deuses recusam ou
chou me numa estátua colossal cuja base se assenta nos funda. vir as precesde um rei que se transformouem tirano e que
mentos do templo e cuja cabeça atinge a cúpula. Ali fiquei, quis matar uma mulher equilibrada, para desposar uma ex-
servida pelo mago e nada me faltando. Ao apontar do dia, o travagante". Moabdar ficou tão confuso com estas palavras
farmacêuticode Sua Majestadeentrouno meu quarto com uma que passou a sofrer de perturbações mentais. O oráculo que
poção na qual se misturava o meimendro, o ópio, a cicuta, o he- eu fizera e a tirania de Missuf bastarampara fazê-loperder
léboro negro e o acõnito, e um outro oficial foi à vossa casa com o juízo. Efetivamente, em poucosdias ficou louco de todo.
uma corda de sêda azul. Mas não encontraram ninguém. Ca- "A sua loucura, que pareceu um castigo dos deuses,foi
dor, para melhor enganar o rei, foi acusar-nos e disse que ha- o sinal da revolta. O povo sublevou-se,recorreuàs armas,e
víeis tomadoo caminhodas índias e que eu fugira em dire- a Babilânia, mergulhada durante tanto tempo numa ociosa indo-
ção a Mênfis. Foi assim que enviaram perseguidores ao nosso
.n-.InA
u"-'a&yv. lência tornou-sepalco de uma terrível guerra civil. Retira-
ram-me da estátua em que me encontrava e puseram-me à testa
Os correios que me procuravamnão me conheciam. Eu qua- de uma das partes em luta. Cador correu a Mênfis, a fim de
se nunca mostrara o rosto senão a vós, na presença e por or- trazer-vospara a Babilânia. O príncipeda Hircânia, ao tomar
dem de meu esposo Correram aquêlescorreios à minha pro- conhecimento destas funestas notícias, regressou com seu exér-
cui'a apenasinformadosdo retrato que de mim faziam. tema cito, constituindo um terceiro partido na Caldéia. Atacou o I'ei,
mulher, parecida comigo e que talvez tenha até mais encan- que correu ao seu encontro com a extravaganteegípcia. Moab-
tos, ofereceu-se aos olhares dos perseguidores, lá pela fronteira dar morreu, crivado de golpes, e Missuf caiu nas mãos do
do Egito. Ela estava chorosa e errava por aquelas bandas. vencedor. Para minha desgraça fui também aprisionado pelos
Assim, não tiveram dúvidas de que aquela mulher era .a rainha da hircanianos e levaram-me à presença do príncipe, precisamente
Babilânia e levaram-na a Moabdar.' Êsse engano encolerizou, na mesma altura em que levavamMissuf. Será agradávelpara
de início, o rei mas, logo, havendoconsideradode mais perto vós, sem dúvida, saber que o príncipe me achou mais bela que
a mulher, achou-amais bela e consolou-se. Chamavam-nade a egípcia, mas ficareis desgostosoquando vos disser que êle me
Missuf. Disseram-medepois que êsse nome significa em lín. destinouao seu serralho. Disse-me,muito a sério, que, logo
gua egípciaa bela caprichosa. E ela, de fato, o era. Mas pos- que terminasse uma expedição militar qu-e ia executar, viria ter
suía tanta arte como capricho. Soube agradar a Moabdar e comigo. Vêde qual foi a minha dor. . . Agora que, rompidosos
subjugou-oa tal pontoque êlea tornousua mulher. E foi en- meuslaços com Moabdar, podia pertencera Zadig, caía nas gar-
tão que o seu carákr se desenvolveu por inteiro. Entregou-se, ras dêste bárbaro. Respondi-lhe com a altivez proveniente da
sem receios,a todas as loucurasda imaginação. Quis obri- minha situação e dos m-eussentimentos. Sempre ouvi dizer que
gar o chefe dos magos, que era um velho esgotado, a dançar o céu deu às pessoasdo meu nível um caráter tão altivo que,
68 ROMANCES E CONTOS ZADIGJ lilST6RIA ORIENTAL 69

com uma palavra ou um olhar, rebaixam para uma posição mão à escravaque Ihe trouxesseum basilisco. Como vedes,
do mais profundo respeito, os temeráriosque dela ousem afas- d-eixo-as afadigar-se para merocerem esta honra e agora, depois
tar-se. Falei, pois, como rainha; mas fui tratada como dama que o céu permitiu que vos revisse, ainda tenho menos vontade
de honor. O hircaniano, sem se dignar sequer dirigir-me a de achar o tal basilisco"
palavra, disse ao seu eunuco negro que eu era uma imperti- Então Astartéia e Zadig disseram, um ao outro, todos os sen-
nente, mas que me achava bonita. Ordenou-lhe que tratasse timentos que durante tanto tempo tinham calado, tudo o que
de mim e que me concedesse o mesmo regime que dispensava as suas desgraçase os seus amores podiam inspirar aos corações
às favoritas,a fim de dar um ar maisfrescoà minhatez, e de mais nobrese mais apaixonados. E os gêniosque presidemao
me tornar mais digna dos seusfavores, no dia em que quisesse amor levaram suas palavras até a esfera de Vênus 71
dar-me a honra de mos conceder. Quando Ihe disse que me
mataria, replicou-me, rindo, que ninguém se matava por causa As mulheres regressaram ao palácio de Ogul sem nada terem
disso, que já estava habituado a promessas dêsse gênero, e encontrado. Zadig pediu para Ihe ser apresentadoe falou-lhenos
foi-se embora como um homem que acaba de comprar mais um seguintes termos:
papagaiopara põr na gaiola. Que situaçãopara a primeira "Que a saúde imortal desça do céu e possa cuidar dos vos-
rainha do universo e, mais ainda, pal'a um coração que per- sos dias. Sou médicoe acorri à vossapresença,quandoouvi
tencia a Zadig! dizer que estáveis doente. Trago-vos um basilisco cozido em
água de rosas. Não é que com isto eu pretenda desposar-vos. ..
A estas palavras, Zadig lançou-se a seus joelhos e banhou- Peço-vos apenas a libertação de uma jovem escrava da Babilânia,
.os de lágrimas. Astartéia soergueu-o ternamente e continuou que tendeshá alguns dias. Consinto em ficar escravo,em seu
falando: "Via-me em poder de um bárbaro e rival de uma lugar, se não tiver a felicidade de curar o magnífico senhor
louca, com a qual me haviam fechado numa sala. Ela contou-me Ogu]
a sua aventurano Evito. Imaginei,pelos traçoscom que vos
pintava, pela época em que o caso se passou, pela descrição A proposta foi aceita e Astartéia partiu para a Babilânia
do camelo em que tínheis partido, por todas as circunstâncias, com o criado de Zadig, prometendo-lhe que Ihe enviarialogo
um correiopara o manterao correntedo que se passasse.A
que era Zadig quem combatera por ela. Não duvidava que es- sua despedidafoi tão terna quantoo fará o instanteem que
tivésseisemMênfis. Tomeia resoluçãode seguirpara lá. Bela ambosse haviamreconhecido. O momentoem que duas pes'
Missuf, disse-lhe,sois muito mais agradáveldo que eu, diverti- smasse encontrame aquêleem que se separamsão as duas
reis muito melhordo que eu o príncipeda Hircânia. Facili- maiores épocas da vida, como diz o grande livro do Zend. Zadig
tam-me, pois, os meios de fugir: reinareis sozinha e tornar-me-eis amava a ;ainda tanto quanto dizia nos seus juramentos e Astar-
feliz, desembaraçando-vos de uma rival. Missuf combinoucomi- téia amava Zadig ainda mais do que dizia.
go a maneirade eu fugir. Parti, pois, secretamente com uma Entretanto Zadig falou assim a Ogul: "Senhor', o meu ba-
escrava egípcia. silisco não é de com.er: toda a sua virtude deve entrar pelos
"Já estava perto
da Arábia quando um famoso salteador, poros. Coloquei-o num odre bem inchado, coberto por uma pele
chamado Arbogad, lne raptou e me vendeu aos mercadores que bem fina. É preciso que Vossa Grandeza o lance longe, com
me trouxerampara êste castelo,onde reside o senhor Ogul. toda a larga, e que eu vo-lo devolvaamiudadasvêzes. De-
Comprou-me sem saber quem eu era. É um homem voluptuoso, pois de seguirdes êste regime alguns dias, vereis quanto pode mi-
que só procura comer bem e que julga que Deus o pâs neste lha arte.'í Ogul, logo no primeirodia, ficou ofegantee jul-
mundo para manter uma mesa sempre servida. É tão gordo, gou que morreria de fadiga. No segundo,cansou-semenos.e
que esta excessiva gordura está sempre prestes a sufoca-lo. O liormi'u melhor. Em oito dias recobrou toda a força, a saúde,
seu médico, cujos conselhosêle nunca segue quando digere
bem, governa-odespõticamentequando come demais. Foi (71) Isto é, a quarta das nove esferasconcêntricasque forma-
êste médicoque o convenceude que só se curaría com basi- vam o universo segundo o sistema de Ptolomeu: a da estrêla do
lisco cozido em água de rosas. O senhor Ogul prometeu a sua amor.
70 ROMANCES E CONTOS ZADIG, I{ISTÓRIA ORIENTAL 71

a levezae a alegriados seus anos mais brilhantes. "Agora nados,a algumasléguasda cidade. Os combatentes
.teriam.que
que jogastesbalão e que sois s.ébrio, disselheZadig devo se dirigir a'êste lugar armados dos pés à cabeça. Cada um dêles
declarar-vos que não existe na natureza nenhum animal chamado possuía,atrás dos anfiteatros,uma espéciede apartamentosepa-
basilisco e que as pessoaspassam sempre bem sendo sóbrias e rado, onde não devia ser visto nem encontrado por ninguém.
fazendo exercício. A arte de fazer subsistir conjuntamente Deviam-se correr quatro lanças. Os que tivessem a sorte de
a intemp-erância
e a saúdeé tão quiméricaquantoa pedrafilo- vencer quatro cavaleiros, teriam que combater depois.uns con-
sofal,a astrologia
judiciáriae a teologiadosmagos72". tra os outros. D.estarte, o último que ficasse senhor do campo
seria proclamado vencedor dos jogos. Quatro dias depois, êste
O primeiro médico de Ogjil, vendo quão perigoso era êste vencedordevia voltar, com as mesmasarmas, e explicaros
homem para a lnedicína, resolveu unir-se ao boticário para man-
enigmas apresentadospelos magos. Se não conseguisseexpli-
dar Zadíg procurar basiliscos no outro mundo. Assim, depois ca-los, não seria considerado rei e seria necessário renome'
de ter sido semprepunido por proced-erbem, Zadig estavapres-
tes a morrer por ter curado um senhor guloso. Convidaram-no çar a luta, até encontrarum vencedordos dois tipos de !em-
para um jantar excelente,no qual devia ser envenenadoao comer bate, pois se pretendiaachar um rei que fosse o mais valente
e o mais sábio. A rainha, durante êste período, devia ser vigia-
o segundo prato. Entretanto, quando estava no primeiro, rece- da de perto; permitia-se-lhe
apenasque assisti?seaos jogos,
beu notícias da bela Astartéia, abandonoua mesa e partiu. Diz coberta com um véu, mas não se consentiaque falassea nenhum
o grande Zoroastro que os homens amados por lindas mulhe-
dos pretendentes
a fim de não haver favoritismosnem injus-
res acabam sempre neste mundo por resolver bem as suas difi- tlça$
culdades.
Tudo isto Astartéia comunicou ao seu amado, esperando
OS COMBATES que êle mostraria mais valor e espírito do que ninguém. Zadig
partiu, rogandoa Vênus que Ihe fortalecesse
a corageme Ihe
A rainha fará recebida na Babilânia com o entusiasmo iluminasse o espírito. Ch'egou às margens do EufraLes na vés-
que sempre mereceuma princesa que foi infeliz. A Babilânia pera do grande dia. Inscreveu a sua divisa entre as dos com-
pareciaentãoestar mais tranqiiila. O príncipe da Hircânia batentes, escondendo o rosto e o nome, como a lei Ihe ordenava
fará morto eln combate e os babilõnios, vencedores, anuncia- e foi repousar no apartamento que Ihe coube. O seu amigo
ram que Astartéia casaria com o homem que fôsse escolhido Cador, que voltara à' Babilânia, d-epoisqe ter procurado inutil-
para soberano. Não se desejava que o lugar mais importante mente Zadig no Egito, mandou entregar-lhe uma armadura com-
do mundo,que era o de marido de Astartéiae de rei da Ba- pleta,que a rainha Ihe enviava. Mandou entregar-lhe
tam-
bilõnia, dependessede intrigas e cabalas. Jurou-se pois reco- bém: em seu nome, o mais belo cavalo da Pérsia. Zadig reco-
nhecer como rei o mais valente e o mais sábio. Delimitou-se nheceua mão de Astartéianestespresentes;a sua corageme o
uma grallde liça 73, bordada de anfiteatrosmagnificamenteor- seu amor adquiriram assim novas forças e novas esperanças
No dia seguinte,depoisde a rainha ter vindo sentar-sesob
(72) Esta historietadeve, sem dúvida, ter sido inspiradapela o seu dossel de pedrarias e de os anfiteatros estarem repletos,
fiistoire du roi grei et du médecinDouban (Ás À4{1e Uma Noites, l\; com todas as senhoras e todas as ordens da Babilânia, os com-
e 13ê noites), onde um médico cura um leprosoobrigando-oa fazer batentessurgiramno circo, e foram, um a um, colocarsua
exercício. O SPecfaforde Addison (23 de outubrode 1711) resumirá
a narrativa de .4s .4/i/ e Uma ]Voifes aproveitando a lição de higiene divisa aos pés do grande mago. Tiraram-se as divisas à sorte:
que continha. a de Zadig'foi a última. O primeiro que avançou foi um senhor
( 73) O torneio que Voltaire vai descrever relaciona-se muito mais muito rico, .chamado Itobad, muito vaidoso, pouco corajc,se,
com a tradição cavalheiresca européia do que com os costumes orien- desajeitado e pouco inteligente. Seus criados haviam-no per'
tais. Voltaire aliás imita Ariosto (RoZa7zdo
fz&rioso,
XVII) que des- suadido de qu-eum homem como êle devia ser rei. E êle res-
creve um torneio em Damasco sem se preocupar com a verossimilhan-
ça. Voltaire, que na juventude não apreciava muito Ariosto, acabou
pondera-lhes; "Um homemcomo eu deve reinar". Assim,
por transforma-lo
"numDeus" (cartaa Mme du Deffand,15 de armado dos pés à cabeça, Itobad apresentou-secom uma arma'
janeiro de 1761) . dura de ouro esmaltada
de verde,um penachoverdee uma
72 ROÃIANCES E CONTOS ZADIG, IIISTÓRIA ORIENTAL 73

lança adornada com fitas verdes. Viu-se logo de início, pela ma recuam, avançam, voltam a encontrar-se, agarram-se, encolhem-
negracomo Itobad dirigia o cavalo,que não era a "um homem se como serpentes, atacam-se como leões. A cada momento
como êle" que o céu reservavao cerro da Babilânia. O pri- Ü saltam faíscas dos golpesdas almas. FinalmenteZadig, qua
meiro cavaleiro que correu contra êle destribou-o;o segundo conseguiu
recobrara serenidade
por um instante,detém-se,
faz
derrubou-o
da garupado cavalo,de pernaspara o ar e braços uma finta, lança-se sôbre Otame,' derruba-o, desarma-o, de tal
estendidos. Itobad conseguiuvoltar à posiçãonormal, mas com forma que o adversárioexclama: "O' cavaleirobranco, sois
tanta deselegânciaque todo o anfiteatroriu dêle. O terceiro vós quem deve reinar na Babilânia". Então, a alegriada rai-
cavaleiro nem se dignou utilizar a lança: fazendo uma finta, agar- nha atingiu o auge. Reconduziramo cavaleiroazul e o cava-
rou-jhea pernadireitae, obrigando-o
a dar meiavolta, derru- V leiro branco aos respectivosapartamentos. Fizeram o mesmo
bou-o na areia. Os escudeiros dos" jogos acorreram, rindo, e com todos os outros, ta] como especificava a lei. Os domésti-
colocaram-no novamente na sela. O quarto combatente agarrou-o cos mudosvieramservi-lose trazer-lhes comida. Como é de
pelapernaesquerdae fê-locair do outrolado; levaram-no, en- calcular,o escravomudo da rainha foi designadopara servir
tão, sob vaias, para o apartamentoonde, segundoa lei, devia Zadig. Depois,os combatentes foram d-eixados
sozinhosa fim
passar a noite. Andando com dificuldade, Itobad exclamava: de poderem dormir até o outro día, ocasião em que o vence-
"Que aventura para um homem como eul" dor'devia levar a sua divisa ao grande mago, para confron-
Os outros cavaleirosdesincumbiram-semelhor do seu dever. ta-la e reconhecer sua validade.
Houve alguns que venceramdois combatentesem s.eguida. Al- Embora estivesseapaixonado,Zadig dormiu bem, tanta era
guns chegaram a vencer três. SÓ o príncipe Otame derrotou a sua fadiga. Itobad,que se deitarajunto dêle,não dormiu.
quatro. Finalmente
chegoua vez de Zadig combater. Então Levantou-sede noite, entrou no apartamentode Zadig, tomou
destribou quatro cavaleiros, uns a seguir aos outros, com tôda suas armas brancas e a respectiva divisa e deixou a armadura
a elegância. Viu-se logo, pois, que o vencedor seria Otame ou verde -em seu lugar. Mal a madrugada raiou dirigiu-se todo
Zadig. O primeiro tinha armas azuis e douradas com um pena- orgulhoso ao grande mago, ao qual declarou que "um homem
cho igual; as armas de Zadíg eram brancas. As preferências comoêle" era o vencedor. Ninguémesperavapor esta; mas foi
do público dividiam-se entre o cavaleiro azul e o cavaleiro proclamado vencedor, enquanto Zadig dormia.. A?tflrtéia, sur:
branco. A rainha,cujo coraçãopalpitava,fazia precesao céu prêsa, com o coraçãodesesperado,regras:ouà Babilânia. Já
pelas côres brancas. o anfiteatro estava quase vazio quando Zadig despertou; pro'
Os dois campeões
fizeramfintase voltascom tanta agili- curouas armase sd encontrou
a' armaduraverde. Foi obri-
dade, deram lançadas um ao outro com tanta beleza, cavalga- gado a vesti-la,pois não tinha ali mais nada . Espantadoe in-
vam tão firmes no arção, que toda a gente, excito a rainha, dignado,envergou
a pois, com furor, e saiu assimequipado
74.
desejava que houvesse dois reis na Babilânia. Finalmente, quan- Aõ pessoasque ainda se achavamno anfiteatroe no circo
do os cavalos de ambos já se achavam cansados e as lanças que- receberam-no com apupos, rodearam-no, insultaram-no. Nunca
bradas, Zadig utilizou o seguinte estratagema. Passou para trás homem nenhum sofreu mortificações tão humilhantes. Perdeu
do cavaleiro azul, lançou-se à garupa do seu cavalo, agarrou Ota- a paciência e afastou, a golpes de sabre, a populaça que ousava
me pela cintura,jogou-opor terra, sentou-se
na sela,em seu ultrajá-lo. Mas continuavasem saberque partido tomar: não po'
lugar e começou a andar com o cavalo em terno do adversá- Ã dia ver a rainha; não podia reclamar a armadura branca que ?sta
rios estendidono chão. Todo o anfiteatrogritou: "Vitória Ihe enviara, pois a comprometeria. Assim, mergulhadona dor,
ao cavaleirobrancos" Otame,indignado,levantou-se,de espada estava ao mesmo tempo furioso e inquieto. Passeava nas mar-
desembainhada. Zadíg saltou do cavalo, de sabre em punho. Ei- gens do EufHtes, convencidode que sua estrêlao destinavaa
los ambosna arena, travandonovo combate,em que a larga ser desgraçado sem apelação. Relembrava tõdls as desgraças
e a agilidade triunfam alternadamente. As plumas do capacete !' o haviam atingido, desde a aventura cla mulher que odiava
os rebitesdos braçais, as malhasda armadura vão parar longe,
sob os golpesprecipitadosdos combatentes. estes batem com (74) A espertezade ltobad e a falta de sorte de Zadig também
a pontae o gume,à direita,à esquerda,na cabeça,no peito; são imitadasde Ariosto.
ZADIG, HISTÓRIA ORIENTAL 75
74 ROMANCES E CONTOS

os zarolhos,até a da armadura. "Eis o resultadode me ter À noite, os dois viajantes chegaram a um soberbo castelo.
levantado tarde demais; se tivesse dormido menos, seria rei da O eremita pediu hospitalidade para si e para o Jovem que o
Babilânia e possuiria Astartéia. A ciência, os bons costumes, acompanhava. O porteiro, que parecia um grão-senhor,man-
a coragem, só me têm trazido infelicidade." Chegou mesmo a dou-os entrar, com uma espécie de bondade desdenhosa. Foram
murmurar contra a Providência, sendo levado a crer que tudo os dois apresentados
ao criado principal,.qu-e
. lhes mostrou.os
era governadopor um d-esticocruel, que oprimiaos bons e fazia magníficos aposentos do dono da casa. Depois, foram admiti-
prosperar os cavaleiros verdes. Um dos seus desgostos era trazer dos à sua mesa,mas na ponta,sem que o senhordo castelose
vestida esta armadura verde, que Ihe atraía tantas vaias. Passou dignasse honra-los com um olhar. No entanto, .foram servidos
um mercador e Zadig vendeu-lha, a baixo preço, comprando como os outros, com manjares delicados e abundantes. No fím
ao mesmo mercador um albornoz e um barrete longo. Vestida da refeição troux-eram uma bacia de ouro cravejada d? esme-
desta forma andava ao longo do Eufrates, cheio de desespêro raldas e rubis, para lavarem as mãos. Levaram-nos então para
e acusando secretamente a Providência, que sempre o perseguia. dormir num belo quarto e no dia seguinte, pela manhã? um criado
entregou-lhes,a cada um, uma moeda de ouro. Depois disso, fo-
ram despedidos.
O EREMITA 75 '0 dono da casa, disseZadig quandojá iam na estrada,
parece-meser um homemgen?ro?o,.embora um pouco altivo.
No seu caminhoencontrouum eremita, de barba branca e Exerce nobremente a hospitalidade." Dizendo estas palavras notou
venerávelaté a cintura, lendo atentamenteum livro. Zadig dete- que a larga bôlsa que o eremita trazia estava colmoque inchada
ve-o -e fêz-lhe uma inclinação profunda. O eremita saudou-o com e percebeu que êle roubara a bacia de ouro cravejada de pedra-
um ar tão nobre e tão suave, que Zadíg teve curiosidade de con rias. De início, não ousou dar conta do que via, mas assaltava-a
versar com êle e perguntou-lheque livro estavalendo. "É o livro uma estranha surprêsa.
dos destinos,respondeuo eremita; quer ler alguma coisa?"' Pâs Por volta do meio-dia, o eremita apr-esentou-se
à porta de uma
o livro nas mãosde Zadig que, emboraconhecesse
diversaslín-
casinha, muito pequena, onde vivia um avarento rico e pediu hos-
guas, não conseguiu decifrar uma única palavra. Isto redobrou
ainda a sua curiosidade. "Pareceis-me bem desgostoso", disse-
pitalidade por algumas horas. Um criado, idoso e mal vestido,
recebeu-osrudemente e mandou entrar o eremita e Zadig para a
.Ihe, então, o bom sacerdote. "É verdade. E tenho razões para
isso". "Se me permitis que vos acompanhe, talvez vos possa estrebaria, onde lhes serviu azeitonaspodres, pão de ruim qua
servir. Tenho consolado muitas vêzes as almas dos desgraçados." lidade e cerveja já estragada. O eremita bebeu e comeu com
Zadig, penetradode respeitopelo ar, a barba e o livro do ere- um ar tão contente quanto o que manifestara na véspera; depois,
mita, achou tambémnas suas palavras luzes superiores. O ere- dirigindo-seao velho criado, que os observavapara ve' se não
mita falava do destino, da justiça, da moral, do supremo bem, roubava qualquer coisa, e que os incitava a.partirem, entregou-
.Ihe as duas moedasde ouro que receberade manhã e agrade-
da fraqueza humana, das virtudes e dos vícios, com uma eloqüên- ceu-lhe as atenções que lhes dispensará. "Por favor, pedir, apre'
cia tão viva e tocante,que Zadig se sentiu atraído por um en- sente-me ao seu seniior". O criado, admiradíssimo, mandou en-
canto que não podia dominar. Pediu-lheinsistentementeque não
o abandonasse, até regressarem à Babilânia. "Sou eu quem vos trar os dois viajantespara os aposentosdo velhoavarento. ''Mag-
nífico senhor, disse-lhe o -eremita, agradeço-vos humildemente a
peço essa graça, disse-lhe o ancião; jurei-me, por OTosmada, maneira nobre como nos recebestes: dignai-vos aceitar esta bacia
que não vos separareisde mim nestesdias mais próximos, faça eu de ouro. É um fraco testemunhodo meu reconhecimento."O
o que fizer." Zadig prometeu,e partiram os dois.
avarento quase caiu de costas. O eremita não.Ihe deu tempo de
voltar a si'e partiu ràpidamentecom Zadig. "Meu pai, perguntou-
(75) Fréron (d?z?zéel.iff'íra;re, 1767, 1, 30 sqq) acusa Voltaire Ihe êste,o que é que estouvendo? Não vos assemelhais
em
de ter ido buscar o tema dêste capítulo no poema de Parnell The /7er- nada aos outl.oshomens. Roubais uma bacia de ouro cravejada
mif, publicadoem 1721. Mas o temadêstecontojá figura no Cotão de pedrarias a um senhor que vos recebeu magnificamentee dai-la
(XVl11, 64) e foi retomado, a partir da Idade Média, por numerosos
escritores ocidentais (cf. ed. Ascoli, Coram ?zfaire, pág. 136-151). a um avarentoque vos trata de forma tão indigna." "Meu filho,
76 ROMANCES E CONTos ZADiG, HisTÓRiA ORIENTAL 77

respondeu o velho eremita, êsse homem magnífico só recebe bem sensaçõesou idéias: recebetudo; a pena e os prazeresche
os estrang-eiros
por vaidade e para fazer admirar suas riquezas; gam-lhe do exterior com o seu ser"78.
o que fiz, torna-lo-á mais avisado; o aval'unto aprenderá a exer:
Zadig admirava-se de que um homem que procedera de for-
cer a.hospitalidade. Não deveis,pois, espantar-vosde nada e segui- ma tão extravagante pudesse raciocinar tão bem. Finalmente,
me." Zadig ainda não sabia se estavaperanteo mais louco ou depois de um colóquio tão instrutivo quanto agradável, o hospe
o mais sábio de todosos homens;mas o eremitatinha sôbre êle
deito reconduziu os dois viajantes ao quarto que lhes estava reser-
um. tal ascendenteque Zadig, prêso aliás por um juramento, não vado, dando graças ao céu p-or Ihe ter enviadodois homenstão
pôde deixar de segui-lo.
sábios e tão virtuosos. Ofereceu-lhesdinheiro, para a viagem, de
Chegaram à tarde a uma casa, de construção agradável mas uma forma tão elegante e tão nobre que não poderia desagra-
simples, onde nada denotava a prodigalidade ou a avareza. O dar-lh.es. O eremita recusou e, como contava partir para a Ba-
dono da casa, filósofo retirado do mundo, cultivava em paz a sa- bílõnia antes de nascer o dia, despediu-se do filósofo. Os adeu-
bedoria e.a virtude, sem entretantose aborrecer. Comprazera-se ses foram ternos; Zadig, principalmente,sentia-sepenetradode
construindo êste refúgio no qual recebia os estrangeiros com estimae de inclinaçãopor um homem tão amável.
uma nobre?a que nada tinha de ostentatória. Recebeupessoal.
mente. os dois viajantes, proporcionando-lhes logo a oportuni- Quando ficaram sòzinhos no apartamento que lhes fará des-
dade de repousarem num cómodo aposento. Algum tempo depois, tinado, os dois viajantesespraiaram-seem elogiosao seu hospe-
deiro. De madrugada, o eremita acordou .o companheiro. "Te-
veio.convida-lospara tomaremuma refeição bem servida,'sau-
dável, .durante ! qual falou discretamente das últimas revoluções mos que partir", disse-lhe,"mas enquanto todos dormem quero
da Babilânia. Pelas suas palavras depreendia-seque era sincera- aproveitar para deixar a êste homem o testemunhoda minha esti-
menB dedicadoà rainha. Mais adia;te manifestouo desejo de ma e da minhaafeição." Ao dizer estaspalavras,pegounum
que Zadig descesseà liça para disputar a coroa. "Mas os ho- facho e deitoufogo à casa. Zadig, aterrorizado,começoua
mens, acrescentou, não merecem ter um rei como Zadig". Êste gritar e quis impede-lode colnetei'uma ação tão terrível. Mas
o eremita dominava-o, com uma larga superior, e a casa foi incen-
enrubescia e sentia redobrar sua dor. Assentou-se, naquela con.
diada. O eremita, quando já se achava bastante afastado da
versa, que as coisas, neste.mundo! nem sempre marchavam segun-
do a vontade dos mais sábios. O eremita continuava afirmando casa, olhou-atranquilo,enquantoela ardia e disse: "Graçasa
Deus a casa do nosso caro hospedeirofoi destruída de alto a
que as via? da Providência eram desconhecidase que os homens
faziam mal em pretender julgar um todo de que só conheciam baixo! Que homem felizl" Ouvindo estas palavras Zadig sen-
a parte menor 76 tiu-se assaltado simultâneamentepor um desejo de dar risada, de
Falou-se de paixões. "Ah! Como são funestas. . ." dizia injuriar o reverendosacerdote,de Ihe bater e de fugir; não fêz
porém nada disso e, sempre subjugado pela ascendência do ere-
Zadig. "São os ventosque inflam as velas dos navios, retrucou mita, seguiu-o até o lugar onde dormiriam pela última vez.
o eremita.É certoquepor vozeso submergem.
Mas semêles
não seria possível navegar. A bife torna o homem colérico e Êste, era a casa de uma viúva caridosa e virtuosa, que tinha
doente; mas sem a bife o homem não poderia viver. Tudo é pe- um sobrinho de catorze anos, cheio de encantos e sua única espe'
rigoso neste mundo, mas tudo é necessário" 77 rança. A viúva fêz o melhor que pede as honras da casa.
No dia seguinte, ordenou ao sobrinho que acompanhasse os via-
Falou-se dos prazeres e o eremita provou que êstes são um
presenteda Divindade, "pois o homemnão pode dar a si mesmo jantes até uma ponte que, por ter derruído havia. pouco tem-
po, constituía uma passagemperigosa. O jovem, solícito, seguiu
ã frente dêles. Quando chegaram à tal ponte o eremita disse
(76) É a idéia de Leibnitz e de Popa ('E?zsaos sôbre o AomemJ, ao jovem: "Venha, quero exprimir-lhe o meu reconhecimento
P
(77) Esta reabilitação das paixões estava então na moda. Voltai-
re encontrara nas ]4áxfmas de Vauvernaguesfrases dêste tipo: "Te- (78) Idéia empirista de Locke (Qai7zfo discurso sôbre o.domem
ríamos cultivado as artes sem as paixões?...'' ou ''As paixões en- 1738j que Voltaire encontrara aliás sob outra forma em Malebranche
sinaram aos homens a razão. Cf. O INGÉNUO, VOI. 1, ns. 292 e 293.
78 ROMANCES E CONTOS ZADIG, IIISTÓRIA ORIENTAL 79

para com sua tia". E, então,agarrou-opelos cabelose lan- dem, que seria perfeita, só pode existir na eterna residência do
çou-oao rio. O meninocaiu, reapareceumais adianteà tona Ser Supremo, a qual não pode ser atingida pelo mal. Êle criou
d'águae acaboupor ser arrastadopela torrente. "Ó mons milhões de mundos e nenhum pode assemelhar-seao outro81
tro! ó mais celerado de todos os homensl'' exclamou Zadig Esta imensa variedade é um atributo de seu imenso poderio.
"Havíeis-me prometido mais paciência, respondeu o eremita. Devo Não há duas fôlhas de árvore nesta terra, nem dois globos,
relatar-vosque, nas ruínas da casa a que deiteifogo, o seu pro' nos campos infinitos do céu, que sejam semelhantes, e tudo
prietário encontrou um tesouro imenso; por outro lado, êste o que vês, no pequenoátomo em que nasceste,devia estar no
jovem, a quem a Providência concedeua morte, teria, se vivesse, seu lugar e no seu tempo fixo, segundo as ordens imutáveis
assassinadosua tia, dentro de um ano, e vós, dentrode dois." daquele que tudo abarca. Os homens pensam que êste menino
"Quem to disse, bárbaro? perguntouZadig. E mesmoque ti- que acaba de morrer caiu na água por acaso e que foi devido
vesses lido êsse acontecimento no teu livro dos destinos, terias a êsse mesmo acaso que a casa foi incendiada; mas não há
o direito de afogar uma criança que não te fêz qualquermal?" acaso82. Tudo é provação,ou punição,ou recompensa,
ou
previsão. Recorda-te dêste pecador que julgava ser o mais infe-
Enquanto falava, Zadig observou que o velho já não tinha liz dos homens. Orosmadaenviou-tepara mudar o seu des-
barba e que o seu rosto adquiria traços de juventude. O' hábito tino. Fraco mortal! Deixa de discutir aquilo que é preciso
de eremita desapareceu,e surgiram quatro belas asas, que co- adorar." "Nuas. . ." respondeu Zadig. Enquanto êle dizia Iras
briram um corpo majestoso e resplandecentede luz. ''ó enviado já o anjo voava para a décimaesfera. Zadig, de joelhos, ado-
do céu! ó anjo divino! exclamou Zadig prosternando-se, "des- rou a Providênciae submeteu-se.O anjo gritou-lhe,lá do alto
ceste do empíreo para ensinar um fraco mortal a submeter-se dos ares: "Segue o teu caminho para a Babilõnia."
a tuas ordens eternas?" "Os homens, respondeu o anjo Jesrad,
julgam tudo, sem nada conhecerem. Tu eras, entre todos os OS ENIGMAS
homens, o que mais merecia ser esclarecido." Zadig pediu-lhe
licença para falar. "Desconfio dos meus pensamentos, mas, Zadig, fora de si, caminhava ao acaso como um homem
apesar disso, ouso pedir-te um esclarecimento:não seria pre- junto do qual tivesse caído um raio. Entrou na Babilânia
ferível ter corrigido êsse menino, tornando-ovirtuoso, do que no dia em que aquêlesque haviamcombatidona liça
afoga-lo?" Jesrad replicou: "Se êle se tornasse virtuoso e vi- já se achavam reunidos no grande vestíbulo para explicar os
vesse, o seu destino seria ser assassinado, bem como a mulher enigmas e para responderem às perguntas do grande mago. Já
com quem casasse e o filho resultante dêsse casamento." "Mas todos os cavaleiros tinham chegado, menos o da armadura verde.
como? É necessário,portanto, que haja crimes e infelicidades? Mal Zadig apareceuna cidade, o povo reuniu-seem terno dêle;
Que as infelicidades caiam sabre as pessoas de bem?" "Os os olhosnão se cansavamde vê-lo, as bocasde abençoa-lo,os
maus, explicou Jesrad, são sempre infelizes: servem para expe- corações de desejarem-lhe o império. O invejoso viu-o passar, es-
rimentar um pequeno número de justos espalhados pela terra. tremeceue afastou-se;o povo conduziu-oaté o lugar onde se
Não há mal de que não nasça um bem 79". "E que aconteceria reunia a assembleia. A rainha, a quem comunicaram a chegada
se houvesse apenas bem, e não existisse mal?" "Nessa altura, de Zadig, sentiu-se tomada por um sentimento de agitação provo-
disse Jesrad, esta terra seria outra terra80, e o encadeamento cado pelo receio e a esperança; a inquietação devorava-a. Não
dos acontecimentos
seria outra ordem de Sabedoria. Essa or. podia compreender por que razão Zadig estava sem armas, nem
por que Itobad trazia a armadura branca. Elevou-seum mur-
múrio confuso, à chegada de Zadig. O público estava surprêsa
(79) Idéia de Pape no Ezzsczio
sôbre o domem, Ep. 1: tudo é efeito
da Providência.
(80) Trata-se de uma ideia de Leibnitz que é, aliás, uma conse-
qüênciado determinismo universal. Mmc du Châteletescreveranas (81) Leibnitz pensava que h.avia uma illfinidade de mundos pos-
/nsfifufi07zs
de pAysique,pág. 43, descrevendo
o sistemade Leibnitz: síveis; Voltaire parece concluir que êstes.mundos existem.
Cada sequênciade coisas constitui um mundo que seria diferente de (82) Idéia de Leibnitz: não há efeitosem razão suficiente;idéia
qualquer outro devido aos acontecimentos que Ihe seriam particulares. de Pape (Ensaio sôbre o domem, Ep. 1) : tudo é efeito da Providência.
ZADIG, HISTÓRIA ORIENTAL 81
ROR{ANCES E CONTOS

encantado por revê-lo. Mas só os cavaleiros que .haviam com- minha. O senhor Itobad apoderou-sedela enquanto eu dormia,
atido tinham autorização para penetrar na assembleia. julgando,aparentemente,
que Ihe assentariamelhorque a verde.
Estou pronto a provar'lhe, aqui, perante vós, envergando ?pe-
"Combati como os outros, declarou Zadig, mas outra pessoa, nas êste traje e usando a minha espada, enquanto êle poderá
qui presente,traz as minhasarmas. Enquantonão possoter bela armadura branca que me roubou, que fui eu
honra de prova-lo, peço autorização para me apresentar quem teve a honra de vencer o valente Otame"
fim de responderaos enigmas". Procedeu-se à votaçãoe a Itobad aceitou o desafio com a maior segurança, pois tinha
ama da probidadede Zadig estavatão assente.nos espia:tosque
ão houvedúvida em conceder-lhe o que pedia. a certeza de que, vestido como estava, com capacete, couraça o
braçais, venceria fàcilmente um combatente vestindo um albor-
O grande mago apresentou,em primeiro.lugar, esta per' noz e trazendo na cabeça apenas um barrete de dormir. Zadig
unta: '"Qual é, de todas as. coisas do mundo,a mais (Tm-
divã. tirou a espadae saudoua rainha, que o olhava,com um misto
rldae a maiscurta,a maisrápidae a maislenta,a mais de alegria e de receio. Itobad tirou a sua, sem saudar ninguém.
ível e a mais extensa,a mais'desprezadae a que mais se la- Avançilu contra Zadig como homem que nada tem a temer. Quan-
menta perder, aquela sem a qual nladase pode fazer, ,que devora do já estava quase a rachar-lhe a cabeça, Zadig. conseguiu deter
udo o que é pequenoe que vivifica tudo o que é grande?" o golpe,opondoa parte da espadaque se chamaforte83 à
Cabia a Itobad responder, o que êle fêz afirmando que 'um parte fraca da de Itobad, de tal forma que esta se quebrou.. Então,
homemcomo êle" nada percebiade enigmase que Ihe bas- agarrando o inimigo, derrubou-o por terra e, apontando-lhea
avater vencidoo combatecom a lança. Un? responderam
que pontada espadano pontofraco da couraça,intimou-o: "Dei-
e tratava da fortuna, outras da terra, outros da luz. Zadig res- xai-vos desarmar, ou mato-vos." Itobad, surprêsa como sem'
pondeuque era o tempo: "Nada é maislongo,pois é a me- pre com as desgraçasque aconteciama "um homemcomo êle",
ida da eternidade;nada é mais curto, pois falta-nospara levar- deixou que o adversário Ihe tirasse calmamenteo magnífico ca-
mos a cabo todos os nossosprojetos; nada é mais lento, para pacete, a soberba couraça, os belos braçais, as brilhant?s escar-
celas. Zadig, depois de envergar a armadura, correu a lançar-se
quem espera; nada mais rápido, paro quem goza; estende-seaté
o infinito, de tão grande que é; divide-seaté o infinito, de tão aos pés de Astartéia. Cador provou fàcilmente que a arma-
pequeno;'todos os'hímen?' o desprezam,todos l:mentam a sua dura pertenciaa Zadig e êste foi reconhecidorei, por opi-
nião de todos, e principalmente pela de Astartéia que, finalmente,
perda; nada se faz sem êle; faz-nos esquecertudo ,o que é in-
igno da posteridade e imortaliza as grandes coisas." A assem- depois de tantas adversidades, gozava o prazer de ver o seu que-
bléia concordou com a resposta de Zadig rido Zadig revestido,aos olhosdo universo,da dignidadeque
Ihe permitia ser seu esposo. Itobad voltou à casa, onde obrigava
Os magos perguntaram depois: "Qual é a coisa que se toda a gente a trata-lo por Monsenhor. Zadig foi proclamado
ecebe sem agradecer, de que se goza sem saber como, que se rei, e foi feliz. Tinhapresenteao espíritoo queIhe disserao
dá aos outros quando não' sabemos a quantas andamos, e que anjo Jesrad. Recordava-semesmodo grão de areia transfor-
perdemos sem saber como?: mado em diamante. A rainha e êle adoraram a Providência.
Todos deram uma resposta,mas só Zadig adivinhouque Zadig deixou a caprichosaMissuf correr mundo e mandou pro'
se tratava da vida. Conseguiuexplicartodos os outros enigmas, curar o bandidoArbogad, ao qual deu um postohonrosono
com a mesmafacilidade. ' Itobad dizia sempreque nada era seu exército, prometendo-lhe que o promoveria se se compor'
mais fácil e que êle também responderia a tudo, se. quisesse passecomo verdadeiro guerreiro e que o enforcada se voltasse
dar.se a êsse ir,galho. Surgiram perguntas sôbre .a justiça, o a ser bandido.
supremobem, a arte de !einai'....As respo.smas
de Zadig foram Setoc foi chamado do fundo da Arábía, com a bela Almona,
consideradasas mais sólidas. "É pena, dizia-se,
) que um espi' ficando à testa do comércio da Babilânia. Cador ganhou um
rito tão perfeitoseja um tão mau cavaleiro.
"Ilustres senhores, interveio então Zadig. Eu tive a honra (83) Chama-separte forte da espadaaquela que fica mais perto
de vencer o combate travado na liça. A armadura branca é a do punho e, parte fraca, a que fica junto à ponta.
82 ROAIANCES E CONTOS ZADIG, ]E]IISTÓRIA ORIENTAL 83

lugar de acordocom os seusserviçose foi sempremuito que- APÊNDICE


rido. Era amigo do rei; Zadig era, mesmo, o único monarca da
terra que tinha um amigo. O anão.mudo. não foi esquecido.
O pescadorrecebeuuma'belacasa. Orcanfoi condenado a pa- A DANÇA B5
;-lhe uma importância elevada e a devolver-lhe a mulher. O
A fim de tratar de assuntos referentes ao seu comércio,
pescador porém, avisadamente, aceitou apenas o dinheiro.
A bela remira nunca se consolou de ter julgado que Zadig Setoctinlla que deslocar-seà ilha de Serendib86; como, porém,
se encontravano primeiro mês de casamentoque é como se
seria zarolho, nem Azora por ter querido cortar-lhe o nariz. O sabe, o da lua de mel, isso não Ihe permitiadeixar sua mu-
rei abrandou-lhes
as dores com presentes. O invejosomorreu lher, nem mes.mopensar que pudessejamais deixa-la. Pediu, en-
de vergonha e de raiva. O império gozou paz, glória e.abun- tão, a seu amigoZadig que fizessea viagempor êle. "Será
dância' foi o mais belo século da terra, governadacom justiça
preciso,então, exclamouZadig, que mais uma vez eu me afaste
e amor. O povobendiziaZadig e êstebendiziao céu 84 da bela Astartéia? Devo, no entanto, servir os meus benfei-
tores." Dito isto, chorou e partiu.
(84) A edição de Kehl acrescenta aqui.a seguinte nota, que atri- Pouco tempo depois de ter chegado à ilha de Serendib já era
bui a Voltaire: "Aqui termina o manuscrito que se .achou, com. a considerado um homem extraordinário. Tornou-se o árbitro de
história de Zadig. Estes dois capítulos devem sem dúvida. ser colo-
cados depois do duodécimo e antes da chegada.de Zadig à Síria: sab.e-se todas as divergênciasentre os negociantes,o amigo dos sábios,
que passou por muitas outras aventuras que foram. fielmente, descritas. o conselheiro do pequeno número de pessoas que aceitavam con-
Pede-se aos senhoresintérpretesdas línguas orientais que no-las comu- selhos. O rei quis vê-loe ouvi-lo. Percebeulogo o valor de
niquem se chegarem ao seu conhecimento. Zadig; confiouna sua sabedoriae tornou-se
seu amigo. A
familiaridade e a estima do rei atemorizaramZadig que, noite
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dos Enígrnas, mas como a segunda frase os embaraçava, propuseram,
e dia, se recordava da infelicidade que caíra sabre sua cabeça
em conseqüência das bondades de Moabdar. "A verdade é que
numa errata. a sua supressão: St prima estas pczZauras.que. escaparam o rei gosta de mim. Estarei perdido?" Não podia, entre-
par êTro'na nota. Tvatauase de uma advertênciaao tipógrafopata que tanto, esquivar-se às gentilezas de Sua Majestade. Na verdade,
colocasseêssesdois capítulosacrescentados
pelo autor à sua obra. Nabussan.rei de Serendib,filho de Nussanab,filho de Nabas-
A nota da edição de Kehl pode muito..bem ser de Voltaire;..os sun, filho de Sanbusna,era um dos melhorespríncipesda Agia.
editores
de Kehl não tinhamqualquerrazãopara procurarem
difi-
culdades. escrevendo das
o ''capítulo 'duodécimo'', enquanto o capítulo Quandocom êle se conversav.a era difícil não o amar.
Eníreuisfas depois do qual intercalaram os dois capítulos póstumos, é o Êste bom príncipe era lisonjeado, enganado e roubado por
décimo-terceiro
da sua edição. Entretanto,se a nota é de Voltaire, só

ÜiÜ$i# iWi?\=:'ii.U::TENS
todos, que, à porfia, pilhavam os seus tesouros. O tesoureiro
geral da ilha de Serendib era quem dava o exemplo da pilha-
gem,seguidofielmente
pelosoutros. O rei sabiadistoe já mu-
capítulo dos /uZgamenfos(cap. VI) e suprimiu a numeração dos capa' dara de tesoureiro várias vêzes, sem conseguir, entretanto, mo-
tules. Isso provaria, portanto : dificar o sistema estabelecido de divisão dos rendimentos reais
1.Q Que Z l)arzfa e Os Olhos Zzziis foram compostosantes de em duas metadesdesiguais:a menor cabia semprea Sua Ma-
1756
2.ç Que Voltaire nunca pensouem publicar êstesdois capítulos; jestade e a maior aos seus administradores.
O rei Nabussanconfiouum dia seuscuidadosa Zadig. "Vós,

nl) BW#$:UlilBãHI
dois capítulos, tê-los'ía' indicado. também ..em .apêndice, como as duas
aventuras acrescentadasà história de Zadig, deixando supor, como m-
que conheceis tão belas coisas, disse-lhe, não arranjareís um
meio que me permita encontrar um tesoureiro que não roube?

(85) Êste capítulo e o seguintefiguram apenas na edição de Kehl


dica na sua nota, que poderiamacrescentar-se
outros episódiosà narra- (86) leilão e talvez Samatra.
tiva, sem serem 'forçosamente intercalados nela.
ROA{ANCES E CONTOS ZADIG, IIISTÓRIA ORIENTAL 85
84

"Certamente, respondeu Zadig, conheço uma forma infalível multas 87. Deu assim provas da maior justiça do mundo. Nos
de encontrar um' homem de mãos limpas". O rei, encantado, momentosque haviam passado na galeria, todos tinham enchi-
abraçou o e perguntou-lhe como devia proceder. "Basta man-
\

do os bolsos,de tal forma que mal podiam andar. O rei ficou


dar dançar na vossa presença todos os que se candidatarem muitomagoadocom a naturezahumana,ao ver que dos ses-
ao cargo de tesoureiro. O que o fizer com mais leveza será infa- senta e quatro dançarinos, sessenta e três eram gatunos. A
livelmenteo mais honesto''. "Troçais de mím, disse-lheo rei. galeriaescurafoi denominada
corredorda fenMçãa. Se o caso
Que maneira estranha de encontrar um tesoureiro: Então pen- se passasse na Pérsia êsses sessenta e três senhores teriam sido
saís que aquêleque melhor fizer um erzlrzcÃalserá o mais ínte- empolados. Noutros países ter-se-ia nomeado um tribunal de
e' o m;is hábil financista?" "Não .garanto,que seja o mais justiça 88, que consumiria em custas o triplo do dinheiro rou-
hábil. Mas asseguro-vosque será indubitàvelmente
o homem bado'e que nada reportanos cofres do soberano. Noutro reino
mais honesto." Zadig falava com tanta confiançaque. o rei ainda, teriam conseguido justificar-se totalmente e lançar em
julgou que êle possuísse qlalqupr segrêdo sobrenatural para desgraça o dançarino das pernas ligeiras. Em Serendib, porém,
conhecer' os tesoureiros. "Não gosto das coisas sobrenaturais, foram condenados apenas a aumentar o tesouro público, o que
explicou-lhe Zadig, as pessoas e os livros prodigiosos sempre demonstra a indulgência de Nabussan.
me desagradaram:Se Vossa Majestadequer da!-me o prazer Por outro lado, o rei manifestavao seu reconhecimentocom
de mandar realizar a experiência que Ihe proponho, convences-
liberalidade. Assim, deu a Zadíg uma importânciaainda mais
se-á de que o meu segrêdoé a coi;a mais simplese. a mais.fá- elevada do que aquela que qualquer tesoureiro jamais roub.ou
cil." Nabussan,Tei de Serendib,ficou mais espantadoao saber ao rei, seu senhor. Zadig aproveitou
êstedinheiropara enviar
que êste segrêdo era tão simples, do .blueficaria se o caso Ihe correios expressos à Babilânia a fim de Ihe informarem como
tivesse sido' apresentadocomo um milagre. "Pois bem, disse passava Astartéia. A sua voz tremia ao dar-lhes esta ordem, o
a Zadig, procedemcomo quiserdes." "Deixai-me?. pois, agir; ganha
reis mais do que pensais com esta experiência.' sangue afluía-lhe ao coração, os olhos cobriam se-lhe de trevas
e a sua alma pareciaprestesa abandona-lo.O correiopartiu,
Nesse mesmo dia, Zadig mandou tornar público, em nome Zadig viu-o embarcar e regressouao palácio do rei. AÍ, não
do rei, que todos os que desejassemconcorrer !o tl?rgo de Tesou- vendo ninguém,julgando estar no seu quarto, pronunciou a .pa'
reiro das Finanças de Sua graciosa MajestadeNabussan,filho lavra amor. "Ah!'o amor, disse o rei, intervindo. É precisa-
de Nussanab,deviamapresentar-se vestidoscom trajes de sêda mente disso que se trata. Adivinhastes a causa do meu des-
leve, no primeiro dia da lua do crocodilo, na antecâmarado rei. gasto. Que grande homem sois! Espero que me ensineis .a
Apresentaram-se sessenta e quatro candidatos. Os músicos fica- conhecer 'uma mulher de toda a confiança, como me haveis
ram instaladosnuma sala ao lado. Tudo estavapreparadopara feito encontrar um tesoureiro honesto." Zadig, voltando a sí,
o baile. Entretanto, a porta do salão estava fechada e, para en' prometeu servi-lo no amor, como o servira nas finanças, em-
trai, era preciso passar por uma pequena galeria bastante escura. bora a coisa Ihe parecesseainda mais difícil.
Um porteirovinha buscarcadacandidatoe dirigia-opara esta
galeria, onde ficava sózinho durante alguns minutos. O rei, ins-
truído por Zadig, espalharatodos os seus tesourosnesta passa' } OS OLHOS AZUIS
gem. Quando todo; os pretendentes.já se achavam instalados
no salão, Sua Majestademandou-osdançar. Nunca se dançou "0 corpo e o coração. . .", disse o rei a Zadig. Ao ouvir
com tanta falta de graça e de leveza. Todos os pretendentesse estas palavras o babilânio não pôde deixar de interrompe'.Sua
agitavam, de cabeça baixa, rins curvos! mãos colada? ao corpo Majestade. . "Como vos agradeço, disse, por não perdesdito:
"Que velhacosl" murmurava Zadíg. SÓ um se deslocava com
l
agilidade, de cabeça erguida, olhar seguro, .com os braços esten- (87) Isto é, que os submete a um imposto especial que serve dc
didos, o corpo direito,'as pernas firmes. "É êste o homem ho- multa.
nesto,o homembom!" diziaZadig. O rei abraçouo bomdan- (88) As câmaras de justiça tinham por missão !ecuperar, sob
çaHno, nomeou-o tesoureiro e castigou os outros aplicando-lhes a forma'de taxa, o dinheiroque os acusadostinham roubado.
ZADIG, IIISTÓRIA ORIENTAL 87
86 ROMANCES B CONTOS

o espírílo e o coraçãol89 Pois só se ouvemestaspalavrasnas Apresentaram-lhe


então os dois pajens. m?is bonitos, mas ela
conversasem Babilânia. SÓ se vêemlivros em que se fala do afirmou que achava o rei ainda mais belo do que êles. O mais
coração e do espírito, escritos por pessoas que não têm nem um
+

eloqüente' dos bonzos bem como o mais intrépido tentaram


nem outro. Mas por favor, Sire, prossegui." Nabussancontinuou também a sua sorte; mas ela achou o primeiro muito tagarela
assim: "0 meucorpoe o meucoraçãodestinam-se
a amar; o e nem se dignou apreciar os méritos do segundo. "0 .cora-
primeiro tem toda a razão de estar satisfeito. Possuo aqui cem ção faz tudo,'comentavaela; nunca cederem,
nem ao ouro de um
mulheres, a meu serviço, todas belas, complacentes,meigas, volup- corcunda, nem às graças de um jovem, nem às seduçõesde um
tuosasmesmo,ou fingindosê-lo. Mas o meu coraçãonão é gonzo: amaremùnicamenteNabussan,filho de Nussanab,e espe-
feliz, longe disso. Verifiquei demais que se acaricia muito rarei que se digne amar-me". O rei ficou transportado.de ale-
o rei de Serendibe que se negligenciaNabussan. Isto não sig- gria, de espanto e de ternura. Recobrou todo .o dinheiro .que
constituíra'a razão do êxito dos corcundase ofereceu-oà bela
nifica que eu pense que minhas mulheres são infiéis; mas gos-
taria de achar uma alma que me pertencesse;daria, por êsse Falide,que tal era o nomeda j(!yem. Of51receu-lhetambém.seu
tesouro,as cem belezascujos encantospossuo- Vêde, pois. se coração,'que ela bem merecia.' Nunca a flor da juventude.tara
entre as cem sultanasme encontraisuma pela qual eu tenha a tão brilhante, nunca os encantosda beleza foram tão tentadores.
certezade ser amado. A verdade da história não nos permite esconderque ela fazia
mal as reverências; mas dançava como as fadas, cantava como
Zadig respondeu-lhecomo fizera quandoresolveuo pro' as sereiase falavacomoas Graças. Era um repositóriode ta-
blema dos financistas: "Site, deixai-me proceder; em primeiro lentos e virtudes.
lugar, permiti-medispor das riquezas que utilizei na galeria da
tentação;prestar-vos
ei boa conta e nada perdereiscom isto. Nabussan, que era amado, adorava-a. Mais Falide tinha
olhos azuis e isso constituiu a fonte das maiores desgraças. Ha-
O rei deu-lhe carta branca. Zadig escolheuem Serendib trinta e
três corcundasdos mais feios, trinta e três pajensdos mais via uma lei, muito antiga, que proibia aos reis apaixonarem-se
belos. e trinta e três bonzos90 dos mais eloqüentese mais ro por uma mulherdo tipo daquelasa que os gregos,mais tarde,
chamariam boopias91. O chefe dos bonzos promulgará essa
bustos. Conseguiu,para todos, uma licença que lhes permi lei há mais de cinco mil anos. Êste primeirogonzofizera en-
tia entrar nos quartos das sultanas. Os corcundinha? di?pu- trar tal anátema contra os olhos azuis na constituição fundamen-
nham, cada um, de quatromil moedasde ouro para distribuí- tal do Estadoa fim de se apoderarda amantedo primeirorei
rem como quisessem;e logo no primeiro dia todos os corcun- da ilha de Serendib. Todas as ordens do Império apresenta-
das conseguirama felicidadeque almejavam. Os pajens, que ram a Nabussanas suas queixas. Dizia-sepublicamente
que
nadem
tinham para oferecer, além do seu próprio corpo, só triun- haviam chegado aos últimos dias do reino, que a abominação
faramao fim de dois ou três dias. Os bonzostiverammais
dificuldade. No entanto. trinta e três devotas consentiram, final- atingira o cúmulo, que toda a natureza estava .ameaçada.por um
acontecimento sinistro; que, numa palavra, Nabussan, filho de
mente.em entregar-se-lhes. O rei assistiu a todas estas peripé- Nussanab, amava dois grandes olhos azuis. Os corcundas, os
cias por uns orifícios existentesnas paredesde todos os quar- financistas, os bonzos e as morenas enchiam o reino com suas
tos, e ficou espantado. De suas cem mulheres, viu noventa
lamentações.
e nove sucumbirem. Sobrouuma, muito jovem, de quem Sua
}

Majestade nunca se aproximara. Enviaram-lheum, dois, três Os povosselvagensque habitam ao norte de Serendib.apro-
corcundas, que chegaram a oferecer-lhe vinte mil moedas. Ela veitaram êstedescontentamelato
geral e irromperam nos Estados da
não se deixou corrompere até ria ao ver que estescorcundas bom Nabussan,que pediu subsídiosaos seus súditos,.e os gon-
pensavamque o dinheiro lhes daria um corpo mais bem feito. zos, andara possuíssem metade dos rendimentos do Estado,
b contentaram-seem erguer as mãos ao céu e recusaram-sea metê-

(89) Expressão de Rollin, dc que Voltaire troçou muitas vêzes


Cf. O'HOMEB[ DOS Ç)UARENTA ESGUOOS, VOI. II, n. 75. (91) Boopio significa em grego de olhos de para (com grazzdes
aJAof) e não com oZÀos azzlis.
(90) Isto é, monges.
88 ROMANCES E CONTOS

las nos cofres a fim de auxiliarem o rei. Fizeram belaspreces,


com acompanhamento
musicale deixaramo Estado prêsa dos
bárbaros. +

"ó meu caro Zadig, conseguirás ]ivrar-me desta horrível


situação?" exclamou dolorosamente Nabussan. "Procurarei au-
xiliapvos de muito boa vontade. Conseguireisdos bonzos todo O MIJNDO TAI, (')UAI.
-( - '-- É
'
o dinheiro que quiserdes: abandonamas terras onde ficam situa-
dos seus castelose defendem apenasas vossas". Nabussanpro'
cedeu assim, e os bonzos vieram lançar-se aos seus pés, implo- VISÃO DE BABUC
rando sua assistência. O rei respondeu-lhestocando uma linda ESCRITA POR ÊLE MESMO 92
música, cuja letra era uma prece ao céu, pedindo a conserva-
ção das terras dos bonzos. Finalmente, êsses deram o dinheiro
e o rei conseguiu
concluira guerracombomresultado.Assim
Zadig, com seus conselhosavisados e felizes, com os grandes
serviços que prestava, conseguiu atrair a irreconciliável inimi-
E NTRE os gêniosque presidemaos impérios do mundo, Itu-
riel ocupa um dos. primeiros lugares; pertence-lhe o departa-
zade dos homens mais poderosos do Estado. Os bonzos e as mento da Alta Ária. Certa manhã foi visitar B=abuc,habitante
morenas juraram sua perda; os finaneistas e os corcundas não o da Cítia, às margens do Oxo, e disse-lhe: "Babuc, as loucuras
poupavam; todos procuravam torna-lo suspeito ao bom Na- e os excessosdos persas provocaram a nossa cólera: reuniu-se
bussan. Os serviços prestados não passam muitas vêzes da ante- ontemuma assembleiados gêniosda Alta Ária, a fim de resol-
câmara e as suspeitas entram pelo gabinete do rei: êste conceito ver se Persépolisdeve ser castigadaou destruída. Vai, pois,
vem numa sentençade Zoroastro. Todosos dias surgemnovas a essa cidade e examina tudo; depois virás fazer-me fiel rela-
acusações: a primeira é rechaçada, a segunda atinge levemente to, e então verei, pelo que disseres, se o ca:se é de corrigir
o objetivo, a terceira fere e a quarta mata. ou de exterminar a cidade." "Mas. Senhor. disse humildemente
Zadig, intimidado, e vendo que já resolvera os negócios Babuc, nunca estive na Pérsia, e não conheçolá ninguém." "Tan-
de seu amigo Setoc, defendendo o seu dinheiro, só pensou em to melhor, disse o anjo, estarás livre de qualquer parciali-
partir da ilha, o mais depressa possível. Decidiu ir, pessoal- dade; recebeste do céu o discernimento, acrescento-te agora o dom
mente, saber notícias de Astartéia. "Se ficar em Serendib, os de inspirar confiança; vai, olha, escuta,observa e nada temas;
gonzos conseguem mandar-me empalar. Mas, para onde ir? serás bem recebido em toda a parte."
Serei escravo no Egito, serei queimado,segundotudo indica, Babuc montou seu camelo e partiu com seus servidores. Ao
na Arábia, serei estrangu]ado na Babi]ânia. ]:ntretanto, pre- fim de algunsdias encontrou,junto às planíciesde Senaar,o
ciso saber como se acha Astartéia; partamose vejamos o que
me reserva o meu triste destino.
(92) Publicado pela primeira vez em 1748 em Oeziore de .ã/r.
l de yoZfare, tomo Vlll
O conto reapareceu
(editor George Conrad Walther, Dresde).
com o título de Babouc ou ie iWo?zde com-
me i! ua, ba Recue l ãe Fiàces en uers et en ose paT Í'auteuTde ta
fragéde de Semiramis (datado de 1750, mas na realidade de 1749).
Em 1756, a Szzifedei il/éla7zges
de Zifférafure,d'Ãisfoire etc., tomo
V da CoZ/ecfion. complêfe des oezlz,rei de .4/r. de }''olfaire (editor Cra-
mer, Genebra) retomao contocom o título de 1748, que se tornou
o definitivo.
O conto, como o Carregador ZapolÀo e Comi-Sanefa,foi escrito se-
gundo geralmente se supõe, durante a permanência de Voltaire em
Sceaux,em casa da Duquesadu Maine, em novembro-dezembro
de
1747. Persépolis representa Paras.
90 ROMANCES E CONTOS O MUNDO
TAL QUALÉ 91

exército persa que ia dar combate às fôrças da índia. Dirigiu-se a dar início a uma batalha, que foi sangrenta. Babuc ficou bem
p:romeiroa um soldado,que se achavaum poucoafastadoda a par de todos os erros e de todas as abomínações; foi. teste-
tropa, e perguntou-lhe
qual o motivo da guerra. "Por todos munha das manobras dos principais sátrapas, os quais fizeram
os deuses, respondeu o soldado, não sei dizê-lo; não trato disso; tudo para que seus próprioschefesfossemderrotados. Viu
meu ofício é matare morrer para ganhara vida; poucome oficiais mortos pelas suas próprias tropas; viu soldadosque
importa saber a quem sirvo. Seria capaz até de me passar ama- acabavam de degolar seus camaradas moribundos com o fím
nhã para o lado dos hindus, porque, segundodizem, êles pagam de arrancar-lhesalgunstrapos sangrentose cobertosde lama.
aos seus soldados, por día, quase meia dracma de cobre a mais Entrou nos hospitaispara onde eram transportadosos feridos,
do que recebemos dêstes amaldiçoados persas. Se o senhor quer a maioria dos quais expirava, por desumananegligênciadaqueles
saber por que nos batemos, fale ao meu capitão." a quem o rei' da Pérsía pagava fartamente para soco!!ê-los.
"Estarei em presençade homensou de animaisferozes?', ex-
Babuc, depois de dar um pequeno presente ao soldado, en- clamouBabu;. "Ah! estoucerto de que Persépolisserá des-
trou no acampamento. truída l
Travou logo relaçõescom o capitão e perguntou-lheo Preocupado com êste pensamento, passou para o acampa'
motivo da guerra. "Como quer o senhorque eu saiba? disse mentodos hindus, onde foi tão bem recebidocomo no dos per-
o capitão, e demais, que me importa o motivo? Moro a duzen- sas, segundo fará predito; mas entre os hindus encontrou
tas lêguas de Persépolis; ouvi dizer que a guerra foi declarada; os mesmosexcessosque tanto o horrorizavain. "Ah!, disse
abandonei imediatamenteminha família e, segundo nosso costu- consigo mesmo, se o anjo Ituriel quer exterminar os persas, é
me, vou procurar a fortuna ou a morte, pois nada mais tenho precisoque o anjo das índias destruatambémos hindus."
que fazer." "A/las seus camaradas, continuou Babuc, não estarão Informando-sedepois mais minuciosamentedo que se passava
um poucomais a par dos acontecimentos?""Não, replicouo num e noutro exército, soube de ates de generosidade, de gran-
oficial; só os nossos sátrapas principais sabem com certeza por deza de alma, de humanidade, que provocaram sua admiração
que nos chacinamosmutuamente." Babuc, admlirad?,.introdu- e encantamento. "Inexplicável humanidade", exclamou êle, como
ziu-se entre os generais e conquistou a eua familiaridade. Um
pode reunir tanta "Bãixõíã''ê''tâiitb ''gran(reza? ..tantas xnrUdes .e
dêles disse-lhe enfim: "A causa desta guerra, que há vinte
taíitós' criihés ?
anos assola a Ária, vem originàriamentede uma querela entre
o eunucode uma concubinado grande rei dos persas e um secre- Entretanto" a paz foi declarada. Os chefes dos exércitos,
tário do granderei das índias. Tratava-sede um direitoque nenhum dos quais conseguiraalcançar a vitória, tens?, ùnica-
importavamais ou menosna trigésimaparte de um dárico..O mente por seu interêsse pessoal, derramado o sangue de tantos
prnneiro-ministro das Índias e o nosso sustentaram dígnameTte de seus semelhantes, voltaram para suas cortes a fim de pleitea-
os direitos de seussenhores. A questãotornou-secandente. De rem recompensas. Celebrou-sea paz em escritospúblicos, que
anunciavarÉ a volta da virtude e da felicidade à terra. "Deus seja
um lado e do outro puseramem campo um exércitode um mi-
lhão de soldados. É preciso recrutar cada ano mais de qua- louvado!,disse Babuc; Persépolisserá a habitaçãoda mais
trocentosmil homens. As mortes,os incêndios,as ruínas,as pura inocênciae não será destruídacomo queriam.êssesgênios
devastações multiplicam-ge, todo mundo sofre e o encarniça- maus; cortamossemtardançaa essacapitalda Àsia."
mento continua. O nosso primeiro-ministro, bem como o das Chegou a essa imensa cidade pela. porta ant!$a?.de aspecto
índias, afirmam freqüentementeque só agem visando a feli- bárbaro, ae uúa'-rusticidade que impressionavãTdesagradàvel-
cidadedo gênerohumano;e a cada protestosegue-se
logo a mente93. Toda esta parte da cidade ressentia-sede defeitosdo
destruição de alguma cidade e a devastação de algumas pro'
vindas.
(93) "Entrou (em Paras) pelo arrabalde de Saint:Marceau, e
No dia seguinte,tendoseespalhadoo boato de que a julgou encontrar-se
na mais feia aldeia da Vestfália" (CÂNnrno,cap
paz ia ser assinada, o general persa e o general hindu apressaram-se XXII) .
O MUNDO TAL QUAL E 93
92 1{0AIANCES E CONTOS

de mal colocadas94,davam na vista pela sua beleza; praças


tempo em que fera construída; porque malgrado a obstinação
doshomensem elogiaras coisas as e menosprezar
as lno- onde pareciam respirar no bronze os melhores reis95 que
'dêrãas;"'ê'Íiãiii=-cbhfessaíque;''êm' tudo, os'primeiros ensaios
f tinham governado a Pérsia; outras praças em que ouvia o povo
gritar: ''Quando veremos aqui nosso querido senhor?" 96. Ad-
sao sempre grosseiros.
mirou as magníficaspontesconstruídassabre o rio, os cais so-
Babuc mistul'ou-seà multidão, composta do que pode haver berbos e cómodos, os palácios que se erguiam à direita e à
clo mais sórdido e mais feio em ambos os sexos. Essa multi- esquerda, e uma casa imensa onde milhares de velhos soldados,
dão precipitava-se
com um ar aparvalhado
para um vasto e cheios de gloriosas cicatrizese muitas vitórias, rendiam graças
sombrio recinto. O zunzum contínuo, o movimento que notou, ao Deus dos exércitos97todos os dias. Entrou, enfim, na
o dinheiroque algumaspessoasdavama outras para ter o casa da dama que o esperavapara jantar, em companhiade
direito de sentar-selevaram-noa conjecturar que se achava num gente agradável. A casa era esmeradae elegante; o jantar,
mercado onde se vendiam cadeiras de palha; mas, depois ;delicioso; a dama, jovem, bela, inteligente, insinuante; a com-
vendomulheresque se punham de joelhos, fingindo olhar fixa- panhia, digna dela; e a todo momentoBabuc dizia.consigo
mente para diante, porém na realidade olhando com o canto mesmo: "Certamenteo anjo Ituriel está fazendotroça da gente,
dos olhospara os homensque se achavamao lado, êle verifi- se na verdade quer destruir uma cidade tão encantadora."
cou que estava num templo. Vozes ásperas, roucas, selvagens,
discordantes, faziam ecoar nas abóbadas sons mal articulados, Entretantonotou que a dama, que começarapor pedir-lhe
que lembravamos zurros dos onagrosquandorespondem,nas ternamentenotícias de seu marido, falava ainda mais terna-
planícies dos Pictavos, à cornotínha dos que os chamam. Tapou mente,ao fim do jantar, a um jovem mago. Viu um magis-
os ouvidos,mas estêvea pontode tapar tambémos olhose o trado que fazia, na presençade sua própria esposa, a côrte a
nariz quandoviu entrar no templooperárioscom alavancase umaviúva; esta,indulgentemente,puserauma das mãosno pes'
pás. Removeram umagrandepedrae atiraramà direitae à es- coco do magistrado,ao passo que entregavaa ostra ? um J.o'
querda uma terra de que se exalava pestilento fedor; enterra- vem cidadão, de grande belezae modéstia. A mulher do magis-
ram um mortona cova e tornarama pâr a pedraem cima. trado foi a primeira a retirar-se da mesa, a fim de conversar
"Que coisa!, exclamava Babuc, esta gente enterra seus mortos num gabinetevizinho com o seu diretor espiritual, que chegara
nos mesmos lugares onde adora a Divindade! Seus templos muito tarde, depois de se fazer esperar para o banquete; e o
estão como que calçados de cadáveres! Não me admiro mais diretor, homem eloquente, falou-lhe nesse gabinete com tanta
das pestes que frequentemente assolam Persépolis. A podridão veemênciae unção que a dama, ao voltar, tinha os olhos ami-
do; mortos e o cheiro infecto de tantos homens que se compri- dos, as faces rubras, o andar incerto, a voz trêmula.
mem no mesmolugar é suficientepara envenenara totalidade Então Babuc começoua pensar que o gênio Ituriel talvez
do globoterrestre. Ahl AbominávelPersépolis! É bem possí- tivesse razão. O talento que possuía de inspirar confiança Ihe
vel que os anjos queiramdestrua-la,
a fim de edificaruma permitiu desde o primeiro dia inteirar-se dos segredos.da dama,
cidade mais bela, povoadade gentemais limpa e que cante que Ihe confessouque gostavado jovemmago, e afirm.ou.que
melhor. A Providência há de ter suas razões; deixemos-lhe, em tôdas as casas de Persépolis êle encontraria o equivalente
pois, o desenrolar dos acontecimentos. do que vira na sua. Babuc concluiu que uma tal socíe-

Entretanlo o sol estava quase a pino. Babuc tinha de jantar (94) No Cczfa/agua des arf;sfes céZêbres du s êc/e de Louis .Y/y
no outro extremo da cidade, em casa de uma dama. O marido (verá;ete'
Scu/pfetifs),Voltaireesclareceque se trata da fonteda rua
Grenelle, /aubotll'gSaint-Germain, e da fonte dos Inocentes, no cru-
desta senhora, oficial do exército, dera a Babuc algumas cartas zamento das ruas Aux Fers e Saint-Denis.
de apresentação para sua mulher. Deu antes algumas voltas (95) Henrique IV, Luas Xlll e Luas XIV.
por Pel'sépolis; viu então outros templos mais bem construídos l96) Luas XV. Em 1748, a cidade de Paria decidiu dedicar
e Ornamentados,
cheiosde gentedelicada,onde se ouvia uma uma estátua a êste rei, que foi erigida em 1763.
(97) Trata-se do chamado Hotel des Invalidez
músicalharmoniosa; notou as fontes públicas que, apesar
94 ROMANCES E CONTOS O MUNDO
TAL QUALÉ 95

dado não podia subsistir; o ciúme, a discórdia, a vingança de- que é a guerra e o que são as leis e que, mesmo que Ituriel
viam perturbar a vida de tôdas as famílias; lágrimas e san- não exterminasse êsse povo, teria êle de perecer em conseqüên
gue deviam correr todos os dias; os maridos certamentehaviam cia de sua detestável administração.
de matar os amantesde suas mulheresou seremmortos por Sua má opiniãoaumentou
aindacom a chegadade um
estes. Ituriel fazia muito bem em destruir de vez uma cidade gordo senhor que, tendo cumprimentado familiarmente toda a
dominada pela perpétua desordem. companhia, aproximou-se do jovem oficial e disse-lhe: "Não
posso emprestar-lhemais de cinqüenta mil dáricos de ouro, por'
Estava êle mergulhado nestes tétricos pensamentos, quando que, digo-lhe, a alfândega do império não me rendeu êste ano
se apresentouà porta um homemgrave, de capa negra, pedindo mais que trezentosmil dáricos". Babuc perguntouquem era
humildemente licençapara falar ao jovem magistrado. Êste, êsse homem que se queixava de ganhar tão pouco, e soube que
sem se levantar,sem olha-lo,entregou-lhe
uns papéis, com al' havia em Persépolisquarenta98 reis plebeusque tinham arren-
de superioridade e distração, e despediu-o. Babuc perguntou dado o Império Persa e pelo arrendamentodavam alguma coisa
quemera o homem. A donada casa disse-lhe
ao ouvido: "É ao monarca.
um dos melhoresadvogadosda cidade; há cinqüentaanos que
estudaleis. O outro, que não tem mais de vinte e cinco anos Depoisdo jantar dirigiu-sea um dos mais soberbostem-
e que há dois diasfoi nomeadosátrapada lei, ordenou-lhe
que plos da' cidade; sentou-seno meio da multidãode homense
fizesse o extrato de um processo que deve julgar amanhã e que mulheres que ali estava a passar o tempo Apareceu um mago,
ainda não examinou." "Êsse jovem estouvadofaz bem de num lugar mais elevado,e discorreulargamentesabre o vício
pedir conselhoa um velho,disseBabuc; mas por que razão e a virtude; dividiu em várias partes o que não tinha neces-
não nomeiamjuiz ao velho?" "O' senhorestá caçoando,disse- sidadede ser dividido; provou metodicamente
o que já era de
ram-lhe; os que envelhecem nos trabalhos difíceis e subalter- si bem claro, ensinou o que todo o mundo já sabia. Assumiu
nos jamais alcançamos postos de dignidade. Êsse maço tem atitudes de quem se apaixonava pelo assunto, mas de coração
tão alta colocaçãoporque o pai é rico, e aqui o direito de dis- frio, e retirou-se sem fôlego, a transpirar. Toda a assistência
tribuir justiça é coisa que se compra, como uma quinta." ''Que então acordou e todos imaginaram ter ouvido um discurso muito
costumesl Que infeliz cidades, exclamouBabuc; é o cúmulo instrutivo. Babuc disse: "Eis um homemque se esforçouo
da desordem; sem dúvida os que compram o direito de julgar, mais possível para encher de tédio a duzentos ou trezentos
vendem as suas sentenças: são abismos de iniqüidade que eu concidadãos seus; mas a intenção era boa; aí não se encontrará
vejo aqui. motivo para a destruição de Persépolis."
Expl'imundo
êle dêssemodo sua dor e sua surprêsa,um Ao sair dessa reunião conduziram-no a um divertimento
jovem guerreiro, que chegara naquele mesmo dia do ajam públicoque ocorria todosos dias do ano; era numa es-
lamento, disse-lhe: "Por que pensa o senhorque as fun- pécie de basílica, no fundo da qual se divisava um. palácio. As
çõesde juiz não devemser compradas? Eu compreicom meu mais belas mulheres de Persépolis, os sátrapas mais graduados,
dinheiro o direito de enfrentar a morte à testa dos dois mil sentadosem ordem, formavam um espetáculotão belo que Ba-
homens que comando; gastei êste ano quarenta mil dóricos de buc a princípio julgou que toda a festa consistianisso. Duas
ouro para ter o direito de dormir no chão trinta noitessegui- ou três pessoas, que pareciam reis e rainhas, surgiram então
das, vestidode vermelho,e de receberduas frechadasde que no x-estíbulo
do palácio; a linguagemque usavamera muito
ainda não me durei completamente. Se eu me arruína para ser- diferente da do povo: era medida, harmoniosa e sublime.
vir ao imperador dos persas, a quem nunca vi, o senhor sátrapa Ninguém dortnia, todos ouviram em silêncio profundo, só
de boca pode muito bem pagar algumacoisa para ter o prazer interrompido pelas manifestações da sensibilidade e admi-
de dar audiência aos litigantes.'' Babuc, indignado, não podia
deixar de condenar um país onde se punham em leilão os mais (98) Antes de 1756, o texto dizia refenfa e dois. Trata-se dos
altos postos do exército e da jurisprudência; concluiu, precipi- arrecadadoresde impostosagrários, que eram quarenta em França até
tadamente,que reinava em Persépolis completaignorância sôbre o 1755, e que passaram a ser sessentamais tarde.
ROMANCES E CONTOS
O MUNDO
TAL QUALE 97
96

que promove o bom gôsto, a circulação das riquezas e a abun-


ração do público. O dever dos reis, o amor à virtude,o pe' dância. Vendo às naçõesvizinhasas mesmasbagatelaspo!
riba das paixões eram expressos em traços.tão vivos e tocantes preçosainda mais elevados,e com isso sou útil ao império."
que Babuc chegou a derramar lágrimas. Nao duvidou que êsses
'1

heróis e heroínas, êsses reis e rainhas que êle acabava de ouvir, Babuc, depois de meditar um pouco, riscou das suas tabuinhas
o nomedo negociante 99.
fossem os guias espirituais do Império. . Planejou conseguir
que Ituriel viesseouvi-los,certo de que tal espetáculoo recon- Babuc, ainda sem saber o que pensar de Persépolis,.resol-
ciliaria para semprecom a cidade. veu procurar os magos e os letrados; porque uns estudama
sabedoria e outros, a religião; esperava que êles pudessem obter
Quando a festa terminou,quis ver a principal rainha que, misericórdia em benefício do resto da população. Logo no dia
nessebelo palácio, ensinarauma tão nobre e pura moral: seguinte dirigiu-se a um colégio de magos. O arquimandrita
pediu que o levassema.Sua Majestade; conduziram-nopo' confessou-lhe que, por ter feito voto de pobreza, tinha cem mil
uma escadinhaao segundoandar, a um aposentoTlal .mo- escudos de renda e que, em virtude do seu voto de.humildade,
biliado. onde encontrouuma mulher mal vertida, que Ihe disse exercia um poder bastante extenso; depois disso, deixou..Babuc
com ar nobre e patético: "Êste ofício não me rende o neces- aos cuidadosde um religiosode ordem inferior, que Ihe fêz
sário para viver; um dos príncipes que.o senhor viu fêz-me as honrasda casa. Enquantoêsse irmão Ihe mostravaas
um filho; aproxima-se o tempo de eu dar à luz; não tenho magnificênciasdessa casa de penitência, correu.o. boato de que
dinheiro e sem dinheiro não se dá à luz". Babuc ofereceu-lhe Babuc vinha a fim de reformar todos os estabelecimentos
da-
cem dáricos de ouro, pensando:"Se fosse êsse o único mal
existentena cidade, Ituriel não teria razão para zangar-se.' quela espécie. Começou então a receber memórias..de todos
êles, memórias que, todas, diziam em substância: "Conserve-
Depois disso, um homem inteligente, com quem travara -nos e acabe caiu os outros." A dar crédito a suas apologias,
relações, conduziu-o, certa noite, à casa de um negociante todas essas sociedadeseram necessárias; a admitir as acusa-
que \endia magníficasinutilidades. . Comprou.tudo o que Ihe ções recíprocas que faziam, todas mereciam ser aniquiladas. #-
agradou e, com toda a cortesia, v?nde.ram-lheobjetos por {lreços mirou-se'de ver que entre elas não havia uma.sequer que não
muito superiores ao seu valor real. De volta, seu amigo .fêz-lhe desejasseter o domíniodo mundo,a'fim de refotMé-!o. Então
ver quanto o tinham logrado. Babuc .escreveu .numa. tabuinha isentou-se um homenzinho que-eTa-um; géÍriÍÍnâgo'i'ijüe Ihe
o nomedo negociante,para que, no dia da puniçãoda. cidade, disse: "Vejo que a obra vai cumprirse, .polqFe Zerdust 100
Ituriel pudessedistingui-lo. Enquanto escrevia,.bateram à porta; voltou à terra; as meninas profetizam, levando beliscões de pJrn-
ças, pela frente, e chicotadas,por trás 101. Por isso nós Ihe
Babuc esquecera sabre o balcão. "Como se explica, exclamou
Babuc, que o senhor seja tão fiel e generoso depois.de.ter-me (99) A edição de 1949 acrescentava: Porque.a/i7zai, dizia..êle?
vendido, sem o menor escrúpulo, uma porção de ninharias por as artes de luxo só são muita xumeTosas
neste império quando tôdas
preço quatro ou cinco vêzes'?uperior ao valor real?" "Nenhum as artesnecessárias
são exercidas
e a naçãoé bastante
povoada
e
opulenta.. ltuTiet padece-me unt taltto seoevo
negociante, um pouco conhecido desta cidade, seria capaz de deixar
de restituir sua balsa, disse o homem; por outro lado, engana- (100) Nome de Zoroastro.
(101) Alusão aos convulsionários: cf. Siêclf.df Loztis .Z/7, cap'
\

ram-no quando Ihe disseram que vendi os objetos por quatro 37 e' CÂNDIDA.
vol. 1, n. 263. O textode 1749acrescentava,
no
vêzes mais do que valiam; 'a verdadeé que o preço da lugar do que se segue: "É eoíde7zfe que o muzzdo uai.acabar; arzfes
vendafoi dezvêzessuperiorao valor real; e a provaé que se que chegueêsse feliz acontecimento,não l)aderia o senhor dar-nos a
daqui a um mês o senhor quiser revendê-losnão. achará quem sua proteçãocontra o Grande-Lama?" Que aranzel! disseBabuc.;con-
tra o GraTtde-Lama? Contra êsse pontífice-rei que reside no Tibete?"
dê nem a décimaparte. Mqs nada é mais justo;..É,g.pa::!galo Sâm, disse o pequenosemimagacom ar obstinado,contra êsse mesmo.
capricho dos homens que dá valor a essascoisasbnvolasÍ é êsse Então jazem os daqui guerra canETa êle, teuantant caneta êle exéT-
câpriclíõ' que 'Permite .ganhar a vida a cem operamos .a quem itos?" pevgulttou
Babuc. "Não, disse a .out70,mas escTeuemos
contra
dou trabalho;'é êle qúe\me permite possuir uma bonita casa, êZe três ozi guafro míZ grossos J aros que ni7zgziémJê, e outras fa?zfas
um cano cómodo e 'cavalos;' é êle que estimula a indústria, brorÀurai que obrigamosas mzlZAeresa Zer." Êle mal ouviu falar. ..
7
98 ROMANCES E CONTOS O MUNDOTAL QUAL É 99

pedimos a sua proteção contra o Grande-Lama." . .'Comoj.ssim?jl fome; e sátiras covardesem cluese elogiamos abutrese se es-
disse Babuc, contra êsse pontífice-reique reside no Tibete?" traçalhamas pombas; e i-omancessem imaginaçãoem que se
"Contra êle mesmo." "Então os daqui estão em guerra com encontram tantos retratos de mulheres que os autores jamais
êle. levantam contra êle exércitos?" "Não; mas êle diz que conheceram.
o homemé livre, e nós não cremosnisso; escrevemos
contra Atirou ao fogo êssesdetestáveisescritose saiu à tarde para
êlelivrinhos que êje não lê: êle mal ouviu falar de nós,.mas con espairecer. Apresentaram-lheum velho literato que não tinha
denou-nos com a displicência de uma pessoa que manda limpar vindo aumentar o número dos seus parasitas. Êsse homem
das lagartas as árvores de seu jardim". Babuc estremeciadiante evitava sempre as multidões: conhecia os homens, servia-se dê.
da loucura dêsses homens que faziam profissão de sabedoria, les, e conversavacom discrição. Babuc referiu-secom tristeza
diante das intrigas dos que'haviam renunciado ao mundo, da ao que acabarade ler e ao que vira.
ambição e orgulhosa cobiça dos que ensinavam a humildade e "0 senhor leu coisas bem desprezíveis,disse-lheo sábio
o desinterêsse;e concluiuque Ituriel tinha boas razões para
destruir essa raça. letrado; mas em todos os tempos, em todos os países, em todos
os gênerossuperabundao que é mau, ao passoque o bom é
O senhorrecebeuem sua casa os refugosde uma erudi-
Quando voltou à sua casa,.mandou buscar alguns livros ção pedantesca, porque em todas as profissões o que há de mais
novos com o fim de distrair-se dos seus desgostos, e convidou
indigno de apareceré sempreo que se apresentacom mais im-
uns poucos literatosa jantar, com o mesmoprop?sito. .Veio .o pudência. Os verdadeiros sábios vivem consigo mesmos, retira-
dobro do que êle convidara,como vêspasatraídaspelo mel; dos e tranqiiilos; há ainda, entre nós, homense livros dignos de
êsses parasitas comiam e falavam depressa; elogiavamduas atenção. Na ocasião em que assim falava aproximou-seum outro
espécies de pessoas -- os mortos e a. si mesmos; nunca poluem literato; sua conversa foi tão agradável e instrutiva, tão eleva-
os contemporâneos,
exceçãofeita ao donoda casa. Se um dêles
da e sempreconceitos, e tão conformeà virtude,que Babuc
dizia qualquer coisa interessante,. os outros baixavam os olhos e confessou jamais ter ouvido coisa parecida. "Eis aqui homens,
mordiam os lábios, raiando-sede raiva por não a terem dito.
Eram menosdissimulados
que os magos,porque suas am' dizia êle consigomesmo,em quem o anjo Ituriel não ousará
tocar, a não ser que seja verdadeiramente sem misericórdia."
bidões não tinham tão grandes objetivos: cada .um aspirava
a um lugar de lacaioe à reputaçãode grandehomem;,cara Reconciliado com os homens de letras, continuava, entre-
a cara trocavam insultos qüe julgavam ditos de espírito. tanto, indignado com o resto da nação. "0 senhor é estran-
Tinham sabido algo a respeitoda missão de Babuc. Um geiro, disse-lheo homemjudiciosa que Ihe falava; os abusos
dêlespediu-lheao ouvido que dessecabo de certo autor que, se apresentam em multidãoa seus olhos,e o bem que anda
havia 'cinco anos, não o elogiara suficientemente; um outro oculto, e que algumas vêzes resulta até de tais abusos, êsse, o
pediulhe a morte de um cidadão que nuns? ria, nas repre' senhornão o vê. Soube então que entre os literatosalguns
tentações de suas comédias; um terceiro desejava a . ex!!n havia que não eram invejosose que até entre os magos se en-
ção da Academia, porque nunca conseguira ser eleito. Ao.fim contravam pessoas virtuosas 102. Compreendeu afinal. Êsses
do jantar cada qual foi-seemborasõ;anho,l:orqueem toda a grandes corpos, que com seus choquespareciam preparar a
companhia não se encontravam dois que .pudessem suportar-se ruína comum, eram no fundo instituições salutares. Cada socie-
mutuamente, ou mesmo que pudessem falar um ao outro, a
não ser na casa dos ricos que os convidavampara suas.mesas (102) Texto de 1748-1749:Então êles o Zeoaramà casa
Babuc pensava que não se perderia.grande coisa quando essa do P nciPa17nago,queera chamadoo uigitaníe, Babuc z;iu nessemago
canalha' perecesse na destruição geral. üm homemdigno de estai à frente dos bustos. Soube que havia
mtiifos par cimos com êle. Compreendeu afinal.
Quando se viu livre dêles, pâs'se a ler alguns livros novos. O vigilante era o bispo (em grego eP rcopos: vigilante), ou antes,
Reconheceunos mesmos o espírito de seus convivas. Foi com o arcebispo de Pãris, Christophe de Beaumont, a quem Voltaire cen-
indignação que viu certas gazetas de maledicências, .certos arqui- surou, depois de 1750, por causa dos bilhetes de confissão: cf. Précis
vos do mau gasto, ditadospela inveja, pela baixeza e pela du s êrle de l,ozzfsX/y, cap. 36, e GÂNotoo,vol. 1, n. 239.
«.
100 ROMANCES E CONTOS O MUNDO
TAL QUALÉ 101

dado de magos era um freio às suas rivais; e se êsses êmulos hora, por meio dêles, o que não teria conseguidoem seis meses
divergiam nalgumas opiniões, ensinavam todos a mesma moral, pelas vias ordinárias; eram como grossas nuvens, infladas de
instruíam o povo e viviam submissos à lei como precepto- orvalho da terra, que restituíamem forma de chuva o que dela
res que educam o herdeiro da família, ao mesmo. tempo que haviam recebido. Aliás, os filhos dêsses novos cavalheiros,
são vigiados pelo chefe da casa. Conversou com alguns e des- muitas vêzes mais bem educados que os das famílias antigas,
cobriu almascelestiais. Soube que, mesmoentre os loucos que eram mais úteis à sociedadedo que êles; porque nada impede
pretendiam guerrear o Grande-Lama houvera grandes homens. que o filho de um homem que sabe fazer contas venha a ser
Suspeitou enfim que os costumes de Persépolis bem podiam um bom juiz, um soldado valente ou um hábil estadista.
ser comparáveisaos seus edifícios, entre os quais uns Ihe haviam
ido lastimáveis, ao passo que outros tinham provocado
Insensivelmente
Babuc se inclinavaa perdoara avidezdo
sua admiração. financista;no fundo não era mais ávido de dinheiroque os
outroshomense, além disso, era necessário. Desculpavaàs
Disse ao seu amigo letrado: "Concebo que êsses magos, pessoasa loucura de se arruinarema fim de compritro di-
que eu julgara tão perigosos,sejam na realidademuito úteis, reito de julgar ou combater,loucura que produzia grandesma
sobretudo quando um govêrno prudente impede que êles se tor- listrados e heróis. Olhava com indulgênciaa inveja dos lite-
nem necessáriosdemais; mas uma coisa há que confessar:êsses ratos, entre os quais havia homens que iluminavamo mundo;
jovens magistrados, que do momento em que aprendem a mon- reconciliava-secom os magos ambiciosos e intrigantes, nos quais
tar a cavalo compram um cargo de juiz, não podem deixar de se encontrava maior número de grandes virtudes do que de pe-
exibir nos tribunaistudo o que a impertinênciatem de mais quenosvícios; mas restava-lheainda uma porção de motivos de
ridículo, tudo o que a iniqüidadetem de mais perverso; seria desgasto, principalmente as aventuras galantes das damas. Os
melhor sem dúvida dar êsses postos gratuitamenteaos velhos malefícios que estas fatalmente haviam de trazer o elachiam de in-
jurisconsultosque passarama vida inteira a pesar os prós e os quietação e terror.
contras". O literato replicou: "0 senhor viu nosso exército Comodesejavaficar a par de tôdasas condiçõesde vida,
antes de chegar a Persépolis;sabe que nossosjovens oficiais foi visitar um ministro; mas, de caminho, ia sempre receoso
se batem muito bem, não obstante terem comprado seus postos: de ver algummaridoassassinando a esposa. Chegadoà casa
talvez o senhorvenha a convencer-se
de que os nossosjovens do estadista,ficou duas horas na antecâmarasem ser anun-
magistradosnão julgam tão mal, apesar de terem adquirido ciado e mais duas depois que o anunciaram. Neste in-
pot compra o direito de distribuir justiça." tervalo, prometia a si mesmo recomendar ao anjo lturiel tanto
Levou-o no dia seguinte ao grande tribunal, onde devia ser o ministrocomo os seusinsolentesporteiros. A antecâmaraes-
pronunciada uma importante sentellça. Todo Inundo conhecia tava cheia de damas de todas as classes, de magos de todas
essacausa. Os velhosadvogadosque a discutiamnão esta- as côres, de juízes, comerciantes,oficiais e sujeitos presumidos.
vam seguros de suas opiniões; citavam cem leis, nenhuma das E todos se queixavam do ]ninistro. "É avarento e usurário,
quais era aplicávelao fundo da questão; consideravamo assunto diziam; não há dúvida que rouba o dinheiro das provín-
de cem pontos de vista, nenhum dos quais verdadeiro. cias." Os caprichosos o acusavam de extravagante; os volup-
Menos tempo levaram os juízes em decidir, que os advogados tuososdiziam: êle só pensanos prazeres; os intrigantesnão
em duvidar. E o seu julgamento foi quase unânime; julgaram escondiama esperançade vê-lo arruinado pelos conluios; as
mulheres esperavam para breve um ministro mais jovem.
bem porque seguiram as luzes da razão}.os outros opinavam
mal, porque sê limitavam a consultar seus livros. Babuc concluiu Babuc ouvia seus discursos; e não pôde deixar de dizer:
que mesmo dos piores abusos podem sair coisas excelentes. Viu "Eis um homem feliz, tem todos os inimigos em sua antecâmara;
nessemesmodia que as riquezasdos financistas,causa de tanta esmagacom seu poder os que o invejam; contemplaa seus pés
revolta de sua parte, podiam ter um bom efeito, porque o im- os que o detestam." Entrou enfim; viu um velhinhocurvado
perador, tendo tido necessidade de ,dinheiro, levantou em uma
+.
ao pêso dos anos e dos trabalhos,mas ainda vivo e forte de es-
O MUNDOTAL QUAL É 103
102 ROA{ANCES E CONTOS

convencerdisso venha jantar comigo amanhã,em casa da bela


pírito 103. Babuc agradou-lhe; .também o. velhinho pareci:u Teone104. Há umas velhas vestais que Ihe metema língua;
a Babuc um homem estimável. A conversação foi. interessante. contudo,distribui mais benefíciosdo que todas elas juntas. É
O ministro confessouque era um homemmuito infeliz; passava
+

por ser rico e era pobre!julgavam-no.


onipotente,
ao passoque pessoaincapaz de cometer a mais leve injustiça, mesmo em face do
andava sempre contrariado; vivia a obsequiar ingratos; e num seu maior interêsse; ao seu amante dá apenas bons conselhos
contínuo trllbalho da quarenta anos, mal tivera um momento de D só se ocupa com sua glória; diante dela êle se envergonhada
de deixar passar uma oportunidadede fazer o bem; porque
consolação. Babuc ficou comovidoe pensouque se êstehomem nada estimula tanto as anões virtuosas como ter por testemu-
tinha cometidofaltas e merecia qualquer castigo, o anjo Ituriel.não
nha e juiz de sua conduta uma amante cuja estima se deseja
precisava exterminá-lo: não tinha mais que deixa-lo em seu pôsto merecer.'
Babuc não faltou ao encontro. Viu uma casa em que rei-
Enquanto falava aó ministro, entrou repentinamentea bela navam todos os prazeres. E Teone reinava sôbre todos; sabia
dama em cuja casa Babuc jantara; viam:lse.em.seus olhos e na
sua fronte sinais de dor e'de cólera. Explodiu em recrimina- dizer o que convinha a cada um; sua atitude natural punha à
vontade todo o mundo; agradava sem se esforçar para isso;
ções contra o estadista, denamou lágrimas, queixou-seEom era tão amável como benevolente; e ainda, para realçar tôdas
amargura que haviam recusado..a seu marido..uma posição a
que seu nascimentoIhe. dava direito..e que êle mereciapelo essas qualidades, era bela.
seu serviço e pelos ferimentos recebidos em combate; e ex- Babuc,apesarde ter vindo da Cítia e ser enviadode um
pressou-secom tanta veemência,pâs.tanta graça em suas que xas gênio, percebeu que se continuasse em Persépolis acabaria es-
destruiu as objeções com tanta iiabílid?de, íêz valer suas razões quecendo Ituriel para lembrar-se só de Teone. Afeiçoava-se
com tanta eloqüência,que ao sair do gabinetehavia canse' á cidade, cujo povo era cortês, afável, benfazejo,ainda que
cuido a fortuna do esposo leviano, maldizente e vaidoso. Temia que Persépolis viesse a
Babuc estendeu-lhe a J-não: "Como é possível, disse-lhe, que ser condenada; estava com mêdo de entregar seu relatório.
a senhora queira incomodar-se tanto..E)orum homem que não ama Resolveu então fazer o seguinte. Mandou fundir pelo melhor
e do qual'tem"tudoa temer?" "Um homem.que não amor fundidor da cidade uma pequena estátua composta de todos os
Saiba o senhorque meu marido é o meu melhor amigo; não metais,de terra e pedras as mais preciosase as mais vis. Le-
há nada, a não ser o meu amant?, que.eu por êle não sacrifi- vou-a a Ituriel e perguntou-lhe: "Quebraria essa bonita estátua
que; do mesmomodo que êle tudo fará por lnimi salvo,aban- só porque nem tudo nela é ouro e diamante?" Ituriel entendeu
donar sua amante. Quero que o senhora conheça,é uma às mil maravilhas. Resolveunão mais pensar em corrigir Persé-
encantadora mulher, inteligente e de um gênio adorável; cea- polis e deixar "o mundo tal qual é", porque, disse êle, "se nem
mos juntos hoje, com meu marido e o meu pequenomago; ve' tudo é bom, tudo é passável"105. Que Persépolis, pois, subsis-
nha participar de nossa alegria tisse. E Babuc estêvelonge de lamentar-se,como Jonas, que
A dama levou Babuc para sua casa. O marido,..que, ao ficou extremamenteaborrecido por motivo de Nínive 106ter sido
chegar, estava mergulhado em desespêro, recebeu sua mulher com poupada. Mas, verdadeé que uma pessoaque passoutrês dias no
transportes de alegria e reconhecimento; abraçava ora sua mu- ventre de uma baleia não pode estar tão bem humorada como
lher, ora sua amante,ora o magozinho,or3 Babuc. A.união, a quem estêve a assistir a óperas e comédias e a cear em agradável
alegria, o espírito, a graça f?ram as delícias dêsse banquete. companhia.
"Fiquei sabendo, dis?e:lhe a bela dama, em cuJ,a casa ceava,
'aquelas a quem chamam mulheres desonestastijm quase sem-
pre a seu favor o mérito de um homemhonrado,e para se ( !04) Possivelmente, Madame du Châtelet.
(105) O conto terminava aqui nas edições de 1748 e 1749
o resto é de 1756.
(103) Trata-se talvez do cardeal Fleury: Cf. Précis du siêrle de
.Lotz{.s Xy, cap. 3.
(106) Cf. /amai, cap. IV.
MEMNÂO OU A SAB]3DORIAHUMANA 105

"Em segundolugar, serei sempre sóbrio; posso ser tenta-


do ao máximo pelo bom passadio, pelos vinhos deliciosos, pela
k sedução da sociedade: só terei de imaginar as conseqüêncías dE)s
excessos, a cabeça pesada, o estômago embrulhado, a perda da
razão, da saúde e do tempo, e assim só comerei o necessàno;
MEMNÃO, minha saúde será sempreigual, minhas idéias semprelumi-
nosas e puras. Tudo isso é tão fácil, que não há nenhummé-
ou rito em alcança-lo.
A SABEDORIA HUMIANA í07 l
"Em seguida, dizia l\temnão, convirá pensar um pouco na
minha fortuna; meus desejossão modelados; os meus bens estão
solidamente baseados na atividade do recebedor-geral das fi-

M EMNÃO concebeuum dia o projetoinsensatode ser per'


feitamente ajuizado. Pode-se dizer que não há homeJU em cuja
nanças108de Nínive; tenho com que viver independente! é o
maior dos bens. Nunca me verei na cruel necessidadede lison-
jear quem quer que seja; de ninguém terei inveja, e ninguém
cabeça essa 'loucura não tenha passado alguma vez. Memnão me iivejará: Tambémisso é facílimo. Tenho amigos,!onti-
disse a si mesmo: "Para ser muito ajuizado e, por conseguinte, nuou êle, e podereiconserva-los,
pois que nada terão a dispu-
muito feliz, basta não ter paixões; e nada é mais fácil, como se tar-me. Nunca estarei de mau humor com êles, nem êles comigo;
sabe. 'Em, primeiro lugar, nunca amaroi nenhumamulher; isto não apresenta dificuldade."
porquanto, ao ver uma beleza perfeita, .direi a mim mesmo: Tendo assim formulado êste pequenoplano de sabedoria em
aquelas faces se enrugarão um dia; aquêles belos olhos ficarão seu quarto, Memnão pâs a cabeça à janela. Viu duas mulheres
bordejados de vermelho; aquêle busto redondo tornar-se-áacha- que passeavamsob os plátanos,perto de sua casa. Uma era
tado e pendente;aquela bela cabeça ficará calva. Ora, só terei velhae parecianão pensarem nada; a outra era jovem,bo-
de vê-la no presentecom os mesmosolhos com que a verei no nita, e pareciabastanteocupada. Suspirava,chorava,e ficava
futuro, e por certo aquela cabeça não fará virar a minha. assimmais encantadora. O nosso sábio ficou sensibilizado,não
pela beleza da dama (êle estava bem certo de que nunca teria
(107) Primeira publicação em 1749, no RecueiZ de piêces.elz z;ers essa fraqueza), mas pela aflição em que a via. Desceu,apro'
et e pfosepar I'auferirde la fragédiede Sémianis, com o títulode ximou-seda jovem ninivita com o propósito de a consolar com
Ã/eü?zon. Apresentadono volume, em seguidaao l)iscozirsezzuers sabedoria. Á formosacriatura contou-lhe,
com os modosmais
:ur J'Àomme, o conto é precedido da seguinte nota: ingênuose tocantes,todo o mal que Ihe fazia um tio, que ela não
Como esta obri7zÀatem algumarelação com o Discours en verá,
julgou-se que Gordinha coloca-la logo depois dêle.
tinha; com que artifícios êle Ihe roubadabens que ela jamais
Em 1756, o título atual, .4/em7zonotz Ja sagesse Azimalne, apalFce
possuíra; e contou-lhe,ainda, tudo o que tillha a recear
pela primeira' vez em J/éZanges de .LÍfférafure. etc.? tomo IV 'da C'oZ- da sua violência. "0 senhorparece-mehomemde tão bom
lecfio comprêfe des Oeziures de J/r. de 7oZfaire (Genebra, Cra- conselho, disse-lhe ela, que se tiver a condescendência de ir
mer ) .
{'

Em 1771, Voltaire reproduz o conto em Qzzesfi07zi sur Z'Elzcyclo-


pédíe, no artigo Colzfia?zce elz ioi-mêzne, fazendo-o preceder do se- atingido Po um processo criminal ao !ado de qualquer ando. Por
guinte texto: Isso, reP aduzi?nosaqui êste pequeno conto, que }á foi publicado aihu-
res: convém que ête esteja em }âda i)arte.
Enganar-zos nos nossosplanos Essas !inhai fazem alusão a um processo de 1770 em que estavam
Eis ao qae estamos sujeitos:
De manhã faço 1) ojetos implicadosBillard, falido, e o abade Grizel, célebre diretor de cons-
c] encias .
E, durante o ãia, tolices.
(108)+ Os recebedores-gerais coletavam as rendas do Estado e os
Êsses ue linhos ada$tant-sepeTfeitamel\te
a um grande ciúmeo impostos, para envia-los ao ministro das Finanças. Desempenhavam,
de taladoTes: e é muita' engraçado uer um grade divetoT espiritual de certa maneira, o papel de banqueiros do govêrno.
106 ROMANCES E CONTOS MEMNÂO OU A SABEOORIA I{UMANA 107

até minha casa e examinar meus negócios, estou certa de que nesto. Joga; rapam'lhe tudo o que tem na balsa, e perde ainda
poderá tirar-me da dificuldade cruel em que me encontro." Mem- mais quatro vêzes essa soma, sob palavra. Surge uma discus-
não não hesitouem segui-la,para examinarprudentemente
os +
são por causa do jogo, os disputantes
acaloram-se:um dos
seus negócios e dar-lhe um bom conselho. seus amigos íntimos arremessa-lheà cabeça um copo de dados
e vaza-lhe um alho. Levam para casa o prudente Memnão
A dama, aflita, levou-o a um aposento perfumado, e fê-lo
bêbado, sem dinheiro, e com um alho a menos.
sentar-se com ela, cortêsmente, num amplo sofá, onde os dois
ficaram de pernas cruzadas, um diante do outro. A dama, quando Depois de cozinhar um pouco o seu vinho e logo que tem
falava, baixava os olhos, dos quais escapavamalgumas vêzes a cabeça mais livre, Memnão manda um criado à casa do rece-
lágrimas; quando erguia os olhos, encontrava sempre o olhar bedor-geraldas finançasde Nínive, buscar dinheiropara pagar
do prudenteMemnão. As suas palavraseramcheiasde uma seus amigos íntimos: é informado de que o seu banqueiro fará
ternura que redobrava tôdas as vêzes que êles se fitavam. declarado em bancarrota fraudulenta naquela manhã, aconteci-
Memnão interessava-sevivamente pelos negócios dela, e sen- mentoque punha em situação alarmantecem famílias. Memnão,
tia-se cada vez mais inclinado a prestar um serviço a pessoa tão indignado,vai à carte de emplastrono alho e petiçãona
honesta e tão infeliz. Insensivelmente, no calor da conversação, mão, para pedir justiça ao rei contra o fa]ido. ]:ncon-
deixaram de estar um diante do outro. As pernas se descru- tra num salão várias damas, tôdas elas arrastando,gra-
Memnão passou a aconselha-lade tão perto, deu-lhe ciosas, suas saias-balãode vinte e quatro pés de circunferência.
opiniões tão afetuosas, que já nem um nem outro podiam falar Uma delas, que o conhecia pouco, disse, olhando-o de soslaio:
de negócios, e não sabiam mais onde se encontravam. "Que horror!" Uma outra, que o conhecia melhor, disse-lhe:
Mas quandoestavamnesteponto,o tio chega,comoera de "Boa tarde, senhor Memnão, tenho muito prazer em vê-lo. A
esperar: vinha armado da cabeça aos pés; e a primeira coisa propósito, por que perdeu um ôlho?" E passou, sem esperar
que disse foi que ia matar, comoera justo, o sábio Memnão resposta. Memnãoescondeu-se
num canto e aguardouG mo-
e sua sobrinha;e a ú]timacoisaque ]he escapoufoi quepodia mento em que pudesselançar-se aos pês do monarca. Êsse mo-
perdoar por muito dinheiro. Memnão foi obl'irado a dar tudo mentochegou. Êle beijoutrês vêzeso chão e apresentou
sua
o que possuía. Naquele tempo as pessoas tinham a felicidade petição. Sua Graciosa Majestade recebeu-o muito favoràvelmente,
de se livraremdestassituações
por um preçotão baixo; a e deu o memoriala um dos seussátrapas,encarregando-o
do
América não tinha sido ainda descoberta,e as damas aflitas não O sátrapa puxou Memnão para um lado e disse-lhecom
modos altivos, zonlbando dêle amargamente: "Vejo que é um
eram, nem de longe, tão pel'idosascomo as de hoje 109.
zarolhobastanteatrevidopara se dirigir ao rei e não a mim,
Memnão, envergonhadoe desesperado,voltou para casa, e, mais atrevido ainda pcr ousar pedir justiça contra um honesto
onde encontrou um bilhete, convidando-o a jantar com alguns
falido a quem honro com a minha proteção e que é sobrinho
amigos íntimos. "Se ficam sózinho em casa, disse, terei a mente de uma camareira da minha amante. Abandone êsse caso, meu
ocupada com minha triste aventura, deixarei de me alimen- amigo, se quiser conservar o â]ho que ]he resta.
tar; cairei doente: é preferível ir tomar com os meus amigos
íntimos uma refeição frugal. Esquecerei, na amenidade da sua Assim pois, Memnão,tendo renunciadopela manhã às mu-
companhia, a tolice que fiz esta manhã." Foi à reunião; acha- lheres, aos excessosda mesa, ao jogo, a tôda disputa e, sobre-
ram-no um tanto pesaroso Fizeram-no beber para dissipar a tudo, à carte, vira-se, antes do anoitecer, enganado e roubado
tristeza. Um poucode vinhotomadocom moderação
é um por uma formosa dama, embriagara-se, jogara, tivera uma disputa
remédio para a alma e para o corpo. E assim que pensa o ajui- ê um ôlhovazado,e fera à corte,ondehaviamzombadodêle.
zado Memnão; e embriaga-se. Depois da refeição, propõem-lha Petrificado dq espanto, com o coração dilacerado de dor,
jogar. Um jogo regrado, com amigos, é uin passatempo ho- regressa com a mBi'te na alma. Quer entrar em casa; encontra
oficiais de justiça que levam o seu mobiliário a mandado dos
(109) Alusão à sífilis, doença que veio da América; cf. GÂNDino; credores. Quasea desfalecer,
vai colocar-sedebaixode um plá-
vol. 1, n. 201. tano; ali encontraa formosa dama da manhã, que passeava com
ROMANCES E CONTOS MEMNÃO OU A SABEDORIAIIUMANA 109
108

que deixes de conceber o tolo plojeto de ser perfeitamenteajui-


seu querido tio e que estouroude riso ao ver Memnãocom zado." "Trata-se, pois, de uma coisa que nunca se poderá con-
o seu emplastro. Chegou a noite; Memnão deitou-se
acometido desabre
febre;a seguir?" exclamou Memnão suspirando. "É coisa tão impossí-
palha junto das paredes de sua,casa. .Foi vel, replicou-lheo outro, como ser perfeitamentehábil, perfeita-
adormeceu no acesso, e um espírito celeste apareceu-lhe em so- mente forte, perfeitamente poderoso, perfeitamente feliz. Nós mes
lhos mos estamosbem longe disso. Há um globo onde tudo isso
Era todo resplandecentede luz. Tinha seis belas asas, mas se enconha; mas, nos cem bilhões de mundos que estão disper-
não tinha pés, nem cabeça,nem cauda,.nem.figura que se sos ]lo espaço, tudo se escalona por gradação. Existe menos
pudessedefinir. "Quem és tu?'' disseMemnão. "leu qenio prudênciae prazerno segundodo que no primeiro,menosno

$@=hu::«i$i:KV p:s:ia
terceiro do que no segundo,e assim até o último, onde todos são
completamente loucos." "Receio muito, disse Memnão, que o nos-
so pequeno globo terráqueo seja precisamente o hospício de loucos
do universo de que me faz a honra de falar." "Não exatamente
isso, disse o espírito; mas quase isso: é preciso que tudo esteja
no lugar." "Então, disse Memnão, é certo que alguns poetas 110,
alguns filósofos 111 estão completamenteerrados quando dizem
que &tódo está óern?" "Êles têm tôda a razão, disse o filósofo
das alturas, considerandoo arranjo do universo inteiro." "Ah!
patitas' que enganam um pobre homem, nem ..amigos íntimos não acreditarem nisso, replicou o pobre Memnão, a não ser quan-
do não fõr mais zarolho.
que Ihe roubam o dinheiroe Ihe furam um ôlho, nemlt.:(
w" duzentos,nem sátrapas que zombam das pes:oas e lhes. ne-
gam justiça?" "Não! disse o habitante da estrela, nada ülsso-

n'z,:==;.=:=:'E
:=.,T=:=;i;:'::="«* il;.':=::
falidos, porque não há entre nós nem ouro nem prata;. ninguem
pode furar-nos os olhos, porque não temos corpo..s.Emelhante
ao

em nossa pequena estrrla as doaos no igfazem injustiças, porque


Memnão disse-lhe: "Senhor, sem mulhe:l e sem . jantar,
como é que se passa o tempo?.' . "A vigiar,.disse o gênio, os

furassem os dois olhos, por causa de uma pequenaindiscrição, e (110) Pape, em E7zsaio sôbre o domem
êlo neste momento encontra-se num calab?uço,. com ferros .nos
(111) Os otimistas inglêses, Shaftesbury, Bolingbroke e tam-
pes e nas mãos." "Pouco adianta, disse Memnão, ter um gemo bém Leibnítz, onde Voltaire vai buscar a idéia de umã infinidade de
mundos possíveis (considerados aqui como reais), organizados em hie-
rarquia, segundo uma harmonia providencial. Essa concepção, exposta
também em ZAniC (cap. XVIII), suscita a mesma dúvida, tanto no
espíritode Zadig comono de Memnão.
OS DOIS CONSOLADOS 111

como têm todas as grandes e belas princesas. Seu pai entrou


no quarto dela e surpreendeuo amante, que tinha o rosto em
Ç fogo e os olhos como dois carbúnculos; a dama também apa-
rentava Gares muito animadas. O rosto do jovem desagradou
tanto ao pai, que êste Ihe aplicou o mais formidável bofetão
OS DOIS CONSOLADOS iíz que jamais fará aplicado na sua província. O amante apode-
rou-se de umas tenazes e quebrou a cabeça do sogro, que dinl-
cilmenteconseguiu curar-se e ainda traz a cicatriz dêsse feri-
mento. A amante, enlouquecida, saltou pela janela e destroncou

0 GRANDE filósofo Citófilo dizia, certa ocasião, a uma mu-


lher desolada e que bem tinha motivos para isso: . ' Senhora:
um pé} de modo que hoje manca visivelmente,embora seja ad-
mirávela sua esbeltez.O amantefoi condenado
à morte,por
ter quebrado a cabeça de um grande príncipe.
Podeis imaginar
a rainha da InglaterTa,filha do grande Henrique IV 113, foi o estado em que se encontrava a princesa quando levaram o
tão infeliz como vós: foi expulsados seus reinos; estêvequase amante para a forca. Conversei com ela longamente, quando
a perecer no oceano por efeit? das tempestades;.viu morder seu se encontravana prisão; só falava das sua-sinfelicidades." "E
real esposono cadafalso."' "Tenho pena dela", disse a senhora; por que não quereisentãoque eu pensenas minhas?" dissea
e continuou a chorar seus próprios infortúnios. dama. "Porque não convém pensar nelas, retrucou o filósofo;
"Mas lembrai-vosde Mana Stuart, disseCitófilo: ela amava como tantas grandessenhorasforam ínfortunadas,não vos fica
de modo honestíssimo um bom músico 114, dono de uma bela voz bem êsse desespêro. Pensam
em Hécuba,pensam
em Níobe."
de barítono. Seu marido matou o músico diante dela; depois 'Ahl disse a dama, se eu tivesse vivido no tempo delas, ou no
tempo de tão belas princes.as e, para consola-las, lhes tivésleis con-
disso,sua boa amiga e boa parente,a rainha lsabel,.que. se
dizia virgem, mandou decapitá.la num cadafalso.forrado de prêto, tado os meus infortúnios, julgais que vos teriam dado ouvidos?"
depois de a ter mantido na prisão dezoito anos." "Grande. cruel- No dia seguinte, o filósofo perdeu seu filho único e estêve
ã'de" respondeua dama; e tornou a cair em sua melancolia. a ponto de morrer de dor. A dama mandoufazer uma lista de
"Talvez tenhaisouvido falar, acrescentou o outro, da bela todos os reis que tinham perdido os filhos, e levou-aao filósofo,
Joana de Nápoles115que foi violentadae estrangulada?" "Lem- que a leu, achou.aexatíssima,
e nem por isso deixoude con
tinuar chorando.
bro.me disso collfusamente",disse a aflita senhora.
"Devo contar-vos, continuou o filósofo, a aventura de uma
Três mesesdepoisêles se encontraramde novo, e cada um
se admiroude ver as disposições
de alegriado outro. Ambos
soberana que foi destronada em nowq. tempo, depois da.ceia,
mandaram erigir uma estátua ao Tempo, com esta inscrição:
e que morreu numa ilha deserta." "Conheço tôda essa histó-
ria;', respondeua dama. ÀQUELE QUE CONSOLA.
"Pois bem, vou contar-voso que sucedeua uma outra gran
de princesa a quem revelei a filosofia. Ela tinha um amante,

(112) Primeira impressão em 1756, em ib/élangei de Z ffêrafure


etc..tomoIV da CoZZecfion
comPlêfe
des Oewz/res
de Ã/r. de yolfarf
(Genebra, Gramer).
(113) Henriqueta de França, filha de Henrique IV e mulher
de Carlos l.
(114) Rizzio: esta históriaé contadano cap. 169 do Estai
sur Jes moewrs.
(115) Cf. Essa sair JeJ moeurs, cap. 69.
VIAGENS DE SCARMENTADO 113

coisas que não devem ser vendidas. Eu estava ilumd idade em


que tudo isso me parecia bastanteengraçado. Uma jovem dama,
de costumes ameníssimos, chamada i'signora'' Farelo 121, encas-
quotou de me amar. Era cortejada' pelo Reverendo Padre
HISTÓRIA Poígnardini e pelo ReverendoPa(ire Aconiti, jovens professor
DAS VIAGENS DE SCARMENTADO de uma ordem que não existemais: ela os pâs de acordo, dan-
do-meas suas boas graças; mas ao mesmotempocorri o
risco de ser excomungado e envenenado. Parti, muito contente
ESCRITA POR ÊLE MESMO 116 com a arquiteturade São Pedra.
Viajei para a Fiança; estávamos
na épocade Luís, o Jus-
N ASCI el-n1600, na cidadede Cândia, onde meu pai era go-
vernador; e lembro-mede que um poeta medíocre, que não era
to 122. A primeira coisa que me perguntaramfoi se 'eu que-
ria para o almoçoum pedacinho
do Marechald'Ancre,cuja
carne o povo tinha assado e estava sendo distribuída a muito
mediocrementedesumano, chamado Iro 117, compôs alguns maus bom preço a quem a quisesse.
versos em meu louvor, nos quais me considerava descendente Êsse Estado se via continuamente envolvido em guerras
em linha regade Manos; mas tendo meu pai caído em desgraça, civis, .às vêzes por causa de um lugar no Conselho, outras
compôs outros versos em que passei a ser descendenteapenas de por duas páginas de controvérsia. Havia mais. de 'sessenta
Pasifaé e de seu amante118. Era um homemmuito mau êsse anos que êssefogo, ora coberto, ora soprado com violência,de-
Iro; era o velhaco mais enfadonho que havia na ilha. solava agudas belas regiões. Eram as liberdadesda Igreja Ga-
Quando eu contava quinze anos de idade, meu pai man- licana. "Ai! ai! disse eu, êssepovo nasceucom tão boa índole. ..
dou-me"estudar
em Romã. Lá chegueicom a esperançade Quem.pode tê:lo afastado de s;a brandura? É um povo que faz
pilhérias e, ao mesmotempo,matançasde São Bartolomeu. Fe.
aprender todas as verdades; pois antes só me haviam ensinado liz a época em que só fizer pilhériasl"
justamenteo contrário,como é de uso nestemundo'..desdea
China até os Alpes. MonsenhorPropondo,a quem eu fará reco- Passei à Inglaterra: as mesmas querelasexcitavamiá os mes-
mendado, era um homem singular, e um dos mais terríveis sá- mos furores. Alguns santos católicostinham resolvido, para bem
bios que já houveno mundo.' Qui? ensinar:meas categorias119 da lgrejaLfazer voar pelos ares, com pólvora, o rei, a família real
de Aristóteles,e estêvea pique de me pâr na categoria.dos e todo o Parlamento, e limar a Inglaierra dêsses heréticos. Mos-
sleusfavoritos: escapeide boa.' Vi procissõesexorcismose algu- traram-mea praça onde a bem-aventurada
rainha Mana, filha
mas rapinagens. Dizia-se,ma? com grandefalsidade,que a de.Henriqu? Vlll! mandara queimar mais de quinhentosdos seus
"stgnora" Olímpia 120, pessoa de rara prudência, vendia muitas súditos: Um .padre irlandês 123 afirmou-me que foi uma ação
muito .boa : primeirament?, porque aquêles que'foram queimados
eram inglêses; em..segundo lugar, porque nunca tomavam água-
(116) Primeira impressão em 1756, em Szz fe des méZanges etc.,
tomo V da CoZlecli07z complêfe des oeuz;res de .A/r. aq. 7oZfaire (Ge- benta,e não acreditavamno buraco de São Patrício 124. O que
nebra, Cramer). Ignora-;e a data da composição dêste conto.
(117) Anagrama de Roi(Charbs) .(1683-1764), que. comp?s (121) Se?lADraFá-/o. Não é necessário
reverendos.
traduziros nomesdos
comédias, óperas, bailados e sátiras. Em 1746:, tornou-se inimigo de
Voltaire,' que moveu contra êle uma ação judiciária.
(122) Luas XIII. Trata-se do assassínio de Concini(1617) qiie
(118) Essa genealogia mitológica explica-se pelo fato de Gândia Voltaire julgava '"inocente" (Essas sur /ei moezlrs, cap. 175).
ficar em preta. O amante de Pasiíaé, esposade Minas, foi um touro.
ç119) Isto é, as diferentes classes. de. predicados que p.odem .ser Pólvoras3)( l N5)'nício dêste parágrafo, Voltaire alude à Conspiração das
afinnados'de um sujeito; quanto ao ódio de Voltaire ao ensinometa-
físico, cf. ZADIG, vo1: 1, 36 e 37 (cap. O Ã/inislro,). (1.24) "0 buraco de S. Patrício é muito famoso na Irlanda: é por
ele que êssessenhoresdizem que se desce ao inferno" (Nota de Vol.
(120) Olímpia Maldachini, cunhada de Inocência X. taire, Qaesf Olzs szlr Jei miracZei, Carta Vll). *
8
114 ROMANCES E CONTOS VIAGENS DE SCARMENTADO 115

mais o espantavaera o fato de a rainha Mana não ter sido ainda ou alguma tourada! quando o grande inquisidor apareceusabre
canonizada; esperava, entretanto, que ela o seria dentro em breve, o trono, de onde deu a bênção ao rei e ao povo.
quando o cardeal-sobrinho 125 tivesse alguns lazeres. ]l;m seguida veio um exército de monges desfilando dois a
Fui para a Holanda, onde esperavaencontr?r mais tran@i- dois,. brancos, negros, cinzentos, calçados, descalços, com barba,
lidade, entre gentemais fleugmática. (quandochegtleià cidade sem barba, com capuz em ponta e sem capuz; depois vinha o car:
de Maia, cortavam a cabeça ; um velho venerável. Era a cabeça rasgo; depois, no meio dos alguazise dos grandes, cêrca de qua-
calva do primeiro ministro Barneveldt, o homem que mais. tinha renta pessoas cobertas d:. sacos nos quais tinham sido pintados
merecido 'da república 126. Movido de piedade, perguntei qual diabos e chamas 128. Eram judeus que não tinham 'querido
fará o seu crime e se êle tinha traído o Estado. "Fêz coisa renunciar absolutamente a Moisés, cristãos que tinham des-
muito pior, respondeu-me
um predicantede capa negra; .era um pojado suas comadres, ou que não tinham adorado Nossa Se.
homem que acreditava que a salvação pode.ser alcançada pelas nhor? de Atocha129, ou que não tinham querido desfazer-sede
boas obras tantoquantopela fé. Compreendeisque?se tais opi- seu dinheiro de contadoem favor dos irmão)shieronimitas. Can.
niões fossem firmadas, uma república não poderia subsistir, e que tiram-se devotamentebelas orações, e depois foram queimados a
são necessárias leis severas para reprimir tão escandalosos hor- fogo lento os ?ulpados; com o que toda a família real'pareceu ex-
robes.''
ore tremamente edificada.
Um profundo político do país disse-me, suspirando: "AI de à noite, no momentoem que me preparavapara me deitar,
nósl meu senhor, o bom temponão durará sempre; é por mero chegarama minha casa dois familiares do Santo'Ofício 130 com
acaso que êste povo se mostra tão zeloso; o fundo do seu cara' a Santa Hermandad: abraçaram-me ternamente e lavaram-me
ter é inclinado ao dogma abominável da tolerância, um dia volta- sem dizer palavra a um calabouço muito fresco, mobiliado ape-
rá a ela: isso faz tremer." Quanto a mim, inclinado a ?operar nas com uma esteira e um belo crucifixo. Lá fiquei seis semanas,
até que chegasseêsse tempo funesto da moderação e da indulgên- ao.fím das quais o ]leverendo padre inquisidor' mandou alguém
cia, deixeiàs pressasum país onde a severidade
não é suavi- pedia':meque fosse falar com êle: apertou-mealgum tempo entre
zada por nenhum traço agradável, e embarquei para a Espa- seusbraços, com afeiçãotôda paternal; disse-meque estavasin-
nha ceramenteaflito por ter sabido que eu me achavatão mal alojado,
A carte estava em Sevilha, os galeões tinham chegado127, mas que todos os apartamentosda casa estavamocupados,e que
tudo respirava abundância e alegria .na mais bela. estação do de outra vez esperava que eu pudesse ficar mais bem' acomodado.
ano. Avistei, na extremidadede uÚa aléia de laranjeiras e limoei- ]:m seguida: perguntou-me cordialmente se eu não sabia por
ros, uma especie de liça imensa rodeada de degraus em anfiteatro que estava.lá. Respondi ao reverendo padre que deveria 'ser
cobertos de preciosos tecidos. O rei, a rainha, os infantes, as in- por.causa.dos meus pecados "Pois bem, meu querido filho, por
fantas estavam sob um dossel soberbo. Fronteiro a essa augusta qual pecado?. Fale com confiança." Dei tratos à imaginação sem
família estavaum outro nono, mais elevado. Eu dissea um dos nenhum resultado, não conseguia adivinhar; levou-me caridosa.
mente pelo caminho certo.
meus companheirosde viagem: "A menos que êsse.trono seja
reservado'a Deus, não vejo para que possa êle servir." Essas Afinal, recordei-mede minhas indiscretaspalavras. Levei
palavras indiscretas foram ouvidas por um grave. espanhol,.e apenas algumas chibatadas e paguei uma multa de trinta mil rea-
custaram-me caro. Eu imaginava que íamos ver algum torneio Zes. Levaram-me a fazer a reverência ao grande inquisidor: era

(125) Assim se costuma chamar o cardeal sobrinho do papa rei- (!28) Quanto aos pormenores dêsse auto-de-fé,cf. CANoa)o.
nante. cap. VI.

iB:':h=BI t.=:'':ii.:s:
m 11%:.=#'B
(126) O cap. 187 do Estai sur Jei moetzrs desenvolve essa defesa
de Barneveldt, que, segundo Voltaire, foi executado em 1619 por fazer
parte da seita dos arminianos.
(127) Os galeões que traziam ouro do Novo Mundo. (130) Cf. CÂNoioo, vol. 1, n. 206.
116 ROMANCES E CONTOS VIAGENS DE SCARMENTADO 117

um homempolido, que me perguntou.como me parecera a sua que só foi estranguladoum mês mais tarde, condenou-me à mes-
festinha. Disse que fera deliciosa,e fui instar com meus pompa' ma multa, por ter ceado em casa do patriarca grego. Vi-me na
nheiros de viagem a que deixássemosaquêle país o. mais depres- triste necessidadede não freqüentaráem a igreja grega nem a
sa possível,embora. fôsse tão belo. .Eles tinham tido tempo ae latina. Para consolar-me aluguei uma belíssima 'circassiana, que
se instruir acêrca de tôdas as grandes coisas que os espanhóis era a pessoa mais terna em nossos encontros e a mais devota
fizeram pela religião. Tinham lido as memórias do famoso.bispo na mesquita. Certa noite, entre os doces transportes de seu amor,
de Chiapa 131, segundo as qual! parece que .foram estmngulados, ela exclamou, beijando-me: ".4ü, /Z(í, ,4Zá" iã4: são as palavras
queimados ou afogados dez milhões de infiéis na América, para sacramentais dos turcos. Pensei que eram as sacramentais do
os converter. Penseique êssebispo exagerava;mas.mesmoque amor, e exclamei também muito amorosamente : ",4Z(í, /Zá, ,4/á."
se reduzissemêssessacrifícios a cinco milhõesde vítimas, seria 'Ah! disse-meela, Deus misericordioso
seja louvados' Tam-
ainda admirável. bém sois turco" Disse-lheque eu a bendiziapor terme dado
O desejo de viajar não me largava. .Tinha planejado ence.a- a força de um dêles, e julguei-me muito feliz. ' Ao amanhecer,
rar minha viagem pela Europa na Turquía; tomamos a .estrada o imameveio circuricidar-me:
e comoeu me opusesse,
o
para esse pais Estava bem'decidido a.não revelar minha opi- cádi.do lugar, homem leal, propôs-me que eu fosse antes 'em-
nião a respeito das festas que me fôsse dado ver. "Êsses turcos, patado: salvei meu prepúcio e meu traseiro com mil cequins, e fugi
disse aos meus companheiros,são ímpios que não foram batiza- depressapara a Pérsia, I'esolvidoa não mais ouvir 'missa, nem
dos, e que por isso mesmo serão muito mais cruéis que os reve- grega nem latina, na Turquia, e a não gritar mais: d&í, /ü, .4&í,
num re/Mez-t;ozz.s.
rendos padres inquisidores. É preciso guardar silêncio quando
estivermos entre os maometanos. Ao chegar a lspaã, perguntaram-mese eu era pelo carneiro
Fui, pois, ao encontrodêles. Fiquei.estranhamentesurp'e::l' pr?!? ou pelo carneiro branco. Respondi que isso me era de todo
dado ao ver na Turquia muito maior número de igrejas cristãs indiferente, .desde que tivesse a carne tenra. Convém saber que
do que havia na Cândia. Chegueia ver grupos numerososde as facções do Carneiro Branco e do Carneiro Prê/o 135 dividiam
mongesque tinham permissãopara adorar a Virgem Mana livre- ainda os persas. Pensaram que eu estava zombandodos dois
mente, e amaldiçoar Maomé, êsses em grego, aquêles em latim, partidos; de ?arte que já à entrada da cidade vi-me a braços com
outros em armênio 132. "Boa gente êsses turcos!" exclamei. Os um violento desaguisado: tive de dispor ainda de um bom número
cristãos gregos e os cristãos latinos eram inimigos de morte em de cequins para ver-me livre dos carneiros.
Constantinopla; êsses escravos perseguiam-se.uns aos outros, como
Ptolonguei a viagem até à China, com um intérprete, o qual
cães que se mordem na rua e recebempauladas dos donos pala me afirmou que aquêle era o país onde se vivia livre e alegre-
se separarem« O grão-vizir protegia então os gregos Fui acusa- mente. Os tártaras se tinham assenhoreado dêle 136, depois de
do belo patriarca grego de ter ceado em casa do patriarca latino, haverem pasto tudo a saque; e os reverendos padres jesuítas, de
e fui condenado,em plenário do Divã 1331a. tomar cem lam
bodas de sabre nas plantas dos pés, resgatáveis por.quinhentos um lado, com os reverendospadres dominicanosde outro, diziam
que estavam lá ganhando almas para Deus, embora ninguém
cequins. No dia seguinte,
o grão-vizir.
foi est:angulado.l.
e no soubesse nada a tal respeito. Nunca houve proselítistas tão ze-
subseqüente,'o seu sucessor, que era pelo partido dos latinos, e
losos:.porquo êles se perseguiamuns aos outros, vez por vez;
escreviam a Romã volumes de calúnias; tratavam-se müiuamente
de infiéis e prevaricadores,por causa de uma alma. Acima de

(134) Za ÍJa# i/laZ/a#: só Alá é Deus.


(135) Trata-se da rivalidade entre os descendentesde Tamerlão
(132) Gf. Estai sur Jes moezlrs,cap' 91- e uma outra dinastia tártara da facção do carneiro branco. (Cf. Estai
sur Jes moeufs, cap. 88) .
(133) O Divã é o equivalente do Conselho do Rei(cf. ZADIG,
vol. 1, n. 31). (136) Estai szlr Jei moezérs, cap. 145.
118 ROMANCES E CONTOS VIAGENS DE SCARMENTADO 119

tudo, havia uma terrível querela entre êles, relativa à naaneira que cortava algumas cabeças todas as sextas-feiras,depois da
de fazer a reverência. Os jesuítasqueriam que os chinesessau- oração.
dassem seus pais e suas mães à moda da China, e os dominicanos Eu não dizia palavra; as viagens me tinham formado, e eu
queriam que os saudassemà moda de Romã 137. Aconteceu que eu sentia que não era de minha atribuição escolherentre êssesdois
fosse tomado pelos jesuítas por um dominicano. Fizeram-me passar augustossoberanos. Um jovem francês,com quemeu me alo-
junto a Sua Majestade tártara por um espião do papa. O'Conselho java, faltou, confesso, ao respeito devido ao imperador das índias
Supremo encarregou um primeiro-mandarim, êste deu ordens a e ao do Marrocos. Teve a idéia de dizerindiscretamente
que,
um sargento, o qual destacouquatro esbirros do país para pren na Europa, havia imperadores muito piedosos, que governavam
der-me e amarrar-me de acordo com o cerimonial. Fui conduzido, bem os seus Estados e até frequentavamas igrejas, e nem por
depois de cento e quarenta genuflexões, perante Sua Majestade. isso matavam seus pais e irmãos, nem cortavam as cabeças dos
O soberanomandou que me perguntassemse eu era espião do súditos. Nosso intérprete transmitiu em hindustani o discurso
papa, e se era verdade que êsse príncipe deve:riavir em pessoa ímpio do jovem. Instruído pelas passadas experiências, fiz selar
destroná-lo. Respondi que o papa eia um clérigo de setentaanos às pressas meus camelos: partimos, o francês e eu. Soube depois
de idade; que vivia a quatro mil léguasde Sua Sagrada Majes- que naquela mesma noite os oficiais do grande Aureng-Zeb ti-
tade tártaro-chinesa;que tinha mais ou menos dois mil sol- nham ido prender-nos, só encontrando o intérprete. Êle foi exe-
dadosque montavama guarda com um guarda-sol;que não cutado em praça pública, e todos os cortesãos reconheceram, sem
destronavaninguém,e que Sua Majestadepodia dormir em per' bajulação, que sua morte fará muito justa.
feita segurança. SÓ me faltava ver a África para gozar de todas as doçuras
Foi a aventura menos funesta da minha vida. Mandaram-me de nosso continente. E pude vê-la. Meu navio foi apresado por
para Macau, de ondeembarqueipara a Europa. corsários negros. O nosso comandanteformulou grandes quei-
Meu navio tev.ede ser calafetadopela altura das costas de xas; perguntou-lhes por que violavam assim as leis das nações.
Golconda 138. Aproveitei êsse tempo para ir ver a carte do grande O capitão negro respondeu-lhe: "Tendes o nariz alongado e nós
Aureng-Zeb 139, a cujo respeito se diziam maravilhas no mundo: o temos chato; tendesos cabeloslisos e a nossa lã é irisada; ten-
êlo se encontrava então em Delhi. Tive a consolação de divisa-lo des a pele câr de cinza e a nossa é câr de ébano; por conse-
no dia da pomposacerimónia em que recebeu o presenteceleste guinte, devemos, segundo as leis sagradas da natureza, ser sempre
queIhe enviarao xerife de Mega. Era a vassouracoy a qual inimigos. Vós nos comprais nas feiras da costa da Guiné, como ani-
tinha sido varrida a casa santa, a Caaba, o Beth Alá. Essa vas- mais de carga, para nos fazer trabalhar em não sei que emprê-
soura é o símbolo que varre todos os lixos da alma. Aureng-Zeb go tão penoso quanto ridículo. Fazeis-nosescavar aá:montanhas,
não parecia ter necessidade dela: era o homem anais piedoso de sob a vergastade tendõesde boi, para retirar umá espéciede
todo o Indostão. É verdade que estrangulara um dos seus irmãos terra amarelaque, em si mesma,não serve para nada e não
e envenenara seu pai. Vinte rajás e outros tantos omrás tinham vale, longe disso, uma boa cebola do Egito; assim, pois, quando
sido mortosnos suplícios;mas isso nada era, e só se falava vos encontramos, e somos os mais fortes, nós vos escraviza-
de sua devoção. SÓ se podia comparara êle a sagradama- mos, nós vos fazemos lavrar nossos campos, nós vos cortamos
o nariz e as orelhas" 141
jestade do sereníssimo imperador do Mal'rocas, Mulei-lsmel 140,
Nada havia a replicar a um discurso tão;sábio. Fui lavrar
o campo de uma velha negra, para conservar minhas orelhas e
(137) O capítulo 39 do SiêcZe de Louis .r/r narra essas que- meu nariz. Fui resgatado ao fim de um ano. Eu tinha visto
reles.
(138) Na índia.
tudo o que há de belo, de bom e admirável sabre a terra: resolvi
não ver mais senãoos meuspenates. Casei-meem meu país:
(139) Imperador mongol do Indostão (1619-1707). blandou tornei-mecorno, e vi que essa é a condiçãomais doce da vida.
nder seu pai'e tornou-semais tarde suspeitode o haver envenenado:
foi coroado em Delhi, em 1659, e levou o império mongol ao seu apo-
geu; cf. .Essas .çtzr Ze.f moeu?"s, cap. 194.
( 140) CÂNDIDA, VOI. 1, 'n. 215.
( 141 ) Cf. CÂNoino, cap. XIX
MICRÕMEGAS 121

Os matemáticos, gente sempre útil ao público, tomarão ime


diatamenteduma pena e calcularão que, tendo o senhor Migra.
megas, habitantede Sírius, da cabeçaaos pés, vinte e quatro mil
MICRÕMEGAS pa?s21 que dão cento e vinte mil pés reais, e que nós outros,
cidadãos da Terra, não temos mais de cinco pég, e que nosso
globo tem nove mil léguas de circunferência, calcularão, dizía-
HISTÓRIA FILOSÓFICA i42 mos, que o globo que o produziu deve ter vinte e um milhões e
seiscentasmil vêzes.mais de circunferênciaque a nossa pequena
terra. Nada mais simplese mais comumna' natureza. Os Esta-
CAPÍTULO PRIMEIRO dos de alguns soberanos da Alemanha ou da Itália, que se po-
dem rodear em meia hora, comparadosaos impérios'da Turquía,
VIAGEM DE UM HABITANTEDO 14UND'O
DA ESTRELA da Moscóvia3. ou da China, são apenas uma fraca imagem'das
SIRIUS ' AO PJ:ANETA SOTURNO prodigiosas diferenças que a rlatureza põe nos diversos sêres.
Sendo a altura de Sua Excelência aquela que já mencionei,

E M UM dos planêtasque giram em tarro de Sírius, vivia um


jovem de muitos dotes,que tive a venturade conhecerpor oca'
todos os escultorese pintores concordarão sem dificuldade em
que a sua .cintura pode ter uns cinqüenta mil pés reais, o que sig-
niõca, aliás, que é bem proporcionado o nosso herói 145.
pião da última viagem que fêz ao nosso pequeno formigueiro; cha- Quantoao seu espírito, é um dos mais cultosque temos; sa'be
mava-se Micr6megas 143, nome que admiràvelmente convém a muita coisa, descobriu algumas: não contavaainda duzentose
todos os grandes. Tinha oito léguas de altura: bem entendido, cinqüenta anos e estudava, segundo o costume, no colégio jesuíta
léguas de vinte e quatro mil passos geométricos, de cinco pés cada do seu planêta, quando adivinhou só pela força do seu espírito
um 144. mais de ?inqüentaproposiçõesde Euclides; vantagem,poli, de
mais de dezoitosabre Blaíse Pascal que, pelo que diz sua ir-
(142) Edição original: Z,e il/{cromégasde .a/. de 7olfaire, 92 mã 146, adivinhou tl'inca e duas, depois do que veio a ser me-
págs., s. d., Londres, in-12. Uma edição de Berlim, de 1750, aparece díocre geâmetrae péssimometafísico. Quantia tinha uns qua-
antedatada, pois não se conhece nenhuma alusão a MIGRâMEGAS trocentos e cinqüenta anos, ao sair da infâl)cia, dissecou muitos
antes de março de 1752. dêssespequenosinsetos que não chegama ter cem pés de diâ-
A composição,
ou pelomenosa concepção
da obra,pareceque metro e que escapam aos microscópios Ordinários; escreveu a
remontaa 1739; com efeito: 1) a ação de MlcRâMEGASse passa
em 1737: cf. n. 161; 2) em carta datadade 5 de junho de 1752 respeito um livro curiosíssimo que Ihe custou, porém, alguns abor-
ao redator da Bib/iofAêque{mparfia/e,Voltaire qualifica de velha brin- recimentos. O mufti de sua terra, bisbilhoteiromuito ignorante,
cadeira êsse conto; 3) em junho de 1739,Voltaire enviou a Fre- achou em seu livro umas proposiçõessuspeitas,pouco confor-
derico "a relação da viagem... do senhor barão de Gangan. .. série mes, temerárias, heréticas, e perseguiu-o enèrgicamente; tratava-se
de parvoíces filosóficas", onde contudo se podia encontrar "pelo me-
nos uiü pequenoartigo cheio de verdade sabre as coisas da terra de saber se a forma substancialdas pulgasde Sírias era da illcs.
Em sua resposta (7 de julho), Frederico fala de Gangan como de um ma naturezaque a dos caramujos. Micrâmegasdefendeu-se com
'viajante celeste" que reduzia "ao seu justo valor o que os homens inteligência; teve a habilidade de pâr as mulheres do seu lado;
têm o costumede chamar grande". O "pequeno artigo" era uma ho- o processo durou duzentos e vinte anos. Afinal o mufti conse-
menagem a Frederico.
MlcRâMEGAS poderia, pois, ser uma reedição dessa yo7age
de Ganga7z,hoje perdida: mas, em tal caso, Voltaire teria suprimido (145) A adição original acrescentava: Se?zdo o iezl vzarizo
qualquer alusão a Frederico e rejuvenescidoalguns temas. \
lêrço do seu rosto, e seu belo rosto sendo a sétima parte da altura
(143) Isto é: Pegue?zo-gra7tde. de seu belo corpo, é preciso reconhecerque o nariz do habitantede
(144) O passogeométricomede5 pés, ou seja, l m 62; o pé, ou Si ius tem«seis mit trezel\tcse trinta e t ês. pés leais, mais uma {TaÇãa;
pé real, mede 12 polegadas,ou seja 0,324 m; a légua variava de :omo se q'devia demonst'ral.
uma província para outra. Voltaire Ihe dá 4.860 metros. (146) Gilberte Périer em yie de .4/. Pascal (1684).
122 ROA{ANOES E CONTOS M l C R ó bl E G A S 123

ruiu que o livro fosse condenado por jurisconsultos que nem o ti- ouvem na França a música de Lulli 151. Mas como o habitante
nham lido, e o autor teve ordem de não aparecer na côrte durante de Sírius tinha um espírito são, depressa compreendeuque um ser
oitocentos anos 147.
pensantepode muito bem não ser ridículo, apesar de não ter
Pouco se incomodoude ter sido expulsoduma carte que só mais de seis mil pés de alto. Familiarizou-se com os saturninos,
se ocupava de cavilações e mesquinharias. Fêz uma canção muito depois de ter produzido ulu certo espanto neles. Ligou-se de es-
engraçadacontra o muftí, que tambémnão se importou; foi en- treita amizade com o secretário da Academia de Saturno. homem
tão viajar de planêta em planêta para completar sua educação muito inteligenteque na verdade nada tinha inventado,tuas que
de espír1loe de coração148como se costumadizer. Os que só dava excelentesexplicaçõesdas invençõesdos outros e fazia, so-
viajam de segaou de berlindaficarão sem dúvida admiradosdos frivelmente, pequenos versos e grandes cálculos 152. Relato aqui,
meiosde locomoçãolá de cima; porque nós, que vivemos sôbre para satisfação dos leitores, uma singular conversa que Micrõme
êste pequeno monte de lama, não concebemos nada fora de nossos gas teve um dia com o senhor secretário.
Nosso viajante conhecia maravilhosamenteas leis da gra-
vitação e todas as largas atrativas e repulsivas; e servia-se delas
tão bem que, ora com o auxílio de um raio de sol, ora servin- CAPÍTULO SEGUNDO
do se de um cometa, ia de globo em globo, êle e os seus, como
os pássaros esvoaçando de galho em galho. Percorreu a Via Láctea CONVERSA DO HABITANTE DE SÍRIUS
em poucotempo,e sou obrigadoa confessarque jamais viu, COIT O DE SOTURNO
através das estrêlas de que ela se compõe, o belo céu, o empíreo,
que o ilustre vigário Derham149 se gaba de ter visto pela sua Sua Excelência reclinou-se e o secretário aproximou-se en-
luneta. Não que eu pretendainsinuar que o doutor Derham se tão do seu Tosta. "É preciso confessar, disse Micrâmegas, que a
tenhaenganado. Longe de mim tal idéias Mas Micrâmegasestava naturezaé bem variada." "Sim, disse o de Saturno. á nata;reza
no local, é um bom observador,e eu não quero contradizer nin- é como um canteiro cujas flores.. .'' "Ahl disse o outro, não
guém. Depois de uma porção de giros, Micrõmegaschegouao me fale em canteirosde flores." "A naturezaé então. continuou
planêtaSaturno. Apesar de estarbem afeito a depararcom o secretário,como uma reunião de louras e morenas cujos ador-
coisas novas, ao ver a pequenezdo globo e de seus habitantes, nos. .." ''Chia a que é que vêm agora as morenas?'çdisse o
não pede conter êsse sorriso de superioridadeque escapa às outro. "Pode-se então comparar a uma galeria de pinturas cujos
vêzes até aos mais ponderados. Porque, enfim, Saturno não é traços. .." "Oh! não! respondeu o viajante, digo-lhe de uma
senãonovecentasvêzesmais volumosoque a Terra, e os habitan- vezpo! todasquea naturezaé comoa natureza. Por quepro-
tes do país são anõesque não têm mais de mil coesas150de curar-lhe comparações?" "Para agradar-lhe", respondeu 'o secre-
altura. Êle caçoou um pouco da gente dessa terra, mais ou menos tário. "Não quero que me agradem,ajuntou o viajante; quero
como fazem os músicos italianos que se põem a rir quando que me instruam; comecepor dizer-me,primeiro, quantos sen-
tidos têm os homensdo seu planêta'' ''Temos setentae dois, disse
(147) "0 Senhor de Voltaire fera perseguido pelo teatino o acadêmico, e vivemos a lamentar que sejam tão poucos. Nossa
Boyer (cf. Zanga, nota 26), por ter dito em suas leffres PÀI/oso- imaginação ultrapassa as nossas necessidades; parece-nos que caIU
pÀiqzies que as faculdades de nossa alma se desenvolvem ao mes-
mo tempo que nossosórgãos, do mesmo modo que as faculdades da
alma dos animais". (Nota da edição de KeAJ.) (151) A querela em que os partidários da música francesa se
(148) A propósito dessa fórmula de Rollin, cf. O HloMEM DOS
opuseram aos partidários da música italiana iniciou-se em 1752.
Ç2uAKEmrAEsCuDos, vol. 11, n. 75. (152) Trata-se de Fontenelle (1657-1757), secretário da Aca-
(149) William Derham (!657-1735) autor da PÀysico-rÃeo/ogy demia das Ciências: êle relatará à sociedadefrívola, em estilo pre-
e da 2sfro-7#eo/ogy que provava a existência de Deus pela contem- cioso, as principais idéias científicas e filosóficasadquiridas no 'fim
plaçãodas maravilhas
da natureza:Voltaireacusa-ode não levar do .sé?ulo XVll (E7zfr?.tie7zs star /a pluraZífé des
capítulo seguinte .parodia as comparações galantes de Fontenelle, que
morzãeJ, 1686). o
em conta a experiência.
parecem envelhecidasnum tempo em que o progresso das ciências
( 150) A toesamedia 1,949 m. já divulgou suficientementeos têrmos técnicos.
124 ROMANCES E CONTOS MICRõMEGAS 125

nossos setentae dois sentidos, nosso anel, nossas cinco luas 153, onde se vive mil vêzes mais do que no pneu, e vi que também
somos ainda muito limitados e, apesar de nossa curiosidade e do lá havia as mesmasqueixas. Mas há em tôda parte gentesen-
grande número de paixões 154, que resultam dos nossos setenta /

sata que sabe tomar as coisas à boa parte e agradecer ao autor


e dois sentidos, vivemos mergulhados em contínuo tédio." "Com- da natureza. Êle espalhouno univer;o uma profusão de varie-
preendomuito bem isso, respondeuMicrõmegas; porque em nossa dadescom uma certa uniformidadeque é admirável155. Por
esfera temos nós quase mil sentidos; e apesar disso vivemos do- exemplo, todos os sêres pensantes são diferentes. e entretanto. no
minados não sei por que vagos desejos, uma espécie de inquie- fundo, todos se assemelhampelo dom do pensamento e pelos dese-
tação que pesa sabre nós e nos adverte sem cessar de que somos jos. A matéria é extensaem toda a parte; mas em cada globo
pouca coisa e há sêres muito mais perfeitos. Tenho viajado tem propriedades diversas. Quantas propriedades diversas tem
um pouco; vi mortais muito abaixo de nós; vi outros muito su- a matériadêsteplanêta?" "Se o senhorse refere,disseo de
periores; mas não encontreinenhunsque não tenhammais dese- Satuino, às propriedades sem as quais, segundo se pensa, nosso
jos do que verdadeirasnecessidades, e mais necessidadesdo que globo não poderia subsistir, são trezentas,tais como a extensão,
satisfações. Conhecereitalvez um dia urn país onde nada falte, a impenetrabilidade, a mobilidade, a gravitação, a divisibilidade
mas até hoje ninguém me deu notícias positivas dêle." O satur- etc." "É visível, replicou o viajante, que aos olhos do Criador
nino e o habitantede Sírius estenderam-seentão em conjecturas; um pequeno número era suficiente aos planos que tinha em
mas depois de muitas reflexões engenhosas e incertas tiveram de referência a esta pequena habitação. Admiro em tudo a sua
voltar aos fatos. "Qual a duração da vida aqui?" perguntou o sabedoria; em toda a parte há diferenças, mas sempre há pro-
de Sírius. "Ah! bem pequena", replicou o homenzinho de Sa- porção. Êste globo é pequeno, mas seus habitantestambém o são;
turno. "É entãocomoem minhaterra, disse o outro: sempre êstes têm .poucas sensações, mas também a matéria tem poucas
nos queixamosda exiguidadedos nossosdias. Talvez se trate propriedades: em tudo se encontra a Providência. De que câr é
de uma leí universalda natureza." "AI de nós! disseo satur- o sol aqui, quandocuidadosamente examinado?" "De um branco
nino, não vivemosmais de quinhentasgrandes revoluçõesdo amarelado,disse o saturnino; e quando dividimos os seus raios,
Sol (o que dá mais ou menosquinzemil anos, a contarpelo verificamos que tem sete Gares." "Noss.o sol, disse o de Sírius.
nosso modo). É a morte que chega quase na mesma hora em é avermelhado
e temostrintae novecôresprimitivas.Não há
que nascemos; nossa existênciaé um ponto, nossa duração um um único sol, entre os que pude ver de mais perto, que se pareça
instante, nosso globo um átomo. Apenas começou a gente a ins- com outro, assim como não há entre os habitantesdêstopaís um
truir-seum pouco, vem a morte e nos arrebata antes de poder- só que não seja diferentede todos os outros.''
mos ganhar experiência. Eu por mim desisto de fazer qualquer
plano; sinto-mecomo uma gata d'água no oceanoimenso. En. Depois de muitas perguntas dessa natureza, informou-se do
vergonho-me, sobretudo, diante do senhor, da figura ridícula que número de substâncias essencialmente diferentes que se contavam
faço nestemundo em que vivo" em Saturno. Soube que não passavamde umas trinta, como Deus,
Micrâmegas retrucou Ihe: "Se o senhor não fosse filósofo o espaço, a matéria, os sêres extensos que sentem, os sêres
extensos que sentem e pensam, os sêres pensantes que não têm
receada causar-lhedesgasto informando que em nossa esfera a extensão; os que se penetram, os que se não penetram etc.
vida é setecentas
vêzesmais longa; mas o senhorsabe que quan- O de. Sírius, em cuja esfera se conta;am trezentas,e que havia
do é necessárioentregar o corpo aos elementose reanimar a na- descoberto mais três mil em suas viagens, espantou prodigiosamente
tureza sob uma outra forma (isso a que chamaminotte), quando
chega o momento da metamorfose -- ier vivido uma eternidade ou
apenas um dia é precisamente a mesma coisa. Estive em países (155) Voltaire escrevera, em 1740, na ExPosili07z dzz Jíz,re def
/nsfífuti?ns pAysfques: "Parece que sementeum ser todo-poderoso
terá
podido fazer coisas infinitamentediferentes.. . mas parece também
que só um ser todo-poderosoterá podido fazer coisas infinitamente seme-
(153) Não eram conhecidosno tempo de Voltaire senão cinco lhantes.. . A proposiçãode Leibáitz é engenhosae grande, a proposição
satélites de Saturno. Herschel descobriu dois outros em 1789.
contrária é tão. verossímil, pelo menos, quanto a sua. Tal sempre foi a
(154> No sentido do século XVl!: fenómeno passivo da alma. sorte da metafísica .. .
126 ROA{ANCES E CONTOS Micnõ MEGOS 127

o filósofo de Saturno. Enfim, depois de terem transmitido um ao do ilustre arcebispo de, . . que me permitiu ver seus livros com
outro um pouco do que sabiam e muito do que não sabiam, uma generosidadee uma bondade nunca assaz louvadas158
depois de terem trocado idéias durante uma revolução do sol, Voltemos, porém, aos viajantes. Deixando Júpiter, atraves-
resolveramfazer juntos uma pequena viagem filosófica. saram um espaço de mais ou menos cem milhões de léguas, e pas-
saram ao lado do planetaMalte que, como se sabe, é cinco vêzes
menor que o nosso globozinho: viram duas luas que servem êsse
planêta e que escaparam aos olhos dos nossos astrónomos. Sei
CAPA'lTLO TERCEIRO que o padre Cartel 159 vai escrever, e mesmo com bastantegraça,
contra a existência dessas duas luas; mas apelo para os que racio-
VIAGEM DOS DOIS HABITANTES DE SÍRIAS E DE SOTURNO cinam por analogia. Êsses bons filósofos sabem quanto seria
difícil que Marte, tão longe do Sol, pudessepassar com menos
Os dois filósofos estavam prontos para embarcar na atmos- de duasluas. Seja como fâr, os nossosviajantesacharamtão
fera de Saturno, providos de uma bonita coleção de instrumentos pequeno êsse planeta, que recearam não encontrar nêle lugar
matemáticos, quando a amante do saturnino, tendo sabido do que suficiente para se deitarem, e assim passaram adiante, como quem
se passava, acorreu em lágrimas a fazer seus protestos. Era uma despreza uma estalagem de aldeia e vai eln busca da cidade vizi-
bonita moreninha, que não tinha mais de seiscentas e sessenta nha. Mas o habitante de Sírius e seu companheiro arrepende-
coesas, mas que compensava com outros atrativos a mesquinhez ram-se logo. Caminharam muito e nada acharam. Divisaram en-
da sua estatura. "Ah! cruel! exclamavaela, depoisde ter resis- fim uma pequena claridade: era a Terra, que os encheu de comi
tido durantemil e quinhentosanos, agora que eu começavaa ce- geração, a êles, que vinham de Júpiler. Entretanto, não querendo
der, agora, quandofaz apenasum século156que vivo nos teus arrepender-se
mais uma vez, resolveramdesembarcar. Passaram
braços, tu me abandonaspara viajar com um gigantedo outro para a cauda do cometa e, encontrando a propósito uma aurora
mundos Vai-te, não passasde um curioso, jamais conhecesteo boreal, puseram-sedentro dela e chegaram à Terra na margem
amor; se fossesverdadeirosaturnino,serias fiel. Aonde vais? setentrional do mar Báltico, a 5 de julho de 1737, data contada
à maneira moderna 160
Que queres? Nossas cinco luas são menos errantesdo que tu
e nosso anel é menos mutável. Está tudo acabado. Não amarem
mais ninguém". O filósofo abraçou-ae chorou com ela, apesar
de ser filósofo; e a dama, depois de ter desmaiado, consolou-se CAPÍTULO OtJAB TO
com um peralvílho qualquer que encontrou. Entretanto partiram
og dois curiosos; saltaram primeiro a um dos anéis, que verifi- O QUE LHES ACONTECEU NO GLOBO TERRESTRE
caram ser bastante achatado, como adivinhou um ilustre habitante
do nosso pequeno globo 157; daí passaram fàcilmente de lua em Depois de descansaremum pouco, comeram duas montanhas
lua. Um cometaviajara perto da última e êles alcançaram,com que seus criados lhes prepararam à guisa de almoço. Quiseram
todosos seus criados e a bagagem. Depois de fazeremcêrca de
cento e cinqüenta milhões de léguas, encontraram os satélites de (158) O texto de 1752 acrescentava: Por isso mesmo, promefo-
Júpiter. Alcançaram em seguida o próprio Júpiter, onde per- .he um longoartigona próximaediçãoque se fizer de Moíevi,e,
maneceramum ano, durarlte o qual descobriram alguns belos gspeciatmente, hei de lembrar-me de seus filhos, que dão tão grande
segredos, que estariam agora publicados se os senhores inquisi- esperançade se }eTPetuar a Taça de seu ilustre pai.
dores não tivessem achado um pouco inconvenientes algumas pro- Trata-se..do Gra?zd 2)írfi07z7zaire
/!íísforiquede Moreri( 1674), vá-
rias vozeseditadoe aumentadono séculoXVIII.
posições. Mas eu tive ocasião de ler o manuscrito na biblioteca
(159) O padre Gastei, jesuíta (1688-1757), escrevia no /our7zaJ
de Tr/uoux; várias das suas resenhasdesagradarama Voltaire, que
o considerou sempre um charlatão.
(156) Em todas as edições anteriores a 1775 dois séculos.
(160) Isto é, começandoo ano no dia l.ç de janeiro, e não na
Páscoa.
(157) Huyghens.
T
128 ROMANCES E CONTOS MICROMEGAS 129

então reconhecem
a região em que se encontravam. Caminharam num lugar tão desagradável." "Pode muito bem ser, disse Mi-
primeiro de norte a sul. O passo ordinário do habitante de Sírius crâmegas, que os seus habitantes não sejam, de fato, gente sen-
era de cêrca de trinta mil pés reais; o anão de Saturno,acompa- sata. Mas duvido que isto não tenha algumautilidade. Tudo
nhava-os de longe, esbofado, porque tinha de dar doze passos parece irregular aqui, porque em Júpiter e Saturno tudo é feito
para avançar o que êle fazia com uma pernada: mal comparan- a régua,e é tambémpor isso que aqui tudo pareceum pouco
do, eram como um capitão da gual'dado rei da Prússia seguido confuso. Não Ihe disse que em minhas viagens sempre notei
de seu cachorrinho. a variedade das coisas?''' O saturnino respondeu a todas essas
Os viajantes caminhavam bastanteràpidamentee fizeram o razões e a discussão não acabaria, se por felicidade Micrâme
giro da Terra em trinta e seis horas; o Sol, ou melhor,a Ter- gas, exaltando-seum pouco no falar, não tivessearrebentadoseu
ra, em verdade, faz o mesmo giro em um dia; mas é preciso lem- colar de diamantes. Os diamantes caíram; eram pequenas pedras,
brar que é muito mais fácil girar sabre um eixo do que andar muito bonitas, mas bastante desiguais, pesando as maiores umas
a pé. Ei-los, pois, de volta ao ponto de partida, depois de terem quatrocentas libras e as menores, cêrca de cinqüenta. O anão apa-
vista)êsse lagozinho quase imperceptívelpara êles, que é cha- nhou algumas, e percebeu, ao aproxima-las dos olhos, que êsses
mado /l/ediZerrânea,e êsse outro pequeno lago que rodeia uma diamantes, pela forma da sua lapidação, constituíam excelentes
colinazinha, a que damos o nome de Gra/tde Oc-Cano. O anão microscópios. Pegou, pois, um pequenomicroscópiode cento e
tinha a água no máximo até o meio da perna, ao passo que o sessentapés de diâmetro que aproximou da pupila. E Micrâ-
outro mal havia molhadoos pes Fizeram o que foi possível, megas escolheu um de dois mil e quinhentos pés. Eram excelen-
andando de um lado para outro, a fim de verificar se êsse globo tes, mas a princípio nada viram com auxílio dêles; importava
era habitado ou não. Abaixaram-se, deitaram-se,apalparam, mas ajusta-los. Enfim o habitantede Saturno víu algo quaseimper-
suas mãos e seus olhos não eram adequados à percepção dos ceptívela mover-sesabrea água,no mar Báltico;era uma ba-
pequeninossêres que se arrastam aqui; não acharam o menor leia. Êle a tomoucom o dedomínimo,com muito jeito, pâ-la
indício que pudesse leva-los a suspeitar que nós e nossos irmãos, sabre a unha de seu polegar e a mostrou ao companheiro,que
habitantesde outras regiões do globo, temos a honra de existir. se pâs a rir da pequenez
dos habitantes
do nossoglobo. O sa-
O anão, que julgava às vêzes um pouco precipitadamente, turnino, convencidoagora de que o nosso mundoera habitado,
afirmoulogo que a Terra era desabitada. A razão era que não supôs então que o era só por baleias: e como fôsse muito exco-
tinha visto ninguém. Micrõmegasmostrou-lhedelicadamenteque gitador, quis saber qual a origem dêsse pequenino átomo de vida,
estava raciocinando mal. "Com seus pequenos olhos, dizia, o se- donde tirava êle o seu movimento, se tinha idéias, vontade, liber-
nhor não é capaz de ver certas estrêlasda quinquagésimagran- dade. Micrâmegas ficou muito embaraçado; examinou paciente-
deza que eu entretanto percebo distintamente; poderia concluir mente o animal e o resultado do exame foi que não era possível
por isso que essasestrêlasnão existem?" "Mas, disse o anão, crer quetal corpoalojasseuma alma. Os dois viajantesincli-
eu apalpeibem." "É possível,contudo,que o senhor não tenha navam-se,pois, a admitir que não existia em nossoglobo qualquer
o taro bem desenvolvido", respondeu o outro. "Porém, obtem- manifestação de inteligência, quando, com o auxílio do microscó-
perou o anão, êste globo é tão mal construído,de foi'mas tão ir- pio, perceberamalgo do tamanhode uma baleia que boiava no
regulares,que parecebem ridículo! Tudo é caótico; veja êsses mar Báltico. Sabe-seque por êsse tempoum bando de filóso-
fios de água, nenhum-n dêlesem linha reta, êssestanquesque não fos 161voltava do círculo polar, ao qual tinham ido para fazer
são nem I'edondosnem quadrados, nem ovais, que não têm nenhu- certas observações, das quais ninguém tomara conhecimento até
ma forma regular, enfim; veja essas pequenas protuberâncias então. Os jornais noticiaramque o barconaufragarano golfo
pontiagudas que me escalavraram os pés (falava das montanhas) ! Bótnia e que os filósofos se salvaram com dificuldade; mas
Note ainda a forma do globo; como é achatado nos pólos, como
gii'a em terno do Sol de uma maneira desajeitada,de forma que
os climas nos pólos são necessàriamenteimpróprios a qualquer (161) MauÓertuis, Clairaut, Camus e Le Monnier: em 1736-37,
foram a Tolnea, na Noruega,medir um, grau do meridiano;trou:
cultura. Na verdade,o que me leva a supor que não há viva xeram de lá duas habitantesda Lapânia. Voltaire só se desaveio com
alma nesta esfera é que gente de bom senso não permaneceria Maupertuis em 1752, por ocasiãodo caso K.oenig.
9
130 ROMANCES E CONTOS MICRO MEGAS 131

nestemundo nunca se conheceo reversodos acontecimentos.Vou Se por acaso algum capitão de granadeiros vier a ler esta
contar ingênuamentecomo a coisa se passou, sem nada acres- obra, não duvido que queira aumentarde dois pés ao menos a
centar de meu, o que não deixa de ser um grande esforço para alturados bonésde sua tropa; advirta, entretanto,de que, por
um historiador. mais que façam, êle e os seus não deixarão de ser infinitamente
pequenos.
CAPÍTULO OUINTO Que habilidademaravilhosanão foi necessáriapara que o
EXPERIENCIAL E REFLEXOES DOS DOIS VIAJANTES nosso filósofo de Sírius viesse a perceber êsses átomos de que
acabo de falar? Quando Leuwenhoeck e Hartsoecker 164 viram
ou julgaram ver pela primeira vez os elementos de que somos
Micrõmegaslevou a mão, com muita cautela,ao lugar onde formados, não fizeram na realidade tão grande descoberta. Que
aparecia o objeto ; estendeu depois dois dedos, mas retirou-os logo, prazer sentia Micrõmegas vendo moverem-seessas màquinazinhas,
temendo não acertar; afinal, abrindo-os e fechando-os conseguiu
e examinando
as voltasque davam,e seguindotodas as suas
apanhar, com grande destreza, o navio que transportava os refe-
ridos senhores,e o pâs sôbre a unha, bem devagar, a fim de não ?peraçõesl Que exclamaçõessoltou! Com que pressa p6s um
dos seus microscópios nas mãos do companheiro de viagem! "Es-
esmaga-lo. "Eis um animal bastante diferente do primeiro", disse
tou vendo, diziam ambos ao mesmo tempo; olhe como carregam
o anão de Saturno; o de Sírius põs o pretensoanimal na concha fardos, como se abaixam e se levantam!" E, assim falando, as
de sua mão. Os passageiros
e a tripulaçãojulgaram-searre- mãos lhes tremiam do prazer de contemplaremsêres tão dife-
batados por algum furacão, pensaram ter dado sôbre um I'oche- rentes, e do receio de os perderem. O saturnino, passando de um
do e puseram-seem movimento. Os marinheiros pegamtonéis de
excesso de desconfiança a um excesso de credulidade, julgou
vinho, atiram-se sabre a mão de Micrõmegas e precipitam-se em perceber que trabalhavam na própria propagação. ",4ã/' dizia,
seguida. Os geõmetras apanham seus quadrantes, seus setores, apanhada a rz.clareza ern /magra/zle/165. Entretanto, iludia-se com
maças da Lapõnia, e descem sôbre os dedos do habitante de Sírius.
E tanto se agitaram que afinal êle sentiu algo que se mexia e Ihe as aparências,o que freqüentemente
acontecetanto aos que se
servem do microscópio, como aos que dêle não se servem.
fazia cócegas; era uma bengalaferrada que Ihe enterravamno
index, à profundidade de um pé; ao sentir essa picada concluiu
que alguma coisa saíra do animalzinho que segurava; mas, a prin'
copio,de nada mais suspeitou. O microscópio,que apenasdava CAPÍTULO SEXTO
para enxergaruma baleia e um navio, não Ihe permitia distin-
guir um ser tão minúsculocomo o homem. Não quero aqui ferir O QUE LHES ACONTECEU ENTRE OS HO)BENS
a vaidade de ninguém, mas peço às pessoas importantes que façam
uma pequena observaçãocomigo: é que sendoem média a altura Micrâmegas,muito mais observadordo que o anão, viu cla-
dos homens cinco pés, não fazemos sabre a superfície da terra ramente que os átomos falavam uns aos outros; chamou a aten-
figura maior do que um animal da altura da sexcentésima-milési- ção do seu companheiro que, envergonhado de se ter iludido
ma 162parte de uma polegada sabre uma bola de dez pés de cir- quanto ao assuntoda reprodução, não queria admitir que tais
cunferência. Que se penseem um ser capazde segurar o globo espéciespudessem comunicar suas idéias. Êle, como o seu amigo
terrestre em sua mão e que tivesse órgãos proporcionais aos nos- de Sírius, tinha capacidadepara as línguas, mas não ouvia a voz
sos (e é possível que haja um grande número de sêres dêsses) dos átomose supunhaque não soubessemfalar; aliás, como
e conceba-se,peço, o que tais sêres pensariam dessas batalhas poderiam ter órgãos vocais êsses sêres imperceptíveis,e que te-
em que ganhamos duas aldeias, que depois precisamos devolver 163.
(164) Cf. O HOMEM OOS QUARENTA ESCUDOS, VOI. II, Pág. 36
(162) Texto de 1752: iexízgésim.z-milésima. n 4
(163)
Fava em seguida
Texto de 1752: que fazem o z,e7zcedor
a peTdev.
gcznAaruma a/dela (165) Expressão de Fontenelle (ÉZoge de ]/. de rournelrorf,)
'A natureza... foi, por assim dizer, apanhada em flagrante
].32 ROMANCES E CONTOS MICROMEGAS 133

riam êles a dizer uns aos outros? Para falar é precisopensar, rinheiros praguejaram, e os filósofos do barco construíram siste-
ao que parece; mas se êles pensam é que possuem algo equi- mas; mas por mais sistemas que fizessem não podiam perceber
parávelà alma. Ora, atribuir o equivalentede uma alma a essa quem lhes falava. O anão de Saturno, que linha uma voz mais
espécieera coisa que Ihe parecia absurda. "Mas, disse o de branda do que Micrâmegas, informou-osentão, em poucas pala-
Sírius, o senhor inda agora estava p-ensando que êles praticavam vras, sabre as espéciescom as quais estavamlidando. Contou-
o amor; crê que se possa fazer isso sem pensar e sem proferir Ihes a viagem que fizeram, disse-lhesquem era Micrâmegas e,
alguma palavra, ou ao menos sem um entendimentomútuo? Su- depois de lamentar que fossem tão pequenos, perguntou-lhes se
põe que seja mais difícil produzir um argumentoque um filho? tinham vivido sempre nesse miserável estado tão vizinho do ani-
Por mim, julgo que grande mistério encerra tanto uma coisa como quilamento; indagou o que faziam num globo que parecia do-
a outra." "Não ouso mais nem admitir nem negar, disse o anão, minado pelas baleias: quis saber se eram felizes,se se multiplica-
não tenho opinião formada; examinemos os insetos e dep.ois me- vam, se tinham alma e cem outras coisas dêsse gênero.
ditaremos." "Muito bem", respondeu Micrõmegas; e pegou numa Um argumentadordo bando, mais ousado que os outros, in-
tesouracom a qual cortou as unhas. Com uma apara da unha dignado com quem duvidava da sua alma, observou o interlocutor
do seu polegar fabricou uma espécie de trombeta falante, como com umas pínulas ajustadas a um quadrante, tomou duas post'
um vasto funil, e meteu a ponta do tubo no próprio ouvido. A ções e, na terceira, assim falou: "Meu caro senhor, julga que,
circunferênciado funil envolviao navioe toda a tripulação. A pelo fato de ter mil toesas dos pés à cabeça, é um. . ." "Mil toe-
voz mais fraca entrava nas fibras circulares da unha, de sorte sasl exclamou o anão; céusl como pode êle saber a minha altura?
que, graças à sua habilidade, o filósofo lá de cima ouviu o mur- Mil toesasl Não faz êrro de uma polegada! Vejam só! Êsse
múrio dos insetosque vinha de baixo. ]=mpoucashoras conse- átomo medindo-me a mima É um geâmetra, sabe o meu tama-
guiu distinguir as palavras, e enfim compreendeuo francês. O nho, ao passo que eu, que só coso vê-lo pelo microscópio, ainda
anão o conseguiutambém,ainda que com mais dificuldade. O não sei o dêle!" "Sim, disse o físico, tomei sua altura e poderei
espantodos viajantes redobrava a cada instante. Ouviam os bi- medir também a do seu companheiro"'. A proposta foi aceita; Sua
chinhos a conversar mui sensatamentee êsse brinquedo da natu- Excelência estendeu-sea fio comprido, porque de pé a cabeça
reza lhes parecia inexplicável. É bem de ver que o habitantede ficaria ]-muito acima das nuvens. Os nossos filósofos plantaram-
Sírius e seu companheiro ardiam de vontade de travar coTiversa- -lhe uma grandeárvore em um lugar cujo nome o doutor
ção com as minúsculascriaturas; o anão temia que sua voz de Swift 166 não hesitaria em dizer, mas que eu por mim recuso de-
trovão, e principalmente a de Micrâmegas, ensurdecesse os bi- nominar, pelo grande respeitoque me inspiram as damas. De-
chinhos sem ser entendida. Era preciso diminuir a força. Me- pois, por uma série de triângulos,concluíramque aquilo que
teram na baga uma espécie de pequenospalitos, cujas pontas viam era com efeito um jovem de cento e vinte mil pés de com:
muito afiladas vinham terminar perto do navio. O de Sírius pâs primento.
o anão sôbre seus joelhos, e o navio com a tripulação sabre a
unha; abaixava então a cabeça e falava baixo. Com essas pre- Então Micrõmegas pronunciou estas palavras :
c€

cauções e outras mais, começou então o seu discurso: Agora, mais que nunca,vejo que não se pode julgar coisa
alguma pelo tamanho. Ó Deus! Deste inteligência a substâncias
"lnsetos invisíveis a que a mão do Criador se compraz ern que parecem tão desprezíveis; o infinitamente pequeno merece
dar vida nos abismosdo infinitamentepequeno;rendo-lhegra- tanto como o infinitamentegrande; e se é possívelque haja sêres
ças porque se dignou descobrir-mesegredos que pareciam impe- ainda menores que êstes, podem êles também ter um espírito
netráveis.Na carte em que vivo ninguémdecerto se importaria superior ao dêsses soberbos animais que vi nos céus, cujo pé bas-
convosco, mas eu não desprezo criatura alguma e ofereço-vos
9
tava por si só para cobrir o globo em que me acho!"
a minha proteção Um dos filósofosrespondeu-lhe que há com efeitosêresinte-
Se já houve quem ficasse verdadeiramente espantado, falam ligentesmuito menores que o homem. Contou-lhe,então tudo o
as pessoas que ouviram essas palavras. Não podiam adivinhar
donde vinham. O capelão do navio recitou exorcismos, os ma- (166) Em seu Gtíliuer,que é de 1726
134 ROMANCES E CONTos MlcKÓ MEGAS 135

que Virgílio disse de fabuloso sôbre as abelhas, mas o que Swam- tenda uma migalha qualquer dêsse monte de lama. A questão
merdam descobriu e Réaumur dissecou 167. E falou-lhe por fih é saberse o mesmopertencerá
a um dadohomemque se cha-
de animais que estão para as abelhas como as abelhas estão para 7 ma Sultão ou a um outro que, não sei por quê, se chamaCasar.
o homem; ou o que o habitante de Sírius mesmo era para êsses Nem um nem outro jamais viu nem verá êssepedacinhode terra
animais tão grandes de que falava, e o que êstes, por sua vez, e, dêsses animais que se chacinam, poucos são os que já viram
eram para outros ainda maiores ante os quais parecem átomos. alguma vez a pessoapela qual se matam.
Pouco a pouco a conversação tornou-se interessantee Micrâmegas "Ah! infelizes! exclamou o de Sírius, com indignação, pode-se
assim falou.
conceber tal excesso de ódio? Tenho ganas de dar três passos
e esmagar com os pés, em três tempos, êsse formigueiro de ridí-
CAPÍTULO SÉTIMO culos assassinos!" "Não vale a pena, responderam-lhe;êles já
trabalham suficientemente pala sua ruína. No fim de dez anos
CONVERSA COM OS HOMENS não restará mais que a centésimaparte dêssesmiseráveis; mes-
mo que não usassem a espada, a fome, a fadiga e a intempe-
"Ó átomos inteligentes, em quem aprouve ao Ser Eterno ma- rança destruiriam quase todos. Aliás, não são êles que merecem
nifestar sua sabedoria e poder, deveis sem dúvida experimentar as castigo,mas êssesbárbarossedentáriosque, no fundo de seus
mais puras alegriasem vosso globo; porque, tendotão pouca gabinetes,enquanto fazem a digestão, ordenam o morticínio de
matéria, parecendo puro espírito, passais certamente a vida a um milhão de homens e em seguida, solenemente,mandam ren-
amar e a pensar; é nisso que consiste a verdadeira espirituali- der graças a Deus". O viajante sentiase tomado de compaixão
dade. Nunca a encontreiem parte algumaa verdadeira felici- pela pequena raça dos humanos, na qual encontrava tão espantosos
dade, mas sem dúvida aqui a encontrarei". A essas palavras contrastes. "Visto que pertenceísao pequenonúmero dos pru-
todos os filósofos sacudiram a cabeça; um dêles, mais franco dentes, disse êle aos filósofos, e que, pelo-que parece, não matais
que os outros,confessoude boa fé que, com exceçãode um ninguémpor dinheiro, dizei-me,peçovos, em que vos ocupais.
pequeno número de habitantes, mui pouco estimados, todos eram "Nós dissecamosmoscas, medimos linhas, reunimos números; es-
um conjunto de loucos, malvados e infelizes. "Temos matéria tamos de acordo sabre duas ou três coisas que entendemos,e dis-
mais que suficientepara causar-nosmuito mal, se é que o mal cutimos sôbre duas ou três mil que não entendemos". Ocorreu-lhes
vem da matéria; e espírito demais também, se é que o mal vem então, ao de Sírius e ao satumino, a idéia de interrogar os átomos
do espírito. Saberá o senhorque, no momentomesmoem que pensantessôbre os pontos em que concordavam. "Em quanto cal-
Ihe' falo 168, há cem mil loucos da nossa espécie, que usam cha- culais a distância da Canícula à grande estrêla dos Gêmeos?"
:péu, a assassinar cem mil outros animais que usam turbante (a Êles responderamtodos ao mesmo tempo: "Trinta e dois graus e
assassinarou a seremassassinados)
; e que na Terra inteiraé meio." "Qual a distânciada Terra à Lua?" "Em númerosre-
isso que se vê desde temposimemoriais?" O habitantede Sírius dondos, snsenta meios diâmetros da Terra." "Quanto pesa a
estremeceue perguntou qual poderia ser a causa de tão terríveis vossa atmosfera?" Pensavam atrapalha-los com tal pergunta, mas
lutas entre animais tão mesquinhos. "Trata-se, respondeu o filó- todos lhes disseram que o ar pesa cêrca de novecentas vêzes
sofo, de algum monte de lama 169 do tamanho do seu calcanhar. menos que um volume igual da água mais leve, e mil e novecentas
Não que nenhum dêssesmilhões que mutuamentese degolam pre- vêzesmenos170que o ouro amoedado. O anãozinhode Sa-
turno, admirado com suas respostas, estêve a ponto de tomar por
(167) Alusão ao canto IV das Geórgicczi,à Bíblia nafurae siz'e feiticeiros aquêlesmesmosque um quarto de hora antes não que-
J7isforia nsectorunz (1737-39) do naturalista holandês Swammerdam ria crer quetivessemalma.
(1637-1680) e às .4/émoíres tour I'Aísfoire des insecfes (1735) de Réau-
rn ilr
11

(168) Alusão à guerra de 1736-39entre os turcos e os russos, alia- (170) Tal é o texto de 1756 a 1775. Kehl corrige: dezenove
dos aos austríacos. miJvêzesmenos... A ediçãode 1752trazia: "0 ar pesacêrcade
( 169) A Criméia. novecentas vezes menos que o ouro
136 ROMANCES E CONTOS MICROMEGAS 137

Enfim, Micrâmegas lhes disse: "Visto que sabeis tão bem o tudo; é êle quem tudo faz, sem que eu me intromete"173. "Se
que se.acha tola de vós, sem dúvida conheceismelhor o que assim é, tanto vale existir como não existir, respondeu o sábio de
existedentro. Dizei-meo que é a vossa alma e como formais Sírius. E você, meu amigo, disse a um leibnitziano, o que pensa
as idéias." Os filósofosfalaram todos ao mesmo tempo,como an- de sua alma?" "É, respondeu, um ponteiro que marca as horas
tes; mas cada qual tinha uma opinião . O mais velho citava Aris- enquantoo meu corpo faz o papel de relógio174,ou ainda, se
tóteles, outro pronunciava o nome de Descartes, êste o de Male- quiser, é ela que faz o papel de relógio enquanto meu corpo marca
branche, aquêle, o de Leibnitz, uin outro o de Locke. Um velho as horas; ou então minha alma é um espelho do universo e o meu
peripatético
dissebem alto e com confiança: "A almaé uma corpo é a moldura dêsseespelho: tudo isso é claro."'
enteléquiae uma razão pela qual ela tem o poder de ser o que é. Um pequeno adepto de Locke estava ali perto e, quando afi-
É o que declaraexpressamente Aristóteles,à página 633 da edi-
nal Ihe dirigiram a palavra, disse: "Não sei como penso, mas
ção do Louvre 171: «EvTeÀ:beta êazc.» "Não entendo
muito sei que nunca penseisem o auxílio dos meus sentidos. Que haja
bem o grego", disse o gigante. "Nem eu tampouco'',disse a substâncias imateriais e inteligentes, não duvido; mas duvido
traça filosófica. "Por que então cita em grego êsse tal Aristó- muito que seja impossível a Deus comunicar pensamentoà ma-
teles?" ''Porque é preciso dizer o que não se compreendenuma téria. Reverendo o poder eterno; não me toca traçar-lhelimi-
língua que ainda menos se entende",'disse o sábio. tes: nada afirmo; contento-me
em pensar que há muito mais
O cartesianotomou a palavra e disse: "A alma é o espírito coisas possíveis do que se pensa"
puro que recebeu no ventre materno tôdas as idéias metafísi-
O animalde Sírius sol'riu; pareceu-lheque não era êsseo
cas 172,e que, saindo dêsse lugar, tem de ir à escola, aprender menossábio; e o anão de Soturnoteria abraçadoo sectáriode
do n?vo ! que sabia tão bela e não conseguirásaber'nunca Locke, não fosse a extrema desproporção dos respectivos cor-
mais.''' "De que vale, disse o animal de oito'léguas, que a sua pos. Mas havia também,por infelicidade,um animalzinho
de
alma seja tão sábia no ventre materno, se vem 'a ser ião igno- Barro quadrado 175 que cortou a palavra a todos os outros ani-
rante..quandotem barba no queixo? Mas que entendepor espí- mais filósofos; disse que conheciatodo o segrêdo,que tudo se en-
rito?" . .'Que me pergunta? disse o argumentador; não faço' a contrava na "Suma" de Santo Tomas; olhou de alto a baixo os
menor ideia; dizem que não é matéria.;' "Mas sabe ao menos
dois habitantesdo céu; asseverouque suas pessoas,os mundos
o que é a matéria?"' "Muito bem, respondeu-lheo homem. Por que habitavam, o seu Sol e suas estrêlas,tudo era feito exclusiva-
exemploesta pedra é cinzenta, tem uma certa forma e três di-
mentepara o homem. Ao ouviremessaspalavras,os dois via-
mensões; é pesada e divisível." "Pois bem, respondeu o de Sí-
jantes quase sufocaram de tanto rir, dêsse riso inextinguível que,
riu$, ! que é essa coisa que Ihe parece divisível, pesada e cinzen- no dizer de Homero 176, é privilégio dos deuses; suas espáduas
ta? Vê alguns atributos; mas o fundo da coisa, você o conhece?" e seus ventreslevantavam
e baixavame, nessasconvulsões,o
"Não''', disse o outro. "Não sabe então o que é a matéria." navioque o habitantede Sírius tinha sabre a unha caiu num
Micrâmegas dirigiu-se em seguida a um outro sábio que balsa das calças do saturnino. Os dois bons tipos procuraram-no
estava em cima do seu polegar, perguntou-lheo que era a sua por muito tempo; por fim o encontrarame o arranjaramde
alma e o que ela fazia. "Nada, disse o filósofo malebranchiano; novo muito bem. O habitante de Sírius tornou a pegar nos bi-
l
é Deus que faz tudo por mim: tudo vejo nêle, e nêle é que faço chinhos, falou-lhes ainda com muita bondade, apesar de estar,

(171) Isto é, a ediçãode Guillaume


du Val, publicada
em (173) Trata-se da visão em Deus: cf. O InGÉNuo, vol. 1, n. 293.
1619 (Da a/ma, liv. 11, cap. 11). No lugar do texto grego,
ção de 1752, 1ia-se: filou a passagem. A edição de Berlim. datada
na edi-
(174) Em virtude da harmonia preestabelecida, doutrina "segundo
a qual não há ação direta das substânciascriadas uma sabre a outra,
de 1750,cita toda a frase de Aristóteles: 'llvt:ÀeXeca TIÇ êaTC mas apenas um desenvolvimento paralelo que mantém entre elas. a
cada momento, uma relação mútua prèviamente estabelecida". (Lalan-
zat ÀÓYOÇ oü ÕÚvaFcv êXovtoç TocouÕt etvac. de, 7ocabzzlaírede Za pÀiZosophíe,
t.'l, pág. 291.)
(172) Voltaire censura Descartes por crer no caráter inato das (175) Alusão satírica de Voltaire aos doutores da Sorbonne.
idéias.
(176) 1Jíada, 1, v. 599.
138 ROMANCES E CONTOS

no fundo do coração,meio zangadode ver o orgulhoinfinita-


mente grande de sêres que eram infinitamentepequenos. Pro-
meteu-lhesum bonito livro de filosofia escrito com letras bem
pequenas, adequadas à sua vista, em que encontrariam a essên-
cia das coisas.
Efetivamente, antes de partir deu-lhes o livro: levaram-no HISTÓRIA DE UM BOM BRÂMANE i78
para Paria, à Academia de Ciências; mas quando o secretá-
rio 177o abriu, verificou que estava em branco do princípio ao
fim. "Ah! disse êle, eu bem que o suspeitava."
E NCONTREI nas minhas viagens un] velho brâmane, homem
de grande sabedoria,espirituosoe muito instruído; era, além dis-
so, rico, e a riqueza o tornava mais sábio ainda; porquanto, não
tendocarênciade nada, tambémnão tinha necessidadede en-
ganar ninguém. Sua famíliaera muitobem governadapor três
excelentesmulheresque tudo faziampara agradar-lhe;e êle,
quando não se divertia com elas, passava o tempo a filosofar.
Perto de sua casa, que era linda, ornada e encantadoramente
ajardinada, morava uma velha indiana muito devota, imbecil e
pauperrima.
O brâmane um dia me disse: "Eu quisera não ter nascido."
Perguntei-lhe por que assim falava. Respondeu-me: "Há qua-
renta anos que me dedico ao estudo -- quarenta anos perdidos;
ensino os outros, e tudo ignoro; isso me põe na alma tanta hu-
milhaçãoe desgasto,que a vida me é insuportável.Eu nasci,
vivo no tempo,e não sei o que é o tempo;encontro-me num
ponto entre duas eternidades179, como dizem os nossos sábios,
e não tenho idéia nenhuma da eternidade. Sou composto de ma-
téria; penso, e nada sei a respeito do que produz o pensamento;
ignoro se meu entendimento é em mim uma simples faculdade,
comoa de andar, de digerir, e se eu pensocom a cabeçacomo
pego com as mãos. Não só desconheçoo princípio do pensamento,
como também ignoro o dos meus movimentos; não sei por que
existo. Entretanto,todosos dias alguémme faz perguntasacêr-
ca de todos êsses pontos. É preciso responder, e eu nada tenho
que valha a pena dizer. Falo muito, mas fico confuso e enver-
gonhadode mim mesmo,depoisde ter falado.

(178) Primeiraimpressão
em 1761,na Secondesafe des mé-
!finges de Zifférafure, d'hisfoire ef de pài/oioPÀie (Genebra, Cramer) ;
mas já em outubro de 1759,Voltaire falava a Madame du Deffand do
(177) Texto de 1752: quando o z/eZÀo secretário. Em 1737, Fon- manuscrito dessa ''parábola'' que Ihe enviava.
tenelle tinha oitenta anos de idade: demitiu-se do cargo em 1740. (179) O brâmane fala como Pascal.
140 ROMANCES E CONTOS hiSTÓRiA DE UAI BOM BKÂMANE 141

"Pior ainda é quando me perguntam se Brama foi produzido Essa respostado bom brâmane impressionou-lnemais do que
por Vichnu 180, ou se ambos são eternos. Deus é testemunhade todo o resto; examinei-me a mim mesmo, e reconheci que 'na
que eu não sei uma palavra a tal respeito,e isso transparecebem verdadeeu não quereriaser feliz sob a condiçãode ser im-
em minhas respostas. Dizem-me: "Reverendo padre, ensina-me becil.
de que maneira o mal inunda a terra". Tenho tanta dificul- Propus o problema a alguns filósofos, e todos concordaram
dade para responder como aquêlesmesmosque me fazem a per- comigo. "Entretanto, dizia eu, há nessa maneira de pensar
gunta: digo-lhes,às vozes, que tudo neste mundo se passa da uma tremenda contradição. Afinal, de que se trata? De ser feliz.
melhor maneira possível; mas aquêlesque ficaram arruinados Que importa ser inteligenteou tolo? Mais ainda: os que estão
pela guerra ou mutilados nas batalhasnão crêem que seja assim, contentes com o que são Eêm a certeza de que estão contentes;
nem eu tampouco;volto para casa acabrunhadocom a minha
curiosidade e a minha ignorância. Leio os nossos livros os que raciocinamnunca têm tanta certeza de que raciocinam
antigos, e êles redobram as trevas em que me debata. Converso bem. Parece claro, pois, dizia eu, que o mais certo é preferir
não ter senso comum, por pouco que êsse senso comum contri-
com os meus colegas:alguns me respondemque o que importa bua para nossa infelicidade."
é gozar a vida e não fazer caso dos homens; outros julgam saber
alguma coisa, e perdem-seem idéias extravagantes; tudo aumenta Todo o mundo acolheu a minha opinião, mas não encon-
o sentimento doloroso que experimento. Sinto-me prestes, às trei ninguém que concordasse em tornar-se imbecil para viver
vozes, a cair no desespêro, quando penso que depois de tôdas as contente. Daí chegueià conclusãode que, se damos importân
minhaspesquisasnão sei de ondevenho,nem o que sou, nem cia à felicidade,damosaindamaior importância
à razão.
}
aondeirei, nem o que virei a ser. Mas, depois de ter refletidoem tudo isso, parece que pre-
A condição dêssebom homem despertouem mim verdadeira ferir a razão à felicidadeé dar prova de insensatez.Como, pois,
pena: ninguémera mais razoávelnem melhor do que êle. Che- se explica essa contradição? Como todas as outras. llá muita
guei à conclusão de que quanto mais luzes êle tivesse no enten- coisa a falar sabre o assunto.
dimento e sensibilidade no coração, tanto mais seria infeliz.
Avistei-me no mesmo dia com a velha que morava nas vizi-
nhanças: perguntei-lhe se porventura se sentira alguma vez aflita
por não saber como sua alma era feita. Nem sequer compreendeu
minha pergunta: nunca tinha pensado, por um momento que
fôsse, em toda a sua vida, acerca de nenhum dos. pontos que
atormentavam o brâmane. Acreditava nas. metamorfoses de Vich-
nu de todo o coração,e desdeque pudesseconseguirde vez em
quando um pouco de água do Ganges para lavar-se, julgava-se
a mais feliz das mulheres.
Impressionado com a felicidade dessa pobre criatura, voltei
ao meu filósofo,e disse-lhe: "Não se senteenvergonhado de
ser infeliz, quandoà sua porta existeum velho autómatoque
não pensa em nada e que vive contente?" "Tem razão, respon-
deu-me; tenho dito cem vêzes a mim mesmo que eu seria feliz
se fosse tão tolo como minha vizinha, e no entantoeu não que-
reria tal felicidade."

(180) Êsse problema evoca as discussões,na religião cristã, em


terno do arianismo, que negava a divindade do Verbo.
O BRANCO E O NEGRO 143

Rustã e a princesaviram-seem Cabul; amaram-secom


todaa boa fé da sua idadee com toda a ternurado seu país.
A princesa, como penhor de sua afeição, deu ao jovem o' seu
diamante, e Rustã Ihe prometeu, por ocasião de 'sua partida,
que iria vê-la seca'etamente
em Cachemira.
0 BRANCO E 0 NEGRO i8i O jovem mirzá tinha dois va]idos que ]he serviam de secre-
tários, escudeiros, mordomos e criados de quarto. Um chama-
va-seTopázio: era belo, bem feito, branco como uma circas-

T ODO mundo, na província de Candaar, conhece a aven-


tura do jovem Rustã. Era filho de um mirzá da região:
siana, meigo e serviçal como um armênio, avisado como um dis-
cípulode Zoroastro. O outrochamava-se Ébano: era um negro
muito bonito, mais atarefado, mais industrioso que Topázio,
é como quem dissessemarquês,na Franca, ou barão, na Ale- para quem não havia nada que fosse difícil. Rustã comunicou-
manha. O pai tinha uma honestafortuna. O jovem Rustã deveria Ihes o seu projeto de viagem. Topázio cuidou de dissuade-lo,
casar-se com uma jovem de sua categoria, da mesma categoria de com o zêlo circunspectode um servidor que não queria desagra-
mirzá. As duas famílias desejavam ardorosamente o casa- da-lo; apresentou-lhetodos os riscos que iria correr. Como deixar
mento. Deveria ser o consolodos seus pais, fazer feliz à sua mu- duas famílias em desespêro? Como cravar um punhal no co-
lher, e ser êle mesmofeliz. ração do! seus pais? Seu discurso abalou a resolução de Rus-
tã; mas Ébano reforçou-a e venceutodos os escrúpulosdo jovem.
Infelizmente,êle tinha visto a princesa de Cachemirana
feira de Cabul, que é a feira mais consideráveldo mundo, incom- Rustã carecia de dinheiro para uma tão longa viagem. O
paràvelmentemais freqüentadaque as de Baçorá e Astracã. E prudente Topázio não o teria induzido a tomar emprestado,mas
aqui está por que o príncipede Cachemirafará à feira, com Ébano entrou em ação. Apoderou-se discretamente'do diamante
sua filha. de seu amo, manda)ufazer uma imitação perfeita da peça e pâ-la
no lugar da verdadeira; esta última foi dada a um armênio como
Êle havia perdido as duas peças mais raras do seu tesouro: penhor de um empréstimo de alguns milhares de rúpias.
um diamantedo tamanhode um polegar,no qual fará gravada
a figura de sua filha, por uma arte que os indianos possuíam Quando o m?!quês recebeu as suas rúpias, tudo ficou pronto
então e que depoisse perdeu; a outra peça era um dardo que para a partida. Um elefantefoi carregadocom as bagagens;os
ia por si mesmoaonde se quisesse-- o que não é coisa muito viajantesmontarama cavalo. Topáziodisseao amo: "Tomeia
extraordinária entre nós, mas certamente o era em Cachemirü. liberdade de vos fazer exortações relativas à vossa viagem; mas,
depE)is de as ter feito, devo obedecer; estou à vossa disposição,
Um faquir de Sua Alteza roubou-lheessasduas jóias; le- tendeso meu amor, e eu vos seguirei até o fim do mundo; mas
vou-as à princesa: "Guardam cuidadosamente essas duas peças,
consultemos em caminho o oráculo, que fica a duas parasan-
disse-lhe êle; vosso destino depende disso." O faquir se foi gas 182 daqui." Rustã concordou. O oráculo respondeu: "Se
depois de dizer essas palavras, e nunca mais foi visto. O' duque vais para o oriente, estarás no ocidente." Rustã nada compreen-
de Cachemira, levado ao desespêro, resolveu ir à feira de Cabul, deu deus?resposta. Topázio afirmou que ela nada continhade
a fim de ver se entre todos os comerciantesque ali afluem de bom. .Ébano, sempre complacente, afirmou ao amo que era
todos os recantos do mundo não havia um que tivesseo seu dia- muito favorável.
mante e a sua arma. Costumava levar a filha consigo em tôdas
as suas viagens. Ela levou o diamantebem guardado no seu Havia ainda um outro oráculo, em Cabul; foram procura-lo.
O oráculo de Cabul respondeu com estas palavras: "Se tu possuis,
cinto; quanto ao dardo, que não podia escondertão bem, fe- não possuirás; se és vencedor,não vencerás; se és Rusiã. não
chou-o cuidadosamenteem seu grande cofre da China.
o serás." Êsse oráculo pareceu ainda mais ininteligívelque o
(181) Primeira impressão em 1764, nos Co?zfei de GuiJJazime
p'adé (Genebra, Cramer) . ( 182) Cf. A PRINCESA DA BABILâNIA, VOI. II, n. I03
144 ROMANCES E CONTOS O BRANCO E O NEGRO 145

outro. "Deveis ter o maior cuidado", dizia Topázio. "Nada deveis mente, o cavaleiro voltejava a rédea, dava empuxões, apertava os
temer", dizia Ébano; e êste último, como se pode crer, tinha joelhos, apoiava as esporas, dava a brida, tornava a encolh&la,
sempre razão aos olhos do seu amo, pois só se preocupava com chicoteavaà direita e à esquerda: o animal teimosocorria sempre
alimentar-lhea paixão e a esperança. para Cabul.
Ao sair de Cabul, os viajantesatravessaramuma grande flo- Rustã suava, debatia-se, desesperava-se, quando encontrou
resta, sentaram-sena relva para tomar uma refeição, deixando um vendedor de camelos que Ihe disse: "Meu senhor, tendes um
os cavalos a pastar. Eslava-se tratando de descarregar o elefante, asno muito maldosoque vos leva aonde não quereis ir; se qui-
que trazia o dinheiro e o serviço de mesa, quando se percebeu serdes ceder-mo, eu vos darei quatro dos meus camelos, à esco-
que Topázio e Ébano não estavam mais com a pequena cara- lha". Rustã rendeugraçasà Providênciapor um negóciotão
Chamam-nosem altas vozes, a floresta reboa com os no- bom. "Topázionão tinha razão nenhuma,disseêle, ao pre-
mes de Topázio e de Ébano. Os criados os procurampor todos dizer que minha viagem seria infeliz." Montou o mais belo den-
os lados, atroando a floresta com seus gritos; regressamsem ter tre os camelos; os outros três foram seguindo. Alcançou a cara-
visto nada, sem nenhuma resposta aos chamados. "SÓ encontra- vana e viu-se no caminho de sua felicidade.
mos, disseramêles a Rustã, um abutreque lutavacom uma Apenas tinha êle percorrido quatro parasangas,quando
águia e Ihe tirava todas as penas" O relato dêssecombatedes- teve o caminho interceptadopor uma torrente profunda, larga
pertou a curiosidade de Rustã; êle se dirigiu a pé ao local, e não é impetuosa,que rolava dos rochedos brancos de espuma. As
viu nem abutre nem águia; mas viu o elefante,ainda carregado
com as bagagens, que estava sendo acometida por um grande duas margens eram precipíciosmedonhosque turvavam a vista
e gelavamo ânimo; nenhummeio de passar, nem de ir para a
rinoceronte. Um atacavacom o chifre, outro com a tromba. O direita ou para a esquerda. "Começo a recear, disseRustã, que
rinoceronte abandonou a luta, quando avistou Rustã; o elefante Topázio tenha tido razão de condenar minha viagem e que eu te-
foi levado de volta, mas os cavalos não foram encontrados. nha feito um grande êrro em meter-meneste caminho; se ao me-
Acontecem coisas estranhas na floresta, quando se viajam", excla- nos êle aqui estivesse,poderia dar-me agora algum bom conse-
mou Rustã. Os criados estavamconsternados,e o amo em deses-
lho. E se eu tivesse Ébano êlo me consolaria e encontraria expe-
pêro por ter perdido ao mesmo tempo seus cavalos, seu querido dientes; mas tudo me falta." Seu embaraço era agravado pela
negro e o prudente Topázio, a quem sempre tinha amizade, em- consternaçãode sua gente; a noite estava tétrica, todos a passa'
bora não concordassenunca com sua opinião. ram em lamentações. Enfim, a fadiga e o abatimentoadormece-
A esperança de se ver dentro em breve aos pés da bela prin- ram o amorosoviajante. Despertouao raiar do dia e viu uma
cesa de Cachemíra ei'a todo o seu consolo, quando êle encontrou belaponte de mármorelançadasôbre a torrentede uma a outra
um grande asno rajado que um rústico vigoroso e terrível vergas- margem.
tava com incessantesbastonadas. Não há animal mais belo, mais Explodiram as aclamações e gritos de espanto e alegria. "É
incomum,mais leve na corrida que asnos dessaespécie. Aquêle possível? É um sonho? Que prodígios Que encantamento!
respondia aos golpes repetidos do vilão com parelhas de coi- Ousaremos passar?" Os homens todos da caravana ajoelhavam-se,
ces que poderiamdesarraigarum carvalho. O jovem mirzá, erguiam-se,
iam à ponte,beijavama terra, olhavamo céu, es-
como era justo, tomou o partido do asno, que era uma criatura tendiam as mãos, davam passos trementes, iam, voltavam, estavam
encantadora. O rústico fugiu, gritando ao animal: "Tu me pa em êxtase; e Rustã dizia: "Desta feita o céu me favorece: Topá-
Raras." O asno, em sua linguagem, agradeceu a seu libertador, zio não sabia o que estavadizendo; os oráculosme eram favo-
aproximou.se dêle, deixando-seacarinhar e retribuindo-lhe os ráveis; Ébano tinha razão; mas por que não está êle aqui?"
carinhos. Rustã montounêle depoisde ter jantado, e to-
mou o caminhode Cachemiracom seus criados, que o seguiam Mal a caravanatinha transpostoa torrente,e eis que a
uns a pé, outros montados no elefante. ponte se despenha nas águas, com espantoso estrondo. "Tanto
melhora tanto melhor! exclama Rustã; Deus seja louvado! Ben-
Mal tinham êles iniciado a marcha, o asno de Rustã voltou-se dito o céu! êle não quer que eu volte ao meu país, onde seria
para Cabul, em vez de seguira estradade Cachemira. Inutil- apenas um gentil-homem; quer que eu despose aquela a quem
146 ROMANCES E CONTOS O BRANCOE 0 NEGRO 147

amo. Sereipríncipede Cachemira;é assimque,posszóí/zdo


a mi- sa-se a transpor uma das pontes do rio; pergunta ao primeiro
nha amante, não possülreí o meu pequenomarquesado de Can- homem que encontra que país era aquêle, lão belo.
daar. Serei Rüsiâ, e não o serei-- pois tornar-me-eium gran- }

O homem a quem se dirigira respondeu: "Estais na província


de príncipe: e eis uma grande parte do oráculoexplicadaclara- de Cachemira; estais vendo os habitantes entreguesà alegria e
menteem meu favor; o resto se explicarácom o tempo. Sou aos prazeres: estamos celebrando as núpcias de nossa bela prince-
muitofeliz! Mas por que Ébano não estájunto d-emim? La- sa, que vai casar-secom o senhorBarbabu, a quem seu pai a
mento sua ausência mil vêzes mais que a de Topázio. prometeu; que Deus perpetuea sua felicidade!"
Percorreu mais algumas parasangas com a maior alegria; A essas palavras Rustã caiu desfalecido, e o habitante de
mas ao pâi do sol, um recintode montanhashorrivelmente
al- Cachemira, julgando que êle era sujeito a ataques de epilepsia,
cantiladas e mais altas que a Torre de Babel se houvera sido ter- fê-lo transportar para sua casa, onde Rustã permaneceupor lon-
minada, barrou inteiramente a passagem à caravana tomada de go temposem sentidos. Foram chamadosos dois mais hábeis
pavor. médicosdo cantão; êles tomaramo pulso ao doente,que, redo-
Todo mundo exclamou: "Deus quer que pereçamosaquil brando aos poucos o conhecimento,soltava soluços, revirava os
Êle derruiu a pontesó para nos tirar toda esperançade regresso; olhos, exclamando a intervalos: "Topázio, Topázio, tinhas tôda
a razão !
levantou esta montanha só para nos retirar toda possibilidade
de prosseguir. Ohl Rustã, oh! infeliz marquêsljamais vere- Um dos médicosdisseao donoda casa: "Vejo pela sua
mos Cachemira,jamais tornaremosa ver a terra de Candaar!" pronúnciaque é um jovem de Candaar, a quem os ates dêste
A mais pungente dor, o mais esmagador abatimento tomavam país só fazemmal; nos seus olhostransparecea loucura; con-
na alma de Rustã o lugar da alegria imoderada que experimen- fiai-o a mim, eu o levareide volta à sua pátria e o curarei."
tara, das esperançascom que se embriagara. Estava longede O outro médicoafirmou que êle só estava doentepor algum
interpretar as profecias em seu favor. "Ó Céu! ó Deus pater- desgasto, que era preciso leva-lo aos-esponsais da princesa e fazê-lo
nal! era preciso que eu tivesse perdido o meu amigo Topázio?" dançar. Enquanto falavam dessa maneira, o doente readquiriu
as forças; os dois médicosforam despedidose Rustã ficou con-
Quando êle pronunciava essas palavras soltando profundos versando semente com seu hospedeiro.
suspiros e derramando lágrimas no meio dos seus desesperadosse- "Senhor, disse-lhe êle, peço-vos perdão por ter desfalecido
guidores, eis que se abre a base da montanha e uma longa galeria
em cúpula, iluminadapor mil tochas ardentes,surge diante de diante de vós, sei que isso não é polido; suplico-vosque acei-
seus olhos deslumbrados; e Rustã solta grandes exclamações, e teis o meu elefante, como prova de reconhecimento pela bondade
com que me honrastes." Contou-lheem seguida todas as suas
os seushomenslançam-sede joelhos,caem de costasde espanto,
aventuras, evitando, porém, falar do objetivo de sua viagem. "Mas
gritam: milagres e dizem: "Rustã é o favorito de Vichnu, o bem- em nome de Vichnu e de Brama, continuou, dizei-me quem é êsse
amado de Brama; êle será o senhordo mundo." Rustã acredi- feliz Barbabu que despesa a princesa de Cachemira; por que o pai
tava-o,estavafora de si, elevadoacimade si mesmo. "Ah! Éba- dela o escolheupara genro, e por que a princesa o aceitou para
no, meu querido Ébano! Onde estás? Por que não és testemu- ser seu esposo". "Senhor, respondeuo homemde Cachemira,a
nha de todas e.starmaravilhas? Por que te perdi? Bela prin- princesa não aceitou de maneira nenhuma a Barbabu; muito ao
cesa de Cachemira, quando tornarei a ver os teus encantos?" contrário, está banhada em lágrimas, enquanto toda a provín-
Avançou com os criados, o elefante,os camelos,sob a cúpula cia celebra com alegria o seu casamento;encerrou-sena
da montanha, ao fim da qual encontrou um prado esmaltado de torre de seu palácio; não quer ver nenhuma das manifestações
flôres e cercado de regatos; do outro lado dêsse prado, esten- de regozijo que se fazem por ela." Ouvindo tais palawas, Rustã
diam-se aléias de árvores a perder de vista; e depois destas sentiu-senascerde novo; o brilho das suas cores, que a dor ti-
aléias, um rio, ao longo do qual erguiamse mil casas nha empalidecido, reapareceu-lhe no rosto. "Dizei=me, suplico-
de repousoe recreio,com jardins deliciosos. Rustã ouve por vos, continuou, por que motivo o príncipe de Cachemira se obsti-
toda parte concertos de vozes e instrumentos; vê as danças; apres' na em dar a filha a um Barbabu que ela detesta." "Os fatos são
148 RObIANCES E CONTOS O BRANCO E O NEGRO 149

êstes, respondeu o cachemirense. Sabíeis que nosso augusto prín- começaram o combate; todos os cortesãos fizeram um círculo em
cipe perdera um grande diamantee um dardo que estimavamui- terno dêles. A princesa, fechada sempre em sua torre, não quis
tíssimo?"' "Ah! sei muito bem disso", retrucou Rustã. "Ficam assistir ao espetáculo;estava bem longe de imaginar que seu
sabendo,pois, agora, disse o hospedeiro, que nosso príncipe, de- amante estivesse em Cachemira, e tinha tanto horror a Barbabu,
sesperadopor não ter notícia de suas duas jóias, depoisde as que nada queria ver. O combatese passou do melhor modo pos-
ter mandadoprocurar por toda a face da terra, prometeua filha sível; Barbabu logo caiu redondamentemorto, e o povo ficou en-
a quemIhe trouxesseuma ou outrapeça. Apareceuentãoum cantado com êsse desfêcho, porque êle era feio, ao passo que
senhorBarbabu com o diamante,e êle se casa amanhãcom a Rustã era muitobonito; é quasesempreo que decidedo favor
princesa. do público.
Rustã empalideceu, gaguejou um cumprimento, despediu-se O vencedorrevestiu-se com a armadura,as insígniase o
de seu hospedeiro,e correu montadoem seu dromedáriopara elmo do vencido, e foi, seguido de tôda a côrte, ao som de fan-
a capital do país, onde devia ser realizada a cerimónia. Chegou farras, apresentar-se
sob as janelasde sua amada. Todo o mundo
ao palácio do príncipe; disse que tinha coisas importantesa Ihe gritava: "Bela princesa, vinde ver vosso belo marido que matou
comunicar ; pediu uma audiência ; responderam-lhe que o príncipe seu feio rival"; as mulheres repetiam essas palavras. A princesa
estavaocupadocom os preparativosdas bodas: "É por causa põs a cabeça à janela, e vendo a armadura de um homem que
dessasmesmas bodas, disse êle, que quero falar-lhe." Insiste detestava,correu prêsa do desespêroao seu cofre da China e
tanto, que é afinal introduzido. "Meu senhor, disse êle, que arremessouo dardo fatal que foi ferir seu querido Rustã atra-
Deus coroa de glória e magnificênciatodos os dias da vossa vés de uma falha da couraça; êle soltou um grito, e a êsse grito
vida! Vosso genro é um embusteiro." a princesa julgou reconhecer a voz de seu infeliz amante.
"Como um embusteiro? Que ousais dizer? É assim que
Descabelada, desceu ao pátio, com a morte nos olhos e no
se fala a um duquede Cachemiraa respeitodo genro de sua es- coração. Rustã já estavacaído, todo ensangüentado,
nos bra-
colha?'' "Sim, um embusteiro, replicou Rustã; e para prova-lo ços do príncipe. Ela vê: oh momentos oh visãol oh reconhe-
a Vossa Alteza, eis aqui o vosso diamante, sou eu que o trago." cimentocuja dor, cuja terá.ura,cujo horror não é possívelex-
O duque, atónito, comparou os dois diamantes; e, como não primir! Lança-se sôbre êle, e o abraça: "Recebes, disse-lhe a
era autoridadeno assunto,não pede dizer qual era o verdadeiro. princesa, os primeiros e últimos beijos de tua amada e tua as-
"Aqui estão dois diamantes,disse êle, e eu só tenho uma filha; sassina." Retira o dardo, atravessacom êle o próprio coração, e
vejo-me em terrível dificuldades" Mandou chamar Barbabu e morre sabre o amante que adorava. O pai, horrorizado, deses-
perguntou-lhese o tinha enganado. Barbabu jurou que havia perado, prestes a morrer também como ela, esforça-se em vão
comprado o diamante de um armênio; Rustã não se dispunha a por chama-laà vida, mas ela não mais existia. Então o pai amal-
dizer como obtivera o seu, mas propôs um expediente:propôs diçoou êsse dardo fatal, quebrou-o em pedaços, lançou longe seus
que Sua Alteza houvessepor bem que êle travasseum conjbate dois funestos diamantes; e, enquanto cuidavam dos preparativos dos
imediatamentecom o seu rival. "Não é bastanteque vosso genro funerais de sua filha em lugar do casamento, mandou trans-
dê um diamante, disse êle; é preciso que dê também provas de va- portar para o seu palácio Rustã, ensanguentado,que ainda tinha
lor: não achais bom que aquêleque matar o outro desposea prin- um resto de vida.
cesa?'' "Muito bom, respondeu o príncipe, será um belíssimo es-
Deitam-no numa cama. A primeira coisa que êle vê de um
petáculopara a côrte; depressa,empenham-vos
em combateos
dois: o vencedortomará as armas do vencido, segundoo costume e de outro lado dêsseleito de morte é: Topázio e Ébano. A sur-
prêsa Ihe devolveum pouco das suas fôrças. "Ah! cruéis, disse
de Cachemira, e desposara minha filha." êle, por que me abandonastesl Não é impossívelque a princesa
Os dois pretendentes desceram prontamente à arena. Havia estivesseainda viva se tivésseispermanecidoao lado do infeliz
na escadariauma pêga e um corvo- O corvo gritava: "Com- Rustã." "Eu não vos abandoneinem por um momento",disse
batei, combatem"; a pêra: "Não combatais, não combatais". Isso Topázio. "Sempre estiveao pé de vós", disse Ébano. "Ahl que
fêz rir o príncipe; os dois rivais mal atentarampara as aves: estais aí dizendo? Por que insultar meus últimos momentos?"
150 ROMANCES E CONTOS O BRANCO E O NEGRO 151

respondeuRustã com uma voz prestesa extinguir-se. "Podeis que és o meu gênio mau?" "Vós o dissestes", respondeu Ébano.
dar-me crêdito, disse Topázio; sabeis que nunca aprovei essa "Mas eras também, portanto, o mau gênío de minha princesa?"
fatal viagem, cujas horríveis conseqüênciaseu previa. Eu era "Não, ela tinha o seu, e eu o secundemperfeitamente." "Ah! mal-
a águia que combateu contra o abutre e o depenou; o elefante que dito Ébano, se és tão mau, certamentenão pertencesao mesmose-
desviavaa bagagem para forçar-vosa regressarà vossapátria; nhor a que pertenceTopázio? Fostes formadospor dois prin
o asno rajada que vos levavacontra vossavontadepara junto cípios diferentes,um dos quais é bom e outro mau, por natu-
de vosso pai; fui eu que dispersei os cavalos; eu que formei a tor- reza?" "Não se pode tirar tal ilação, disseÉbano, mas sem dú-
rente que vos impedia de passar; eu que levantei a montanha que vida existe aí uma grave dificuldade." "Não é possível, repli-
vos interceptouum caminhotão funesto;eu, o médicoque vos cou o agonizante,que um ser propíciotenhafeito um gêniotão
prescreveu os ares do país natal; eu, a pêga que vos gritava que não funesto." "Possível ou não, retrucou Ébano, as coisas são como
combatêsseis." "E eu, disse Ébano, era o abutre que desplu- eu vos digo." "Ail ail exclamou Topázio, meu pobre amigo, não
mou a águia; o rinoceronte que dava cem chifradas no ele- vêdes que êsse patife tem ainda a malícia de vos fazer discutir
fante, o vilão que vergastava o asno rajada; o mercador que vos para esquentarvosso sanguee precipitar a hora de vossa morte?"
davacamelospara correr no caminhoda vossaperda; eu cons- "Vai-te, não estoumais contentecontigodo que com êle, disse o
truí a ponte pela qual passantes; abri a caverna que atravessastes; triste Rustã: êle pelo menos confessaque me quis fazer mal;
eu era o médico que vos7animava
}'
a prosseguir; o corvo que vos e tu, que pretendiam defender-me,de nada me serviste." "Muito
gritava que combatêsseis o lamento", disse o gênio bom. "E também eu, disse cpmori-
"AI de nós! lembram-vos dos oráculos, disse Topázio: Se
bundo; em tudo isso subsistealgo que não compreendo." ''Nem
país paríz o orlenle, estarás /zo ocídprzle." "Sim, disse Ébano, aqui eu, tampouco" disse o pobre gênio bom. "Ficarei sabendoo
os mortos são enterrados com o rosto voltado para o ocidente: que é daqui a um momento", disse Rustã. "É o que veremos",
o oráculoera claro, por que não o compreendestes?7ü pos- disse Topázio.
süísze, e não possüím; porquanto tínheis o diamante, mas era falso, Nesseinstantetudo desapareceu.Rustã viu-se na casa de
e não o sabíeis. Sois vencedor, e morreis; sois Rustã e deixaís seu pai, de onde não havia saído, e no seu leito, onde havia
de o ser: tudo se cumpriu." dormido uma hora.

Enquanto êle assim falava, quatro asas brancas cobriram o Desperta em sobressalto, coberto de suor, desorientado; apal-
corpo de Topázio, e quatro asas negras, o de Ébano. "Que pa'se, chama, grita, toca a sinêta. Topázio, seu criado de quarto,
vejo?" exclamouRustã. Topázioe Ébanoresponderam
juntos: acorre com o barretede dormir, bocejando. "Estou morto, estou
"Vêdes os vossos dois gênios." "Oh! senhores, disse-lhes Rus- vivo? exclamou Rustã; a bela princesa de Cachemira poderá
tã, de que vos ocupais, e por que dois gênios para um pobre ho- escapar? ..." "Meu senhor deve estar sonhando", respondeu
mem?" "É a lei, disseTopázio; cada homemtem dois gê- friamente Topázio.
nios, foi Platão quem o disse primeiro, e outros o repetiram "Ah! exclamou Rustã, que aconteceucom êsse bárbaro Éba-
depois; estais vendo que nada é mais verdadeiro: eu que vos no com suas quatro asas negras? Foi êle quem me fêz morrer
falo, eu sou o vosso gênio bom, e o meu encargoera velar + de morte tão cruel." "Meu senhor, deixei-olá em cima, ron-
junto de vós até o último momento de vossa vida; desobriguei-me cando; quereis que o mande descer?" "Celerado! há seis meses
fielmente da tarefa." "Mas, disse o moribundo, se teu emprê- inteiros que me persegue; foi êle quem me levou a essa fatal feira
go era servir-me,deduz-seque sou de naturezamuito superior de Cabul; foi êle quem me escamoteouo diamanteque a prin-
à tua; assim sendo, como ousas dizer que és meu gênio bom, cesa me havia dado; foi êle a única causa da minha viagem, da
depois de teres deixado que eu me enganasseem tudo o que em morte da minha princesa e do golpe de dardo que me faz mor-
preendi, e me deixaste morrer, eu e minha amada, miseràvel- rer na flor da idade."
mente?" "Oh! êsseera o destino",respondeuTopázio. "Se é o 'Tranqüílizai-vos, disse Topázio ; nunca estiveste em Cabul ;
destino que faz tudo, retrucou o moribundo, para que serve ter um não existeprincesade Cachemira; o príncipe só tevedois filhos
gênio? E tu, Ébano, com tuas quatro asas negras, devo entender varões, que estão atualmenteno colégio. Nunca tivestesqualquer
152 ROMANCES E CONTOS O BRANCO E O NEGRO 153

diamante; a princesa não pode estar morta, pois nunca nasceu; minha irmã, a religiosa, disso Topázio; vou busca-lo,ficareis
quanto a vós, tendes excelente saúde." contente com êle; sua memória é fiel, e êle conta com simpli-
"Como! não é então verdade que assistiamà minha morte no }
cidade, sem procurar a cada momento mostrar que tem espírito,
leito do príncipe de Cachemira? Não me afírmaste que, para e sem fazer frases." "Tanto melhor, diz Rustã, é de contos
me livrar de tantos males, tinhas sido águia, elefante, asno rajada, assim que eu gosto.
médicoe pêga?" "Senhor,tudoissofoi um sonhovosso:as Levaram-lhe o papagaio, o qual assim falou:
nossasidéias não dependemde nós dul'anteo sono mais do que
na vigília. Deus quis que êsse encadeamento
de idéias vos pas' N. B. -- A senhorita CatheTine Vadé não encontrou a histó ia
passepela cabeça provàvelmentepara vos dar alguma instrução ão papagaio a pasta do seu falecidoprimo Anioine Vadé (183), auto
de que deveis de tirar proveito. dêsteconto. É uma grande l)ena, pata quem i)Casa na tempo em
que uiz;eu êsse t)apagado.
"Zombar de mim, disse Rustã; quanto tempo estive dormin-
do?" "Meu senhor, não chegastesa dormir mais do que uma
hora." "Pois bem, maldito e importunofalador, como queres
que eu tenhaido à feira de Cabul há seismeses,que de lá tenha
voltado, que tenha feito a viagem a Cachemira, e tenhamosmor-
rido, Barbabu, a princesa e eu?" "Meu senhor, nada mais fácil
e mais comum, e teríeis podido realmentedar volta ao mundo e
ter tido muito maior númerode aventurasem bem menostempo.
"Não é verdade que podeis lel' em uma hora o epítomeda
história dos persas, escritopor Zoroastro? No entanto,'êssecom
pêndio resume oitocentos mil anos. Todos êsses acontecimentos
passamsob os vossos olhos, um após outro, no decorrer de uma
hora; ora, não deixareis de reconhecer que é tão fácil para Bra-
ma concentra-los no espaço de uma hora como estendê-los no es-
paço de oitocentosmil anos; é precisamentea mesma coisa. Figu-
ramque o tempogira sabre uma roda cujo diâmetroé infinito.
Sob essa roda imensa, está uma multidão inumerável de rodas
metidasumasnas outras;a do centroé imperceptível,
e dá um
número infinito de voltas precisamente no mesmo tempo em que
a grande dá uma apenas É claro que todos os acontecimentos,
desde o comêço do mundo, até o seu fim, podem ocorrer sucessiva-
mente em muito menos tempo que a centésima milésima parte
de um.segundo; e podese mesmodizer que as coisas se passam
assim
"Não compreendo nada disso", respondeu Rustã. "Se qui
serdes, continuou Topázio, tenho um papagaio que vos fará com-
preendê-lofàcilmente. Êle nasceu algum tempo antes do dilúvio,
estêvena Arca; viu muita coisa; entretanto,ainda só tem um
ano e meio: êle vos contará a sua história, que é assaz interes-
s an te. ' ' (183) Nem Catherine,nem AntoineVadé existiram. No en-
"Vai depressabuscar êsse papagaio, disse Rustã; êle me tanto, houve um poeta, Jean-Joseph Vadé (1720-1757), inventor do
género chulo, autor de óperas-cómicas e "vaudevilles", com cujo
divertira, enquantonão me volta o sono." "Está em casa de nome Voltaire por várias vêzes assinou seus panfletos.
JEANNOT E COLiN 155

nos negócios. Querem saber como se fazem essas grandes for-


tunas? Fazem-nasos que são felizes. O senhorJeannotera bem
feito de corpo, sua mulher também, com algum viço ainda. Ti-
nham ido a Pauis por causa de um processo que os arruinava,
e foi lá quea Fortuna,queelevae abaixaos homensa seu ta-
JEANNOT E COLIN í84 lante, põ-los em contacto com a mulher de um empresário dos
hospitais do exército, homem de grande talento e que podia gabar-
se de haver matado maior número de soldados num ano do que o

V ÁRIAS pessoasdignasde fé viram Jeannote Colin na es-


canhão pudera matar em dez. Jeannot agradou à senhora; a mu-
lher de Jeannot agradou ao senhor. Jeannot não tardou a ter
cola, na cidade de lssoire, no Auvergne,cidadefamosa em todo parte na emprêsa; e entrou em outros negócios. Desde que uma
pessoa está em maré favorável, é só deixar-se levar; sem difi-
o universo pelo seu colégio e pelos seus caldeirões. Jeannot era
filho de um negociantede azêmolasconhecidíssimo,e Colin devia culdadepode fazer uma fortuna imensa. Os patifes,que da
a sua existênciaa um bravo lavrador das vizinhanças, que culti- margem vos vêem vogar a todo pano, ficam boquiabertos; não
vava a terra com quatro animaise que, depoisde ter pago a sabem como pudesses vencer; êles vos invejam ocasionalmente, e
talha, a derrama, as contribuições complementares,a gabela, o fazem contra vós brochuras que não tereis. Foi o que aconteceu
saldopor libra, a capitaçãoe os vigésimos,não se via muito com Jeannot pai, o qual logo se tornóu senhor de La Jeannotiàre
rico no fim do ano. e, tendo comprado um marquesado no fim de seis meses, retirou
da escola o senhor marquês seu filho, para o apresentar em Paria
Jeannot e Colin eram bem bonitos para auvernheses; estima- à alta roda.
vam-se muito e, nas suas relações, estavam habituados a êsses im-
pulsos de mútua confiança, a essas pequenasfamiliaridades de que Colin, sempregentil, escreveuuma carta de felicitaçõesa
as pessoasse relembramsempre com agrado quando, mais tarde, seu ex-companheiro,
explicandoque qüerü co/zgrafzóhr-se com
tornam a encontrar-se por êste mundo. ê;e. O marquesinho não Ihe deu resposta: C'olin ficou doente
de dor.
O período dos seus estudos estava quase a findar, quando
um alfaiate trouxe a Jeannot um traje de veludo de três cores, O pai e a mãe deramlogo um preceptorao jovemmar-
com uma jaqueta de Lido de muito bom gôsto; tudo acompa- quês: ês:e preceptor,homemde bela aparênciae que não sabia
nhado de uma carta ao senhor de La Jeannotiêre. Colin admi- nada, nada pede ensinar a seu pupilo. O senhor marquês queria
roii o traje, e não ficou com inveja; mas Jeannot assumiuuns que o filho aprendesseo latim; a senhoramarquesanão queria.
ares de superioridade que afligiram Colin. A pai'tir dêsse mo- Escolheramcomoárbitro um autor que se tornara célebreentão
mento, Jeannot não estudoumais, olhou-seao espelhoe despre- por suas obras agradáveis. Foi convidado a jantar. O dono da
zou todo o mundo. Algum tempo depois chega um camareiro casa começoupor ]he dizer: "Senhor, como sabe o latim, e é
em begede posta, trazendouma segunda carta ao senhor mar homem da carte. . ." "Eu, senhor, latim! não sei nem uma pala-
quês de La Jeannotiêre: era uma ordem do senhor seu pai para vra, respondeuo' culto homem,e dou-memuito bem assim; é
que o senhor seu filho fôsse a Paria. Jeannot subiu para a bege, claro que uma pessoafala muito melhor a sua própria língua,
estendendoa mão a Colin com um sorriso de proteçãobastante quando não mistura o seu uso com o das línguas estrangeiras.
nobre. Colin sentiua sua nulidadee chorou. Jeannotpartiu Veja fadas essasnossas damas, são muito mais espirituosas que
com toda a pompa da sua glória. os homens;suas cartas são escritascom cem vêzesmais graça;
Os leitoresque gostam de se instruir devem saber que o se- e se têm sabre nós tal superioridadeé porque não sabem o la-
tim.''
nhor Jeannot pai ganhara,com bastanterapidez,imensosbens
"E então? Não estava eu certa?.disse a senhora marquesa.
(184) Primeira impressão nos Contes de Glzi/Jau/ne 7adé (Ge- Quero que meu filho seja um homem de espírito, que seja bem
nebra, Cramer) . Sucedidona sociedade; e já está vendo que, se êle soubessela.
156 ROMANCES E CONTOS JEANNOT E COLIN 157

tim, estaria perdido. Faça o favor de me dizer: a comédiaea mens de talento186, não passam de fábulas aceitas por todos
ópera são porventura faladas em latim? Fazemos a nossa defesa como verdadeiras; quanto às modernas, é um caos que ninguém
em latim quando temos um processo? Usamos o latim para o t conseguepâr em ordem. Que importa ao senhor seu filho que
amor?" O senhor marquês, deslumbrado por essa argumenta- Carlos Magro tenha instituídoos doze pares de Fiança, e que
ção, reconheceu
seu êrro, e ficou decididoque o jovemmar- seu sucessortenha sido gago187?"
quês não perderia tempo com Cícero, Horácio e Virgílio. Mas, "Não se poderia falar melhor! exclamouo preceptor: costu-
afinal, que deveria êje aprender? Pois sempre era necessária mamos sufocar a inteligência das crianças com uma miscelânea
que soubesealguma coisa; não se poderia mostrar-lheum pouco de conhecimentosinúteis; mas dentre tôdas as ciências, a mais
de geografia? "Para que servirá isso? respondeu o preceptor. absurda,em minha opinião, aquela que tem maior poder de
Quando o senhor marquês fõr às suas terras, os postilhões conhe- sufocar tôda espécie de gênío, é a geometria. Ciência ridícula,
cerão os caminhos,certamentenão se transviarão. Não há neces- que tem por objeLo superfícies, linhas e pontos que não existem
sidade de um quadrante geográfico para viajar, e podemos ir na natureza. Fazem passar cem mil linhas curvas entre um cír-
muito comodamentede Pauis ao Auvergne sem necessidade de culo e uma linha reta que o toca, emborana realidadenão se
saber em que latitude nos encontramos." possa fazer passar ali um argueiro 188. A geometria, na verdade,
"Tem toda a razão, replicouo pai; mas ouvi falar de uma não passa de uma brincadeirade mau gasto."
bela ciência, que se chama, creio, asfronomü." "Que miséria! re- O senhor marquês e a senhora marquesa não entenderam
trucou o preceptor; acaso nos conduzimos pelos astros neste mun- muitoo que o preceptorqueriadizer; mas concordaraminteira-
do? E será preciso que o senhormarquês se mate a calcular mente com êle. "Uma personagem como o senhor marquês, con-
um eclipse, quando êle está exatamenteindicado no almanaque, tinuou, não deve dessoraro cérebrocom êssesvãos estudos. Se
que tambémIhe indicaas festasmóveis,a idadeda Lua e a de um dia tiver necessidade de um geâmetrasublimepara fazer a
todas as princesas da Europa?" planta das suas terras, pagará a medição com o seu dinheiro.
Se quiser deslindar a antiguidade da sua nobreza, que remonta
A senhora marquesa concordou inteiramentecom o preceptor. aos tempos mais I'ecuados, mandará buscar um beneditino. O
O marquesinho estava no auge da alegria; o paí, um tanto inde- mesmoserá com todas as artes. Um jovem senhor da nobreza
ciso. "Que deveremos, pois, ensinar a meu filho?'' dizia êle. "A não é pintor, nem músico, nem arquiteto, nem escultor; mas faz
ser amá\el, respondeuo amigo que se consultava; se êle souber florescer todas essas artes, estimulando-ascom sua magnificência.
os meiasde agradar185saberá tudo: é uma arte que apren' Sem dúvida é melhor protegê-lasque exercê-las;basta que o se-
dará com a senhora sua mãe, sem que nem um nem outro tenham nhor marquêstenha gasto; caberá aos artistastrabalharpara
qualquer trabalho." êle; e é por isso que se tem toda a razão de dizer que as pessoas
A senhora marquesa, ao ouvir tais palavras, abraçou o gra- de qualidade (quero dizer, as que são muito ricas) sabem tudo
cioso ignorante, e disse-lhe: "Bem se vê, senhor, que é um homem sem nada terem aprendido, porque de fato, com o tempo, ficam
de sociedadee dos mais sábios; meu filho Ihe deverátoda a sua sabendo julgar o valor de todas as coisas que encomendam e pa-
gam."
n
educação: imagino, no entanto,que nãc seria mau que aprendes-
se um pouco de história." "Oh! senhora,para que serve a his- O amávelignorantetomouentãoa palavra,e disse: "Fêz
tória? respondeuêle; agradávele útil certamentesó o é a história natal' com toda a razão, senhora marquesa, que a grande finali-
do dia. Tôdas as histórias antigas, como dizia um dos nossosho- dade do homem é ser bem sucedido na sociedade. Falando de
boa fé, é pelas ciências que se alcança tal êxito? Já alguém teve

(185) Moncrif (1687-1770), censor real, tinha publicado Estais ( 186) Fontenelle.
sur Za nécessifé
ef sur Jes move?zs
de plczire. Voltaireescreviairo-
nicamentea Madame du Deffand, no dia 27 de junho de 1764: "Não (187) Na realidade, foi Luas 11, o Gago, quem sucedeu a Carlos,
o Calvo (877).
foi a senhora quem mudou, foi a carte e a cidade, pelo que ouço di-
zer aos entendidos.Isto deve-se,talvez,ao fato de não lermosbas- (188) Cf. em O HOMEM DOS QUARENTA Escudos: Conversa
tante os J/oye?zi de P/Gire de Moncrif". com um geómefra, vol. 11, pág. 9.
158 ROMANCES E CONVOS JEANNOT E COLIN 159

a idéia de falar de geometriaem boa sociedade? Pergunta-sepor' A senhora marquesa compenetrou-seentão de que era a mãe
ventura a um homem de bem que astro se levanta hoje com o sol? de um homemde talento,e convidoupara cear os homensde
Alguém cuida de indagar durante uma ceia se Clódio, o Caibeludo, talento de Paria. A cabeça do rapaz não tardou a virar de uma
transpôs o Reno?" "Não, certamente não, exclamou a marque- vez; adquiriu o hábito de falar sem pensar, e aperfeiçoou-seno
sa de La Jeannotiêre, cujos encantos Ihe tinham valido algumas vêzode não prestar para alada. Quandoo pai o viu tão elo-
vêzes o convívio da alta roda; e o senhor meu filho não deverá qüente, lamentou muito que não o tivesse feito aprender o latim,
extinguir o seu gênio pelo estudo de todas essas mixórdias; mas, pois teria podido comprar-lhe algum alto cargo na magistra-
enfim, que Ihe ensinaremos? Pois é convenienteque um jovem tura. A mãe, que tinha sentimentos mais nobres, encarregou-se
da nobreza possa brilhar na ocasião oportuna, como diz o senhor de solicitarum regimentopara o filho; e êste,enquantoespe-
meumarido. Lembro-me
de ter ouvidoum abadedizer que a rava, dedicou-se ao amor. O amor é, algumas vêzes, mais caro
mais agradáveldentre as ciênciasera uma coisa cujo nome es- que um regimento. O jovem marquês gastou muito, enquanto
queci, mas que começapela letra Z?." "Por um Z?, senhora? não seus pais gaslavan] mais ainda para viver como grandes senhores.
seria a botânica?" "Não, não era de botânica que êle me fa- Uma viúva jovem, de boa linhagem, sua vizinha, possuidora
lava; começava,
digo,por um B, e acabavapor ão." "Ah! já
compreendo, senhora; é o brasão: trata-se, na verdade, de ciência de medíocrepecúlio, consentiuem dedicar-sea põr em segurança
os bens do senhor marquês e da senhora marquesa de La Jean-
muito profunda; mas já não está na moda, desdeque se perdeu notiêre, apropriando-sedêles, e despojando o jovem marquês.
o hábito de mandar pintar as armas da nobreza nas portinho-
las das carruagens;era o costumemais útil que se possaima- Atraiu-o para junto de si, deixouse amar, deu-lhea entenderque
não Ihe era indiferente, levou-o de grau em grau, encantou-o,sub-
ginar num Estadobem governado. Aliás, tal estudoseria um
nunca acabar: hoje não há barbeiro que não tenha os seus bra- jugou-osem dificuldade. Ora Ihe fazia elogios,ora Ihe dava
sões; e, como sabe, tudo o que se torna comum é pouco feste- conselhos;tornou se a melhor amiga do pai e da mãe. Uma velha
jado." Afinal, depoisde se ter examinadoo fraco e o forte das vizinha propôs casamento; os pais, deslumbradospelo esplendor
ciências, decidiu-seque o senhor marquês aprenderia a dançar. daquela aliança, aceitaram com alegria a proposta: deram o filho
único à amiga íntima. O jovem marquês ia desposar uma mu
A natureza, que faz tudo, tinha-lhe dado um talento que Iher que adorava e que o amava; os amigos da casa apresenta-
prontamente se desenvolveu com prodigioso êxito: o de cantar ram-lhe as felicitações; já se tratava de redigir os artigos, enquan-
agradàvelmente uaüdeuíZJes 189. As graças da juventude, alia- to se trabalhavano guarda-roupanupciale se cuidavado epita-
das a êsse dom superior, fizeram com que êle fosse olhadocomo lâmio.
UO jovem que dava as maioresesperanças. Foi amadopelas
mulheres; e, como tinha a cabeça cheia de canções, fêz canções Certa manhã, êle estavaaos pés da encantadoraesposaque
para suas amantes. Plagiava Bac#üs ez Z'dmoür num uazódeuíZZe, o amor, a estima e a amizade iam dar-lhe; os dois desfrutavam,
Z,a ArLiÍI el Ze .Íoür num outro, Z;es CÃarmes eZ Zes .4Zarmes num no decorrerde uma conversação afetuosae animada,as primí-
terceiro; mas, como sempre havia nos seus versos alguns pés a cias da sua felicidade;combinavamo modode levar uma vida
mais ou a menos, mandava corrigi-los mediante o pagamento de deliciosa, quando um camareiro da senhora marquesa chega todo
vinteluísesde ouro por canção; e foi colocadoem L'Jnnée Z,ílte- sobressaltado. "Trago notícias bem inesperadas, diz êle; oficiais
raire 190na mesmacategoriade La Fare, de Chaulieu,de Hamil de justiça estão levando os móveis da casa do senhormarquês
ton, de Sarrazin e de Voiture. e da senhora marquesa; tudo está sendo apreendido pelos credo-
res; fala-sede prisão por mandadojudicial, e eu vou tomar as
minhas precauções para receber meu salário." "Precisamos ver,
(189} No sentido de canção alegre e por vêzes satírica. di?se o marquês, o que é isso, o que pode ser toda essa história."
(190) O periódico de Fréron. Os nomes citados são os de auto- "É verdade,dissea viúva, vá castigar aquêlesvelhacos,vá de-
res célebres de versinhos e canções. Sarrazin e Voiture escreviam para pressa." Êle corre, chegaà casa; seu pai já estavaprêsa: todos
o Hotel de Rambouillet;La Fere e Chaulieu para o círculo de Vendâme,
que Voltaire freqüentou; Hlamiltonbrilhava também no Ven'dome e no os criados tinham fugido, levando tudo o que podiam. Sua mãe
pequeno círculo da duquesa Du Maine. estava só, sem socorro, sem consolo, afogada em lágrimas; só Ihe
160 ROMANCES E CONTOS JEANNOT E COLIN 4 x6xB

restava a recordação de sua fortuna, de sua beleza, de seus erros, ]4ergulhado assim no acabrunhamento do desespêro, viu
de suas loucas despesas. aproximar-seuma liteira de rodas à antiga, espéciede carroça de
Depois que o filho chorou por longo tempo com a mãe, dis- duas rodas com coberta e cortinas de couro, seguida de quatro
se-lhe enfim:"Não fiquemos desesperados; aquela jovem viúva enormes carretas todas carregadas. Na liteira estava um jovem
me ama apaixonadamente;é mais generosaainda do que rica, grosseiramentevestido; o rosto redondoe fresco respirava do-
respondopor ela; corro ao seu encontro,e vou trazê-laaqui." çura e alegria. Sua mulherzinha morena, grosseiramente agra-
Volta, pois, à casa de sua amada e encontra-aem colóquiocom dável, sofria os solavancosao lado dêle, no assentoda viatura.
um oficial muitoamável. "Oh! quemestouvendo! o senhorde Esta não andava depressa como o carro de qualquer peralvilho.
La Jeannotiêrel Que veio fazer aqui? Então a gente abandona O viajante teve todo o tempo de contemplar o marquês imóvel,
assim a própria mãe? Vá para junto daquela pobre mulher, abismado em sua dor. "Oh! meu Deus! exclamou, creio que é
diga-lhe que continuo a querer-lhe bem: tenho necessidade de Jeannot." A êssenomeo marquêslevantaos olhos a viaturase
uma camareira, dar-lhe-eipreferência." "Meu rapaz, pareces-me detém: "É Jeannot mesmo, é Jeannot." O homenzinho roliço
ter um bom físico, disse-lhe o oficial; se quiseres entrar para a desce de uin salto, e corre a abraçar seu antigo companheiro.
minha companhia, arranjo-te um bom lugar." Jeannot reconheceu Colin; a vergonha e as lágrimas cobriram-
O estupefatomarquês, com ódio no coração, foi procul'ar seu -lheo rosto. "Tu me abandonaste,
diz Colin; mas não me im-
ex-preceptor, expôs-lhe o seu sofrimento, pediu-lhe conselhos. O porta que sejas um homem importante, continuarei a amar-te do
preceptor sugeriu-lhe que se tornasse preceptor como êle. "AI de mesmo modo." Jeannot, confundido e enternecido, contou-lhe en-
mim! nada sei, o senhornada me ensinou,e é a primeira causa tre soluços uma parte da sua história. "Vem comigo à estalagem
da minha desgraça"; e soluçavaenquantoIhe falava assim. "llb- onde me hospedo, lá me contarás o resto, diz-lhe Colin; abraça
creva romances, disse-lhe um homem de talento que estava ali; a minha mulherzinha, e vamos jantar juntos."
é um excelenterecurso em Paria." Os três vão a pé, seguidosda bagagem. "Como! então todas
essas bagagens são tuas?" "Sim, tudo é meu e de minha mu-
O jovem, mais desesperadoque nunca, correu à casa do con
lher. Estamoschegandoda terra; estouà frentede uma boa
fessor de sua mãe: era um teatino de prestígio, que só dirigia manufatura de f61ha-de-flandrese de cobre. Casei-me com a filha
espiritualmente senhores da mais alta estirpe; logo que o viu, de um rico negociante de utensílios necessários aos grandes como
precipitou-se ao seu encontro. "Oh! meu Deus! o senhor'marquês, aos pequenos; trabalhamos muito; Deus nos abençoa; não mu-
onde está sua carruagem? Como está passando a respeitável se- damos de condição social; somos felizes, ajudaremos nosso amigo
nhora marquesa, sua mãe?" O pobre infeliz contou-lheo desas- Jeannot. Não sejas mais marquês; todas as grandezas dêste mun-
tre da família. À medidaquese explicava,o teatinoadquiria do não valem um bom amigo. Voltarás comigo para nossa
uma expressão mais grave, mais indiferente, mais imponente: terra, eu te ensinareio ofício, não é muito difícil; dar-te-eiparte
"Meu filho, aí está onde Deus o queria; as riquezas servem sò- na sociedade, e viveremos alegrementeno recanto do mundo onde
mentepara corrompero coração; Deus concedeu,pois, a sua nascemos.
mãe a graça de reduzi-laà mendicidade?" "É isso, senhor." Jeannot, desvairado, sentia-sedividido entre a dor e a ale-
"Tanto melhor, ela agora está certa da sua salvação." "Mas, re- gria, a ternura e a vergonha, e dizia baixinho a si mesmo: "To-
verendo, enquanto se espera, não haveria meio de obter algum dos os meus amigosda alta roda me traíram, e Colin, a quem
socorro neste mundo?" "Adeus, meu filho; uma dama da côrte desprezei,é o único que vem socorrer-me. Que lição!" O bom
está à minha espera. coração de C(ilin ressuscitou no de Jeannot o germe da boa índo-
O marquês estêve a pique de desfalecer; foi tratado quase le, que o mundo não tinha ainda sufocado. Compreendeuque
do mesmo modo pelos seus amigos, e na metade de um dia apren- não podia abandonarseu pai e sua mãe. "Cuidaremosde tua
deu a conhecer o mundo melhor do que em todo o resto de sua mãe, diz Colin; e quanto a teu bom pai, que está na prisão, en-
vida passada. tendo pouco dêssesassuntos;seus credores, vendo que êle não
162 ROMANCES E CONTOS

tem mais nada, ficarão 'contentescom pouca coisa; encarrego-me


de tudo." Colin tanto fêz, que tirou o pai da prisão. Jeannot
voltou à sua terra comLos pais, que tornaram à sua antiga pro-
fissão. Casou-secom uma irmã de Colin, a qual, como era da
mesma índole do irmão, fê-lo muito feliz.
CÂNDIDO OU O OTIMISMO
E Jeannotpai, Jeannottemãe e Jeannotfilho viram que a
felicidade não está na vaidade. TRADUZIDODO ALEMÃO, DE AUTORIA
DO DOUTOR RALPllllp

COM ACRÉSCIMOS QUE FORAM ENCONTRADOSNOS BOLSOS


DO DOUTOR, QUANDO ÊSTE MORREU, EM MINDEN, NO ANO
DA GRAÇAS DE 1759 i9i

CAPA'lTLO PRIMEIRO
ONDE SE RELATA COMO CÂNDIDOFOI EDUCADONUM
BONITO CASTELOS E COMO FOI EXPULSO DELE

H AVIA na Vestfália, no castelo do senhor barão de Thunder-


ten-tronckh,um mocinho a quem a natureza dera os mais suaves
costumes. Sua fisionomiaera o espelhode sua alma. Era
retode entendimentoe simplesde espírito;por isso é que Ihe
deram, pelo que presumo, o nome de Cândido. Os antigos ser-
vidores da casa suspeitavam que era filho da irmã do senhor
barão e de um bom e honestogentil-homemdas vizinhanças que

(191) Edição original, 1759: Ca?zdfde ozl J'oPfimiíme. rradziif de


Z'2//emana de .4/. Ze docfeur RízZp#. (Genebra, Cramer), in-12, 299 págs.
Essa edição apareceu em Genebra durante o mês de fevereiro
de 1759. Segundo Formei (Soüue7zirs d'&n rífoyelz, Berlím, 1789, 11, págs.
230-31), Voltaire teria composto CÂNoioo, em Schwetzingen, por
ocasião da temporada que passou na companhia do eleitor palatino,
em fins de julho de 1758: as alusõesda correspondência
citada por
Morize (pág. IX) parecem com efeito indicar que entre julho e dezem-
bro daqueleano Voltaire trabalhavano CÂNnzno. De qualquerma-
neira,já no dia 24 'de fevereiro,o textoimpresso
de CÂNo1DO
era
difundidoem Pauis,seja o da edição de Genebra, seja o de uma das
numerosas impressõesou contratações parisienses que foram feitas nesse
No dia 2 de marçode 1759,CÂNninoera condenado
pelo
Conselho de Genebra. Voltaire pretendeu negar que fosse o seu autor,
condenou essa "indecência" numa carta ao pastor Vernes, esforçou-se,
em várias cartas a seus amigos, por atribuir a autoria do livro a perso-
164 ROAIANCES E CONTOS CÂNDIDA OU O OTIMISMO 165

a donzela não quisera desposar, porque não pudera provar mais sa 194, e que, neste melhor dos mundos possíveis, o castelo do
que setenta e um quartéis 192 de nobreza, havendo-se perdido senhorbarão era o mais belo dos castelos,e a baronesa,a me-
na noite dos tempos o restante de sua árvore genealógica. lhor das baronesaspossíveis.
O senhor barão era um dos mais poderososfidalgos da "Está provado 195,dizia êle, que as coisas não poderiam ser
Vestfália, pois no seu castelo havia uma porta e tambémjanelas senão o que são: porque como tudo foi feito para um fim, tudo
e a sala grandeera até ornadade tapeçaria. Os cães de ter- tem de sel'para o melhor fim. Notamque o nariz foi feito para
reiro poderiam, caso se quisesse, formar uma matilha, os moços segurar os óculos; por isso usamos óculos 196. As pernas visi-
de cavalariça podiam transformar-se em monteadores; o vigário velmenteforam feitas para usarmos calçõese por isso os usa-
da aldeia era o seu capelão-mor. Todos o tratavam de Monse- mos. As pedras foram feitas para serem talhadase para com elas
nhor, e riam quando êle contava histórias. se construírem castelos; é por êsse motivo que "monsenhor" tem
A senhora baronesa, que pesava umas trezentase cinqüenta um belíssimocastelo; o maior barão da província deve ser o mais
libras, gozavapor êssemotivo de grandeconsideração,e fazia bem instalado. Os porcos foram feitos para serem comidos, eia
as honras da casa com uma dignidade que a tornava ainda mais por que comemosporco o ano inteiro. Por conseguinte,os quc
respeitável. Sua filha Cunegundes, de dezessete anos de idade, afirmam que tudo vai bem dizem uma tolice: a verdade é que
era muito corada, fresca, gorduchae apetitosa. O filho do barão tudo vai pelo melhor."
parecia em tudo digno de seu pai. O preceptor' Pangloss era Cândido ouvia com atenção, e cria candidamente: porque
o oráculo da casa, e o pequeno Cândida escutava as suas lições achava Cunegundesextremamente bela, ainda que nunca tivesse
com toda a boa fé da sua idade e do seu temperamento. tido a coragem de Iho dizer. Depois da ventura de nascer barão
Pangloss ensinava a metafísico-teólogocosmolonigologia 193. de Thunder-ten-tronckh, o segundo grau de felicidade consistia, no
Demonstravaadmiràvelmente
que não existeefeito sem cau- seu pensar, em ser Cunegundes; o terceiro em vê-la sempre; o
quarto, em ouvir o mestre Pangloss, o maior filósofo da provín-
cia e, por conseguinte,de todo o mundo.
nagens imaginários, ao mesmo tempo que confessava que a obra muito
o divertira. Um dia Cunegundes, passeando perto do castelo, no pequeno
Por volta do dia 15 de março de 1761, os Cramer publicam a Se- bosque a que davam o nome de parque, viu por entre a galharia
conãe suite des Métaltges de !ittêTatuTe, d'histoi e et de phitosot)hie, o doutor Pangloss,que dava uma lição de física experimentalà
em que se incluíao CÂNDioosob o título atual: as "adições"con- criada de quarto de sua mãe, uma moreninhabonita e muito
sistem essencialmente
nos sarcasmosdo capítulo XXll referentes a dócil. Como Cunegundestinha notáveldisposiçãopara as ciên-
Fréron e Trublet, mas há também a notar algumas correçõesde por-
A partir de então, Voltaire não modificamais a sua obra. cias, observou, contendo a respiração, as experiências reiteradas
Em 1913,aparece
a ediçãocríticade CÂNDIDO
por Morize,pre-
parada para a Sociedade dos Textos Franceses Modernos (Hachette) :
estudo das fontes, da gênesedo pensamentode Voltaire e das edi- (194) É o princípio da razão suficiente,que está na base do
ções anteriores,até a de Kehl (treze de 1759 a 1760,trinta de 1760 determinismo
de i.eibn;tz: "Nada acontecejamais sem que haja
a 1784) uma causa ou pelo menos uma razão determinante,isto. é, que.possa
(192) Um quartel de nobreza representa uma geração. Na Fran- servir para explicar racionalmente a Pr ori por que a coisa é existente
ça, as pessoaseram consideradasde boa nobreza quando se podia apre- antesque não-existentee por que isso é assim antes que de qualquer
sentarquatro quartéisdo lado do pai e outros ta.ntosdo lado da mãe. outra maneira". (TeodicéÍa, 1, 44).
Na Alemanha, era mais difícil: mas setenta e um quartéis correspon- (195) Paródia do método de Wolf, que pretendia tudo demons-
deriam a mais de dois mil anos de nobreza. trar por dedução.
(193) Essa expressãofoi relacionadacom a do padre Gastei em (196) Esta famosacaçoadados "causa-finalistas"
vem de Hart-
sua resenha do sistema de Leibnitz (.4/ámoiresde Tréuoz&x,fev. 1737, soecker, Recue de pLusieurs piêces de ptiysigue oà !'oa faia princiPa-
pág. 469), em que o qualifica de "doutrina físico-geométrico-teológica' lemenf z,oif Z'izzz,alia fé dei sysfêmes de .4/. Newfon (1722) : "Receio
Mas foi Wolf (1679-1754),
discípulode Leibnitz,que inventoua cos- muito que algum gracejadortenha a idéia de dizer aqui que seria
mologia, "estudo das leis gerais do Universo e da sua constituição de possívelafimtar com igual razão que, em parte, Deus deu o nariz ao
conjunto, tanto do ponto de vista experimentalcomo do ponto de homempara a comodiiiade de nêlese firmaremos óculos." Cf. .Díf-
vista metafísico" (Lalande, 7oc.zbz&laire
de Za pÀÍJoioP#ie,t. 1, 138). tionnaire phitosoPhique,art. Causei finales.
166 ROMANCES E CONTOS CÂNDIDO OU O OTIRIISMO 167

de que era testemunha;


viu claramentea razão suficientedo feito de corpo e que tem a altura exigida." Dirigiram:se a Cân-
doutor, os efeitos e as causas, e voltou para casa agitada, medita- dido e mui ;lortêsÚente o convidaram para jantar. "Senhores, dis-
tiva e cheia de desejo de ser sábia, pensando que ela bem poderia se-lhes Cândido com encantadora modéstia, é grande a honra
ser a razão suficiente do jovem Cândida, o qual por sua vez pode- que me fazeis,mas eu não tenho com que.pagar a.parte.que
ria ser a dela própria. me toca." "Ah! Senhor, disse-lheum dos homensde azul, as
Encontrou Cândido ao entrar no castelo e corou; Cândida pessoascom vosso aspectoe vosso mérito nunca pagam nada:
corou também; cumprimentou-o com uma voz entrecortada e não é verdade que vossa altura é de cinco pés e cinco polega-
das?" "Sim, senhores, é essa a minha altura", disse êle, fazen-
Cândido respondeu-lhesem saber o que dizia. No dia seguinte,
do uma reverência. "Ah! senhor, ponde-vos à mesa. Não sò-
depois do jantar, ao deixarem a mesa, Cunegundes e Cândido mente vamos pagar vossa despesa, mas não permitiremos nunca
se acharam atrás de um pára-vento; Cunegundesdeixou cair o
lenço. Cândido o apanhou; ela tomou-lheinocentementea mão, que falte dinheiro a um homem como vós; os homens.foram
o jovem beijou inocentementea mão da maça, com uma vivaci- feitos para se socorrerem mutuamente." "Tendes razão, diz-lhes
dade, uma sensibilidade,uma graça toda especial;suas bocas se Cândida; é o que sempre me ensinou meu mestre Pangloss;
encontraram,seus olhos se inflamaram, seus joelhos tremeram e na verdade, tudo vai pelo melhor." Rogam-lheentão que aceite
as mãos agitaram-sedesorientadas. O senhor barão de Thunder- alguns escudos; êle os recebe e dispõe-se a passar'lhes o resp'c'
ten-tronckhpassou perto do pára-ventoe, vendo essa causa e tive documento; mas os outros recusam aceita-lo. Sentam-seà
"Não é verdade que tendes muito amor?. . ." "Oh! sim,
êsse efeito, expulsou Cândida do castelo, dando-lhe pontapés a
valer no traseiro; Cunegundes desmaiou; logo que voltou a si foi respondeu êle, amo Cunegundes com a maior ternura." "Não, disse
esbofeteadapela senhora baronesa; e grande foi a consternação no um dos homens, o que perguntamos é se não amais ternamente
mais belo e mais agradável dos castelos. o rei dos búlgaros." "Absolutamente
não, porquenuncao vi."
"Como! É o rei mais gentildo mundo,e queremosbeberà sua
saúde." "Oh! de bom grado, senhores"; e bebeu. "Isso basta,
disseram-lhe; eis-vos transformado em apoio, sustentáculo, defensor
CAPÍTULO SEGUNDO e herói dos búlgaros; vossa fortuna está feita e vossa glóri! é
certa." E logo Ihe põem ferros e o levam para o regimento. En-
EM QUE SE CONTA Ó QUE ACONTECEU A CÂNDIDO sinam-lheo "esquerdavolver", o "direita volver",a tirar e pâr a
ENTRE OS BULGAROS vareta 198, a fazer pontaria, a-tirar, acelerar o passo, e dão-lhe
trinta bastonadas; no dia seguinte, faz os exercícios um pouco
Cândida, expulso do paraíso terrestre, caminhou muito tempo menos mal e dão.Ihe sòmentevinte bastonadas; no terceiro dia,
sem saber aonde ia, chorando, levantando os olhos para o céu, só recebe dez e fica sendo considerado um prodígio pelos
voltando os a todo o momento para o mais belo dos castelos, camaradas.
que guardava a mais bela das baronesinhas; deitou-sesem ceia, Cândido, estupefato,ainda não compreendiamuito bem em
no meiodo campo,entredois sulcosde terra; a nevecaía em que consistiaseu heroísmo. Entendeunum lindo dia de prima-
grandes flocos. Transido de frio, arrastou-se no dia seguinte para vera de fazer um passeio,caminhandoao sabor de sua fantasia
a cidade vizinha, que era a cidade de Valdberghoff-tranbk-dik- e julgando que é um privilégio da espécie humana, .c.omo da. es-
dorff, sem dinheiro, morrendode fome e canseira. Parou triste- pécie animal, servir-sedas' pernas à vontade. Não andara
menteà porta de uma taberna. Dois homensvestidosde azul 197 duas léguasquando quatro heróis de seis pés de altura o alcan-
deram por êle. "Camarada, disse um, eis aqui um rapaz bem çam, amarram e levam para uma enxovia. Perguntaram-lhe,
juridicamente, o que preferia: ser fustigado trinta e sei? vêzes
(197) Era a câr do farda.mento dos recrutadores prussianos por todo o regimento ou receber doze balas de chumbo nos
CÂNnino foi escrito durante a guerra dos Sete Anos: em tudo o que
se segue, os búlgaros representam os prussianos, e os ábaros, os fran
ceses ( 198) A vareta servia para carregar a arma e Limparo cano
168 ROMANCES E CONTOS CÂNDIDA OU O OTIMISB{O 169

miolos. Por mais que dissesseque as vontades são livres e que tar noutro lugar sabre os efeitose as causas. Passousabre
êle não queria nem uma coisa nem outra, necessárioIhe foi montes de mortos e moribundos, e alcançou primeiro uma aldeia
fazer a escolha; e, em virtude do dom de Deus que se chama +

próxima,reduzidaa cinzas: era uma aldeiade ácaros que os


liberdade, resolveu passar trinta e seis vêzes pela fustigação; su- búlgaros haviam incendiado, segundo as leis do direito público.
portou duas vêzes. O ]'egimento era composto de dois mil ho- Aqui, velhos crivados de golpes olhavam para suas mulheres de-
mens; isso significava quatro mil varadas que da nuca às náde- goladas,que morriam com os filhos apertadosaos seios ensan-
ga! Ihe descobriramos músculose os nervos. Como se ia pro güentados; ali, maças estripadas, depois de terem saciado as ne-
ceder à terceira passagem,Cândido, que não agüentavamais, cessidades naturais de alguns heróis, exalavam o último suspiro;
pediu como uma graça que Ihe arrebentassemlogo a cabeça e \
outros, com metade do corpo queimado, clamavam que lhes des-
obteve êsse favor. prendam-lheos olhos e põem-no de joelhos. sem logo a morte. Pelo chão, ao lado de pernas e braços dece-
Nesse momentopassa o rei dos búlgarosque se informa do crime pados, havia miolos espalhados.
do paciente; como o rei era um verdadeiro gênio, compreendeu, Cândido fugiu o mais depressa que pôde para outra aldeia:
pelo que Ihe contaram de Cândido, que se tratava de um jovem pertenciaaos búlgarose os heróis ácaros a tinham tratado da
metafísico,completamenteignorante das coisas dêste mundo. E
mesma forma. Cândida, caminhando sempre sabre membros
concedeu-lhe
o seu perdão com uma clemênciaque há de ser palpitantesou através de ruínas, viu-se afinal fora do teatro da
louvada por todos os jornais, em todos os séculos.' Um honrado
cirurgião curou Cândida em três semanas, com os emolientes guerra, levandoalgumasprovisões em seu alforje e não esque-
ensinadospor Dioscórides. Tinha já um pouco de pele e come cendo nem por um instante a sua Cunegundes. As provisões
çava a andar quando o rei dos búlgaros deu batalha ao rei dos acabaram quando êle chegou à Holanda; mas como ouvira dizer
abafos 199. que a Holanda era um país de genterica, e um país de cris-
tãos, não duvidou de que viessem a trata-lo tão bem como êle
o tinha sido no castelodo barão, antesde ser expulsopor causa
CAPÍTULO TERCEIRO dos belos olhos de Cunegundes.
Pediu esmola a vários personagens,cheios de gravidade, os
COMO CANDIDO ESCAPOU DOS BÚLGAROS E O MAIS quais Ihe respondem'amque, a continuar nesse mister, seria encer-
QUE LHE ACONTECEU rado numa casa de correção a fim de aprender a trabalhar.
Dirigiu-se em seguida a um homem que acabava de discor-
Nada tão belo, tão ágil, tão brilhantee bem ordenadocomo rer durante uma hora sabre a caridade, perante uma grande as-
os dois exércitos. As trombetas,os pífaros, os oboés,os tambo- sembleia. O orador, olhando-ode banda,disse: "Que fazeis
res, os canhõesformavamuma harmonia tal como outra não aqui? Sois pela boa causa?" "Não há efeito sem causa, res-
existe, nem mesmo nos infernos. Os canhões derrubaram. de pondeu Cândida modestamente; tudo está necessàriamenteconca-
início, cêrca de seis mil homensde cada lado; a fuzilaria, em tenado e determinado da melhor maneira. Era preciso que eu
seguida, levou do melhor dos mundos uns nove ou dez mil velha- fosse expulso de perto de Cunegundes, que apanhasse as bastona-
cos que Ihe infectavam a superfície. A baioneta foi também a razão {

das, e que hoje viessea pedir um pedaçode pão, enquantonão


suficienteda morte de algunsmilhares de homens. Tudo ascen- posso ganha-lopor mim mesmo; tinha de ser assim." "Meu ami-
dia a cêrca de trinta mil almas. Cândído, que tremia comoum go, diz-lheo orador, crê que o papaé o Anta-Cristo?" "Nunca
filósofo, escondeu-seo melhor que pede durante essa carnifi- ouvi isso, respondeuCândido; que o seja ou não seja, não sei
cina heróica. dízê-lo; o que sei é que não tenho migalha de pão." "Não me-
Enfim,ao passoque os doisreis mandavam
cantaro To rece o pão que pede, diz-lhe o outro; safe-se, miserável velhaco,
Deum cada qual no seu acampamento,
êle preferiu ir medi- e não me apareça mais." A mulher do orador, que metera o
nariz na janela, ouvindo um homem a duvidar de que o papa
fosse o Anta-Cristo, atirou-lhe à cara um. . . cheio. Céus! A que
(199) Habitantes
de uma regiãoda Cítia. excessoschega o zêlo religioso das mulheres!
170 ROMANCES E CONTOS CÂNDIDO OU O OTIMISMO 171

Um homem que não fará balizado, um bom acaba teria sido por me ver expulsoa pontapésdo belo castelode seu
tisna200, chamado Tiago, viu a maneira cruel e ignominiosa de pai?" "Não, disse Pangloss; ela foi estripada pelos soldados
tratarem assim a um irmão, um bípede implume que possuía uma búlgaros, depois de a víolentarem o mais que puderam; arreben-
alma; levou-oentãopara sua casa, lavou-o, deu-lhepão e cer- taram a cabeça ao senhor barão, que queria defendo-la; a senho-
veja, fêz-lhe presente de dois florins e quis mesmo ensina-lo a ra b-aronesafoi picada em pedaços; o meu pobre pupilo foi
trabalhar em suas manufaturas de tecidos da Pérsia, fabricados tratado exatamentocomo sua irmã; quanto ao castelo, não ficou
na Holanda. Cândida, quase a prosternar-sediante do homem, ex- pedra sôbre pedra, nem um celeiro, nem uma ovelha, nem um
clamava: "Bem mo dizia Mestre Pangloss que tudo vai pelo pato, nem uma árvore; mas fomos bem vingados, porque os aba-
melhor neste mundo, pois que ]ne toca muitíssimo mais vossa fos fizeram outro tanto num baronato das vizinhanças, que per-
generosidade
do que a durezadêssesenhorde capa negrae da tencia a um senhor búlgaro.
senhora sua esposa. Ao ouvir êsse discurso, Cândida desmaiou de novo, mas vol-
No dia seguinte, estando a passear, encontrou um miserável tando a si e tendo dito tudo que devia dizer, inquiriu das causas
coberto de pústulas, de olhos amortecidos, com o nariz roído, a e efeitos e da razão suficiente que tinham pasto Pangloss em tão
baga torta, os dentes prêtos, falando pela garganta, atormentado miserável estado. "AI de mim, disse o outro, foi o amor; o amor,
por violenta tosse e cuspindo um dente a cada acesso. o consolador do gêilero humano, o conservador do universo, a
alma de todos os sêres sensíveis, o terno amor!" "Siml disse Cân-
dida, também eu conheci o amor, êsse soberano dos corações, essa
CAPÍTULO OUARTO alma de nossa alma; um beijo, a única coisa que êle me conce-
deu, custou-mevinte pontapésno traseiro. Como foi que uma
COMO CANDIDO ENCONTROU SEU ANTIGO MESTRE DE coisa tão bela produziu em sua pessoa uln efeito tão lastimável?"
FILOSOFIA, O DOUTOR PANGLOSS,E O MAIS QUE SE SEGUIIJ Pangloss respondeu nestes têrmos: "Meu caro Cândida! Co-
nheceu sem dúvida Paqueta, aquela bonita dama de companhia da
Cândida, comovido, sentindo mais compaixão do que horror, nossa augus.tabaronesa; gozei em seus braços delícias do paraíso
deu a êsse horrível mendigo os dois florins que recebera de Trago, que produziram depois êstes tormentosdo inferno que me devo-
o seu amigo anabatista. O fantasJna olhou-o fixamente, derramou ram; ela estava contaminada e morreu disso, talvez. Paqueta
lágrimas, e ferrou-lhe um abraço. Cândido, amedrontado, recuou. recebeuo presentede um sábio franciscanoque, por sua vez, o
"Ail disse o miserável ao outro, não reconhecemais o seu caro remontavaà própria fonte; porqueêle o recebera de uma velha
Pangloss?" "Que ouço! o ilaeu caro mestres Nesse estado hor- condêssa,que o tinha de um capitão de cavalaria, que o devia
rívell Que desgraçaIhe aconteceu? Por que não continuano a uma marquesa, que o tinha de um pajem, que o ganhara de
mais belo dos castelos? Que é feito de Cunegundes,essa pérola, um jesuíta o qual, quando noviço, o recebera diretamente de um
essa obra-prima da natureza?" "Não posso mais", disse Pan- dos companheirosde Cristóvão Colombo. Quanto a mip, não o
gloss. Cândidolevou-oentãopara o estábulodo anabatista,e transmitirem a ninguém, porque dêle morrerei." "ó Panglossl
deu-lheum pedaçode pão; quandoPanglossse refez, disse: exclamouCândido, eis uma estranhagenealogia. Não estaria
"Pois bem. Quer saber de Cunegundes? Morreu." Cândida no diabo a sua origem?" "Absolutamentenão, replicou o gran-
desmaiouao ouvir isso. Seu amigofê-lo voltara sí com um de homem,trata-sede coisa indispensávelno melhor dos mun-
pouco de vinagre ordinário que achara por acaso no estábulo. dos; é um ingrediente necessário: porque se Colombo não ti-
Cândido abriu os olhos. "Cunegundes morta! Ahl Melhor dos vesse apanhado em uma ilha da América 201 essa enfermidade
mundos,onde estás? Mas de que doençamorreuela? Não
(201) Todas essa indicaçõessabre a origem da sífilis, que Vol-
(200) "Os sucessores dêsses fanáticos sanguinários [os anabatistas, taire utiliza também no assai sur /es moeuri (cap. 145), no Hounh{
que fomentaram perturbações da ordem na Alemanha e na Holanda, nos Ç>UARXNTAESCUDOS e l)icfionncztre pÀiZosopÀtqae (art. lêPre ef
no século XV]] são os mais pacíficos dentre todos os homens, ocupa- réroZe) foram colhidas no 7raíté des maladies oénére zzzesde Astruc
dos com suasindústriase seu comércio,laboriosos,caridosos"(Estai (1734). Várias obras contemporâneas discutiam a questão da origem
szlr Jei moezórs,cap. 132). da doença,européiaou americana.
172 ROMANCES E CONTOS
r CÂNDIDO OU O OTIR{ISMO 173

que envenenaas fontes da vida, que muitas vêzesimpede mesmo foi assaltado pela mais terrível das tempestades à vista do parto
a geração,e que evidentemente
é o opostodo grandefim da de Lisboa.
natureza,não teríamos nem o chocolatenem a cochonilha; é pre-
ciso notar que até hoje esta enfermidade,como a controvérsi;, é CAPÍTIJI.o ntlINTO
uma peculiaridade nossa, do nosso continente. Os turcos, os
hindus,os persas,os chineses,os siameses,
os japonêses
não TEMPESTADE, NAUFRÁGIO, TERREAIOTO E O MAIS QUE
a conhecemainda; mas há uma razão suficientepara que ACONTECEU AO DOUTOR PANGLOSS, A BANDIDO E
venham a conhecê-latambém, dentro de alguns séculos. Enquanto AO ANABATISTATIAGO
ipso, ela fêz esplêndidoprogressoentre nós, sobretudoem gran-
des exércitos, compostos de honestos mercenários, bem educados, Enfraquecidos, morrendo das angústias inconcebíveis que o
que decidemo destinodas nações; pode-seafirmar que quando balanço
do naviotraziaaos nervose a todosos humores
da
trinta mil homens se dispõem em batalha contra outros tantos,
há mais ou menosvintemil sifilíticosde cadalado." corpo, agitados em sentidos contrários, metade dos passageiros
nem sequer tinha fôrças para pensar no perigo. A outra metade
"Eis uma coisa admirável, disse Cândido; mas é preciso que gritava e fazia preces: as velas estavam rompidas, os mastros
se Guie." "Como poderei tratar-me? disse Pangloss; não tenho quebrados, o casco já meio aberto. Trabalhava quem podia; nin-
um vintém,meu amigo, e em toda a superfícieda tetra é impos- guém se entendia, ninguém comandava. O anabatista, ajudando
sível tomar uma sangria ou um cristal sem pagar ou sem que um pouco na manobra, achava-se no convés; um marinheiro
haja quem pague por nós." furiosodá-lheum rude golpee o estendeno chão; mas, com
Estas últimas palavras fizeram Cândida tomar uma reso- o golpe, êle mesmo teve tão violento abalo que caiu fora do
lução; foi atirar-se aos pés do seu caridoso anabatista, Trago, e navio, de cabeçapara baixo, e ficou suspenso,dependuradoa
fêz-lhe uma descrição tão tocante do estado em que se achava um pedaçode mastro partido. O bom Tiago corre em seu socor-
o seu amigo, que o homem não hesitou em recolher o doutor ro, ajuda-oa subir, e com o esforçoque fêz precipitou-seao
Pangloss, e tratou dêle à sua custa. Pangloss com a cura conse- mar, diante do marinheiro que, entretanto, o deixou perecer sem
guiu não perder mais que um ôlho e uma orelha. Como escrevia se dígnar lançar-lhe sequer um olhar. Cândida aproxima-se, vê
bem e sabia aritmética, o anabatista Trago fêz dêle o seu guarda- seu benfeitorreaparecer por um instante,para ser logo engolido
livros. No fim de dois meses,sendoobrigado a ir a Lisboa para pelas ondas. Quer atirar-se ao mar à procura dêle; o filósofo
tratar de negócios,levou no seu navio seus dois filósofos. P'an. Pangloss o impede, provando-lhe que a enseada de Lisboa havia
gjoss explicava-lhecomo nada melhor do que êste mundo pode sido criada expressamente para que nela se afogasse o anabatista.
existir. Trago não concordava. "É de ver que os homenscor- Enquanto êle fazia a demonstraçãoü priori 203, o navio partiu-se
romperam um pouco a natureza, porque, não sendo lobo ao nas- e todos pereceram com exceção de Pangloss, de Cândido e do
cer, êles se transformam em lobos. Deus não lhes deu canhões brutal marinheiro por cuja causa se afogara o virtuoso anabatista;
de 24 e nembaionetas,entretanto fizerampara si baionetase o patife nadou fàcilmenteaté a praia, à qual conseguiramtam-
canhõesa fim de se destruírem. Poderiacitar ainda as ban- bém chegar, sabre uma prancha, Cândida e Pangloss.
carrotas e a justiça que se apodera dos bens dos bancarroteiroe Depois de se refazeremum pouco, marcharam para Lisboa;
para frustrar os credores" 202. "Tudo isso é indispensável, retru- restava-lhesalgum dinheiro com que esperavamlivrar-se da fo-
cou o doutor caolho, os males particulares produzem o bem ge- me, após terem escapado à tempestade.
ral, de sorte que quantomaior é o númerode infelicidadespar- Mal tinhampasto o pé na cidade, chorandoa morte de seu
ticulares tanto melhor irá o mundo." Enquanto êle falava o tempo benfeitor, a terra começa a tremer sob seus passos 204; o mar se
escureceu, os ventos soprarem de todos os quadrantes, e o navio
(203) Isto é, por dedução, passando dos princípios às conse-
(202) Voltaire havia perdido,em 1757,oito mil libras na ban quências.
carrota de Bernard, e ficara furioso por ver uma parte da suces (204) O terremoto de Lisboa ocorreu no dia l.Q de novembro
são entrar "nos cofres do recebedor das consignações de 1755.
174 ROMANCES E CONTOS CÂNDIDA OU O OTIMISMO 175

levanta, refervendono pôrto, e quebra os navios que estão anca. feição foi triste; os convivasregaram de lágrimaso pão que co-
rados. Turbilhões de chamas e cinzas cobrem as ruas e praças miam; mas Pangloss consolou-os, assegurando que as coisas não
públicas; as casas quem, os telhadosse abatem sabre os alicerces, podiam ser de outro modo: "Porque, disse êle, tudo isto éo
e os alicercesse dispersam; trinta mil habitantesde todas as ida- que há de melhor; porque se há um vulcão em Lis-boa,claro é
des e de ambos os sexos ficam esmagadossob as ruínas. O ma- que êle não podia estar noutro lugar, porque é impossívelque as
rinheiro, assobiando e praguejando, dizia: "Alguma coisa se coisas não estejam onde estão, porque tudo está bem feito."
poderá ganhar aqui.'' "Qual será a razão suficiente dêste fenó- Um homenzinho de prêto,familiar206da Inquisição,que
meno?", perguntava Pangloss. "É o fim do mundo," exclamava estavaao lado dêle, tomou a palavra e disse com tôda a delilla-
Cândida. O marinheirose metelogo no meio das ruínas à deza: "Quer-meparecerque o senhornão crê no pecadoorigi-
procura de dinheiro, com risco da própria vida; acha-o, apode- nal: se tudo vai pelo melhor, é que não se deu a queda do homem
ra-se dêle, embriaga-see, tendo curtido o seu vinho, compra os e nem há punição." "Peço humildementeperdão a Vossa Exce-
favores da primeira maça de boa vorltadeque encontra sôbre as lência, .respondeu Pangloss ainda mais cortêsmente, porque a que-
ruínas das casas destruídas, no meio de mortos e moribundos. da do homem e a maldição entravam necessàriamenteno melhor
Pangloss o puxa pela manga. "Meu amigo, diz-lhe, isso não é dos mundos possíveis." "0 senhor não crê então no livre arbí-
direito, contrárias a razão universal, agora não é hora disso." trio?" disse o da Inquisição. "Perdoar-me-á Vossa Excelência,
"Vai para o diabo! I'esponde o outro, sou marinheiro, nascido mas a liberdade pode subsistir juntamente com a necessidadeab-
na Batávia; pisei quatro vêzeso crucifixo em quatro viagens soluta: porque era necessário que fossemos livres; porque enfim
que fiz ao Japão205;comigonada arranjascom a tua razão a vontade determinada. . ." Pangloss estava ainda no meio da
universal !"
frase quando o homem fêz um sinal com a cabeça ao seu lacaio
Alguns estilhaços tinham ferido Cândida; estava estendido que Ihe servia vinho do Parto.
na rua, coberto de destroços. E dizia a Pangloss: "Ail Traze-me
um pouco de vinho e óleo, que eu morro." "Êste terremoto não é
novidade, respondeu Pangloss; a cidade de Lama sofreu o mes- CAPÍTULO SEXTO
mo na América, no ano passado: mesmascausas, mesmosefeitos;
há decerto um rastilho de enxofre sob a terra desde Lama até COADOSE FEZ UM BELO AUTO-DE-FÉPARA IMPEDIR OS
Lisboa." "É bem provável, disse Cândida, mas, por amor de TERREMOTOS E COMO CÂNDIDO FOI AÇOITADO
Deus, um pouco de vinho e de óleos" "Como, provável? repli-
cou o filósofo; sustentoque o fato está demonstrado." Cândi- Depoisdo terremotoque destruirátrês quartos de Lisboa
do perdeu os sentidos e Pangloss trouxe-lhe então um pouco de os sábios da terra não tinham encontrado,para prevenir a ruína
água de uma fontevizinha. total, outro meio mais eficaz que dar ao povo um belo auto-de-
No dia seguinterecuperaramum pouco as fôrças com algu- fé 207; decidira a Univel'cidadede Coimbrã que o espetáculode
mas provisões que acharam, insinuando-seno meio dos escom- algumas pessoas queimadas a fogo lento, com grande' cerimónia,
bros. Em seguida trabalharam como os demais para ajudar era remédio infalível para impedir que a terra tremesse.
os habitantes que haviam escapado à morte. Alguns cidadãos Em consequênciaprenderam um biscainho acusado de ter
socorridos por êles lhes deram um jantar tão bom como não contraído matrimonio com a própria comadre e dois portuguê.
se podia esperar após uma tal calamidade; verdade é que a re- ses que, .ao comerem frango, tinham pasto de lado a gordura 208:
depois do jantar vieram prerlder também o doutor'Pangloss e
(205) Os japonêses obrigavam os seus compatriotas ao serviço
dos holandeses
da Batáviaa pisar na cruz, para mostrarque não (.206) Oficial da Inquisição encarregado de prendem os acusados.
adotavam a religião dos seus senhores. Voltaire estende a êste holan- As informações de Voltaire sabre a Inquisição vêm 'de Dellon: Re/ation
dês o que Kaempfer (]7ísfoire na&wreZ/e,
citei/eet eccZásiasf
g e de J'Em- de J'/7zguisíf07z
de Goa (1688). ' :'
pife du /aPoR, 1729, 2 vol. in-8ç) diz dos japonêses: cf. Essa sar Zes (207) Realizado a 20 de junho de 1756.
moeurs, cap. 196. (208) Isto é, que tinham agidocomo se fossemjudeus.
176 RORIANCES E CONTOS
r CÂNDIDA OU O OTIMISMO 177

seu discípulo Cândido, o primeiro por ter falado e o segundo Senhor Santo Antânio de Pádua e o Senhor S. Trago de Com-
por ter ouvido com ar de aprovação. Ambos foram levadosserá' postelaIhe dêem a sua proteção; eu volto amanhã". Cândida,
radamente a cubículos de extrema frescura, eln que niguém sempre admil'ado com tudo que vira e com tudo que sofrera, e mais
jamais se sentira incomodadopelo sol. Oi.to dias depois, ambos ainda com a caridade da velha, quis beijar-lhe as mãos. "Não é a
foram vestidos com um sambenito, e enfeitaram-lhes as cabeças minha mão que deve beijar, disse a velha; eu voltareiamanhã;
com mitras de papel. Na mitra e no sambenitode Cândido havia unte-secom a pomada, coma e durma."
chamas voltadaspara baixo e diabos sem garras nem cauda; Cândida, apesar de tantas infelicidades,comeu e dormiu.
mas os diabos de Panglosstinham garras e cauda, e as chamas No dia seguinte a velha traz o almoço, examina-lhe as costas,
estavam na posição normal. Marcharam assim vestidos, ouvi- fricciona-ocom uma outra pomada: traz-lhedepois o jantar e
ram um sermão mui patético,seguido de bela música de fabor- volta ainda à noite com a ceia. No terceiro dia fêz ainda as
dão. Cândido foi açoitado em cadência, ao compasso do canto; mesmas cerimónias. "Quem é, perguntava-lhe sempre Cândido ;
o biscainho e os dois portuguêses que não tinham querido comer quem Ihe inspirou tanta bondade? Que agradecimentosposso
gordura foram queimadose Panglossfoi enforcado, ainda que dar-lhe?'' A boa mulher nada respondia; voltou à tarde sem
não fosse êsse geralmente o costume. No mesmo dia, a terra tre- a ceia. "Venha comigo, disse, e fique calado." Toma-o então
meu de novo com fragor' medonho209. pelo braço e caminha com êle pelos campos cêrca de um quarto
Cândida, terrificado, atónito, desatinado, todo ensanguentado de milha; chegama uma casa isolada,rodeada de jardins e ca-
e andante, dizia consigo mesmo: "Se é êste o melhor dos mun- nais. A velhabate a uma pequenaporta. Abrem e, por uma
dos possíveis,que serão os outros? Compreende-seainda que escada secreta, ela conduz Cândido a um gabinetedourado, dei-
me açoítassem, visto que eu já fará açoitado pelos búlgaros; mas, xa-o sabre um canapé de brocado, fecha a porta e retira-se.
ó meu caro Pangloss,tu, o maior dos filósofosl Tinha eu de Cândido tinha a impressão de estar sonhando; consideravatoda
ver-te enforcar sem saber por quê? ó meu caro anabatista! a sua vida como um sonho funesto e o momento presente como
Tu, o melhor dos homens, era necessário que morrestes afogado um sonho agradável.
no pôrto? ó Cunegundesl Tu, a péroladas donzelas,era ne- A velha voltou logo, conduzindocom dificuldadeuma mu-
cessário que te vendessemo ventre! lher trêmula, de majestosa estatura, rebrilhante de pedras precio-
E Cândida afastava-se,mal se agücntandoconsigo,após ter sas e cobertacom um véu. "Tire o véu", diz a velha a Cândido.
recebido a prédica e os açoites, a absolvição e a bênção, quando O maço aproxima-se, levanta o véu com um gesto tímido. Que
uma velha se aproximou e disse: "Meu filho, tenha coragem, momentos Que surprêsa! Parece-lhe estar vendo Cunegundes;
venha comigo. e com efeitoa via, era ela mesma. Faltavam-lhe
as largase,
incapaz de pronunciar uma palavra, ajoelha-se a seus pés. Cune-
(IAPÍ'lTLO SÉTIMO gundescai sabre o canapé. A velha dá-lhescordiais; êles re-
cuperamos sentidose começam
a falar: a princípiopalavrasen-
COMO UMA VELHA TOMOU CONTA DE CANDIDOE trecortadas, perguntas e respostas que se cruzam, suspiros, lá-
COMO ÊSTE TORNOU A ENCONTRAR O SEU AMOR grimas, gritos. A velha recomenda-lhesque façam menos ruído
e deixa-osem liberdade. "Como! Sois vós. diz Cândido, estais
Cândido não recobrou coragem, mas seguiu a velha a um viva e venho encontrar-vos em Portugall Não fostes violada?
casebre, onde sua guia Ihe entregou um boião de pomada para un- Não vos abriram o ventre, como me contou o filósofo Pangloss?"
tar-se, e deu-lhe de comer e beber; mostrou-lhe um pequeno leito "Sim, aconteceu-meisso, disse a bela Cunegundes; contudo nem
bem limpo, ao lado do qual estava um fato completo. "Coma, semprese morre dêssesdois acidentes.'' "Mas vosso pai, vossa
beba e durma, disse ela, e que Nossa Senhora de Atocha 210 e o mãe foram mortos?" "Infelizmenteé verdade", disse Cone.
gundeschorando. "E vossoirmão?" "Meu irmão foi morto
(209) Na realidade, no dia 12 de dezembro de 1755. também." "E por que estais em Portugal? E como soubestes que
(210) Cf. IIISTORIA DAS VIAGENS DE SaARMENrADO,VOI. 1, Pág. eu estava aqui? E por que estranha aventura me fizestes vir até
1 15, n. 129. esta casa?" "Contar-vos-eitudo isso, replicou a dama, mas é pre-
178 ROMANCES E CONTOS CÂNDIDO OU O OTIMISMO 179

cimoque primeiramenteme relateistudo o que vos aconteceuapós da e em Portugal, e gostava apaixonadamentedas mulheres. Êsse
aquêle) beijo inocenteque me destes e os pontapésque rece- judeu agarrou-semuito a mim, mas não pede fazer nada; resísti-
bestes. Ihe melhor e mais do que ao soldado búlgaro: uma pessoa hon-
Cândido obedeceu-lhe
com profundo respeito; apesar de rada pode ser violada uma vez, mas isso robustece.Ihemais a
um tanto perturbado e com voz fraca e trémula, apesar de Ihe virtude. O judeu, a fim de me domesticar,trouxe-mepara esta
doerem as costas ainda um pouco, contou-lhecom tôda a simpli- casa de campo em que estamos. Até então, estava convencida
cidade tudo que Ihe sucedera desde o momento de sua se- de que não havia neste mundo coisa alguma mais formosa do
paração. Cunegundes levantava os olhos para o céu; derramou que o castelo de Thunder-ten-tronckh; fui desiludida. O inqui-
lágrimas pela morte do bom anabatista e de Pangloss; e, depois sidor-morviu-meum dia na missa; olhoupara mim muitotem-
disso, falou nos seguintestêrmos a Cândido, que não perdia uma po, e mandou-medizer que tinha de falar-me sabre negóciosse-
palavra e que a devorava com os olhos. cretos. Fui conduzida ao seu paço; dei-lhe informações a respeito
da minha linhagem; fêz-me ver quanto estava abaixo da minha
hierarquia pertencer a um israelita. Foram, da parte dêle, pro-
por a Dom lsacar que me cedesseao senhorinquisidor. Dom
CAPÍTULO OITAVO lsacar, que é o banqueiro da carte e homemde crédito, não quis
HISTORIA DE CUNEGUNDES ceder. O inquisidor ameaçou-ocom um auto-de-fé. Finalmente,
o meu judeu, intimidado, concluiu um contrato pelo qual a casa
e eu pertenceríamosa ambos em comum: o judeu teria para si
"Eu estava na minha cama e dormia profundamente, quando as segundas,quartas e o dia de sábado, e o inquisidor teria os outros
aprouve ao céu enviar os búlgaros ao nosso formoso castelo de dias da semana. Há seis mesesque esta convençãosubsiste. E
Thunder-ten-tronckh;degolarammeu pai e meu irmão, e co.rtaram não foi sem contendas;porque muitas vêzespareceu indeciso se
minhamãe em pedaços. Um búlgaromuitoalto, de seis pés a noite de sábado para o domingo pertencia à antiga lei ou à
de altura, vendo que perante um tal espetáculo eu perdera lei nova. Pela minha parte, tenho resistido até agora a ambos, e
os sentidos,começoua violar-me;issofêz-mevoltara mim; re- creio que é por isso que sempretenho sido amada. Finalmente,
cuperei os sentidos, mordi, arranhei, quis arrancar os olhos àque- para afastar a praga dos tremoresde terra, e para intimidar Dom
le grande búlgaro, não sabendo que tudo quanto sucedia no castelo lsacar, aprouve ao senhor inquisidor celebrar um auto-de-fé.Deu-
de meu pai era coisa habitual: o selvagemdeu-meuma facada .me a honra de um convitepara assistir ao mesmo;fiquei muito
no quadril esquerdo, de que tenho sinais ainda." "Oh! Gos- bem situada: às damas, foram servidos refrescos entro a missa
taria de vê-los", disse o ingênuo Cândida. "Haveis de vê-los, disse e a execução. Devo dizer, em verdade, que me horrorizou o ver
Cunegundes. Mas continuemos." "Continuai", disse Cândido.
queimar aquêles dois judeus e o honrado biscainho que tinha
Cunegundes reatou assim o fio da sua história: "Um capitão casado com sua comadre; mas qual não foi a minha 'surprêsa,
búlgaro entrou, viu-me cheia de sangue, e o soldado não se in- o meu espanto, o meu terror, quaíldo vi, de sambenito e carocha,
comodoucom a presençadêle. O capitãoficou furioso com uma figura que se parecia imenso com Pangloss! Esfreguei os
o pouco respeito que Ihe mostrava aquela fera, e matou-o em cima olhos, olhei com maior atenção, e vi-o enforcado. Desfalece!
do meu corpo; em seguida, mandou-metratar e levou-meprisio Apenas recuperei os sentidos, vi que vos estavam despindo, e
neira de guerra para o seu quartel. O meu trabalho era lavar..as fícastestodonu; foi o cúmulodo horror,da consternação,
da
poucas camisas que êle tinha, e fazer-lhe a comida; achava-me dor, do desespêro. Devo dizer-vos, francamente,que a vossapele
bonita, devo confessa-lo;e tambémnão quero negar que êle era é ainda mais.branca e de um rosadomais perfeitoque a' do
muito bem feito, e que tinha a pele branca e macia; no resto, meu capitão dos búlgaros; êste aspecto redobrou todos os sen-
pouco espírito, pouca filosofia; bem se via que não bilha sido timentosque me oprimiam,que me devoravam. Quis gritar, quis
educadopelo doutor Pangloss. No fim de três meses,tendo per- dizer: ''Suspendam,
bárbarosl",masfaltou-me
a voz; e os meus
dido todo o seu dinheiro e tendo-seaborrecido de mim, vendeu- gritos teriam sido inúteis. Quando acabaram de açoitar-vos,
me a um judeu chamadoDom lsacar, o qual traficavana Holan- dizia eu comigo: "Como se pode explicar que o amável Cândi-
180 ROMANCES E CONTOS
r CÂNDIDA OU O OTIMIShIO 181

do e o sábio Pangloss se achem em Lisboa, um para receber cem chão, aos pés da formosa Cunegundes. "Virgem Santíssimasex-
açoites, e o outro para ser enforcado por ordem do senhor inqui- clamou esta; que há de ser de nós? IJm homem morto em minha
sidor, de quem sou amante? É, pois, certo que Panglossme casa! Se a justiça chega, estamos perdidos." "Se Pangloss não
iludia cruelmentequandome dizia que tudo corre da melhor tivessesido enforcado, disse Cândido, dar-nos-iaum bom conse-
forma neste mundo. lho nesta emergência,porque era um grande filósofo. À falta
dê[e, consu]temos a velha." ]bta era muito prudente e começava
"Agitada, desvairada, ora fora de mim, ora a ponto de mor- a dizer a sua opinião, quando uma outra portinha se abriu. Era
rer de fraqueza, tinha a cabeça cheia da lembrança do assassí-
nio de meu pai, de minha mãe, de meu irmão, da insolência do uma hora da noite, e portanto o comêço do domingo: êste dia
já pertencia ao senhor inquisidor. Êste entra, vê o açoitado Cân-
maldito soldado búlgaro, da facada que êle me deu, da minha
escravidão, do meu emprêgode cozinheira, do meu capitão búl- dida de espadaem punho, um morto estendidono chão, Cune-
garo, do meu horrível Dom lsacar, do meu abominávelinquisi- gundes assustada,e a velha dando conselhos.
dor, do suplício do doutor Pangloss, do míserere em surdina du- Eis, neste momento, o que se passou no espírito de Cândida,
rante o qual vos acoitavam, e sobretudo do beijo que eu vos e o modo como êle raciocinou: "Se êste santo varão grita por
dera atrás do biombo no dia em que vos vi pela última vez. socorro, é infalível que me manda queimar. Outro tanto poderá
Dei graçasa Deus que vos reconduzia
para mim por meio de fazer a Cunegundes. Já me fêz açoitar impiedosamente;é meu
tantas provações. Recomendei à minha velha que cuidasse da rival; estou em maré de matar, não há que ter hesitações."
vossapessoae que vos trouxessepara aqui logo que pudesse. Exe:- Êste raciocínio foi claro e rápido; e, sem dar tempo ao inquisi-
curou perfeitamentea minha incumbência; tive o prazer inexpri- dor para acalmara surprêsa,atravessa-ode lado a lado e esten-
mível de tornar a ver-vos, de ouvir-vos, de falar-vos. Deveis estar de-o ao lado do judeu. "AÍ está outro, disse Cunegundes. Ago-
com uma fome devoradora; eu) tambémestou com bastanteape- ra é que não há remissão; estamosexcomungados:chegou a nos-
tite; vamos começar pela ceia. sa hora final. E como se pode explicar que, nascido de costu-
mes tão brandos,tenhaismorto, em dois minutos,um ju
Sentam-se ambos à mesa; e, passada a ceia, voltam a sentar- deu e um prelado?" "Minha querida amiga, respondeu Cândido,
se no belo canapéde que já se falou. Ali estavam,com toda a
comodidade, quando o senhor Dom lsacar, um dos donos da casa, quem ama, tem ciúmes e foi açoitado pela Inquisição, não sabe
chegou. Era o dia do sábado;vinha gozar dos seusdireitose mais o que faz.
explicar o seu terno amor. A velha tomou então a palavra, e disse: "Estão na cavala-
riça três cavalosandaluzes,com as suas selas e os seus bridões.
O valoroso Cândida que vá já enfreá-los. A senhora tem m(D'a-
CAPÍTULO NONO dora 211 e diamantes; montemos depressa a cavalo, . embora eu
não tenha senão uma nádega, e partamos para Cádiz; está o me
DO QUE ACONTECEU A CUNEGUNDES, A CÂNDIDA, AO Ihor tempopossível,e é um verdadeiroprazer viajar com o fresco
ixQuisipoK-moK E A ubí JUDEU da noite.
Imediatamente,
Cândida aparelhouos três cavalos. Cune-
Êste lsacar era o hebreu mais colérico que se tinha visto em gundes, a velha e êle andaram trinta milhas de uma assentada. Já
lsrael, desde o cativeiro da Babilânia. "Eu já te digo, grande deviam ír longe quando a Santa H-ermandadentrou na casa aban-
cadela da Galiléia, se não te basta o inquisidor; também êsse donada: monsenhor foi enterrado numa bela igreja, e lsacar ati-
patife entra em sociedadecomigo?" E, dizendo isto, puxou de rado para um monturo.
um grande punhal de que andava sempre munido; e, não Ihe pas' Cândido, Cunegundes e a velha estavam já a êsse tempo na
sande pela cabeça a idéía de que o seu adversário pudesseestar pequena cidade de Avacena, no meio das montanhas da Serra-
armado, precipitou-sesabre Cândido. Mas o nosso bom vest- -Morena; e falavam dêste modo, numa taberna.
faliano tinha recebido da velha, com o vestuário completo, uma
boa espada. Desembainhou-a, apesar de ser dotado de costumes
muito brandos,e estendeuo israelita redondamente
morto no (211) O capítulo seguinte traduz essa palavra por pisfolai
182 ROA{ANCES E CONTOS
r CÂNDIDA OU O OTIBIISAIO 183

cito com tanta graça, celeridade, destreza, altivez, agilidade, que


CAPÍTULO DÉCIMO Ihe deram o comandode uma companhiade infantaria. Ei-lo,
pois, capitão; e embarcou em companhia de Cunegundes, da. ve-
EM QUE PENURIA CÂNDIDA, CUNEGUNDES E A VELHA lha, de'dois criados e dos dois cavalosandaluzesque tinham
CHEGAM A CADIZ, E DO SEU XMBAnQUK pertencido ao grande inquisidor de Portugal.
Durante a travessia. refletiram muito sôbre a filosofia do po-
"Quem teria roubado as minhas pistolas e os meus diaman- bre Pangloss. "Vamos para outro universo, dizia Cândida;. é lá,
tes? dizia Cunegundeschorando; como havemosde viver? Que sem dúvida, que tudo está bem; porque, é forçoso confessa-lo,há
havemos de fazer? Onde poderei encontrar inquisidores e judeus algumasrazões para a gente lastimar o que.se passa no nosso,
que me dêem outros?" ''Ah! disse a velha, desconfio muito de um tanta no físico como no moral." "Amo vos de todo o meu cora-
reverendo padre franciscano que a noite passada pernoi-touem ção, dizia Cunegundes; mas tenho ainda a alma agitada ?om tudo
Badajoz, na mesmahospedariaem que estávamos. Deus me livre o que vi, e com tudo o que sofri.'' "Tudo irá bem, replica Cân-
de fazer juízos temerários!mas duas vêzesêle entrou no nosso dilo; o mar dêsse novo mundo já é melhor do que os mares
quarto, e retirou-s.emuito antes de nós." "Ahl disse Cândida, o da nossa Europa; é mais tranqüilo, os ventos são mais constan-
bom Pangloss tinha-me muitas vozes provado que os bens da terra tes: é com certeza o novo mundo que é o melhor dos univer-
são comuns a todos os homens, que cada um tem sôbre êles igual sos possíveis." "Deus o queira! dizia Cunegundes;mas fui
direito 212. Ora, o tal franciscano tinha obrigação, em obediência tão horrivelmente desgraçada no meu, que meu coração está
a êstesprincípios, de nos deixar o necessáriopara concluirmos a quase cerrado à esperança." "A senhora queixa.se, disse-lhe a ve:
nossa viagem. Com que então não vos ficou mesmo nada, Cune- Iha; pois creia que nunca sofreu infortúnios iguais aos meus.
gundes?" "Nem um maravedi", disse ela. "E que se há de fa- Cunegundes quase teve vontade de rir, e achou graça .em a po'
zer?" perguntouCândido. "Vende-seum dos cavalos,dissea bre mulher querer ser mais infeliz do que ela. "Ail disse-lhe
velha; eu, apesarde ter uma nádegasó, irei de garupacom a ela, minha querida, a menos que tenha sido violada por dais
minha senhora, e assim iremos até Cádiz. búlgaros, que tenha recebido duas facadas na barriga, .que. Ihe
tenhamarrasado dois dos seus castelos,que Ihe tenham degolado
Havia, na mesmahospedaria,um prior de beneditinos;com- à sua vista duas mães e dois pais, e que tenha visto dois dos
prou o cavalopor uma bagatela. Cândida,Cunegundese a ve- seus amantes açoitados num auto-de-fé, não vejo em que possa
lha passaram por Lucena, por Cilhas, por Lebrija, e chegaram levar a palma do sofrimento: acrescentoa isto que nasci baro-
por fim a Cádiz. Estava-seali equip-andouma armada, e reuniam nesacomsetentae dois quartéisno escudo,e quechegueia ser
-se tropas para castigar os reverendospadres jesuítas do Para cozinheira." "Ah! minha senhora, respondeu a velha, está longe
guai, a quem acusavamde ter feito revoltar uma das suas hor- de saber qual foi o meu nascimento; e se eu me mostrassepor
das contra os reis de Espalha e Portugal, perto da cidade do trás, olhe que já não falaria como está falando e havia de suspe!'
Santo Sacramento213. Cândida, como tinha servido com os búl. der o seu juí;o." Essas palavras despertaramuma curiosidade
Raros, fêz o exercício búlgaro diante do general do pequeno exér- extrema no' espírito de. Cunegundes e de Cândido. A velha ex-
plicou-se nestes têrmos.
(212) Essas idéias, que também aparecem no ZAOIG, têm sua
fonte em Hobbes,J)e Cíue, 1, 10: "Natura dedit unicuiquejus in
omnia.
1754
. ." O l)isco rs sur J'origi?ze de /'inégdifé. . . de Rousseau é de
CAPÍTULO DÉCIMO-PRIMEIRO
(213) A propósito dessa guerra, cf. Estai sur /es moetzrs, cap.
154: "Ç2uandoa Espanha cedeu a Portugal a cidade do Santo-Sacra- HISTORIA DA VELHA
mento e suas vastas dependências,os jesuítas ousaram opor-se a êsse
acordo; as populaçõesque governavamnão quiseramsubmeter-se ao 'Nem sempre tive os olhos enrugados e debruados de escar-
domínio português, e resistiram tanto iates seus antigos, como aos late; meu nariz nem sempre se juntou com o queixo; e não
seus novos senhores" (capítulo escrito em janeiro de 1758, publi-
cado em 1761). fui semprecriada de servi;. Sou Ifilhado papa Urbano X e da
184 ROMANCES E CONTOS CÃNDIDO OU O QTIMISMO 185

princesada Palestrina(a). Educaram-meaté aos catar,e an09 pem a gente; mas o que mais me surpreendeufoi que êles nos
num palácio para o qual todos os castelosdos barões alemãesnão meteram a todos o dedo num sítio onde nós, mulheres, ordinària-
selliamdignos de servir de cavalariças, e um dos meus vestidos mente só deixamos meter o pipo da seringa. Esta cerimónia
valia mais do que todas as magnifícêncíasda Vestfália. Eu cres- parecia-me muito extravagante: vejam como julga as coisas quem
cia em beleza, em graça, em talento, no meio dos prazeres, nunca saiu de seu país. Em breve fiquei sabendo que era para
dos respeitose das esperanças. Já inspirava amor; começava a ver se tínhamosescondidoali alguns diamantes; é um costume
formar-se o meu peito; e que peito! branco, firme, talhado'como estabelecidodesde tempo imemorial entre as nações civilizadas
o da Vênus de Médias; e que olhosl que pálpebrasl que sobran- que têm corsários no mar. Soube que os senhoresreligiosos ca-
celhas pretas:. que chamas brilhavam nas minhas pupilas e apa- valheiros de Malta nunca deixam de proceder assim quando apri-
gavam a cintilação das estrêlas,como me cantavam os poetas do sionam turcos e turcas: é uma lei do direito das gentes e que ja-
lugar! As mulheres que me vestiam e despiam caíam em êxtase mais revogam.
quando me contemplavam por diante e por detrás, e não have- "Não vos direi quão duro é para uma princesajovem ser
ria homem que não quisesse estar no lugar delas.
conduzida como escrava para Marrocos com sua mãe; podem
' Fui noivade um príncipesoberanode Massa Cerrara: que imaginar tudo quanto tivemos que sofrer no navio corsário. Mi-
príncipe.! tão formoso como eu, e todo doçura e perfeições; bri- nha mãe era ainda bastanteformosa, as nossas damas de honra,
lhante de espírito e ardente de amor; amava-o como se ama as nossas simples camareiros tinham mais encantos do que os
pela primeim vez, com idolatria, com exaltação. Prepararam-se que é possível encontrar na África inteira. Pela minha parte, eu
as bodas. .Era uma pompa, uma magnificênciainauditas; eram era arrebatadora, eu era a beleza, a graça em pessoa, e era vir-
festas, cavalgadas, óperas 'burlescas contínuas, e toda a Itália me gem. Não o fui muito tempo; essa flor, que tinha sido reservada
fêz sonetos dos quais nem ao menos um era sofrível. Estava para o formosopríncipede MassaCarrara, foi-meroubadapelo
quase a chegar o momento da minha felicidade, quando uma capitão corsário; era um prêto abominávele que julgava dar-me
marquesa velha, que fõl'a amante do meu prmcipe, con- com isso muita honra. Com certeza, era preciso que tanto a
vidou-o para ir tomar chocolateem casa dela: o pobre príncipe princesa da Palestrina como eu fossemos bastante fortes para re-
morreu em menosde duas horas no meio de horríveis convul- sistir a tudo quanto sofremos até à nossa chegada ao Marrocos!
sões. . Mas isso ainda não passa de uma bagatela. Minha mãe, Mas não insistamos;são coisastão comunsque não vale a pena
desesperada e muito menos 'aflita do que eu, quis retirar-se, por falarmos mais delas.
algum tempo,.de um lugar tão funesto. Possuía uma bela pro- "Marrecos nadava em sangue quando lá chegamos; cinqüen-
priedadeao pé de G?eta; embarcamosnuma galerado país, dou- ta filhos do imperador Mudeilsmael 215 tinham cada um o seu
rada como o altar de S. Pedra de Romã. Nisto, um corsário
de Salé cai a fundo sôbrenós e dá-nosuma abordagem:os nos- partido, o que produzia, com efeito, cinqüenta guerras civis de
sos soldados defenderam-secomo soldados do papa; puseram-se pretos contra pretos, de pretos contra pardos, de pardos contra
todos de joelhos deitandofora as armas, e pedindo ao corsário pardos, de mulatos contra mulatos: era uma carnificina con-
uma absolvição ín arfícü/o m.orZís. tínua em tôda a extensãodo império.
"lmedi?tamente, puseram a todos nus como macacos, l)em "Apenas tínhamos desembarcado, logo os pretos de uma fac-
como a minha mãe, às nossasdamas de honra, a a mim também. ção inimiga da do meu corsário se apresentarampara Ihe arran-
É uma coisa admirável a presteza com que aquêles senhores des- car a prêsa. Éramos nós, depoisdos diamantese do ouro, o que
de mais precioso êle tinha; fui testemunha de um combate como
não há exemplode outro assim nos climas da Europa. OS povos
(a) Vejam a extremadiscriçãodo autor: até agora ainda não hou- setentrionaisnão têm o sangue bastanteardente; não têm furor
ve papa algumchamadoUrbano X; e êle receia atribuir uma bastarda
a..um papa conhecido. Que circunspecção! Que delicadezade cons-
ciência! (Nota de Voltaire) 214
(215) Sabre Mulei-lsmael (1646-1727),sultão do Marrocos, "o
(214) Nota póstuma, publicada pela primeira vez em 1829. noí tirano mais belicosoe mais afeiçoado à política que havia então entre
Beuchot, que dizia tê-la obtido de Decroix.' ' ' as naçõesmaometanos",
cf. .yiêcZede lata s X/y, cap. 18.
186 ROA{ANCES E CONTOS CÂNDIDO OU O OTIMISMO 187

pelas mulheres ao ponto em que êle é comum na África. Parece feria, respondi-lhe
que havia maioresdesgraçasdo. que aquela
que os europeustêm leite nas veias; é vitríolo, é fogo o que corre de que êle se queixava. Em poucaspalavras,contei-lheos hor-
nas dos habitantes do monte ALIas e das. regiões vizinhas. Com- rores que eu tinha sofrido, e tornei ; desfalecer. Êle me levou
bateram com a fúria dos leões, dos tigres e das serpentesdaquela uma casa próxima, fêz-me meter .na cama,. mandou-me dar
região, para saberemquem nos possuiria. Um mouro agarrou de comer, serviu-me, consolou-me, lisonjeou-me, disse-me que nun-
minha mãe pelo braço direito, o imediato do meu capitão agar- ca vira nada tão formoso como eu, e que nunca sentira tanto a
rou-a pelo esquerdo; um soldado mouro pegou-a por uma per- falta daquilo que ninguém Ihe podia restituir. "Nasci.em Nápoles,
na, um dos nossos piratas segurou-a pela 'outra. As nossas'da- disse-me'êle;aí cast;am duas a três mil crianças todos os ano?;
mas e criadas acharam-sequase tôdas, num momento, assim pu- uns morrem disso, outros adquirem uma voz. mais formosa.do
xadas, cada uma por quatro soldados. O meu capitão conservava- que a das mulheres; outros 'vão governar. Estados 217. Fize-
me escondidaatrás dêle; tinha o alfanje em punho, e matava ram-me essa operaçãocom grande êxito, e fui músico da cap?la
todos quantos afrontavam o seu furor. 'Finalmente, vi todas as da senhora princesa da Palestrina." "De minha mãe!" excla-
nossas italianas e minha mãe dilaceradas, cortadas, feitas em mei eu. "De sua mãe! exclamouêle chorando; então a senhora
pedaços pelos monstros que as disputavam. Os cativos, meus é aquelaprincesinhaque eu eduqueiaté à idade de seis anos, e
companheiros,os que os tinham aprisionado,soldados,'maré. já prometia ser a formosura que.estou vendo diante de mim?"
nheiros, pr?tos, pardos, brancos, mulatos, e até por fim o meu "Sou eu mesma; minha mãe está a quatrocentospassosdaqui,
capitão, tudo foi morto, e eu fiquei moribunda sabre um monte cortada em pedaços, debaixo de uma pilha de mortos. . ."
de cadáveres. Cenas análogasse passavam,como se sabe, na ex-
tensão de mais de trezentasléguas, sem que se faltasseàs cinco "Contei-lhetudo o que me havia sucedido; êlecontou-metam-
preces diárias ordenadas por Allaomé. bém as suas aventuras,'e informou-mecomo tinha sido enviado
à carte do rei de Marrocos por uma potência cristã 218, a fim de
"Desembaracei-me, com muita dificuldade, da multidão de
concluir com aquêle monarca um tratado pelo qual Ihe seriam
corpos sangr?nãos ali amontoados, e arrastei-me para debaixo fornecidos navios, pólvora e canhões para auxilia-lo a exterminar
de.uma grandelaranjeira, à margem de um regato próximo; ali o comérciodos outros cristãos. "A minha missão está cum-
caí de pavor, de cansaço, de horror, de desespêro e de' fome. Pou-
co depois,os meussentidosexaustosentregaram-se
a um sono prida, disse aquêle honrado eunuco; vou embarcar em Chuta, .e
conduzi-]a-ei para a ]tá]ia: ]l/a c#e scíagüra d'espere sdnza c. . . /"
que se pareciamais com o delíquiodo que com o repouso. Es-
tava naquele estado de fraqueza e de insensibilidade, entre a morte "Agradeci-lhe com lágrimas de enternecimento;. e, em .vez
a,..quando me senti esmagadapor alguma coisa que se de me conduzir para a Itália, conduziu-me p?r? ATgel, e vendeu-
agitava sôbre o meu corpo; abri os olhos, vi um homem branco me ao beí desta província. Apenas fui vendida, declarou-se.em
e.de bom parecer, que suspirava, e que dizia entre os dentes: "0 Argel, com furor, aquela mesma peste que percorreu a África,
cÀe scíagt&rcz d'espere senda c. . ." 216 a Ásia e a Europa. A minhasenhorajá viu terremotos;mas
aposto que nunca teve pestes" "Nunca", ..respondeu a barone-
sa. "Pois se a tivesse tido, replicou a velha, havia de confes-
CAPÍTULO DÉCIMO-SEGUNDO sar queé uma coisamuitopior do que um terremoto. É muito
comum na África; eu fui atacada. Imaginem que situação para
CONTINUAÇÃO
DAS DESGRAÇASDA VELHA a filha de um papa, de quinze anos de idade, que, no.decurso
de três meses, tinha expenmenLadoa pobreza, a escravidão, tinha
sido violadaquase todos os dias, tinha visto cortar sua mãe
"Admiradae satisfeitapor ouvir a línguada minhapátria,
e não menossurpreendidacom as palavrasque êssehomempro-
(217) Alusão ao cantor Farinelli(1705-1782) .que?, na Espa-
nha, 'teve' grande influência sabre Filipe V e Ferrando VI.
. (216)
cidade Edição
não ter c de 1759: Cogli07zi; Kehl: aogJ. 'Oh! que infeli- (218) Portugal, que solicitou a aliança de Mulei-lsmael durante
a guerra da sucessão da Espanha.
188 ROMANCES E CONTOS 189
CÂNDIDA OU O OTIMISMO

eú quatro pedaços,tinha sofrido a fome e a guerra, e estava vida me hei de lembrar que, quando as minhas feridas estavam
a ponto de morrer de peste em Argel! Contudo, não morri; bem fechadas, fêz-me propostas. De resto, disse-nos a todas
mas o meu eunuco,e o bei, e quasetodo o serralho de Argel que nos consolássemos;assegurou-nosque, em vários cerros, ti-
pereceram. nha sucedidoexatamente
o mesmo,e que essa era a lei da
"Quando passaram as primeiras assolações daquela espantosa guerra.
peste, venderam as !scravas do bei. Um mercador comprou-me e "Logo que as minhas companheiras puderam .andar, fize-
conduziu-mepara jl'únls; vendeu-mea outro mercador',que me ram-nasir para Moscou. Eu caí em partilhaa um boiardo,que
revendeu em Trípoli; de Trípoli, fui revendida para Alexandria; fêz de mim sua jardineirae que me dava vinte chicotadaspor
de Alexandria para Esmirna; de Esmirna para Constantinopla. dia: mas êsse nobre foi rodado, ao cabo de dois anos, com
Vím finalmente a pfrlencer a um aga dos janízaros, que foi'em mais uns trinta boiardos, por uma intriga de côrte 220, e eu apto'
breve mandado a defender Azof ci;nora os russos que a sítia- veitei essa aventura: fugi; atravessei toda a Rússia; foi muito
vam 219.
tempo criada de estalagem em RIBA, depois em Rostock,, em Vis-
"0 aga, que era um homem muito galanteador, levou con- mar, em Leipzig, em Cassel,em Utrecht,em Leyde,.em Baia, em
sigo todo o seu serralho e estabeleceua nossa residêncianum Roterdã. Envelheci na miséria e no opróbrio, tendo apenas me
pequeno forte sabre os Palus-Meotides, guardado por dois eu- jade do traseiro, e lembrando-me
semprede que era filha de.um
nucos pretos e vinte soldados. Fêz-se um morticínio prodigioso papa; cem vêzes quis matar-me; mias ainda gostava da vida.
nos russos, mas êles pagaram-nosbem: Azof foi posta a fogo Esta ridícula fraqueza é talvez uma das nossas inclinações mais
e.a sangue,não se perdoandonem a sexo, nem a idade; apenas funes-tas;pois haveráalgo de mais tolo do que querer trazer
ficou o nossofortim: os inimigosquiseramconquistar-nos
pela continuamente um fardo que sempreestamosa quererdeitar
fome. Os vinte janízaros tinham jurado jamais se renderem; a ao chão? De ter horror ao próprio ser e de ter apêgoa êsse
emergência da fome a que foram reduzidos constrangeram-nos a mesmo ser? Finalmente, de afagar a serpente que nos devora
comer os nossos dois eunuco?, de mêdo de violarem o seu jura- até nos ter roído o coração?
mento. No fim de alguns dias, resolveram comer as mulheres. "VI, nos países que a sorte me fêz percorrer, e nas estala-
Tínhamos um imame muito piedoso e muito compassivo, em que servi, um número prodigioso de pessoa?que tinham
quelhes fêz um belo sermãopelo qual os persuadiua não nos a sua existência em execução; mas não vi senão doze que pu-
matarem de uma vez. "Cortem, disse êle, simplesmente uma ná-
sessemvoluntàriamentetêrmo à sua mísérial três prelos, quatro
ga. a cada uma destas senhoras, e terão bastante para comer; inglêses, quatro genebreses, e um professor alemão chamado Ro-
se'fõr preciso repetir, terão ainda outro tanto dentro em pou' beck22Í.' Acabei por ser criada de servir em casa do .judeu
cos dias: o céu os recompensaráde tão caridosaação e hão de Dom lsacar; pâs-meao seu serviço, minha bela senhora; liguei-
ser socorridos." me ao seu destino,e tenho-meocupado mais com as suas aventu-
ras do que com as minhas. Não Ihe teria mesmofalado nunca nas
Tinha muita eloquência e convenceu-os: fizeram-nos essa minhas desgraças, se a senhora me não tivesse excitado um.pouco,
horrível operação; o imame fêz-nos a aplicação do mesmo bálsamo e se não fosse costume,num navio, contar histórias para dissipar
que se usa para as crianças que acabam de ser circuncidadas; o aborrecimento. Numa palavra, minha senhora, tenho experiên-
ficamos tâdàs à morte
cia e conheçoo mundo; olhe, procure o prazer que Ihe vou indi-
car: consigaque cadapassageiroIhe contea sua história;e se
6€

Apena? os janízaros tinham feito o banquete que lhes havía-


mos fornecido, chegam os russos numas barcas chatas; nem um
janízaro escapou. Os russos não fizeram nenhum caso do estado (220) Por ocasião da revolta dos membros da guarda do czar,
em que estávamos. Por toda a parte, há cirurgiões franceses; um em 1698. Os pormenores históricos dêste capítulo encontram-se na
dêles, que era muito hábil, cuidou de nós; curou-nos,e toda a documentação
reunidapor Vo]taire para a sua /]'iffoire de Ja Russie
sons Pierre ie Grand.
(221) Robeck (1672-1739) afogou-se voluntàriamente: cf. Nou-
(219) Em 1695-1696
z;eZ/eHéioise, 111, 21.
190 ROA{ANCES E CONTOS

houver um só que não tenha muitas vêzes amaldiçoado a vida, que


não tenha dito muitas vêzes a si mesmoque era o mais infeliz
dos homens, pode atirar-me ao mar de cabeça para baixo."
r CÂNDIDO OU O OTIMISMO

Dom Fernando de lbarra y Figueiroa y Mascarenhasy Lam-


purdos y cousa, retorcendo os bigodes, sorriu com amargura, e
ordenou ao capitão Cândido que fôsse passar revista à sua com-
Í91

panhia. Cândida obedeceu;o governadorficou em companhia


de Cunegundes. Declarou-lhea sua paixão, protestou-lheque
CAPÍTULO DÉCIMO-TERCEIRO no día seguintea desposariaà face da Igreja, ou de outro modo,
como o quisessemos seus encantos. Cunegundespediu-lheum
COMO BANDIDO FOI OBRIGADO A SEPARAR-SE DA FORMOSA quarto de hora para se recolher,para consultara velha,e para se
CUNECUNDES E DA VELHA determinar.
A velha disse a Cunegundes: "Minha menina, olhe que tem
A formosa Cunegundes,tendo ouvido a história da velha, tra- setentae dois quartéisno brasão,mas não tem nem um real;
tou-a com tôdas as deferências devidas a uma pessoa de tal hie- está na sua mão ser mulher do maior fidalgo da América Meri-
rarquia e de tal merecimento. Aceitou a proposta; induziu todos dional, que tem uns magníficos bigodes; para que são ês?es
os passageiros, um após outro, a contarem-lhe; as suas aven- escrúpulos de uma fidelidade a toda a prova? Foi violada pelos
turas. Cândidae ela confessaram
quea velhatinharazão. "É búlgaros; um judeu e um inquisidor conseguiram as suas boas
uma pena, dizia Cândida, que o sábio Panglosstenha sido en- graças:as infelicidades
dão direitos. Eu confessoque, se esti-
forcado, contra a costume, num auto-de-fé; dir-nos-ia coisas ad- vesse no seu lugar, não punha a menor dúvida em casar com o
miráveis sabre o mal físico e sôbre o mal moral que cobrem senhor governador, e em fazer a fortuna do senhor capitão Cân-
a terra e o mar, e eu sentiriaforça suficientepara ousarfa- dido." Enquanto a velha falava com toda a prudência que dão
zer-lhe respeito.samente algumas objeções." a idadee a experiência,
viu-seentrarno pôrto um pequenona-
À medida que cada um contava a sua história, o navio avan- vio; trazia um alcaide e alguazis. Eis o que acontecera.
çava. Chegaram a Buenos vires. Cunegundes, o capitão Cândido A velha tinha adivinhado perfeitamenteque fará um francis-
e a velha foram à casa do governador Dom Fernando de lbarra y cano de grandes mangas quem roubara o dinheiro e a jóias de
Figueiroa y Mascarenhas y Lampurdos y Sousa. Êste fidalgo tinha Cunegundes na cidade de Badajoz, quando ela fugia às pressas
o orgulho que convinha a um homem que usava tantos nomes: com Cândida. Êste frade quis vender algumas das pedras a um
falava aos homenscom o mais nobre desdém, pondo o nariz tão joalheiro ; o ourives reconheceu-as como sendo do inquisidor-mor.
alto, levantando tão impiedosamente a voz, assumindo um tom O franciscano,antesde ser eílforcado,confessouque as tinha
tão imponente,afetandoum andar tão altivo, que todos os que roubado: indicou as pessoase o caminho que tomavam. A fuga
o cumprimentavam tinham tentações de Ihe bater. Gostava furio- de Cunegundes e de Cândido era já conhecida: seguiram-nos até
samente de mulheres. Cunegunclespareceu-lhe a mais bela que Cádiz, mandaramdepois, sem perda de tempo, um navio perse'
tinha visto até então. A primeira coisa que fêz foi perguntar gui-los. O navio estava já no pôrto de BuenosAbres; espa'
se ela era mulher do capitão. O modo como fêz esta pergunta in- Ihou-seo boato de que ia desembarcarum alcaide, e que se per'
quietou Cândida: êste não se atreveu a dizer que era sua mulher, seguiam os assassinos de monsenhor inquisidor-mor. A prudente
porque efetivamentenão o era; não ousava dizer que era sua irmã, velha viu, no mesmo instante, tudo o que havia a fazer. "A se-
porque também não o era; e, apesar desta ]nentira oficiosa ter nhora não pode fugir, disseela a Cunegundes,e não tem nada
estado outrora muito em voga entre os antigcls222, e poder ser a recear: não foi a senhora quem matou monsenhor; e, além dis-
útil aos modernos,a alma de Cândidoera pura demaispara so, o governador,que a ama, não há de consentirdecertoque a
faltar à verdade. "Esta senhora, disse êle, deve dentro em pouco maltratem: portanto deixe-seficar." Correu imediatamenteao
dar-me a honra de me receber como seu marido, e pedimos,por- encontro de Cândido: "Fuja, disse-lhe ela, ou dentro de uma hora
tanto, a Vossa Excelênciapara realizar o nosso casamento." vai ser queimado." Não havia um momentoa perder; mas como
separar-se de Cunegundes, e onde esconder-se?
(222) Alusão à história de Abraão e Sara rGê?pese,Xl1, 12)
192 ROMANCES E CONTOS CÀNDIDO OU O OTIMISMO 193

colégio de Assunção, e conheço o govêrno de Los Padres como


CAPÍTULO DÉCIMO-QUARTO conheço as ruas de Cádiz. É uma coisa adimrável aquêle govêr-
COMO CANDIDOE CACIMBO FORAM RECEBIDOSPELOS no. O reino tem já mais de trezentasléguas de diâmetro; é divi-
JESUITAS DO PARAGUAI dido em trinta pi'ovíncia.s. Los Padres ali têm tudo, e o povo,
nada; é a obra-primada razãoe da justiça. Quantoa mim,
Cândida trouxera de Cádíz um criado, como se encontram
nada conheçotão divino como Los Padres, que estão aqui fa-
zendo guerra ao rei de Espanha e ao rei de Portugal, e que na
muitos nas costasda Espanta e nas colónias. Era um quarto es. Europa confessamêssesreis; que matam aqui espanhóis,e que
panhol,nascidode um mestiço,em Tucumã. Fará me. em Madre os mandam para o céu: é uma coisa que me arrebata;
nino de caro, sacristão, marinheiro, frade, correio, soldado, lacaio. vamos para diante: o meu patrão vai ser o mais feliz de todos
Chamava-seCacainbo, e gostavamuito de seu amo, porque seu os homens. Que prazer que Los Padres hão de ter, quandosou-
amo era muito bom homem. Aparelhou o mais depressa que pôde berem que lhes chega um capitão que sabe o exercício búl-
os dois cavalos andaluzes. "Vamos, patrão; é seguir jã o 'con- garo !
selho da velha; toca a partir e. a todo galope, sem olhar para
trás." Cândida derramou lágrimas: "Oh! minha querida Cune- Logo que chegaram à primeira barreira, Cacambo disse à
gundes! pois hei de abandonar-vos exatamente quando o senhor guarda avançadaque um capitão pedia para falar ao monse-
governador ia fazer o nosso casamento? Cunegundes, trazida de nhor comandante. Foram advertir a grande guarda: um oficial
tão longe, que será de vós agora?" "Será o que tiver de ser, paraguaio correu aos pés do comandante a levar-lhe a notícia.
disse Cacambo, as mulheres nunca se vêem emb;raçadas com as Cândido e Cacambo foram primeiramente desarmados; toma-
suas pessoas; Deus acode-lhes; corramosl" "Para onde me le- ram-lhesos cavalosandaluzes. Os dois estrangeirosforam in-
vas? Para onde vamos? Que havemos de fazer sem Cunegun- troduzidos no meio de duas fileiras de soldados; o comandante
des?" dizia Cândido. "Por S. Trago de Compostela!disw Ca- estavano outro extremocom o chapéu tricórnio na cabeça, a bati-
cambo; o patrão vinha para fazer guerra aos jesuítas; vamos na arregaçada,espadaà cinta, pique em punho. Faz um sinal;
fazê-laa favor dêles: conheçoos caminhos,leva.lo.eiao seu imediatamente vinte e quatro soldadosrodeiam os dois recém-
reino 223: hão de ficar satisfeitíssimos por terem um capitão que chegados. Um sargento diz-lhes que é preciso esperar, que o
sabe fazer exercícioà búlgara; verá se arranja ou não uma ri- comandante não pode falar-lhes, que o reverendo padre provin-
queza prodigiosa; quando não temos o que desejamos num mundo, cial não permite que espanholalgum abra a boca senão na sua
vamos procura-lo noutro; é um grande prazer ver e fazer coisas presença,nem que se demoremais de três horas no país224.
novas. "E onde está o reverendo padre provincial?" perguntou Cacambo.
"Então, já estiveste no Paraguai?" perguntou Cândido. "Está na parada,depoisde ter dito a sua missa,respondeuo
"Sim, é verdade, respondeu Cacambo; trabalhei na cozinha, no sargento; e não vos será permitido ir beijar-lhe as esporas se-
não daqui a três horas." "Mas, disse Cacambo, o senhorcapi-
(223) Em 1758, os jesuítas do Paraguai estavam muito em moda: tão está morrendo de fome, bem como eu; não é espanhol, é ale-
na verdade,não havia nenhum"reino" jesuíta no Paraguai,mas a mão. Não poderemosir almoçar,enquantoesperamospor Sua
influência dos Padres sabre as populações daquele "país de missão Reverência?
era muito grande: tinham criado uma organização social comunitá-
ria muito discutida, afirmando uns que era um modêlo de eqiiidade, O sargentofoi imediatamentetransmitir êste discurso ao co-
ao passoqueoutrosa consideravam
um regam.e
de opressão
de que mandante."Louvado seja Deus! disse êste senhor; como êle é
só os Padres se beneficiavam. Em 1750, um tratado entre a Espanta
e Portugal retificara a fronteira entre o Uruguai e o Para- alemão, posso falar-lhe; levem-no para o meu caramanchão." Logo
guai: descontentes,os jesuítas animaram e apoiaram um levantamento
dos índios, que durava ainda em 1758. Foi nesseano que Voltaire
acrescentou ao Estai sur /ei moeurs o capítulo 154, publicado em 1761. (224) As diversas crónicas que Voitaire consultou para escre-
Nesse capítulo êle mostra, como no CÂNnioo, a sua antipatia pelas ver o Estai szlr /ef moeursdiziam,com efeito,que os Padrestinham
tentativas dos jesuítas para se colocarem no lugar das legítimas au- organizadoe treinado milícias de índios, e tomavam precauçõespara
toridades civis. evitar todo contacto entre índios e espanhóis.
13
194 ROMANCES E CONTOS

conduziram Cândido para o gabinete de verdura, ornado com uma


[ CÂNDIDO OU O OTIMISMO

que pronunciavam, naquela longa conversação, acumulava pro-


195

belíssimacolunatade mármore verde e ouro, e com gaiolas que dígio sôbre prodígio: a alma toda como que lhes voava com
encerravampapagaios,colibris de várias espécies,galinhasda a língua, mantinha-se atenta elos ouvidos e cintilante nos olhos.
índia, e todas as aves mais raras. Um excelentealmoçoestava Como eram alemães, ficaram à mesa muito tempo, à espera do
servido em baixelasde ouro; e enquantoos paraguaioscomiam reverendopadre provincial; e o comandantefalou dêste modo ao
milho em escudelasde pau, ao ar livre, sob o ardor do sol, seu querido Cândido.
o reverendo padre comandante entrou no caramanchão.
Era um belíssimo homem, de cara cheia, bastante branca,
corado, de sobrancelhaslevantadas,olhar vivo, orelhas rosa- CAPÍTULO nÉciMo-QuiNTO
das, beiçosvel'melros,ar altivo,mas de uma altivezque não era
nem a de um espanhol,nem a de um jesuíta. Restituíram a Cân- COMO CANDIDOMATOU O IRMÃO DA SUA QUERIDA
dido e a Cacambo as armas que lhes tinham tomado, bem como CUNEGUNDES
os dois cavalosandaluzes;Cacambodeu-lhesração de aveia ao
pé do caramanchão,estandosemprede alho nêles,com mêdo ''Em toda a minlla vida, terei presente na memória o dia hor-
de algumasurprêsa. rível em que vi matar meu pai e minha mãe, e violar minha ir-
Cândido primeiro beijou a orla da batina do comandante; mã. Quando os búlgaros se retiraram, não foi possível achar
em seguida sentaram-seà mesa. "Com que, então, é alemão?" aquelairmã adorável, e puseram numa carroça minha mãe, meu
disse-lheo jesuíta nesta língua. "Sim, meu reverendo padre", dis- pai e eu, duas criadas, e três rapazinhosdegoladas,para nos irem
se Cândído. Tanto um como outro, pronunciandoestas pala- enterrar numa capela de jesuítas, a duas léguas do castelo de
vras, encaravam-se com extrema surprêsa e com uma emoção meus pais. Um jesuíta deitou-nos água benta; estava horrivel-
que não conseguiam dominar. "E de que terra da Alemanha mente salgada; entraram-me algumas gotas pelos olhos; o padre
é?" perguntou o jesuíta. "Da suja província de Vestfália, res- percebeu que a minha pálpebra fazia um pequeno movimento,
polldeu Cândido : nasci no castelo de Thunder-ten-tronckh." "Oh, pâs a mão sôbreo meu coração,e o sentiupalpitar; fui socor.
céusl será possível?" exclamouo comandante. "Que milagres" rido, e no fim de três semanasparecia que não tinha sofrido
exclamou Cândido. "Estarei sonhando?'' disse o comandante.
nada. Sabe, meu querido Cândido, que eu era muito bonito;
"Não é possível!" disse Cândida. Deixam-se cair um nos d)ra- ainda me tornei mais; por isso o reverendo padre Croust 225,
ças do outro, beijam-se, derramam torrentes de lágrimas. "Pois superior da casa, tomou-se da mais terna amizade por mim; deu-
é possível que eu esteja vendo diante de mim o irmão da for- -me o hábito de noviço; algum tempo depois, fui enviado a Ro-
mosa Cunegundes? Aquêle que foi morto pelos búlgarosl o fi. mã. O padregeral tinha necessidade
de um recrutamento
de jo-
Iho do senhor barãol jesuíta no Paraguaia É forçoso confes- vens jesuítas alemães. Os soberanos do Paraguai recebem o
sar que êste mundo é uma coisa esquisita. Oh! Pangloss! Pan- menos que podem jesuítas espanhóis; gostam mais dos estran-
glossl como estarias satisfeito se não te tivessem enforcado!" geiros, dos quais se julgam mais senhores. Fui julgado capaz
O comandante mandou retirar os escravos pretos e os para' pelo reverendo padre geral, de ir trabalhar naquela vinha 226
guaios, que serviam os vinhos em taças de cristal de rocha. Deu Partimos, um polaco, um tirolês e eu. À minha chegada, fizeram-
graças a Deus e a Santo Inácio mil vêzes; apertava Cândido nos -me subdiácono e tenente; hoje, sou cororlel e padre. Recebe-
braços; as caras de ambos estavaminundadasde lágrimas. "E mos vigorosamenteas tropas do rei da Espanta; afirmo-lhe que
muito mais admirado ficaria, meu reverendo padre, muito mais hão de ser excomungadas e batidas. A Providência envia-o cá
comovido, muito mais fora de si mesmo, disse Cândido, se eu Ihe
dissesse que a senhorita Cunegundes, sua irmã, que o reverendo
(225) Edição de 1759: o reverendopadre Z)idrie. Didrie parece
padre julga ter sido estripada,está cheia de saúde?" "Onde?" nome inventado, mas Croust é o nome do jesuíta reitor de Gomas,
"Aqui nas proximidades,em casa do senhorgovernadorde que atormentouVoltaire por ocasião de sua estada na cidade, em 1754.
BuenosAbres; e eu vinha para fazer-vosguerra." Cada palavra (226) Estiloevangélico:
cf. S. Mateus,XX, 1-7.
196 ROMANCES E CONTOS CÂNDIDO OU O OTIMISMO 197

para nos auxiliar. Mas é verdadeque minha queridairmã


Cunegundesestá aqui nas proximidades, em casa do governador CAPÍTULO' DÉCIMO-SEXTO
de Buenos Abres?" Cândida afirmou sob juramento que nada
havia de mais exato. As lágrimas de ambos recomeçarama correr. O QUE SIJCEDEUAOS DOIS VIAJANTES COM DUAS MOÇAS,
DOIS MACACOS, E OS SELVAGENS CIHAMADOSORELIHOES
O barão não se fartava de abraçar e beijar Cândido; cha-
mava-lhe seu irmão, seu salvador: "Ahl talvez, disse-lhe êle, nós
possamosjuntos, meu querido Cândido, entrar como vencedores Cândida e o seu criado conseguiram passar as barreiras; e
na cidade, e reconquistar minha Cunegundes." "É isso exata- ainda ninguém no acampamento sabia da morte do jesuíta ale-
mente o que desejo, disse Cândid(i; porque eu contava despo- mão. O vigilante Cacambo tivera o cuidado de encher o seu al-
sá-la, e espero ainda fazê-lo." "Voçê? Que insolências respon' forje de pão, chocolate, presunto, frutas e algumas medidas de
deu o barão, você teria a impudênciade se casar com minha vinho; penetraram, com os seus cavalos andaluzes, numa região
irmã, que tem setenta e dois quartéis no escudo! Que descara- desconhecida, onde não descobriram estrada alguma; por fim,
mento ousar falar-me em tão temerário desígnio!" Cândido, viram diante dos olhos um belo prado cortado por alguns regatos;
petrificado com tal discurso, disse-lhe: "Meu reverendo padre,
os nossos dois viajantes deixaram ir pastar as cavalgaduras. Ca-
nem todos os quartéis dêste mundo podiam já agora evitar isto: cambo lembra a seu amo a necessidadede comer, e dá-lhe o
tirei sua irmã lias braçosde um judeu e de um inquisidor;ela exemplo: ''Como queres tu, dizia Cândida, que eu coma pre-
deve-memuitas obrigaçõese quer casar comigo: mestre Pan- sunto, quando matei o filho do senhor barão, e e?tou conde-
gloss disse-me sempre que os homens são iguais, e com toda a nado a não ver mais a formosaCunegundesem toda a milha
certeza hei de casar com ela." "Isto é o que nós veremos, vida? Para que me pode servir prolongar os meus dias mise-
tratante", disse o jesuíta barão de Thunder-ten-tronckh.E ráveis, visto que tenho de arrasta-los longe dela, em remomp.g
ao mesmo tempo deu-lhe uma pranchada com a espada na cara. e desespêro? ' E que há de dizer o /oürzzaZ de rréuo.üx227?"
Cândido, no mesmo instante, desembainhoua sua, e enterrou-a Falando desta maneira, não deixou de comer. Era quase
até os coposna barriga do barão jesuíta; mas, ao rerá-la fu- sol pasto; os dois transviadosouviram alguns gritinhosque pa-
megante, põs-se a chorar. "Ah! meu Deus! disse êl?? matei meu reciam ser dados por mulheres; não sabiam se aquêles gritos eram
antigo amo, meu amigo,meu cunhado;sou o melhorhomem de dor, se de alegria;mas levantaram-se
precipitadamente,
com
dêste mundo, e com êste são já três homens que mato; e, dês- aquela inquietaçãoe aquêlesobressaltoque tudo inspira num
ses três, dois eram padres. país desconhecido: os clamores partiam de duas maças completa
Cacamboque fazia sentinelaà porta do caramanchão,correu mentenuas que corriam com ligeirezaà beira do prado, ao pas'
logo. "SÓ nos resta vendermoscaro a vida, di;sse-lheo amo; daqui se que dois macacosas seguiammordendo-lhes as nádegas. Cân-
dida ficou impressionadoe cheio de dó; tinha aprendido a ati-
a pouco entrará genteno caramanchão; é preciso que morramos rar ao alvo, com os búlgaros, e era capaz de abater uma avelã
com as armas na mão." Cacambo, que já se tinha visto em pio- na árvore, sem tocar nas falhas: pega na sua espingardaespanho-
res situações,não perdeua cabeça:pegouna batina de jesuíta
la de dois canos, dispara e mata os dois macacos. "Louvado seja
que o barão trazia, enfiou-aem Cândida, deu-lheo gorro.do Deusa meu querido Cacambo, livrei de um. grande perigo aquelas
morto, e fê-lo montar a cavalo; tudo isto se executounum abrir duas pobres criaturas; se cometi um pecado matando um inqui-
e fechar de olhos. "A galope,meu patrão! toda a genteo há
de tomarpor um jesuítaque vai dar ordens,e teremosjá pas- sidor e um jesuíta, reparei-obem salvandoa vida a duas jovens:
é provável que sejam meninas de boa família, e esta aventura po-
sado as fronteiras quando começarema correr em nossa persegui de granjear-no$ muitas vantagens aqui.
ção." Quando pronunciava estas palavras ia já à desfilada, e
gritando em espanhol: "Deixem passar, deixem passar o reve-
rendo padre coronel. (227) O jornal dosjesuítas,fundadoem Trévoux em 1701: seu
título excito era il/émoires tour servir ã /'Àisfore des sc elzcei ef des
beaux-aras. Essa publicação estampadavárias resenhascríticas de obras
desfavoráveis a Voltaire.
198 ROMANCES E CONTOS CÂNDIDO OU O OTIMISMO 199

la continuar; mas a língua prendeu-se-lhe quando viu as "Bem tinha dito eu, meu caro patrão, exclamou Cacambo
duas maças abraçarem com ternura os dois macacos, desfa- tristemente,que as duas raparigas nos pregariamuma peça
zerem-seem lágrimas sabre os corpos dêles, e soltarem os gritos Cândida vendo a caldeira e os espetos exclamou: "Com toda a
mais dolorosos. "Não esperava ver tanta bondade de alma", certeza, vamos ser assados ou cozidos. Ai, que diria mestre
disse êle por fim a Cacambo; e êste replicou: "Sim, senhor, Panglossse visse como a pura naturezaé feita? Tudo está
fêz uma bonita obra, meu senhor! Matou os dois amantesda- bem; pois seja; mas confessoque é bem cruel ter perdido Cune-
quelassenhoritas." "Os amantes? Isso é possível? Estás a gundes, e ser assado num espêto por Orelhões." Cacambo nun-
brincar comigo, Cacambo; como queres que te acredite?" "Oh, ca perdia a cabeça. "Não perca as esperanças ainda, disse
meu caro patrão, replicou Cacambo; vejo que fica sempre admi- êle ao desanimadoCândida; eu entendoalguma coisa do dia-
rado de tudo! por que é que Ihe pareceuma coisa tão extraor- leto dêstes povos e vou falar-lhes." "Não te esqueças, disse Cân-
dinária que em alguns países haja macacos que obtenham os dido, de lhes expor bem que horrorosa desumanidadeé a de
favoresdas mulheres? São um quartohomens,comoeu sou cozer homens, e como um tal proceder é pouco cristão."
um quarto espanhol." "Ah! é verdade, replicou Cândido, lem- "Senhores, disse Cacambo, estais contando que haveis de
bro-me de ter ouvido mestre Pangloss dizer que outrora tinham comer um jesuíta: é muitobem feito, não há nada mais justo
sucedido análogos acidentes, e que essas misturas tinham pro- do que tratar assim os inimigos: efetivamente,o direito natu-
duzido egipanos, faunos, sátiros; que vários grandes persona- ral 229 ensina-nosa matar o nosso próximo, e é assim que se
gens da antiguidade os tinham visto; mas eu tomava tudo isso pratica em tôda a terra; se não usamos do direito de comê-lo,
como histórias para crianças." "Pois agora já deve estar con- é porque temos coisas muito melhores; mas os senhorestêm
vencido de que ê uma verdade, disse Cacimbo; e está vendo razão porque não dispõem dos mesmosrecursos que nós. Com
como agem as pessoas que não receberam uma certa educação: certeza, é muito preferível comer os inimigos a abandonar aos
o que eu receio muito é que ) estas mulherzinhas nos ponham corvos e às gralhas o fruto da vitória; mas, meus senhores,
em alguma difícil situação. com certezanão quereis comer os vossos amigos; pensais que
Estas reflexões sólidas determinaram Cândida a afastar-se ides assar um jesuíta no espêto,e é o vosso defensor, o ini-
do prado e a recolher-se a um bosque. AÍ ceou com Cacam- migo dos vossos inimigos que vos vai merecertal sorte. Pelo
bo; e ambos, depois de terem amaldiçoadoo inquisidor de Por- queme toca, nasci no vossopaís; o cavalheiroque estaisvendo
tugal, o governador de BuCHos Abres e o barão, adormeceram é meu patrão; e está tão longe de ser jesuíta,que acaba de ma-
sabre a relva. Quando acordaram, viram que não podiam me- tar um; traz vestida a roupa dêle, eis o motivo do equívoco;
xer-sp: a razão era que, durante a noite, os Orelhões228,habi- para verificar o que vos digo, pegamaquelabatina, levam-aà
tantes do país, a quem as duas raparigas os tinham denunciado, primeira barreira do reino de Los Padres, e informai-vosbem
os haviam sõlídamenteamarrado com cordas feitas de cascas se o meu amo não matou um oficial jesuíta; pouco tempo
de árvores; estavam rodeados por uns cinqüenta Orelhões total- vos leva isso; se achardesque vos menti, tereis muito tempo
mente nus, armados de flechas, de maças e de machados de para nos comer; mas se verdesque vos disse a verdade,conhe-
pedra; uns faziam ferver a água numa grande caldeira, outros ceis perfeitamenteos princípios do direito público, os costumes
preparavam espetos, -e todos gritavam: "É um jesuíta, é um e as 'leis, para não nos concederdes a liberdade."
jesuíta; havemosde nos vingar e teremos
) um regalo; vamos Os Orelhõesacharam êste discurso muito razoável; depu-
comer jesuíta, vamos comer jesuíta!
taram dois notáveis para irem em diligência informar-se da ver-
dade; os dois deputadosdesempenharam-se
da missãocomoho-
(228) Todo êsse episódioé inspiradoem obras de autoreses- mens de espírito, e voltaram em breve com boas novas: os Ore-
panhóisque Voltaire consultarapara o Esia{ sur Jef moezlrf. Segundo Ihões desamarraram os seus dois prisioneiros, fizeram-lhestôda
Garcilaso de la Vega, /íiffoire des /aras, róis d Per014,tradução de
J. Beaudoin, Amsterdã, !704, 2 vol. in-12, os espanhóis lhes deram
o nome de Orelhões, brejo?zes, homens de grandes orelhas, porque (229) Quanto ao sentido dessa expressão,cf. O INGÉNuo, vol
costumavamfurar as orelhas para nelas prender brincos. 1, n. 279.
200 ROMANCES E CONTOS CÂNDIDO OU O OTIMISMO 201

espécie de obséquios, ofeceram-lhesraparigas, deram-lhes refres- Cacambo, que dava sempre tão bons conselhos como a
cos, e conduziram-nos
até aos confinsdos seus Estados,gri- velha, disse a (fundido: "Já não podemos mais, temos anda-
tandocom satisfação: "Não é jesuíta, não é jesuítas" do bastante; está ali junto à praia uma canoa vazia; enchamo
Cândida não se cansavade admirar o motivo do seu livra- ]a de cacos, metamo-nosdentro dela e deixemo-nosir ao sabor
mento. "Que povo! dizia êle, que homensl que costumes! Se eu da corrente; um rio leva semprea qualquersítio habitado; se
não tivessetido a fortuna de dar uma grande estocadaque atra- não acharmos coisas agradáveis, acharemos pelo menos coisas
vessouo corpo do irmão de Cunegundes,teria sido comido sem novas." "Vamos, disse Cândida, encomendemo-nos à Providên-
remissão. Mas, no fim de contas,a pura naturezaé boa, pois eil a . ' '

que esta gente, em lugar de me comer, encheu-mede mil favo- Navegaram algumas léguas entre margens ora floridas ou
res logo que soubeque eu não era jesuíta." áridas, ora planas, ora escarpadas: o rio alargava-se sempre;
por fim, perdia-se sob uma abóbada de rochedos horríveis, que
se erguiam até ao céu. Os dois viajantes tiveram o ar.rojo de se
CAPÍTULO DÉCIMO-SÉTIMO abandonaremàs ondas debaixo dessa abóbada; o rio, apertada
CHEGADADE CÂNDIDOE DO SEU CRIADOAO PAÍS DO naquele local, levou-os com uma rapidez e um barulho tremendo;
ELDORADO230 E O QUE ÊLES AÍ VIRAM
ao fim de vinte e quatrohoras, tornarama vel' o dia; mas a
canoa despedaçouse contra os escolhos;tiveram que se arrastar
de rochedo em rochedo, durante uma légua inteira; por fim,
Quando chegaram às fronteiras dos Orelhões: "Como vê, descobriram um horizonte imenso, ladeado por montanhas ina-
disse Cacambo a Cândido, êste hemisfério não vale mais do que cessíveis; a terra era cultivada tanto para o prazer como para
o outro; creia-me, voltemos para a Europa, pelo caminho mais a necessidade;
por tôda parteo útil era agradável:as ruas
curto." "Mas como havemos de voltar para lá, disse Cândido, estavam literalmente cobertas ou, para melhor dizer, enfeitadas
e para onde havemosde ir? Se volto para o pneupaís, os búl-
por carruagensde uma forma nova e de materialbrilhante,que
garos e os ácarosdegolam
por lá todagente;se voltopara levavam homens e mulheres de singular beleza, puxadas ràpida-
Portugal, sou queimado; se ficamos aqui, arriscamo-nosa todo
mente por grandes carneiros encarnados, que excediam em velo-
momento a sermos assados no espêto. E como hei de resol- cidade os mais formosos cavalos de Andaluzia, de Tetuão e de
ver-me a deixar a parte do mundo onde Cunegundes habita?"
Mequinez.
"Vamos então para Caiena, disse Cacambo; aí encontra-
remo'sfranceses, que andam por todo o mundo; poderão ajudar- ''Ora, aqui temosnós enfim, disse Cândida, um país que
.nos; Deus talvezse compadeçade nós." vale mais que a Vestfália."' Põs pé em terra com Cacambojun-
to da primeira aldeia que encontrou. Algumas crianças da aldeia,
Não era fácil ir para Caiena; sabiam,poucomais ou me- vestidas de brocado de ouro todo rasgado, jogavam malha logo
nos, para que lado haviam de caminhar; mas as montanhas, os
à entrada do povoado; os nossos dois homens do outro mun-
rios, os precipícios,os salteadores,os selvagens,eram por toda
parte obstáculosterríveis; os cavalos morreram de fadiga; as do entretiveram-se
a contempla-las:
as malhaseram umasgran-
provisões foram consumidas; sustentaram-seum mês inteiro com des chapas redondas, amarelas, vermelhas, verdes, que lança-
vam uns reflexos singulares; os viajantes tiveram vontade de
frutas silvestres,e acharam-sepor fim ao pé de uma pequenari-
apanhar algumas; era ouro, eram esmeraldas, rubis, o menor
beira ladeada de coqueiros, com cujos frutos puderam manter
a vida e as esperanças. dos quais seria o maior ornamentodo tl'onodo Mogol. ."Não
há dúvida, disse Cacambo, êstes pequenos são os filhos do rei
desta terra, que estão aqui jogando malha." O mestre-escola
(230) Para evocarêssepaís de ouro, Voltaireinspira-se
num da aldeia apareceu naquele momento para obriga-los a entrar
mito freqüentementeencontrado nas narrativas de viajantes desde o em classe: "É isso, disse Cândida; êste é o preceptor da famí-
séculoXVI, e mais particularmentena apologia que Garcilaso faz dos
Incas, obra citada na nota 228, vol. l. lia real.
202 ROMANCES E CONTOS CÂNDIDO OU O OTIMISMO 203

Os. pequenos maltrapilhos largaram imediatamenteo jogo, tempo apertando as ilhargas; por fim, aquietaram-se. "Meus se
deixando no chão as malhas e tudo quanto tinha servido para os nhores, disse o hospedeiro, bem vemos que são estrangeiros; não
seus divertimentos. .Cândida apanha-as, corre ao preceptor e estamos acostumados a vê-los aqui; hão de perdoar-nos que nos
apresenta-lhas humildemente, fazendo-lhe perceber, por sinais, puséssemosa rir quando nos ofereceram, em pagamento, as pedras
que Suas Altezas Reais se tinham esquecidodo seu ouro e das das nossas estradai. Não têm, com toda a certeza, dinheiro do país.
suas pedrarias; o mestre-escola,sorrindo, atirou-asfora, fitou Mas não é preciso tê-lo para jantar aqui. Tôdas as hospeda-
um momento,com muita surprêsa,a cara de Cândido,e conti- rias estabelecidas
para comodidade do comérciosão pagaspela
nuou seu caminho. govêrno. Aqui os senhoresnão comerambem, porqueisto é
Os viajantesnão deixaramde apanharo ouro, os rubis e uma pobre aldeia; mas em qualquer outra parte serão recebi-
as esmeraldas. ''Em que país estamos nós? exclamou Cândida; dos como merecem." Cacambo explicava todos os discursos
é preciso que os filhos dos reis desta terra sejam bem educa do dono da hospedaria, e Cândida ouvia-os com a mesma admi-
dos, visto que os ensinam a desprezar o ouro e as pedras ração e o mesmo pasmo com que o seu amigo Cacambo lhos trans-
preciosas". Cacambo estava tão admirado como Cândida. 'Apro- mitia. "Mas entãoque país é êste, dizia um para o outro, des-
ximaram-se enfim da primeira casa da aldeia; era edificada conhecidopara todo o resto da terra e onde toda a naturezaé
comoum palácioda Europa; dentroda casa e à porta, acumula- de uma espécietão diferente da nossa? É, provàvelmente, o país
va-se imensa quarltidade de gente; ouvia-se uma música muito onde tudo vai bem: porque é preciso absolutamenteque haja
agradável, e havia um cheiro delicioso de cozinha: Cacambo um desta espécie. E, dissesse lá o que dissesse mestre Pangloss,
chegou-seà pol'tae percebeuque falavamperuano. Era a sua fato é que muitas vêzes percebi que tudo ia mal na Vestfália."
língua materna, pois já se sabe que Caéambotinha nascido
no Tucumã, numa a]deia onde só se falava aqueçalíngua. "Eu
Ihe sirvo de intérprete,disse êle a Cândida; entremos,que isto CAPÍTULO DÉCIMO-OITAVO
é uma taberna."
Imediatamente, dois criados e duas criadas da hospeda- DO QUE ÊLES VIRAAI NO PAÍS DO ELDÓRADO
ria, vestidosde pano de ouro tecidoe com os cabelosatados
com fitas, os convidama sentar-seà mesa. Serviram-sede qua- Cacambo patenteou ao dono da hospedaria tôda a sua curio-
tro sopas guarnecidascada uma com dois papagaios,um con sidade. Êste disse-lhe: "Sou muito ignorante e dou-me hein
lórno 231 cozido que pesava duzentos arrateis, dois macacos assados com isso; mas temosaqui um velho retiradoda carte, que é
de gasto excelente,trezentoscolibris num prato e seiscentosbeija- o homemmais sábiodo reino, e o maiscomunicativo."Imedia-
flârês em outro, guisados saborosíssimas, gulodices deliciosas: tudo tamenteconduzCacamb.oà casa do velho. Cândidaestavafi-
em pratos de uma espéciede cristal de rocha. Os criados e as cando um personagem secundário e acompanhava o seu criado.
criadas da hospedaria serviam diversos licores feitos de cana de Entraram numa casa muito simples, porque a porta era apenasde
açular. prata, e os lambris dos quartoseram simplesmente de ouro, mas
Os convivaseram, na maior parte, vendedorese carroceiros, esculpidos com tanto gôsto, que os mais esplêndidos lambris não
todos de uma polidez extrema, que fizeram algumas perguntas os ofuscavam. A antecâmara,em verdade,não era senãoincrus-
a Clcambo, com a mais circunspectadiscrição, e que responderam tada de rubis e de esmeraldas,mas a ordemem que tudo estava
às dêste, de modo a deixa-lo satisfeito. disposto reparava perfeitamente tão extrema simplicidade.
Quando a refeição terminou, Cacambo entendeu,bem como O velho recebeuos dois estrangeirosnum sofá estofadocom
Cândido, de pagar generosamente a sua despesa,pondo sabre a penas de colibri, e mandou servir-lheslicores em copos de dia-
mesa duas das rodelas de ouro que tinham apanhado do chão; o mante, depois do que lhes satisfez a curiosidade nos seguintes
donoe a donada hospedaria
desataram
a rir, e estiveram
muito têrmos :
"Tenho cento e setentae dois anos de idade, e ouvi meu
(231) Um condor. falecido pai, escudeiro do rei, contar as espantosas revoluções do
204 ROMANCES E CONTOS CÂNDIDO OU O OTIRIISMO 205

Peru, de que êle tara testemunha.O reino em que estamosé a que disputam,que governam, que intrigam, e que fazem queimar
antiga pátria dos Incas, que dêle saíram muito imprudentemente as pessoasque não são da sua opinião?" "Era preciso que fôs-
para ir?m subjugar uma parte do mundo, e que foram por fim semos doidos, disse o velho; somos todos aqui da ]nesma opi-
destruídos pelos espanhóis. Os príncipes de sua família que fica- nião, e não entendemoso que quereis dizer com esta história
ram no seu país natal foram mais ajuizados; ordenaramcom o de frades." Cândido, em face de todos êssesdiscursos,ficava
consentimento da nação, que nenhumhabitantesaíssejamais do em êxtasee dizia consigo mesmo: "Isto é bem diferenteda Vest-
nossopequenoreino: foi isto que nos conservoua nossa ino- fália e do castelodo senhor barão; se o nosso amigo Pangloss tives-
cência e a nossa felicidade. Os espanhóistiveram um conheci- se visto Eldorado, nunca mais teimadito que o castelode Thunder:
mento .confuso .dêste país; chamaram-no E/gorado, e um inglês, ten-tronckh era o que havia de melhor sabre a face da terra. É
o cavaleiro Raleigh 232, chegou mesmo a aproximar-se dêle' há bem certo que é precisoviajar.
cêrca de cem anos; mas, como estamos rodeados de rochedos Depois desta longa conversa, o bom velho mandou pre-
inacessíveise de precipícios,temosficado sempre,até agora, ao parar uma carruagem puxada a seis carneiros, e. deu doze dos
abrigo da rapacidade das nações da Europa, que têm um furor seus criados aos dois v'iajantes,para conduzi-losà côrte. "Des-
inconcebívelpelos calhaus e pela lama da nossa terra e que, para culpem-me os senhores, disse-lhes, se a minha id?de priva'me da
dêles se apostarem, nos matariam a todos, até ao último." honra de acompanha-los:o rei há de recebê-losde um modo que
A conversação foi longa, versou sâbl'e a forma do govêrno, não os deixarádescontentes,
e, sem dúvida, hão de desculparos
sabre os costumes, as mulheres, os espetáculospúblicos, as artes. usos do país, se encontrarem alguns que lhes desagradem.
Finalmente, Cândida, que continuava sempre a ter gasto pela Cândido e Cacambo subiram para a carruagem; os seis car-
metafísica,
fêz perguntar,por Cacambo,se no país havia uma neiros voavam, e em menos de quatro horas chegaram ao palá-
religião. cio do rei, situadonum dos extremosda capital. O portão
O velho corou um pouco. "Como é que os senhores,disse tinha duzentose vinte pés de altura por cem de largura; é impos-
êle, podem duvidar disso? Por acaso nos ;onsíderam ingratos?" sível exprimir de que substânciaera feito. Imagina-se bem que
Cacambo perguntou humildementequal era a religião do Eldorado. rioridade prodigiosa êle devia ter sabre aquêles calhaus e
O velho tornou a corar: "Então pode haver duas religiões? disse sabre aquela areia a que chamamos ouro e pedrarias.
êle; creio que temosa religião de tôda gente; adoramosDeus Vinte formosas donzelas da guarda receberam Cândido e Ca-
desdemanhã até à noite." "E não adoram senãoum só Deus?" cambo ao desceremda carruagem, conduziramnos aos banhos e
disse Cacambo, que servia sempre de intérprete às dúvidas de vestiram-nos com roupas feitas de penugem de colibri; depois disto,
Cândida. "Assim parece, disse o velho, pois julgo que não há os oficiais-mores e as oficiais-mores da coroa, levaram-nos aos
dois, nem três, nem quatro: a gentelá do seu mundo faz per- aposentosde sua majestade,no meio de duas filas, cada uma de
guntas bem singulares." Cândida não se cansava de fazer inter- mil músicos, segundoo uso ordinário. Quando se aproximaram
rogar aquêle bom velho; quis saber como se faziam preces a da sala do trono,Cacamboperguntoua um dos oficiais-mores o
Deusno Eldorado. "Não Ihe fazemospreces,disseo bom e res- que devia fazer para cumprimentar sua majestade:.se deviapâr-se
peitávelsábio, não temosnada a pedir-lhe;deu-nostudo de que de joelhos ou iie barriga no .?hão; .se devia .pâr ,as mãos na
precisávamos; incessantemente
Iho agradecemos." Cândida quis cabeçaou no traseiro, se tinha de lamber o pó da s?la; numa.pa'
ver alguns sacerdotes;perguntouonde estavam. O bom lavra, qual era o cerimonial. "0 uso! dilsq o oficial-mor, é abra-
velho sorriu: "Meus amigos, disse êle, todos nós somos sacerdo- çar o rei, beija-lo nas duas faces." Cândida e Cacambo saltaram
tes; o rei e todos os chefes de família entoam cânticos de ação ao pescoço de Sua Majestade, que os re(bebeu com todo o abeto
de graças solenemente,tôdas as manhãs, e cinco ou seis mil mú- que' é possível. imaginar e que os convidou polidamente para a
sicos os acompanham." "Quê! pois não têm frades que ensinam, ceia
Até lá e enquanto esperavam, mostravam lhes a cidade, os
(232) Voltaire narra essa expedição no capítulo 51 do Estai edifícios públicos elevadosaté às nuvens, os mercados adorna-
swr Zesmoewrl. dos de mil colunas, as fontes de água pura, os chafarizes de água
206 ROMANCES E CONTOS CÂNDiDO OU 0 0TIMtSAIO 207

de rosas, os de licoresde cana de açúcar, que corriam continua- dez léguas; não se pode descer delas senão por precipícios. Con-
mente em grandes praças calçadas de uma espécie de pedraria, que tudo, como querem absolutamente partir, vou dar ordem aos inten-
difundia um cheiro semelhanteao do goivo e da canela. Cândida dentes das máquinas para fazerem uma que possa transporta-los
pediu para ver o tribunal de justiça, o parlamento: disseram-lhe còmodamente. Quando os tiverem conduzido à encosta das mon-
que não existiam, e que nunca havia demandas; informou-se sabre tanhas, ninguém os poderá acompanhar: porque os meus vassalos
se havia prisões: disseram Ihe que não. O que o surpreendeumais, fizeram voto de nunca saírem do seu recinto e são muito pruden-
e Ihe deu mais prazer, foi o palácio das ciências,no qual viu uma tes para quebrar êsse voto; podem, aliás, pedir-metudo
galeria de dois mil passos completamente cheia de instrumentos quanto quiserem." "Não pedimos a Vossa Majestade, disse Ca-
de matemática e física. cambo, senão alguns carneiros carregados de víveres, de calhaus
Depois de terem percorrido, durante toda a tarde, aproximada- e de lamado país." O rei sorriu: "Não compreendo,
disseêle,
mente a milésima parte da cidade, foram reconduzidos à casa do que gastopode ter a sua gentelá da Europa pela nossa lama ama
rela; mas levem tanto quanto quiserem; e bom proveito lhes faça."
rei. Cândida sentou-seà mesa entre Sua Majestade, o seu cria-
do Cacambo e várias senhoras; nunca se comeu melhor, e nunca Deu ordem imediatamente aos seus engenheiros para fazerem
ninguém teve mais espírito, ao jantar, do que Sua Majestade. uma máquina a fim de guindar aquêles dois homens extraordi-
Cacambo explicava os ditos espirituosíis do rei a Cândido que, ape- nários para fora do reino. Três mil bons físicos trabalharam nela;
sar de traduzidos, continuavam parecendo espirituosos. De tudo estavaprontano fim de quinzedias e não custoumais de vinte
quanto causou admiração a Cândida, não foi isto o que o admi- milhões de libras esterlinas, moeda da terra. Puseram em cima
rou menos. da máquina Cândida e Cacambo; deram-lhesdois grandes car-
Passaram um mês nessa hospedagem. Cândido não se can- neiros vermelhos, aparelhados e enfreados, para êles montarem
sava de dizer a Cacambo: "É verdade, meu amigo, torno a repe- quando tivessem atravessado as montanhas, vinte carneiros de
ti-lo, que o casteloem que nasci está bem longe de valer o país carga carregados de víveres, trinta que levavam presentes de tudo
onde estamos; mas, no fim de contas, Cunegundes não está aqui, quanto o país tem de mais curioso, e cinqüenta carregados de
e tu naturalmente
deixastealgumaamantena Europa; se aqui ouro, pedrarias e diamantes. O rei abraçou com ternura os dois
ficarmos, seremos apenas como os outros; enquanto que, se vol- vagabundos.
tarmos para o nosso mundo, ùnicamente com doze carneiros car- A sua partida foi um belo espetáculo,como tambémo foi o
regados de calhaus do Eldorado, seremos mais ricos do que todos modo engenhosopelo qual êles e os seus carneiros eram içados
os reis juntos, não teremos.querecear mais inquisidores,e pode- para o cimo das montanhas. Os físicos despediram-sedêles,depois
remos fàcilmente reaver Cunegundes." de os terem pasto em segurança; e Cândida não teve outro desejo
Êste discurso agradou a Cacambo: os homens gostam tanto nem outro objetivo em vista, senão o de ir apresentar seus carnei-
de variar, de se fazer valer entre os seus, de jantar-se do que viram ros a Cunegundes. "Temos, disse êle, com que pagar ao governa-
nas viagens, que êssesdois felizes resolveramdeixar de sê-lo e dor de Buenos Abres, se é que Cunegundes pode ser avaliada em
pediram a Sua Majestade licença para se retirarem. dinheiro; marchemos para Caiena, embarquemos, e veremos, em
) }'

seguida, que reino poderemos comprar.


"Fazem uma asneira, disse-lheso rei; bem seí que o meu
país vale pouco; mas quando se está sofrivelmenteem qualquer
parte, a gente deve conservar-se aí. Eu não tenho direito de reter
estrangeiros;
é uma tirania que não estánem nos nossoscos- CAPÍTULO DÉCIMO-NONO
tumes, nem nas nossas leis; todos os homens são livres; partam
quando quiserem, mas a saída é bastante difícil; é impossível subir DO QIJE LIDES SUCEDEU EM SURINÀ, E COMO CÂNDIDA
a rápida torrentepor meio da qual aqui chegarampor milagre TRAVOU CONHECIB{ENTO COM MORTINHO
e que corre debaixode abóbadasde rochas; as montanhasque
cercam o meu reino têm dez mil pés de altura e são direitas como O primeiro dia dos nossos viajantes foi bastante agradável
muralhas; ocupamcada uma, em largura, um espaçode mais de lam animadospela idéia de se verem possuidoresde mais lesou
208 ROÀIANCES E CONTOS CÂNDIDO OU O OTIMISA{O 209

ros do que a Ária, a Europa e a África eram capazesde reunir. pretos. Eu não sou genealogísta;mas, se êssespregadoresfalam
Cândido, arrebatado, escreveu o nome de Cuneguádes nos troncos a verdade, nós somos todos primos coirmãos; ora, os senhores
das árvores. No segundodia, dois dos seus carneiros afundaram hão de confessar que não se pode proceder, entre parentes, de modo
em uns pântanose aí ficaram sepultadoscom as cargas que leva- mais horrível.
vam; outros dois carneiros morreram de fadiga, passados alguns "Oh! Pangloss! exclamouCândido, não tinhas adivinhado
dias; sete ou oito morreram em seguida, de fome, num deserto; esta abominaçãol Está dito, é precisoque, no fim de contas,eu
outros caíram, passados mais alguns dias, em precipícios; fi- tenha de renunciar ao teu otimismo." "Que vem a ser otimismo?"
nalmente,volvidos cem dias de marcha, restavam-lLlesapenas dois perguntou
Cacimbo. "Ahl respondeu
Cândido,é a fúria de sus-
carneiros. Cândido disse a Cacambo: "Meu amigo, vês como as tentar que tudo está bem quando está mal." E derramava lágrimas,
riquezas dêste mundo são perecíveis; não há nada sólido senão a contemplando o prêto. E entrou em Surinã chorando.
virtudee a felicidadede tornar a ver Cunegundes." "Também
concordo,disse Cacambo; mas ainda nos restam dois carneiros A primeira coisa de que pediram informaçõesfoi se, no
parto, não estavaalgum navio que se pudesseenviar a Buenos
com tantos tesouros como nunca há de ter o rei da Espanha, e Abres. Aquêle a quem êles se dirigiram era exatamenteum
estou vendo, lá ao longe, uma cidade que presumo ser Surinã,
pertencenteaos holandeses. Estamos no têrmo das nossas penas e capitão mercanteespanhol,que se ofei'eceupara fazer com êles
um contratohonesto:mar.cou.lhesuma entrevistanuma estala.
no comêço da nossa felicidade."
gem: Cândida e o fiel Cacamboforam ali espera-locom os seus
Quando se aproximaram da cidade, encontraramum prêto dois carneiros.
estendidono chão, tendo apenas metadedo seu vestuário, isto é,
Cândida, que tinha o coração na mão, contou ao espanhol
metadede uns calçõesde pano azul; a êsse pobre homem,falta- todas as suas aventuras, e confessou-lheque queria raptar Cune-
vam a perna esquerdae a mão direita. "Oh! meu Deus! disse-lhe gundes. "Deus me livre de o transportar para Buenos Abres,
Cândida em holandês,que fazes tu aí, meu amigo, no horrível es- disse o capitão; seria enforcadologo, e o senhor também; a for-
tado em que te vejo?'' "Estou à esperado meu senhor,o sr. mosa Cunegundesé a amantefavorita de monsenhor." Isto foi
Vanderdendur 233, que é um grande negociante", respondeuo prê- um I'aiopara Cândida; choroumuito tempo;por fim, chamouCa-
to. "Foi o sr. Vanderdendur,disse Cândido, que te tratou as- cambo de parte: "Eu te digo, meu caro amigo, disse-lhe,o que
sim?" "Sim, senhor, disse o prêto; é o costume: dão-nos uns é precisoque faças: temoscada um de nós, nas algibeiras,cinco
calçõesde lona para vestuário único, duas vêzespor ano; quando ou seis milhões de diamantes; tu és mais hábil do que eu; vais
trabalhamos nos engenhos de açúcar, se a mó nos apanha um buscar a minha amada Cunegundes a Buenc.s Abres. Se o gover-
dedo, cortam-nos a mão; quando queremos fugir, cortam-nos a nador opuser alguma dificuldade, dá-lhe um milhão; se assim
perna; encontrei-me
nestesdois casos: é êsteo preçopor que os não se render, dá-lhe dois; tu não mataste nenhum inquisidor, não
senhorescomem açúcar na Europa. Contudo, quando minha mãe desconfiarão de ti. Equiparei outro navio e irei esperar-te em
me vendeu por dez patacas na Costa da Guiné, dizia-me: "Meu Veneza; é um país livre, onde não há nada a recear dos búlga-
querido filho, dá graças aos nossos fetiches, adora-os sempre; ros, nem dos ábaros, nem dos judeus, nem dos inquisidores." Ca-
êlesfarão com que vivas feliz; tens a honra de ser escravo dos cambo aplaudiumuito esta sábia resolução. Tinha muita pena
brancos nossos senhores, e fazes dêsse modo a fortuna de teu de se separar de um bom amo que se tornara seu amigo íntimo,
pai e de tua mãe." Ah! não sei se fiz a fortuna dêles, o que sei mas o prazer de Ihe ser útil foi superior à mágoa de o deixar.
é que êlesnão fizeram a minha; os cães, os macacose os papa- Abraçaram-se, dera'amandolágrimas; Cândido recomendou-lheque
gaios são mil vozes menos desgraçados do que nós; os fetiches não se esquecesseda boa velha. Cacambo partiu naquelemesmo
holandeses, que me converteram, dizem-me todos os domingos dia: era um belíssimo homem êste Cacambo.
que todos nós somos filhos de Adio, tanto os brancos como os Cândido ficou ainda algum tempo em Surinã, e esperou
que outro capitão o quisesse levar à Itália, a êle e aos dois carneiros
(233) Êsse nome evoca Van Düren, o livreiro holandêscom que Ihe restavam. Contratoucriados e comproutudo o que Ihe
quem Voltaire teve desavenças. era necessário para uma longa viagem; finalmente, o sr. Vander
14
210 ROMANCES E CONTOS CÂNDIOO OU O OTIMISAIO 211

dendur, dono de um grande navio, foi procura-lo. . "Quanto .quer de embarcar mais carneiros carregados de diamantes, alugou
o senhor, perguntou êle a êste homem,.para me levar direito a um compartimentodo navio pelo preço estabelecido,e fêz cons-
Ve:.eza, a mim, à minha gente,à minha bagagem, e aos d?is car: à tar, na cidade,que pagaria a passagem,o sustento,e daria
negrosque ali estão?" O dono do navio assentouem dez mil duas mil piastras a um homem honrado que quisessefazer a
piastrasl Cândida não hesitou. viagem com êle, sob a condição de que êsse homem fôsse o
"Ohl oh! disse consigo o prudente Vanderdendur, êste.e?- mais descontenteda sua posição, o mais infeliz da sua província.
trangeiro dá dez mil píastras seio regatearl por larga.que há de Apresentou-:e uma tal chusma de pretendentes, que uma esqua-
ser muito rico." E nisto, voltando um momentodepois, veio di- dra não os poderia conter. Cândido, querendo escolher entre
zer que não podia partir sem que Ih? des:em vinte mil. "Está f os mais vistosos, distinguiu umas vinte pessoasque Ihe pareciam
bom! aceito", disseCândido. "Olá! dissede si para si o negoci- bastante sociáveis e que pretendiam todas elas merecer a prece'
ante, êste homem dá vinte mil piastras tão fàcilmente como dez rência: reuniuas na sua estalagem, deu-lhes de cear, com a
mil." Tornou a voltar, e disseque não podia conduzi-lo para condiçãode que cada um faria juramentode contar fielmentea
Veneza por menos de trinta mil piastras. "Pois bem! terá trinta sua história, prometendo escolher o que Ihe parecesse mais digno
mil", respondeu Cândida. de dó e aquêleque, por motivo justificado, estivessemais des-
"Oh! oh! disse novamente consigo o negociante holandês, contentecom a sua situação, e prometeutambémque daria aos
outros algumas gratificações.
trinta mil piastrasnão são nada para êstehomem! Não há dúvida
que os dois carneiros levam tesouros imensos; . não insistamos A sessãodurou até às quatro horas da manhã. Cândida,
mais; vamos primeiro recebendo as trinta mil piastras, e depois ouvindo todas as aventuras dêles, lembrava-se do que Ihe dis-
veremos." Cândida vendeu dois diamantes pequenos, o menor dos sera a velha quando iam para Buenos Abres, e da apostaque ela
quais valia mais quc todo o dinheiro que o.negociantepedia: fizera de não haver ninguém no navio a quem não houvessem
pagou adiantado. Os dois carneiros foram embarcados: Cândida acontecido graves desgraças; pensava em Pangloss a cada aven-
seguia num bote, para o ancoradouro do navio: o capitão aproveita tura que Ihe contavam. "Aquêle Pangloss,dizia êle, havia de
o tempo; levanta'ferro,larga as velas; o ventofavorece-o..Cân. estar .bem embaraçado para demonstrar o seu sistema. Queria
lido, fora de si e estupefato,em breve o perde de vista. "Ah! que êle estivesseaqui. Com certeza, se tudo está bem, é só llo
exclamou êle, aí está 'uma patifaria digna do velho mundo." Eldoradoe não no restoda terra." Por fim, decidiu-se
a favor
Voltou para terra, imerso em dor; .porque, no .fim de .contas, de um pobre sábio que tinha trabalhado dez anos para os livreiros
tinha perdido uma soma com que podia fazer a fortuna de-vinte de Amsterdã. Entendeu que não havia profissão, no mundo, de
monarcas. que se pudesseestar mais enojado.
Transportou-se à casa do juiz holandês; e, como ia um pou' Êste sábio, que era, aliás, um bom homem, tinha sido rou-
co perturbado, bateu com bastanterudeza à. porta; entrou, expôs bado pela mulher, espancado pelo filho e abandonado pela filha,
a sua aventura, e gritou um pouco mais alto do que convinha. que se tinha deixado raptar por um português. Acabava de ser
O juiz começou por fazê-lo pagar dez mil piastras pela bulha privado de um pequenoemprêgocom o qual ganhavapara a sua
que armara; em seguida,. escutou-o com .paciência, prome' subsistência:e os predicantesde Surinã perseguiam-no,porque o
teu-lhe examinar a questão logo que o negociante regressasse, e tomavam por sociniano 234. Deve-se confessar que os outros eram,
levou mais dez mil piastras pelas despesas da audiência. pgo menos, tão infelizescomo êle; mas Cândida esperavaque o
sábio o desenfastiassena viagem. Todos os seus rivais acharam
Êste procedimento acabou de desesperajlCândida ; em verdade,
tinha sofrido desgraças mil vêzes mais dolorosas; .mas o sangue
frio do juiz bem como do negocianteque o roubara, inflamaram-lhe (234) Racionalistas que não acreditavam, entre outras coisas,
a bílis, e mergulharam-noem negra melancolia; a malvadez.dos na Trindade e nas penas eternas,e, o que é mais curioso, que eram
também otimistas. Os socinianos dizem que "Deus necessàriamente fêz
homens apresentava-se-lheao espírito em tôda a sua fealdade, e do nosso,mundoo melhor dos mundos possíveise que tudo está
só se alimentavade idéias tristes. Por fim, como estavaa ponto bela". (Carta de Démad [Voltaíre], /Durma/ E?zcyc]oPédiqzie, 15 de
de partir para Bordéus um navio francês, e como êle não tinha julho de 1762).
212 ROA{ANCES E CONTOS CÂNDIDO OU O OTIMISMO 213

que Cândido lhes fazia uma grande injustiça, mas êle os sossegou, poderosos,diante do! quais se arrastam, e os poderosostratam-
dando, a cada um, cem piastras. nos como rebanhosde que se vende a carne e a lã. Um milhão
i; de assassinos arregimentados, correndo de um extremo ao outro
da Europa, pratica o assassínio e o banditismo com disciplina,
CAPÍTULO VIGÉSIMO para ganhar o seu pão, porque não há profissão mais honrosa; e
nas cidades que parecem desfrutar a paz, e onde as artes flores-
O QUE SUCEDEU NO ALAR A CÂNDIDA E A MORTINHO
cem, os homenssão devoradospor mais inveja, cuidadose inquie-
tações,do que os flagelosque sofre uma cidade sitiada. Os
desgostossecretossão ainda mais cruéis que as misérias públi-
O velho sábio, que se chamava Maninho, embarcou portanto cas. Numa palavra, tenhcPvisto e tenho sofrido tantas coisas, que
para Bordéus com Cândido. Ambos tinham visto e sofrido muito; sou manlqueu.
e mesmoque o navio tivessede fazer vela de Surinã para o
lapão, pelo cabo da Boa Esperança,teriam tido com qu? se en- "Em toda a parte há coisas boas", replicou Cândida. "Pode
treter dé) mal moral e do mal físico durante a viagem toda. ser, dizia Maninho, mas eu não as conheço."
Contudo, Cândida levava uma grande vantagemsabre Mani- No meio desta disputa, ouviu-se um tiro de canhão. O barulho
nho: continuava esperando tornar a ver Cunegundes, e Maninha redobrade momentopara momento. Cada qual pega no seu
não tinha nada a esperar; mais ainda, tinha ouro e diamantes; óculo. Avistam-se dois navios que combatiam à distância de umas
e, apesar de ter perdido cem grandes carneiros vermelhos carre- três milhas: o vento impeliu-osa ambos para tão perto do navio
gados com os maiores tesouros da terra, apesar de ter sempre a francês, que, de bordo dêste, se teve o prazer de ver o combate in-
morder-lhe o coração a patifaria do negociante holandês, todavia, teiramenteà vontade. Por fim, um dos navios atirou ao outro uma
quando se lembrava do que tinha ainda nas algibeiras, e quando descargageral tão baixa e tão certeira, que o meteuno fundo.
falava de Cunegundes, sobretudo no fim do jantar, inclinava-se
Cândião e Martínho viram distintamenteuma centena de homens
então para o sistema de Pangloss. na to]da do navio que se afundava;todos levantavamas mãos
ao céu, e soltavamclamoresespantosos:num momento,foram en-
"Mas, senhor Maninho, disse êle ao sábio, que é que pensa golidos.
de tudo isto? Qual é a sua opinião sôbre o mal moral e o mal
físico?" "Senhor Cândida, respondeu Maninho, os padres acusa- "Pois bem! disse Maninho, aí está como os homensse tra-
ram-mede ser sociniano;mas a verdade,de fato, é que sou tam uns aos outros." "Na verdade, disse Cândida, há alguma coi-
maçiqueu 235." "Está brincando comigo, disse Cândído; já .não sa de diab-óliconestecaso." Quandoassim falava, viu um objeto
há maniqueusnestemundo." "Ainda há um, que sou eu, disse de um encarnadovivo, que nadavaao pé do seu navio: larga-
ram um escaler para ver o que poderia ser; era um dos seus car-
Maninho; não sei o que hei de fazer; masnão possopensarde
outro modo." "É preciso, para isso, que o senhor tenha o diabo neiros. Cândida teve uma alegria maior em tornar a achar êste
no corpo", disse Cândido. "Êle envolve-se tanto nos negócios carneiro, do que a aflição que sentiu quando perdeu cem, todos
dêste mundo, disse Maninho, que bem podia estar no meu corpo, carregados com grandes diamantes do Eldorado.
como em qualqueroutra parte; mas confesso-lheque, lançando a À O capitão francês percebeu,dentro em pouco, que o capitão
vista sôbre'êste'globo, ou antes sabre êste glóbulo, penso que Deus do navio vencedor era espanhol, e que o do navio submerso era
o abandonoua qualquer ente malfazejo; faço sempre a exceção um pirata holandês; era êste o mesmo que tinha I'ousado Cân-
do Eldorado. Nuncavi uma cidadeque não desejasse
a ruína didos As imensas riquezas de que êste celerado se apropriara
da cidade próxima, família que não quisesse exterminar alguma foram sepultadasccP= êle no fundo do mar e apenas se salvou
outra família. Por toda parte, os fracos têm em execução os um carneiro. "Como vê, disse Cândido a Maninho, o crime
+

é punido algumas vêzes: o patife daquelenegocianteholandês


(235) O que significaque Maninho, na realidade,crê que teve a sorte que merecia." "Sim, disse Maninho; mas era preciso
dois princípios igualmentepoderosos,o bem e o ihal, disputam o uni- que os passageirosque estavamno navio morressemtambém?
verso. Deus castigou o patife, o diabo afogou os outros."
214 ROMANCES E CONTOS CÂNDIDO OU O OTIMISMO 215

Entretanto, o navio francês e o espanhol continuaram a sua zem que Veneza só é boa para os nobres venezianos,mas que, en-
navegação,e Cândida continuou as suas conversaçõescom Ma- tretanto, recebemlá muito bem os estrangeiros,quando êstestêm
ninho. Disputaram quinze dias seguidos, e ao fim dos quinze +

muito dinheiro; não tenho nenhum, mas o senhor o tem e eu o


dias estavamtão adiantadoscomono primeiro, mas de qualquer ncompanhareia toda parte." "A propósito! disse Cândida, acre-
modo falavam, comullicavam um ao outro as suas idéias, consola- dita que a terra tenha sido originariamenteum mar, como se afir-
vam-se. Cândida afagava o seu carneiro. "Ora, assim como te ma neste enorme volume que pertence ao capitão do navio 237?"
encontrei de novo, disse êle, também é possível que torne a encon- "Eu não acredito em nada disso, respondeu Mal'linho, do mes-
trar Cunegundes." mo modo que não acredito em nenhum devaneio dêsses que,
de um certo tempopara cá, nos andama apregoar." "Mas en-
tão para que fim foi criado êstemundo?" disseCândida. "Para
CAPÍTULO- VIGÉSIMO-PRIMEIRO nos atormentar", respondeu Maninho. "0 senhor não ficou
muito admirado,continuou Cândido, com o amor que as duas
CANDIDO E MART]NHO APROXllfAM-SE DAS COSTAS DA raparigasdo país dos Orelhõestinham aos dois macacos,con-
FRANÇA E CONVERSAM formea aventuraque Ihe contei?" "De nenhummodo,disse
Maninho; não vejo o que essa paixão possa ter de extraordiná-
Avistaram-se finalmente as costas da Franca. "Já estêve algu-
rio; tenho visto tanta coisa estranha, que nada mais acho estra-
ma vez na Franca, senhor Maninho?" perguntouCândida. "Já, nho." "E parece ao senhor, disse Cândida, que os homens se
sim senhor, respondeu Maninho: percorri várias províncias; há tenham sempre mutuamentetrucidado como fazem hoje? Que
algumas onde a metade dos habitantesé doida, outras onde se sempre tenham sido mentirosos, velhacos, pérfidos, ingratos, ban-
didos, fracos, levianos, covardes, invejosos, glutões, bêbados, ava-
é muito manhoso, outras onde vulgarmente se é bastante simples rentos, ambiciosos, sanguinários, caluniadores, devassos, fanáticos,
e bastantetolo, outras onde se é muito espirituoso; e, em todas,
a principalocupaçãoé o amor; a segunda,a maledicência, ea hipócritas e tolos?" "E parece ao senhor, disse Maninho, que os )'!
terceira, dizer asneiras." "Mas, senhor Maninho, já viu Paria?" gaviões sempre comeram pombas quando as puderam apanhar?
"Sim, senhor,já vi Paras; há lá distotudo; é um caos,uma "Sem dúvida", disse Cândido. "Pois bem! disseManinho, se os
afobaçãoem que toda genteprocura o prazer, e em que quase gaviões tiveram sempre o mesmo caráter, como é que imagina
que os homens tenham mudado o dêles?" "Oh! observou Cândi-
ninguém o encontra, pelo menos segundo me pareceu. Demorei-
me um pouco; quando cheguei, uns gatunos roubaram-me tudo da, há uma diferença muito grande; porque o livre arbítrio. . ."
quanto tinha, na feira de St. Gerlnain, eu próprio fui prêsa como Discorrendo assim, chegaram a Bordéus.
ladrão, e estive oito dias no calabouço; depois disso, fiz-me revi-
sor de provas, a fim de ganhar os meios necessários para voltar
a pé à Holanda. Conheci a canalha escrevente, a canalha intrigante CAPÍTULO VIGÉSIMO-SEGUNDO
e a canalha convulsionária236. Diz-se que há pessoasmuito bem
educadas naquela cidade: é possível." O QUE SUCEDEU NA FRANÇA A CÂNDIDA E A MORTINHO
"Pela minha parte, não tenho nenhuma curiosidade de ver &

a Franca, disse Cândido ; o senhor deve perceber perfeitamente quê, Cândido não se demorou em Bordéus senão o tempo estrita-
depois de se ter passadoum mês no Eldorado, não há vontadede mente preciso para vender alguns calhaus do Eldorado, e para
ver mais nada neste mundo senão Cunegundes; vou espera-la alugar uma boa sebe de posta com dois lugares, porque não podia
em Veneza; atravessaremosa França para ir à Itália; não deseja já passar sem.o seu filósofo Maninho; semente ficou zangado
acompanhar-me?" "Com muito gasto, respondeu Maninho; di- por ter de se separar do seu carneiro, que deixou à Academia

(236) Os convulsionários jansenistas, no cemitério de Saint-Mé- (237) A Bíblia: cf. Gê?pese, 1, 2. "Et spiritus Dei ferebatur
dard, sabre o túmulo do arcediago Pária, em 1729; cf. Sfêc/e de Z,ouís super aquas". Acêrca dêsse problema científico, cf. O HOMEM DOS
XIV, cap. 37. çlàUAKENVA
EsCuDos,vol. 11,ns. 31 e 32.
216 ROMANCES E COKTOS CÂNDIDO OU O OTIMIShIO 217

das Ciências de Bordéus, a qual propôs para assunto de prêmio, jurou que êle é quem enterrada o cura se êste continuassea im-
nesse ano, estudar a causa por que a lã daquele carneiro era en- portuna-los. A questão azedou-se.
carnada; e o prêmio foi adjudicadoa um sábio do Norte, que de- +

Maninhopegou-opelosombrose pâ-lofora à força; isto tudo


monsUou por A mais B, menos C, dividido por Z, que o carneiro
devia ser vermelho, e morrer de gateira 238
causou grande escândaloe foi iniciado um processo.
Contudo, todos os viajantes que Cândida encontrounas esta- Cândido curou-se; e, durante a convalescença,teve sempre
lagens do caminho Ihe diziam: "Vamos a Paria". Êste alvoroço muito boa companhia para cear com êle. Jogava-se forte: Cân-
geral deu-lhefinalmente desejos de ver esta capital; não era afas- dida admirava-semuito de nunca Ihe saírem os ases e Maninho
tar-se muito do caminho de Veneza. T nao se admiravanada.
Entrou pelo /aüboürg de Saint-Marceau,e julgou encontras- Entre aquêles que Ihe faziam as honras da cidade, havia
se na mais feia aldeia da Vestfália.
um abadezinho perigordino, um dêsses homens obsequiosos, pron-
Apenas Cândido se viu na sua hospedaria, foi atacado por tos para todo serviço, semprevigilantes, sempre serviçais, desca-
uma doença ligeira, causada pelas suas fadigas. Como trazia no radas, lisonjeiros, que estão por tudo, que espreitam e esperam
dedo um diamante enorme, e colmo tinham visto na sua baga- os estrangeiros na passagem, que lhes contam a história escanda-
gem uma caixa prodigiosamentepesada, teve logo ao pé de si losa da cidade, e lhes oferecemprazeres a qualquer preço. Êste
dois médicos sem os mandar chamar, alguns amigos íntimos levou primeiro Cândido e Maninho ao teatro. Estava sendo
que não o abandonaram,
e duas devotaspara Ihe aqueceremos representadauma tragédia nova; Cândido ficou sentado ao pé de
caldos. Maninho dizia: "Lembro-me de que também estive doen- algumas pessoas de espírito. Isso não obstou a que êle chorasse
te em Paria, na minha primeira viagem; eu era muito pobre; com algumas cenas perfeitamente representadas. Um dos enten-
por isso não tive nem amigos,nem devotas,nem médicos,e didos, que estava mesmo ao lado dêle, disse-lhe num intervalo:
durei-me.
"0 senhor faz mal em chorar, esta atrozé péssima; o açor que re-
Entretanto, à força de médicos e de sangrias, a doença de presentacom ela é pior ainda; a peça é muito pior que os atores; o
Cândidotornou-seséria. Um freqüentadordo bairro foi com bons autor não sabe uma palavra de árabe, e contudo a cena é na Ará
modos pedir-lhe um bilhete pagável ao portador para o outro bía; e, por cima de tudo, é um homem que não acredita nas idéias
mundo 239. Cândida não o atendeu; as devotas asseguraram-lhe inatas; amanhãIhe mostrareivinte brochurascontra êle 240."
que era uma nova moda; Cândida I'espondeu-lhes que não era ["Meu caro senhor, quantas peças de teatro terão os senho-
homemde modas; Maninho quis atirar o tal homempela janela res na Franca?" perguntou Cândida ao abade. Êste respondeu:
afora; o cura jurou que Cândida não seria sepultado;Maninho Cinco ou seis mil." "São muitas, disse Cândida; e dessas, quantas
são boas?'' "Quinzeou dezesseis",-
respondeuo outro. "São
(238) Segundo Morize (pág. 146-7, n. 1), a Academia de Bor- muitas", observouManinho.
déus premiada vários cientistas do Norte que resolviam matemàtica- Cândida ficou muito satisfeitocom uma atrozque fazia de'
menteas questões
propostasem concurso. Mas o sábiodo Norte
é aqui Maupertuis, o Lapão (cf. O HlowEm nos QuAKENTA Es- rainha lsabel, numa tragédia241bastantechata que se representa
cuoos, vol. 11, pág. 33, n. 36): a Z)íafribedu docfeur kakia (1752) A
fará uma zombaria endereçada a Maupertuis por ter querido apresentar
provas matemáticasda existênciade Deus: "0 autor faz compreender (240) Pomos entre colchêtes o importante acréscimo de 1761
que não há provas da existênciade Deus, senãoque Z é igual a BC divi- (cf. vol. 1, n. 191) . No lugar dêssetexto, a edição original tra2ía: "Senhor,
dido por A mais B". Uma referência às Oeworesde Maupertuis, 1752, disse-lheo abade perigordino,jú notou aquela jovem que tem um
in-4', p. 45, fazia alusãoa uma página que de fato contéma fór- rosto tão interessantee uma cinta& tão {iTta? Custar-the-áapenas
mula citada, mas a propósitode um cálculosabre a lei da inércia dez mit flancos por mês, além de ciltqiientantit escudosde diamantes.
dos corpos. SÓ tenho unf ou dois dias a concedeu-the, respondeu bandido,
porque fe zAo n?z e7zconfro urgente em renezcz
(239) Um bilhete de confissão: "Resolveu-se em 1750 exigir dos r
moribundos bilhetes de confissão: era preciso que êsses bilhetes fos- À noite, depois da ceia, o insinuante perigordino redobrou de poli-
sem assinados por padres que concordassem com a bula [Unigenitus], dez e atenções. "Com que então, perguntou-lhe, o senhor. . ." (pág.
sem o que nada de extrema-unção,nada de viático" (Pfácis d iiêc/e
de Zotiü X7, cap. 36). ( 241) l,e Comfe d'.Esses, de Thomas Corneille.
218 ROMANCES E CONVOS CÂNDIDO OU O OTIB{ISMO 219

algumas vêzes: "Esta atroz, disse êle a Maninho, agrada-me com muito desejode tornar a ver Cunegundes,disse Cândida,
muito; dá uma falsa impressão de Cunegundes; gostaria muito de a sempre gostaria de ir cear com a senhorita Clairon, porque me
cumprimentar." O abade perigordino ofereceu-separa o apre- pareceu admirável.
sentar. Cândido, educado na Alemanha, perguntou qual era a O abade não era homem que tivesse entrada em casa da
etiquêta,
e comoeramtratadasna Francaas rainhasda In- mnhorita Clairon, a qual só recebia boa sociedade: "Ela esta
glaterra. "Há que distinguir, disse o abade; na província, le- noite não pode receber, disse o abade; mas terei a honra de o
vam-se ao botequim; em Paria, respeitam-se quando são formosas, [evar à casa de uma dama de importância, e aí é que o senhor
e atiram-se ao monturo quando morrem." "As rainhas ao mon- pode conhecer Paria como se cá estivessehá quatro anos."
turol" disse Cândida. "É verdade, disse Maninho; o senhor
abade tem razão; estava eu em Paria quando a atroz Monime 242 Cândida que, de seu natural, era curioso, deixou-selevar à
casa da tal daRIa, no extremo do /aüboürg St. Honoré; jogava-se
passou, como se costuma dizer, desta para melhor vida; foi-lhe
recusado o que esta gente chama as honras da sepüZ&üra,isto é, o faraó; doze tristes pontos tinham cada um dêles na mão sua
o apodrecercom todos os miseráveisdo bairro num sujo cemi- caderneta, registro extravagante dos seus infortúnios. Reinava
tério; foi enterrada,
no maior isolamento,
a uma esquinada rua silêncio profundo; via-se a palidez na cara de todos os pontos, in-
de Borgonha, o que Ihe deve ter causado mágoa extrema, porque quietação na do b-anqueiro; e a dona da casa, sentada junto dêste
era uma mulher que pensava com muita nobreza." "Foi uma anão banqueiro impiedoso, observava com o]hos de lince tôdas as pa'
bem pouco polida"' disse Cândida. "Então o que quer? disse Ma- radas dobradase todos os sep&-ef-Ze-ua de campügne244, que cada
ninho; esta gente é assim: imagine o senhor todas as contradições,
jogadorfazia com as cartas; obrigava-osa emendara mão com
todas as incompatibilidades possíveis, e vê-las-á triunfar no govêr- uma atenção severa, mas polida, e não se zangava, com mêdo de
no, nos tribunais, nas igrejas, nos espetáculosdesta extravagante perder os clientes. A dama dizia chamar-semarquesade Paro-
nação." "E é verdade que tudo se leva a rir em Paria?" perguntou lignac; sua filha, de quinze anos de idade, estava entre os pont09
Cândida. "É, disse o abade, mas é um rir amargo; porque de tudo e avisavacom um piscar de olhos as empalmações que aquela
se queixam com gargalhadas, e, rindo, cometem as ações mais pobre gentefazia, e com as quais procurava reparar as cruelda-
detestáveis." des da sorte. O abade perigordino, Cândida e Maninho entraram;
ninguém se levantou, nem os cumprimentou, nem olhou para êles;
'Quem era, perguntou Cândido, aquêle porcalhão que me todos estavam profundamente ocupados com suas cartas. "A se-
estavaa dizer tanto mal da peça que tanto me fêz chorar, e dos nhora baronesa de Thunder-tela-tionckhera mais educada"', disse
atires que me deram tanto prazer?" "É um invejoso, respon' Cândida.
deu .o abade, que ganha a vida a dizer mal de todas as peças e de
todos os livros; odeia todos os que triunfam como os eunucos Entretanto, o abade aproximou-se do ouvido da marquesa,
odeiam os que gozam; é uma destas serpentesda literatura que se que se levantoua meio; deu a Cândido a honra de um sorriso
sustentam de lama e de veneno; é um foliculário."' "E que vem gracioso, e a Maninho a de uma inclinação de cabeça inteira-
a ser um foliculário?"indagouCândida. "É um homemque mentenobre; mandoudar uma cadeirae um l)aralho a Cândído,
faz falhas, disseo abade,um Fréron243." que perdeu cinqüenta mil francos em .dois cortes; depois disto,
Í cearam com muita satisfação, e todos admiravam que Cândida
Era assim que Cândida, Maninho e o perigordino discordam não tivesse o mínimo abalo pela sua perda. Os lacaios
na escada,vendosair o povo ao findar a peça. "Apesar de estar diziam entre si, na sua linguagem de lacaios: "Sem dúvida é
algum milorde inglês.
(242) .4drien?ze l,ecouorear, que estreou na Comédie-Française
no papel de Monime, morreu em IPSO e seu corpo não teve sepultura
eclesiástica. (244) O self-ef-ie-ucz setuplicava a parada; dobrava-se a carta
(243) A peça que fêz Cândido chorar é o Tancrêde de Voltaire para aviso de que não se jogava senãoo que se tinha ganhocom
(3 de setembrode 1760) que, segundoo autor, alcançouum êxito essacarta; chamava-seo lance de camPag7ze quando o jogador o fazia
de lágrimase assegurouo triunfo 'de Mlle. Clairon. Fréron ator- antesque tivesserecebidoa sua carta (no escuro), como se já tives-
mentaraVoltaire em numerososartigosde .d?znéeZzlfférai
e.,; a carta se ganho: .a trapaça consistia,pois, em jogar uma soma que não
6 do tomo VI era bastante dura para 7cz7zcrêde. fará ganha.
CÂNDIDO OU O OTIMISMO 221
220 ROMANCES E CONTOS

no número dos bons escritores. Há muito poucas tragédias boas;


A ceia foi como a maior parte das ceias de Paria; a princí- umassão idílios em diálogosbem escritos e bem rimados; outras,
pio silêncio,em seguidauma bulha de palavrasque não se.dE- um arrazoado político que faz adormecer, ou então amplificações
tinguem, depois gracejos na maior parte insípidos, boatos falsos,
raciocínios erróneos, um pouco de política, e muita maledicência; que enfastiam; outras, ainda, sonhos de energúmenosem estilo
bárbaro, tiradas interrompidas,longas apóstrofesaos deusespor'
falou-se até mesmo de livros. novos.' "Já .viram, perguntou o aba: que não sabem falar aos homens, máximas falsas, lugares-comuns
de perigordino o romance de Gauchat,doutor.emteologia245?" empolados.
"já, respondeuum dos convivas, mas não pude acaba-lo: temos
já uma boa porção de escritos impertinentes, mas todos êles jun- Cândido ouviu êste discurso com atenção e ficou com uma
tos não são capazesde se aproximarda impertinência
.qe.Gau grande idéia do discursador; e, como a marquesa tivera o cuidado
chat, doutor em teologia; estou .tão farto desta. imensidade de de o colocar ao pé de si, êle chegou-se-lhe
ao ouvido e tomou a
livros detestáveis
que nos inundam,que preferi dedicar-mea liberdadede Ihe perguntar quem era aquêlehomemque falava
apontar à banca." "E ]l/ísceZârzea do. arcediago T. . . 246, que tão bem. "É um sábio, dissea da3na,que não joga, mas que o
me dizem dessa obra?" perguntou o abade. "Ah! respondeu a abade me traz algumas vêzes para cear; é muito entendido em
senhora de Parolignac, que criatura tão fastidiosa!. O modo. que tragédiase em livros,fêz uma tragédiaque foi apupadae um
êle"tem de nos contar, 'como se fôsse uma grande curiosidade, livro do qual saiu para fora da loja do editor só um exemplar',
aquilo que tôda a gente sabe! Como. discute pesadamente o a mim dedicado." "Que grandehomemldisseCândido,é ou-
que nao merece nem uma ?bservação li$eiral .Como :e apro' tro Pangloss." Então, voltando-separa êle,disse-lhe: "Meu caro
peia sem espírito do espírito dos outros! Como estraga tudo quan- senhor, naturalmentea sua opinião é que tudo está pelo melhor
to rouba! 'Que aborrecimentome dá! Mas não tornará a.aboli; no mundo físico e no moral, e que nada podia ser de outro mo-
reger.me; já é demais ter lido algumaspáginas do arcediago. do?" "Eu? senhor, respondeuIhe o sábio, não penso nada disso:
Havia à mesa um homemsábio e de gôsto, que apoiou o que acho que tudo anda torto neste mundo: que ninguémsabe nem
a marquesa dissera. Em seguida, falou-se de tragédias; a marque- qual é a sua classe, nem qual é a sua obl'igação, nem o que faz,
sa perguntou por que havia tragédias.que se repres'ntavam algu- nem o que deve fazer, e que, excetuando a ceia, que é bastante
mas vêzes e que não se podem ler. O homem de .gasto explicou alegree onde parecehaver bastanteunião, todo o lesto do tempo
muito bem como é que uma peça podia ter algum.interessee não se passa em discussões impertinentes : jansenistas contra molinistas,
ter quase nenhum mérito; prov?u em poucas palavras que não homens do parlamento contra homens da Igreja, homens de le-
era suficientepreparar uma ou duas dessassituaçõesque se en- tras contra homens de letras, cortesãos contra cortesãos, finan-
contram em todos os romances, e que seduzelb sempre os especta- ceiros contra o povo, mulheres contra maridos, parentes contra
dores; mas que é preciso ser novo, .sem ser excêntrico, muitas parentes: é uma guerra eterna." Cândida replicou-lhe: "Eu vi
vezes sublime e sempre natural; conhecer o coração. humano e pior; mas um sábio, que depoisteve a desgraçade ser enfor-
faze-lofalar; ser grande poeta sem que jamais nenhum.per?o' cado, ensinou-meque tudo isto ia às mil maravilhas;são as
nagemda peça pareça poeta; saber.perfeitamente ,a própria lín- sombras de um belo quadro.'' "0 seu enforcadó zombava do
gua, fala-la com pureza, com.uma.harmonia contínua, sem que mundo, disse Maninho; as suas sombras são manchas horríveis."
a rima jamais requeira o sacrifício do sentido. "Tâd? pessoaque, "São os homensque fazemas manchas,disseCândido, e não po-
acrescentou êle, não observar tôdas estas regras, pode fazer uma dem dispensa-las." "A culpa não é dêles," di-sseManinho. A
ou duas tragédias aplaudidas no teatro, mas nunca será contada maior parte dos pontos, que não entendia nada do que se estava
dizendo,bebia; e Nlartinhodiscorreucom o sábio, e Cândida

'=8q' ãU X HH!.nl:l
contou uma parte das suas aventuras à dona da casa.

:%!:l:lã1:
(1759-60), que na realidadeé um romancedo abade Guyon.
Depois da ceia, a marquesa conduziu Cândido ao seu gabinete
e fê-lo sentar num canapé. "Então, perguntou-lhe, continua ainda
a amar perdidamente a tal senhorita Cunegundes de Thunder-ten-
(246) O abade Trublet (.1697-1770) .que, . entre outras criticas -tronckh?'' "Sim, minha senhora", respondeu Cândida. A mar-
feitasa Voltaire, disseraque a #elzr ade o fazia bocejar.
222 ROMANCES E CONTOS CÂNDIDO OU O OTIMISA{O 223

queda replicou-lhe, com meigo sorriso: "Responde-me como O abade escutava com atenção e parecia uin tanto cismado;
um rapaz da Vestfália; um francês dir-me-ia: "É verdade que dali a pouco, despediu-sedos dois estrangeiros,depoisde os ter
amei Cunegundes; mas depois de a ter visto, minha senhora, receio l afetuosamente
abraçado. No dia seguinte,
Cândidorecebeuao
muito não a amar jamais." "Ah, minhasenhora, disse Cândi- acordar uma carta concebida nestes têrmos:
da, respondereicomo quiser." ''A sua paixão por ela, disse "Senhor, meu muito querido amante, há oito dias que estou
a marquesa, principiou por Ihe apanhar o lenço; eu quero que doentenestacidade; sei que estais aqui, voaria aos vossosbra-
apanhe a minha liga." "Com todo o prazer", disse Cândido; e ços se me pudessemexer: tive notícias da vossa passagemem Bor-
apanhou-a. "Mas quero que ma ponha outra vez", disse a dama; déis; deixei lá o fiel Cacamboe a velha, que devemem breve
e Cândida obedeceu. "Vê, disse-lhe ela, o senhor é estrangeiro; vir ter comigo. O governador de Buenos Abres tirou-me tudo, mas
eu faço algumasvêzesesperaros meus amantesde Paras quin- resta-me o vosso coração. Vinde; vossa presença restituir-me-á
ze dias e entrego-meao senhor logo à primeira noite, por enten- a vida,ou matar-me-áde prazer.
der que devo fazer as honras do meu país a um cavalheiro da Esta carta encantadora, esta carta inesperada, transportou
Vestfália." A formosa dama, tendo reparado nos dois enormes Cândido a uma alegria inexprimível; e a doença da sua querida
diamantes que o maço estrangeiro trazia nos dedos, gabou-os Cunegundes acabrunhou-o de dor. Dividido entre êstes dois sen-
de tão boa fé, que das mãos de Cândido passaram para os dedos
timentos, pega no seu ouro e nos seus diamantes, e faz-se con-
da marquesa. duzir com Maninho à hospedariaonde Cunegundesmorava; en-
Cândido,retirando-secom o seu abadeperigordino,sentiu tra, trêmulo de comoção, com o coração palpitante, com a voz em-
alguns remorsos de ter cometido uma infidelidade a Cunegundes. bargada; vai para abrir os cortinadosdo leito, e pede luz. "Deus
O abade acompanhou-o no seu pesar: não iria receber senão o livre de tal, díz-lhea criada, a luz mata-a", e com tôda a pressa
uma pequena parte dos cinqüenta mil francos perdidos no jogo tornaa fecharas cortinas. "Minha queridaCunegundes,
disse
por Cândido e do valor dos dois brilhantes,meio dados,meio Cândido chorando, como estais? Se não me podeis ver, falai-me
extorquidos: o seu intento era aproveitar, tanto quanto pudesse, ao menos!" "Não pode falar", disse a criada. A dama estende
as vantagensque o conhecimento de Cândida Ihe podia propor- então fora do leito uma bem torneada mão, que Cândido rega
cionar. Falou-lhemuito de Cunegundes; e Cândida disse-lheque muito tempo com as suas lágrimas, e que enche em seguida de
havia de pedir muitos perdões a esta bela, da sua infidelidade, diamantes,deixandoem cima de uma poltronaum saco cheio
quando a visse em Veneza. de ouro.
O perigordino redobrava de gentilezas e atenções, e tomou No meio de seustransportes,chegaum oficial de polícia se-
um interêssecarinhosopor tudo o que Cândida dizia, por tudo guido pelo abade perigordino e por uma escolta. "São estes,
o que ê[efazia, por tudo o que queriafazer.] "Com que então, disse êle, os tais dois estrangeiros suspeitos?" O oficial manda-os
perguntou-lhe, o senhor tem uma entrevista marcada em Veneza?" agarrar imediatamente,e ordena aos seus soldados que os me-
"Sim, senhor abade, disse Cândido; é preciso absolutamenteque tam na prisão. "Não é dêste modo que tratam os estrangeiros
eu me vá encontrarcom Cunegundes." Então, arrastadopelo no Eldorado", disse Cândido. "Cada vez estoumais maniqueu",
prazer de falar do objeLoque amava, contou, segundoo seu disse Maninho. "Mas, senhores, para onde nos levam?" pergun-
costume,uma parte das suas aventuras com aquela ilustre vest- tou Cândida. "Para um fundo de calab-ouço",disse o oficial.
falíana. Maninho, readquirindo a êste tempo o seu sangue frio, jul.
gou que a dama que pretendia ser Cunegundes era uma ladra, que
"Creio, disse o abade, que a senhorita Cunegundes tem muito
espírito, e que escreve cartas deliciosas." "Nunca recebi nenhu o abade perigordino era um cavaleiro de indústria que tinha
abusado velhacamenteda inocência de Cândido, e que o oficial
ma, disse Cândido; porque, imagine o senhor, tendo sido expulso
do castelopor amor a ela, não pudeescrever-lhe;poucodepois, de polícia era um outro maroto de quem se podiam desembaraçar
fàcilmente.
soube que tinha morrido, em seguida tornei a acha-la, tornei a
perda-la, e por fim enviei-lhe, a duas mil e quinhentas léguas da- Não desejando expor-se às demoras de um processo judicial,
qui, um mensageiro de quem espero a resposta. Cândido, esclarecidopelo seu conselho, e além disso sempre im-
224 ROMANCES E CONTOS CÂNDIDA OU O OTIMISMO 225

pacientepor tornara ver a verdadeiraCunegundes,


ofereceao
oficial três diamantes pequenos do valor de umas três mil pistolas CAPÍTULO VIGÉSIMO-TERCEIRO
cada um. ''Ah! meu caro senhor,disse-lheo homemdo bas-
tão de marfim, ainda que o senhor tivessecometidotodos os CÂNDIDO E MORTINHO CHEGAM ÀS COSTAS DA
crimesimagináveis,é para mim o homemmais honrado dêstemun- INGLATERRA; O QUE ELES VEEM: ALI
do; três diamantes,cada um do valor de três mil pistolasl Ago-
ra, meu caro senhor, era capaz de me deixar matar por sua causa, "Ahl Pangloss! Pangloss! Ah.! Maninho, Maninho! Ahl
de preferência a conduzi-lo para um cárcere: estão prendendo minha querida Cunegundes! Que é êste mundo?" dizia Cândido,
todosos estrangeiros,
mas isto fica por mifihaconta: tenhoum no navio holandês. É uma coisa bastantetala e bastanteabo.
irmão em Dieppe, na Normandia; acompanha-lo-eiaté lá; e se o minável", respondia Maninho. "Conhece a Inglaterra; acaso os
senhor tiver algunsdiamantespara Ihe dar, creia que tomará homens são lá tão doidos como na Franca?" "É outra espécie
cuidado da sua pessoa como eu próprio." "E por que se pren- de doidice, respondeManinho; sabe que estas duas nações estão
dem todos os estrangeiros?" perguntou Cândida. O abade peri- em guerra por causa de algumasBeirasde neve próximo do Ca-
gordino tomou então a palavra e disse: "É porque um miserável nadá, e que despendem
para o custeiodessaboa guerramuito
do país de Atrebácia247ouviu dizer asneiras; só isso o levou mais do que o valor de todo o Canadá? Dizer-lhe,precisamente,
a cometerum parricídio, não como o de 1610 no mês de maio, se há mais genteque precisa ir para o hospitaldos doidos num
mas com o de 1594 no mês de dezembro,e como muitos outros, país que no outro, é ponto até onde as minhas fracas luzes não
cometidos em outros anos e em outros meses, por outros miserá- me permitemchegar; o que sei ùnicamenteé que em geral a gente
veis que tinham ouvido dizer asneiras." que vamos ver é muito atrabiliária."
O oficial explicou então do que é que se tratava. "Ah! que Conversando assim, chegaram a Portsmouth; uma grande
monstros,exclamouCândido; quê! Horrores tais num povo que multidão cobria a praia, e olhava atentamente para um homem
dança e que canta! Não me será possível sair quanto antes dêste bastante corpulento, de joelhos, com os olhos vendados, na tolda
país, onde macacos assanhamtigres? Vi ursos no meu país, ho- de um dos navios da esquadra; quatro soldados postadosem
mens não vi senão no Eldorado. Em nome de Deus, senhor ofi- frente dêste homem Ihe dispararam cada um três balas no crânio,
cial, conduza-me a Veneza onde tenho de ir esperar minha Cune- o mais tranquilamente que se possa imaginar; e toda a assem-
gundes." "SÓ posso conduzi-lo até à baixa No1'mandia", disse o bléía se retirou extremamentesatisfeita248. "Que vem a ser tudo
cÀe/edos esbirros. Imediatamente Ihe faz tirar os ferros, diz que isto? perguntou Cândido, e que demónioé o que exercepor toda
se enganou, despedea escolta, conduz a Dieppe Cândida e Ma- parte o seu império?'' Perguntou quem era aquêle ho.memcorpu'
ninho,e deixa-osnas mãos de seu irmão. No parto estava anco- lento que assim fera morto com aquela cerimónia. "É um
rado um pequenonavio holandês. O normando,com a'ajuda almirante", responderam-lhe. "E então, por que mataram êsse
de outros três diamantes,tornou-se o mais serviçal de todos os almil'ante?" "Foi, responderam-lhe, por não ter mandado matar
homens e embarcou o bom Cândida e a sua companhia no navio bastantegente;deu combatea um almirantefrancês,e verifi-
que ia fazer-sede vela para Portsmouth,na Inglaterra. Não cou-se que não estava bastante perto dêle." "Mas, disse Cândida,
era o caminhode Veneza; mas Cândidoimaginava-selivre do o almirante francês estava tão longe do almirante inglês como
inferno, e contava retomar o caminho de Veneza na primeira êste estava dêle?" "Isso é incontestável, replicaram-lhe; mas neste
ocasião.
país é bom matar de temposa temposum almirante,para ani-
mar os outros.''
(247) Alusãoao atentadode Damiens(5 de janeirode 1757). (248) Trata-se da execução do almirante inglês Byng, fuzilado
Damiensnasceraem Arras, no Artois. No día 14 de maio de 1610.
Ravaillac assassinara Henrique IV; no dia 27 de dezembro de 1594 no dia 14 de março de 1757. Byng fará derrotado pelo almirante
Jean Châte!, ex-aluno dos jesuítas, o tinha apenas ferido, como Da- francês La Galissonniêre,em águas da Minorca: parece que fará
miens ferira Luís XV. Voltaire atribui todos êsses atentados ao fada. acusadode não ter empenhadoseu navio no combate. Voltaire con-
tismo siderava esta execução uma injustiça, devida às maquinações da polí-
tica
226 ]tOMANCES E CONTOS CÂNDIDO OU O OTINIISMO 227

Cândido ficou tão atordoado e tão impressionado com o fava de Ihe provar que havia pouca virtude e pouca felicidade
que via e com o que ouvia, que nem ao menos quis por pe em na terra, excetono Eldorado, aonde ninguémpodia ir.
terra, e contratou o capitão holandês (ainda que êle pudesse rou- Discorrendo sôbre esta matéria importante, e esperando
ba-lo como o de Surinã) para o conduzir sem demora a Veneza. Cunegundes,
Cândidaavistouum jovem teatinona praça de S.
O capitão estava pronto no fim de dois dias. Navegaram Marcos, de braço dado com uma mulher de má vida. O teatino
ao longo da costada Franca,passaramà vista de Lisboa, e parecia fresco, rubicundo, vigoroso; tinha os olhos brilhantes,
Cândida teve arrepios. Entraram no estreito e no Mediterrâneo; um ar decidido, cabeça erguida e andar firme. A mulher era
enfim chegaram a Veneza. "Louvado seja Deus! disse Cândida muito b-onitae cantava; olhava amorosamentepara o seu teati-
abraçando Maninho, é aqui que hei de tornar a ver a minha no, e de vez em quandobeliscava-lheas gordas bochechas. "Ao
formosa Cunegundes. Tenho confiança em Cacambo como em menos, há de concordar, disse Cândida a Maninho, que aquê-
mim mesmo. Tudo está bem, tudo vai bem, tudo vai da melhor les dois são felizes. Não encontreiaté agora, em toda a terra
forma possível.
9

habitável, excetono Eldorado, senão desgraçados; mas pelo que


diz respeito àquela rapariga e àquele teatino, ia apostar que são
criaturas muito felizes." "Eu aposto que não", disse Maninho.
"Isso já se fica sabendo, convidando-os para jantar, disse Cân-
CAPÍTULO vicúsimo-QUAKro dido, e verá se me engano.
DE PAQUETE E DE FREI GIROFLEU Imediatamente dirige-se até êles, cumprimenta-os e convida-os
para o acompanharemà sua hospedaria, para comeremmacarrões,
perdizes da Lombardia, ovos de esturjão e para beberem vinho
Logo que chegoua Veneza, mandouprocurar Cacamb-oem de Montepulciano,Lagrima-Christi, Chipre e Samos. A rapariga
todasas hospedarias,em todos os cafés, em casa de todas as corou, o teatino aceitou o convite, e aquela seguiu-o então olhando
mulheres públicas, e não o achou; mandava todos os dias saber para Cândido com olhares de surprêsa e de confusão, que foram
de todas as galeras e barcas; não havia notícias cle Cacambo. obscurecidos
por algumaslágrimas. Apenasentrouno quartode
"Que Ihe pareceisto? dizia êle a Maninho; tive tempo de passar Cândido, disse-lhe: "Então, senhor Cândido, não se recorda já
de Surínã para Bordéus, de ir de Bordéus a Paria, de Paria a de Paqueta?" A estas palavras, Cândido, que não a tinha consi-
Dieppe, de Dieppe a Portsmouth, de custear Portuga] e ]:spanha, derado até aí com atenção, porque só pensava em Cunegundes,
de atravessartodo o Mediterrâneo,de passar alguílsmesesem disse-lhe: "Minha pobre pequenas com que entãofoste.tu que
Vçneza, e a formosa Cunegundes não chegou! Não encontrei, em pusesteo doutor Panglossno belo estadoem que o vi?" "É
lugar dela, senão uma ladra e um abade perígordino! Não há verdade, senhor, fui eu mesma, disse Paqueta; já vejo que está
dúvida que Cunegundesmorreu; o que me resta é morrer também. ciente de tudo; contaram-me as espantosas desgraças sucedidas
Ahl valia muito mais ter ficado no paraíso do Eldorado, que a tôda a casa da senhora baronesa e à formosa Cunegundes; juro-
voltar para esta maldita Europa! Tem muita razão, meu caro Ihe que o meu destinonão foi menostriste. Eu era muito ino-
Maninho, tudo quanto há é ilusão e calamidade." Caiu em negra cente quando o senhor me conheceu. Um franciscano, que era
melancolia, e não tomou qualquer parte na ópera aZh moda, nêm meu confessor, seduziu-me com toda a facilidade. As conseqüên-
nos outros divertimentosdo Carnaval; nenhumadama Ihe causou cias foram horríveis; fui obrigada a sair do castelo algum tempo
a mínima tentação. Maninho disse-lhe: "0 senhor é bem ingê- depoisde o senhorbarão o ter pastofora, ao senhor,com uns
nuo, na verdade, quando imagina que um criado mestiço, com pontapés. Se um famoso médiconão se tivessecompadecidodo
cinco ou seis milhões nas algibeiras,não teTlhamais o que fazer mim, eu teria morrido. Fui durante algumtempo, por gratidão,
do que ir procurar a sua amante ao fim do mundo e trazer-lha amante dêsse médico. A mulher dêle, que era ciumenta como
a Veneza. Se a encontrar, ficará com ela. Se não a encontrar, uma fera, dava-me todos os dias uma sova sem dó nem piedade;
tomaráoutra; aconselho-o
a que se esqueçado seu criado Ca- era uma fúria. Não podia haver homem mais feio que o médico e
camboe da sua amanteCunegundes." Maninho não era conso- eu era a mais infeliz de todas as criaturas, agüentando sovas todos
lador. A melancoliade Cândido aumentou,e Maninho não ces- os dias por causa de um homemque eu não amava. O senhor
228 1{0MANCES E CONTOS CÂNDIDA OU O OTIMIShIO 229

sabe como é perigoso para uma mulher rabujenta ser casada com "Dou-lhe a minha palavra de honra, disse frei Girofleu, que
um médico; êste,enfastiadocom as impertinênciasda mulher, a minha maior satisfação era que todos os teatinos estivessem
deu-lhe um dia, para a tratar de um pequeno defluxo, um remé-
\
no fundo do mar. Tenho tido cem vêzes tentaçõesde deitar toga
dio tão eficaz, que ela morreu dos efeitos,duas horas depois, em ao convento, e de ir fazer-me turco. Meus pais obrigaram-me,
convulsões horríveis. Os parentes da senhora íntentaram contra quando eu tinha quinze anos, a envergar êste detestávelhábito,
o marido um processocriminal; êle fugiu e eu fui metida numa para deixar mais riqueza para um maldito irmão mais velho,
prisão. A minha inocência não me teria salvo, se eu não fosse um que Deus o confunda! No convento moram a raiva, o ciúme, a
poucobonita. O juiz soltou-me,com a condiçãode ser êle quem discórdia. É verdade que preguei alguns maus sermões que me
sucedesse ao médico. Fui, dentro em pouco, suplantada por uma valeram algum dinheiro, metade do qual me foi roubado pelo
rival, expulsasem recompensa,e obrigada a continuar esta pro- prior; o resto serve-mepara gastar com raparigas destas; mas
fissão abominável, que aos homens parece tão divertida e que quando à noite entro no mosteiro, a minha vontade é despedaçar
para nós não é senãoum abismode misérias. Fui exercermi- a cabeçade encontroàs paredesdo dormitório; e todosos meus
confrades estão no mesmo caso.
nha profissão em Veneza. Ah! senhor, se pudesse imaginar o
que é ser obrigada a afagar indiferentemente
um velho comer- Maninho voltou-separa Cândida com o seu sangue frio habi-
ciante,um advogado,um frade,um gondoleiro,um abade; estar tual: "Então, disse-lhe êle, não ganhei toda a aposta?'' Cândida
exposta a todos os insultos, a todas as humilhações; ser muitas deu duas mil piastras a Paqueta e mil piastras a frei Girofleu.
vêzes reduzida a pedir uma saia emprestadapara ir deixar que a "Afirmo-lhe, disse êle, que com isto já os faço felizes." "Não acre-
levante um homem repelente; ser roubada por um, daquilo que dito em semelhantecoisa, disse Maninho ; talvez que com essaspias-
se ganhou com outro; ser multada pelos beleguins da justiça, e tras os torne muito mais desgraçadosainda." "Há de ser o que
não ter em perspectivasenão uma velhice horrorosa, um hospi- tiver de ser, disse Cândida; mas uma coisa me consola,e é ver
tal e uma esterqueira-- havia de concluir que sou uma das cria- que se tornam a encontrar muitas vêzes as pessoas que imaginá-
turas mais infelizes do mundo.}'9 vamos nunca mais tornar a achar; e assim pode muito bem suce-
Paqueta abria assim o seu coração ao bom Cândido, num der que, tendo encontrado o meu carneiro vermelho e Paqueta, eu
reservado,em presençade Maninho, que dizia a Cândido: "Já também encontre Cunegundes." "Desejo, disse Maninho, que
vê que ganhei metade da apostam" ela algum dia faça a sua felicidade; mas duvido muito." "0 se-
nhor é bem empedernido", disse Cândida. "É que já vivi muito",
Frei Girofleu tinha ficado na sala de jantar, bebendoum respondeu Maninho.
gole enquanto o jantar não vinha. "Mas, disse Cândido a Pa-
qubta, tu tinhas o ar tão alegre, tão satisfeito, quando te encon- "Olhe para aquêlesgondoleiros,disse Cândida; não os ouve
trei; cantavas, afagavam o teatino com uma comp]acência natural ;
cantar sem descanso?" "0 senhor não os vê nas suas casas, com
parecesse-metão feliz quanto agora te dizes desgraçada." "Ah! as mulheres
e comos filhos,observouManinho. O dogetemos
seus pesares, os gondoleíros têm os dêles. A verdade é que, pen-
meu senhor, respondeuPaqueta, é essa ainda uma outra miséria
da profissão. Ontemfui roubadae espancadapor um oficial e sando bem nas circunstânciastodas, a sorte de um gondoleiroé
hoje é preciso que eu pareça estar de bom humor para ser agra- preferívelà de um doge; mas creio que a diferençaé tão me-
dável a um frade."' díocre, que não vale a pena seT examinada." "Fala-se, disse
Cândido, do senador Pococurante 249, que reside naquele belo palá-
Cândidonão quis saber mais; confessouque Maninho ti- cio à beira do Brenha, e que recebe muito bem os estrangeiros.
nha razão. Sentaram-se à mesa com Paqueta e o teatino; o Diz-se que é um homem que nunca teve um pesar." "Gostava de
jantar foi b:astante animado e por fim já se falava com uma ver uma espécietão rara", disse Maninho. Cândido imediata-
certa confiança. "Meu padre, disse Cândida ao frade, parece-me mente mandou pedir ao senhor Pococurante licença para ir visi-
que o senhor goza de uma sorte que toda gentedeve invejar; ta-lo no dia seguinte.
brilha no seu rosto a flor da saúde, a sua fisionomia anuncia
felicidade; tem uma bonita rapariga para distrair-se,e parece
(249) Em italiano: qae 7zãoie preocupa
que está contente com o seu estado de teatino".
230 ROMANCES E CONTOS CÂNDIDO OU O OTIMISMO 231

são feitas só para nelas se encaixarem, sem propósito nenhum,


CAPÍTULO ViCÜsiwo-QUINTO duas ou três canções ridículas, destinadasa mostrar a larga da
gargantade uma atroz; quem quiser ou quem puder: que.babe
VISITA AO SENHOR POCOCURANTE,NOBRE VENEZIANO de gozo vendo um castrado a cantarolar, passeando desajeitada-
mente pelo palco, o papel de César ou de Catão; eu, por mim,
Cândida e Maninho navegaram de gôndola pelo Brenha e che- há muito que renunciei a êssespobres espetáculosque fazem hoje?
garam ao palácio do nobre Pococurante. Os jardins eram extensos a glória da Itália, e que os soberanos pagam a .pêso de ouro."
e ornadosde estátuasde mármore; o palácio, de bonita arquite- Cândida discutiu o assunto um pouco, mas com discrição. Mar.
tura. O dano da casa, homemde sessentaanos, muito rico, rece- linho estava inteiramente dc acordo com o senador.
beu cortêsmente os dois curiosos,mas sem nenhumacordiali- Puseram-se à mesa e, após um excelente jantar, passaram à
dade, o que desconcertouCândido, mas não desagradounada a biblioteca. Cândida, vendo um Homero 250 magnificamente en-
Maninho. cadernado, elogiou o ilustríssimo senador pelo seu bom gasto.
Primeiro, duas bonitas maças, muito bem postas, serviram "Eis aí, disse êle, um livro que faria as delícias do grande Pan-
chocolate,que fizeram espumar muito bem. Cândida não pede gloss, o melhor filósofo da Alemanha." "Não faz as minhas,
deixar de elogiar-lhesa beleza,a graça e a habilidade. "Boas cria- disse friamentePococurante; fizeram-meacreditar outrora que,
turas, disse o senador Pococurante; de vez em quando levo-as lendo-o, sentia prazer; mas essa repetição contínua de com
para minha cama; porque estou farto das damas da cidade, com bates que se parecem todos uns com os outros, êsses deuses
a sua vaidade, os seus ciúmes, suas briguinhas, suas zangas, suas que tanto se agitam sem nada fazer de decisivo, essa melena
mesquinharias,seu orgulho, sua tolice, e mais os sonetosque que é a causa da guerra e que mal chega a ser uma atroz da peça;
é preciso fazer ou encomendar para elas; mas
7
afinal também essa Tróia que se assedia,mas que não se conquista: tudo isso
essas maças começam a aborrecer-me bastante. me causava um tédio mortal. Perguntei algumas vêzes a homens
Cândida, depois do almoço, passeandopor uma longa galeria, eruditos se êles se aborreciam tanto quanto eu com essa leitura:
ficou surpreendidocom a beleza dos quadros. Perguntou de que todos os que foram sinceros confessaram ser o livro insuportável,
mestreeram os dois primeiros. "São de Rafael, disse o sana: mas que era preciso tê-lo na biblioteca por ser um monumento
dor; por simples vaidade comprei-os caríssimos há alguns anos; da antiguidade, como essas moedas enferrujadas que já não cir-
dizem que é o que há de mais belo na Itália, mas a mim não culam mais." "Vossa Excelência decerto não pensa do mesmo
me agradamnada: a câr dêlesé muito sombria, os rostos não modo acêrca de Virgílio?" disse Cândida. "Concedo, disse Po-
são suficientemente arredondados e não sobressaem; os vestuá- cocurante, que o segundo, o quarto e o sexto livros da sua Empa
rios não parecem de pano; em uma palavra, apesar do que dizem, são excelentes;mas quanto ao pío Envias, o forte Cloante,o ami-
não vejo nêlesuma imitaçãoverdadeirada natureza. SÓ gosto gável Abates, o pequenoAscânio, o imbecil do reí L?tino, a.bur-
de um quadro quando penso ver nêle a própria natureza: ora, guesa Amata, a insípida Lavínia -- nada mais frio e desagradável.
não existem quadros assim. Possuo muitos, mas já nem os olho." Gosto mais }'s
do Tanso e dos contos de Ariosto, que nos fazem dor-
Pococurante, enquanto esperava o jantar, mandou que se desse mir em pe.
um concêrto. Cândida achou deliciosa a música. "Êsse baru- "Ousarei perguntar-lhe, disse Cândido, se o senhor não expe-
lho, disse Pococurante, pode dever-tiruma meia hora; mas pro' rimenta um grande prazer com a leitura de Horário?" "Há máxi-
longando-se, acaba por fatigar todo o mundo, ainda que ninguém mas, disse Pococurante,das quais um homemde sociedadepode
ouse confessa-lo. A música atualmentenão passa da arte de exe- tirar proveito e que, por estarem encerradas em versos fortes, gra-
cutar coisas difíceis, e o que só tem o mérito de ser difícil afinal
não pode agradar.
(250) Estas opiniões sabre Homero, Virgílio, Tas:o, são open.as
"Gostaria mais da ópera, talvez, se não tivessem desco- a repetiçãodas do Êsse sur la pois e éPiqae (1728). Por outro.lado:
berto o segrêdo de fazer dela um monstro que me revolta. Quem CÂxnioo reabilita Ariosto, que Voltaire não apreciava na sua juven-
quiser que vá ver más tragédiasem música,em que as cenas tude, e agrava a condenaçãodo Paraíso Perdido de Milton.
232 ROMANCES E CONTOS CÀNDIDO OU O OTIMISMO 233

vam-semais fàcilmentena memória; mas muito pouco se me dá a Itália só se escreveo contrário do que se pensa. Os que habi-
da sua viagema Brindese da descriçãoque faz de um mau tam na pátria dos Casares e dos Antoninos não ousam ter uma
jantar, e da querela de mariolas entre um certo Pupilo 251, cujas idéia sem a permissão dos jacobinos. Estaria contentecom a li-
palavras, segundo êle diz, eram cheias de pas, e um outro cujas á berdade que inspira os gênios inglêses se a paixão e o espírito
palavras eram uilzagre. . . Li com extrema repugnância seus gros- partidário não corrompessemtudo que essa preciosa liberdade
seiros versos contra velhas e feiticeiras 252; e não vejo que mérito tem de estimável."
pode haver em dizer ao seu amigo Mecenas que, se êste houver
Cândida, vendo um Milton, perguntou-lhe se não conside-
por bem coloca-lo na categoria dos poetas líricos, atingirá os
astros com a sua fronte sublime 253. Os tolos tudo admiram num rava êsse autor um grande homem. "Quem? disse Pococurante,
autor de fama. Eu só leio para mím. E gosto só do que me é êsse bárbaro que faz um longo comentáriodo primeiro capitula
do Gênese em dez livros de versos ásperos? Ê:lse grosseira imi-
útil." Cândido,que fará educadode alado a nada julgar
por si mesmo, estava muito admirado do que ouvia; Maninho tador dos gregos que desfiguraa criação pois, enquantoMoísés
achava muito razoável a maneira de pensar de Pococurante. representao Ser Supremo criando o mundo pelo poder da sua
palavra, êle imagina o Messias, pegando um grande compasso,num
"Oh! Eis aqui um Cícero, disse Cândido; quanto a êste, armário do céu, a fim de traçar a sua obra? Julga que eu pode-
pensoque o senhor não se cansa de lê-lo?" "Nunca o leio, res- ria apreciar quem estragouo inferno e o diabo do Tasco? Quem
pondeu o veneziano. Que me importa que êle tenha advogado apresentaLúcifer ora sob-o disfarcede um sapo, ora comoum
em favor de Rabírio ou de Cluêncio? Bastam-me os processos pigmeu? Quemfaz o mesmoLúcifer repisarcem vêzesos seus
que tenho de julgar; aceitaria antes sua obl'a filosófica; mas discursos? Quem o apresenta a discutir teologia? Quem, tomando
quando vi que duvidava de tudo, concluí que sabia tanto quanto a sério a invençãocómica das armas de fogo do Aríosto, apre-
êle e que, para ser ignorante,não precisavada ajuda dê nin- sentaos diabos no céu a darem tiros de canhão? Nem eu nem
guém. ninguém na Itália poderia apreciar essas tristes extravagâncias.
"Ah! Aqui estão os oitenta volumes de uma academia O casamentodo pecado e da morte e as cobras que o pecado dá
de ciências, exclamou Maninho ; talvez haja aí algo aproveitável." à luz provocam vómito a quem quer que tenha um gôsto um
"Haveria, disse Pococurante, se um só dos autores dessa mixór- pouco delicado; e a sua longa descrição de um hospital só pode
dia tivesseinventadoao menos a arte de fazer alfinêtes; mas nes- agradar a um coveiro. Êsse poema obscuro, extravagante e repe-
ses livros só há sistemas vãos, nenhuma coisa de utilidade." lente, foi desprezado logo por ocasião do seu aparecimento ; trato-o
"Quantas peças de teatro vejo ali, disse Cândido, em ita- hoje como êle foi tratado em sua pátria pelos próprios contempo-
liano, em espanhol, em francês!" "Sim, disse o senador, há três râneos. De resto, digo o que penso, e pouco me importa que os
mil, entre as quais nem três dúziasque prestem. Quanto a esta outros pensem ou não como eu." Cândida sentia-se acabrunhado
coleção de sermões, que todos juntos não valem uma página de com êsses discursos; respeitavaHomero e gostava um pouco de
Sêneca, e quanto a êsses grossos volumes de teologia, é bem de Milton. "Ail disse em voz baixa a Maninho, temo que êssehomem
ver que eu não os abro nunca, nem eu nem ninguém." tenha um soberano desprêzo pelos nossos poetas alemães." "Não
haveria um grande mal nisso", disse Maninho. "Ohl Que homem
Maninho viu umas estantescom livros inglêses. "Creio, disse, superio!! dizia ainda Cândida entre os dentes, que grande gênio
que um republicano há de apreciar a maioria dessas obras
escritas com tanta liberdade." "Sim, disse Pococurante, é belo é êssePococurante! Nada há que Ihe agrade."
poder escrever o que se pensa; é o privi]égio do homem. ]!:m toda Depois de terem assim passado em revista todos os livros,
desceramao jardim. Cândida elogiou todas as suas belezas. Nada
conheçode tão mau gasto, disse o mestre; só vejo aqui coisi-
(251) Na realidadeRuPÍZia: cf. Safiras1, Vll, v. l 'Rupili pus
atque venenuiú''; v. 32: ''halo perfusus zzcefo' nhas enfeitadas; mas amanhã mesmovou mandar plantar um
(252) Cf. EPodoJ V, Vlll, XII.
jardim de desenhomais nobre."
(253) Odes, 1, 1, v. 35-36: "Szzblim;feriam lidera z,erfic,; feri- Quando os dois curiosos se desliediramde Sua Excelência,
rei os astros com o alto da minha cabeça. Cândido disse a Maninho: "Ora bem, o senhor há de conceder
234 ROMANCES E CONTOS CÂNDIDO OU O OTIAIISMO 235

que vimos o mais feliz de todos os homens,porque está acima Cacambo, que servia bebidas a um dos estrangeiros, aproxi-
de tudo quanto possui." "Não vê, respondeu Maninho, que mou-sedo ouvido de seu senhor,no fim da refeição, e disse: "gi-
êle aborre;e tudo quanto tem? Já Platão dizia que os melhores }
re, Vossa Majestadepartirá quandoquiser; o navio estápronto."
estômagos
não são os que recusamtodos os alimentos." "Mas, Tendo dito essaspalavras, saiu. Os comensais, admirados, olha-
disse Cândido, não haverá prazer em criticar tudo, em achar de- vam uns pai'a os outros sem proferir palavra, quando um outro
feitos onde outros homens encontram beleza?" "Quer dizer, criado, aproximando-sedo seu senhor, disse: "Sire, a sege de
então, retrucou Maninho, que o prazer consiste em não ter pra- Vossa Majestadeestá em Pádua, e o barco está pronto." O
zer." "Oh! Muito bem, disse Cândido, não haverá ninguém tão senhor fêz um sinal, e o criado saiu. Todos se olharam de novo
feliz quantoeu quando encontrara minha Cunegundes." "Bom e a surprêsaredobrou. Um terceiro lacaio aproximou-sepor sua
é esperar sempre", terminou Maninho. vez de um terceiro estrangeiro e Ihe disse: "Sire, creia-me, Vossa
Entretanto corriam os dias e as semanas; Cacambo não Majestadenão deve permaneceraqui mais tempo: vou preparar
voltavae Cândidovivia tão mergulhadoem sua dor, que não tudo"; e desapareceu
logo.
percebeu que Paquete e frei Girofleu nem sequer se tinham lem- Cândida e Maitinho não duvidarammais de que se tratava
brado de vir agradecer-lhe. apenasde mascarados
do carnaval. Um quartocriadodisseao
quarto senhor: ''Vossa Majestade partirá quando quiser", e saiu
como os outros. O quinto lacaio disse as mesmas palavras ao
quinto senhor. Mas o sexto falou de modo diferente ao sexta
CAPÍTULO VIGÉSIMO-SEXTO estrangeiro,que estavaperto de Cândida; disse-lhe: "Por minha
fé, Sire, não querem mais fiar a Vossa Majestade e nem a mim
ONDESE FALA DA CEIA DE CÂNDIDOE MARTINHOCOM também, e é bem possível que venham encarcerar-nos esta noite,
SEIS ESTRANGEIROS
E QUEM ERAM ESTES tanto a Vossa Majestadecomo a mim; preciso tratar de minha
vida, adeus.
Depois que se retiraram os lacaios, os seis estrangeiros, Cân-
Uma tarde em que Cândida, seguidode Maninho, ia assen- dido e Maninho permaneceramem profundosilêncio. Foi Cân-
tar-se à mesa com os estrangeiros alojados na mesma hospedaria, dida quem o quebrou: "Senhora, disse êle, eis uma singular
um homem de rosto câr de fuligem aproximou-se por detrás e, segu- brincadeira. Por que sois reis, todos vós? Quanto a mim, con-
rando-o pelos braços, disse: "Esteja pronto para partir conosco, fesso que nem eu nem Maninho pertencemosa essa categoria."
não falte." Êle virou-se e viu Cacambo. SÓ a vista de Cunegundes
O senhor de Cacambo tomou então gravementea palavra, e
poderia admira-lo e alegra-lo mais. Estêve a ponto de enlouquecer disse em italiano: "Eu não estou brincando, chamo-me Achmet
de contente. Abraçou o seu querido amigo: "Cunegundesestá 111254; fui um grande sultão por vários anos; destroneimeu
aí, semdúvida? Onde? Leve-melogo, queromorrer de alegria irmão; meu sobrinho destronou-me; degolaram meus vízires;
em seus braços." "Cunegundesnão está aqui, disse Cacambo, termino meus dias no velho serralho; meu sobrinho, o grande
está em Constantinopla." ''Céus! Em Constantinopla! Mas que
sultão Mahmud,permite-meviajar de vez em quando, em bene-
estejana China, vâo para lá; partamos." "Depois da ceia, res- fício de minha saúde; e vim passar o carnaval em Veneza."
pondeuCacambo; agora não posso dizer mais nada; sou escravo
e meu senhor me espera; )tenho de servi-lo à mesa: não diga nada; Um jovem que se achava perto de Achmet falou depois dêste
vá cear e esteja pronto. e disse: "Chamo-me lvã 255; fui imperador de todas as Rússias;
destronaram-me
quandoainda criançade bêrço; meu pai e mi-
Cândida, com o coração repartido entre a alegria e a d03',
encantado de encontrar o seu fiel mensageiro,admirado de sabê-lo
(254) Ahmed 111 (1673-1736), deposto em 1730: êle sucedera
escravo, preocupado com a ideia de tornar a ver sua amante, em 1703a seu irmão Mustafá ll.
agitado, perturbado, sentou-seà mesa com Maninho, que acom- (255) lvã VI (1740-1764), proclamado czar em !740, derrubado
panhava de sangue frio todas essas peripécias, e com os seis estran- alguns meses depois em benefício de Elisabeth, exilado, preso em Schlus-
geiros que tinham vindo passar o carnaval em Veneza. se!burgem 1756,e mortoem 1764.
236 ROMANCES E CONTOS
r CÂNDIDO OU O OTIMISMO 237

nha mãe foram encarcerados; criaram-me na prisão; às vêzes obte- Os outros cinco reis ouviram êste discurso com nobre
nho licença para viajar acompanhadodos meus vigilantes; e vim compaixão. Cada um deu vinte sequínsao rei Teodoro,para
passar o carnaval em Veneza. l
comprarvestimentase camisas; Cândido Ihe fêz presentede um
O terceiro disse: "Sou Cardos Eduardo 256, rei da Inglaterra; diamantede dois mil sequins. "Quem é êste sujeito, um simples
meu pai cedeu-me seus direitos ao trono; combati para susten- particular,que está em condiçõesde dar, e efetivamente dá,
ta-los; arrancaram o coração a oitocentospartidários meus e cem vêzes mais do que nós?" perguntaram os cinco reis.
fustigaram-lhes
os rostos- Fui aprisionado;vou a Rama fazer No momento em que êles se retiravam da mesa, chegaram
umavisitaao rei meupai, destronado também,comoeu e meu à mesma hospedaria quatro sereníssimas altezas, que tinham tam-
avõ; e vim passar o carnaval em Veneza. bém perdido seus Estados pelas vicissitudesda guerra, e vinham
O quarto tomou então a palavra e disse: "Sou o rei dos passar o resto do carnaval em Veneza. Mas Cândida nem se
poloneses257; a sorte da guerra privou-me dos meus Estados he- quer reparou nos recém-chegados. SÓ pensavaem ir reunir-se
reditários ; meu pai experimentou os mesmos reveses; submeto-me à sua querida Cunegundes em Constantinopla.
à Providência, como o sultão Achmet, o imperador lvã, o rei
Carlos Eduardo, aos quais queira Deus concederuma longa vida;
vim passar o carnaval em Veneza.' CAPÍTULO VIGÉSIMO-SÉTIMO
O quinto disse: "Sou reí dos polonesestambém258; perdi
meu reino duas vêzes; mas a Providência deu-me outro Estado, VIAGEM DE CÂNDIDA A CONSTANTINO'PLA
no qual fiz maior soma de benefíciosdo que todos os reis dos
Sármatas juntos jamais o fizeram às margens do Vístula. Resig
no-me também à Providência e vim passar o carnaval em Veneza." O fiel Cacambo já conseguirado turco, patrão do navio que
ía reconduzir o sultão Achmet a Constantinopla, que recebesse
Faltava só o sextcP monarca. "Senhores, disse êle, não sou,
Cândido e Maninho a bordo. Ambos se dirigiram ao barco de-
como vós, de tão alta estirpe; mas enfim eu tambémfui rei como pois de se terem prosternadoperante sua miserável Alteza. De
qualquer outro. Sou Teodoro 259; fui eleito rei da Córsega; ?ha- caminho, Cândido dizia a Maninho: "Eis aíl Seis reis destro.
maram-mePossa ]l/ajes&ade;agora mal me tratam de senhor. nados com os quais acabamos de cear! E entre êles, um a quem
Cunhei moeda e não tenho um real; tive dois secretários de Es-
eu mesmo dei esmola. Talvez haja outros príncipes ainda mais
tado, e agora só tenhcpum criado; senteimenum trono e de- infortunados. Quantoa mim, só perdi cem carneiros;e corro
pois, por muito tempo, numa prisão de Londres, dorm! sôbre ao encontrode Cunegundes. Caro Maninho, ainda uma vez,
palha.' Receio que me tratem aqui do mesmo modo, ainda que, Pangloss tinha razão, tudo vai bem." "Assim seja", disse Ma-
êrmo Vossas Majestades,tenha vindo passar o carnaval em ninho. "Mas é sem dúvida inverossímil o que nos aconteceu em
Veneza. Veneza, continuou Cândido. Nunca se viu nem se ouviu contar
que seis reis destronadosviessem cear ao mesmo tempo numa
(256) Carlos Eduardo (1720-1788),filho de Jaime Stuart e neto hospedaria.""Isto não é mais extraordinário
do que a maior
de Jaime 11: cf. Précif da s arie de LoztisXy, cap. 35. partedas coisasque nos sucederam, disseManinho. Que os
(257) Augusto 111, eleitor de Saxe e rei da Polânia, expulsopor reis sejam destronadosé corriqueiro; e quanto à honra que ti-
Fredericoem 1756: cf. Précis du síêfZede l,oziis.Xy, cap. 35.
vemos de cear com êles, é uma bagatela que não merece atenção"
(258) Estanislau Leckzinski que perdeu a Polânia (os Sármatas)
e afinal teve, como compensação,a Lorena: cf. Précis du s êcle de Loztis Mal tinha embarcado,Cândido saltou ao pescoçode seu anti-
X7, cap.4. go criado, o seu amigo Cacambo. "Então, disse, que faz Cune-
(259) Teodoro de Neuhoff, "aventureiro da baixa Alemanha. .. gundes? Continua sendo um prodígio de beleza? Ama-me sem-
pobre barão da Vestfália"; em 1736 êle foi durante oito mesesrei pre? Como vai de saúde? Sem dúvida Ihe compraste um palá-
da Córsega: "Tomaram-no por um dos maiores príncipes da terra:
foi eleito rei; cunharam-se algumas moedas de cobre no seu recanto; cio em Constantinopla?"
teve uma carte e secretários de Estado." Expulso, foi prêsa por dívidas. "Meu bom senhor, respondeu Cacambo, Cunegundes lava es-
(Préfis dt& siêcZe de Lozti; Xy, cap. 40). cudelas às margens da Propõntida, em casa de um príncipe que
238 ROMANCES E CONTOS CÂNDIDO OU O OTIMISMO 239

possui muito poucas escudelas; é escrava na casa de um antigo Cândído por um movimentonatural olhou-os com mais atenção
soberano, chamado Ragotskí 260, a quem o Grão-Turco dá três que aos outros forçados e aproximou-sedêles movido pela pie-
escudospor dia em seu asilo; mas, o que é muito mais triste é dade. Alguns maços de seus rostos desfigurados Ihe pareceram
que ela perdeu sua beleza, ficou horrivelmentefeia." ''Ah! bonita ter um pouco de semelhança com Pangloss e com aquêle infeliz
ou feia, disse Cândído, sou homemcorreio, meu dever é amá-la jesuíta, o barão, irmão de Cunegundes. Essa idéia comoveu-o,
sempre. Mas comopede ela ficar reduzidaa tão abjetacondi- entristeceu-o. Considerou-os ainda com mais atenção. "Em ver-
ção, com os cinco ou seis milhões que tinhas levado?" "Bem, disso dade, disse êle a Cacambo, se eu não tivesse visto o enforca-
Cacambo, eu não tive que dar dois milhões ao senhor Dom Fer- mento de mestre Pangloss, se eu não tivesse tido a infelicidade de
nandode lbarra y Figueiroay Mascarenhasy Lampurdosy Sousa, matar o barão, julgaria que são êles que remam nesta galera."
governadorde BuenosAbres,para ter permissãode trazer a se- Ao ouvirem o nome do barão e de Pangloss os dois força-
nhora Cunegundes? E não é .verdade que um pirata, valente- dos deram um grande grito, pararam e deixaramcair os remos.
mente, despojou-me do resto? E êsse pirata não nos levou ao O patrão precipitou-se para êles e as vergastadas redobraram.
caboMatapã,a Milo, a Nicária, a Samos,a Petra, aos Darda- "Pare, pare, senhor, gritou Cândido; pagar-lhe-eio que quiser."
nelos,ao Mármarae a Scutari? Cunegundes e a velhacriada "É Cândida!" dizia um dos forçados. "É Cândida!" repetiao
ficaram servindoem casa do príncipede quem Ihe falei e eu outro. "Sela um sonho? perguntava Cândida; estarei acordado?
sou escravo do sultão destronado." "Que série de terríveis cala- Navegaremmesmo nesta galera? Será êsse o barão que eu ma-
midades encadeadas umas às outras! disse Cândido. Mas, afinal, tei? Será mestre Pangloss mesmo, que eu vi enforcar?" "Somos
possuo ainda alguns diamantes; será fácil conseguir a liberdade nós, nós mesmos", respondiam. "Então! é êsse o grande filósofo?"
de Cunegundes. Pena é que ela tenha ficado tão feia." dizia Maninho. "Olál Caro patrão, disse Cândida, quanto quer
Depois,voltando-separa Maninho: "Que acha, qual éo pelo resgate do senhor de Thunder-ten-tronkh, um dos primeiros
mais digno de lástima: o imperador Achmet, o imperadorlvã, barões do império,e do senhorPangloss,o metafísicomaio
o rei CarlosEduardoou eu?" "Não sei, disseManinho. Seria profundo da Alemanha?" "Amaldiçoado cristão, respondeu o pa-
necessárioestar dentro dos vossos corações para sabê-lo." ''Ah! trão, visto que êsses dois cães cristãos são barões e metafísicos,
disse Cândida, se Pangloss estivesseaqui êle saberia dízê-lo." o que sem dúvida constitui grande dignidade eln suas pátrias, tu
"Não sei com que balança o seu Pangloss poderia ter pesado os me darás por êles cinqüenta mil sequins." "0 senhor os terá;
infortúniosdos homense avaliado as suas dores. Mas presumo leve-medepressaa Constantinoplae será pago imediatamente.Ah l
que há no mundo milhões de homens cem vêzesmais dignos de não, leve-meantes aolldeestá Cunegundes." À primeira oferta
lástima do que o rei Carlos Eduardo, o imperador lvã e o sultão de Cândido já o patrão aproava para a cidade e mandava remar
Achmet." "É bem possível", disse Cândida. mais depressado que uma ave fende os ares. Cândida abraçou
Em poucos dias chegaram ao canal do mar Negro. Cândido cem vêzeso barão e Pangloss. "Caro barão, como foi então
começoupor resgatarCacambopor uma soma elevadae, sem que eu não o matei? Meu caro Pangloss,como é que ainda
perda de tempo, atirou-se a uma galera com seus companhei- está vivo depois de ter sido enforcado? E por que motivo estão
ros, a fim de, pelas margens da Propântida, procurar Cunegun- ambos nas galés da Turquia?" "É então verdade que minha que-
des apesar da sua feiura. rida irmã está neste país?" perguntava o barão. "Sim", respon-
Havia entre os forçados dois que remavam muito mal; o dia Cacambo. ''Estou, pois, revendoo meu querido Cândido",
exclamava Pangloss. Cândido apresentou-lhes Maninho e Ca-
feitor iez;arzfi261 de vez em quando vergastava seus dorsos nus.
cambo. Abraçaram-se todos e falavam todos ao mesmo tempo.
A galera voava e já se encontravamno parto. Mandaram pro'
(260) Francisco Leopoldo Rakoczy (1676-1735), príncipe hún- curar um judeu a quem Cândidavendeupor cinqüentamil
garo, apoiado por Luas XIV, revoltou-secontra os austríacos e fêz-se sequins um diamante que valia cem mil, jurando o mesmo, por
eleger em 1707 rei da Transilvânia. Expulso, passou para a Polânia,
mais tarde para a França, e acaboupor ser internadona Turquia, em Abraão, que mais não podia dar. Pagou imediatamenteo res.
Rodosto, no ano de 1720. gato do barão e de Pangloss. Êste lançou-se aos pés de seu li-
(261) Chamavam-se /euanfi os soldados das galeras turcas. bertador, banhando-os de lágrimas; o outro agradeceu-lhe com
240 ROMANCES E CONTOS CÁNDIDO OU O OTIMISMO 241

um sinal de cabeçae prometeurestituir-lheo dinheirona pri- habilidade. O executordos altos feitos da Santa Inquisição, que
meira oportunidade. "Mas será mesmo possível que minha irmã era um subdiácono, tinha grande prática de queimar gente, mas
esteja na Turquia?" perguntava. "Nada é mais certo, replicou Ca- não sabialidar com a forca: a corda estavamolha;la.corria
cambo, visto que ela é quem lava a baixelana casa de um mal, e o laço ficou frouxo; enfim, eu ainda respirava; a incisão
príncipe da Transilvânia.ú Mandaram chamar imediatamente crucial fêz-mosoltar tão grande grito que o meu cirurgião caiu
dois judeus; Cândido vendeuoutros diamantes; e então torna- de costas; e, julgando que estivessea dissecar o próprio diabo,
ram a partir todos, noutra galera, para libertar Cunegundes. fugiu morrendode mêdo, e ao fugir caiu ainda na escada. Sua
mulher, que estava num gabinete próximo, ouvindo o barulho, veio
ver o que se passava; viu-me estendidosabre a mesa, com minha
CAPÍTULO VIGÉSl&lO-OITAVO incisão crucial e teve ainda mais mêdo que o marido; fugiu
tambéme caiu em cima dêle. Quandose acalmaramum pouco,
O QUE ACONTECEU A BANDIDO, A CUNEGUNDES, ouvi a cirurgia que dizia ao cirurgião: "Meu caro, comoé que
A PANGLOSS, 'A MARTINlllO ETC. você tem coragem de dissecar um herege? Não sabe que essa
gente tem o diabo no corpo? Vou chamar depressa um padre para
"Perdão. mais uma vez, dizia Cândido ao barão; perdão, exorcismá-lo."Estremecia essaspalavrase, reunindoas fôrças
que me restavam,gritei: "Tenham pena de mim!" Enfim, o
reverendopadre, por ter-lhevarado o corpo com tão grande esto- barbeiro portuguêscriou coragem; tornou a costurar-me a pele;
cada." "Não falemos mais disso, disse o barão; confesso que fui sua mulhermesmacuidou de mim; ao fim de quinze dias estava
um tanto ríspido; mas visto que deseja saber por que .acabo
do pé. O barbeiro procurou-me trabalho como lacaio de um cava-
vim para as galés, dir-lhe-eique depoisde ter sido curado do leiro de Malta, que ia a Veneza; mas não tendo meu senhor com
meu 'ferimento pelo irmão boticário do colégio, fui atacado e que pagar-me, pus-me a serviço de um negociante veneziano e o
capturado por um bando de soldados espanhóis; encarceraram- segui a Constantinopla.
me em BuenosAbres ao tempoem que minha irmã partira dessa
cidade.Pedi ao geral da companhiaque me permitissevoltar a "Um dia deu-me vontade de entrar numa mesquita; só
Romã. Fui nomeado para servir de capelão em Constantinopla, havia no interior um velho imame e uma jovem devota, muito
junto ao embaixadorda França. Havia uns oito dias que en: linda, que fazia suas orações; seu colo estava descobertoe entre
trará em função, quando encontrei certa tarde um jovem oficial os seios trazia um belo ramalhete do tulipas, rosas, anêmonas, ra-
do paláciodo sultão,muito bem~feito de corpo. Fazia muito núnculos, jacintos, orelhas-de-urso; ela deixou cair o ramalhete
calor; o maço quis tomar banho; resolvi acompanha-lo. Não e eu Iho entregueicom mui respeitosasolicitude. Mas levei tan-
sabia que fâsw tão grave crime ser um cristão encontradonu to tempo a recoloca-loque o imame se zangou e, vendo que eu era
com um jovem muçulmano. Um cádi mandou dar-me cem bas- cristão,gritoupor socorro. Conduziram-me
ao cádi, queman-
tonadas na planta dos pés e condenou-me às galés. Não creio dou dar-me cem pauladas nas plantas dos pés e enviou-mepara
que tenha havido mais horrível injustiça. Mas fu queria muito as galés. Fui acorrentado precisamente na mesma galé e no mes-
saberpor que motivominhairmã estána cozinhade um sobe- mo banco em que estava o senhor barão. Havia nessa galera
rano da Transilvânia refugiado na Turquia." quatro jovens de Marselha, cinco padres napolitanos, dois mon-
"Mas o senhor,meu caro Pangloss,disse Cândida, como é ges de Corou, os quais nos disseram que aventuras como essas acon-
possível que eu o veja de novo?" "É verdade, disse Pangloss, que tecem todo dia. O senhor barão entendia que a injustiça que
;ocê presenciou o meu enforcamento; eu devia naturalmente ser sofrera era maior que a minha; por minha parte, eu julgava que
queimado; mas lembra-seque chovia a cântaros na hora em que colocar um ramalhete no peito de uma mulher era 'coisa mais
iam pâr-me a assar: a tempestade era tão forte que desanima-
permissível do que ficar nu junto com um oficial muçulmano. Dis-
ram de acender o fogo; à falta de coisa melhor resolveram enfor-
car-me; um cirurgião comproumeu corpo, transportou-mepara cutíamos sempre e apanhávamosvinte vergastadas por dia, quan-
sua casa e dissecou-me. Fêz-meprimeiro uma incisão crucial do do a sucessão dos acontecimentos que se passam neste universo
umbigo à clavícula. Não podiam ter-me enforcado com menos o conduziu à nossa galera e fomos resgatados.
242 ROMANCES E CONTOS
CÂNDIDO OU O OTIhIISMO 243

"E agora, meu caro Pangloss,disse Cândida, depoisde ser


enforcado, dissecado, vergastado, e de ter remado como um galé, irmã não casará a não ser com um barão do Império." Cune-
pensa ainda que tudo vai pelo melhor neste mundo?" "Sou sem- gundes.atirou-sea seus pés e molhou-osde lágrimas; êle perma-
pre da mesma opinião, respondeuPangloss, porque, enfim, sou filó- neceu inflexível. "Meu grande doido, disse'Cândido, livrei-te
sofo: não fica bem desdizer-me.Leibnitznão pode ter errado; das galés,paguei o teu resgatee o de tua irmã que lavava pratos
a harmoniapreestabelecida é aliás o que há de mais belo no aqui; ape:ar de estar agora feia a mais não poder, quis, por bon-
mundo, juntamentecom a teoria que nega o vácuo e afirma a dade minha, casar-me com ela, e ainda pensas em impede-lo!
existência de uma matéria sutil. A considerarsó minha cólera eu te mata;ia de novo." '"Podes
matar-me .outra vez, disse o barão, mas enquantoeu fâr vivo
não casarás com minha irmã."

CAPÍTULO VIGÉSIMO-NONO
COMO CÂNDIDO TORN-OUA ENCONTRAR CUNEGUNDES E A VELHA CAPÍTULO TRIGÉSIMO
CONCLUSÃO
Assim foi que Cândido, o barão, Pangloss,Maninho e Ca-
cambo, contando suas aventuras, pensando sabre os acontecimen-
tos contingentes e não contigentes dêste mundo, discutindo os Cândídol no fundo do coração, não tinha nenhum desejo
efeitose as causas,o mal morale o mal físico,a liberdadee a de.desposar Cunegundes; mas a extrema impertinência do barão
necessidade, e as consolações que se podem experimentar em
cava ao :asamento, e Cunegundeso apertavade tal modo
galés turcas, alcançaram as praias da Propântida e chegaram à que êle não podia voltar atrás. Consultou Pangloss, Maninho e
casa do príncipe da Transilvânia. A primeira coisa que viram foi o fiel Cacambo. Panglossfêz um bonitomemorialpelo qual
Cunegundes e a velha, que estavam estendendoguardanapos nos provava que.o barão não tinha direito algum sabre sua irmã e
varais, a decai'. que .esta podia, segundo todas as leis do Império, contrair com
Cândida um casamentomorganático. Maninho concluiu que se
O barão empalideceu
quandoviu isso. O terno amanteCân- deveria atirar o barão ao mar; Cacamb:odizia que era necessário
dida, vendo sua bela Cunegundes encardida, de olhos gastos, com entrega-lo ao .patrão lzt;a/zli-e põ'lo de novo nas galés, depois do
o colo magro, as faces enrugadas, os braços vermelhos e descasca-
dos, recuou três passos tomado de horror, mas avançoulogo que se deveria.envia-loa Romã, ao geral da ordem, pelo pri-
meiro navio. Êsse parecer foi aceito por todos; a velha apro-
movido pelo desejo de portar-se corretamente. Ela abraçou Cân- vou-g;nadase disseà irmã; a coisafoi levadaa efeitoà c;sta
dida e o irmão; abraçaram também a velha. Cândida resgatou de algum dinheiro, e se teve.o prazer de apanhar um jesuíta e ao
ambas. mesmo tempo punir o orgulho de um barão alemão.' Era natu-
Havia nas proximidades uma pequena quinta; a velha pro- ral imaginar que, após tantos desastres,Cândido, casado com
pôs que Cândida se contentassecom ela, enquantoesperavamme- sua amada e vivendo com o filósofo Pangloss, o filósofo Mani-
lhores dias para todos. Cunegundesnão sabia que ficara tão nho, o prudente Cacambo e a velha, e tendo além disso trazido
feia, pois que ninguém Iho dissera: relembrou Cândido de suas tantosdiamalltes
da pátriados antigosIncas, havia de ter a
promessascom um ar tão decididoque o bom Cândido não ousou vida mais. agradável.do. mundo; mas tantos calotes Ihe passa-
Comunicou por conseguinte ao barão que ia casar-se ram os judeus, que não Ihe ficou mais que a pequena quinta; sua
com sua irmã. "Jamais permitirei tal baixeza da parte dela nem mulher, cada .dia mais. feia, tornou-se I'abujenta e insuportável;
tal insolênciada sua parte, disse-lheo barão; essa infâmia nunca era doente.eficou ainda mais írritadiça do que Cune-
ninguém há de atirar contra mim: os filhos de minha irmã não gundes. . Cacambo que lidava na horta e ía vender legumesem
poderiam entrar nos capítulos 262 da Alemanha. Não, minha Constantinopla, estava exausto com o trabalho excessivo e mal.
dizia o seu destino. Panglossralava-sede tristezapor não estar
brilhando em alguma das universidades da Alemanha. Quanto a
(262) Assembléias da nobreza.
Maninho, estava fil'memente persuadido de que se está igualmente
244 ROMANCES E CONTOS CÂNDIDA OU O OTIMISMO 245

mal em todo lugar; procurava sofrer com paciência. Cândida, a palavrae disse: "Mestre,queremosque nos diga por que
Maninho e Pangloss discutiam metafísica e moral, às vêzes. Viam- motivo foi criado êsse animal tão estranho que é o homem." "Por
se freqüentementepassar diante das janelas da casa navios cai- que te metesnessas coisas? disse o dervixe; isso é da tua
ados de efêndis, de papás, de cádis que se exalavamem Lem- conta?" "Mas, reverendopadre, disse Cândido,é que há no
nos, em Mitilene, em Erzerum. Viam-se chegar outros cádis, paxás mundo sofrimentos a mais não poder." "Que importa, disse o
e efêndis que tomavam o lugar dos exilados, e acabavam por ser dervixe, que haja o mal ou o bem? Quando Sua Alteza envia
expulsos por sua vez. Viam-se cabeças cqlivenientementeempa- um navio ao Egito, incomoda-se lá de saber se os camundongos
lhadas que se levavam a exibir na Sublime Porta. A êsses espetá- que vão dentro estão bem acomodados ou não?" "Que fazer en-
culos redobravam as discussões; e quando não discutiam caía tão?" dissePangloss. "Calar", disseo dervixe. "Esperavater o
sabre êles um tédio tão grande, que a velha ousou dizer-lhes um prazer, disse Pangloss, de conversar um pouco com o senhor sabre
dia: "Queria saber o que é pior, ser violentadacem vêzespor pi- as causas e os efeitos, sabre o melhor dos mundos possíveis,
ratas negros, ter uma 'nádega arrancada, passar pelas.bastonadas sôbrea origemdo mal, a naturezada almae a harmoniapre-
dos búlgaros, ser chicoteado e enforcado num auto-de-fé,ser.disse- estabelecida." A estas palavras o dervixe bateu-lhes a porta na
cara
a
cado, remar nas galés, experimentarenfim tôdas as misérias
por que passamos,ou ficar aqui.s(lm fazer nada?" "Eis aí uma Durante essa conversação, tinha-se espalhadoa notícia de que
importante questão", disse Cândida. em Constantinopla
haviamestranguladodois vizires de grande
nomeadae o mufti, e que vários dos seus amigos tinham sido
Êsse discurso provocou novas reflexões, e Maninho concluiu empalados. Essa catástrofe teve grande repercussão durante algu-
que o homem é feito para viver entre !s convulsoes da inquie- mas horas. Pangloss, Cândida, Maninho, voltando à quinta,
tação, ou então na let;raia do tédio. Cândida não concordava, encontraram um bom velho que tomava fresca à sua porta, à som-
mas também nada afirmava. Pangloss confessava que sempre bra de algumaslaranjeiras. Pangloss,que era tão curioso quan-
sofrera horrivelmente; mas tendo sustentadouma vez que tudo to amigo de argumentar,perguntoucomo se chamavao mufti
ia às mil maravilhas, tinha de sustenta-losempre, sem o crer en- que acabavamde estrangular. "Não sei, disseo homem,nunca
tretanto . soubeo nome de nenhummufti, de nenhumvizir. Ignoro com-
Uma coisa acabou de confirmar Maninho nos seus detestáveis pletamenteo sucessode que me acaba de falar; presumoque
princípios, de fazer Cândido hesitallmais que .nunca, e dE.emba- em geral os que se metemnos negóciospúblicos morrem algumas
raçar Pangloss. É que viram um dia chegar à sua casa raqueta vêzes de modo miserável, e acho que bem o merecem; mas nunca
o fre! Girofleu, que estavam na miséria mais extrema; tinham me informo do que se passa em Constantinopla; contento-mede
devorado depressa as suas três mil piastras, tinham-se separado, mandar vender nessa cidade os frutos da horta que cultivo." Ten-
reconciliado,' tornando a separar-se, tinham sido metidos na pri- do dito essas palavras, convidou os estrangeiros a entra:r em sua
são, tinham fugido e, finalmente, frei Girofleu fizera-se turco; casa; suas duas filhas e dois filhos lhes ofereceramvárias espé-
Paqueta continuava o seu ofício por tôda a parte e nao ganhava cies de refrescos que êles mesmosfabricavam, e mais o #almm
mais nada com êle. "Eu bem tinha previsto,disse Maninho a com doces de casca de cidras, laranjas, limões, limas, ananases,
Cândido, que os seus presentesseriam em breve.dissiltadose não amendoins, café de Moca, que não era misturado com o mau café
os fariam senão mais infelizes. O senhor e Cacambo estavam da Batáviae das ilhas. Depois as duas filhas dêssebom muçul-
abarrotadoscom milhõesde piastras e não são mais felizesque mano perfumaram as barbas de Cândido, de Pangloss e de Mar-
frei Girofleu ou Paqueta." 'iAh! ah! disse Pangloss a Paqueta? tinha
n

é o Céu que te traz aqui no meio de nós! Minha pobre menina! "0 senhor deve possuir, disse Cândido ao turco, uma vasta
Sabias que me custastea ponta do nariz, um alho e uma orelha? e magnífica propriedade?" "SÓ tenho vinte geiras, respondeu o
E agora, em que estado estásl Ail. o que. é êste mundo!" Esta turco; cultivo-ascom meus filhos; o trabalho afasta de nós três
nova aventuraconvidou-osa filosofar mais do que nunca. grandes males: o tédio, o vício e a necessidade."'
Havia na vizinhança um famoso dervíxe, que passava por ser Cândido, voltandopara sua quinta, fêz profundas reflexõesa
o melhor filósofo da Turquia; foram consulta-lo ; Pangloss tomou
]'esperto
do discursodo turco. Disse a Panglosse a Maninho:
46 ROMANCES E CONTOS

Êsse bom velho parece que alcançou uma sorte muito prefe-
ível à dos seis reis com os quais tivemos a honra de cear." "As
randezas, disse Pangloss, são muito perigosas, segundo dizem to-
os os filósofos, porque, vejam: Eglon, rei dos moabitas, foi assas-
inadopor Aod; Absalão ficou dependuradonuma árvore pelos
abelose foi lxanspassado
por trêsdardos;o rei Nadab,filho de O INGÊN UO
erobão, foi morto por Baasa; o rei Ela, por Zambri; Ocosias,
or Jeú; Atália, por Joiadaá; os reis Joaquim, Jeconias,Sedecias
oram escravos. Sabem como pereceram Credo, Astíage, Darão, HISTÓRIA VERDADEIRA 264
Dionísio de Siracusa, Pirro, Perdeu,Aníbal, Jugurta, Ariovisto,
ésar, Pompeu, Neto, Otão, Vitélio, Domiciano,Ricardo ll da EXTRAÍDA DOS MANUSCRITOS DO PADRE QUESNEL 265
g[aterra, Eduardo ]], ]-]enrique ]]], Ricardo ]]], Mana Stuart,
arlos 1, os três Henriques de Franca, o imperador Henrique IV?
abem. . ." ''Sei também, disse Cândida, que é preciso cultivar CAPÍTULO l
ossa horta." "Tem razão, disse Pangloss: porque quando o
omem foi pasto no jardim do Éden foi pasto ül operare&ür COMO O PRIOR DE NOSSA SENHORA DA MONTANHA E A
üm263,para que êle trabalhasse:o que prova que o homem SENHORiTA suA IRMÃ ENCONTRARAÀIUM fuRÃo
ão foi criado para o repouso." "Trabalhemos sem muito refletir,
isseMartínho; é o único meio de tornar suportávela vida."
Toda a pequena companhia aceitou êsse louvável propósito;
ada qual se pâs a trabalhar segundosuas habilitações. A pe-
U M DIA, S. Dunstan 266, irlandês de nascimento e santo de pro-
fissão, partiu da Irlanda numa pequenamontanha, a qual vogou
uena chácara produziu muito. Cunegundes continuava, é ver- para as costas da Fiança, e assim chegou à baía de Saint.Mala.
ade, a ser bastantefeia, mas tornou-se ótima pasteleira; Paqueta Depois de ter desembarcado,êle deu a bênção à sua montanha,
ordava; a velha cuidava da roupa. Até mesmo frei Gil'ofleu que Ihe fêz profundasreverências
e regressouà Irlanda pelo
restava serviço, como bom marceneiro, e chegou a ser um ho- mesmo caminho da vinda.
mem de bem; e Pangloss dizia às vêzes a Cândido: "Todos os
contecimentosse ajustam no melhor dos mundos possíveis: por- Dunstan fundou um pequenopriorado naqueleslugares, e
ue, enfim, se você não tivessesido expulsode um bonito cas- deu-lheo nome de Piorada da Mon&anÁa,que ainda hoje con-
serva, como todos sabem.
elo a grandes pontapés no traseiro, por amor de Cunegundes,
e não tivesse sido entregue à Inquisição, se não tivesse percorrido
pé a América, se não tivessedado uma boa estocadano barão, (264) Edição original em 1767, in-8.o, sem nome de autor, im-
e não tivesse perdido todos os seus carneiros do bom país do l?ressaem Genebra pelos Cramer, mas datada de Utrecht. Já se falava de
O INcÊNuo em Parasno prirlcípio de agostode 1767 (carta a d'Alembert,
ldorado, você não estaria a comer aqui doce de cidra e amen- 3 .de agosto de 1767). Voltaire clamava em altos brados que a obra não era
oins." "Bem pensado, resporldeu Cândida, mas é preciso culti- dêle: atribuía-a a "um monge que abandonou o hábito, chamado du Lau-
ar nossahorta." rens?.autor de l,e campa e .4/atÀíezé"(carta a Damilaville, 22 de agâsta
de. 1767). Mas já no dia 7 de agosto de 1767, Voltaire, pretendendo
agir em nome dêsse du Laurens, propunha ao livreiro Lacombe que edi-
tasse O INGÉNuo na França, afirmando que a censura daria "uma
permissãotácita sem dificuldade". A obra foi editadana França sob
o título: Ze j7ur07z
ou Z'/?zgénu. '
Em 1936: W. R: Jones, L'.rngé?zu, Pauis, ])roz.
(265) Oratoriano jansenista (1634-1719), autor de Ré//exions
moraZei sair /e.Nouueau ceifa ize?zf (1671), cujas proposições foram con-
denadas pela bula U7zigenifzzs.
(263) Gê7zgse, 11, 15 (266) Viveu no século X.
248 ROMANCES E CONTOS 0 INGÉNUO 249

Em 1689267,no dia 15 de julho, à tardinha, o abade de apertava-lhea cintura fina e esbelta; tinha um ar meigoe marcial.
Kerkabon, prior de Nossa Senhora da Montanha, passeava pela Segurava numa das mãos uma garrafinha de água da Barbada 268,
praia com a senhoritaKerkabon,sua irmã, tomandoa fresca. e, na outra, uma sacola com um copo e excelentesbiscoitos de ma-
O prior, já um tanto idoso,era um bom eclesiástico,amadodo rinheiro. Falava o francês bem inteligivelmente. Ofereceu a
seusvizinhos,depoisde o ter sido, em outrostempos,de suas sua água da Barbada à senhorita Kerkabon e ao senhor seu ir-
vizinhas. O que sobretudo Ihe angariava grande consideração mão; bebeucpm êles; fêz com que os dois bebessemoutra vez,
era o fato de ser êle o único beneficiárioeclesiásticodo país que o tudo isso com modos tão simples e naturais, que o irmão e a
não precisam'aser carregado para a cama depois de haver ceado irmã ficaramencantados.Os dois Ihe ofereceramos seusprés-
com os confrades. Conhecia bem a sua teologia; e, quando se timos, perguntando-lhequem era êle e aonde ia. O jovem res-
cansava de ler Santo Agostinho, divertia-se com Rabelais: assim, pondeu que nada sabia a êsse respeito, que era um curioso, que
todo o mundo dizia bem dêle. tinha querido ver como eram feitas as costas da Franca, que
A senhoritaKerkabon, que não se casara, emboramuito o tinha vindo e ia voltar.
tivesse desejado, conservava algum viço aos quarenta e cinco O senhor prior, julgando pelo sotaque que não se tratava de
anos de idade; era de índoleboa e sensível;'amava o prazer um inglês,tomoua liberdadede perguntar-lhe
de que país era
e era devota.
originário. "Sou furão", respondeu o jovem.
O prior diziaa sua irmã, olhandoo mar: "Olhe! foi aqui A senhoríta Kerkabon, surprêsa e encantada de ver um hu-
que embarcou o nosso pobre irmão com a nossa querida cunha-
da, sua esposa,na fragata"L'Hirondello",no ano de 1669,para rão que Ihe fazia gentilezas,convidou o jovem para a ceia; êle
não se fêz de rogado, e os três encaminharam-separa o priorado
ij' servir no Canadá. Se não tivessesido morto, poderíamoses- de Nossa Senhora da Montanha.
perar revê-loainda."
"Acredita ser coisa certa, dizia a senhoritaKerkabon, que A baixote e roliça senhorita era toda olhos para o exami-
nossa cunhada tenha sido comida pelos iroqueses, como nos disse- nar; e, de tempos em tempos, dizia ao prior:
"Êsse rapagão tem
ram? Sem dúvida, se não tivesse sido comida, teria voltado uma pele de lírio e de rosa! Que pele bonita para um hurão!"
para cá. Eu a chorarem toda a vida: era uma mulher encanta- "Tem razão, minha irmã'', dizia o prior. Ela fazia cem per'
dora; e nosso irmão, que tinha uma bela inteligência,certa- juntas, uma sabre a outra, e o viajante respondia sempre muito
bem
e
mente teria feito grande fortuna."'
Enternociamse os dois com essa lembrança, quando Espalhou-selogo o rumor de que havia um bufão no priora-
tiram entrar na baía de Range um pequeno barco que chegava do. A melhorgentedo lugar apressou-se a lá ir para a ceia.
com a maré: eram inglêsesque vinham vender mercadorias do Lá foi o abadede St. Yves, acompanhadoda senhoritasua irmã,
seu país. Saltaramem terra, sem olhar o senhor prior nem a jovem da Baixa Bretanha que era bonita e muito bem educada.
senhorita sua irmã, que ficou chocadíssimacom a pouca atenção O magistrado, o recebedor de tributos, e suas esposas, faziam
que Ihe davam. parte da companhia. O estrangeiro foi colocado entre a senhorita
Kerkabon e a senhorita St. Yves. Todos o olhavam com admi-
Não aconteceuo mesmocom um jovembem feito de carpa ração; todos Ihe falavam e Ihe faziam perguntas ao mesmo tem-
que se atirou num salto por cima das cabeças de seus compa-
nheiros e se achou diante da'senhorita. Fêz um aceno com a po; o furão não se atrapalhava.Dir-se-iaque adotaracomo
cabeça, pois não estava acostumado a fazer a reverência. Sua fi- divisa a de Milorde Bolingbroke: níhíZ admírart 269. Mas afinal,
gura e seu traje atraíram os olhares do irmão e da irmã. Estava atormentadopor tanto ruído, disse-lhescom bastantedoçura, em-
com a cabeçadescobertae as pernas nuas; nos pés tinha pequenas
sandálias; usava os cabelos longos, em tranças; um pequeno gibão (268) Aguardente fabricada pelos inglêses de Barbada, ilha das
Antilhas.
(269) Máxima dos filósofos antigos que convinha à "filosofia
(267) Ano em que foram iniciadas as hostilidadesentre a Ingla. de Bolingbroke (1678-1751), estadista inglês e escritor anta-religioso,
terra e a trança. amigo de Voltaire que se refugiou em casa dêle, em 1726.
250 ROMANCES E CONTOS 0 INCÊNUO 251

boro com certa firmeza: "Senhores,em meu país fala um de rões, a inglêsaou a francesa. "A dos furões, sem contradita", res-
cada vez; como querem que eu ]hes responda, se não me permi- pondeu o Ingênuo. "É possível? exclamou a senhorita Kerkabon;
tem ouvir o que estão dizendo?" A razão sempre faz com que os semprepensei que o francês fosse a mais bela dentre todas as
homens caiam em si por alguns momentos: houve um profundo línguas depois do baixo-bretão."
silêncio. O magistrado, que sempre se apoderava dos estran- Neste ponto, alguém perguntou ao Ingênuo como se dizia
geiros, em qualquer casa em que se encontrassee que, para fazer tabaco em hurão, e êle respondeu Mya; outro Ihe perguntou como
perguntas,era o cáhpeão de toda a província, disse-lhe,abrindo se dizia comer, e êle I'espondeuessenfen. A senhorita Kerkabon
uma boca de quase uh palmo: "Senhor, qual é o seu nome?" quis forçosamentesaber como se dizia "faire I'amour"; êle Ihe
. Sempretive o nome de Ingênuo,respondeuo hurão, e êsse ape-
lido me foi confirmadona Inglaterra,porque sempre digo cân- respondeuIroz,arder(a), e afirmou, não sem razão, que êsses
têrmos valiam bem os têrmos franceses e inglêses correspondentes.
clidamenteo que penso, como costumo fazer tudo o que quero." Trouander pareceu muito bonito a todos os convivas.
"Como, tendo nascido barão, foi parar na Inglaterra?" "Fui
lev?do pala lá; durante um combate,fui feito prisioneiro pelos O senhorprior, que tinha em sua bibliotecauma gramática
da língua dos hurões que o padre cagar Théodat 271, recoleto,
inglêses,depoisde me haver defendidomuito bem; e os inglê- famoso missionário, Ihe dera de presente, afastou.se da mesa
ses, que prezam a bravura, porque são bravos e tão honestos
quanto nós, dispuseram-se a devolver-me aos meus pais ou levar-
por um momento para ir consulta-la. Voltou todo fremente
de ternura e alegria; reconheceu o Ingênuo por um verdadeiro
me para a Inglaterra com êles; aceitei esta última proposta,
já que, por natureza, gosto muitíssimo de ver novas terras." furão. Discutiu-se um pouco sôbre a multiplicidade das línguas,
e chegou-se
à conclusão
de que,não fossea aventurada Tôrre
"l\4ascomo pôde abandonar assim pai e mãe?" disse o ma- de Babel, tôda a terra falaria o francês.
gistrado com seu tom imponente. "É que nunca conheci nem pai
nem mãe", disse o estrangeiro. Toda a companhiase enterneceue O magistrado perguntador, que até aquêle momento tinha
todo o mundo repetia: JVem paí, neM mãe/ "Nós Ihe faremos as desconfiado um pouco do personagem, concebeu por êle um pro-
vêzes dêles, disse a dona da casa a seu irmão, o prior; colho êsse fundo respeito; falou-lhecom mais civilidade do que antes, o
senhor furão é interessantes" O Ingênuo agradeceu-lhecom que aliás não foi percebido pelo Ingênuo.
uma cordialidade nobre e altiva, e fêz-lhe compreender que não A senhorita St. aves estava bastante curiosa de saber como
tinha necessidadede nada. se amava no país dos hurões. "Fazendo belas ações, respondeu
"Eu noto, senhor Ingênuo, disse o grave magistrado, que fala êle, para agradar às pessoassemelhantes à senhorita." Todos os
'a língua francesa melhor do que se podem'iaesperar de um fu- convivas aplaudiram, com admiração. A senhorita St. Yves corou
rão." "Um francês, disse êle, que tínhamos na Hul'adia, na época e ficou muito agradada. A senhorita Kerkabon corou também,
da minha primeira juventude,e por quem eu me tomara de gran- mas não.ficou tão agradada quanto a outra: pesou-lheum pouco
de amizade,-ensinou-me
a sua língua; aprendobem depressao que a. galantellianão fossepara ela; mas era tão boa pessoa,que
que quero aprender. Chegandoa Plymouth, encontreium dêsses sua afeição pelo hurão em nada ficou alterada. Perguntou-lhe, com
franceses refugiados que são chamados Ázógüenoles 270, não muita bondade, quantas amantestivera na llurânia. "Tive uma
sei por quê; graças a êle fiz mais alguns progressos no conheci- somente,disse o Ingênuo; era a jovem Abacaba, amiga de mi-
mentoda língua que falam; e desdeque pude exprimir-meinte- nha queridaama; os juncos não são mais direitos, cÍ arminho
ligivelmente, vim a êste país, porque gosto bastante dos franceses, não é mais branco, as ovelhas são menos mansas, as águias me-
quando não fazem muitas perguntas." nos altaneiros, os nervos menos ligeiros do que era Abacaba.
O !badede St. Yves, não obstantea advertênciazinha,
per-
guntou-lhequal das três línguasIhe agradavamais, a dos fu-
(a)de Totairee)ases
nomespertencemde fato à língua dos furões.
(271) Êsse missionário foi evangelizar os hurões em 1623. Vol.
(270) O Edita de Nantes é de 1685, a emigração dos protestantes taire ]eu a sua obra: Cra7zd 7oyage au Pczyrdes ]7a ozzsauec tzn dic.
começara em 1681. fio-«{« (1632).
252 ROMANCES E CONTOS 0 INCÊNUO 253

Ela perseguiacerta vez uma lebre em nossoslugares, a cêrca pelo menos tão boa como a dos baixo-bretões;. enfim, disse que
de cinqüenta léguas de nossa habitação; um algonquim mal-edu- partiriano dia seguinte. Acabou-sede esvaziara sua garrafa
cado, que vivia cem léguasmais distante,tomou-lhea lebre; eu de água da Barrada, e todos se retiraram para dormir.
soube disso, corri ao encontro do algonquim, lancei-o por terra Depois de o Ingênuo ter sido levado para o seu aposentosa
com um golpe de maça, levei-oaos pés de minha amante,de pés senhoritaKerkabone sua amigaa senhoritaSt. Yves não pude-
e mãos amarrados. Os parentesde Abacaba quiseram comê-lo; ram resistir à curiosidade de olhar pela abertura da grande fe-
mas eu nunca tive gasto por êsse género de banquete; devolva-lhe chadura, para ver como dormia um furão. Viram que êle tinha
a liberdade, tornei-me seu amigo. Abacaba ficou tão sensibili- estendido
no chão a cobertado leito,e que repousavana mais
zada com o meu procedimento,
que me preferiu a todos os bela atitude.
seus amantes. Ela ainda me amaria, se não tivessesido devorada
pol um urso: pum o urso, usei muito tempoa sua pele; mas isso
não me consolou." CAPÍTULO ll
A senhorita St. Yves, enquanto ouvia a narrativa, sentia O HURAO, CllIAMADO INGÉNUO, E RECIONHECIDO
um prazer secreto por saber que o Ingênuo não tivera senão POR SEUS PARENTES
uma amante,e que Abacaba não mais existia; mas ela não dis-
tinguia a causa de seu prazer. Todo o mundotinha os olhos
pregados no Ingênuo; todos o louvavam por ter evitado que seus O Ingênuo, como era seu costume, despertoucom o sol, ao
canto do galo, que se chama na Inglaterra e na Hurânia a Irom-
camaradas comessem um algonquim. befado dü 272.' Êle não era como a genteculta e requintada,que
O terrível magistj'ado, que não podia reprimir o seu furor de amolecenum leito de penas até que o sol tenhavencido metade
fazer perguntas,levou enfim sua curiosidade até a procurar infor- do seu curso, que não pode dormir nem levantar-se,que perde
mar-se acêrca da religião do senhor hurão; quis saber se tinha horas preciosas nesseestado entre a vida e a morte, e que ainda
escolhido a religião anglicana, a galicana ou a huguenote. "Sou se queixa da brevidade da existência.
da minha religião,disseêle,comoos senhoressão da sua." "Ail Já andara duas ou três léguas, já abatera trinta peças de
ai! exclamou a Kerkabon, vejo que êsses desgraçados inglêses caça quando, ao regressar, encontrou o senhor prior de Nossa
nem sequer pensaram em batizá-lo." "Santo Deus! disse a senho- Senhora da Montanha e sua discreta irmã passeando,ainda
rita St. Yves, como se explica que os furões não sejam católi- com o barrete de dormir, em seu jardinzinho. Apresentou-lhes
cos? Então, os reverendos padres jesuítas não os converteram tôda a sua caça, e retirandode sua camisa uma especiede
todos?" O Ingênuo afirmou que em seu país não se convertia pequenotalismã que usava sempreprêso ao pescoço,.pe'
ninguém; que nunca um verdadeiro hurão mudara o seu modo diu-lhesque o aceitassemcomo prova de gratidão por sua boa
de pensar,e que nem sequerhavia na línguado país um termo acolhida.' "É o que tenho de mais precioso, disse-lhesêle; afir-
que significasseílzconslá/zela. Essas últimas palavras agradaram maram-me que eu seria sempre feliz, enquanto trouxesse comigo
em extremoà senhoritaSt. Yves. essa ninharia, e quero que a aceitem a fim de que sejam sempre
"Nós o batizaremos,nós o batizaremos,dizia a Kerkabon ao felizes.
senhor prior; essa honra Ihe caberá, meu querido irmão; quero O prior e a senhoritasorriramenternecidos
dianteda can-
de qualquer maneira ser sua madrinha; o senhor abade de St. dura do Ingênuo. O presente consistia em dois pequenos retratos
Yves o conduzirá à pia batismal; será uma cerimónia brilhante; bem mal feitos, presos um ao outro por uma tira de couro en-
falar-se-á a respeito dela em toda a Baixa-Bretanha, e isso nos sebada.
honrará infinitamente." Tôda a companhia secundoua dona da A senhorita Kerkabon perguntou-lhese havia pintores na
casa; todos os convivasgritaram: "Nós o batizaremosl'' O In- Hurânia. "Não, disse o Ingênuo; essararidade me vem da minha
génuo respondeu que, na Inglaterra, deixava-se que as pessoas
vivessemcomo bem quisessem. Declarou que a proposta não
Ihe agradavanem um pouquinho,e que a lei dos hurões era (272) Expressão de Shakespeare, /íamlef, l, l
254 R.OhIANCES E CONTOS 0 IKCÊKUO 255

ama; seu marido a tinha obtido por direito de conquista,despo- cimentodo Ingênuo,que êle mesmoconsentiuem ser sobrinho
jando algunsfrancesesdo Canadá que nos tinham feito guerra; é do senhor prior, dizendo que gostava tanto de o ter por tio como
tudo o que sei. gostaria de outro qualquer.
O prior olhou atentamenteos retratos; mudou de câr, pertur- Todos foram dar graças a Deus na igreja de Nossa Senhora
bou-se,suas mãos tremeram. "Por Nossa Senhora da Montanha, da Montanha,enquantoo hurão, com um ar indiferente,se
exclamou êle, creio que estou vendo o rosto de meu irmão, o ca- divertia bebendoem casa.
pitão, e de sua espâsal" A senhorita,depoisde os ter olhado Os inglêses que o tinham trazido, e que estavam prestes a
com a mesmaemoção, foi de igual parecer. Os dois ficaram to- velejar de novo, vieram dizer-lhe que era tempo de partir. "Pelo
mados de espanto, sentindo uma alegria misturada de dor; ambos que parece, disse-lhes, os senhores não descobriram os seus tios
se enterneciam; ambos choravam; palpitava-lheso coração; solta- e tias; eu fico aqui; voltempara Plymouth,dou-lhestodasas
vam gritos; arrancavamos retratosum ao outro; cada um dê minhas roupas, não tenho necessidadede nada no mundo, pois
les os tomavae os devolviavinte vêzes num segundo; devo- sou sobrinho de um prior." Os inglêses largaram o pano, pouco
ravamcom os olhosos retratose o hurão; perguntavam-lheum se incomodando
de que o Ingênuotivesseparentesou não na
após o outro, e ambos ao mesmo tempo, onde, como, quando essas Baixa-Bretanha.
miniaturastinhamcaído nas mãos da ama; estabeleciamrelações Depoisde o tio, a tia e fada a companhia teremcantadoo
cle fatos e datas, contavam o tempo desde a partida do capitão; Te Z)etim; depois de o magistrado ter acabrunhado o Ingênuo
lembravam-se
de ter tido notícias dêle até do país dos hurões, e de perguntas;depoisde se ter esgotadotudo o que o espanto,a
de que depois disso nunca mais dêle tinham ouvido falar. ternura e a alegria podem fazer dizer, o prior da Montanha e o
O Ingênuolhes dissera que não conheceupai nem mãe. abade de St. Yves concluíram que era preciso batizar o hurão o
O prior, que era homem de senso, observou que o Ingênuo tinha mais depressapossível. Mas com um furão adulto,de vintee
um pouco de barba; ora, êle sabia muito bem que os hurões dois anos de idade, não se poderia procedercomo com uma
não têm barba nenhuma. "Êle tem barba no queixo; é, portanto, criança que se regenera sem que ela nada saiba do que se faz.
filho de um homem da Europa; meu irmão e minha cunhada Erapreçiso instruir o hurão, o que parecia difícil: porque o abade
não apareceram mais depois da expedição contra os hurões, de St. Yves acreditava que um homem que não nascera na Fran-
em 1669273; meu sobrinhodeveriaestar mamandopor essa ca não tinha sensocomum.
época; a ama hurã salvou-lhea vida e serviu-lhede mãe." O prior, contudo, fêz observar que se o senhor Ingênuo, seu
Enfim, depoisde cem perguntase cem respostas,a prior e sobrinho, não tinha tido a felicidade lÍe nascer na Baixa-Bretanha,
$ua irmã concluíramque o hurão era o seu própriosobrinho. nem por isso deixava de ter espírito; o que se podia reconhecer
Beijaram-nocom lágrimas nos olhos; o Ingénuoria, não podendo por todas as suas respostas; fêz notar, ainda, que a natureza
imaginarque um hurão pudesseser sobrinhode ukn prior por certo muito o favorecerá,tanto do lado. paterno como do
baixo-bretão. materno.
Toda a companhiadesceu;o senhorde St. Yves, que era Perguntaram-lhe,para começar, se êle alguma vez tinha lido
grande fisionomista, comparou os dois retratos com o rosto do algum livro. Disse que lera Rabelais, traduzido em inglês, e tam-
Ingênuo; hàbilmente,fêz notar que êle tinha os olhos de sua bém alguns trechos de Shakespeare, que sabia de cor; que tinha
mãe, a testa e o nariz do falecido senhor capitão Kerkabon, e encontrado êsses livros com o capitão do navio que 'o levara
faces que tinham alguma coisa de um e de outro. da Américapara Plymouthe ficara muitocontenteLom o acha-
A senhoritaSt. Yves, que nunca vira o pai nem a mãe, do. O..magistrado não deixou de o interrogar a respeito dos li-
afiançou que o Ingênuo era muitíssimo parecido com êles. Todos vros. "Confesso, disse o Ingênuo, que acreditei haver entendido
admiraram a Providência e o encadeamento das coisas dêste alguma coisa, e que não entendi o resto."
mundo. Enfim, ficou-setão persuadido,tão convencidodo nas- O abade de St. Yves, após essas palavras, disse que era com
êsse mesmo ]esultado que êle mesmo sempre lera, e que a maioria
(273) Expedição puramente imaginária. dos homens lêem quase sempre dessa maneira. "Sem dúvida já
256 ROaIANCES E CONTOS o INGÉNuo 257

leu a BíbZía?" perguntou ao furão. "Não, não, senhor abade, ela lo ler o Novo Testamento.O Ingênuoo devoroucom grande
não estavaentre os livros do meu capitão; nuncaouvi falar a prazer; mas, como não sabia em que tempo nem em que país
respeito dela." "Eis o que são êsses malditos inglêses, gritou a tinham ocorrido todas as aventuras relatadas nesse livro. ficou cer-
senhoritaKerkabon; êles sempredarão mais importânciaa uma tíssimo de que o lugar da cena fera a Baixa-Bretanha; e jurou
peçade Shakespeare,
a um pZüm'pzzddlng
e a uma garrafa de que cortaria o nariz e as orelhas a gaitas e a Palatos, se algum
rum do que ao Pentateuco. Por isso mesmo,nunca converteram dia encontrasse êsses patifes.
ninguém na América. Certamente êles são amaldiçoados por O tio, encantadocom tão boas disposições,não tardou a es-
Deus; e nós lhestomaremos
a Jamaicae a Virgínia274semde- clarecer-lhe
os fatos; depoisde louvaro seu zêlo,íêz-lhever
mora.
que tal zêlo era inútil, visto que as mencionadaspersonagensti-
De qualquer modo, tratou-se de mandar chamar o mais com- nham morrido havia cêrca de mil seiscentos e noventa anos.
petentealfaiate de Saint-Mala para vestir o Ingênuo da cabeça O Ingênuoficou sabendoquasetodo o livro de cor,
aos pés. A companhia debandou; o magistrado foi fazer as suas dentro de pouco tempo. Apontava às vêzes algumas dificuldades,
perguntas alhures. A senhorita St. Yves, ao partir, voltou-se
que punham o p3'íorem grande embaraço. O prior se via obri-
por diversas vêzespara olhar o Ingênuo; e êle Ihe fêz reverências gadoa consultaro abadede St. Yves, o qual, não sabendotam-
mais profundas do que fizera a qualquer outra pessoaem toda a bém como responder,recorreu a um jesuíta baixo-bretãopara
sua vida.
consumar a conversão do Ingénuo.
O magistrado, antes de se despedir, apresentouà senhorita Finalmente, a graça operou; o Ingénuo prometeu fazer-se
St. Yves um seu filho, patetão,que acabavade sair do colégio; cristão; estava certíssimo de que deveria antes de tudo ser cir-
mas ela mal o olhou, tanto estava encantada com a polidez do cuncidado,"porquanto,dizia êle, não encontrono livro que me
furão. fizeramler nenhumpersonagem
que não o tenhasido;'é evi-
dente,pois, que devo fazer o sacrifício de meu prepúcio: e quan-
CAPÍTULO lll to mais depressamelhor." Não ficou perdendotampo em deli-
berações: mandou buscar o cirurgião da aldeia e pediu-lhe que
0 HURAOp CHAMADO INGENUOp E CONVERTIDO Ihe fizesse a operação, contando alegrar infinitamente a senÜo-
rita Kerkabon e tôda a companhia uma vez que a coisa estivesse
O senhor prior, considerandoque já era um tanto idoso, e feita. O "frater" 275, que jamais fizera tal'intervenção,preve-
que Deus Ihe enviava um sobrinho para sua consolação, meteu-se niu a flmílía, que imediatamente se pâs a dar gritos de aflição.
ha cabeça que poderia transferir-lheo seu benefício eclesiástico, A boa Kerkabon tremeuà ídéia de que o sobrinho, que parecia
se conseguisseconvertê-loe fazê-lo entrar nas ordens. resoluto e expedito, tentasse fazer êle mesmo a operação, muito
desajeitadamente,e que daí resultassem tristes feitos, pelos quais
O Ingênuo tinha excelentememória. A firmeza dos órgãos as damas se interessam sempre por bondade de coração.
da Baixa-Bretanha,fortificada pelo clima do Canadá, Ihe tinha
tornado a cabeça tão vigorosa, que quando se Ihe dava uma pança' O prior corrigiu as idéias do hurão; fêz-lhever que a circun-
da êle mal a sentia, e quando se Ihe gravava alguma coisa dentro cisão não estavamais em moda; que o batismo era muito mais
brando e mais salutar; que a lei da graça não era como a lei do
nada poderia apaga-la; o Ingênuo nunca se esquecerade nada. A
sua compreensão era tantomais viva e clara quanto,não tendo rigor. O Ingênuo, que tinha muito bom senso e retidão, discutiu,
a sua infânciasido sobrecarregadade todasas inutilidadese to- mas reconheceuo próprio êrmo,o que é bastanteraro na Europa
entre os que discutem; enfim, prometeu que se faria balizar quan-
lices que acabrunham a nossa, as coisas podiam entrar-lhe num do quisessem.
cérebrointeiramentelivre de névoas. O prior resolveuenfimfazê-
Antes,era precisoconfwsar; e isto era mais difícil. O Ingê-
nuo tinha sempreà mão o livro que o tio Ihe dera. Não encon-
(274) O curioso é que, em 1763, foram justamente os inglêses
que, pelo tratado de Paras, tinham arrebatadoà França o Gabada, o
Qhio e o Mississípi. (275) Cirurgião-ajudante, e mau cirurgião.
17
258 ROMANCES E CONTOS 0 INGÉNUO 259

trava nêlesenãoum únicoapóstoloque se confessou,


e isso o as duas mãos cruzadassôbreo peito. Elas soltaramum grito e
tornavamuitíssimoesquivo. O prior fechou-lhe
a boca,mos- desviaram o rosto. Mas a curiosidade venceu qualquer outra
trando-lhe, na epístola de S. Tiago Menor, estas palavras que dão consideração: ambas penetraram devagarinho entre os caniços e,
tanto desgasto aos herejes: Con/assai os vossos pecados üns aos quando ficaram certas de que não estavam sendo observadas, qui-
oüf,.s. Õ hurãocalou-se,e confessou-se
a um recoleto.Quan- seram ver de que se tratava.
do terminou, arrancou o recoletodo confessionárioe, segurando
o homem com braço vigoroso, colocou-seno seu lugar e fê-lo ficar
de joelhos diante dêles "Vamos, pneu amigo, foi dito: Con/eli- CAPÍTULO IV
sai-uosüm aos oülros; eu te contei os meus pecados,não sairás
daqui enquanto não me tiveres contado os teus." Assim falando, O INGENUO BATIZADO
apoiava o largo joelho no peito do recoleto. Ês.te solto grandes
gemidos que atroam a igreja. O ruído atraiu gente, e todos viram Tendo acorrido o prior e o abade, perguntaramêles ao In-
o catecúmenoque esmurravao mongeem nome de S. Tilgo gênuo o que fazia ali. "Como, senhores, então não sabem? Estou
Menor. A alegria de batizar um baixo-bretão, furão e inglês, esperandobatismo,há uma hora que estoucom água até o pes-
era tão grande, que se preferiu passar por cima dessassingula- coço, e não é carreto deixar-me assim no frio, a esperar.
ridades. 'E houve mesmo muitos teólogosque manifestaram a opi-
"Meu caro sobrinho,disse-lheo prior enternecido,não é as-
nião de que a confissão não era necessária,já que o batismo valia sim que se batiza na Baixa-Bretanha; vista de novo as suas rou-
por tudo. pas e venha conosco." A senhorita St. Yves, ao ouvir essaspala-
Marcou-sedia com o bispo de Saint-Mala,o qual, lison- vras, dissebaixinhoà sua companheira: "Senhorita,acha que
jeado como se pode imaginar de batizar um hurão, chegou com êle vai vestir logo as roupas?
pomposa equipagem, seguido de seu clero. A senhorita St. Yves, O furão, entretanto, respondiaao prior: "0 senhornão
rendendo graças a Deus, p6s o seu mais belo vestido e mandou me convenceradesta vcz como da outra; estudeibastantedesde
chamar uma cabeleireira de Saínt-Mala, para brilhar na cerimó- aquela ocasião e estou certíssimo de que o modo de batizar é êste
nia. O magistrado perguntador acorreu com toda a gente da e não outro. O eunucoda rainha Candácia276foi batizadonum
região. A Igreja estavamagnificamente ornamentada;mas quan- ribeiro; desafio-o a mostrar-me no livro que me mandou ler um
do chegou o momento de levar o hurão à pia batismal, não o en- único caso em que alguém se tenha ibatizado de outra maneira. Eu
contraram. não serei balizadode modo nenhum,se não fõr num rio." Foi
inútil argumentarque os usos tinhammudado: o Ingênuoera
O tio e a tia o procurarampor todaparte. Pensou-se
que teimoso, porque era bretão e furão. Voltava sempre ao eunuco
estivesse caçando, como era seu costume. Todos os convidados
da rainha Candácia; e embora a senhorita sua tia e a senhorita
à festa percorreram os bosques e as aldeias vizinhas: nenhuma
notícia do hurão. Começaram a recear que tivesse voltado à In- St. Yves, que o tinham observado entre os salgueiros, estivessem
no direitode dizer que não Ihe cabiacitar um tal homem,nada
glaterra. Lembravam-se de o ter ouvido dizer que gostava muito quiseramdizer, tão grande era a sua discrição. O próprio bispo
dêssepaís. O senhor prior e sua irmã convenceram-sede que não veio falar-lhe,o que é extraordinário; mas nada ganhou: o hurão
se batizarianinguém,e tremerampela alma do sobrinho. O discutiu com o bispo também.
bispoestavaconfundidoe prestesa ir-seembora;o prior e o
abade de St. Yves desesperavam-se;o magistrado interrogava "Mostre-me, disse-lho êle, no livro que meu tio me deu, um
todos os transeuntes com sua gravidade habitual. A senhorita únicohomemque não tenhasido batizadono rio, e farei tudo
Kerkabon chorava. A senhorita St. Yves não chorava, mas soltava o que quiserem.''
profundos suspiros que pareciam indicar o seu gasto pelo? sacra-
mentos. As duas passeavam tristemente ao longo dos salgueiros (276) Várias rainhas etíopes tiveram êsse nome: uma delas foi
e caniçosque margeiamo ribeiro de Rance, quando avistaram levada à religião cristã pelo seu tesoureiro, o eunuco Judas, que se con-
no meio da correnteuma figura de homem,bastanteclaro, com vertera no decorrer de uma viagem a Jerusalém.
260 ROMANCES E CONTOS
0 IKCÊNUO 261

A tia, desesperada,havia notado que a primeira vez que seu -Bretanha, à qual Deus negara as vinhas. Cada um se esfor-
sobrinho fizera a reverência, fizera-a à senhorita St. Yves mais
profunda que a qualquer outra pessoa da companhia; que nem çava por dizer algumacoisa interessante sôbre o batismodo
mesmo ao senhor bispo tinha êle saudado com aquêle respeito vi- Ingênuo,e galanteriasà madrinha. O magistrado,semprein'
brante de cordialidade que testemunharaà bela senhorita. Tomou, terrogativo,perguntavaao hurão se êle seria fiel às suas pro-
pois, a resolução de recorrer a ela naquela grande dificuldade; messas. "Como poderá crer que eu falte às minhas promessas,
pediu-lhe que interpusesse o seu prestígio para levar o hurão a respondeu o hurão, se eu as; depus nas mãos da senhorita
St. Yves?"
balizar-se segundo a maneira dos bretões, já que, como acredita-
va, o sobrinhonão poderia jamais ser cristão, se persistisseem O furão acalorou-se; bebeu muito à saúde do sua madri-
querer ser balizado na água corrente. nha. "Se eu tivessesido batizado por suas mãos, disse êle, sinto
que a .águ! fria que me foi denamada na nuca ter-me-ia quei-
A senhorita St. Yves corou do prazer secreto que sentia por
ser encarregada de tão importante missão. Aproximou-se modes- mado." O magistrado achou poéticas demais essas palavras,
tamente do Ingênuo e, apertando-lhe a mão com um modo
ignorandoquantoa alegoriaé familiarno Camada. A madri-
nha, porém,ficou extremamente
contentecom elas.
nobre: "Então, não fará nada por mim?''' disse-lhe ela; e, ao
pronunciar essas palavras, baixava os olhos e os levantava com Foí dado o nome de liércules ao batizado. O bispo de
graça comovedora. "Ah! tudo o que quiser, senhorita,tudo o Saint-Mala perguntava insistentementequem era êsse padroeiro
que mandar: batismode água, batismode fogo, batismode san- de quem nunca ouvira falar. O jesuíta, homem muito instruído,
gue,não há nada que eu Ihe recuse." A senhoritaSt. Yves teve disse-lheque era um santo que tinha feito doze milagres. Havia
a glória de conseguir com duas palavras o que nem as insistências um décimoterceiroque valia pelos doze outros, mas a res-
do prior, nem as interrogaçõesreiteradas do magistrado, nem as peito dêle não convinha que falasse um jesuíta: o de ter trans-
reflexões do próprio bispo tinham conseguido. Sentiu o seu formado cinqüenta virgens em mulheres numa única noite. Um
triunfo; mas não o sentia ainda em toda a sua extensão. gaiato ali presente mencionou êsse milagre com energia. Tôdas
O batismo foi ministrado e recebido com toda a decência. as senhoras baixaram os olhos, e julgaram, pela expressão do
toda a magnificência,
todo o agradopossíveis. O tío e a tia rosto do Ingênuo,que êle era digno do santocujo nometrazia.
cederamao senhorabadede St. Yves e à sua irmã a honra de
apadrinhar o Ingênuo junto à pia b-atismal. A senhorita St.
Yves mostrava-se
vibrantede alegriapor ser madrinha. Não CAPÍTULO V
sabia ainda ao que a sujeitaria êsse grande título; aceitavaa
honra sem conhecer as fatais consequências. O INGENUO ENAMORADO

Como nunca houve cerimónia que não fosse seguida de um


grande jantar, todos se puseram à mesa após o batismo. Os Deve-se dizer que, desde êsse batismo e êsse jantar, a senha
folgazõesda Baixa-Bretanha disseramque não conviria ba- rira St. Yves desejouardentemente
queo senhorbispoa fizes-
lizar o seu vinho. O senhor prior dizia que o vinho, segundo se ainda participantede algum outro belo sacramentocom o se-
Salomão, alegra o coração do homem277. O senhor bispo acres- nhor Hércules Ingênuo. Contudo, como era bem educada e bas.
centavaque o patriarca Judá deveriaamarrar o seu jumen- tange modesta, não ousava reconhecer inteiramente, consigo mes-
tinhoà vedee lavar a sua capano sanguede uvas278,e quc ma, seus ternos sentimentos; assim, se Ihe escapava um olhar, uma
era bem triste que o mesmonão se pudessefazer na Baixa- palavra,um gesto,um pensamento,
ela envolviatudo isso de
um véu de pudor infinitamente
amável. Era meiga,viva e
prudente.
(277) Eclesiasfes,
XL, 20: "0 vinhoe a músicaalegram
o co- Logo que o senhor bispo se foi, o Ingênuo e a senhorita
ração'
St. Yves se encontraram,sem ter refletidoque estavampro-
(278) Gê7zese,
XLIX, 11; é a prediçãode Jacó moribundo: "Êle curando um ao outro. Falaram-sesem ter imaginado o que di-
amarrará o seu jumentinho à vede. . . lavara suas vestes no vinho
riam. O Ingênuodisse-lhede início que a amava de todo o
262 ROMANCES E CONTOS
0 IK GÊNUO 263

coração, e que a bela Abacaba, por quem ficara louco em seu meu sobrinho, que está dizendo aí? Está, pois, apaixonadopela
país não Ihe chegava aos pés. A senhorita Ihe respondeu, com bela senhorita?'' "Sim, meu tio." "AI de mim! meu sobrinho,
sua habitualmodéstia, que era preciso falar a respeito do assun- é impossível que se case com ela."' "Isso é ]nuito possível,
to, e bem depressa,com o senhorprior seu tio e com a se- meu tio; porqueela não sòmenteme apertoua mão ao dei-
nhoritasua tia; e que, de sua parte, ela diria duas palavrasa xar-me, mas prometeu-meque iria pedir-me em casamento; e
certamente eu me casarei com ela." "Isso é impossível, digo
seu querido irmão, o ab-adede St. Y.ves. Disse, ainda, que eu; ela é sua madrinha: é um pecadohorrível a madrinhaaper-
tinha a esperança de obter um consentimento geral. tar a mão do afilhado; não é permitido desposar a madrinha;
O Ingênuo I'espondeu-lheque não tinha necessidadedo con- as leis divinas e humanas a isso se opõem.'' "Irra! meu tio,
sentimento de ninguém, e que Ihe parecia coisa extremamente estázombandode mim; por que seria proibido casar com a ma-
ridícula perguntara outros o que se devia fazer; que, quando drinha, quandoela é jovem e bonita? Não vi escrito no-livro
duas partesestãode acordo,não há necessidade
de um terceiro que me ãeu que seja pecadocasar com as jovens que ajudaram
para acomoda-las. "Não costumo consultar ninguém, disse êle, as pessoasa batizar-se. Verifico todos os dias que se faz
quando tenho vontade de almoçar, de caçar ou de dormir: sei aqui uma infinidade de coisas que não estão no seu livro, e
que, no amor, não fica mal obter o consentimentoda pessoaa quenão se faz nada do que lá se diz: confessogue.isso me
quem se ama; mas como não estou enamoradonem de meu tia confunde e me aborrece. Se me provarem da bela St. Yves por
nem de minha tía, não é a êles que devo dirigir me neste caso, e, se causa do meu batismo,previno-ode que a rapto e me desba-
acha que tenho razão, poderá dispensar,de sua parte, o con- Fixo.''
Z
sentimentodo senhor abade de St. Yves."
O prior ficou atónito; sua irmã chorou. "Querido irmão,
É fácil compreenderque a bela bretã empregoutoda a deli- disse ela, é preciso evitar que nosso sobrinho se dano eternamente;
cadeza de seu espírito para reduzir o seu hurão aos têrmos de nosso santo.padre, o papa, Ihe poderá dar dispensa, e assim êle
um conveniente decoro. Chegou mesmo a zangar-se, mas logo poderá ser cristãmente feliz com aquela a quem ama." O Ingênuo
acalmou-se. Enfim, não se sabe como teria terminadoessa con- beijou a tia. "Quem é, pois, êsse homem encantador que.favorece
versação se, como o dia declinasse,o senhor abade não tivesse com tanta bonda;deos moços e as maças em seus amores? Quero
levado a irmã para a sua abadia. O Ingênuo deixou que fossem ir falar-lhe agora mesmo.
dormir seu tio e sua tia, que estavamum poucofatigadosda
cerimóniae do prolongado jantar. Passouuma parteda noite Explicaram-lhe o que é o papa; e o Ingênuo mostrou-se ain-
a fazer versos à sua amada em língua hurã: deve-sesaber, com da mais espantadoque antes. "Não há uma palavra de-tudo isso
efeito,que não há país nenhumna terra em que o amor nãü no seu livro, meu querido tio; eu viajei, conheço o mar; estamos
torne poetas os amantes. aqui na costa do Oceano; e eu terei de deixar a senhoríta St. Yves
No dia seguinte,o tio assim Ihe falou, em presençada para ir pedir a permissãode amá-la a um homem que mora lá
senhoritaKerkabon,muito enternecida: "0 céu seja louvado, pelo Mediterrâneo, a quatrocentas léguas daqui, e cuja língua não
meu caro sobrinho,.porque tem a honra de ser cristão e baixo- entendo! Isso é de um ridículo incompreensível. Vou imedia-
bretão! Isso, porém, não é suficiente; já tenho alguma idade, tamente à casa do senhor abade de St. Yves, que mora a apenas
meu irmão só deixou um pequeno pedaço de terra, que é muito uma légua daqui, e digo que desposareia minha amada ainda
pouca coisa; tenho um bom priorado: basta que consintaem hoje."
J
fazer-se subdiácono, como espero, e resignarei ao meu priorado Quando êle ainda falava, entrou o magistrado que, conforme
em seu favor, o que Ihe permitiráviver )folgadamente,
depois seu costume, .perguntou-lhe aonde ia. "Vou casar", disse o In-
de ter sido a consolaçãode minha velhice. génuo, correndo, e um quarto de hora depois já estava em casa
O Ingênuo respondeu: "Meu tio, bom proveito Ihe fatal de sua bela e querida baixa-bretã,que ainda dormia.
Viva tanto quanto puder. Não sei o que é ser subdiácononem o "Ahl meu irmãos dizia a senhor'itaKerkabon ao prior, ja-
que é resignar; quanto a mim, dar-me-eipor satisfeito,desde
mais conseguirá fazer de nosso sobrinho um subdiácono.''
que tenha ã sonho;ita St. Yves à minha disposição." "Meu Deus!
264 ROMANCES E CONTos 0 INGÉNUO 265

O magistrado
ficou muitodescontente
com a partidado In- elitismonatural. "É preciso, dizia êle, que haja notários, padres,
gênuo, porque pretendia que o filho se casassecom a St. Yves; e testemunhas, contratos, dispensas.'' O Ingênuo respondeu-lhe com
êsse filho era ainda mais tolo e mais insuportávelque o pai a reflexão que os selvagens costumam formular: "Sois, nesse
caso, geltte bem desonesta, pois tendes necessidade de tantas pre-
cauçoes.''
CAPÍ'lTLO VI O abade ficou embaraçado para responder. "Reconheço, disse
O INGENU'O CORRE AO ENCONTRO DE SUA AMADA êle, que há muitosinconstantes
e velhacosentrenós; e outros
E FICA FURIOSO tantos haveria entre os hurões, se vivessem reunidos numa gran-
de cidade; mas há também almas sábias, honestas, esclarecidas,
O Ingênuo, logo que chegou, tendo perguntado a uma velha e são êsseshomens que fazem as leis. Quanto mais se é homem
de bem, tantomais se deve estar submissoàs leis: assim se dá
servidor'a onde ficava ó quarto de sua amada, empurrou fol'te-
mente a porta mal fechada e lançou-se para o leito. A senhorita exemplo aos viciosos, os quais respeitam um freio que a vir-
St. Yves,.despertando
em sobressalto,
exclamou:"Que é isto! é tude se impôs voluntàriamente."
o senhor! ah! é o senhor! pare! que está fazendo?"' Êle respon- Essa respostaimpressionouo Ingênuo. Já se fêz notar que
deu: "Vim desposá-la", e, com efeito, êle a desposava, se ela êle tinha o espírito justo. Abrandaram-no com palavras elogio-
não tivessese debatidocom toda a honestidadede uma pessoa sas; deram-lheesperanças: são os dois laços em que se prendem
que tem educação. os homens dos dois hemisférios; apresentaram-lhe a senhorita
O Ingênuo não estava para graças; achava todas aquelas ma- St. Yves, depoisde ter ela feito a sua foíZelle.Tudo se passou
neiras extremamenteimpertinentes. "Não era assim que procedia com o maior decoro; mas, apesar dessadecência,os olhos chis-
a sgnholita Abacaba, minha primeira amante; o que' Ihe falta é pantes do Ingênuo Hércules fizeram sempre baixar os olhos de
probidade; prometeu-mecasamento,e não quer fazer casamento: sua amada, e tremer a companhia.
isso é faltar à palavrade honra; eu a ensinareia mantera Houve muita dificuldade para fazê-lo voltar para junto dos
palavra dada, e pâ-la-ei no caminho da virtude." seus parentes. Foi preciso, uma vez mais, recorrer ao prestígio da
O Ingênuo possuía uma virtude máscula e intrépida, digna bela St. Yves; e ela, quanto mais sentia o seu pode; sabre êle,
do seu patrono Hércules, cujo nome Ihe fará dado no batismo; mais o amava. Ela o fêz partir, e ficou bem aflita com sua
ia aplica-laem toda a sua extensão,quando,aos gritos agu- partida; enfim, depois que êle se foi, o abade que, além de ser
dos da. senhorit!, mais discretamentevirtuosa, acorreu o pru- o irmão muito mais velhoda senhoritaSt. Yves, era tambémseu
dente abade de St. aves, com sua governante, um velho criado tutor, tomou a resolução de subtrair a pupila aos ardores daquele
devoto e um padre da paróquia. Sua chegada moderou a cora- terrível amoroso. Foi consultar o magistrado, o qual, como conti-
gem do assaltante. "Ohl meu Deus! meu caro vizinho. disse-lhe nuavaa destinaro filho à irmã do abade,aconselhou-o
a pâr a
o abade, que. está fazendo?" "0 meu dever, replicou o jovem; pobre maça num convento. Foi um golpe terrível: uma indife-
cumpro as minhas promessas, que são sagradas.'9' rente que se pusesse num convento daria altos gritos de protesto;
A senhorita St. Yves se compôs, corando. Levaram o Ingê- mas uma mulher que amava e se mostravatão prudentequanto
nuo para outro compartimento. O abade explicou-lhe,admoestan- carinhosa, era. caso para lança-la no desespêro.
do-o, a enormidade de seu procedimento. O Ingênuo defendia-se, O Ingênuo,de volta à casa do prior, contou tudo com sua
alegando privilégio da lei natural, que êle conhecia perfeitamente. habitual candura. Teve de ouvir de movo as mesmas advertências
O abade quis provar-lhe que a leí positiva devia ser colocada em que já ouvira antes, as quais produziram algum efeito em seu
primeiro lugar, e que, sem as convençõesfeitas entre os homens, espírito,mas nenhumem seussentidos. No dia seguinte,quan-
a lei da natureza279não passariaas mais das vêzesde um ban-
sentido de Espinosa: tudo o que é possívela um ser segundoas forças
(279) Voltaire toma aqui /e da natureza, como alhures direito qle Ihe dá a natureza,sem nenhumaidéia de bem e de mal, pois ainda
?zafuraZ(cf. CÂNnroo, vol. 1, n. 229) não no sentido de Rousseau, mas no não existe lei positiva.
266 ROMANCES E CONTOS O INGÉNUO 267

do êle quis voltar à casa de sua bela amadapara discutir com tíam os clamores: em quatro saltos lá está êle. O comandante
ela acêrca da lei natural e da lei de convenção, o senhor magis- da milícia, que tinha ceado com êle em casa do prior, reconhe-
trado Ihe disse,com uma alegria insultante,que ela estavanum ce-o imediatamente; corre-lhe ao encontro, de braços abertos:
convento. "Pois beml disse. o Ingênuo, vou debater o assunto "Ah! é o Ingênuo, êle combaterá por nós." E os milicianos,
com ela nesse convento." "Isso não pode ser", disse o magis- que antes morriam de mêdo, tranqüílizaram-se e também grita-
trado. E passou a explicar-lhe longamente o que é um conven- ram: "É o Ingênuo! É o Ingênuo!"
to; que essa palavra vem do latim conuenlüs,que quer dizer as-
sembléia; mas o hurão não podia compreendem' por que não podia "Senhores, disse êle, de que se trata? Por que estão sobres-
êle ser admitido nessa assembléia. Logo que ficou sabendo que saltados dêsse modo? Suas amantes foram postas em conven-
essa assembleia era uma espécie de prisão em que as jovens fica- tos?" ]=mtãocem vozes confusasgritaram: "Não vê que os
vam reclusas, coisa horrível, desconhecida entre os hurões e entre inglêses estão chegando?" "E que tem isso? replicou o furão,
os inglêses, tornou-se tão furioso como se mostrou o seu patrono, são gente muito boa; êles nunca pretenderam fazer-me subdiá-
Hércules, quando Eurito, rei da Ecália, não menos cruel que o cono; nem me roubaram a bem-amada.'
abadede St. Yves, recusou-lhe
a belaloja, sua filha, não menos O comandanteexplicou-lheque os inglêsesvinham pilhar a
bela que a irmã do abade. Êle queria põr fogo ao convento, raptar abadia da Montanha, beber o vinho de seu tio e, talvez, raptar
sua bem-amada, ou morrer queimado com ela. A senhorita Ker- a senhorita St. Yves; que o pequeno barco em que êle chegara
kabon, atónitacom tudo isso, renunciavamais do que nunca a às praias da Bretanha só tinha vindo para fazer um reconheci-
tôdas as esperanças de ver o sobrinho feito subdiácono, e dizia, mento da costa; que êles faziam atou de hostilidade sem ter de-
chorando, que êle tinha o diabo no corpo desde que recebera a clarado guerra ao rei da Fiança, e que toda a província estavaex-
batismo. posta. "Ahl se assim é, estão violando a lei natural; esperem
um pouco, vivi bastante tempo entre os inglêses, conheço-lhes
CAPÍ'lULa, Vll a língua,vou falar com êles; não creio que possamter tão
maus propósitos.
O INGÊNUO REPELE OS INGLÊSES
Durante essa conversa, a esquadra inglêsa aproxima-
va-se; o furão corre ao encontro dela, entra num pequeno -barco,
O Ingênuo, mergulhado em tenebrosa e profunda melancolia, alcança-a,sobe à nau capitania,e perguntase é verdadeque
encaminhou
se para beiramar, o fuzil de dois tiros ao ombro, êles vêm assolar o país sem ter, honestamente,declarado guer-
Q tacão na cinta, atirando de vez em quando em algum ra. O almirantee todos os homensdo navio deram grandes
pássaro, e muitas vêzes tentado a atirar em si mesmo; ]-nas gargalhadas,fizeram-no beber ponche e mandaram-no de volta.
amavaainda a vida, por causada senhorítaSt. Yves. Ora O Ingênuo,irritado, só pensouem lutar valorosamentecon-
amaldiçoava o tio, a tia e tôda a Baixa-Bretanha, e seu batismo;
ora os abençoava, porque Ihe tinham feito conhecer aquela a quem
tra seus antigos amigos, pelos seus compatriotas e pelo prior.
Firmava-se na resolução de ir queimar o convento, e Os gentis-homensdas vizinhanças acorreram de todas as partes;
repelia de pronto essa ideia, com mêdo de queimar sua amada. o Ingênuoreuniu-sea êles. Havia algunscanhões;êle os
As ondas da Mancha não são mais agitadas pelos ventos de leste e carrega, coloca-osem posição, dispara um após outro. Os in-
de oeste do que o era seu coração por tantos impulsos contrá- glêses desembarcam; êle corre-lhes ao encontro, mata três com
rios suas mãos, fere o próprio almiranteque tinha zombadodêle
Seu valor anima a coragem de toda a milícia; os inglêses reembar-
Caminhava a grandes passadas, sem saber aonde ía, quarldo cam e toda a costareboa com os gritos de vitória: "Viva o reí,
ouviu o rufar do tambor. Avistou de longe todo um povo que
viva o Ingênuo!" Todos o abraçavam, todos se empenhavam
corria, metadepara as praias, metadepara fugir.
em fazer estancaro sanguede alguns ferimentosleves que rece-
Mil gritoselevavam-se
de todosos lados; a curiosidadee o bera. "Ah! dizia êle, se a senhoritaSt. Yves aqui estivesse,ela
valor o precipitamno mesmoinstantepara o lugar de ondepar- me poria uma compressa.''
268 ROMANCES E CONTOS O INGÉNUO 269

O magistrado,que se esconderaem sua adegaduranteo mirou-se de ver a cidade quase deserta, e de ver várias famílias
combate,veio cumprimenta-lo
como os outros. Mas ficou bem prepamndo-separa fazer mudança. Dissertam-lhe
que seis anos
surpreendidoquando ouviu Hércules Ingênuo dizer a uma dúzia antes Saumur abrigava mais de quinze mil habitantes, e que então
de jovens de boa vontade, que o cercavam: "Meus amigos, não só tinha seis mi1280. Êle não deixou de conversar a'êsse res.
é nadater livradoa abadiada Montanha;é precisolivrar uma peito.duraTltea ceia, em sua estalagem. Vários protestantesesta-
jovem." Toda aquelaruidosa juventudeinflamou-secom essas vam a mesa: uns queixavam-seamargamente,outros fremiam de
cólera, outros diziam chorando:
palavras. Seguiam-nojá em multidão,corriam ao convento. Se
o magistrado não tivesse imediatamenteadvertido o comandante, Nos dulcialinquimuserva
se não se tivessecorrido em pós daquelatropa jovial, a coisa Nos patrialn fugimus 281
estavafeita. O Ingênuofoi levadopara junto de seu tio e de
sua tia, que o banhavam de lágrimas de ternura. O Ingênuo, que não sabia latim, pediu que Ihe explicassem
"Compreendoagora que jamais será nem subdiácononem essas palavras, que significam: Nós abandonamos os nossos cam-
prior, disse-lheo tio; será um oficial ainda mais valorosoque pos amenos,fugimosde nossa pátria.
meu imlão, o capitão,e, com todaa probabilidade,tão indigente 'E por que fogem de sua pátria, meus senhores?" "Por-
quanto êle." A senhoritaKerkabon chorava sempre, abraçan- que querem que reconheçamoso papa." "E por que não o reco-
do-o e dizendo: "Êle se fará matar como meu irmão; seria bem nhecem? Então os senhoresnão têm madrinhasque queiram des-
melhor que se fizesse subdiácono." posar. Disseram-me
que é êle quemdá a permissão." "Ahl
O Ingênuo, durante o combate, apanhara uma volumo- meu amigo, êsse papa diz que é senhor do domínio dos reis."
sa balsa, cheia de guinéus,que provàvelmente
o almirantetinha "Ora, senhores,qual é a profissãoqueexercem?" "Somosna
deixado cair. Estava certo de que com aquela bôlsa poderia com- maioria mercadores ou fabricantes de tecidos."' "Se o papa diz
prar toda a Baixa-Bretanha e, principalmente, fazer da senhorita ser o senhor dos tecidos e das fábricas que lhes pertencem,está
St. Yves uma grande dama. Todos o exortavam a fazer a via- muito certo que não o reconheçam;mas se se trata dos reis, o
gem a Versalhes para receber o prêmio de seus serviços. O co- caso interessa aos reis; não compreendo por que se preo-
mandante e os principais oficiais o cumularam de certificados. O cupam 282."
tio e a tia aprovaram a viagem do sobrinho. Êle deveria ser, sem Nesse ponto, um homenzinho vestido de prêto tomou a pala-
dificuldade,apresentadoao rei: isso Ihe daria um prodigiosore- vra e expôs com muita competência os motivos de queixa de toda
lêvo na província. Os dois bons tios acrescentaram à b-algainglêsa a gente. Fa]ou da revogação do ]!;dito de Nantes com tanta ener.
um presenteconsiderável,tirado de suas economias. O Ingênuo gia, deplorou de maneira tão patética a sorte de cinqüenta mil
dizia consigo mesmo: "Quando eu vir o rei, pedir-lhe-ei a se- famílias fugitivas e cinqüenta mil outras convertidaspelos dra-
nhoritaSt. Yves em casamento,e certamente não me recusará." gões, que o Ingênuo, por sua vez, derramou lágrimas. "Como
Êle partiu sob as aclamaçõesde todo o cantão, sufocada se explica, dizia êle, que um tão grande rei, cuja glória se estende
de beijos e abraços,banhadodas lágrimasda tia, com a bênção até ao país dos furões, possa privam'-se, dêssemodo, de tantos
do tió, e recomendando-seà bela St. Yves. cotações que o teriam amado, de tantos braços que o teriam ser-
vido ./''
6€

É que foi enganadocomo os outros grandes reis, res-


CAPÍTULO Vlll pondeu o homem de prêto. Fizeram-no acreditar que, com ape-

O INGENUO VAI A CORTE (280) Saumur era uma cidadeprotestante:a revogaçãodo Edita
de Nantes esvaziou-a de metade dos 'seus habitantes.
ELE CEIA, EM CAMINllO, COM ALGUNS IHUGUENOTES
(281) Virgílio: Bucólicas 1, v. 3-4: "Mas nós, deixamos as nossas
terras amenas; nós, fugimos de nossa pátria.. ..
O Ingênuo seguiu para Saumur de caleça, porque não havia (282) É o que teria respon'dado
Fontenellea um comerciantede
então outra viatura mais cómoda. Quando chegoua Saumur, ad- Ruço que era jansenista.
270 ROMANCES E CONTOS O INCÊmuo 271

nas uma palavra sua, todos os homenspensariamcomo êle; e Aquela boa gente tomou.o então por algum grão-senhor
que nos faria mudar de religião tão fàcilmentecomo o seu que viajasse incógnito de cabeça. Alguns supuseram que fosse o
músico Lulli muda num momento os cenários de suas ópe- bobo do rei.
Êle não só já estáperdendode quinhentos a seiscentos míl Estava também à mesa um jesuíta disfarçado que servia como
súditosmuito úteis, como transformando-os em inimigos; e o espião do reverendo padre La Chaise. relatava-lhe tudo, e o
rei Guilherme, que é atualmente senhor da Inglaterra, formou padre La Chaise informava o Senhor de Louvois. O espião escre-
vários regimentoscom êssesmesmosfrancesesque poderiam com- veu. O Ingênuo e a carta chegaram quase ao mesmo tempo a Ver-
bater pelo seu monarca. salhes.
"Tal desastreé tanto mais espantosoquanto o papa rei-
nante283,a quemLuís XIV sacrificauma partede seu povo, CAPÍTULO IX
é seu inimigo'declarado. Sustentamainda uma violenta querela, CHEGADA DO INGENUO A VERSALHES
que já dura nove anos, chegandoa tal ponto, que a França SUA RECEPÇÃO NA CORTE
esperou ver quebrado enfim êsse jugo que a submete há tantos
séculos a êsse estrangeiro, e, soba'etudo, não Ihe dar mais dinheiro,
que é o primeiro móvel dos negócios dêste mundo. Parece, pois, O Ingênuo salta do seu "pot de chambre" (a) no pátio das
evidenteque enganaram êsse grande rei quanto aos seus inte- cozinhas. Pergunta aos carregadores da cadeirinha a que hora se
rêsses e quanto à extensão de seu poder, e que atentaram con pode ver o rei. Os carregadores Ihe riem no nariz, exatamento
tra a magnanimidade do seu colação.' como fizera o almirante inglês. Êle os trata do mesmo modo, ba-
te-lhes;queremdevolver-lhe
as pancadas,e a cena teria sido
O Ingênuo,cada vez mais enternecido,
quis saber quais sangrenta, se não tivesse passado por alí um soldado da guarda
os francesesque assim enganavamum monarca tão querido dos real, gentil-homem bretão, que afastou a canalha. "Senhor, dis-
hurões. "São os jesuítas, responderam-lhe; especialmente o pa' se-lheo viajante, parece-meque é um homem de coragem; sou o so-
dre La Chaise 284,'confessor de Sua Majestade. Esperemos que brinho do senhor prior de Nossa Senhora da Montanha; matei in-
Deus lhes dê um dia a punição que merecem, e que êles sejam glêses,venhofalar ao rei; peço-lheque me leve aos seusapo-
expulsos, como nos expulsam agora 285. Haverá uma infelici- sentos." O guarda,encantado de encontrarum bravode sua
dade igual à nossa? O Senhor de Louvois nos manda de todos província,que não pareciaa par dos costumesda côrte, ex-
os lados jesuítas e dragões. plicou-lheque não se falava assim sem mais aquela ao rei, que
"Pois beml senhores, replicou o Ingênuo, que não podia era preciso ser apresentadopelo Senhor de Louvois. "Pois bem!
mais conter-se, vou a Vemalhes receber a recompensa devida aos leve-me,pois, a êsseSenhorde Louvois, que sem dúvida me con-
meus serviços; falarei a êsse Senhor Louvois: disseram-meque duzirá a Sua Majestade." "Ainda é mais difícil, replicou o guar-
é êie quem dirige a guerra, de seu gabinete. Verei o rei e fá-lo-ei da, falar ao Senhorde Louvoisque a Sua Majestade;mas vou
conhecer a verdade; é impossível que alguém deixe de submeter-se leva-loao senhorAlexandre,primeiro-secretário
da Guerra: é
a essa verdade quando a conheça. Voltarei logo para desposar como se falasse ao ministro.'' Vão, pois, a êsse senhor Alexan-
a senhoritaSt. Yves, e convido-os
para as bodas." dre, primeiro-s.ecretárío,e não podem ser introduzidos; êle estava
ocupadocom uma dama da carte, e havia ordem de não deixar
entrarninguém. "Pois beml disseo guarda,não há nada per-
(283) Inocência XI, com quem Luas XIV entrou em conflito dido; vamos procurar o primeiro-secretário do senhor Alexandre :
por causada RégaZe. [Direitoque possuíamos reis de F.rançade.cobrar é como se falassecom o próprio senhor Alexandre.'
os rendimentos dos bispados e arcebispados que não tivessem titulares
e de nomearpessoaspara os ocuparem N. do T.] O hurão, atónito, o segue; ficam juntos uma meia hora nu-
(284) Jesuíta francês (1624-1709), negoci?dor. s.Sclleto. entre o
ma pequenaantecâmara. "Que vem a ser afinal tudo isto? diz o
rei e o papa por ocasião da questão da RégaZe. Sua influência sabre a
revogação do Edita de Nantes é contestada. (a) É uma viatura usada no transporte de Paras a Versalhes
(285) Os jesuítas forana expulsos da França em 1764. semelhantea uma carroça de duas rodas, coberta. (Nota de Voltaire.)
272 ROMANCES E CONTOS O INaÊKuo 273

Ingênuo; será que todo o Inundo é invisível neste país? É })em baixo-bretão, foi dormir com a doce esperança de ver o rei no
mais fácil bater-secontra os inglêsesna Baixa-Bretanhado que dia seguinte, de obter a senhorita St. Yves em casamento, de con
encontrar em Versalhes as pessoascom quem se precisa tratar." seguir pelo menos uma companhia de cavalaria e de fazer cessar
Para passar seu aborrecimento, contou seus amores a seu pompa' a campanha contra os huguenotes. Embalava.se com êsses
trinta. Mas soou a hora em que o guarda real tinha de se apõe' agradáveis pensamentos, quando os homens da polícia entraram
sentarem seu pôsto. Êles prometeramtornar a ver-seno dia em seu quarto. Antes de mais nada, êles se apoderaramde seu
seguinte, e o Ingênuo permaneceu ainda mais uma meia hora na fuzil de dois tiros e de seu grande sabre.
antecâmara, pensando na senhorita St. Yves e na dificuldade de
falar ao rei e aos primeiros-secretários.
Fizeram um inventário de seu dinheiro de contado, e leva-
ram-no para o castelo que o rei Carlos V, filho de Jogo 11. fêz
Enfim, apareceu o patrão. "Senhor, disse-lhe o Ingênuo, se con?ttuir perto da rua St. Antoine, junto à porta de Tournel-
eu tivesse esperadopara repelir os inglêsestanto tempoquanto les 286
me fêz esperar a minha audiência, êles estariam assolandoatual-
mente a Baixa-Bretanha sem nenhuma preocupação." Essas pala- Deixo ao leitor o cuidado de imaginar qual fosse o espanto
vras impressionaram
o secretário. Êle disse,afinal,ao bre- do Ingênuo ao ser levado assim. Pensou a princípio que estivesse
sonhando. E permaneceu um tempo meio 'embrutecido; depois,
tão: "Que é que pede?" "Recompensa, respondeu o outro; aqui
estão os meus títulos." Apresentou-lhe
todos os seus certifi- repentinamente,exaltado por um transporte de furor que Ihe redo-
cados. O secretário leu e disse-lhe que provàvelmenteIhe seria ava..as forças, segurou pela. garganta dois dos guardas que
dada permissãopara comprar uma tenência. "Eu! que eu dê com êle estavam na carroça, lançou-os pela porta e lançou-se
dinheiro por ter repelido os inglêses? Que pague o direito de atrás dêles,.arrastando no impulso o terceiro guarda, que queria
me fazer matar pelos senhores,enquantoaqui ficam dando as relê-lo. Cai, com o esÍõrçofeito; é amarradoe arremessado
de
suas audiênciastranqüilamente? Acho que está querendorir. novo na viatura. "AÍ está,.dizia êle, o que se lucra por expulsar
Quero uma companhiade cavalaria de graça; quero que o rei os inglêsesda Baixa-Bretanhal Que diria a bela St. Yves, se me
visse neste estado?'''
faça sair do conventoa senhoritaSt. Yves, e que êle ma dê em
casamento;quero falar ao rei em favor de cinqüentamil famí- Chegam enfim à morada que tara destinada ao hurão. Le-
lias que pretendoentregar-lhe. Numa
}' palavra, quero ser útil; que vam-noem silêncio pal'a o quarto onde devia ficar encerrado,
me empregueme me promovam. como um morto qu? se leva ao cemitério. O quarto já estava
"Qual é o seu nome, senhor que fala tão alto?"' "Ohl oh! ocupadopor um velho solitário de Port-Royal, chamado'Gordos,
que ali perlava havia dois anos. "Olhe, disse-lhe o chefe dos esbir:
respondeu o Ingênuo, então não leu os meus certificados? Então
é assim que se faz? Eu me chamoHérculesde Kerkabon; sou ros, trago-lhe aqui companhia"; e imediatamente foram fechados
balizado e estou alojado no Quadrante Azul, e vou queixar-me os enomzes ferrolhos da pesada porta, recoberta de largas bar-
ao rei a seu respeito". O secretárioconcluiu,comoa gentede Os dois cativos ficaram separadosdo universo inteiro.
Saumur, que êle não tinha a cabeça bem certa, e não deu muita
atenção ao caso.
Nesse mesmo dia o reverendo padre La Chaise, confessor de CAPÍTULO X
Luas XIV, recebera a carta de seu espião, acusando o bretão Ker O INGÊNUO ENCERRADO NA BASTILHA COM UM JANSENISTA
kabon de favorecer em seu coração os huguenotese de condenar a
conduta dos jesuítas. O Senhor de Louvois, de sua parte, tinha
recebido uma carta do magistrado perguntador, pintando o In- O senhor Gordon era um velho viçoso e sereno, que sabia
gênuo como um patife que queria queimar os conventos e ]'aptar duas grandescoisas: suportar a adversidadee consola:'os infe-
moças. lizes. Com um modo-francoe compassivo,
avançoupara o seu
O Ingênuo,depois de ter passeadonos jardins de Versa-
Ihes, onde muito se aborreceu, depois de ter ceado como hurão e (286) A Bastilha.
18
274 ROMANCES E CONTOS 0 1 NGÊ NUO 275

companh-eira e disse-lhe, abraçandjo-o: "Quem quer que seja velho, sem outra consolação a ílão ser eu mesmo e livros; não
o qÚe vem compartilhar o meu túmulo, esteja certo de que eu me tive um momentode mau humor."
esquecereisempre de mim mesmo para minorar seus tormentos no
abismo infernal em que fomos mergulhados. Adoremos a Pro- "Ah! senhor Gordon, exclamou o Ingênuo, então não ama
vidência que aqui nos trouxe, soframos ein paz, e esperemos. a sua madrinha? Se conhecesse
comoeu a senhoritaSt. Yves,
Essas palavras produziram na alma do hurão o efeito de "gotas estaria desesperado." A essaspalavras,não pede reter as lágri-
da Inglaterra"]87, que chamamum moribundoà vida, e fize- mas,. o então sentiu-se um pouco menos oprimido. "Por que se-
ram-no arregalar olhos de grande espanto rá, disse êle, que as lágrimas dão alívio? Parece-meque deve-
riam ter o efeitocontrário."
Depois das primeiras palavras de aproximação, Gordon, ?em "Meu filho, tudo é físico em nós, disseo bom velho; Leda
o apressar a dizer-lhe a causa de sua infelicidade, inspirou-lhe, secreçãofaz bem ao corpo; e tudo o que Ihe dá alívio alivia
pela serenidade de seus modos, e por êsse interêsse que têm dois também a a]ma: somos as máquinas da ]5rovidência."
infelizesum pelo outro, o desejode abrir o coraçãoe livrar-se
do fardo que o esmagava; mas o furão não podia adivinhar O Ingênuoque, como já várias vêzesdissemos,tinha um
o motivo de seu infortúnio, que:Ihe parecia um efeito sem grande fundo de inteligência, fêz profundas reflexões acêrca dessa
causa; e o bom Gordon estavatão espantadocomo êle mesmo. idéia, cuja sementeparece que ê]o já tinha em si. ]l=mseguida,
perguntouao companheiro
por que motivoa sua máquinaper-
"É preciso,disse o jansenistaao hurão, que Deus tenha maneciahavia dois anos sob quatro ferrolhos. "Pela graça efi-
grandes desígnios a seu respeito, pois que êle-o conduziu do lago caz290,respondeuGordon; passo por jansenista:co;heci Ar.
Ontário à Inglaterra e à França, fêz com que fosse batizado na e .Nicole; os jesuítas nos perseguiram. Acreditamos que
Baixa-Bretanha,
e o pâs aqui para sua salvação"288. "Por o papa é.apenas !in bispo como outro qualquer; e foi por i«o
minha fé, respondeuo Ingênuo, creio que só o diabo se interessou que o padre La Chaise obteve do rei, seu penitente, uma ordem
pelo meu destino. Meus compatriotasda América nunca teriam de me arrebatar, sem nenhumaformalidade legal, o bem mais
agido com a barbárie que estouexperimentando: nem podem precioso dos homens, a liberdade."
ter idéia dela. Êles são chamadosseZuagens; são gentede bem ''Eis uma coisa bem estranha, disse o Ingênuo; todos os infeli-
grosseira, ao passo que os homens dêste país são refinados pati- zes que tenhoencontrado,só o são por causa do papa. Quanto a
fes. Estou, na verdade, bem surprêso de ter vindo de um outro essa vossa graça eficaz, confessoque nada entendodisso; mas
mundo para ser trancafiado neste, a quatro ferrolhos, em campa' considerouma grande graça que Deus me tenhafeito encontrar,
nhja de um clérigo; mas estou pensando no número prodigioso em meu infortúnio, um homem como o senhor, capaz de derra-
do homens que partem de um hemisfério para irem fazer-sema- mar em meu coração consolações que eu não teria encontrado
tar no outro, ou que naufragamem caminho 6 são comidospelos por mim mesmo.'
peixes: não vejo os graciosos289desígniosde Deus em relação Cada dia a conversaçãose tornava mais interessantee mais
a tôda essa gente." instrutiva. As almas dos dois cativos afeiçoavam-seuma à outra.
Passaram-lhe a comida atravês de um postigo. A conver- O velho sabia muito e o jovem queria aprender muito. Ao fim
sa girou em terno da Providência,das orden.srégias e da de um mês, êle estudoua geometria; devorava-a. Gordon o fêz
arte de não sucumbir sob as desgraçasa que todo homemestá ler a /'ísíca de Rohault291, que ainda estava na moda, e êle
sujeito neste mundo. "Há dois anos que estou aqui, disse o teve bastante espírito para só encontrar nela incertezas.

(287) Cordial inventadopelo médicoinglês Goddard, no tempo (290) Porque os jansenistas não estavam de acordo com a orto.
de Carlos 11, em voga na França no fim do séculoXVII. doxia quanto às noçõesde graça suficiente e de graça eficaz ou eficiente: cf
(288) O hurão é, pois, zlm e/eito; é a forma jansenista do pan- Prouí7zciales,
1, e Siêc/ede Zot&is
.X/7, cap. Si. '
glossismo. (291.) O rraifé de pÀysíque de RoÀauit (1771), discípulo de Des-
cartes.. A.comparação do corpo do homemcom uma máquinaé uma
(289) Inspirados pela graça. idéia de Rohault.
276 ROMANCES E CONTOS 0 1 NGÊNUO 277

Em seguidaleu o primeirovolumede 2 proctlrada rer a pTemoçãofísica 294), que o Ingênuo chegou a ter piedade dêle.
dade292. Essa novaluz o iluminou. "Como! disse êle, nossa Essa questão relacionava-se evidentementecom a origem do bem
imaginação e nossos sentidos nos enganam a tal ponto! Quêl e do mal; e por isso foi necessário
que o pobreGordon pas-
os objetos não formam nossas idéias e nós não podemos dar-no-las sasseem revistaa caixinha de Pandora, o âvo de Orosmada furado
nós mesmos293." Com a leitura do segundovolumeficou me por Arimã, a inimizade entre Tufão e Osíris, e por fim o pecado
nos contente,e concluiuque é mais fácil destruir que cons- original295; e amboscorriam nessa noite profunda, sem nunca
truir se encontrarem. Mas afinal êsse romance da alma 296 desviava a
Seu confrade, admirado de que um jovem ignorantefizesse sua vista da contemplaçãoda própria miséria em que se encon-
tal reflexão, que só pertence às almas exercitadas, passou a ter travam e, por um estranho encantamento,a multidão das calami-
em grande conta seu espírito, e afeiçoou-semais a êle. dades espalhadas no universo diminuía a sensação de seus males:
não ousavam queixar-se quando tudo sofria.
"0 seu Malebranche, disse-lhe um dia o Ingênuo, parece' Mas, no repousoda noite,a imagemda belaSt. Yves apa'
me ter escritometadede seu livro com a razão, e a outra 9
cava no espírito de seu amante todas as idéias de metafísica
metade com a imaginação e seus preconceitos.
e de moral. Êle despertava com os olhos marejados de lágrimas;
Alguns dias depois, Gordon perguntou-lhe: "Que pensa e o velho jansenista esquecia a sua graça eficaz, o abade de Saint-
acêrca da alma, da maneira como recebemosnossas idéias, de Cyran e Jansenius, para consolar um jovem que êle acreditava
nossa vontade, da graça, do livre arbítrio?" "Nada, respondeu- estivesse em pecado mortal.
-lhe o Ingênuo; se eu pensassealgumacoisa, seria que estamos Depois de suas leituras, depois de suas reflexões fala-
sob o poder do Ser eterno como os astros e os elementos;que vam ainda de suas aventuras; e, depois de terem inutilmente
êle faz tudo em nós; que somospequenasrodas da máquina falado delas, liam juntos, ou separadamente. O espírito do jo-
imensade que êle é a alma; que êle age por leis gerais e não vem mortificava-se cada vez mais. ]i;m matemáticas, sobretudo,
por visões particulares: só isso me parece inteligível; tudo o êle teria ido muito longe, sem as distrações provocadas pela senho-
mais é para mím um abismode trevas. rita St. Yves.
"Mas, meu filho, isso seria fazer de Deus o autor do pe- Leu histórias que o entristeceram. O mundo pareceu-lhe
muitomau e muitomiserável. Na verdade,a histórianadaé
cado." "Sim, meu padre, mas a sua graça eficaz faria também senão o quadro dos crimes e das infelicidade$. A multidão dos
de Deus o autor do pecado; porquanto é certo que todos aquêles homens inocentes e pacíficos sempre desaparecenesses vastos tea-
a quem essa graça fôsse recusadapecariam; e quem nos entrega tros. Os personagenssão sòmenteambiciososperversos. Parece
ao mal não é o autor do mal?"
que a história só agrada como a tragédia, que perde o interêsse
Essa candura embaraçavaconsideràvelmenteo bom homem; se não fâr animada pelas paixões, pelos crimes e os grandes
êle compreendia que estava fazendo vãos esforços para sair de infortúnios. É preciso armar Clip de punhal, como Melpâ-
um beco sem saída; e fazia tantos discursos que pareciam ter mene.
sentido e que não tinham sentido nenhum (de tão bom gasto como Se bem que.a história da França estejacheia de horrores,
como todas as outras, ela Ihe pareceu tão repugnante nos seus
inícios, tão sêca no meio, tão mesquinhamais tarde, mesmono
(292) Do cartesiano Malebranche. No primeiro volume (1674)
Voltaire admira um raciocínio que se liberta da autoridade e uma boa
crítica do conhecimento (erros dos sentidos, da imaginação, etc.) ; no (294) Ação eficaz de D.eus sabre a vontade ]lumana, segundo o
segundo (1675), critica a metafísica e o método a priori. sistema tomista. ' Malebranche, nas suas RéJÍ/exo?zilur /a prámofion pÀp-
riqzie (1715) respondeu a uma obra de Boursier publicada em 1713 sabre
(293) É a teoria da visão em Deus. Malebranche afasta a teo- o mesmo assunto.
ria das idéias-imagens,
intermediáriasentre os corpos e nós, e proce-
dentes dos corpos; nega que a alma possa produzir as idéias das coisas (295) Explicações diversas da origem do mal, segundo as reli-
materiais;é Deus que conhecetodas as essênciase é na inteligênciade gioes grega, persas egípcia e cristã.
Deus que a inteligênciado homem,unida a ela, vê as idéiasdo mundo. 1296) A metafísica.
278 ROMANCES E CONTOS 0 INCA NUO 279

tempode HenriqueIV, sempretão desprovidade grandesmonu- do, nuncacom o futuro. Percorri quinhentasou seiscentaslé-
mentos, tão estranha a essas belas descobertas que ilustraram guas do Canadá sem encontrar nenhum monumento; lá, ninguém
outras nações, que êle se viu obrigado a lutar contra o aborreci- sabe nada do que fêz seu bisavó. Não seria êsse o estadonatu-
mentopara poder ler todosêssespormenoresde obscurascalami- ral do homem? A espécie dêste continente me parem superior
dades reunidas num pequeno recanto do mundo. à do outro. Ela desenvolveu
o seupróprioser, atravésde vários
Gordon l)ensavacomo êle. Os dois riam de dó quando se séculos, pelas artes e pelos conhecimentos. Será porque tem barba
tratava dos soberanos de Fezensac, de Fesansaguet e'de Asta- no queixo e Deus recusou a barba .aos americanos? Não o creio,
rac 297. Êsse estudo, na verdade, só poderia interessar aos seus pois vejo que os chinesessão quaseinteiramentedesprovidosde
herdeiros,se os tivessem. Os belos séculosda repúblicaromana barba,e cultivamas arteshá maisde cincomil anos. Com
o tornaram algum tempo indiferente para o resto da terra. O efeito,se êles têm mais de quatro mil anos de anais, é preciso
espet?culo de R?ma vitoriosa e legisladora das nações ocupava que a nação tenha surgido e florescido há mais de cinqüenta
sua alma toda. Êle se acalorava, pensando nesse povo que foi go- seculos.
vernado durante setecentosanos pelo entusiasmoda liberdade e Uma coisa me parece interessantíssima nessa antiga his-
da glória. tória da China: aí quase tudo é verossímil e natural. Admiro-a
Assim se passavamQS dias, as semanas,os meses; e êle ter- porque nada tem de maravilhas.o.
.se-ia julgado feliz na morada do desespêro, se não tivesse um
amor no coração. "Por que motivo todas as outras nações quiseram atribuir-se
origensfabulosas? Os antigoscronistasda históriada França,
Sua boa índoleenternecia-se
tambémpelo prior de Nossa que não são tão antigos, fazem os francesesproceder de um franco,
Senhora di! Montanha, e pela sensível senhorita Kerkabon. "Que filho de feitor; os romanos diziam-se descendentesde um frígio,
pensarão êles, repetia êle sempre, sem notícias minhas? Hão'de embora não haja em sua língua uma única palavra que tenha a
julg?r-me um ingrato." Essa ideia o atormentava; compadecia- menor relação com a língua da Frígia; os deuses moraram dez
se dos que o amavam,muito mais do que de si próprio. mil anosno Evito, e os diabosna Cítia, onde engendraramos
hunos. Não vejo, antes de Tucídides, senão romanos seme-
lhantesaos Amádis, e bem menos interessantes. Por toda parte
CAPÍTULO XI são aparições, oráculos, prodígios, sortilégios, metamorfoses, so-
nhos explicados, e que faz-emo destino dos maiores impérios e
O INGÊNUO DESENVOLVE O SEU GÊNIO
dos mais insignificantesEstados: aqui animais que falam, ali
animais que são adorados, os deuses transformados em homens,
A leitura engrandece a alma, e um amigo esclarecido a con. e homens transformados em deuses. Ahl se temos necessidade
sola. O nosso cativo desfrutava essas duas vantagens,de cuja exis- da fábulas, que essas fábulas sejam pelo menos o emblema da
tência antes nem sequer suspeitara. "Eu estaria tentado. disse verdades Gosto das fábulasdos filósofos,rio-me com as das
êJe, a crer nas metamorfoses,pois fui mudado de bruto em ho- crianças e odeio as dos impostores.
mem:" ..Com uma parte do seu dinheiro,de que Ihe era per- Êle topou um dia com uma história do imperador Justiniano.
mitido dispor, formou uma bibliotecaescolhida.'0 amigo o ani- Nela dizia-se que alguns apedeulas de Constantinopla tinham
mou a põr por escrito suas reflexões. Eis o que êle escreveu
sabre a história antiga: lançado, em muito mau grego, um edita contra o maior capitão
do século 298, porque êsse herói tinha pronunciado as seguintes
"Imagino que as nações permaneceram longo tempo como palavras no calor da conversação: "A verdade resplandece com
eu, que elas só se instruíram bem tarde, que durante séculos só sua própria luz, e não se iluminam os espíritos com as chamas
se ocuparam com o momentopresente,muito pouco com o passa-
(298) Belisário. Alusão ao fato de .a Faculdadede Teologiade
(297) .Pequenos 11ondados,que tinham apenas umas poucas léguas, Paraster censuradoo Béliscz
re ( 1767), romancefilosóficode Marmontel,
agregados, durante a Idade Média, ao condado de Armagnac. amigo de Voltaire, por causa do capítulo 15, sabre a tolerância.
280 ROMANCES E CONTOS 0 INGÉNUO 281

das fogueiras." . Os apedeutas sustentaram que essa proposição encantava. "Como é triste, dizia êle, só começar a conhecer
era herética, cheirava a heresia, e que o axioma' contrário o céu quandome arrebatamo direito de o contemplar! Júpi-
era católico, universal, e grego: "Não se iluminam os espíritos ter e Saturno rolam nesses espaçosimensos; milhões de sóis ilu-
senão com a chama das fogueiras, e a verdade não poderia luzir minam bilhões de mundos; e no recanto da terra onde estou jo-
com sua própria luz." Êsses linóstolas
299 condenaramassim gadoencontram-se
sêresque me privam a mim, ser videntee
vários discursos do capitão, e baixaram um edita." pensante,de todos êsses mundos que a minha vista poderia al-
;Comol exclamou o Ingênuo, editor baixados por essa gente!" cançar,e daqueleein que Deus me fêz nascer! A luz feita
"Não eram editas, replicou Gordon, mas contra-editasdos para todo o universo está perdida para mim. Ninguémma es-
condia no horizonte setentrional onde passei minha infância e
quais todo mundo zombava em Constantinoplae, mais do que
todos, ? imperador: era um príncipe sensato,'que soubera reduzir minha juventude. Sem a sua companhia, meu caro Gordon,
os apedeutas linóstolas a não poder praticar senão o bem. Sabia eu estaria aqui no nada."
êle que êsses senhores e vários outros pastóforos300 tinham
exaurida com contra-editos a paciência dos imperadores seus pre'
decessoru em matéria mais grave."
6€
CAPÍTULO Xll
Fêz muito. bem, disse o Ingênuo; deve-sesustentar os pas-
tóforos e conto-los." ' O QUE O INGENUO PENSA DAS PEÇAS DE TEATRO
Êle põs por. escrito muitas outras reflexões que provoca-
ram o espanto do velho Gordos. "Como! disse' êle consigo O juvenilIngênuoassemelhava-se
a uma dessasárvoresvi-
mesmo, passei cinqüenta anos ü instruir-me, e tenho receio de gorosas que, nascidas em solo ingrato, estendem em curto prazo
não conseguir alcançar o bom senso natural desta criança qua- suas raízes e seus ramos quando transplantadasnum terreno
se selvagem! Tremo ao pensar que terei estado, laboriosa- favorável; era bem extraordinário que uma prisão fosse êsse
mente, fortalecendo preconceitos; êle só escuta a simples na terreno.
tureza.''
Entre os livros que ocupavam os lazeres dos dois cativos, ha-
O bom homem possuía alguns dêsses livrinhos de crítica, via poesias, traduções de tragédias gregas, algumas peças de
dessas brochuras periódicas em que os homens incapazes de teatro francês. Os versos que falavam de amor levaram ao mesmo
produzir seja o que fâT tratam de denegrir as produçõesdos tempoo prazere a dor à alma do Ingênuo. Todos êlesIhe
outros,em que os Visé301insultamos Racíne, e os Faydit302 falavam de sua querida St. Yves. A fábula dos Z)oís Pom-
insultam os Fénelon. O Ingênuo folheou alguns dêles. ' "Com- bos303cortou-lheo coração; êle estava bem longe de poder
paro'os, disse êle, a certos mosquitos quc vão depor seus ovos voltar ao seu pombal.
no traseiro dos mais belos cavalos: isso não os impede de cor-
rer." Os dois filósofoslimitaram-se
a dar apenasuma rápida Moliêre encantou-o. Fazia-lhe conhecer os costumes de
vista de olhos nesses excrementosda literatura. Paria e do género humano. "A qual, dentre as suas comédias,
dá preferência?" "A Tarzü/o, sem hesitação." "Penso do
Passaram logo a ler juntos os elementosda astronomia; o
mesmo modo, disse Gordon; foi um tartufo que me afundou
Ingênuo mandou encomendar globos; êsse grande espetáculo o neste calabouço,e foram talvez outros tartufos que: fizeram
a sua infelicidade. Que acha dessas tragédias gregas?" "Boas
(299)
brancas.
Gente de vestuário de linho: os padres, que usam sobrepelizes para os gregos",disseo Ingênuo. Mas quandoleu a //igênü
moderna, /'edrà, .4ndrõmaca, .4láZía, ficou em êxtase, suspirou,
(300) Os padres.
derramou ]ágrimas, arrendou-as de cor sem ter o propósito
(301) Donneau de Viso (1638-1710) cujo .44ercure Gala7zf con- de aprendê-las.
tém críticas endereçadasa Racine: cf. 1672, 1; '1673, 111, etc.
(302) Teólogo e crítico francês (1640-1709), autor de Té/émacho-
manle, em que critica o TéZémaqwede Fénélon (1700). (303) De La Fontaine
282 RO]KANCES E CONTOS O INGÉNUO 283

"Leia Rodogü/td% disse-lhe Goidon; afirma-se que é a reclusa St. Yves? No primeiro mês ficaram inquietos, no ter-
obra-prima do teatro; as outras peças, que Ihe deram tanto pra' ceiro, mergulharam na dor: as falsas conjecturas, os rumores
zer, são bempoucacoisa ao lado dessa." O jovem,desdea sem fundamento, alarmaram-nos; no fim de seis meses julgaram-
primeira página, observou: "Isso não é do mesmo autor." "Co- no morto. Afinal, o senhor e a senhorita Kerkabon ficaram sa-
mo o pôde ver?" "Não sei ainda, mas êsses versos não vão por uma carta já antiga que um guarda do rei enviara
bendo,
nem ao meu ouvido nem ao meu coração." "Oh! são semente à Bretanlia,que um jovem semelhanteao Ingênuotinha che-
os versos", replicou Gordon. O Ingênuo respondeu: "Por gado a Versalhes,e que o tinhamfeito desaparecer durantea
que entãofazê-los? noite; depois disso ninguémmais ouvira falar dêle.
) }'

Depois de ter lido atentamentea peça, sem nenhum outro "AI de nósl disse a senhorita Kerkabon, nosso sobrinho
desígnio senão o de ter prazer, êle olhava o seu amigo com terá feito alguma tolice, e terá sofrido lamentáveis conseqüên-
os olhossecose espantados,sem saber que dizer. Afinal, ins- cias. É jovem, é baixo-bretão, e não pode saber como se deve
tado a relatar o que havia sentido, eis o que respondeu: "Quase portar na carte. Meu querido irmão, eu nunca vi Versa-
não entendi o comêço; fiquei revoltado no meio; a última cena Ihes nem Paria; eis uma bela ocasião, tornaremos a encon-
emocionou-me bastante, se bem que me pareça inverossímil: trar talvez nosso pobre sobrinho: é o filho de nossa irmão; nos-
não tive interêswpor ninguém,e não detivesequervinte versos, so deveré socorrê-lo. Quem sabe se não conseguiremos
afinal
eu que os retenho todos quando me agradam." fazê-lo subdiácono, quando se tiver abrandado o arrebatamento
"Essa peça, entretanto, pas-sapor ser a melhor que temos." da juventude? Êle tinha muito gasto pelas ciências. Lembra-
"Se isso é certo, replicou o Ingênuo, ela é talvez como muitas ste de como raciocinava sabre o Antigo e o Novo Testamento?
pessoasque não merecemos seuslugares. Afinal de contas,é Somos responsáveis por sua alma; fomos nós que o fizemos
uma questão do gasto; o meu ainda não deve estar formado; balizar; sua queridaamanteSt. Yves passa os dias a chorar.
posso enganar-me; mas sabe que estou acostumado a dizer o Na verdade, é preciso ir a Paria. Se êle estiver escondido em
que penso, ou antes, o que sinto. Suponho que sempre há um alguma dessas miseráveis casas de prazer de que tanto me fala-
pouco de ilusão da moda, do capricho, nos julgamentosdos ho- ram, de lá o tiraremos." O prior ficou sensibilizado
com os
Falei segundoa natureza; é possívelque em mim a discursos de sua irmã. Foi procurar o bispo de Saint-Mala,
naturezaseja ainda imperfeita; mas tambémé possívelque ela que tinha batizado o hurão, e pediu-lhe sua proteção e seus con-
seja algumasvêzespouco consultadapela maioria dos homens." selhos. O preladoaprovoua viagem. Deu ao prior cartasde
Então êle recitou alguns versos da //ígênia que Ihe borbulhavam recomendaçãopara o padre La Chaise, confessor do rei, que ti-
dos' lábios; e, embora não declamasse bem, pâs nêjes tanta ver- nha a primeira dignidade do reino, para o arcebispo de Paras,
dade e unção, que fêz chorar o velho jansenista. Leu em se- Harlay, e para o bispo de Meaux,Bossuet.
guida Cima; não chegou a chorar, mas admirou. Enfim, o irmão e a irmã partiram; mas quando chegaram
a Paria ficaram desorientadoscomo num vasto labirinto, sem
fio e sem saída. A sua fortuna era medíocre, êles tinham ne-
cessidadede carros todos os dias para ir à descoberta,e nada
CAPÍTULO Xlll descobriam.

A BELA ST. YVES VAI A VERSALHES O prior procurou o reverendo padre La Chaise: êle estava
com a senhoritadu Tron304,não podia dar audiênciaa prio-
Enquanto o nosso infoTtunado se instruía mais do que se con- res. Foi bater .à porta do arcebispo: o prelado305estava fechado
solava; enquanto o seu gênio, sufocado durante tanto tempo,
se desenvolviacom tanta rapidez e larga; enquandoa natureza, (304) Sobrinha de Bontemps, primeiro camareiro de Luas XIV.
que nêle se aperfeiçoava,o vingava dos ultrajes da fortuna, (305) François de Harlay, arcebispode Paras de 1670 a 1695,era
que acontecia com o senhor prior e sua boa irmã, e com a bela contiecido por suas aventuras galantes.
284 ROMANCES E CONTOS 0 INCÊNUO 285

com a bela senhora de Lesdiguiêrespara os negóciosda Igreja. A bela St. Yves lembrava-seda carta que um guarda do
Correu à casa de campo do bispo de Meaux: êste -examinava, rei tinha enviadoà Baixa-Bretanha
e a cujo respeitomuitose
com a senhorita Mauléon 306, o amor místico de Madame Guyon. havia falado na província. Resolveu ir ela mesma a Versalhes
Contudo, conseguiu ser ouvido por êsses dois prelados; ambos tomar informações; lançar-se aos pés dos ministros, se seu ama-
Iho declararamque não podiamcuidar do caso de seu sobri- do estivessena prisão, como se dizia, e obter justiça para êle. Al-
nho, visto que êle não era subdiácono. guma coisa a tinha prevenidono íntimo de que na carte nada se
Enfim, procurouo jesuíta; êste o recebeude braços aber- recusa a uma jovem bonita; mas ela não sabia quanto custava
tos, afimiou-lheque semprenutrira por êle uma estimaparti- Isso
cular, embora nunca o tivessevisto anteriormente. Jurou que Tomada essa resolução, ela se consola, tranquiliza-se,deixa
a Companhiasemprefará afeiçoadaaos baixo-bretões."Mas, do repelir seu tolo pretendente; acolhe o detestávelsogro, mos-
disse êle, seu sobrinhonão teria a infelicidadede ser hugue- tra-se carinhosa com o irmão, espalha a alegria na casa; depois,
note?" "Não, de maneira nenhuma, meu reverendo padre." "E no dia marcadopara a cerimónia,partesecretamente,
às qua-
jansenista?" "Posso assegurar a Vossa Reverência que êle é ape- tro horas da manhã com seus pequenos presentes de casamento
nas cristão: haveráuns onzemesesque o batizamos." "Ah! e tudo o que pede ajuntar. Suas medidasforam tão bem
siml está bem, está bem; cuidaremos dêle. O seu benefício tomadas que ela já estava a mais de dez léguas, quando en-
é vultoso?" "Oh! muitopouca coisa, e nossosobrinhonos traram em seu quarto, lá pelo meio-dia. A surprêsa e a cons-
custa muito caro." "Há alguns jansenistas nas vizinhanças? ternação foram grandes. O perguntador magistrado fêz êsse dia
Cuidado, meu caro senhor prior, êles são mais perigososque
os huguenotese os ateus." "Meu reverendopadre, não temos mais perguntasdo que tinha feito em toda a semana; o noivo
nenhum jansenista; nem se sabe o que é o jansenismo em Nossa ficou mais tolo do que jamais o fará. O abade de St. Yves, en-
Senhorada Montanha." "Tanto melhor; pode ir, não há colerizado, resolveu ooirer atrás da irmã. O magistrado e
nada que eu não faça em seu favor." Despediu afetuosamente seu filho quiseram acompanha-lo. Assim, o destino levava a
o prior, e não pensoumais nêle. Paras quase todo o cantão da Baixa-Bretanha.
O tempo corria, o prior e sua boa irmã se desesperavam. A bela St. Yves estava bem certa de que haviam de ir em
seu encalço. Viajava a cavalo; manhosamente,ela se informava
Entrementes, o maldito magistrado insistia no casamento junto dos correios se não tinham encontradoum volumosoaba-
do grandepapalvodo filho com a bela St. Yves, que para isso de, um enorme magistrado e um jovem atoleimado que corriam
tinham feito sair do convento. Ela amava sempre o seu querido
afilhado, tanto quanto detestava o marido que Ihe apresentavam.
no caminhode Paras. Tendo sabido,no terceirodia, que êles
A afrontade ter sido postanum conventoaumentavasua pai- não estavamlonge,contouum caminhodiferente,e teve bas-
xão; a ordem de desposar o filho do magistrado levava-a ao auge. tante habilidade e boa sorte para chegar a Versalhes enquanto
As saudades,
a ternura,o horrortranstornavam-lhe
a alma. O a procuravam inutilmente em Paras.
amor, como se sabe, é muito mais engenhosoe mais audacioso Mas, comose conduzirem Versalhes? Jovem, bela,sem
numa jovem do que a amizadeo pode ser num velho prior e conselho,sem apoio, desconhecida,exposta a tudo, como ousaria
numatia de quarentae cincoanospassados.De maisa mais, ela procurar um guarda do rei? Teve a ideia de se dirigir a um
ela se instruírabem no seu conventocom os romancesque jesuíta de baixa categoria; havia-os para todas as condições
tinha lido às escondidas.
da vida, como Deus, diziam êles, deu diferentesalimentosàs di-
versasespéciesde animais. Êle tinha.dado ao rei o seu con-
(306) Voltaire acolhera no S êcZe de Z,Quis Xll' (CafaZogue des fessor, que todos os impetrantes de benefícios chamavam o c#e-
écr uaizzi) uma lenda, devida a Judeu e a Jean-Baptiste Denis, segundo /e da /greda gaZicalza; em seguida vinham os confessores das
a qual a senhoritade Mauléon,filha de Pierre Gary, notáriodo Châ- princesas; os ministros não os tinham, não eram bastantetolos
telet, nascida por volta de 1655, teria estado unida a Bossuet, antes da
ordenação dêste, por um contrato de casamento secreto. Madame para isso. Havia os jesuítas do povo em geral e, principal-
Guyon divulgou o seu quietismoa partir de 1687, mente, os das criadas de quarto, pelas quais podiam ser conhe-
286 ROMANCES E CONTOS 0 INGÉNUO 287

lidos os segredos das patroas; e isto não era um empreguinho


qualquer. A bela St. Yves dirigiu-sea um dêstesúltimos,que CAPÍTULO XIV
tinha o nome de padre Tour-à-teus. Confessou-secom êle, ex-
PROGRESSOS DO ESPÍRITO DO INGENUO
pôs-lhe suas aventuras, sua situação, seu perigo, e conjurou-o a
alajá-laem casa de algumaboa devotaque a pusesseao abrigo
das tentações. O Ingênuo fazia rápidos progressos nas ciências e, princi-
O padre Tour-à-teusintroduziu-a em casa da mulher de um palmente, na ciência do homem. A causa do desenvolvimento
oficial do "gobelet" 307, uma das suas mais fiéis penitentes.
tão pronto do seu espírito residia na sua educação selvagem
Desde que se viu assim instalada, apressou-sea ganhar a con- quase tanto quanto na têmpera de sua alma: porque, nada tendo
fiança e a amizade daquela mulher; informou-se acêrca do
aprendido em sua infância, não tinha adquirido preconceitos.
Seu entendimento,
como não faia dobradopelo êrmo,afirma
guarda bretão e conseguiuque êlo fôsse vê-la. Tendo sabido va-secom toda a sua retidão. Via as coisas como elas são, ao
por seu intermédioque o Ingênuodesaparecera
depoisde passo que as idéias que nos dão quando estamos na infância
ter faladocom um primeiro-secretário,
correu ao encontrodêsse hos fazem ver as coisas, tôda a vida, como elas não são. "Seus
secretário:a vista de uma mulher o abrandou,porque é pre- perseguidores são abomináveis, dizia a seu amigo Gordon. La-
ciso reconhecer que Deus criou as mulheres para domesticar os mento que seja oprimido, mas lamento também que wja janse-
homens.
nista. Toda seita me parece uma conclave do êrro. Hlaverá
O plumitivo enternecidotudo Ihe confessou. "0 seu amado porventuraseitas em geometria?" "Não, meu querido filho, dis-
está na Bastilha há mais de um ano, e sem a sua intervençãolá se-lhesuspirandoo bom Gordon; todos os homensse põem
ficaria talveztoda a vida." A meiga St. Yves desfaleceu. Quan- de acordo diante da verdade que é demonstrada, mas ficam mui-
do recobrou os sentidos, disse-lheo plumitivo: "Não tenho pres- to divididos entre si quando se trata de verdades obscuras."
tígio bastantepara fazer o bem; todo o meu poder se limita "Diga: falsidades obscuras. Se houvesse uma única verdade
a fazer o mal algumasvêzes. Creia-me,deveir procurar o se- escondida nesses amontoados de argumentos que são debati-
nhor de St. Pouange,que faz o bem e o mal, primo e favorita dos desde há tantos séculos, certamente ela teria sido desco-
do Senhor do Louvois. Êste ministro tem duas almas: o se- berta; e o universoter-se-iapôsto de acordo pelo menos em
nhor de St. Pouangeé uma; a senhoradu Belloy308,a outra; relação a êsse ponto. Se essa verdade fôsse necessária como
mas ela não se encontraem Versalhespresentemente; só Ihe o Sol o é para a Terra, seria brilhantecomoêle. É um absur-
resta cativar o protetor que acabo de indicar." do, é um ultrajeao gênerohumano,é um atentadocontra o
Ser infinitoe supremodizer: "Há uma verdadeessencialao
A bela St. Yves, dividida entre um pouco de alegria e homem, e Deus escondeu-a."
profundos sofrimentos, entre alguma esperança e sombrios re-
ceios, perseguida pelo irmão, adorando o amante, enxugando Tudo o que dizia êsse jovem ignol'ante,instruído peia natu-
as lágrimas e vertendo outras, tremente, enfraquecida, e redo- reza, causava impressão profunda no espírito do velho sábio in-
brando ânimo, correu depressa ao encontrodo senhor de St. fortunado. "Seria verdade,exclamouêle, que eu me tivesse
Pouange.
tornado infeliz por causa de quimeras? Estou bem mais certo
da minhainfelicidadedo que da graça eficaz. Consumios
meus dias a refletir sabre a liberdade de Deus e do gênero
humano; mas perdi a minha liberdade; nem Santo Agostinho
nem S. Próspero309me tirarão do abismoem que me encon-
r
tro.''
(307) O primeiro dos sete ofícios da casa do rei, dividido em
serviço do forno e serviço da copa. (309) Historiador e poeta latino do século V que combateu
(308) RepresentaMme du Fresnoi,que é o nomereal da favo- as doutrinas de Pelágio, como Santo Agostinho,e insistiu sabre o poder
rita de Louvois,que aparecena ediçãode Kehl. da graça.
288 RORIANCES E CONTOS 0 INGÊN UO 289

O Ingênuo, dando largas à sua maneira de ser, disse enfim:


"Quer qul; eu Ihe fale com uma confiançaatrevida? Os que se CAPÍTULO XV
fazem perseguir por essas vã;s disputas escolásticasme pare'
cem poucos atirados; os que os perseguemme parecem monstros.' A BELA ST. YVES RESISTE A PROPOSTAS DELICADAS
Os dois cativos estavam perfeitamente de acôrdo quanto à
injustiça de seu cativeiro. "(} meu caso é cem vêzes mais la- A bela St. Yves, mais terna ainda que seu amante, foi, pois,
mentávelque o seu, dizia o Ingênuo; nasci livre como o ar; eu à casa do senhor de St. Pouange310, acompanhadapela amiga
tinha duas vidas, a liberdade e o objeto de meu amor: tira- com quem estavamorando, ambas com o rosto mais ou menos
ram-mas.Aqui estamosos dois, postos a ferros sem saber velado. A primeiracoisa que viu à porta foi o abadede
por que e sempoder perguntar. Vivi como furão vinte anos; St. Yves, seu irmão, que estava saindo. ' Sentiu-se intimidada;
dizem que os furões são bárbaros,porque se vingam de seus mas a devota amiga a tranqiiilizou. "É precisamente porque
inimigos; mas êles nunca oprimiram os amigos. Logo depois falaram contra a senhora que deverá falar também por sua vez.
de eu ter pasto os pes na Franca, verti o meu sangue por çla; Esteja certa de que neste país os acusadorestêm sempre razão,
salvei talvez uma província, e como recompensavejo-me lan- se a gentenão se apressara confundi-los. A sua presença,aliás,
çado neste túmulo dos vivos, onde sem a sua companha! eu t& ou muito me engano, lata sem comparação mais efeito que as
ria morrido de raiva. ]l:ntãonão existemleis nestepaís? Con- palavrasde seu irmão."
denam-seos homens sem que sejam ouvidosl Não é assim na
Por pouco que se dê coragem a uma mulher apaixonada,
Inglaterra. Ah! não era contraos inglêsesque eu devia ba-
ter-me." Assim, sua filosofianascentenão podia dominara ela se mostrará intrépida. A senhorita St. Yves apresenta-sena
audiência. Sua juventude, seus encantos, seus olhas ternos, mo-
naturezaultrajada no primeiro dos seus direitos, e dava livre
lhados de algumas lágrimas, atraíram todos os olhares. Clamaum
c« à sua justa cólera. dos cortesãosdo submínistroesqueceu-sepor um momentodo
Seu companheiro não o contradizia. A ausência aumenta ídolo do poder para contemplaro da beleza. O senhordo St.
sempreo amor que não é satisfeito, e a filosofia não o diminui. Pouange fê-la entrar em seu gabinete; ela falou com emoção e
Êle'falava tão frequentemente de sua querida St. Yves como com graça. St. Pouangeficou sensibilizado. Ela tremia, êle
de moral e de metafísica. Quantomais os seus sentimentosse a tranquilizou. "Volte hoje à noite, disse-lheêle; seus negó-
purificavam,mais êle amava. Leu algunsnovos romances;en- cios merecemque se pense nêlese que se fale a respeitodêles
controu poucos que Ihe pintassem a situação de sua alma. Sentia com mais vagar; há muita genteaqui; as audiênciasdevemser
que seu coração ia sempre além do que lia. "Ah! .dizia. êle, qua- muito rápidas: é preciso que conversemoslongamentea res.
se todos êsses autores só têm espírito e arte." Afinal, o bom peito de tudo o que Ihe diz respeito." Em seguida,depoisde
padre jansenista tornou-se insensivelmente o confidente de sua ter feito o elogio de sua beleza e de seus sentimentos, recomen-
ternura. Êle não conhecerao amouanteriormente,
a não ser dou-lhe que voltasse às sete horas da noite.
como um pecadode que se faz penitênciana confissão. Apren-
deu a conLecê-locomo um sentimentotão nobre quanto terno, Ela não faltou; a devota amiga acompanhava-a sempre,
que pode elevar a alma tanto como avilta-la, e produzir mesmo, mas ficou no salão, lendo o Pedagogo crês/ão 311, enquanto'St.
algumas vêzes, virtudes. Enfim, como último prodígio, um hurão Pouangee a belaSt. Yves estavamno gabineteinterior. "Acre-
convertia um jansenista. ditaria, senhorita,que seu irmão veio pedir-meuma ordem real
contraa sua pessoa? Na verdade,eu me disporiaantesa ex-
pedir uma ordem para devolvê-lo à Baixa-Bretaiha." "Oh! vejo

(310) Na figura de St. Pouange, Voltaire pinta sem dúvida o


conde de Saint Florentin (1705-1777),ministrode Estado inimigo de
Choiseul.
(311) Obra do padre d'Oultreman (1629).
19
290 ROMANCES E CONTOS O INGÉNUO 291

que há grandeliberalidadeem matéria de ordens reais neste Afinal, a companheirasaiu do gabineteparticular, transtor-
lugar, pois que do fundo do reino aqui vem gente pedi-las, como nada, sem poder falar, refletindo profundamenteacêrca do cará-
pensões. De minha parte, estou bem longe de pedir uma contra ter dos grandes e dos semigrandes,que sacrificam tão fàcilmente
meu irmão. Tenho muitas razões de queixa, mas respeito a a liberdade dos homens e a honra das mulheres.
liberdade dos homens; peço a de um homem que quero despo- Ela não disse uma palavra em todo o caminho. Ao che-
sar, de um homema quemo rei devea conservação
de uma gar à casa da amiga, explodiu, contou-lhe tudo. A devota fêz
província, que pode servi-loütílmente e que é filho de um oficial grandes sinais da cruz. "Minha querida amiga, é preciso con-
morto a seu serviço. De que é êle acusado? Como pôde ser tra- sultar já amanhão padre Tout-à-tour,nosso diretor; êle tem
tado tão cruelmentesem ser ouvido?" muito prestígio junto ao senhor de St. Pouange; confessa várias
O subministro mostrou-lheentão a carta do jesuíta espião servidoras da casa; é um homem piedoso e conciliad03',que di-
e a do pérfido magistrado. "Como! então há tais monstros rige tambémmulheresde qualidade:abandone-se aos seuscui-
sabrea terra! E queremforçar-mea desposaro filho ridículo dados; é assim que costumofazer, e semprecom bons resulta-
de um homemridículo e mau! E é comlbaseem tais informa- dos. Pobres de nós mulheres, temos necessidadede ser dirigi-
ções que se decide aqui do destino dos cidadãos!" Ela lançou- das por um homem." "Está beml minhaqual'idaamiga,irei
d; joelhos, pediu com soluços a liberdade do bravo amanhã procurar o padre Tout-à-tour."
que a adorava. Os seus encantos, naquela situação, ostenta-
ram-se da maneira mais vantajosa possível. Estava tão linda
que St. Pouange,perdendo toda vergonha,insinuou-lheque po' CAPÍTULO XVI
della alcançar o que queria se começassepor dar-lho as primícias
do que reservavapara seu amante. A St. Yves, atónitae con- ELA CONSULTA UM JESUÍTA
fusa, fingiu bastantetempo não compreender;foi precisoexpli-
car mais claramente. Uma palavra lançada a princípio com
hesitação produzia uma outra mais forte, seguida de outra Logo que a bela e desoladaSt. Yves se viu diante de seu bom
confessor, confiou-lhe que um homem poderoso e voluptuoso Ihe
mais expressiva. Ofereceu-se não sementea revogaçãoda or- propunha mandar soltar aquêle que ela devia desposar legiti-
dem reis, mas também recompensas, dinheiro, honras, estabele-
cimentos; e quantomais se prometia,mais aumentavao desejo mamente,e que êle pedia uin alto preço por seu serviço; que
de não ser recusado. ela sentia horrível repugnância por tal infidelidade, e que, se
se tratasseapenas de sua própria vida, ela preferiria sacrificar-se
A St. Yves chorava,sufocava,meio caída num sofá, mal a sucumbir.
podiacrer no que via, no que ouvia. St. Pouange,por sua vez, "Trata-se de um abominável pecadorl disse-lhe o padre Tout-
lançou-se
de joelhos.Não era desprovido
de atrativos,e te- .à.teus. Deveria dizer-me o nome dêsse miserável: é sem dúvida
ria podido não assustar um coração menos prevenido; mas algum jansenista; eu o denunciarei à sua reverência o padre
a St.'Yves adorava seu amante,e acreditava ser um crime horrí- La Chaise, que o fará meter no calabouço, onde agora se encontra
vel traí-lo para o servir. St. Pouange redobrava os pedidos e o ente querido que deve desposar."
as promessas:enfim, a cabeçaIhe virou de tal maneira,que
êle declarouque aquêleseria o único meio de tirar da prisão A pobre maça, depois de um longo momento de embaraço
o homem por quem ela demonstrava um interêsse tão violento e grandes hesitações, pronunciou enfim o nome de St. Pouange.
e tão terão. Ã estranha conversa prolongava-se. A devota "0 senhor de St. Pouange! exclamou o jesuíta; ah! minha
da antecâmara,lendo o Pedc&gogo CrlsZão, dizia consigo mesma: filha, entãoa coisamuda de figura; êleé primodo maiormi-
"Meu Deus!" que estarão êles fazendo lá há duas horas? Nunca nistro que já tivemos,homem de bem, protetor da boa causa,
o senhorde Si; Pouangedeu uma audiênciatão longa; é possí- bom cristão; êle não pode ter tido tal 'pensamento;por certo
vel que tenharecusadotudo àquelapobre menina,pois que ouviu mal." "Ah! meu padre, ouvi bem, até demais; estou
ela continuaa implorar. perdida, faça o que fizer; só tenho a escolherentro a desgraça
292 ROMANCES E CONTOS 0 INC ÊNUO 293

e a vergonha:meu amanteterá de ficar sepultado


em vida, ou pera que tudo se passe de maneira a concorrerpara sua maior
eu me tornarei indigna de viver. Não posso deixa-lopere- glória.
cer, e não o possosalvar. A bela St. Yv-es, não menos amedrontada com os discursos
O padre Tour-à-tous procurou acalma-la com estas doces do jesuíta do que com as propostasdo subministro, voltou aca-
palavras : brunhada para a casa de sua amiga. Sentia-setentada a libei'tar-se
"Primeiramente, minha filha, nunca diga essa palavra melt pela morte do horror de deixar em cativeiro medonho o aman-
amaRIa; há nessa expressãoalgumacoisa de mundano que po- te que adorava, e da vergonhade o libertar ao preço do que
deria ofender a Deus. Diga meü marido; porquanto, embora êle tinha de mais precioso e que devia pertencer semente àquele
ainda não o seja, é certo que o considera como tal; e nada amante infortunado.
mais honestoque isso.
"Em segundo lugar, embora êle seja seu esposo em ideia,
em esperança,ainda não o é de fato: assim, não iria cometer CAPÍTULO XVll
adultério, pecado enorme que é preciso sempre evitar quanto
possível. EJ:A SUCUMBE POR VIRTUDE
"Em terceiro lugar, as ações não se revestem de culposa
malícia,quandoa intençãoé pura, e nada mais puro que li- Suplicou a sua amiga que a matasse; mas aquela mulher,
vrar da prisãoo seu marido. que não era menos indulgenteque o jesuíta, falou-lheainda mais
"Em quarto lugar, na santa antiguidade podem ser encon- claramente: "AI de nós! disse ela, as coisas são assim mesmo
trados exemplos que serviriam maravilhosamente para aconse- nesta carte tão amável, tão galante e tão famosa. As posi-
lhar a sua maneirade se conduzir. SantoAgostinhorelata312 ções mais medíocres e as mais consideráveisfreqüentementesão
que, sob o proconsuladode Sétimo Acindino, no ano 340 de atribuídas sòmente ao preço que Ihe está sendo pedido. Ouça
nossa salvação, um pobre homem, não podendo pagar a César o que vou dizer: tenho-lhe amizade e confiança; confesso que
o que era de César, foi condenadoà morte, como é justo, apesar se eu tivessesido tão difícil como está sendo. meu marido não
da máxima: "OÜ ÍZ n'y a riemJe roí pera sesdroüs". Trata teria agora o pequenoemprêgo que Ihe permite viver; êle não
va-se de uma libra de ouro; o condenadotinha uma esposa em o ignora, e, longe de se mostrar zangado, vê em mim a sua
quem Deus havia pôsto a beleza o a prudência. Um velhoricaço benfeitora, considera-secomo criatura minha. Julga porventura
prometeudar uma libra de ouro, e mesmomais, à bela senho- que todos aquêles que têm estadono govêrno das províncias, ou
ra, sob a condição de que êle cometessecom ela o pecado imun- mesmo à frente dos exércitos, deveram essas honras à sua boa
do. A senhora não julgou proceder mal salvando a vida do ma- fortunaou sementeaos serviçosque prestaram? Muitos dentre
rido. Santo Agostinho aprova perfeitamentesua generosaresig- êles as ficaram devendo às senhoras suas esposas. As digni-
nação. É verdadeque o velhoricaço a enganou,e talvezseu dadesda guerraforam solicitadas
pelo amor,e o lugar foi
marido tenha sido mesmo enforcado como fará previsto; mas ela dadoao maridoda maisbela.
fizera tudo o que estavaa seu alcancepara salvar-lhea vida. "Sua situação é bem mais interessante: trata-se de devol-
"Esteja certa, minha filha, de que quando um jesuíta faz ver ao seu amantea luz do día e de o desposar;é um dever
uma citação de Santo Agostinho é porque êsse santo deve ter sagrado que terá de cumprir. Ninguém condenou as belas e
plenamenterazão. Nada Ihe aconselho,vejo que é uma pessoa grandes damas de quem Ihe falei; quanto ao seu caso, todos
prudente;é de presumirque saibaser útil a seu marido. O Ihe darão aplausose dirão que só consentiunuma fraqueza por
excesso de virtude."
senhor do St. Pouange é homem de bem, não a enganara: é
tudo o que posso dizer; farei em seu favor preces a Deus, e es- "Ah! que virtude! exclamou a bela St. Yves; que labirinto
de iniqüídadeslque país! e como eu aprendoa conheceros ho-
mens! Um padre La Clhaisee um magistradoridículolan-
(312) Cf. o conto Cosa-SANITA, vol. 11, pág. 340 çam meu amantena prisão, minha família me persegue,e se
294 ROMANCES E CONTOS 0 INGÉNUO 295

alguémme estendea mão em meu desastreé para me desonrar.


Um jesuíta perdeu um bravo homem, outro jesuíta quer perder- CAPÍTULO XVlll
me; estou rodeada semente de ciladas, vejo-me prestes a cair
na miséria. Terei de matar-meou de falar com o rei; lançar- A ST. YVES LIBERTA SEU AMANTE E UM JANSENISTA
me-ei a seus pés à sua passagem, quando fâr à missa ou à co-
média." Ao raiar do dia, ela corre a Paria, de posseda ordem do mi-
"Não Ihe permitirão aproximar-se, disse-lhe sua boa ami- nistro. Difícil pintar o que se passavaem seu coração durante
ga; e, se tiver a infelicidade de falar, o Senhor de Louvois e o re- a viagem. Imagine-se uma alma virtuosa e nobre, humilhada em
verendopadre La Chaise poderiam enterra-lano fundo de um seu opróbrio, embriagadade ternura, roída de remorsos por
convento para o resto de seus dia:s.'' ter traído seu amante, penetradapelo prazer de libertar quem
adora! Suas amarguras,suas lutas, seu êxito solicitavamtôdas
Enquanto essa corajosa mulher aumentava assim as perplexi- as suas reflexões. Não era mais aquelajovem simplescujas
c[ades daque[a a]ma em desespêro e ]he afundava o punha] no idéias tinham sido limitadas por uma educação provinciana. O
coração, chega um mensageil'odo senhor de St. Pouange com uma amor e a infelicidade tinham-na amadurecido. O sentimento
carta e dois belos brincos. A St. Yves repeliu tudo, chorando;
mas a amiga apanhouos objetos. tinha feito tantos progressos nela como a razão fizera no espí-
rito de seu amanteindo:rtunado.As jovens aprendema sentir
Logo que o mensageiropartiu, pâs-sea ler a carta em que maisfàcilmente
do que os homensaprendem
a pensar. Sua
se propunhauma ceiazinhaàs duas amigas,para a noite. A aventura era mais instrutiva do que quatro anos de convento.
St. Yves jura que não vai. A devotaquer ver -comoficam nela Seu traje era de extremasimplicidade. Ela via com horror
os dois brincos de diamantes. A St. Yves não o pede suportar. os enfeitescom que tinha aparecidodiante de seu funestoben-
Lutou o dia todo. Enfim, com o pensamentosó em seu amante, feitor: abandonara
os brincosde diamantes
à companheira
sem
vencida, arrastada, sem saber aonde a levam, deixa-secondu- nem sequer olha-los. Confusa e encantada,adorando o Ingê-
zir à ceia fatal. Nada puderadecidi-laa enfeitar-se
com os nuo e odiando a si mesma, chega enfim à porta.
brincos; mas a confidenteos levou consigoe os ajustou apesar
dos protestos,antes que se pusessemà mesa. A St. Yves estava De cet affreux château, palais de la vengeance,
tão confusa, tão perturbada, que se deixava atormentar; e o pa' Qui renferma souvent le crime et I'innocence 313
irão viu no casoum augúriobem favorável. Quandoa refeição
chegavaao fim, a confidenteretirou-se,com discrição. Então Quando ia descer da carruagem, faltaram-lhe a? fârçaE; foi
o patrão mostrou a revogação da ordem real, o despacho refe- ajudada; entrou, o coração palpitante, os ?lhos úmidosZ a .fronte
rente a uma gratificação considerável, um outro referente ao consternada. Apresentam-na ao govei-nadar; quer falar-lhe, .a
comando de uma companhia, e não poupou promessas. "Ah! voz extingue-se-lhe;mostra a ordem que trazia, mal articulando
algumas palavras. O governador gostava de seu prisioneiro;
disse-lhea St. Yves, como eu o amaria se não quisesseser tãa ficou muito contentecom sua libertação. Seu coraçãonão es-
amado ! "
tava endurecidocomo o de algunsnobrescarcereirosseuscon-
Enfim, depois de longa resistência, com soluços, gritos, lágri- frades que, pensando semente na retribuição correspondente à
mas, enfraquecida de tanto lutar, desvairada, em extremo abati- guarda de seus cativos, fundando suas rendas sôbre as vítimas
da, foi preciso entregar-se. Não teve outro recurso senão pro- que lhes eram entregues,e vivendo da desgraça.alheia, colhiam
meter a si mesma só pensar no Ingênuo, enquanto o cruel se secretamentemedonha alegria nas lágrimas dos infelizes.
aproveitava impiedosamenteda necessidadea que estava reduzida. Mandou que trouxessemo prisioneiroà sua sala. Os
dois amantesse vêem, e ambos desfalecem. A bela St. Yves

(313) São os versos456-7 do canto IV de l,a /ie7zrade de Vol


taire.
296 ROMANCES E CONTos O INGÉNUO 297

permaneceu por longo tempo sem movimento, sem vida: o outro nos uniu; amo-ocomo um pai, não posso viver sem êle como
recuperou prontamente a coragem. "Creio que é a senhora sua não posso viver sem ti.
esposa, diz-lhe o governador; não me disse que era casado. Es- f "Eu! queeu vá implora-lo
aomesmohomemque. . ." "Sim,
tou informadode que aos seusgenerososempenhosé que deve
a sua libertação." "Ah! eu não sou digna de ser sua mulher", quero dever-tetudo, e jamais quero ser devedor senão a ti:
diz a bela St. Yves com voz trêmula; e novamente cai desfale- escreve a êsse homem poderoso; cumula-me dos teus benefí-
cida cios, acaba o que começaste,acaba os teus prodígios:" Ela
sentia que devia fazer tudo o que seu amante exigia: quis escre-
Depois de recobrar os sentidos, mostra, sempre tremente, o ver, a mão não podia obedecer. Recomeçoutrês vozes a carta,
despach? da gratificação e a promessa, escrita, de uma compa- rasgou-a três vêzes; conseguiu enfim escrevê-la, e os dois aman-
}

nhia. O Ingênuo, não menos espantado que enternecido, des- tes saíram depois de terem beijado o velho mártir da graça efi-
perta de um .sonhopara cair em outro. "Por que fui fechado caz
a
aqui? Como pudeste libertar-me? Onde estão os monstros
A feliz e desoladaSt. Yves sabia qual era a casa em que
que mo lançaram neste lugar? És uma divindade que desceu
do céu para me socorrer.' moravaseu irmão; para lá se encaminhou;
seu amanteficou
com um apartamentono mesmoimóvel.
A bela St. Yves desviava a vista, olhava o amante, corava
e desviava logo os olhos molhados do lágrimas. Disse-lhe enfim Logo que chegaram, recebeu da parte de seu protelar a
ordem para libertar o bom Gordon; ao mesmo tempo, pedia-
tudo o que sabia, e tudo o que tinha experimentado,exceto o que Ihe um encontro para o dia seguinte. Assim, toda ação honesta
ela quisera esconderpara sempre, o que um outro que não fosse
o Ingênuo, mais acostumadoao mundo e mais instruído acerca e generosaque praticavatinha.de ser paga ao preço de sua
dos usos da côrte, teria fàcilmente adivinhado. desonra. Ela consideravacom execuçãoêsseuso de vendera
desgraçae a felicidadedos homens. Deu a ordemde liber-
"É possível que. um miserável como aquêle magistrado te- tação a seu amante, e recusou o encontro com um benfeitor
nha tido o poder de roubar-mea liberdade? Ah! estouvendo
que há homens que são como os mais vis animais; uns e outros que não poderia mais ver sem expirar de dor e vergonha.
podem fazei' mal. Mas é possível que um monge, um jesuíta O Ingênuoseria incapazde separar'sedela, a não ser para ir
confessor do rei tenha contribuído para meu infortúnio tanto libertar um amigo: voou ao encontro dêle. Cumpriu êsse de\er
como êsse magistrado, sem que eu possa imaginar de que pretexto pensando nos estranhos acontecimentosdêste mundo, e admi-
se serviuêssepatifepara me perseguir? Acasofêz-mepassar rando a virtude corajosa de uma jovem a quem dois infortuna-
por jansenista?Enfim, comote lembraste
de mim? Eu dos deviam mais que a vida.
não o merecia,era entãoapenasum selvagem.Como? Sem
conselho, sem ajuda, pudeste empreender a viagem a Versalhosl
Apareceste,e quebraram os meus ferroso Existe, pois, na beleza
e na virtude um encantoinvencívelque faz cair as portas de CAPÍTULO XIX
ferro, e que amoleceos coraçõesde bronze!"
O INGENUO,A BELA ST. YVES E SEUS PARENTESSE REÚNEM
A essa palavra ufrlzzde,soluços escaparamà bela St. Yves.
Ela não sabia quanto era virtuosa no crime de que se lamen-
tava A generosae respoitávelinfiel estavacom seu irmão ! aba-
de de St. Yves. o boh prior da Montanhae a senhoritaKerka-
veu amante continuou assim: "Anjo que rompesse os laços bon. Todos igualmenteespantados; mas a sua situação e seus
que me prendiam, se tiveste (o que não pude ainda compreen- t sentimentos eram bem diferentes. O abade de St. aves lamen
der) bastanteprestígiopara conseguirque me fizessemjusti- tava suas culpas aos pes da irmã, que o perdoava. O prior e su!
ça, faze que tambéma alcance um velho que foi quem primeiro terna irmã choravam também, mas de alegria; o desprezível
me ensinou a pensar, como tu me ensinastea amar. A calamidade magistrado e seu insuportável filho não perturbavam a como-
298 ROMANCES E CONTOS 0 INGÉNUO 299

vento cena. Tinham partido desde que ouviram os primeiros misturava-sa a êsse respeito que se tem involuntàriamente por
rumores da libertação de seu inimigo; correram a enterrar na uma pessoa qu-e,pelo suposto, goza de crédito na carte. Mas o
província a sua tolice e o seu mêdo. abade de St. Yves dizia alguma vez: "Como pôde arranjar-se
Os quatro personagens, agitados por cem diversos impul- a minha irmã para obter êsse crédito tão depressa?"
sos, esperavamque o jovem regressassecom o amigo que tinha Foram para a mesa cedo. E eis que a boa amiga de Ver-
ido libertar. O abadede St. Yves não ousavaergueros olhos salhes chega nesse momento, sem nada saber de tudo o que
diante de sua irmã; a boa Kerkabon dizia: "Irei, pois, ]'ever se tinha passado; vinha em carruagem de seis cavalos, e é fácil
o meu querido sobrinho!" "lrá revê-lo, disse a encantadora saber a quem pertencia ela. A amiga entra com os ares impo-
St. Yves, mas não é mais o mesmohomem; seu aspecto,seu nentes de uma pessoa da côrte que tem grandes negócios a
tom, suas idéias, seu espírito, tudo está mudado. Tornou-se tão tratar, saúda muito ligeiramente a companhia e, arrastando a
respeitável quanto era Cândida e estranho a tudo. Será a honra bela St. Yves para um lado: "Por que fazer-seesperar tanto?
e o consolode sua família. Ohl pudesseeu ser também a hon- Venha comigo; aqui estão os diamantesque esqueceu." Não
ra da minha!" "Acho que também está bastante mudada, dis- disse essas palavras tão baixo que o Ingênuo não as pudesse
se-lhe o prior; que aconteceu para que se operasse uma tão gran- ouvir: êle viu os diamantes;o irmão ficou extremamenteper-
de transformação? turbado; o tio e a tia tiveram apenas uma sul'prêsade boas
Em meio a essa conversação,chega o Ingênuo trazendopela pessoasque nunca tinham visto tal magnificência. O jovem, cujo
mão o seu jansenista. A cena entãoficou mais movimentadae espírito amadureceu com um ano do reflexões, não pede dei-
interessante.C.omeçoucom os ternosabraçosdo tio e da tia. xar de fazer alguma reflexãoacêrca do que estava vendo, e
O abadede St. Yves quasese agarravaaos joelhosdo Ingê- mostrou-se por um momento perturbado. Sua amante perce'
nuo, que não era mais o /ngênüo. Os dois amantes falavam-se beu-o; uma palidez mortal espalhou-se-lhe no belo I'oito, estreme-
com os olhos, que exprimiamtodos os sentimentos de que es- ceu com um calafrio, mal conseguiamanter-se de pé. "Ah! senho-
tavam penetrados. Via-se brilhar a alegria, o reconhecimento ra, diz à fatal amiga, veio aqui para perder-me! veio dar-me a
no rosto de um; o embaraço estava pintado nos olhos enternecidos mortal" Essas palavras cortaram o coração do Ingênuo; mas êle
e meio desvairados
do outro. Todosse admiravamde que a já tinha aprendidoa dominar-se;fingiu não as ter ouvido, para
St. Yves misturasse a dor a tanta al-egria. não inquietar a amante diante do irmão; mas empalideceu tam-
O velho Gordos tornou-seem poucos momentosquerido bém, como ela.
de toda a família. Tinha compartilhadoa infelicidadedo A St. Yves, desvairada pela alteração que percebera no ros-
jovem prisioneiro, e isto era um grando título. Devia sua liber- to do amante, arrasta a mulher para fora, a um pequeno corre-
taçãoaos dois amantes,e só isso o reconciliavacom o amor; a dor, arremessaos diamantesno chão, diantedela. "Ah! não fo-
amargura de suas antigas opiniões deixava seu coração: estava ram êlesque me seduziram,bem o sabe; mas aquêleque fêz
mudado em homem,como o bufão. Cada um contou suas aven- presentedêles nunca mais me verá." A amiga apanhava os dia-
turas antesda ceia. Os dois abades,a tia, escutavam
como mantes no chão, enquanto a St. Yves acrescentava: "Que êle os
crianças que ouvem histórias de almas do outro mundo, e como
homens que se interessavam pessoalmente:por todos aquêles de- tome de novo ou lhos dê; vá, não me faça mais ter vergo-
sasti'es. "Ai! disse Gordon, há talvezmais de quinhentaspes- nha de mim mesma." A embaixatrizafinal se foi, sem com-
soas virtuosas que estão presentementenos mesTRasferros que a preender os remorsos de que fera testemunha.
senhorita St. Yves quebrou: suas desgraças são desconhecidas. A bela St. Yves, oprimida, sofrendo no corpo uma revolu-
Encontram-se
muitasmãos que ferem a multidãodos infeli- ção que a sufocava,teve de pâr-sede cama; mas para não
zes, e raramente aparece uma que lhes dê socorro." Essa reflexão, alarmar ninguém nada falou do que estava sentindo. Dando
tão verdadeira, aumentava a sua sensibilidade e o seu reconheci- como pretexto $àmente-o cansaço, pediu permissão para ir
mento: tudo redobrava o triunfo da bela St. Yves; todos ad- repousar; mas isto sementedepois de ter tranquilizadoa com-
miravam a grandeza e a firmeza de sua alma. A admiração panhia com palavras amáveis e cheias de habilidade, e depois
O INGÉNUO 301
300 ROMANCES E CONTOS

desgraças que tinham experimentado desde o bêrço. O pai ea


de ter lançado ao amante alguns olhares que Ihe inflamaram mãe contavam entre os seus maiores infortúnios os desmandos
a alma. e a perda de seu filho. Êste reconheceu-os;nem por isso dei-
A ceia, que ela não animavacom sua presença,foi triste xou de leva-lospara a prisão, afirmando-lhesque Sua Eminên-
a princípio, mas dessa tristeza interessante que ]'esulta em con cia devia ser servido acima de qualquer consideração. Sua Emi-
versasatraentese úteis, tão superioresà frívola alegria que nência recompensou'lhe o zêlo.
se procura, e que em geral é apenas um ruído importuno. "VI um espião do padre La Chaise trair seu próprio irmão,
Gordon narrou em poucas palavras a história do jansenis- na esperançade um pequenobenefícioque não obteve;e vi-o
mo e do molinismo,das perseguições com que um partidopro- morrer, não de remorso,mas de dor por ter sido enganadopelo
curava arruinar o outro, e da teimosiados dois. O Ingênuofêz jesuít'.
a crítica de um e de outro, e deplorouos homens,que, não O ofício de confessor, que exerci por longo tempo, fêz-me
contentes com as muitas discórdias que seus interêsses susci- cBonhecer a vida íntima das famílias; posso dizer que não fiquei
tam, inventamnovos males por causa de interêssesquiméricos conhecendo nenhuma que não estivesse afundada na infelici-
e absurdos ininteligíveis. Gi)rdon narrava, o outro julgava;.os dade, se bem que exteriormente,recobertas com a máscara da
convivas ouviam com emoção, e iluminavam-se com uma luz felicidade, tôdas parecessem nadar na alegria; e sempre observei
Falou-se da grande extensão dos nossos infortúnios e da que os grandes desgostoseram o fruto de nossa cupídez desen-
brevidadeda vida. Foi observadoque cada profissão tem um freada.
vício e um perigo que Ihe estão ligados,e que, desdeo prín- "Quanto a mim, disse o Ingênuo,pensoque uma alma nü
cipe até o último dentre os mendigos, tudo parece acusar a natu- bre, reconhecida e sensível, pode viver feliz; e pretendo gozar
Como se encontram tantos homens que, por tão pouco
de uma felicidadesem mesclacom a bela e generosaSt. Yves:
dinheiro, fazem-se perseguidores, satélites, carrascos de outros porque ouso esperar, acrescentou,dirigindo-se ao irmão com
homens? Com que indiferença desumana um homem que.exerce o sorriso da amizade, que não ma recusará, como no ano passa'
funções importantes na administração assina a destruição de uma do, e, desta vez, saberei proceder de modo mais decente."
família, e com que alegria ainda mais bárbara mercenáriosa exe- O abade desmanchou-se em escusas pelo passado e em pro-
cutam!
testos de uma afeição imorredoura.
"VI, na minha juventude, diz o bom Gordon, um parente O tio Kerkabon disse que seria êsse o dia mais feliz de sua
do marechal de Marillac 314 que, sendo perseguido na sua pro'
vida. A boa tia, em êxtase e chorando de alegria, exclamava:
venciapor causa daqueleilustre infeliz, escondia-seem Pauis sob "Eu bem Ihe tinha dito que nunca haveria de ser subdiácono!
um nomefalso. Era um velho de setentae dois anos de idade.
êstesacramentoé melhorque o outro; prouveraa Deus que
Sua mulher,que Q acompanhava, era mais ou menos da mes- eu fará honradacom êle! mas servir-lhe.eide mãe." E en
ma idade. Tinham um filho libertino que, com quatorzeanos,
tão foi a vez de cada um empenhar-seo mais possívelnos lou-
fugira da casa paterna: tornara-sesoldado, depois .desertor, pas' vores da meiga St. I'ves.
santo por todos os degraus do deboche e da miséria; .enfim,
depois de ter aditado um nome de guerra, tornou-se membro da Seu amante tinha o coração transbordantede gratidão pelo
guarda do cardeal Richelieu (pois êsse prelado, como Mazari- que ela fizera por êle, e amava-a muito para que a aventura
no, tinha guardas); obtivera um pasto de suboficial nesgacom dos diamantes pudesse marcar-lhe os sentimentos com uma im-
panhia de satélites. Êsse aventureirofoi encarregadode prender pressão dominante. Mas aquelas palavras que tinha ouvido
o velho e sua esposa, e desincumbiu-se com tôda a dureza de muito bem, veio dar-me a morte, aterravam-no ainda intimamente
um homem que queria agradar ao seu senhor. Enquanto os con- e corrompiaihtôda a sua alegria,enquantoos elogiosda bela
amante aumentavam ainda mais o seu amor. Enfim, só se tra-
duzia, ouviu aquelasduas vítimas deplorar a longa série de
tava dela; só se falava da felicidade que os dois amantes
mereciam; organizavam-se planos pára viver todos juntos em
(314) O marechal de Marillac (1573-1632), comprometido em in-
trigas contra Richelieu, foi executado em Paras.
Paria; faziam-seprojetos de fortuna e de grandeza; todos se
302 ROMANCES E CONTOS 0 INGÉNUO 303

entregavam a essas esperanças que a mais insignificante promessa necido dentre todos; mas tinha aprendido a aliar a discrição
de felicidadefaz nascer tão fàcilmente. Mas o Ingênuo,no a todos os dons felizesque Ihe prodigalizara
a natureza,e o
fundo de seu coração, experimentavauln sentimentosecreto que pronto sentimentodas conveniênciascomeçava a ser dominante
repelia essa ilusão. Relia aquelas promessas !ssinadas por
nêle
St. Pouange, e aquêles despachos assinados por de Louvois; êsses Foi chamado imediatamenteum médico das vizinhanças. Era
dois homensIhe foram pintadostais como eram, ou como se um dêssesque visitam seus doentes às carreiras, que confun-
acreditava que fossem. Todos falavam dos ministros e do minis dem a doença que acabaram de ver com aquela que estão vendo,
tério com essa liberdadede mesa que é consideradana França que restringemã prática cega, uma ciência cuja incertezae
a mais preciosaliberdadeque se pode provam'na terra. perigos nem toda a maturidade de um discernimento sadio e
"Se eu fosse rei da Franca, disse o Ingênuo,eis o refletidoé suficientepara evitar. Êle duplicouo mal com sua
ministroda Guerra que eu escolheria:um homemdo mais alto precipitação em prescrever um remédio então na moda. Moda até
na medicinal Essa loucuraera muitocomumem Pauis.
nascimento,porque êle teria de dar ordens à nobreza. Exigiria
que êle mesmo tivesse sido oficial, que tivessepa?sido por todas A triste St. Yves contribuía ainda mais que seu médicopara
as patentes,que fosse pelo menos tenente-general dos exércitos, tornar a enfermidade perigosa. A alma Ihe matava o corpo-
e digno de ser marechalda França. Pois não é necessárioque A multidão dos pensamentos que a agitavam punha-lhe nas veias
um homem tenha servido para que possa conhecer bem os por' um veneno mais perigoso que o da febre mais escaldante.
menores do serviço? E os oficiais não obedecerão com alegria
cem vêzesmaior a um homemde guerra, que tenha como êles
assinalado a sua coragem, do que a um homem de gabinete que, CAPÍTULO XX
na melhor das hipóteses, só poderá fazer adivinhações acêtlca.das
operações de uma campanha, por mais inteligente que .seja? Não A MORTE DA BELA ST. YVES E O QUE ACONTECEDEPOIS
me aborreceriase o meu ministro fôsse generoso,ainda que o
meu guarda do tesouro real ficasse por isso um tanto emba- Um outro médico foi chamado: êste, em vez de ajudar a
do. Gastaria.que o trabalho,para êle, constituísseum naturezae deixa-la agir numa pessoa jovem em quem todos os
prazer, e mesmo que se distinguissepor essa jovialidade de espí- órgãos clamavam pela vida, empenhou-se exclusivamente em fa-
rito - apanágio'de um homem superior -- que tanto.agrada zer o contrário do que fizera o confrade. A doença tornou-se
à nação e que torna todas as obrigações menos penosas315."' Êle mortal em dois dias. O cérebro, qtle se supõe seja a sede do
desejava que uin ministro tivessetal caráter, porque sempre no' entendimento, foi atacado tão violentamente como o coração, que
tara que êssebom humor é incompatívelcom a crueldade. é, dizem, a sede das paixões.
O Senhor de Louvois não teria talvez correspondidoaos Que mecânica incompreensível submeteu os órgãos ao sen-
desejos do Ingênuo; possuía uma outra espécie de mérito. timentoe ao pensamento? De que maneirauma única ideia
Mas enquanto todos estavam à mesa, a enfermidade daquela dolorosa afeta a circulação do sangue? E como o sangue, por
jovem infeliz tomava um caráter funesto; seu sangue incendiara- sua vez, leva as suas irregularidades ao entendimentohumano?
-se,manifestara-seuma febre devoradora,ela sofria e não se quei- Que é êssefluido desconhecido
e cuja existênciaé certa, que
xava, para não perturbar a alegria dos convivas. mais pronto, mais ativo que a luz, percorre num abrir e fechar
Seu irmão, sabendo que ela não dormia, aproximou-sede de olhostodos os canaisda vida, produz as sensações,a me-
sua cabeceira;ficou surpreendidocom o estadoem que se en- mória, a tristeza ou a alegria, a razão ou a vertigem, relembra
contrava. Todo o mundo acorreu; o amante apresentou-selogo com horror o que se desejariaesquecer,e faz, de um animal
depoisdo irmão. Era êle por certo o mais alarmadoe enter- pensante, um objeto de admiração ou um motivo de piedade
e lágrimas?
(315) Êsse retrato poderia ser o do ministro Choiseul (1719-1785)
Era o que dizia o bom Gordon; e essa reflexãotão natu-
com quem Voltaire estava ainda em boas relações. ral, que raramente fazem os homens, nada tirava ao seu enter-
304 ROMANCES E CONTOS
T O INGÉNUO 305

necimento; porque êle não era um dêsses infelizes filósofos que


se esforçampor ser insensíveis.Estavatão sensibilizado
pela banha;não era o padre La Chaise que escrevia,era o irmão
Vadbled, seu criado de quarto, homem importantíssimo naque-
sortedaquelajovemcomo um pai que vê morrer lentamente o les tempos; êle que mandava aos arcebisposas vontades do reve-
filho querido. O abade de St. Yves estava desesperado,o prior
e a irmã derramavamtorrentesde lágrimas. Mas quempoderia rendo padre, êle que dava audiência,êle que prometia benefí-
cios, êle que fazia algumasvêzes expedir ordens reais. Escrevia
pintar o estado do amante? Nenhuma língua tem expressões
que corespondam àquele cúmulo de dores; as línguas são muito ao abade da Montanha que "Sua Reverência estava informado
das aventurasde seu sobrinho, que sua prisão fará resultado de
imperfeitas.
um êrro, que essas pequenas desgraças aconteciam frequente-
A tia, quase sem vida, sustentavaa cabeça moribunda em mente, e não havia motivo para dar-lhesmuita atenção, enfim
seusfracos braços; seu irmão estava de joelhos ao pé do leito; que era convenienteque êle, prior, fôsseapresentar-lheo sobri-
o amante apertava-lhea mão, que banhava de lágrimas, e ex- nho no dia seguinte,que deveria levar também o bom Gordon,
plodia em soluços: chamava-a sua benfeitora, sqa esperança, pois êle, irmão Vadbled, os introduziria junto a Sua Reverên-
sua vida, metadedo seu ser, sua amante, sua espâs-a. A êsse cia e junto ao Senhor de Louvois, o qual lhes diria uma pala-
nome de esposa ela suspirou, olhou-o com inexprimível ter- vra na sua antecâmara.
nura e, sùbitamente,lançou um grito de horror; depois, em um
Acrescentava que a história do Ingênuo e seu combate con-
dêsses intervalos em que o abatimento, a opressão dos sentidos
e os sofrimentos interrompidos devolvem à alma sua liberdade
ta os inglêsestinhamsido contadosao rei, que certamente
o
e sua força, ela exclamou: "Eu, tua esposa! Ah! querido
rei se dignaria ilotá-]o quando passassena ga]eria, e talvez ]he
amante, êsse nome, essa felicidade, êsse prémio não eram fei- fizesse até um aceno de cabeça. A carta terminava com a ad-
tos para mim; morro e mereço-o. O' deus do meu coração! ó tu missão da esperança, que ]he asseguraramser plausível, de que
que foste por mím sacrificado a demónios infernais, está feito, tôdas as damas da carte se empenhariam em levar o Ingênuo
estou punida, vive feliz." Essas palavras ternas e terríveis não aos seus quartos de vestir, que algumas dentre elas não dei-
podiam ser compreendidas;mas elas punham em todos os cora- xariam-n
de dizer-lhe: "Bom dia, senhorIngênuo";e que sem
dúvida haveriam de falar a respeito dêle durante a ceia do rei.
ções o pavor e o enternecimento;ela teve a coragem de expli- A carta estava assinada: "Seu afeiçoado Vadbled, irmão je-
car-se. Cada palavrasua fêz fremir de espanto,de dor e de suíta.
piedade todos os presentes. Todos se uniam para detestar o
homem poderosoque só tinha reparado uma horrível injustiça atendoo prior lido a carta em voz alta, o sobrinho furio-
por um crime, e que forçara a mais respeitávelinocênciaa ser so, dominandopor um momentoa cólera,nada disseao porta-
sua cúmplice. dor; mas, voltando-se para o companheiro dos seus infortúnios,
perguntou-lhe o que pensava daquele estilo. Gordos respondeu:
"Culpada,tu? disse-lheo amante;não, não o és; o crime "É assim que tratam os homens: como se fossem macacos! Ba-
só pode estar no coração, mas o teu pertenceà virtude e a
mim.''
] tem nêles e depois os fazem dançar." O Ingênuo, readquirindo
o seu caráter, o que sempre acontece nos grandes movimentos
Êle confirmava êsse sentimentocom outras palavras que pa' da alma,rasgoua carta em pedaçose arremessou-os
ao nariz
regiam devolver à vida a bela St. aves. Ela sentia-se consolada, do portador: "AÍ está minha resposta." O tio, atónito, teve
admirava-sede ser ainda amada. O velho a teria condenadono a visão da tempestade
e de vinteordensreais caindosabreêle.
tempo em que era jansenista; mas, tendo-setornado sensato, esti- Foi depressa escrever e desculpar, colmopôde, o que julgava fôsse
mava-a, e chorava. o arrebatamento
de ulll jovem inexperiente
e que era, de fato,
Em meio a tantas lágrimas e receios, enquanto o perigo o ímpeto de üma grande alma.
em que se achava a vida daquela jovem tão querida apertava Entretanto, preocupaçõesmais dolorosas afligiam todos os
todos os corações, no auge daquela grande consternação, é anun- corações. A bela e infortunada St. Yves já sentia aproximar-se
ciado um correio da carte. Um correio! E de quem? E por o seu fim; estava calma, mas era essa calma horrível da natu-
quê? ]üa da partedo confessordo rei para o prior da Mon- reza prostrada que já não tem força para lutar. "O' meu que-
20
306 1{0AIANCES E CONTOS 0 INGÉNUO 307

l,ido amante,disse ela com voz sumida, a morte puniu-mepela todo discurso e não se ]-nanifestasenão por palavras entrecor-
minha fraqueza; mas eu expira com a consolaçãode ver-te tadas. A hospedeira e sua família tinham acorrido; todos tre-
livre. Adorei-tena minha traição, e adoro-tedizendo-teum miam diante do desespêroque êle manifestava, não o perdiam
eterno adeus. de vista, observavam todos os seus movimentos. Já o corpo
Ela Jlão se revestiade uma vã firmeza; não concebiaessa geladoda belaSt. Yves tinhasido levadopara uma sala afas-
tada, longe dos olhos de seu amante, que parecia procura.la ainda,
miserável glória que faz dizer a alguns vizinhos: "Morreu com
embora no seu estado nada pudesse mais ver.
coragem." Quem poderá perder, aos vinte anos de idade, o
amante, a vida e o que se chama a honra sem consternação e di- Em meio a êsse espetáculoda morte, encluantoo corpo está
laceramentoda alma? . Ela sentia todo o horror do seu estado, expostoà porta da casa, enquantodois padres ao lado de uma
e dizia isso mesmo com aquelas palavras e olhares moribun- caldeirinha de água benta recitam as orações com um ar dis-
dos que falam com tanto império. Enfim, ela choravacomo os traído, enquanto os transeuntes ociosos lançam algumas gotas
outros,quandotinha fôrça para chorar. de água benta sôbre o ataúde, enquantooutros prosseguemo
Que outros procurem louvar a morte, cheia de ostentação, seu caminho com indiferença, enquanto os parentes choram e um
dos que entram na destruição com insensibilidade: essa é a sorte amante está prestes a tirai a própria vida, St. Pouange chega
de todos os animais. Nós não morremoscomo êles, com indi- com a atniga de Versalhes.
ferença, a não ser quando a idado ou a enfermidade nos tornam O seu capricho passageiro, satisfeito só um vez, tornara-se
semelhantesa êles pela estupidez de nossos órgãos. Quem sofre A recusa dos seus benefícios tinha-o excitado. O padre
uma grande perda tem grandes desgostos; se os sufoca, é por- La Chaise nunca teria pensadoem ir àquelacasa; mas St. Pouan-
que leva a vaidade até aos braços da morte. ge, que tinha todos os dias diante dos olhos a imagem da bela
Quando chegou o momentofatal, todos os presentessolta- St. Yves, impacientepor saciar uma paixão que, por um único
ram lágrimas e gritos. O Ingênuo perdeu o uso dos sentidos. dia de prazer, tinha lançado no seu coração o aguilhão dos dese-
As almas fortes têm sentimentos bem mais violentosque os jos, não hesitou em ir pessoalmente procurar aquela que Jaão
demais,quandosão sensíveis. O bom Gordos conhecia-obas- teria talvez querido rever três vêzes, se ela o tivesseprocurado.
tante para recear que, quando voltasse a si, êle se suicidasse. Desce da carruagem; o primeiro objeto que se apresenta
Fizeram desaparecer todas as armas; o infeliz jovem apercebeu- a seus olhos é um alaúde; desvia dêle os olhos coll] essa natu-
se disso; disse a seus parentese a Gordon, sem chorar, sem ral repugnânciade um homemque, nutridonos prazeres,julga
gemer, sem se emocionar: ''E.stão pensando que haja alguém na deverem poupar-lhe todo espetáculo que pudesse leva-lo à con-
terra que tenha o direito ou o podem'
de impedir-mede pâr fim templaçãoda miséria humana. Quer subir. A mulher de Versa-
à minha vida?" Goidon nunca pensaria em enumerar-lheêsses Ihes, por mera curiosidade, pergunta o nome de quem vai sei
lugares-comuns fastidiosos com os quais se pretende provar que enterrado; pronuncia-se o nome da senhorita St. aves. A êsse
não é lícito usar da liberdadepara deixarde existir quandose nome ela empalidece e solta um grito medonho; volta-se St. Pouan-
está horrivelmente mal, que não se deve sair de casa quando ge; a surprêsae a dor avassalam-lhea alma. O bom Gordon
não se pode mais morar nela, que o homemestá na terra como lá estava,com os olhos cheios de lágrimas. Interrompesuas
um soldadoem seu pôsto: comose importassemuito ao Ser dos orações para informar o homem da carte acêrca de toda aquela
sêres que a reunião de algumas partes da matéria esteja num terrívelcatástrofe. Fala-lhecom aquelaforça que dão a' dor
lugar ou em outro; razões impotentesque o desespêrofirme e e a virtude. St. Pouangenão era mau de nascimento; a tor-
refletido desdenha ouvia' e às quais Calão só respondeu com uma rentedos negóciose dos divertimentos tinha empolgadosua
punhalada. alma, que irão se conheciaainda. Não chegara ainda à velhi-
O acabrunhado e terrível silêncio do Ingênuo, seus olhos ce, que geralmente endureceo coraçãodos ministros;ouvia
sombrios, seus lábios trêmulos, os estremecimentosde seu corpo Gordon de olhos baixos, e enxugava algumas lágrimas que, para
punhamna alma de todos os que o olhavamêsse misto de com- sua própria admiração, estavavertendo: êle conheceuo arrepen-
dimento.
paixão e mêdo que encadeiatodas as potências da alma, exclui
308 ROMANCES E CONTOS

"Quero de qua]quer maneira, disse ê]e,.ver êsse ]lomem ex-


traordinário de quem acaba de falar-me; êle ]ne comove.quase
tanto como essa'inocente vítima cuja l-nortecausei." Gordon
o acompanha até o aposento onde o prior, a Kerkabon, o abade
de St. Yves e alguns vizinhos diligenciavam fazer recobrar os
sentidos o jovem que llovamentetinha desfalecido.
"Fui a causa da sua desgraça, disse-lheo subministro, em- ÍNDICE DAS MATÉRIAS
pregarema minha vida em repara-la." A primeira. idéi?. que veio
áo Ingênuofoi a de Inata-loe matar-seemseguida..Nada seria PÃES.
mais compreensível; luas êle estava sem armas e vigiado de.perto' APRESENTAÇÃO 5
St. Pouange não se exasperou com as repulsas acompanhadas da
do desprêzoe do horror que êlemerecera.e qu? Ihe eram ROMANCES E CONTOS
prodigalizados.' O tempo tudo abranda.. O Senhor de Louvois
conseguiuenfim fazer do Ingênuo um bom oficial, que apare' ZZZ)/G OU O l)ESTIIVO. História oriental 19
ceu com outro nome em Paras e nos exércitos, com a aprox'a-
Epístola dedicatória de Zadig à sultana Xeraa, por Sadi 19
não de todas as pessoas de bem, e que se tornou ao mesmo tempo O zarolho 22
um guerreiro e um filósofo intrépido. O nariz 24
O cão e o cavalo 26
Êle nunca falava dessa aventura sem gemer; entretanto,seu O invejoso 29
único consoloera falar dela. Cultuoua memóriade sua Os generosos 33
doceSt. Yves até o últimomomentode sua vida.- O abade de O Ministí;o 35
As disputas e as audiências 39
St. Yves e o prior tiveramcadaum o seu benefício;a bo!.Ker- A inveja 42
kabon preferiu ver o sobrinho revestido das honras militares
a vê-lo ;o subdiaconato. A devota de Versalhes guardou os brin-
A mulher espancada 45
A escravidão 48
cos de diamantes, e recebeumais um belo presente. O padre Tout- A fogueira 50
A ceia 53
-à-teus ganhou caixas de chocolate, de café, de açúcar-cande, de As entrevistas 56
doce de'limão, com as A/edílaçõesda refere/zdopadre Croísel e O bandido 59
,4 /'Zor dos Santos 316, encadernadas em marroquim. O bom O pescador 61
êordon viveu com o Ingênuo,até o fim dos seus dias, na mais O basilisco 64
íntima amizade; recebeu também um benefício, e esqueceu pal'a Os combates 70
O eremita 74
sempre a graça eficaz e o concurso concomitante317. Adotou como Os enigmas 79
sua divisa: znaZÃeür esl bon ã qüeZgüe cÃose. Muitos homens de
APÊNDICE :
bem, no mundo, terão podido dízerl /naZÃeürll'esf boroci riem/ 83
A dança
Os olhos azuis 85
)

O il/UNI)O T.41, Qt/.4Z É, Visão de Babuc, escritapor êle mesmo 89


MEMNÃO, OU A SABEDORIA HUMANA 104
OS DOIS CONSOLADOS 110
HISTÓRIA D.AS VIAGENS DE SCARM.UNTADO, esc \ta pot
êle mesmo 112
MICRÕMEGAS. História filosófica 120
(316) O padre Croiset, jesuíta, publicou, a partir de 1694, nu- CAPÍTULO 1 -- Viagem de um habitante do mundo da
merosas coletâneas de .4/édifafons. d Flor dos Santos (1599) é do
estrêla Sírius ao planeta Soturno 120
jesuíta espanhol Ribadeneyra.
CAPITULO 11 -- Conversa do habitante de Sírius com o
(317) A participaçãoda graça divina em todas as ações de Soturno 123
ÍNDICE DAS MATÉRIAS ÍNDICE DAS MATÉRIAS 311
310

PÃES. PAÍS
CAPÍTULO Xlv -- Como Cândida e Cacambo foram re-
CAPÍTULO 111 -- Viagem dos dois habitantes de Sírius 126 cebidos pelos jesuítas do Paraguai 19.2
e de Saturno
127
}

CAPÍTULO xv Como Cândida matou o irmão da


C]APÍTULO IV O que lhes aconteceuno globo terrestre sua querida Cunegundes 195
CAPÍTUI.o V -- Experiências e reflexões dos dois via- 130
CAPÍTULO XVI O que sucedeu aos dois viajantes
jantes com duas maças, dois macacos, e os
131 197
CAPÍTULO VI -- O que lhes aconteceuentre os homens selvagens chamados Orelhões
CAPITULO Vll -- (conversa com os homens
134 CAPÍTULO XVll -- Chegada de Cândido e de seu cria-
lÍISTÓRÍA DE UM BOM BRÂMANE
139 do ao país do Eldoradoe o que
êles aí viram 200
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142
O BRANCAE O NEGRO CAPÍTULO XVIII
154 Do que êlesviram no país do
!EANNOT E COLIN Eldorado 203
CJND/l)O OC/ O OT.rJI//SJ140, traduzido do alemão, de autoria c:APÍTUt.O XIX Do que lhes aconteceu em Surinã,
' o doutor Ralph, com acréscimos que foram encontrados nos e como Cândido travou conhecimen-
bolsos do doutor, quando êste morreu, em Minden, no ano da 163 to com Maninho 207
graça de 1759 CAPÍTUt.O XX -- O que sucedeu no mar a Cândido
CAPÍTULO l -- Onde se relata como
educado num bonito castelo, e como
Cândido foi ea Maninho 212

foi expulso dêle 163 CAPITULO XXI -- Cândido e Maninho aproximam-se


das costas da França e conversam 214
CAPÍTULO 11 Em que se conta o que aconteceu
a Cândida entre os búlgaros 166 CAPÍTULO XX.ll O que sucedeuna França a Cândida
e a Maninho 215
CAPÍTULO 111 -- Como Cândido escapou dos búlgaros
168 CAPÍTULO XXIII -- Cândido e Maninho chegam às cos-
e o mais que Ihe aconteceu
tas da Inglaterra; e que êlesvêemali 225
CAPÍTULO IV -- Como Cândida encontrou seu an-
CAPÍTULO X.XIV De Paquetee do Frei Girofleu 226
tigo mestre de filosofia, o doutor
Pangloss, e o mais que se seguiu 170 C:APÍTULO XXV -- Visita ao Senhor Pococurante, nobre
veneziano 230
CAPÍTULO V -- Tempestade, naufrágio, terremoto e
o mais que aconteceu ao doutor
CAPÍTULO XXVI Onde se fala da ceia de Cândido
Pangloss, 'a Cândida e ao anaba- e Maninho com seis estrangeiros e
tista Trago 173 quem eram êsses 234

VI -- Como se fêz um belo auto-de-fé CAPÍTULO XX.VII -- Viagem de Cândido a Constantinopla 237
CAPÍTULO
para impediros terremotose como CAPÍTULO XXVIII O que aconteceu a Cândida,a
Cândida foi açoitado 175 Cunegundes, a Pangloss, a Maninho
etc. 240
CAPÍTULO Vll -- Como uma velha tomou conta de
Cândido e como êste tornou a en- CAPÍTULO XIXIIX -- Como Cândida tornou a encontrar
contrar o seu amor 176 Cunegundes e a velha 242
178 CAPÍTULO XXX -- Conclusão 243
CArIl'ULO Vlll -- Flistória de Cunegundes
CAPÍTULO IX Do que aconteceu a Cunegundes, a
+

0 /NGENt/O. História verdadeira extraída dos manuscritosdo


Cândido, ao Inquisidor-mor e a padre Quesnel 247
um judeu 180 CAPÍTULO I -- Como o prior de Nossa Senhorada
Montanha
e a senhorita
sua irmã
CAPÍI'ULO X -- Em que penúria Cândida, Cune- encontraram um furão 247
gundese a velhachegam
a Cádiz 182 CAPÍTULO 11 O hurão,
chamado
Ingênuo,
é re-
e do seu embarque
183 conhecido por seus parentes 253
CAPÍTULO XI -- História da velha
186 CAPÍTULO 111 O hurão, chamado Ingênuo, é con-
CAPÍTULO Xll -- Continuação das desgraças da velha v-ertido 256
CAPÍTULO Xlll -- Como Cândida
rar-seda formosa
foi obrigado
Cunegundes
e da
a sepa- CAPÍTULO lv -- O Ingénuo batizado 259

velha 190 CAPÍTULO V O Ingênuo enamorado 261


312 ÍNDICE DAS MATÉRIAS

PÃES
CAPÍTULO VI -- O Ingênuo corre ao encontro de sua
amada e fica furioso .....-..... 264 ?

CAPÍTULO Vll -- O Ingênuo repele os inglêses .... 266


CAPÍTULO Vlll -- O Ingênuo vai à carte. Êle ceia,
em caminho, com alguns huguenotes 268
CAPÍTULO IX - Chegada do Ingênuo a Versalhes,
Sua recepção na carte ......... 271
CAPÍTULO X -- O Ingênuo encerrado na Bastilha .. B

com um jansenista ............. 273


CAPÍTULO XI -- O Ingênuo desenvolve o seu gênío 278
CAPÍTULO Xll O que o Ingénuopensadas peças
de teatro ..................... 281
CAPÍTULO Xlll -- A bela St. Yves vai a Versalhes282
CAPÍTULO XIV -- Progressos do espírito do Ingênuo 287
CAPÍTULO XV -- A bela St. aves resiste a propostas
delicadas ...................... 289
CAPÍTULO XVI -- Ela consulta um Jesuíta ......... 291
CAPÍTULO XVll -- Ela sucumbe por virtude ..... . 293
CAPÍTULO Xylll -- A St. Yves libertaseu amantee
um jansenista .....-............ 295
CAPÍTULO XIX -- O Ingénuo, a bela St. Yves e seus
parentes se reúnem .....-....... 297
CAPÍTULO xx A morte da bela St. Yves e o que
que acontece depois ............. 307
309
ÍNDICE DAS MATARIAS

Êste livro foi compostoe impressonas


oficinasgráficas da EDIPE, rua Con-
selheiroFurtado, 516 São Paulo --
em mil novecentos e cinqüenta e nove.

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