9 Semana de História

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CADERNO DE RESUMOS DA IX

SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA


UFCG/CFP

NOVAS EPISTEMES: ESPAÇO,


COMUNIDADES E ETNIAS
ANAIS ELETRÔNICOS DA IX SEMANA
NACIONAL DE HISTÓRIA DO
CFP/UFCG NOVAS EPISTEMES: ESPAÇO,
COMUNIDADES E ETNIAS

CADERNO DE RESUMOS

CAJAZEIRAS – PB
Outubro de 2017
2017 © Copyright Mundial
UACS – Unidade Acadêmica de Ciências Sociais. UFCG – Universidade
Federal de Campina
Grande.

Impresso no Brasil
Printed in Brazil

Formatação e organização:
Maria Joedna Rodrigues Marques

Observação: a adequação técnico-linguística dos textos, assim como seus


conteúdos, são de responsabilidade dos autores.

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Prof. Ms. Isamarc G. Lôbo (UFCG) João Kaio Miguel Arruda
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Lilian de Lima Beserra
Lourival Tavares de Lima Neto
Lucas Japhet Pereira Rodovalho
Lucas Roza dos Santos
Maria Marleide Morais Carlos
Maria Thereza Dias Cavalcanti
Marilda Sarmento Luis
Mário Sérgio Gomes Pedoni
Mirian Jossette de Sousa Oliveira
Paulo Cezar Sarmento Júnior
Raquel da Silva Vieira
Renata Maria de Oliveira Lobo
Roberto Ferreira
Roberto Ramon Queiroz Assis
Sabrina Fernandes de Souza
Samira Tavares Martins
Ticiano Queiroga e Oliveira
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO
PROGRAMAÇÃO GERAL

SESSÃO COORDENADA “HISTÓRIA E LITERATURA” .....................................9


SESSÃO COORDENADA “ENSINO DE HISTÓRIA” ............................................74
SESSÃO COORDENADA “HISTÓRIA E CULTURA” ........................................132
SESSÃO COORDENADA “HISTÓRIA E EDUCAÇÃO” .....................................216
SESSÃO COORDENADA “HISTÓRIA E GÊNERO” ...........................................301
SESSÃO COORDENADA “HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA” ........................365
SESSÃO COORDENADA “HISTÓRIA E POLÍTICA” ........................................406
SESSÃO COORDENADA “HISTÓRIA E QUESTÕES ÉTNICO-RACIAIS” ...481
SESSÃO COORDENADA “HISTÓRIA E SOCIAL” .............................................587
SESSÃO COORDENADA “HISTÓRIA E RELIGIOSIDADE” ...........................722
SESSÃO COORDENADA “HISTÓRIA E MEMÓRIA” .......................................748
APRESENTAÇÃO

Entre os dias 16 e 20 de outubro de 2017, no campus do Centro de Formação de


Professores (Cajazeiras – Paraíba), ocorrerá a IX Semana Nacional de História da
Universidade Federal de Campina Grande (CFP/UFCG). Em sua nona edição, a Semana
Nacional de História propiciará aos participantes a oportunidade de refletir sobre o tema
Novas epistemes: espaço, comunidades e etnias. Este evento tem como objetivo
principal congregar pesquisadores para apresentar e debater os resultados de seus
estudos e pesquisas em torno dos diferentes modos pelos quais o tempo passado pode
ser problematizado enquanto conhecimento, entre os quais a relação entre as práticas
(sociais e culturais) e o campo das representações, dimensões fundamentais para a
compreensão do tempo presente.

Organizada por discentes do Curso de Graduação em História, a IX Semana


Nacional de História CFP/UFCG dará continuidade a um evento científico que, desde
2009, consolida-se como espaço de trocas de experiências e de diálogos entre
estudantes, professores e pesquisadores acerca da produção do conhecimento histórico e
de áreas afins.

A IX Semana Nacional de História do CFP/UFCG tem como proposta refletir


sobre os movimentos sociais e a ocupação do espaço no mundo contemporâneo,
considerando transformações e permanências, buscando abranger os movimentos
migratórios, a definição de cartografias étnicas e as comunidades como espaços de
afirmação e resistência. No evento desse ano considera-se ainda problematizar as
relações sociais ligadas ao mundo do trabalho, das lutas sociais e políticas, bem como
da construção de identidades coletivas (memórias sociais) que se articulam no processo
de percepção e apropriação do espaço e da relação que os diferentes grupos estabelecem
com ele. A diversidade do tema implica dizer que não há uma perspectiva teórica ou
um recorte temporal que delimite o foco da discussão, uma vez que se propõe a ampla
problematização dos conceitos acima relacionados, incluindo, ainda, os recentes debates
sobre a história ambiental, movimentos sociais rurais e urbanos, movimento indígena e
quilombola.
PROGRAMAÇÃO

Segunda-feira, 16 de Outubro
9:00h às 12:00h – Credenciamento

14:30h às 17:30h – Credenciamento

19:00h – Conferência de abertura


Conferencista: Dra. Marina de Mello e Souza (USP)

22:00h – Atividade Cultural

Terça-feira, 17 de Outubro
8:30h às 12:00 - Mesa redonda "Diálogos sobre os estudos pós-coloniais africanos e
latinoamericanos"

Prof. Dr. Leandro S. Bulhões de Jesus (UnB)


Profa. Dra. Júlia Benzaquen (UFRPE)
Profa. Dra. Risomar Santos (UFCG)

14:30h às 17:30h - Sessão Coordenada

17:30h às 19:00h - Atividade Cultural

19:00h às 22:00h - Mesa redonda "Movimentos sociais e trabalho no Brasil - desafios


passados e presentes"

Profa. Dra. Maria do Socorro Rangel (UFPI)


Profa. Dra. Mariana Moreira Neto (UFCG)
Cícera Gomes de Andrade (CPT/sertão/PB)

22:00h - Atividade Cultural

Quarta-feira, 18 de Outubro
8:30h às 12:00 – Oficina/Minicursos

14:30h às 17:30h - Sessão Coordenada

17:30h às 19:00h - Atividade Cultural

19:00h às 22:00h - Mesa redonda ―Entre o ir e o vir: movimentos (i)migratórios no


espaço contemporâneo"
Ms. Tuíla Botega Cruz (UNB)
Carlos Afonso da Maia (UEPB)

22:00h - Atividade Cultural

Quinta-feira, 19 de Outubro
8:30 às 12:00 - Oficina/Minicurso

14:30 às 17:30 - Sessão Coordenada

17:30 às 19:00 - Atividade Cultural

19:00 às 22:00 - Mesa redonda "Possibilidades de afirmação e resistência entre os povos


indígenas no mundo contemporâneo"

Prof. Dr. Sebastião Leal F. V. Netto (UFRN)


Prof. Me. Edmundo C. M. Bezerra (Doutorando/UFBA)
Prof. Me. Felipe Sotto Maior Cruz Tuxá (Doutorando/UnB)

22:00 - Atividade Cultural

Sexta-feira, 20 de outubro
8:30 às 12:00 - Mesa redonda ―Desafios e experiências de ex-alunos no exercício da
profissão‖

14:30 às 17:30 - Assembleia

17:30 às 19:00 - Atividade Cultural

19:00 às 22:00 - Conferência de encerramento


Conferencista: Dr. Gersem Luciano dos Santos Baniwa (UFAM)

22:00 - Atividade Cultural


ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

SESSÃO COORDENADA “HISTÓRIA E LITERATURA”


COORDENADORES:
ELRI BANDEIRA DE SOUSA & FRANCINALDO DE SOUZA
BANDEIRA

HISTÓRIA E LITERATURA: A PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL NA


NARRATIVA DE ERNEST HEMINGWAY EM ADEUS ÀS ARMAS

FERDINANDO DE OLIVEIRA FIGUEIRÊDO1


PPGLI-UEPB
[email protected]

RESUMO
Este estudo propõe uma análise da visão histórica adotada pelo escritor norte-americano
Ernest Hemingway (1899-1961) na composição do romance Adeus às Armas (1929).
Escrito de forma autobiográfica, o enredo aborda a paixão desenvolvida entre um tenente-
norte americano e uma enfermeira inglesa durante a Primeira Guerra Mundial, panorama
esse utilizado para a construção da trama e que coincide com aspectos da própria biografia
do autor. Nesta pesquisa, serão considerados alguns elementos históricos existentes na
narrativa que integraram o contexto da Primeira Guerra, estabelecendo uma relação com
contribuições de historiadores como Sondhaus (2013) e Macmillan (2014), apresentando,
desse modo, a obra como um dos grandes exemplos de ficção baseados nos eventos
ocorridos durante esse conflito mundial.
Palavras-chave: Literatura; História; Primeira Guerra Mundial.

INTRODUÇÃO

As fontes pelas quais os historiadores buscam para construir suas teorias acerca do
percurso da humanidade ao longo da história são, continuamente, exploradas quando se

1
Discente do Programa de Pós-Graduação em Literatura e Interculturalidade (PPGLI-UEPB).

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

pretende verificar a veracidade das informações e dos dados coletados a partir dos métodos
utilizados por esses especialistas. De certo modo, isso conduz a uma determinação da
autenticidade do próprio historiador, uma vez que, quando suas teorias históricas são
formuladas e postas a um processo de análise e observação e, seguidamente, constatadas
enquanto fontes reais, o pesquisador adquire o reconhecimento considerável perante o
contexto acadêmico e científico em que ele se integra.
Para que essa exatidão dos dados históricos seja condicionada a uma observação
daquilo que corresponde ao real, a pesquisa se realiza pelo método comparativo, onde tais
informações são coletadas e postas, concomitantemente, com o objetivo de observar se
respectivas afirmações relacionadas a um determinado fato coincidem ao longo do relato
apresentado em cada fonte explorada pelo teórico historiador. Em meio a essa questão, se
insere o texto literário, elemento constituído de significação e que, concretamente, se torna
visível ao leitor a partir de um autor, indivíduo este que, pela arte literária, transforma suas
ideologias e suas visões de mundo em objeto de apreciação e interpretação daquilo que é
posto e, nesse sentido, o contexto histórico se revela com mais frequência à medida que o
texto se desenvolve em sua construção de conteúdo, colocando a literatura como uma
ferramenta de busca de fontes históricas.
Os conflitos históricos que envolveram países de diferentes continentes resultaram
em acontecimentos que, até hoje, revelam as suas graves consequências, seja no contexto
mundial, econômico e cultural, de modo que as nações atingidas por essas circunstâncias
carregam, em seu trajeto histórico, imagens de divisão e destruição geradas pelos combates
que se predominaram durante essas ocorrências. Traz-se como exemplo a Primeira Guerra
Mundial (ocorrida entre 1914 e 1918), um fato que mobilizou determinados países do
globo – principalmente as grandes potências europeias – a lutarem em guerrilha, alterando
uma realidade mundial de paz para uma verdadeira arena de violência e fragmentação nas
relações humanas.
Este episódio, em especial, trouxe para o texto literário a chance de retratar, pela
ficção, ambientes hostis onde o regime de opressão e de lutas eram predominantemente
presentes no cotidiano daqueles que se integraram nas batalhas durante a guerra. Como
exemplo de autor que produziu uma literatura que abrangesse o panorama de guerra é o
escritor norte-americano Ernest Hemingway (1899-1961) que, com o romance Adeus ás
Armas (1929), utiliza a Primeira Guerra como fundamento para sua escrita. Isso é resultado
da própria biografia de quem escreveu, já que, conforme afirma Anderson (2010), a

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

narrativa se associa com Hemingway que, durante a guerra, serviu como um motorista de
ambulância da força italiana, tal como o protagonista do enredo, o personagem Frederic
Henry. É possível, desde então, realizar uma pesquisa atentando em como a construção da
obra aponta para uma concepção do escritor acerca de sua participação no conflito.
Logo, este artigo tem como principal objetivo analisar a perspectiva histórica que
Hemingway se apropriou para compor o enredo em Adeus às Armas, considerando o modo
como tais informações acerca da Primeira Guerra são colocadas em concordância com
aspectos que fizeram parte deste grande embate no contexto global. Para tal fim, serão
explorados alguns registros de alguns historiadores que pesquisaram sobre a temática da
Primeira Guerra Mundial, expondo, assim, elementos desse panorama histórico que
coincidem com a narrativa americana. Seguidamente, serão examinados alguns dados
biográficos sobre a trajetória de Hemingway rumo à autoria, seu estilo de escrita e sua
relevância no âmbito literário e, por fim, será desenvolvido um estudo crítico-analítico do
corpus da pesquisa, especialmente em alguns trechos em que se apresentam algumas
observações do escritor com relação ao cenário da guerra.

PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL: UM PANORAMA HISTÓRICO

Tratada pelos pesquisadores como um dos maiores conflitos da história da


humanidade, a Primeira Guerra Mundial realizou-se durante um período de lutas que se
estendeu entre 28 de julho de 1914 e 11 de novembro de 1918. Envolvendo as grandes
potências mundiais, as nações se dividiram em duas alianças: a Tríplice Entente, formada
pela França, Reino Unido e Rússia, e a Tríplice Aliança, representada pela Alemanha,
Itália e o Império Austro-Húngaro. Dessas relações, um dos grandes fatores que contribuiu
para o surgimento desse conflito foi a disputa entre os impérios na prática colonial.
Regiões da África, Ásia e do Pacífico, por exemplo, se tornaram territórios de cobiça por
parte dos imperialistas que almejavam estender seu domínio político e econômico.
Todavia, o estopim para o início da guerra ocorreu com o assassinato do arquiduque
e herdeiro do Império Austro-Húngaro Francisco Ferdinando (1863-1914) e, conforme
aponta alguns dados referentes às suas ações políticas, ele

[...] esperava reduzir a dependência da Áustria-Hungria em relação à Alemanha e


reorganizar o Império para dar poderes aos eslavos do sul como terceira força
política. Essas ideias granjearam-lhe a inimizade de muitos austríacos alemães,
de quase todos os magiares e daqueles eslavos (especialmente os sérvios) que
temiam uma revitalização do Império. (SONDHAUS, 2013, p. 25).

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Outras causas, ainda, serviram como base para o começo dos combates entre os
países: o Pan-Eslavismo Russo, que tornava a Rússia como líder protetora de todos os
eslavos, o que caracterizou um novo nacionalismo (MACMILLAN, 2014) e auxiliou o seu
domínio imperial na Europa Oriental; a construção de uma estrada de ferro entre Berlin e
Bagdá, possibilitando o interesse dos alemães pelos lençóis petrolíferos em espaços do
Cáucaso e do Golfo Pérsico; o nacionalismo exercido pela Sérvia, ideologia esta que
emergira durante a Revolução Francesa (1789-1799) e as Guerras Napoleônicas (1803-
1815) e que se tornou predominante em potências europeias e não europeias, em domínios
britânicos, colônias e nações subalternas; embates derivados do declínio do Império Turco;
disputas entre Inglaterra, Alemanha e França pelas regiões do Marrocos; a primeira e
segunda guerra dos Balcãs contra o Império Otomano; e, por último, a tomada de posse de
colônias de outros países realizada pela Alemanha, Itália e outras regiões da Europa, de
modo que isso proporcionou a natureza global do imperialismo europeu, seu comércio e
seu poderio naval (SONDHAUS, 2013).
Dividida em três momentos, a Primeira Guerra teve suas primeiras ações na guerra
de movimento, em que as Alianças estenderam suas intenções imperialistas para outros
países com o intuito de adquirir forças para a obtenção de suas conquistas. Em seguida,
houve a guerra das Trincheiras, fase em que os alemães constroem essas escavações com o
intuito de obter estratégias de segurança e de invasão no território inimigo da França.
Sobre essa época, Sondhaus (2013) afirma que as trincheiras de comunicação projetadas
em ângulo reto perante as principais se conectavam e facilitavam o movimento dos
soldados sem se expor aos combatentes inimigos. Ainda, eram por elas que eles tinham
acesso a alimentos, munições e outros provimentos. Logo após, como uma terceira etapa,
vieram as Ofensivas dos Cem Dias, período final da guerra pelo qual os Aliados lançaram
ofensivas contra os Impérios Centrais do Ocidente. Nesse contexto, os combatentes
tinham a ideia de que assumir a ofensiva e tomar uma decisão era essencial para vencer a
guerra, como aponta Macmillan (2014).
Ademais, as disputas entre os países facilitaram a entrada do Japão e da Itália, porém
o império japonês se retirou do conflito logo após agir ambiciosamente contra a China,
tomando terras alemãs e outras colônias. Depois, no ano de 1916, houve a Batalha de
Somme, que resultou em ―[...] 650 mil aliados mortos, feridos ou desaparecidos.‖
(MACMILLAN, 2014, p. 683), além de 400 mil alemães; no mesmo ano, surge a Batalha

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de Verdun entre Alemanha e França e, conforme Sondhaus (2013, p. 235), ―[...] foi a mais
prolongada sangria geograficamente concentrada da guerra, já que quase todos os seus
mortos caíram dentro de uma área de 26 km 2, na qual foram disparados 10 milhões de
projéteis, equivalentes a 1,35 milhão de toneladas de aço.‖. Essas e muitas outras
ocorrências se integraram ao longo da ―Grande Guerra‖.
O fim oficial dessa guerrilha ocorreu com a instauração do Tratado de Versalhes
(1919), que foi um tratado de paz assinado após seis meses de negociações pelos países
que compunham o potencial europeu. Ele ―[...] serviu de modelo para os tratados da
Conferência de Paz de Paris em relação a Áustria, Hungria e Bulgária [...].‖ (SONDHAUS,
2013, p. 497). Porém, a Alemanha acabou entrando em uma grande crise econômica com
as penas impostas, dentre elas a perda das colônias, a atribuição de culpa pela ocasião da
guerra e o pagamento de uma indenização aos países vencedores do combate. Porém, nada
foi mais marcante do que as sequelas deixadas na memória daqueles que presenciaram
pessoalmente a Primeira Guerra, seja diretamente, na condição de soldado, ou
indiretamente, na posição de cidadão residente dentre os países abrangidos.

VIDA E OBRA DE ERNEST HEMINGWAY

A vida de Ernest Hemingway sempre foi dedicada à escrita literária. Grande parte da
produção de suas obras se originou pelos dados biográficos do próprio autor e que, por
isso, algumas de suas composições possuem certa proximidade com a sua trajetória
enquanto compositor de literatura. Isso significa que, ao analisar alguns traços da biografia
do escritor, se poderá obter uma compreensão mais ampla acerca do conjunto de textos de
sua autoria.
Nascido nos Estados Unidos em 21 de julho de 1899, mais precisamente na cidade de
Illinois, ele era filho de Clarence Hemingway, médico, e de Grace Salão Hemingway,
professora de música e cantora. Iniciou sua carreira como repórter para um jornal intitulado
Kansas City Star, o que contribuiu para a determinação de sua escrita literária no que se
refere ao modo conciso em que os textos se adequam com a escrita jornalística. Depois, se
voluntariou como soldado na Primeira Guerra Mundial, porém, por apresentar uma visão
limitada, acabou sendo restringido ao combate na arena de guerra, sendo alocado como
motorista de ambulância na Cruz Vermelha da Itália, como já introduzido neste estudo.
Mesmo assim, acabou sendo ferido ao longo das batalhas, se submetendo a um processo

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cirúrgico e ao total repouso e, com isso, facilitou o autor na sua dedicação na escrita de
suas obras literárias, dedicando-se, principalmente, na produção em prosa, conferido no
conjunto de contos e romances publicados.
Ainda, a vida pessoal de Hemingway é caracterizada pela existência de diversos
relacionamentos, tanto no que diz respeito ao casamento como aos casos extraconjugais
vivenciados por ele. Nomeado como ―mulherengo‖ e ―boêmio‖, ele tinha uma rotina
constante de viagens, visitando países como França, África, Espanha, Cuba, Itália, dentre
outros, e esses espaços também foram consideráveis para a escrita de seus textos, já que
alguns deles se situaram nesses territórios. Cada um, em sua construção, apresenta suas
particularidades com relação ao contexto cultural, histórico e social existente nos cenários
e temas apresentados pelo autor.
Cronologicamente, os trabalhos de Hemingway na literatura começaram em 1919,
quando ele tentou publicar alguns contos produzidos em casa. Juntamente com T.S. Eliot
(1888-1965), James Joyce (1882-1941), dentre outros, eles formaram o grupo de escritores
denominado A Geração Perdida, composto por artistas literários americanos expatriados
que viajaram dos Estados Unidos a Paris em busca de inspiração e distanciamento da
Grande Depressão Econômica (ou crise de 1929), que atingiu a população norte-
americana. É pelo seu primeiro romance em O Sol Também se Levanta (1926) que
Hemingway irá tratar deste contexto, construindo personagens que, assim como ele,
presenciou o estilo de vida na capital francesa.
A escrita de Hemingway também acompanhou as mudanças do período modernista,
período que abrangeu todos os movimentos artísticos e culturais do século XX em que se
buscavam novas formas de produzir arte, tendo como ponto central o desapego ao
tradicional, considerado pelos integrantes como algo ultrapassado. A literatura, nesse
cenário, adquire algumas alterações, especialmente ao modo como a ficção seria exposta
ao leitor. Gray (2004) revela que os críticos defendiam uma leitura mais aprofundada do
texto e o uso de práticas literárias distintas, a exemplo da inserção de figuras de linguagem
e o surgimento do fluxo de consciência executado pelo narrador.
Têm-se registrado, então, inúmeras obras publicadas de sua autoria: as coleções de
contos Homens sem Mulheres (1927), O Vencedor Nada Leva (1933), e As Cinquenta
Colunas e as Primeiras Quarenta e Nove Histórias (1939), e alguns dos seus romances
mais lembrados pela crítica literária: O Sol Também se Levanta, comentado anteriormente
neste estudo, o romance de guerra Adeus às Armas - resultado de suas experiências durante

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a Primeira Guerra Mundial e utilizado como objeto para esta análise - além de Morte na
Tarde (1932), Ter e Não Ter (1937), Por Quem os Sinos Dobram (1940), Do Outro Lado
do Rio, entre as Árvores (1950), e sua obra consagrada O Velho e o Mar (1952), de modo
que este último lhe concedeu o Prêmio Nobel de Literatura e o Prêmio Pulitzer, sendo este
atribuído a artistas reconhecidos pela sua excelência na literatura, no jornalismo, e em
outras áreas. Ademais, outros textos do autor foram publicados após sua morte, como os
romances Paris é uma Festa (1964), As Ilhas da Corrente (1970), O Verão Perigoso
(1985) e O Jardim do Éden (1986).
Não obstante, seu sucesso literário não o impediu de sofrer problemas de saúde
associados à depressão causados por dois acidentes em um avião na África, além de que o
estado depressivo se constituiu de algo bastante presente na linhagem de sua família.
Acreditando que estava perdendo o dom da escrita e vivenciando divergências no núcleo
familiar, o autor cometeu suicídio em 02 de julho de 1961, atirando com uma pistola em si
mesmo. De fato, ele deixou suas narrativas como marcas registradas de seu talento de
escrita em língua inglesa no contexto literário estadunidense. Isso está em concordância
com a afirmação de Anderson (2010) ao destacar que ele é um mestre literário reconhecido
e um dos escritores mais influentes de prosa dentre os outros americanos que se encontram
em sua geração.

A PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL EM ADEUS ÁS ARMAS

O texto narrativo em Adeus ás Armas se realiza de forma autobiográfica,


característica revelada pelo modo que o enredo se apresenta ao leitor a partir da perspectiva
do protagonista, o motorista e tenente norte-americano Frederic Henry. Servindo ao
exército italiano, ele narra sua trajetória ao longo dos acontecimentos da Primeira Guerra
Mundial e sua paixão pela enfermeira escocesa Catherine Barkley. Henry, no romance, se
configura como um narrador autodiegético, isto é, o narrador ―[...] que relata as suas
próprias experiências como personagem central dessa história.‖ (REIS & LOPES, 1988, p.
62).
Essa estratégia narrativa de Hemingway é um tema bastante frequente em meio à
crítica literária com relação a aspectos semelhantes da obra com a biografia do autor.
Vernon (2013), sobre isso, declara que a trama se refere a um retrato reflexivo sobre a
experiência do cidadão estadunidense na guerra, e que as coincidências entre o

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protagonista e o escritor são intrigantes: Hemingway e Henry eram ambos, motoristas de


ambulâncias; além disso, durante seu trabalho como voluntário da frente italiana, ele se
apaixonou pela enfermeira americana Agnes von Kurowsk (1892-1984), servindo de
inspiração para a criação do romance. Com isso, se torna útil para a compreensão do
significado de alguns elementos históricos existentes na obra, promovendo um exame de
todo o panorama no qual ela se materializa (CULLER, 1999).
O narrador, em Adeus ás Armas, expõe a rotina de um soldado durante a guerra,
apresentado alguns objetos próprios da época. Ele cita, por exemplo, alguns utensìlios: ―O
quarto que eu dividia com o tenente Rinaldi dava para o pátio. A janela estava aberta,
minha cama arrumada, com cobertores, e minhas coisas penduradas na parede, a máscara
contra gás na sua latinha oblonga, o capacete de aço no mesmo prego.‖ (HEMINGWAY,
2013, p. 14). Sondhaus (2013), em suas pesquisas, realça o uso de máscaras para a
proteção de ataques com gás que se prolongaram ao longo do conflito, especialmente em
1916, ano em que se desenvolveram objetos mais eficazes contra os efeitos das substâncias
químicas contidas.
O personagem Henry, nessa perspectiva, adiciona alguns aspectos referentes à
caracterização dos soldados a medida que ele os descreve, conforme é possível observar no
trecho abaixo:

Os caminhões chapinhavam e espirravam lama, e os soldados passavam sujos de


barro e molhados, em seus capotes; os rifles estavam encharcados, e, por debaixo
dos capotes, as duas patronas de couro cinzento na frente do cinturão, bastante
pesadas, com os cartuchos de 6.5 mm, alongados e finos, estufavam tanto suas
silhuetas, que faziam os homens em marcha parecerem grávidos de seis meses
[...]. (HEMINGWAY, 2013, p.10).

Percebe-se, em sua descrição, a forma exata utilizada ao citar algumas utilidades dos
combatentes, especialmente os cartuchos, munição comumente usufruídas pelas tropas, em
especial os alemães que, em Londres, mantinham escondido 50 mil fuzis e 7 milhões de
cartuchos para seus ataques às forças inimigas (MACMILLAN, 2014). Dessa forma, os
homens serviam como verdadeiras máquinas de guerra, submetidas a um regime totalitário
onde a violência era o principal mecanismo para a obtenção da vitória.
Seguidamente, é evidente a presença das ambulâncias no texto narrativo e a sua
utilidade no cenário de guerra. Associada aos dados biográficos de Hemingway –motorista
de ambulância – a narrativa revela como esses veìculos se configuravam: ―Eram
ambulâncias de frente achatada, pesadonas, pintadas de cinza e lembrando caminhões de
mudança. Os mecânicos estavam consertando uma fora da garagem. Três outras andavam
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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

pelas montanhas, a serviço dos postos de emergência [...].‖ (HEMINGWAY, 2013, p.17).
Americano, o escritor de Adeus às Armas é um exemplo de voluntário fornecido pelo
governo estadunidense durante a Primeira Guerra, sem falar nas ambulâncias concedidas,
como se confere no dado histórico abaixo:

Além dos soldados e aviadores, os Estados Unidos forneceram um grande


número de voluntários não combatentes para as operações europeias da Cruz
Vermelha Americana e diversos serviços de ambulância dos Estados Unidos, o
que se tornou uma opção preferida para jovens em idade universitária com meios
para pagar suas próprias despesas para chegarem à França. (SONDHAUS, 2013,
p. 206).

Outra informação possível de verificar no corpus em análise é a atuação da Áustria-


Hungria na guerra. De acordo com Macmillan (2014), a rede de trincheiras provou a sua
capacidade de defesa contra os ataques da oposição, mesmo sofrendo quase 1 milhão de
baixas. Observe a visão de Henry ao tratar do desempenho da força austríaca:

[...] Os austríacos iriam acabar conosco. Mas os italianos haviam transposto o


rio e avançado até quase três quilômetros, dentro do território austríaco. Era um
lugar terrível, e os austríacos não deviam tê-lo deixado sob a posse dos italianos.
Mas parece que houve uma tolerância mútua, porque os austríacos ainda
detinham uma cabeça de ponte rio abaixo. Suas trincheiras ficavam numa
elevação a apenas poucos metros das linhas italianas. [...]. (HEMINGWAY,
2013, p. 22).

Por estar inserido em um cenário político de combate entre países, subtende-se que
Hemingway era ciente das relações de poder que se instauravam em torno daquelas
circunstâncias que ele mesmo presenciou durante os combates. Em Henry, ele internaliza a
sua visão sobre a condição dos Estados Unidos perante a guerra, e isso se torna claro
quando o narrador aponta a sua perspectiva sobre a ―possìvel‖ ação futura do presidente
americano Woodrow Wilson (1856-1924) em proclamar guerra:

Os italianos estavam certos de que a América também iria declarar guerra à


Áustria e mostravam-se perturbados com qualquer americano que chegasse,
mesmo que fosse da Cruz Vermelha. Perguntaram-me se o presidente Wilson iria
declarar guerra, e respondi que era questão de dias. Eu não sabia o que
poderíamos ter contra a Áustria, mas me pareceu lógico que a considerássemos
tão inimiga quanto à Alemanha. Também me perguntaram se declararíamos
guerra aos turcos. Achei duvidoso. Turkey é a nossa ave nacional. Só que a
piada, traduzida para o italiano, soou tão mal, que eles ficaram confusos e
desconfiados, e eu precisei dizer que sim e que era provável estarmos na
iminência de declarar guerra à Turquia. E à Bulgária? Tínhamos bebido várias
doses de conhaque e respondi que, por Deus, sim — e também ao Japão. Mas
alegaram que o Japão era aliado da Inglaterra. Respondi que não podíamos
confiar nos malditos ingleses. (HEMINGWAY, 2013, p.54).

17
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Pelos registros históricos, isso realmente se concretizou, considerando que, no ano de


1917, ―[...] a indignação diante da retomada da guerra submarina indiscriminada pela
Alemanha levou o presidente Wilson, na segunda-feira, 2 de abril, a pedir ao Congresso
uma declaração de guerra.‖ (SONDHAUS, 2013, p. 266).
Encerra-se esse estudo observando o trabalho exercido pelos médicos durante a
Primeira Guerra com relação aos soldados. Sondhaus (2013) reflete que inúmeros feridos
foram examinados e vacinados por médicos e enfermeiros contra doenças nocivas, assim
como o próprio autor da obra, que foi ferido e, consequentemente, tratado por esses
―samaritanos‖ em um contexto ditatorial determinado pela violência, e essa imagem de
destruição e sofrimento é retratada no fragmento que se segue:

Diante do posto, havia um grande número de feridos deitados no chão, no


escuro. Havia gente transportando feridos para dentro e para fora e eu conseguia
enxergar a luz no interior do posto toda vez que a cortina de entrada se abria para
dar passagem a alguém, e a seguir ela se fechava. Os mortos eram colocados de
lado. Os cirurgiões trabalhavam de mangas arregaçadas até os ombros, os braços
vermelhos de sangue, como açougueiros [...]. (HEMINGWAY, 2013, p. 42).

Observa-se, assim, como a obra de Hemingway explora, historicamente, uma


realidade que invade a memória do próprio escritor com relação aos combates da guerra.
Apesar de se tratar de uma produção fictícia, Adeus ás Armas contém traços da memória
do autor e, ainda, suas angústias, sofrimentos e, sobretudo, seu pensamento crítico com
base nas experiências vivenciadas nesse contexto social. Ao desenvolver uma análise
histórica de um texto literário nessas condições, se atenta às ideias de Candido (2006), que
enquadra o elemento social como objeto da própria construção da obra, sendo este
explorado pelo método explicativo, ao invés de mera ilustração. Portanto, o romance só se
torna compreensivo baseado em estudos analíticos que justifiquem a existência de
quaisquer dados históricos que tenha contribuído para a elaboração da trama.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com base em todas as relações estabelecidas entre história e literatura nesta pesquisa,
observa-se que a perspectiva narrativa adotada por Hemingway expõe informações
diretamente alusivas ao contexto da Primeira Guerra trazido pelos historiadores que se
dedicaram a relatar este conflito mundial. É preciso destacar que este evento consistiu em
algo de grande repercussão para todos os envolvidos e que, assim, é justificável a
quantidade de textos históricos encontrados sobre a ―Grande Guerra‖. Isso também se

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

estende para a literatura, o que problematiza a sua utilidade ao apresentar fontes


consideráveis para o estudo desenvolvido por aqueles que investigam a história, seja pela
dimensão cultural, política, econômica, social, etc. Adeus às Armas, em sua constituição,
se insere nessas discussões sobre a historicidade presente na ficção.
Através de um estudo de respectivos aspectos do corpus optado para a realização
desta análise, percebeu-se como elementos pertencentes ao cenário da Primeira Guerra
Mundial coincidem com considerações de especialistas que, ao longo de suas pesquisas, se
dedicaram a aprofundar sobre esse conflito que atingiu nações distintas da população
global. Considerou-se, então, o objeto literário como uma fonte e, para isso, é fundamental
―[...] tratar o documento literário e o artìstico como documentos históricos de pleno direito,
sob a condição de respeitar sua especificidade [...].‖ (LE GOFF, 1990, p. 08). Hemingway,
por sua vez, tratou o tema com propriedade, uma vez que, de acordo com o que pode ser
extraído de sua biografia, ele presenciou pessoalmente grande parte do que foi tratado no
romance Adeus às Armas e, ao ser lido, o romance é observado como uma adaptação de
registros da memória do autor para o modo ficcional, com o acréscimo de personagens e
outros fatores externos à vida pessoal do escritor.
Sendo assim, a obra de Hemingway pertence ao grupo de textos literários vistos
como fontes de estudo para o historiador. Uma análise voltada para outras composições do
romancista possibilitará oportunidades de investigação daqueles que objetivam tratar a
literatura a partir dos cenários históricos que ela apresenta em sua estruturação, propondo
novas visões acerca de cada fato explorado pelo autor. Em geral, assim como em Adeus às
Armas, a literatura norte-americana atrai o leitor não apenas pela sua criação artística e
estética, mas, sobretudo, pelo seu modo de elaboração, de maneira que o texto literário
discute temas concernentes à existência humana e que, por isso, conduz, de modo evidente,
a uma aproximação da realidade tal quanto à própria fonte histórica consegue atingir.

REFERÊNCIAS

ANDERSON, George Parker. Research Guide to American Literature: American


Modernism: 1914-1945. New York: Facts On File, 2010.

CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul, 2006.

CULLER, Jonathan. Teoria literária: uma introdução. Tradução de Sandra Vasconcelos.


São Paulo: Beca Produções Culturais, 1999.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

GRAY, Richard. A History of American Literature. Oxford: Blackwel Publishing, 2004.

HEMINGWAY, Ernest. Adeus às Armas. Tradução de Monteiro Lobato. Rio de Janeiro:


Bertrand Brasil, 2013.

LE GOFF, Jacques. História e Memória. Tradução de Bernardo Leitão. Campinas:


UNICAMP, 1990. (Coleção Repertórios).

MACMILLAN, Margaret. A Primeira Guerra Mundial. Tradução de Gleuber Vieira.


São Paulo: Globo Livros, 2014.

REIS, Carlos; LOPES, Ana Cristina M. Dicionário de Teoria da Narrativa. São Paulo:
Editora Ática, 1988.

SONDHAUS, Lawrence. A Primeira Guerra Mundial: história completa. Tradução de


Roberto Cataldo. São Paulo: Contexto, 2013.

VERNON, Alex. War: World War I. In: MODDELMOG, Debra A; GIZZO, Suzanne del.
(Ed.). Ernest Hemingway in Context. New York: Cambridge, 2013. p. 388-394.

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RIR PARA RESISTIR: A LITERATURA CÔMICA MEDIEVAL COMO


INSTRUMENTO DE RESISTÊNCIA

GERLÂNDIA GOUVEIA GARCIA


PPGH-UFCG
[email protected]

RESUMO
Este trabalho tem como objetivo mostrar de que forma a literatura medieval cômica
produzida nos séculos XII e XIII foi utilizada como mecanismo de resistência pela camada
popular para burlar o poder vigente do período. Os fabliaux e os exempla fazem parte de
uma vasta produção literária que tem como objetivo provocar o riso através de textos
paródicos que versavam sobre o cotidiano da população. Em seu corpo textual facilmente
se encontram brigas domésticas, luxúria clerical, astúcia feminina e ironias ao regime
feudal. Este trabalho se fundamenta nas discussões de Bakhtin (2013), que afirma que o
riso sempre esteve como arma de libertação nas mãos do povo e de Minois (2003), para
quem que o riso popular teria o valor de subversão social, temporariamente tolerado,
abolindo ou revolvendo as hierarquias. É sobre estes dois aspectos que o trabalho
discorrerá, procurando mostrar como, através do riso, as camadas populares subvertem o
poder vigente.
Palavras-chave: Literatura; Medievo; Resistência; Riso; Comicidade.

A palavra riso no dicionário Aulete2 significa ―1. Ação, resultado ou modo de rir; 2.
Demonstração de contentamento, de alegria; 3. Escárnio, zombaria, deboche, desprezo.‖.
Rir nos traz sensação de bem estar, geralmente representa satisfação e felicidade e
contemporaneidade o riso é permitido em muitos lugares e aparece sob várias formas. Com
o avanço da tecnologia e o aparecimento das redes sociais o riso pode ser representado por
emojis3, por exemplo, ou pela sequência de três letras ―k‖ (kkk). A liberdade do ato de rir
na contemporaneidade possibilita a sociedade de expressar seus sentimentos de forma mais
ampla, seja por meio das redes sociais, da literatura, da música do teatro e do cinema, o
riso transcende qualquer sentimento opressor possibilitando uma espécie de sentimento de
liberdade. Mas se formos fazer uma análise histórica sobre o riso verificaremos que em
algumas sociedades passadas o ato de rir era tido como violação e desobediência à ordem
vigente, como é o caso da Idade Média.
Conforme Macedo (2000) os escritores do cristianismo primitivo, imbuídos das
ideias neoplatônicas e estoicas e da dicotomia da existência do sagrado e profano, pecado e

2
http://www.aulete.com.br/riso
3
Emoji são ideogramas e smileys usados em mensagens eletrônicas em páginas da web. Seu uso teve início
no Japão e se popularizou para além do país. Eles existem em diversos gêneros, incluindo: expressões faciais,
objetos, lugares, animais e tipos de clima. Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Emoji.

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salvação, retrataram os elementos míticos da tradição pagã vinculados aos rituais de


fertilidade nos quais o riso desempenhava importante papel. Isso alterou, segundo Macedo
(2000), o modo de perceber a dimensão sagrada da derrisão. Diversas versões de mitos
greco-romanos foram escritos na literatura latino-cristã deram ênfase aos aspectos nefastos
do riso, levando-o a ser tratado perante a Igreja como gesto obsceno.

A hilaridade é encarada como uma faculdade essencialmente boa do


homem, e deixa de ser considerada obstáculo para o cristão. O riso
comedido, nessa percepção, deixa de ser julgado ato ofensivo a Deus. No
conjunto de textos fundadores do tomismo, subsiste a ideia de existência
de um riso nefasto, provocado por palavras indecorosas, obscenas ou
imbecis, e de um riso de do e agonia, desaprovados. A tristeza,
sentimento adverso á alegria e hilaridade, seria tão temerária quanto a
expressão desenfreada do ―riso louco‖. A acìdia confunde-se com o
pecado porque conduz ao desgosto diante das potencialidades do espirito,
à astenia e ao desespero da alma. Porém, o riso pode também ser
associado ao estado de alma plenamente positivo: a felicidade.
(MACEDO, 2000, p. 70).

Certificados de que o riso não seria um ato de infâmia a Deus, o clero via nele a
oportunidade de usá-lo como ferramenta instrutiva. A partir dessa observação, vão
surgindo alguns tipos de gêneros textuais cômicos reservados para os sermões, como é o
caso dos exempla. Seus escritores se apropriavam tanto de conteúdo sagrado quanto
profano de forma didática, com intuito de atingir o público de forma mais abrangente.
Depois da fome e das epidemias diminuírem, a mensagem com tom de miséria ficou
enfraquecida. Impõe-se, então, um esforço pedagógico para conquistar, de novo, os
espíritos: o recurso a historietas engraçadas que excitam os ouvidos e possibilitam guardar
a lição.

A visão do mundo que se depreende os exempla não é muito diferente da


que observamos nas fábulas e farsas: uma visão pessimista da sociedade,
em que metade é de espertos e metade são mais astutos, sem consideração
de moral. Em alguns exempla, de gosto duvidoso, chegamos a perguntar
qual é a moral- se é que há uma. ( MINOIS, 2013, p. 216).

Segundo Minois (2003), o novo estilo de pregação se afirma e os principais teóricos


da pregação reservam espaço para as pilhérias humorísticas nos sermões. O lema era fazer
rir para impedir que os fiéis dormissem: essa era parece ser a principal preocupação dos

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pregadores, o que diz muito do interesse provocado por seus sermões. O riso do exempla
não deve servir apenas para manter as pessoas acordadas, deve também auxiliar a
memorizar mensagens morais. (MINOIR, 2003, p. 213). Não podemos deixar de lembrar
que, a maior fonte de inspiração para tais textos é a própria sociedade, os monges
medicantes misturados à população urbana, conhecedores dos problemas domésticos
através da confissão, criam um vasto repertório diversificado para ser usado na catequese.
A respeito das características do exempla e sua função na sociedade Macedo (2000)
destaca:

Os exempla, de um modo geral, explora as possibilidades do cômico e,


concomitantemente, revelam certa forma de saber. Os elementos
humorísticos e os personagens inseridos nas tramas exemplares podiam
ser retirados de situações triviais e coloquiais. A configuração do cômico,
obtida pelo sentido atribuído às ações e reações dos protagonistas, às
palavras de duplo sentido e jogos de palavras imbuídas de valor chistoso,
é acompanhada por valores morais imprimidos pelos redatores de textos.
O riso do predicador, portanto, germinava neste sutil exercício de
aproximações, associações e subentendidos. O saber aqui disseminado
tinha a pretensão de avaliar e emitir juízo a respeito de todos os estratos
sociais. (MACEDO, 2000, p. 117).

Ao lado dos exempla, surge também outro gênero literário, os fabliaux, Para
explicar o que é um fabliau a autora Nora Scott (1995) cita o Conde de Caylus que fez um
estudo sobre esse tipo de literatura nos anos de 1753 e Anatole de Montaiglon que também
estudou os fabliaux, em 1872. Assim, Caylus coloca que o fabliau é um poema que encerra
a narrativa elegante de uma ação inventada, mais ou menos carregada de intriga, porém, de
certa extensão agradável ou engraçada, cujo objetivo é instruir ou divertir. Já para Anatole
de Montaiglon (apud Scott, 1995), o fabliau é uma narrativa perfeitamente cômica, de uma
aventura real ou possível, mesmo com exageros, que se passa nas circunstâncias da vida
humana média, é a narrativa de uma aventura totalmente particular e comum.
Os fabliaux não se confundem com as fábulas porque são mais longos e seus
personagens principais são exclusivamente humanos. A própria Scott (ibid.) expõe a
dificuldade encontrada na classificação desses textos, mostrando que entre eles e outras
formas literárias da época, como as canções de gesta, romance, exempla e lais, há em
comum o fato de serem narrativos e em versos, em sua maioria. E no caso dos exempla e
dos fabliaux, de trazerem uma moral. Porém, a intenção didática e o tom moralizador não
desempenha o mesmo papel nos contos profanos, marcados pelo espírito sarcástico, pelo

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tom satírico, erótico e obsceno, oposto aos valores defendidos pela cultura clerical oficial
(MACEDO,2000, p. 165).
Afirma Lacy (1995) que, sendo ou não um gênero burguês os fabliaux
frequentemente mostram personagens que pertencem à classe média ou à sociedade
camponesa. Raramente figuram cavaleiros. Conforme Macedo (2000, p.178), os
personagens da alta nobreza que figuram nas narrativas geralmente obtêm sucessos nas
empreitadas sensuais. Os maridos conseguem desvendar as trapaças arquitetadas por
sedutores e revertem a situação em seu benefício. Se forem de classes mais baixas, como
os vilões, estudantes pobres, sacristãos ou religiosos, quase sempre são enganados ou
ridicularizados. Os reis, por fazerem parte do topo das hierarquias geralmente são
poupados das humilhações, diferentemente do clero, que dificilmente escapa da
ridicularização. O público para quem os textos eram dirigidos ou recitados era bastante
diversificado, a exemplo de nobres, burgueses e cavaleiros e habitantes de várias cidades.
Na diversidade de textos literários que circularam no período que abrangem os
séculos XII ao XIV, os fabliaux apresentam características bem peculiares: a linguagem
erótica, ainda que sob a forma de eufemismos e metáforas aparece em parte considerável
do que se tem compilado atualmente, a vida nas cidades, tensões entre homens e mulheres
que reside não na diferença sexual, mas um impulso de revirar as estruturas hierárquicas.
Estas duas características nos levam a perceber que os fabliaux dialogam com traços
populares advindos de festividades como a Festa do Asno, A festa dos loucos e A festa dos
Foliões, todas preservando em comum o traço da inversão da ordem hierárquica.
No campo teórico quem discute este aspecto nos textos cômicos da cultura popular,
no contexto de Rabelais, período do Renascimento, é Mikhail Bakhtin (2013), estudioso
russo do campo da literatura e da linguagem. A este processo de inversão Bakhtin chama
carnavalização. Embora tratando de momento histórico posterior, Bakhtin retorna à Idade
Média para mostrar que as manifestações artísticas da época, incluindo os fabliaux, foram
responsáveis – com destaque para as obras em que acontecem as inversões –, pela
preparação e consolidação do pensamento do homem moderno.
O autor nos apresenta um quadro de infinidades de manifestações do riso que se
opunha à cultura oficial, ao tom sério, religioso e feudal da época. Dentro dessa
diversidade de manifestações, das festas públicas carnavalescas, dos ritos e cultos cômicos
especiais, dos bufões, tolos, gigantes, anões, monstros, palhaços de diversos tipos e
categorias, encontra-se a literatura paródica, que é vasta e multiforme, que possui uma

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

unidade de estilo e constitui partes e parcelas da cultura cômica popular, principalmente da


cultura carnavalesca, que é una e indivisível. Esses tipos de ritos ofereciam uma visão de
mundo ao homem e suas relações totalmente diferentes, não oficiais e exteriores à Igreja e
ao Estado; é como criassem um segundo mundo, uma segunda vida. A comicidade que
rege os ritos do carnaval liberta-os totalmente de qualquer dogmatismo religioso ou
eclesiástico, do misticismo, da piedade. É nesse contexto que se inserem os fabliaux.
(BAKHTIN, 2013).
Minois (2003) traz um ponto importante sobre a comicidade, ao colocar que no
medievo a visão cômica foi excluída do domínio sagrado e tornou-se a característica
essencial da cultura popular, que evoluiu fora da esfera social, e graças a essa existência
extraoficial que a cultura do riso se distinguiu por seu radicalismo e sua liberdade
excepcionais, por sua impiedosa lucidez. O riso e a visão carnavalesca do mundo, que
estão na base do grotesco, destroem a seriedade unilateral e as pretensões de significação
incondicional e intemporal e liberem a consciência, o pensamento e a imaginação humana,
que ficam assim disponíveis para o desenvolvimento de novas possibilidades. Daí que uma
certa ―carnavalização‖ da consciência precede a prepara sempre as grandes
transformações, mesmo no domínio científico. (BAKHTIN, 2013, p. 43).
Para Macedo (1999) os espetáculos teatrais ocuparam nos meios urbanos o papel de
passatempo, divertimento e lazer, sendo bastante admirados nas ruas e praças públicas. Os
artistas deslocavam-se em carroças decoradas, que eram ao mesmo tempo palcos onde
representavam cenas bíblicas ou situações engraçadas tiradas do cotidiano. Essas peças
eram patrocinadas por famílias influentes, autoridades municipais e eclesiásticas e também
pelas corporações de ofício que ajudavam financeiramente ou na construção dos
equipamentos utilizados nos eventos. Os temas do teatro de rua geralmente estavam
ligados a assuntos religiosos. O público adorava assistir cenas relacionadas à vida de Jesus
e da Virgem Maria, passagens do Antigo e do Novo Testamento e também as referências à
vida e aos milagres dos santos.
Para os espetáculos não se tornarem monótonos, os escritores mesclavam passagens
sérias a engraçadas, no intuito de manter a atenção dos telespectadores. A figura do diabo
também fazia parte das encenações cômicas. As peças eram apresentadas por um diablerie
(diabrura), que junto com o personagem de Satã trocava ideias sobre como fazer para
melhor conquistar a alma dos pecadores. O Senhor das Trevas sentava em cima de um
barril discursando para um bando de demônios inquietos e baderneiros, em meio a danças,

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

cantos, gritos, brigas, injúrias, toque de tambores, cambalhota e rodopios. (MACEDO,


1999, p. 75).
Minois (2013) fomenta a discussão ao colocar que rir do diabo e do inferno é
exorcizar o medo que se tem dele. O autor tece também sobre o sentido confuso
representação do personagem do diabo.

Ele é (o diabo) ridicularizado, mas, ao mesmo tempo, defendido, porque


aparece cada vez mais sob os traços de uma vítima. Nos mistérios,
assiste-se a processos parodísticos em que os diabos são escarnecidos,
mas sente-se, confusamente, que ão estão errados. (MINOIR, 2013, p.
245).

Bakhtin (2013) destaca que as festividades do medievo sempre tiveram um


conteúdo essencial, um sentido, sempre simbolizaram uma concepção de mundo e nelas
figurava temporariamente um reino utópico da universalidade, liberdade, igualdade, e
abundância. Totalmente diferentes das festas oficiais da Igreja e do Estado Feudal, as quais
tinham como objetivo consagrar, validar o regime em vigor. O tempo tornava-se
puramente formal, as sucessões e crises ficavam totalmente relegadas ao passado. Já o
carnaval era o triunfo de uma espécie de libertação provisória de todas as relações
hierárquicas, privilégios, regras e tabus. Era a autêntica festa do tempo, a do futuro, das
alternâncias e renovações. Dentro desse universo, o indivíduo parecia ter uma segunda vida
que lhe permitia estabelecer relações novas, verdadeiramente humanas, com os seus
semelhantes. O homem tornava a si mesmo e sentia-se um ser humano entre seus
semelhantes.
Porém, as festas, como qualquer ato da vida em grupo, não eram uma manifestação
neutra e nem gratuita. Geralmente, eram uma forma de afirmar os poderes e os valores
dominantes, mostrar as hierarquias de riqueza e posição social. Quanto mais cara e rica,
mais demonstravam o poder de quem patrocinava. Isso ficava evidente nas ―entradas‖, que
eram um tipo de desfile luxuoso organizado nas cidades em homenagem aos reis e
prìncipes. As ―entradas‖ marcavam o primeiro contato dos novos senhores com suas
comunidades ou retorno dos líderes depois das vitórias obtidas na guerra. (MACEDO,
1999, p. 78).
Os dias santos também eram comemorados com festas. Era comum separar vários
dias para a rememoração e a exaltação ao sagrado. A cada cidade a Igreja oferecia aos fiéis

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

cerimônias e espetáculos, as catedrais se transformavam em centros de encontros durante


as festividades solenes do calendário cristão, angariando para si as populações das aldeias
vizinhas e dos bairros mais afastados. A maior parte das festividades consistia em
comemorações do nascimento e da ressureição de Cristo. (MACEDO, 1999, p. 81).
A festa do Charivari 4 consiste em um agrupamento de membros da comunidade e
vilarejos, alguns disfarçados e batendo sobre utensílios de cozinha. Eles se encontram
diante da residência de um dos paroquianos, que estão excluídos do grupo por uma conduta
repreensível, tais como as mulheres que batem nos maridos ou que mandam neles, maridos
violentos; os que cometem desvios sexuais; os maridos avarentos; os estrangeiros que, vêm
se para instalar ou estão de passagem e não pagam as boas vindas; as moças loucas por
seus corpos; caluniadores; aos maridos que frequentam prostíbulos; a todos aqueles que, de
uma maneira ou outra, incitam contra eles a opinião pública da comunidade local.
(MINOIS, 2003, p. 170). Explica, ainda, que os que são visados pelo Charivari jamais se
livraram do ridículo e da vergonha causada. O seu riso é típico da tirania do grupo e
instrumento de controle das sociabilidades e dos costumes conjugais, uma punição aos
desvios domésticos.
A ―festa dos loucos‖, outro tipo de festa de caráter carnavalesco, tinha por
finalidade o divertimento desmedido. Seus participantes utilizam máscaras, se excediam na
comida e na bebida, faziam algazarras e satirizavam o poder vigente. Outra espécie de
―festa dos loucos‖ que podemos destacar foi a Asinaria Festa (Festa dos Asnos) que
acontecia nos primeiro dias de Janeiro e comemorava a fuga da sagrada família para o
Egito.
Havia também outra forma de cultura cômica popular conhecida como obras
verbais (orais, escritas em língua latina e vulgar). Essa literatura está imbuída de
concepções carnavalescas do mundo, como a ousadia. Era uma literatura festiva recreativa.
Rica e bem diversificada, nela se encontram escritos análogos à parodia sacra: preces
paródicas, homilias paródicas, canções de natal e lendas sacras paródicas que se
destacavam por ironizar o regime feudal. Sua epopeia heroica eram principalmente as
paródias e travestis laicos.
Bakhtin (2013, p.71-3) ressalta que a imensa literatura paródica da Idade Média
liga-se direta ou indiretamente às formas do riso popular festivo. Afirma que algumas das
4
Charivari, sua origem é incerta. Arnald Van Gennep remonta-se à Alta Idade Média, mas sem fornecer
provas decisivas, e a documentação a esse respeito só se torna importante no século XIV. MINOIS. Georges.
História do riso e do escárnio. Trad. Maria Elena O. Ortiz Assumpção. São Paulo: Unesp, 2003, p. 170.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

paródias de textos e ritos sagrados tinham como destino sua execução durante a festa dos
loucos e estavam diretamente ligados a ela. O autor ressalta também que, toda literatura
paródica do medievo é uma literatura recreativa, criada durante os lazeres que
proporcionam as festas, e destinada a ser lida nessas ocasiões na qual reinava uma
atmosfera de liberdade e de licença. Essa maneira alegre de parodiar o sagrado era
permitida em honra das festas, da mesma forma como era o risus paschalis, o consumo de
carne e a vida sexual. Ela estava impregnada pela mesma sensação de alternância das
estações e de renovação num plano material e corporal.
O riso popular que organiza todas as formas do que Bakhtin (ibid.) chama de
realismo grotesco foi sempre ligado ao baixo material e corporal. É essa a comparação
feita com a paródia medieval, a quem diz muito se assemelhar. No realismo grotesco, a
degradação do sublime não tem um caráter formal ou relativo ―o alto‖ é o céu; o ―baixo‖ é
a terra, possuem um sentido topográfico, o alto é representado pelo rosto (a cabeça), e o
baixo pelos órgãos genitais, o ventre e o traseiro (BAKHTIN, 2013, p. 19). Há, assim
como nos fabliaux, uma conexão do corpo com a construção do texto.
Para Minois (2003) o riso teria o valor de subversão social, temporariamente
tolerado, abolindo ou revolvendo as hierarquias. O riso carnavalesco é, primeiramente, um
bem coletivo do povo. Todo mundo ri, é o riso ‗geral‘, ele é ‗universal‘, ou seja, atinge
todas as coisas e todas as pessoas. O mundo inteiro parece cômico, é percebido e
conhecido sob seu aspecto risível, em sua jubilosa relatividade. O riso é ambivalente: é
alegre, transbordando de alegria e esfuziante, mas também zombeteiro e sarcástico. Nega e
afirma. Sepulta e ressuscita, ao mesmo tempo. Minois (2013, p. 191) ressalta que na Idade
Média

O riso é largamente usado a serviço dos valores e dos poderes. Mesmo


quando estes últimos são parodiados nas festas, retiram benefícios dele. O
riso medieval é mais conservador que destrutivo, em seu aspecto coletivo
organizado. A utilização consciente do riso pela literatura, seu exame
pelos filósofos e teólogos, sua manipulação pelo bobo do rei e pelos
pregadores confirmam essa impressão, tanto no humor profano como no
humor sagrado.

É por essas razões, diz Bakhtin (ibid., p.82), que o riso jamais poderia ser um
instrumento de opressão e embrutecimento do povo, uma vez que nunca conseguiu se
tornar inteiramente oficial. O riso sempre esteve como uma arma de liberação nas mãos do

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

povo. O sério oprimia aterrorizava, acorrentava, mentia e distorcia. Nas praças públicas,
durante as festas, diante de uma mesa abundante, lançava-se abaixo o tom sério e ouvia-se
a verdade sob a forma cômica através das brincadeiras, obscenidade, grosserias, paródia
pastiches, etc.
No campo do sagrado, pode-se perceber que lá também estava o riso. No caso dos
sermões era um riso de combate, segundo Minois (2003), arma a serviço do bem, ou antes,
da moral cristã, contra o mal, os vícios. Se certos pregadores, sobretudo os franciscanos,
tinham tendência ao riso bufão, grande parte se recusava ao riso gratuito, ao rir por rir. O
riso da Idade Média, segundo Bakhtin (2013), é um riso de sensação social, universal. O
homem ressente a continuidade da vida na praça pública, misturando-se à multidão do
carnaval, ao contato com outros corpos, de pessoas de idades e condições das mais
variadas. Há uma sensação de pertencimento, por um momento se suspendem as opressões,
situa-se em estado perpétuo de crescimento e de renovação. Talvez por isso o riso da festa
popular englobe uma conexão com o sobrenatural, tocando as coisas sagradas e a morte,
mas também o temor. ―Inspirado por todas as formas de poder, pelos soberanos terrestres,
a aristocracia social terrestre, tudo o que oprime e limita‖. (BAKHTIN, 2013, p. 213).
Diante desses apontamentos sobre a literatura cômica medieval, o que podemos
destacar é que esta foi usada como mecanismo de subversão das normas constituídas
durante o período apresentado. Através do riso quebram-se as amarras dos tabus
estabelecidos, libertam-se os corpos e seu riso. Quem não podia falar acaba por falar
demasiadamente, quem não podia ouvir, escuta, acaba praticando estes atos. Vence o medo
do sagrado, do que é constituído como moral, para dar voz e vez ao que está reprimido por
muito tempo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAKHTIN, Mikail. Introdução. IN: A cultura popular na Idade Média e no


Renascimento: O contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec, 2013, 01-51p.

HUIZINGA. Johan. O outono da Idade Média. São Paulo: Cosac Naify, 2013.

LACY, Norris J. Fabliaux. In: KIBLER, William W. (editor) et al. Medieval France: an
encyclopedia. New York: Garland Publishing, 1995. 635-639p.

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MACEDO, Rivair. Religiosidade e messianismo na Idade Média. São Paulo: Moderna,


1996.

MACEDO, Rivair. A vitória do riso: os contos cômicos medievais. In: Riso, cultura e
sociedade na Idade Média. São Paulo: Unesp, 2000, 163-184p.

MACEDO, Rivair. Cropologia: máscara, fantasia e obscenidade nos fabliaux. In:______.


São Paulo: Unesp, 2000, 185-206p.

MACEDO, Rivair. O riso e a praça pública: o teatro cômico medival. In:______. São
Paulo: Unesp, 2000, 207-226p.

MACEDO, Rivair. Cropologia: Riso e subversão: o espirito carnavalesco e o ―mundo às


avessas‖. In:______. São Paulo: Unesp, 2000, 207-227p.

MACEDO, José Rivair. O real e o imaginário nos Fabliaux medievais. In: Revista Tempo.
vol. 9, n. 17, Julho, 2004, pp. 1-19. Disponível em http://www.redalyc.org/home.oa

MINOIS, Georges. O riso unânime da festa medieval. In: História do riso e do Escárnio.
São Paulo: Unesp, 2003, 155-192p.

MINOIS, Georges. Rir e fazer rir na Idade Média. In:________. São Paulo: Unesp, 2003,
193-240p.

ZUMTHOR, Paul. Falando de Idade Média. São Paulo: Perspectiva, 2009.

ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: A "literatura" medieval. São Paulo: Schwarcz, 2005.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

ELEMENTOS DO PURITANISMO INGLÊS EM PARAÍSO PERDIDO

ADRIANA ALVES DE ABREU


UFCG
[email protected]

JULIANA SILVA DOS SANTOS


UFCG
[email protected]

RESUMO
Este trabalho tem o objetivo de analisar um dos poemas épicos inglês de maior
importância, Paraíso Perdido (1667), de John Milton. Esta obra se insere no conturbado
contexto histórico inglês do século XVII, dominado por disputas políticas e religiosas entre
grupos rivais protestantes e católicos, no qual o autor participou ativamente enquanto alto
funcionário público. Seu poema mais conhecido é uma releitura de trechos bíblicos, os
quais são utilizados para ilustrar os confrontos políticos e religiosos de sua época,
notadamente do grupo puritano, do qual Milton fazia parte. Diante do exposto, este
trabalho analisará conteúdo e forma de Paraíso Perdido, destacando inclusive, os aspectos
épicos de sua composição, uma vez que este gênero literário trata de documentar relevantes
fatos históricos de uma nação.
Palavras-chaves: Literatura, sociedade, poesia épica.

INTRODUÇÃO

Um passo decisivo no processo de fortalecer a monarquia foi dado no reinado de


Henrique VIII (1509-1547), quando ele se colocou na chefia da igreja inglesa, criando o
anglicanismo. Segundo Campos e Miranda (2005, p.228), ―Isso pôs por terra um
importante obstáculo a autoridade monárquica, o poder do papado‖. Para retirar a
autoridade papal o rei Henrique VIII, usou o Parlamento, que era apoiado por grandes
nobres e comerciantes, com a ideia de que o papa era uma potência estrangeira que
interferia nos assuntos da Inglaterra e principalmente questões religiosas. Ainda de acordo
com Campos e Miranda (op.cit, p.229), a religião tornava-se importante instrumento de
participação do Estado e Parlamento com ligações ao poder monárquico e interesses
políticos. Mas o anglicanismo guardava muito da ritualística católica e tinha seus
pregadores escolhidos pelo Estado, não satisfazendo o interesse da sociedade inglesa.
Depois do reinado de Henrique VIII, a Inglaterra vivia um período de incertezas, cercado
de protestantes extremados que defendiam perseguições religiosas aos católicos.

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As questões politicas e religiosas se intensificaram no século XVII, na dinastia dos


Stuart, nos reinados de James I e Carlos I, quando o Parlamento era composto por um
grande número de protestantes que queriam intervi nas questões politicas e religiosas da
sociedade inglesa. Apesar de a dinastia Stuart terem durante o seu reinado ter sido o pior
governo possível, foi quando a Inglaterra pela primeira vez teve um governo republicano.
John Milton foi um poeta Inglês e protestante do grupo puritano do qual fez parte e foi
nesse período que ele escreveu um dos grandes épicos da sociedade inglesa, Paraíso
Perdido (1664), o escritor ilustrou na sua obra os conflitos religiosos e políticos da época,
especificamente a guerra civil e questões religiosas dos protestantes e católicos. Para a
composição de seu poema, além de que utilizou conceitos aristotélicos, ele se influenciou
em outros grandes épicos da literatura universal.
Contudo, é importante considerar também o fato de que quando nos tivermos nos
referindo a Bíblia, estaremos nos referindo à primeira versão oficial em língua inglesa
(1616), feita no governo de James I, que passava a ser um grande símbolo para a sociedade
inglesa por retratar documentos históricos e influenciar em um grande poema épico.

O CONTEXTO HISTÓRICO DO SÉCULO XVII


2.1 O Parlamento Inglês
A criação da Magna Carta resultou depois do reinado de João Sem Terra (1199-
1216), um documento oficial que limitava o poder do monarca em relação a impostos,
criou bases para o modelo do Estado Inglês. Este documento dizia que nenhum tributo
exorbitante seria imposto sem o consentimento do reino, o Parlamento. Uma instituição
representativa vigente da época era responsável por esse controle na sociedade Inglesa, o
Parlamento que era composto por cavaleiros e burgueses eleitos por nobres que dispunham
de grandes terras.
Elizabeth I, foi rainha durante o século XVI, como não teve filhos, pela linha de
sucessão, quem herdou a coroa foi o seu primo rei James VI da Escócia, que já era rei
desde os 12 anos, tornando-se James I na Inglaterra, iniciava-se a Dinastia dos Stuart.
Durante o reinado de Elizabeth, ela deixou rombos nos cofres reais, fazendo com que o rei
James pedisse ao Parlamento autorização para elevar impostos. O Parlamento concordaria,
mas já antecipava o desejo de intervir nas decisões políticas internas e externas da
Inglaterra. O rei mantinha a crença que era ―escolhido por Deus‖ e não precisava de
ninguém pra intervir nos negócios da coroa, começando assim a se desentender com o

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Parlamento. Silva (2005, p.138) afirma que: ―Infelizmente para James o poder efetivo da
sociedade Inglesa estava cada vez mais nas mãos dos comerciantes e donos de terras que
constituìam o Parlamento‖. E de fato viria a ser cada vez mais, percebe-se quando outra
crise se instaura no reinado de James I, quando um grupo de protestantes pertencente ao
Parlamento exigia leis mais duras aos católicos. O rei cedeu a pressão, mas não conseguiu
satisfazer ao grupo. No que resultou na fúria dos católicos, uma conspiração contra o rei e
ao Parlamento, no qual foi conhecido como a conspiração da pólvora.
De acordo com Silva (op.cit, p.139) os puritanos era um grupo religioso do
Parlamento que se opunha ao Rei James I, eles recebiam esse nome por suas investidas em
tentar purificar a Igreja Anglicana, dos embelichimentos e esculturas presentes na igreja. E
o rei James durante o seu reinado tentou converter os puritanos ao anglicanismo, numa
perseguição fervorosa.
Tensões econômicas e sociais contribuiu para rebeliões no século XVII, contra a
dinastia Stuart, os monarcas Jaimes I (1603-1625) e o seu sucessor Carlos I (1625-1649). A
oposição à política centralizadora, junto com a recusa do anglicanismo do estado, resultou
em conflitos políticos-religiosos ao absolutismo real. Os dois reis acreditavam no
absolutismo, desprezando cada vez mais o Parlamento, através da igreja Anglicana, a coroa
doutrinava o direito divino dos reis. De acordo com Silva (2005, p.140) quando James I
morreu, sucedendo a coroa para seu filho Carlos I, foi quando a relação entre o rei e
Parlamento resultou em maiores conflitos. Em 1640, o rei se viu na necessidade de obter
novos impostos para combater uma rebelião na Escócia, que recusava o Anglicanismo,
assim convocando o Parlamento. Após se reunirem, o Parlamento para aceitar os pedidos
do rei, impôs que fosse concedido a eles o direito a consultas sobre questões tributárias e
religiosas.
Segundo Campos e Miranda (2005, p. 230) O rei Carlos I não aceitou tais
exigências e o Parlamento se recusou a dar dinheiro pra coroa, ordenou o fechamento do
Parlamento e a prisão de cinco parlamentares, foi o estopim para a guerra civil, também
chamada de Revolução Puritana. De um lado tínhamos o rei, os nobres e a Igreja
Anglicana, do outro um novo exército financiado por comerciantes e comandado por
Oliver Cromwell, que veio a ser um republicano que defendia a tolerância religiosa. Esse
novo exército era composto por agricultores ricos e puritanos.
Na guerra Cromwell foi apontado como um gênio militar, segundo Silva (2005,
p.145), diz que: ―Ele uniformizou seus homens com as melhores armas e armaduras

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disponíveis e os exortava para a batalha com inflamados sermões religiosos‖. Em 1645, as


tropas reais já estavam sem fundos para continuar as batalhas, e sem esperanças, resultando
numa total derrota. Eventualmente, por ordem do Parlamento o rei Carlos I foi deposto e
executado, após ter quebrado o contrato político com a sociedade Inglesa. A Inglaterra
passava a ter pela primeira vez um governo republicano, liderado pelo puritano Oliver
Cromwell, conhecido como ―Lorde Protetor‖, durante o seu governo, foi bem mais
sucedido do que pelo rei anterior Carlos I. Ainda de acordo com Silva (op.cit, p. 142) ―A
prosperidade sempre teve na mente de Cromwell. A construção naval e o comércio
marítimo aumentaram, a colonização foi incentivada e os espanhóis e holandeses foram
derrotados no mar‖. A república no que se refere na economia ia muito bem, mas seu plano
social para a sociedade Inglesa era terrível. Sua natureza extremamente puritana, fez dele
um ditador, fechou teatros, casas de jogos e outros lugares que desviasse a atenção do povo
da igreja, não eram permitidas roupas ornamentadas, praticar esportes, comemorações
festivas, punições sucessíveis a multa e assim ele fez com que fossem criadas leis, para que
fossem compridas, ―[...] o exército e o povo já estavam cansados de viver sob o
puritanismo e convidaram o filho de Carlos I a assumir a coroa‖ (op.cit, p. 143), colocando
fim ao governo republicano que durou onze anos, começava então a Restauração e a volta
da monarquia.

2.2 O Protestante John Milton e a sua Obra


A guerra civil foi fortemente influenciada por motivos religiosos, mas a Bíblia era
um símbolo importante, tanto para os católicos como para os puritanos naquela época. Até
mesmo o fato de quem podia ler a Bíblia, acarretou vários conflitos, como afirma Silva
(2005, p.144):
―O relacionamento do homem com a Bíblia, de fato, era o ponto de discórdia
entre a igreja católica e o protestantismo desde os seus momentos iniciais. A
igreja via como uma ameaça a possibilidade de o homem comum ler a Bíblia,
pois isso minaria o poder dos padres e bispos. Os protestantes ingleses, por outro
lado, buscavam traduzir a Bíblia para a língua Inglesa a fim de levar a palavra de
Deus para o homem comum‖.

No século XVII, de fato a igreja católica não era mais o principal poder de
espiritualidade, a Bíblia teve sua versão oficial em 1611, no reinado de James I, como

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chefe da Igreja Anglicana, ele ordenou uma publicação em língua Inglesa. E por assim, em
influenciar obras da literatura Inglesa como Paraíso Perdido.
O poeta Inglês John Milton viveu em meados do século XVII, um dos escritores
representantes de sua geração, autor de Paraíso Perdido (1667), escreveu um dos mais
importantes poemas épicos da literatura. Sua obra é notável assim como outros épicos de
Homero, Virgílio, Camões e Beowulf. O seu poema possui uma linguagem altamente
rebuscada e de difícil compreensão no início, mas ao decorrer uma estória fascinante,
baseada em passagens do livro Gêneses da Bíblia, incorporando fatos relevantes da sua
época.
Milton participou da vida política do país ativamente como funcionário público, no
qual dedicou sua vida e obra as causas puritanas. Ele escreveu panfletos no qual defendia o
governo de Oliver Cromwell e suas ações, um dos mais conhecidos foi ―A Defense of the
English People‖, no qual ele justificava a morte do Rei Carlos I. Posteriormente foi ficando
cego, ao dedicar-se arduamente aos seus trabalhos, sobre a luz fraca de velas. Depois da
restauração e a volta da monarquia, muitos dos puritanos foram presos, inclusive o poeta
John Milton, ficando sem dinheiro e propriedades. Após intervenção de amigos, ele foi
libertado e dedicou o resto de sua vida a lecionar para sobreviver, e foi quando escreveu
um dos seus maiores poemas, que representa a literatura Inglesa. Já completamente cego
ditou o poema Paraíso Perdido para uma de suas filhas, no qual ele vai tratar sobre a queda
de Lúcifer e do homem e a origem do pecado. Sua obra refletiu sobre todas as inquietações
da sociedade Inglesa, como as questões religiosas, políticas, o puritanismo e até um pouco
de existencialismo de como ele se sentia nesse contexto conturbado. Quatro anos mais
tarde ele publicou Paraíso Reconquistado (1671) uma sequência do primeiro poema, aonde
Cristo vem a Terra para recuperar o que Adão teria perdido.

AS CARACTERÍSTICAS DO ÉPICO EM GERAL


De acordo com a Poética de Aristóteles (1959), um épico é um poema de narrativa
longa sobre os feitos de um herói de uma estória, incorporando mitos, lendas, folclores e
História. Os épicos são de importância nacional, no sentido que incorpora as histórias e as
aspirações de uma nação ou um povo. O poema épico tem seus versos escritos em iâmbico
pentâmetro, ou seja, uma métrica utilizada neste tipo de poema que determina o ritmo que
cada palavra tem no verso, apresentando uma linguagem elevada, porque não se trata de
detalhes banais da vida. Tem catálogos de longas listas (de nomes de pessoas como em

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Beowulf, que abre o poema com a genealogia da dinastia de Scylding, objetos ou coisas
importantes como os navios que iriam pra guerra, e lugares).
Algumas convenções épicas utilizadas no poema é o uso do prepositio, uma
afirmação sobre o tema ou a causa do épico. Pode ser um propósito (como John Milton
propôs de justificar os caminhos de Deus até o homem) ou uma questão (como na Ilíada,
que Homero inicia por pedindo uma musa para cantar a ira de Aquiles). O poema começa
em media res, ou seja, que a estória já inicia no meio das coisas, geralmente o poeta
começa com uma pressa invocando as musas ou um deus para providenciar inspiração
divina para começar a contar a estória de um grande herói, através de longos discursos. No
poema épico é comum o uso de figuras de linguagem e a estrutura pode ser dividida em
livros ou cantos, e os heróis da literatura épica, são vinculados por um código de honra.
Como o épico começa no meio das ações, os personagens usam digressões através
de rápidos flashbacks para contar sobre fatos do passado que não foram explicados. Outra
convenção frequente é o uso de epithets, que são a renomeação ou um segundo nome, seja
de personagens como de Agamenon e Menelaus, que se referiam a eles como ―águias
gêmeas‖, deuses, coisas ou frases. Por exemplo, Homero usa a frase ―aurora dos dedos
rosados‖, para dizer toda vez que o dia se iniciava. Também ocorre a presença do
sobrenatural, porque geralmente o protagonista herói vem acompanhado de uma força
sobre-humana, podendo vencer criaturas míticas, como em Beowulf que o rei decide
enfrentar sozinho um dragão. E ainda temos um contador de estórias que toca uma lira e
canta uma canção improvisada sobre os feitos do herói.
Continuando nos conceitos Aristotélicos, temos mais dois de suma importância
para o poema épico, que são a peripécia e o reconhecimento. Para Aristóteles (op.cit, p.30-
31) um exemplo perfeito para os dois é o Édipo Rei, sabendo que peripécia, é uma
reviravolta das ações do personagem, também podendo ser chamado de mudança de
fortuna, em que o personagem ia bem e depois de alguma coisa ele se dar mal, ou vice-
versa. E que o reconhecimento é a mudança de desconhecimento para o conhecimento,
algo que vem a tona. Temos Édipo quando ele tenta encontrar o assassino do Rei Laio, em
que ele descobre que é ele próprio o assassino e a partir daí toda a sua sorte muda. O
reconhecimento se dar entre pessoas, outro exemplo é quando um escravo reconhece
Odisseu através de uma cicatriz que tinha na perna, depois de 19 anos afastado do reino.

O ÉPICO E O PURITANISMO INGLÊS EM PARAÍSO PERDIDO

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Paradise Lost foi originalmente escrito em dez cantos e depois em doze cantos, o
autor quis assemelhar a sua obra a de outros épicos como Eneida de Virgílio e a Odisseia
de Homero, as quais tinha forte aspirações. O poema vai tratar da rebelião de anjos,
liderados por Lúcifer, a queda e expulsão do homem do paraíso, baseados em
acontecimentos do livro Gênesis da Bíblia. No primeiro livro, Milton abre o poema com
uma invocação ao espìrito santo, com o propósito de justificar ―os caminhos de Deus ao
Homem‖. O poema começa in medias res, com Satanás se acordando e confuso nas
profundezas do inferno.
O primeiro livro é contado na perspectiva de Satanás, ele descreve como o inferno é
horrível e dar nomes de figuras pagãs aos anjos caídos, em que ele passa a liderá-los. Neste
momento temos um catálogo longo da lista de anjos caídos que participaram da guerra.
Evidencia-se nesse catálogo, representa as pessoas e navios que foram pra guerra no
conturbado século XVII. Por conseguinte, no livro II os demônios se reagrupam sob a
liderança de Satanás, para planejar uma vingança contra Deus e construir um palácio
chamado de Pandemonium, um neologismo cunhado pelo próprio Milton.
Nos primeiros livros o personagem Satanás é construído com as qualidades de um
herói, como líder, inteligente, forte e que haveria o que eles tinham perdido que era o céu.
Então ele decide sozinho enfrentar o caos e os perigos para se chegar ao novo mundo, que
era o jardim do Éden. Mas também Satanás tinha outras qualidades indesejáveis, que eram
a inveja, a ambição, o desejo de vingança e o orgulho.
No livro III ocorre uma mudança narrativa, na qual o autor deixa de falar sobre o
inferno e passa a falar sobre o céu, havendo uma mudança de perspectiva de Satanás para
Deus. Desta forma, já sabendo dos planos de Satanás para acabar com a criação divina,
Deus decide entregar o seu filho para a salvação do homem. Milton descreve
detalhadamente todo o plano de satanás, mostrando como ele fará para conseguir entrar no
Paraíso. Por conseguinte no livro IV, é quando satanás chega ao jardim do éden e fica
maravilhado com aquele paraíso, comparando com o do reino dos céus, ele demonstra
vários sentimentos de nostalgia, arrependimento, mas quando vê o casal todo feliz naquele
jardim, até os admira, mas então a inveja se torna maior e todo o desejo de vingança, é
nesse momento que ele os ver discutindo sobre a ordem de Deus, de não comer do fruto
proibido e é quando Satanás planeja todo o seu plano de vingança contra Deus, para
provocar a queda do homem.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

No Livro V ainda no reino do céu, Deus ordena que um dos seus anjos Raphael
desça a terra, para alertar a Adão sobre as tentações de Satanás, quando ele chega a terra,
ele conversa com Adão e fala sobre os anjos que se rebelaram no reino do Céu. Ele faz
uma digressão através de flashbacks para contar o que houve no céu, fala da inveja de
Lúcifer, quando Deus introduziu seu filho para governar junto com ele, da rebelião de
anjos liderado por Satanás, da guerra que houve no céu entre os anjos fiéis a Deus e os
anjos que se rebelaram serve pra ilustrar a guerra civil que ocorreu na Inglaterra e a
expulsão dos anjos que correspondiam a um terço do céu para o inferno. Rafael estava
contando aquelas estórias porque queria que Adão aprendesse com elas.
E com isso Raphael retorna para a estória de Abdiel de valores cristãos, que
confrontou Satanás e os outros anjos que disse a eles que confrontar Deus, iria ser uma
derrota iminente. Quando Abdiel deixa os seguidores de Satanás, ele é bem-vindo de volta
às fileiras de Deus. Ele é perdoado por Deus e louvado pela lealdade, obediência e
resistência do mal. Esta estória de Abdiel é uma reminiscência de uma cena inicial no
épico. Os valores e as qualidades típicas que a maioria das pessoas associa a um
protagonista ou líder, de valores cristãos. Aquiles não é obediente, Odisseu não é humilde
e Abdiel honra a integridade e é obediente e humilde.
Depois que Adão é informado da guerra no céu por Raphael, ele pede mais
informações sobre a sua própria criação e sobre a Terra. No livro VII, aqui temos outra
invocação de Milton a musa Urania, uma musa grega da astronomia, particularmente
apropriada para este livro, que será em grande parte sobre a criação universal. E Milton faz
referencia a outros mitos gregos, como o personagem Bellerophon, que foi um grande
herói grego mítico aventureiro que derrotou uma quimera, voou montado no cavalo
Pegasus, até o Monte Olímpio, provocando a ira de Zeus, golpeando-o, deixando o resto de
sua vida sozinho e cego. A analogia que o Milton faz, serve para ilustrar o que estava
acontecendo com ele. Ambos viajam para o refúgio e ambos estão cegos. E quanto ao fato
de Milton também se sentir sozinho, o período em que esteve escrevendo esse poema.
Outra referência é a Bacchus o deus grego do vinho, ou o deus do êxtase e entusiasmo, foi
uma critica as pessoas da sociedade inglesa, para falar das pessoas que bebiam e
participavam de festividades. Outra alusão que é rapidamente mencionada é o de "Bardo
Thracian", referente a Orfeu, a saber, Orpheu foi morto por uma mulher, haja vista que o
homem foi condenado a morte por a mulher em Paraíso Perdido, na visão de Milton.

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No livro IX, é quando exatamente Satanás chega a Terra e possui uma serpente e
confronta Eva quando está sozinha e tenta convencê-la a comer do fruto proibido, também
chamado do fruto de conhecimento do bem e do mal. E é quando finalmente Eva come do
fruto e a compartilha com Adão, eles adormecem e o fruto começa a ter efeito. No livro X,
é onde ocorre à peripécia e o reconhecimento, o fruto traz a tona o desconhecido, os
personagens Adão e Eva passam a obter o conhecimento, e devido ao pecado por terem
cometido, a sorte deles começa a mudar, eles iam bem e as suas vidas começam a mudar
drasticamente. E começa toda uma questão existencial de Adão, se lamentando pelo que
tinha feito arrependido por aceitar o fruto de Eva, ignorando e insultando, e nesse livro vai
perceber uma visão machista nos discursos de Milton.
E por fim, a partir dos livros XI e XII, vemos as consequências de Adão e Eva por
terem pecado, o desfecho para Satanás e os seus seguidores por ter provocado a queda do
homem. Quando Deus envia o anjo Michael para expulsar o casal do jardim do Éden e
mostra a Adão visões do futuro que acontecerão devido ao pecado que cometeram.
Michael mostra vários horrores, como doenças, mortes e guerras, mas repete a mensagem
de Deus que o único caminho é a obediência e uma maneira de se juntar ao céu e uma
promessa de redenção para eles. Adão também viu pessoas com alegria dançando e
flertando, que aparentemente era uma coisa boa que Michael diz a ele, no entanto quem
vivia por prazer e obedecem a Deus, eles nunca entrariam no céu.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante do exposto, ler um épico como Paraiso Perdido foi possível analisar fatos
históricos da sociedade Inglesa de um determinado período. Uma vez que um épico tem
grande importância de documentar fatos históricos de uma nação ou povo. E também nos
possibilitou analisar características da poesia épica.
Paraíso perdido é um poema de grande relevância para a literatura inglesa, pois
John Milton ilustrou na sua obra episódios políticos e religiosos que marcou o século XVII
da Inglaterra. Como sabemos o puritanismo foi um grande grupo de protestantes em
oposição à igreja católica e os seus seguidores, que resultou numa guerra civil. Este estudo
evidenciou-se que os maiores interessados nas rebeliões e conflitos foi a alta nobreza, os
detentores do poder politico e religioso e que apesar dos protestantes conseguirem
implementar uma república, não satisfez as necessidades do povo e sua religiosidade.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Entretanto, apesar do início do reinado dos Stuart, ter sido uma tragédia, o século
XVII foi fortemente marcado, por acontecer algo inédito que não acontece mais até os dias
de hoje, que foi a implementação de um governo republicano.
E por fim, no poema épico a gêniosidade do escritor em entrelaçar fatos históricos,
bíblicos e a poesia, fica evidente. Mas se lido e analisado de outro ângulo, pode perceber
uma visão machista do escritor em algum de seus discursos no poema, podendo interligar
um dos conceitos puritanos que ele tinha sobre a mulher na época, associado ao pecado e
vista com uma maior inferioridade.

REFERÊNCIAS
ARISTÓTELES. Arte poética. São Paulo: Difusão Européia, 1959.

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Escala Educacional, volume único, 2005.

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SILVA, Alexander Meireles da. Literatura Inglesa para Brasileiros: Curso Completo de
Cultura e Literatura para Estudantes Brasileiros. Rio de Janeiro: Moderna, 2.ed.2006.

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NO IR E VIR DA ESPERANÇA: UMA LEITURA DO MIGRANTE NA OBRA


MORTE E VIDA SEVERINA

FABIANA CRUZ DA SILVA


UFPB
[email protected]

TAYNNÃ VALENTIM RODRIGUES


UEPB/UFPB
[email protected]

RESUMO
O presente artigo propõe uma reflexão sobre os movimentos migratórios no cenário
brasileiro, tendo como metáfora desse processo a região Nordeste e a obra Morte e Vida
Severina do poeta João Cabral de Melo Neto. Com esse objetivo busca-se compreender
aspectos do processo de migração do meio rural para o urbano e suas implicações na
ocupação do espaço, assim como refletir sobre a trajetória do migrante e o significado do
migrar para esse sujeito desenraizado do seu espaço social e identitário. Sendo a linguagem
literária fonte privilegiada de representação da realidade, o enfoque dessa metodologia
procura estabelecer um diálogo entre História e Literatura no pensar as representações
sobre a realidade histórica apreendidas no texto ficcional, como o faz João Cabral de Melo
Neto que em sua linguagem poética interpreta um espaço social marcado historicamente
pelo processo migratório e pela presença do ―homem Severino,‖ sua história, motivações e
descobertas nessa travessia.
Palavras-chaves: Espaço; História; Literatura; Migração.

INTRODUÇÃO

A migração é um processo de mobilidade humana recorrente, associado em sua


origem a fatores ambientais, econômicos, políticos, socais e religiosos e que exercem
significativa influência na organização social de qualquer espaço. No contexto brasileiro, e
no período aqui estudado, a região Nordeste do país se destaca como uma das maiores
propulsoras do processo migratório. As secas aliadas a outras questões socioeconômicas
levaram muitos nordestinos a migrar para outras regiões do país, na busca de trabalhos e
melhores condições de vida. As secas prolongadas que castigavam o povo nordestino são
sempre vistas como principal elemento no pensar o deslocamento desses indivíduos, um
discurso muito presente na literatura de cunho regionalista. Todavia, a ampliação dos
estudos que se voltam para a temática da migração tem revelando outros fatores que
levaram tantos nordestinos a se aventurarem em terras desconhecidas.

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Diante desse cenário, a literatura enquanto representação da realidade se voltou


para os dramas dos migrantes, sobretudo a literatura regionalista 5 que assumiu ao longo do
século XX, um caráter de denuncia das mazelas sociais se constituindo em um rico objeto
de estudo no pensar determinadas questões como o faz o poeta João Cabral de Melo Neto
em seu poema Morte e Vida Severina (1954/55) ao retratar o drama do retirante em tom
crítico e de engajamento social.
Tomaremos o poema Cabralino como objeto de estudo justamente por percebê-lo
como uma arte de cunho social pensada para coletividade, uma vez que o drama da
migração perpassa as fronteiras do Nordeste e ganha contornos nacionais e internacionais.
Pensando por esse viés, o texto em estudo se configura como metáfora do processo
migratório, como uma representação metonìmica dos ―muitos Severinos‖ que no ir e vir da
esperança marcam o chão de nossa história, e cujos dramas, angustiam e sofrimentos são
semelhantes em suas travessias. Com esse objetivo, buscaremos compreender através do
diálogo entre a História e a Literatura, aspectos do processo migratório e suas implicações
na ocupação do espaço, assim como refletir sobre a trajetória do migrante e o sentido do
migrar para esse sujeito desenraizado do seu espaço social e indenitário.

PARTIR, QUERENDO FICAR: A DINAMICA DO PROCESSO MIGRATÓRIO


EM MORTE E VIDA SEVERINA

João Cabral de Melo Neto (1920-1999) poeta e diplomata brasileiro nasceu no


Recife, Pernambuco. Filho e neto de dono de engenho passou sua infância entre os
engenhos da família nas cidades de São Lourenço da Mata e Moreno. Irmão do historiador
Evaldo Cabral de Melo e primo do poeta Manuel Bandeira e do sociólogo Gilberto Freyre,
manifestou cedo o interesse pela poesia e leitura de cordéis. Enquanto descendente de
família patriarcal, integrou ao momento histórico de decadência das oligarquias rurais
nordestinas e o processo de transição em direção à cidade/modernidade. Essa experiência
influenciou seus escritos uma vez que diante desse cenário de mudanças, cidades como

5
O Romance Regionalista ou Romance de 1930 marcou na literatura brasileira um momento de mudança na
forma como seus autores buscaram representar a realidade. Os autores desse período buscaram através da
crítica social descrever de forma fiel as contradições e os conflitos existentes dentro da espacialidade
brasileira, ou seja, um país que se queria moderno, mas que conservava traços arcaicos em sua diversidade
regional, á exemplo do nordeste que sofria bastante com a falta de estrutura e por resquícios de uma
sociedade patriarcal em decadência. Nomes como Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Raquel de Queirós
entre outros se destacam nesse viés regionalista seguido por João Cabral de Melo Neto.

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Recife revelaria o contraste entre os centros urbanos e as áreas periféricas, refúgio dos
retirantes fugidos da seca e da miséria. O próprio poeta reflete sobre esses contrates
sociais no pensar a direção que toma enquanto escritor de uma poesia social:

E, afinal de contas porque é que eu escrevi sobre miséria de Pernambuco se sou


de uma família de senhores de engenho, portanto, exploradores daquela gente e,
portanto, responsáveis por aquela miséria? 6

É interessante perceber que mesmo sendo membro da elite agrária, João Cabral
assume uma postura crítica diante dos problemas sociais que afetavam seu meio, diferente
de outros intelectuais7 que frente às mudanças nas formas tradicionais da economia
brasileira evocaram um tempo e um espaço perdido. Acompanhando as transformações em
curso no país e seu impacto na produção literária, que se revestiu de um caráter de
denuncia social, assumiu na sua arte uma forma de expressar seu engajamento social.
Alfredo Bosi ao se referir ao poema Morte e Vida Severina assim o caracteriza:

O seu poema longo mais equilibrado entre rigor formal e temática participativa,
conta o roteiro de um Severino, um homem do Agreste que vai em demanda do
litoral e topa em cada parada com a morte, presença anônima e coletiva, até que
no último pouso lhe chega a nova do nascimento de um menino, signo de que
algo resiste á constante negação da existência ( 1994, p.471)

Essa expressão ―temática participativa‖ expressa por Bosi denota o reconhecimento


do caráter da poesia Cabralina de engajamento com as questões de seu tempo. O poema
Morte e Vida Severina é uma obra de temática regionalista escrito entre 1954 e 1955 para
atender a uma encomenda de Maria Clara Machado, que havia lhe pedido uma peça a ser
encenada no período natalino. João Cabral fez, portanto um auto de Natal tipicamente
pernambucano, onde o espaço que representa o nascimento é um manguezal e a criança o
filho de um carpinteiro. Mas que uma simples representação de um auto de Natal o autor
construiu seu enredo a partir da antítese: morte e vida como forma de retratar os dramas
dos migrantes nordestinos desterrados de sua de sua terra.
Morte e Vida Severina (1954/55) é um poema que conta a história de um retirante,
chamando não por acaso de Severino, que sai de sua terra, Sertão da Paraíba e se dirige ao

6
MELO NETO, João Cabral de. Resposta ao poeta Sebastião Uchoa Leite. Nº 3. Rio de Janeiro: 34 Letras,
Mar. 1989.
7
Alguns escritores regionalistas como José Lins do Rego e próprio sociólogo Gilberto Freyre, enquanto
descendentes de família patriarcal, trouxeram em seus escritos uma caráter saudosista e de defesa dos valores
tradicionais que vinham sendo questionados.

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Recife, acreditando encontrar na capital melhores condições de vida. Tematicamente a


obra e dividida em dois momentos. Na primeira parte o enredo é focando na viagem de
Severino pelo Sertão, seguindo o curso do Rio Capibaribe e tendo como sua fiel
companheira a morte, uma vez que em cada vila que passa e em cada pessoa que encontra
só se depara com situações de morte. Na segunda parte o autor descrever a experiência
vivida por Severino ao chegar a seu lugar de destino, evidenciando sua frustração, seus
questionamentos e incertezas ao se depara com uma situação totalmente inversa do que
imaginava.
Logo no início do poema, ao tentar se identificar, se individualizar entre tantos
Severinos o protagonista se ver diante de uma ausência de um perfil individual, de uma
identidade própria diante dos muitos Severinos que em seu meio vivem e padecem de
situações semelhantes:

O meu nome é Severino


não tenho outro de pia.
como há muitos Severinos,
que é santo de romaria,
deram então de me chamar
Severino de Maria;
como há muitos Severinos
com mães chamadas Maria,
fiquei sendo o de Maria
do finado Zacarias.
mas isso ainda diz pouco:
há muitos na freguesia,
por causa de um coronel
que se chamou Zacarias
e que foi o mais antigo
senhor desta sesmaria.
Como então dizer quem fala
ora a Vossa Senhoria?
vejamos: é Severino
da Maria do Zacarias,
la da serra da Costela,
limites da Paraíba.
Mas isso ainda diz pouco:
se ao menos mais cinco havia
como nome de Severino
filhos de tantas Marias
mulheres de outros tantos,
já finados, Zacarias,
vivendo na mesma serra
magra e ossuda em que eu vivia.
(MELO E NETO, 2000, p 46)

Ao tomar esse poema como uma leitura do migrante esse excerto já demonstra a
metáfora que é proposta pelo autor. Uma vez que, diante da impossibilidade de se

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individualizar, em um contexto repleto de tantos Severinos, vemos a transição do ser


individual para o coletivo revelando o protagonista como uma metonímia representativa de
tantos outros retirantes:

Somos muitos Severinos


iguais em tudo na vida:
na mesma cabeça grande
que a custo é que se equilibra,
no mesmo ventre crescido
sobre as mesmas pernas finas,
e iguais também porque o sangue
que usamos tem pouca tinta.
E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte Severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte,
de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
é que a morte Severina
ataca em qualquer idade,
e até gente não nascida).
Somos muitos Severinos
iguais em tudo e na sina:
a de abrandar estas pedras
suando-se muito em cima,
a de tentar despertar
terra sempre mais extinta,
a de querer arrancar
algum roçado da cinza.
Mas, para que me conheçam.
melhor Vossa Senhoria
e melhor possam seguir
a historia de minha vida,
passo a ser o Severino
que em vossa presença emigra.
(MELO NETO, 2000, p 46)

Severino é a personificação do nordestino, cuja vida é determinada pelas


desigualdades econômicas e sociais. Não é por acaso a escolha do nome, muito comum no
Sertão nordestino. Ao se apresentar como Severino ele encarna os milhares de nordestinos
que como ele compartilham o nome, a miséria, o sofrimento e a perspectiva do mesmo tipo
de morte que se morre um pouco por dia, submetidos ao domínio e exploração dos
latifundiários e que sem meios de produzir para sua subsistência veem-se forçados a
emigrar para tentar a sorte.

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Assim ao se perceber um entre tantos iguais o personagem assume a identidade do


retirante, passando a representar a voz dos muitos Severinos que a despeito da ligação com
sua terra natal se ver forçado a deixar suas raízes na busca de uma melhor expectativa de
vida. O migrar para ele é uma fuga da morte que abrevia a vida, sentimento comum à
maioria dos sujeitos envolvidos nesse processo, o que implica refletir sobre a migração em
um contexto geral, como uma perda de identidade, ou seja, a partir da perspectiva do
desenraizamento. Segundo Bosi ―o enraizamento é talvez a necessidade mais importante e
mais desconhecida da alma humana e uma das mais difìceis de definir‖ (1992 p16). Assim
a cultura do migrante se faz melhor compreendida em termos de desenraizamento, afinal
ele deixa para trás sua terra natal, seu modo de vida, suas redes de sociabilidades, tendo
que assumir muitas vezes outros valores culturais. Morre em certa medida a vida que se
levava antes e nunca haverá um retorno a ela, porque aqueles que voltam a sua terra natal
nunca vão vê-la como antes diante da experiência que construiu em outros espaços às
vezes maior e mais desenvolvido.
Deixar sua região de origem não é tarefe fácil, é renunciar em certa medida uma
série de costumes e enfrentar uma nova realidade. Nas palavras de Corsine: ―migrar supõe
fazer escolhas, implica renuncia ao que já está constituído: o migrante lança-se numa
aventura incerta, arriscada, imprevisível, para construir tudo outra vez, fazer o seu caminho
ao caminhar‖ (2010, p.533). Essa nova experiência não rara vezes se converte em um
confronto de culturas culminando em práticas de exclusão e marginalização. Durval
Muniz8 faz um balanço das praticas de exclusão e xenofobia em relação aos sujeitos
excluídos socialmente como é o caso do migrante:

A xenofobia implica uma delimitação espacial, uma territorialidade, uma


comunidade, em que se estabelece um dentro e um fora, uma interioridade e uma
exterioridade, tanto material quanto simbólica, tanto territorial quanto cultural,
fazendo daquele que vem de fora desse território ou dessa cultura um estranho ao
qual se recusa se rejeita com maior ou menor intensidade. A xenofobia pode se
manifestar de diferentes maneiras, desde como uma simples recusa de
aproximação, convivência ou contato com o estrangeiro até através de atitudes
extremadas de agressão e tentativa de eliminação física ou simbólica do ser
estranho. O estrangeiro, o estranho tende a ser visto com suspeita, pois seus
comportamentos, atitudes, códigos de valores não obedecem ás mesmas regras
que definem aquela cultura que o está recepcionando. (2016, p.9).

8
Para uma melhor compreensão das práticas xenofóbicas, de racismo e preconceito ao imigrante na
contemporaneidade ver ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Xenofobia: medo e rejeição ao
estrangeiro. São Paulo: Cortez, 2016. Nessa obra publicada em 2016 Durval Muniz aprofunda o debate
sobre a xenofobia, como instrumento de motivação psicológica na luta pelo poder, entre pessoas, grupos e
nações, assumindo um sentido para além da aversão ao estrangeiro ou ao incomum.

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Assim as migrações são reflexos de profundas transformações com implicações


tanto para o espaço de origem como para o lugar de adoção do migrante. Segundo
Gonçalves:

Os grandes deslocamentos humanos, via de regra, precedem mudanças


profundas, seja do ponto de vista econômico e político, seja em termos sociais e
culturais. [...] numa palavra, a mobilidade humana é em geral um sintoma de
grandes transições. Quando ela se intensifica, algo ocorreu ou esta para ocorrer,
ou melhor, ou melhor, algo está ocorrendo nos bastidores da história.
(GONÇALVES, 2004, p 61).

De fato nos deparamos ao longo da história do Brasil com momentos de


intensificação da mobilidade humana, no caso do nordeste e do contexto estudando no
poema, identificamos ser um momento de aumento da migração do campo para cidade, em
virtude das mudanças nas estruturas econômicas frente ao processo de industrialização que
o país vinha passado, que ocasionaram transformações nas relações de trabalho. Fatores
como a concentração fundiária, a falta de oportunidades de trabalho, levaram muitos
nordestinos a buscar nas grandes cidades emprego e melhores condições de vida, levando a
uma aceleração do movimento migratório cujas consequências foram o aumento
demográfico e das desigualdades sociais, na medida em que os centros urbanos não tinham
como absorver os fluxos migratórios e a mão- de-obra dai advindo culminando no processo
de marginalização, algo muito comum na atualidade.9
Nesse contexto, Severino representa o retirante que pertence a um modo de
produção em decadência. Isso fica evidente em um dos diálogos emblemáticos da obra,
quando decide interromper a viajem e encontrar trabalho em um dos lugares em que está
de passagem. Ao se dirigir a uma mulher na janela de sua casa questiona sobre as
condições de trabalho no povoado e passa a enumerar suas muitas habilidades: lavrar,
cuidar de gado, trabalhar nos banguê, em resposta é alertado que nada disso tem serventia
por ali evidenciando o quanto estas atividades se encontram em baixa, ou seja, o migrante
traz consigo habilidades desenvolvidas em seu local de origem que não encontram
aplicabilidade fora desse espaço, outro fator que refletiu na impossibilidade de uma
mudança na perspectiva de vida. Como em todo o percurso é a morte que se apresenta
9
Ver GALVE, Fernanda Rodrigues. Ser (tão) Severino: Memórias poéticas de João Cabral de Melo Neto
(1950-1960). Dissertação (Mestrado em História Social). PUC. São Paulo, 2006. Ao longo do trabalho a
autora aborda o contexto de Recife nas décadas de 1940 e 1950 em seu processo de urbanização e
industrialização e como este esteve associado a dinâmica das migrações uma vez que impulsionou o aumento
do fluxo migratório para este Estado, o que se converteu no aumento demográfico e das desigualdades
sociais.

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como a grande empregadora daquela região. A mulher logo se apresenta com ―rezadora
titular que vive a morte ajudar‖ (MELO NETO, 2000, p 57).
Outro aspecto relevante apresentado no texto, para além das condições climáticas é
o fenômeno da concentração fundiária que empurrou muitos indivíduos para as periferias
das grandes cidades. Ao longo de sua travessia o primeiro encontro do retirante é com dois
homens denominados os ―irmãos da alma‖ que carregam em uma rede um pequeno
proprietário, Severino lavrador, vítima de uma emboscada do grande latifundiário por
disputas de terras. Ao questionar sobre a punição do assassino a resposta é reveladora da
realidade que cerca aquele meio: ―mais campo tem para soltar/ irmãos da alma/ tem mais
onde fazer voar/ as filhas-bala‖ (MELO NETO, 2000, p 49), ou seja, não haveria punição
ao contrario o assassino se beneficiaria com mais terra. O que é interessante inferir do
diálogo é que os interlocutores parecem não se indignar com a injustiça, o que indica ser
uma situação contra a qual não se podia lutar. A travessia de Severino é motivada por uma
busca de melhores dias, mas por onde ele passa só se depara com os rastros da morte. Isso
faz com que ele apresse sua viajem, uma vez que em cada lugar que passa suas esperanças
vão sendo minadas:

Nunca esperei muita coisa,


é preciso que eu repita.
sabia que no rosário
de cidades e de vilas,
e mesmo aqui no Recife
ao acabar minha descida,
não seria diferente
a vida de cada dia:
que sempre pás e enxadas
foices de corte e capina,
ferros de cova, estrovengas
o meu braço esperariam.
Mas que se este não mudasse
seu uso de toda vida,
esperei, devo dizer,
que ao menos aumentaria
na quartinha, a água pouca,
dentro da cuia, a farinha,
a algodãozinho da camisa,
ou meu aluguel com a vida.
(MELO NETO, 2000, p. 69)

A chegada ao Recife só aumenta sua frustação, longe de encontrar meios de


empregar sua força de trabalho o que ele encontra é desemprego, miséria, violência e como
perspectiva engrossar a massa populacional que vivem nas áreas periféricas, uma realidade
não muito diferente da vida Severina deixada para trás. A sua sina reproduz a saga de

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muitos migrantes anônimos, que até hoje chegam a cidades ou países e se deparam com
uma realidade totalmente inversa ao que buscavam, e diante da falta de oportunidades vão
compor os índices de desempregados e excluídos socialmente.
Nosso personagem central encontra um centro urbano despreparado para recebê-lo
deixando-o a mercê das mesmas privações da quais vinha fugindo. Essa situação de
exclusão é evidenciada por João Cabral de Melo Neto em uma conversa que Severino
escuta ao chegar ao Recife entre dois coveiros que fala das distintas alas do cemitério,
sintetizando na hierarquização do cemitério um reflexo da sociedade: avenida do centro
onde se enterram os ricos (banqueiros, usineiros e políticos), alas dos funcionários
(contratados, mensalistas, profissionais liberais) e as dos operários e indigentes
(ferroviários, rodoviários, indigentes e pobres vários) logo a ala dos retirantes que segundo
os coveiros migravam seguindo o próprio enterro:

E esse povo lá de riba


de Pernambuco, da Paraíba,
que vem buscar no Recife
poder morrer de velhice,
encontra só, aqui chegando,
cemitérios esperando.
- Não é viagem o que fazem,
vindo por essas caatingas, vargens;
aí está o seu erro:
vem é seguindo seu próprio enterro.
(MELO NETO, 2000, p. 68)

A conclusão que João Cabral nos remete nesse poema é do sonho ilusório que em
muitos casos caracterizam os processos migratórios, no entanto, ao concluir seu enredo
com o nascimento de uma criança, filho do Seu José mestre Carpina, trás uma
representatividade da fé na vida, no veio de esperança que impulsionou e impulsiona o ir e
vir dos muitos sujeitos anônimos.

E não há melhor resposta


que o espetáculo da vida:
vê-la desfiar seu fio,
que também se chama vida,
ver a fábrica que ela mesma,
teimosamente, se fabrica,
vê-la brotar como há pouco
em nova vida explodida
mesmo quando é assim pequena
a explosão, como a ocorrida;
mesmo quando é a explosão
como a de há pouco, franzina;
mesmo quando é a explosão

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

de uma vida Severina.


(MELO NETO, 2000, p. 80).

A criança mesmo trazendo os traços físicos de mais uma vida Severina: magra,
pálida e franzina é a representação de que o que move o migrante é a vida, é o símbolo da
resistência que caracteriza os passos dos muitos indivíduos que cruzam diferentes
caminhos ao longo da nossa história.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A migração é um fenômeno que vem ganhando espaço nos debates atuais, uma vez
que é algo presente na realidade histórico-mundial10 e que muito tem impactado na
configuração dos espaços e nas relações humanas. João Cabral de Melo Neto ao abordar
em seu poema os dramas dos retirantes nordestinos, provavelmente não imaginava os
contornos que as migrações assumiram ao ponto de chegar a ser um assunto central nas
relações entre países. O autor escreve sobre um Nordeste em plena mutação e cria uma
concepção crítica sobre o que acontece com o seu povo por intermédio da poesia, porém
essa não é apenas história de um Severino, mas de todos que viveram aquela situação de
flagelo e que fizeram parte de uma realidade histórica ocorrida na região nordeste seja em
decorrência das secas ou de outros fatores de cunho social, político e econômico. Uma
realidade que não é parte de um passado apagado, mas algo bem atual nos descolamentos
de pessoas de um espaço a outro.
Na atualidade questões como fatores climáticos, concentração de riquezas,
desigualdades sociais, marginalização, fome e pobreza continuam a ser motivações para as
práticas migratórias fazendo da poesia Cabralina um importante meio de analise das
origens e desdobramentos do migrar em seu lado perverso de desenraizamento. Percorrer
escritos como Morte e Vida Severina é fazer emergir uma visão mais aberta que considere
as nuances desse fenômeno. Assim sendo as discussões que envolvem essa temática podem

10
Para uma visão mais ampla dos processos migratórios em um contexto global ver: BAUMAN, Zygmunt.
Estranhos à nossa porta. Rio de Janeiro. Zahar, 2017. Em seu último livro o sociólogo analisa as origens,
os contornos e os impactos de uma chamada ―crise migratória‖ evidenciando o pavor provocado pela as
migrações e a política de desumanização dos sujeitos envolvidos nesse processo, refletidas em atitudes de
ódio e diferentes reações polìticas por parte dos paìses ― invadidos‖. O autor destaca dentre muitas outras
questões, que mais do que uma crise migratória vivemos uma crise humanitária e propõe ao longo da obra
soluções como cooperação e solidariedade entre os povos, se configurando como um importante texto para se
refletir sobre os dilemas que caracterizam os processos migratórios na atualidade.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

construir oportunidades de ampliação de leituras e interpretações desse fenômeno em suas


raízes históricas na contemporaneidade.

REFERÊNCIAS

ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Xenofobia: medo e rejeição ao


estrangeiro. São Paulo: Cortez, 2016.

BAUMAN, Zygmunt. Estranhos à nossa porta. Rio de Janeiro: Zahar, 2017.

BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. 36ª ed. São Paulo: Editora
Cultrix, 1994.

BOSI, Eclea. Cultura e Desenraizamento. IN: BOSI, Alfredo. Cultura Brasileira: temas e
situações. São Paulo: Editora Ática, 1992.

CORSINI, Leonora. Migrações e êxodo constituinte. In: FERREIRA, Ademir Parcelli... [et
al]. A experiência migrante: entre deslocamentos e reconstruções. Rio de Janeiro:
Garamond, 2010.

GALVE, Fernanda Rodrigues. Ser (tão) Severino: Memórias poéticas de João Cabral
de Melo Neto (1950-1960). Dissertação (Mestrado em História Social) PUC, São Paulo,
2006.

GONÇALVES, Alfredo José. Migrações no Brasil. IN: Cadernos Ceas- Centro de


Estudos e Ação Social. Migrações no mundo, na América Latina, no Brasil, no Nordeste.
Salvador: CEAS, 2004, nº 214, p. 61-74.

MELO NETO, João Cabral. Morte e Vida Severina e Outros poemas para vozes. 4ª ed.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.

SILVA, Verônica Pessoa da. No vai e vem da esperança: um balanço dos processos
migratórios a partir dos saberes e dos aprendizados populares no Nordeste brasileiro.
Tese (Doutorado em Educação). UFPB, João Pessoa, 2013.

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A REPRESENTAÇÃO DO CANGAÇO EM CORDEIS DAS DECADAS DE 1920 A


1940.

HELENA LOPES SILVA


URCA
[email protected]

RESUMO
Com a consolidação do campo de estudos da História Cultural, tornou-se possível explorar
a literatura de cordel como fonte histórica, principalmente, para o estudo da cultura
popular. Portanto, visamos compreender quais elementos representativos do cangaço,
contidos nos textos de dois cordelistas, José Bernardo da Silva e João Martins de Athayde,
relacionam-se ou contribuem para a construção de uma identidade nordestina. Os cordéis
destes autores retratam momentos específicos da história de Lampião, a saber, sua
passagem por Juazeiro do Norte, em 1926, sendo tais cordéis contemporâneos aos fatos
retratados. As análises iniciais têm sido férteis, por nos permitir investigar tanto alguns
elementos constitutivos da cultura nordestina, quanto os modos pelos quais Lampião foi
representado em seu tempo presente. Palavras-chave: Literatura de
cordel; Cangaço; Lampião.

INTRODUÇÃO

O autor Durval Muniz de Albuquerque Junior em seu livro, A invenção do nordeste


e outras artes, nos apresenta como o que entendemos por Nordeste brasileiro foi sendo
construído, através de vários meios, como por exemplo, a imprensa, a literatura, relatos e
conceitos de intelectuais nordestinos e não nordestinos e também pelos meios artísticos.
Segundo o autor podemos perceber a presença de estereótipos e preconceitos na construção
do imaginário social. Portanto, de acordo com o autor, a região Nordeste é algo construído,
inventado imageticamente, através de um discurso regionalista no qual a inferioridade do
Nordeste aos estados do sul é divulgada e, em sua construção o cangaço é apresentado
como uma das influencias e características representante, assim como a seca e a miséria.

―O cangaço vai marcar o Nordeste e o nordestino com o estereótipo da ‗macheza‘,


da violência, da valentia, ‗do instinto animal‘, do assassino em potencial. Motivo
de orgulho e de vaidade para os setores tradicionais, notadamente para os
camponeses da região, o elogio do cangaço servirá para estigmatizar o homem
pobre e vindo do meio rural do Nordeste, especialmente quando chega às grandes
cidades do Sul. Estereotipá-los como homens primitivos, bárbaros, alheios à
civilização e à civilidade, que, embora fossem homens comuns, escondiam uma
fera pronta a se revelar, ‗às vezes nem pareciam gente‘. O Nordeste seria a terra do
sangue, das arbitrariedades, região da morte gratuita, o reino da bala, do
Parabelum e da faca peixeira.‖(ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2011, p. 143 144)

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Partindo da ideia do autor de que o nordeste é algo construído imageticamente e


que o Cangaço faz parte da construção de estereótipos de macheza e valentia do
nordestino, pretendemos estabelecer uma relação entre, o que era divulgado sobre o
cangaço de Virgulino Ferreira da Silva, vulgo Lampião, através do cordel, e o que ficou
enraizado no imaginário social e consequentemente cristalizado através da definição do
que hoje conhecemos por sendo a representatividade de ―cultura nordestina‖.

Iremos analisar especificamente o cangaço nas poesias de Literatura de Cordel, por


ela ser um escrito típico da região nordestina apresentando as belezas naturais do lugar,
mostrando a sua realidade social de sofrimento, fome e miséria, mas também sua fé,
alegrias, costumes, suas praticas, lazer e etc. Portanto, este trabalho tem como foco a
interpretação da literatura de cordel enquanto fonte histórica, para entender como o
Cangaço está apresentado nos versos de José Bernardo da Silva e João Martins de
Athayde. Ambos, nordestinos com pouca escolaridade e de origem humilde, como a
maioria dos cordelistas no início do século XX, possuem papel importante na
popularização do cordel, sendo estes reconhecidos atualmente por estudiosos do referente
tema. Como também tem em seus versos interpretações de fatos ocorridos em seu tempo
presente.

O CORDEL É: INFORMAÇÃO, FONTE E LITERATURA

O folheto de Cordel é feito em papel pardo e tem tamanho de um livreto de bolso e


suas capas são ilustradas com xilogravuras. Para a autora Lucie Safránkavá o cordel é:

A literatura de cordel é um gênero da literatura popular chamado pela


forma como originalmente eram vendidos os livretos – pendurados num
barbante ou corda nas feiras, mercados ou praças. E de mesmo modo
como aconteceu nas colônias de língua espanhola na América, essa
tradição atravessou mares e chegou na bagagem dos colonos portugueses
até o Brasil. (SAFRÁNKAVÁ, 2007, p. 04). .

Segundo a autora Rosilene Melo, até a consolidação da imprensa no Brasil os


folhetos que circulavam na colônia eram trazidos de Portugal, pois, a publicação de
impressos era censurada pela corte portuguesa, e sobre isso a autora fala:

No Brasil, a publicação de impressos somente foi possível a partir de


1808, quando da transferência da Família Real para o Rio de Janeiro e da
criação da Imprensa regia (MELO, 2010, p. 58).

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Para a autora foi graças ao fim da interdição de impressos e o rápido


desenvolvimento no setor da imprensa que surgiram as oportunidades de se estabelecer um
pequeno, mas importante, movimento editorial com o surgimento de alguns jornais e
tipografias especializadas. Devido ao rápido processo de modernização as maquinas
utilizadas para impressão logo ficavam obsoletas, podendo assim ser vendidas por um
custo acessível, sobre isso Rosilene Melo diz:

Por esse motivo foi possível a poetas e pequenos vendedores ambulantes


de folhetos o acesso a publicação de livros. A edição regular de folhetos,
portanto, não foi dada exclusivamente pelo crescente interesse do publico,
mas também por razoes de ordem econômica e técnica que possibilitaram
a difusão dos mais diversos gêneros de impressos no Brasil. (MELO
2010, p. 59)

Com relação a sua chegada ao nordeste brasileiro a autora Lucie Safránkavá em ―A


literatura de cordel no Brasil” diz que o cordel vem na bagagem dos colonos instala se na
Bahia e durante a migração dos nordestinos em busca de melhorias de vida acaba o
levando para outras partes do Brasil.

Segundo a autora Márcia Abreu os folhetos portugueses chegam ao nordeste onde


já existe outra tradição popular, as cantorias, onde neste momento está em fase de
definição.

As cantorias nordestinas do século XIX e inicio do XX eram recitativos


acompanhados por violas ou rabecas, em que cantadores batiam-se em
desafios e/ ou apresentavam composições poéticas – glosas feitas a partir
de um mote, descrições da natureza, sátiras, narrativas em versos, etc.
(ABREU, 1993, P. 129)

No entanto, o que se faz necessário neste momento é procurar entender o papel do


cordel diante das circunstâncias apresentadas ao longo do tempo. A autora Lucie
Safránkavá, defende a ideia de que mesmo a Europa se beneficiar das vantagens da
imprensa desde o século XVIII e o Brasil um século mais tarde, o interior do nordeste vivia
praticamente isolado com dificuldade ao acesso a informação, o jornal, por exemplo,
datado seu surgimento a década de 20 e tido como primeiro meio de comunicação em
massa só existia nas capitais e quando chegava ao interior era sempre com atraso devido as
dificuldades de transporte, a esse respeito a autora diz:

Desde os fins de séc. XIX no Brasil apareceram vendedores destes


livretos que se tornaram verdadeiros profissionais que leram, declamaram,
improvisaram ou cantaram seus versos, viajando por fazendas, vilas e
cidades pequenas, trazendo as notícias do litoral para o povo que vivia
praticamente isolado no sertão e que não podia obter as informações do
mundo senão por esta forma. (SAFRÁNKAVÁ, 2007, p.04).

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Portanto, diante da fala da autora podemos perceber que o folheto tinha o papel de
informar e que o acesso a ele era feito graças aos ambulantes que viajavam em busca de
vender- lós. Vale ressaltar também o fato de o folheto ser declamado, lido e improvisado.
Vale esclarecer que até a década de 20 ainda se tratava de uma produção eminentemente
oral, ou seja, era feita as cantorias.

A partir do final do século XIX, o universo poético das


cantorias passa a ser publicado em forma de folhetos,
surgindo um intercambio entre as apresentações orais e os
textos impressos: histórias publicadas em folhetos são
decoradas pelos cantadores e passam a ser apresentadas nas
sessões de cantorias; composições orais ganham forma
impressa (ABREU, 1993 p. 161).
Sabe se que a população brasileira, principalmente a população rural, do final do
século XIX e inicio do XX, era composta em sua grande maioria por analfabetos, sendo
assim, a leitura era privilegio para poucos, portanto, cabe aqui nos questionar como esse
gênero textual ganhou notória popularidade diante dessa questão do analfabetismo, a
explicação para isso é compartilhada por estudiosos do cordel, que revelam que o folheto
era feito para ser lido em voz alta, para explicar esse fenômeno, a autora Márcia Abreu diz
que ―pessoas analfabetas compram folhetos para serem lidos em voz alta por algum
conhecido‖. (ABREU, 1993, p.162). Outra especificidade do cordel era sua linguagem
acessível para o publico, ou seja, era de fácil entendimento e continha fatos em que o
publico- leitor se sentia familiarizado, pois, o poeta escritor pertencia ao mesmo ambiente
que seu publico. Sobre a relação entre os poetas e os leitores fala a autora Lucie
Safránkavá.

A grande vantagem dos poetas populares era que surgiram do mesmo


ambiente como seu público, e por isso entendiam bem quais seus sonhos,
desejos e problemas e conseguiam contar as histórias de modo que o povo
entendia. Usavam a mesma linguagem e sabiam o que é que o povo queria
ouvir. (SAFRÁNKAVÁ, 2007, P. 04).

Portanto, diante deste questionamento buscamos entender as faces do cangaço


apresentadas na literatura de cordel das primeiras décadas do século XX, pois podem nos
apresentar uma ideia de como esse fenômeno era reconhecido por seus contemporâneos e
apresentado a sociedade da época, pois, o fenômeno do Cangaço não só fazia parte da
vivencia da população nordestina, por isso, era tema frequente nos cordéis, como também,
mais tarde ganhou um espaço na representatividade de sua cultura. Com base nisso
buscamos compreender como isso foi possível, ou melhor, de que maneira o cordel

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

possibilitou essa introdução da imagem do cangaço como representação da cultura


nordestina e quais são essas representações, ou seja, que elementos são esses, procurando
entende lós sob o ponto de vista estético e moral, pois, segundo Durval Muniz, ―o cordel
fornece uma estrutura narrativa, uma linguagem e um código de valores que são
incorporados, em vários momentos, na produção artìstica e cultural nordestina‘
(ALBUQUERQUE JUNIOR, 2011)

A literatura se constitui numa forma de contar as histórias, de representar lugares


de falas, de sentimentos, emoções. Portanto, havendo uma similitude entre elas. A
Historiadora Sandra Pesavento destaca acerca da relação entre História e Literatura:

Ambas são formas de explicar o presente, inventar o passado, imaginar o


futuro. Vale-se de estratégias retóricas, estetizando em narrativas os fatos
dos quais se propõem falar. São ambas formas de representar inquietudes
e questões que mobilizam os homens em cada época de sua história e,
nesta medida, possuem um público destinatário e leitor. (PESAVENTO,
2005, p. 81)

Ela defende que os historiadores devem se valer deste tipo de fonte, por ela ser
rica em representar como eram as sociedades, seus modos de viver, suas crenças, costumes
e, apesar de ela apresentar histórias ficcionais, nelas são impressas marcas da época em que
foi escrita. Segundo ela:

[...] permite o acesso à sintonia fina ou ao clima de uma época, ao modo


pelo qual as pessoas pensavam o mundo, a si próprias, quais os valores
que guiavam seus passos, quais os preconceitos, medos e sonhos. Ela
representa o real, ela é fonte privilegiada para a leitura do imaginário.
(PESAVENTO, 2005, p. 82)

A historiadora Ângela Grilo em ―A arte do povo: historias na literatura de cordel”


(1900- 1940) defende que o cordel é uma fonte extremamente viável para a Historia,
porque apresenta diversas representações sobre os fatos históricos pela perspectiva dos
homens simples, com uma linguagem também muito simples.

Segundo a autora Safránkavá foram os poetas João Martins de Athayde, Francisco


das Chagas Batista e Leandro Gomes de Barros, os pioneiros na escrita de romance
originalmente brasileiro, ou seja, já não eram mais derivados do romanceiro tradicional de
origem europeia, passaram a refletir a realidade nordestina.

Tornou-se o papel fundamental do poeta popular versar as histórias,


fatos, reivindicações, críticas, queixas e aspirações do homem nordestino,
quer dizer, de tudo o que povo pensava. (SAFRÁNKAVÁ, 2007, p. 05).

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

LAMPIÃO NO CORDEL

Tendo em vista a ideia de lugar social defendida por Certeau, o qual afirma que o
lugar do autor influencia diretamente na sua escrita, o paraibano João Martins de Athayde
que, no entanto, se consagra como cordelista longe de seu Estado, sendo este em Recife, e
o alagoano Jose Bernardo da Silva em Juazeiro do Norte, são acima de tudo nordestinos,
portanto possuem familiaridade com o tema estudado. Considerando também a
popularidade dos folhetos, a diversidade de temas abordados, e o seu papel diante da
sociedade do inicio do século XX, fazemos o seguinte questionamento: De que maneira
lampião é apresentado aos leitores e ouvintes em folhetos a sociedade das primeiras
décadas do século XX?

A autora Mariane dos Santos, nos alerta a cerca da veracidade do conteúdo


dos cordéis com relação a isso ela diz:

Quando nos deparamos com a história de um cordel, uma das


indagações feitas é: seria está história real ou apenas uma lenda?
Porém é preciso perceber além do que vem a ser ficção ou
realidade, pois ainda que a narrativa não tenha ocorrido de alguma
forma existe veracidade no que foi relatado, existe o empenho do
narrador de fazer uso da sua imaginação para relatar um fato ou
mesmo partes dele (SANTOS, 2014, p. 9).

José Bernardo da Silva, no folheto: combate do defensor da honra com lampião o


terror da morte, escreve:

Deixemos o rapaz seguindo


Em busca de seu destino
Falemos de Lampião
O capitão Virgulino
Com seu grupo assombroso
O mais cruel assassino

Neste trecho podemos perceber o reforço da imagem de bandido apresentada pelo


autor para representar Lampião através dos termos ―assombroso, assassino‖. No trecho a
seguir o autor o trata ―celebre‖ e também fala um pouco de sua estética.

A frente da cabroeira
Vinha o celebre Lampião
De barbicacho passado
E parabelum na mão
Trazia quatro bornaia
Repleta de munição
Trazia calça culote

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Blusa de coque e perneira


Um chapéu agateado
Sendo massa de primeira
Circulando a bandoleira.

O autor descreve alguns elementos que compõem a figura de lampião como, por
exemplo, suas vestimentas, o barbicacho se referindo à tira de couro que passa pelo queixo
e prende o chapéu a cabeça, certamente utilizado para evitar que o chapéu caia com o
vento, galhos etc. também a bornaia que era utilizada para guardar a munição feita de
couro ou tecido e a perneira que proporcionava a proteção das pernas. Esses elementos
caracterizam a imagem que mais tarde será reproduzida pelo folclore, mídia se inserindo na
representatividade da identidade nordestina e sua cultura.
Nos versos do folheto que descreve a chegada de Lampião em Juazeiro do Norte, o
autor José Martins de Athayde conta como Lampião entrou na cidade de juazeiro
acompanhado de cinquenta cangaceiros e como ofereceu seus serviços à legalidade contra
os revoltosos, citado pela autora Rosilene Alves de Melo (2010, p. 29). Athayde descreve o
cangaceiro com os adjetivos, ―leal e companheiro‖ e fala da admiração do povo de
Juazeiro para com lampião:

Causou admiração
Ao povo de juazeiro
Quando Lampião entrou
Mansinho como um cordeiro
Com toda sua regência
Que lhe rende obediência
Por ser leal e companheiro.

(...) De toda parte chegava


Gente para o juazeiro
Alguns deles se vestiam
Com as roupas de um romeiro
Quem morava no deserto
Vinha pra ver bem de perto
O famoso cangaceiro

(...) Da policia em Juazeiro


Houve grande oposição
Porque queriam prender
O famoso Lampião
Não puderam conseguir
Porque precisavam ouvir
O padre Cícero Romão.

Vale salientar sobre a vaidade do nosso personagem e de suas artimanhas para se


auto promover e se apresentar a sociedade. ―O cangaceiro era alguém que aspirava ao
poder e a gloria. Seus crimes deviam ser praticados e narrados, queriam ser fotografados e

58
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

queriam seus bilhetes atrevidos às autoridades divulgados pelos jornais‖.


(ALBUQUERQUE JUNIOR, 2011, p. 142). Segundo o autor Albuquerque Junior Lampião
queria que folhetos e cantorias cantassem seu nome.
No folheto lampião em Villa Bella, o autor João Martins de Athayde apresenta as
duas faces de lampião, ao relatar o encontro de um viajante com lampião o autor nos faz
entender que teve contato direto com uma testemunha desse fato.

(...) Ao leitor eu vou narrar


Tudo como se passou,
Porque quem viu a tragédia
Veio cá e me contou
Repare com atenção
Ele no fim da questão,
De que forma se salvou.

Neste trecho o autor apresenta o bom e o mal do nosso personagem.

(...) E o pobre viajante


Naquela hora fatal
Temendo que lampião
Desse- lhe um golpe mortal
Pediu com muito cuidado
Ao bandido desgraçado
Para não lhe fazer mal.

Então o bandido fez


De uma forma muito honrosa
Pois dizem que lampião
É uma cobra manhosa
Porem tem bom coração
Porque nessa ocasião
Fez uma ação generosa

No entanto a imagem de generoso e bom amigo do nosso personagem torna se


duvidosa a partir desses trechos a seguir.

(...) O viajante que é


Muito boa criatura
Narrou aos jornais daqui
A sua grande aventura
Disse que não faltou- lhe nada
Café, pão e carne assada
Farinha com rapadura.

(...) Então o tal viajante


Teve ahi necessidade
De fazer mil elogios
Embora contra a vontade

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Pois nessa situação


Foi assim que lampião
Deu a sua liberdade.

Albuquerque Junior fala sobre as diferentes visões retratadas sobre os cangaceiros,


segundo ele:
Estas inúmeras versões cada crime e cada cangaceiro ajudarão a compor
uma figura mítica, complexa, múltipla, cuja identidade dilacerada entre
deus e o Diabo será tomada como emblema de uma sociedade que se
degenerava e precisava se socorrida por quem de direito
(ABUQUERQUE JUNIOR, 2011, p. 143).
.
Como já mencionamos anteriormente o cangaceiro Lampião procurava promover
sua imagem através dos meios de informação disponíveis na época. Como podemos
perceber nos versos de Athayde, o próprio Lampião ordenou ao tal viajante que falasse
valorizando sua figura em troca de sua liberdade, o que nos faz refletir sobre as influencias
do próprio cangaceiro sobre o que se contava sobre ele, levando- nos a enverga- ló como
ele gostaria de ser apresentado.
Neste mesmo folheto Athayde retrata em seus versos a vida do nordestino e sua
condição de miséria, e o descaso das autoridades, dando- nos a entender como sendo
justificativas para o banditismo no Nordeste.

(...) Por isso caro leitor


A negra situação
As vezes sacode o homem
No antro da perdição
E nessa luta renhida
Muita gente inveja a vida
Do bandido lampião.
Segundo Luiz da Camara Cascudo em Vaqueiros e Cantadores, a valentia do
sertanejo era motivo de admiração, no caso dos cangaceiros alem da valentia existia
também o fator moral que o tornava diferente do bandido comum, pois a função criminosa
era acidental, portanto, segundo o autor, raramente percebemos nos versos entusiastas
criticas e repreensão à selvageria de suas ações. Sobre isso o autor fala:
Para que a valentia justifique ainda melhor a aura popular na poética
preciso a existência do fator moral. Todos os cangaceiros são dados
inicialmente como vitimas da injustiça. Seus pais foram mortos e a justiça
não puniu os responsáveis. A não existência desse elemento arreda da
popularidade o nome do valente. Seria um criminoso sem simpatia. (
CASCUDO, 1984, p. 161).

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Diante da fala do autor podemos refletir de que maneira a poesia contribuiu para
tecer a dualidade da imagem de herói e bandido dos cangaceiros, pois alem de contar seus
feitos de crueldade e banditismo, também retrata sua valentia, imponência, generosidade e
os supostos motivos que os levaram para a vida do crime.

CONCLUSÃO

O desenvolvimento do presente artigo possibilitou uma analise de como o


cangaceiro Lampião e seu bando se apresentavam em verso de cordel dos autores João
Martins de Athayde e Jose Bernardo da silva, permitindo também uma reflexão acerca dos
elementos estéticos e morais que compõem a imagem de Lampião que os representa no
imagináririo social.

Foi possível perceber que Lampião estar representado de diferentes formas, pois,
hora descrito como bandido assassino hora como valente e causador de admiração nas
pessoas, generoso, e celebre. Percebemos que os cordéis das primeiras décadas do século
XX já retratam a ambiguidade de sua figura, pois, o mesmo folheto pode apresentar o bem
e o mal do nosso personagem, como por exemplo, no cordel anteriormente mencionado
Lampião em Villa Bella, em que nosso personagem é apresentado com o termo bandido
desgraçado e ao mesmo tempo fala de seu bom coração. Neste artigo também houve a
possibilidade de analise com relação o cordel foi utilizado pelo próprio lampião para falar
de mesmo.

Portanto, diante da questão que se faz presente neste artigo que consiste em
procurar perceber a imagem de lampião no cordel e os elementos do cangaço que fazem
parte da cultura do Nordeste. Podemos concluir que o cordel foi um veiculo importante
pelo qual foi possível divulgar a imagem de lampião e seu bando, com riquezas de
detalhes, numa linguagem compreensível. E que a cultura nordestina sob o ponto de vista
de representar o nordestino se valeu de características atribuídas aos cangaceiros, ou seja,
seu valor moral de valentia e honra como também de seus elementos estéticos.

BIBLIOGRAFIA

ABREU, Márcia Azevedo de. Histórias de cordéis e folhetos. Campinas: Mercado das
Letras. 1999.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

ABREU, Márcia Azevedo de. Cordel português/ folhetos nordestinos: confronto um


estudo histórico- comparativo. Campinas, UNICAMP, 1993.
ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes.
São Paulo: Cortez, 2011.
CERTEAU, Michel de. A operação Histórica. In: A escrita da História. Editora Forense
Universitária, 2002.
GRILLO, Maria Ângela de Faria. A Arte do Povo: Histórias na literatura de cordel
(1900-1940). Tese de doutorado em História social – UFF-RJ. Niterói. 2005.
HATA, Luli. O cordel das feiras às galerias. Dissertação de Mestrado, Universidade
Estadual de campinas, 1999.
MELO Rosilene Alves de. Arcanos do verso: trajetórias da literatura de cordel. Rio de
Janeiro: 7letras, 2010.
PESAVENTO, Sandra Jatahy. História e história cultural. Belo Horizonte: Autentica
2005
REIS, José Carlos. Escola dos Annales: A inovação em História. São Paulo: Paz e Terra,
2000.
SAFRÁNKAVÁ, Lucie, A literatura de cordel no Brasil. 2007.
SANTOS, Mariane Nascimento dos, As representações do nordeste e dos nordestinos
na literatura de cordel, Sergipe, 2014.
ACERVOS
Acervo de Cordel - SESC, Juazeiro do Norte.
Memorial Padre Cícero, Juazeiro do Norte.
FOLHETOS
ATHAYDE, João Martins de.
-Lampião em Villa bella.
SILVA, José Bernardo da Silva.
–Combate do defensor da honro com lampião o terror da morte.
–Lampião na Bahia.
-A morte de lampião.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

O EU E O OUTRO EM THE GLASS MENAGERIE

DAISE LILIAN FONSECA DIAS


UFCG

INTRODUÇÃO

Este artigo analisa aspectos da peça de estreia do dramaturgo estadunidense Tennessee


Williams (1915-1983), The glass managerie (1946), sob uma perspectiva póscolonial,
tendo em vista que não foram encontrados registros de análises desta obra neste viés
crítico-teórico. Um dos objetivos principais é discutir até que ponto a Literatura Americana
pode ser considerada ou não uma ―Literatura Póscolonial,‖ tendo em vista os padrões
utilizados por seus autores ao longo de sua história, os quais costumam reproduzir
ansiedades imperialistas herdadas da Metrópole Imperialista que os moldou, isto é, a
Inglaterra e seu arquivo literário, como ilustra o texto em apreço, através da representação
do ―eu‖ e do ―outro‖, de aspectos da cultura americana, e do olhar colonial para espaços
nacionais e internacionais.
A peça de Williams trata das dificuldades de uma família pobre do Sul dos Estados
Unidos, formada pela matriarca, Amanda, uma mulher envelhecida, abandonada pelo
marido e pobre que vive sustentada, a contra-gosto, pelo único filho e, por isto, ambos
estão em constantes conflitos, sobretudo porque o jovem Tom sente-se acuado na condição
provedor, embora anseie pela Europa, um mundo mais amplo e superior, na sua concepção.
A filha, Laura, é uma jovem deficiente física, afetada por esta razão, em sua vida
emocional também. Neste contexto, destaca-se a mentalidade imperialista apresentada
pelos dois primeiros personagens citados acima, e validada pelo texto como um todo,
conforme se verá adiante, o que ressalta e ilustra as ideologias imperialistas que se mantém
naquela sociedade no século XX.

PÓSCOLONIALISMO E LITERATURA
Said (2003) observa que 84,5% do planeta terra foi colonizado por impérios
europeus. Diante disso, observa-se uma cadeia quase que interminável de relações
internacionais que moldaram a literatura ocidental. Os autores do período do império
romano, por exemplo, olhavam para a literatura grega como padrão a ser seguido, e como
boa parte do mundo foi, posteriormente, colonizada pelos romanos, foi neles que os

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

europeus passaram a buscar fonte de inspiração após as desavenças iniciais típicas de um


processo de enfretamento de um povo invasor, como no caso da Inglaterra. O romance O
coração das trevas (1899), do escritor ucraniano Joseph Conrad, escrito em inglês e
considerado Literatura Inglesa, lembra sutilmente o passado romano na formação da nação
inglesa, ao tratar inclusive das investidas imperialistas inglesas no Congo, retratando as
práticas imperialistas inglesas herdadas dos romanos.
É para estes ingleses que os americanos, por sua vez, se voltam, conforme mostram
obras que vão do século XIX, por exemplo, ao século XX, como no caso de O grande
Gatsby (1928), cuja representação da Europa é feita com base em um discurso imperialista
que envolve, inclusive, relações hierárquicas espaciais (DIAS, 2016). Apesar das
investidas do Império Francês nos Estados Unidos, é para eles que os americanos também
recorrem e o legado que deixaram ali, no caso daqueles que chegaram à nova nação ao se
instalarem, sobretudo na região Sul, como mostra o romance O despertar (1899), de Kate
Chopin, assim como muitas das obras de Tennessee Williams, dentre elas, The glass
menagerie.
Não há dúvida de que a Literatura Caribenha e a Literatura Africana sejam
póscoloniais, especialmente porque o sentido do termo ―Póscolonial‖ não está limitado à
questão temporal, como parece sugerir o próprio nome. Ele significa, sobretudo,
contestação. Nesse sentido, um autor de uma metrópole imperialista também pode produzir
uma obra de caráter póscolonial, como advoga Dias (2015), acerca da escritora inglesa
Emily Brontë em seu único romance, O morro dos ventos uivantes (1847), no qual
promove um imperialismo de forma reversa através do seu protagonista de origem não
definida, porém de pele escura, Heathcliff.
Todavia, a Literatura Escocesa, a Irlandesa e a Australiana, por exemplo, ocupam
lugares fronteiriços no âmbito das discussões póscoloniais, sobretudo porque tendo sido
praticamente apagado o seu passado nacional celta, no caso das duas primeiras, e o passado
aborígene, no caso da última, elas tem projeção mundial graças a autores brancos e de
classe média, o mesmo perfil dos ingleses que os colonizaram, e dos quais são
descendentes. Naturalmente que o passado celta em comum da Escócia e da Irlanda
encontrou no Movimento Dramático Irlandês uma notória expressividade mundial, visto
que foram produzidos textos não apenas limitados às questões nacionalistas.
Na verdade, o passado pré-invasão inglesa dessas nações tem tido maior destaque
na atualidade, ainda que de certo modo, permanecendo à margem da literatura de

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

influência majoritariamente inglesa, como é o caso dos aborígenes na Austrália. Assim,


essas literaturas tem tido seu caráter híbrido destacado nesse contexto de estudos
póscoloniais. Em virtude disso, os idiomas que as moldaram como o gaélico e o inglês, por
exemplo, convivem arduamente junto com costumes e crenças que, ao longo de muitos
séculos, foram duramente reprimidos pelos ingleses que os dominam(vam), como mostra o
romance autobiográfico O retrato de um artista quando jovem (1916), no qual James Joyce
retrata um episódio que presenciou na sua infância: um garoto ser punido fisicamente por
ter falado em gaélico, o idioma original dos celtas – isto ocorre de modo aparentemente
irrefletido, já que Joyce não era um autor ―engajado‖ na causa nacionalista irlandesa da
forma como muitos gostariam.
No caso da literatura americana, questões de natureza colonialista podem ser
encontradas também de modo peculiar. Observa-se nela um fascínio pelo que faz parte de
países europeus considerados superiores e que, portanto, merecem ser imitados, a exemplo
da cultura inglesa e da francesa. Todavia, ambientes de fora do eixo anglo-americano são
retratados de modo negativo. The glass menagerie ilustra ambas as tendências, de modo
que nela encontra-se a representação dúbia de espaços eurocêntricos em detrimento do
México. Enquanto a Europa é almejada pelo protagonista, Tom, o México é retratado como
um ambiente dionisíaco, perfeito para prostituição e indivíduos foras-da-lei.
Com relação a nativos de determinadas nações colonizadas ou indivíduos vítimas
de processos de colonização interna, como os diaspóricos africanos e seus descendentes,
Bonnicci (2000) destaca que, em muitos casos, é possível observar-se um padrão na
literatura produzida pela mentalidade colonial que é o apagamento de vestígios de nativos
em referência ao espaço colonizado. Esta estratégia funcionaria como uma maneira para
que o colonizador fosse isento de responsabilidades em relação aos desdobramentos da
invasão. Isto significa que se a terra era ―vazia‖, ela estaria ―disponìvel‖ para a potência
europeia que a ―descobrisse‖, como ocorreu com a Austrália. Além disso, não haveria
resistência por parte de ninguém para que a posse do território fosse efetivada e validada.
Não havendo resistência, não haveria a necessidade de se empreender violência contra os
habitantes nativos. Isto resultou em estratégias literárias: a omissão de nativos nas obras
produzidas pelos colonizadores; breves menções a eles; a representação deles de modo
enviesado e depreciativo. Em tempos póscoloniais, estas tendências foram adaptadas,
como se verá no texto de Williams.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Estes procedimentos ideológicos não foram aplicados apenas para que se ocultasse
tanto a presença de nativos quanto a consequente ilegalidade do domínio colonial. Eles
foram utilizados com nova roupagem, para se minimizar a presença do controle
imperialista sobre a colônia, bem como o processo de exploração das riquezas nativas e a
―dependência‖ europeia de terras coloniais, bem como a utilização do trabalho escravo - ou
semi-escravo, conforme ocorreu no período imediato à abolição da escravatura, questão
que pode ser inferida na peça em apreço.
Portanto, pode-se constatar que o que aparece e como aparece no texto literário
neste contexto das relações coloniais, revela o uso sistemático de padrões ideológicos que
tanto serviam para mascarar questões morais no que se refere aos horrores do processo
colonizador, como também para minimizar a importância de determinados elementos
―necessários‖, porém incômodos para os colonizadores, a exemplo dos escravos e seus
descentes. Diz ―necessários‖ porque o foram para a formação ou manutenção do status
social elevado de muitos, porém ―incômodos‖, em virtude das discussões levantadas por
setores das sociedades colonizadoras acerca das atrocidades impostas pelos colonizadores
a tais figuras.

A OUTREMIZAÇÃO DA FIGURA DO NEGRO


Diante do exposto, pode-se questionar a relação dessas considerações acima com o
texto em estudo, sendo ele uma produção estadunidense do final da primeira metade do
século XX. Na verdade, as estratégias imperialistas mencionadas acima podem ser
observadas em textos literários de tempos posteriores ao processo colonizador, porém com
abordagens, reformadas, em muitos casos. Segundo Foucault (2009), o discurso subverte a
si mesmo, isto significa que quando se fala ou se escreve, produz-se consciente e
inconscientemente informações que, por vezes, precisavam ficar em oculto ou mascaradas.
É sobre elas que os Estudos Póscoloniais se voltam, ressaltando-as e destacando o que nem
sempre está em evidência, sobretudo no texto literário.
No caso de The glass menagerie, é possível identificar padrões ideológicos
tipicamente herdados da mentalidade imperialista inglesa, conforme visto na literatura
daquela metrópole colonialista, a Inglaterra. Logo de início, tem-se a clássica temática da
subalternidade do negro, este, ausente enquanto personagem, mas por demais presente
devido às constantes referências pejorativas à sua pessoa, sobretudo por parte de Amanda,
a matriarca da famìlia Wingfield: ―LAURA: EU trarei o blanc mange. [...] AMANDA

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

(erguendo-se). Não, irmã, não, irmã – você seja a dama desta vez e eu serei a negrinha‖
(WILLIAMS, 1949, p. 4; todas as traduções desta peça são de nossa autoria, visto que não
há traduções oficiais dela para a Língua Portuguesa).
Césaire (1978) revela que fazia parte da mentalidade colonialista fabricar, via
divisão de raças e classes, grupos específicos para a classe trabalhadora, como os negros e
determinados grupos étnicos, tais como chineses. Nesse sentido, é possível perceber no
texto de Williams esta questão. Merece destaque o fato de que o espaço em que o enredo
se desenrola é o Sul dos Estados Unidos, lugar que representa o hibridismo característico
daquele país, sobretudo pela mistura predominante de ingleses, franceses e afro-
descendentes, por exemplo, em virtude da presença elevada de escravos que para ali foram
levados, devido à natureza propícia para a agricultura daquela região, diferente dos frios
estados do norte.
A citação acima ilustra este hibridismo cultural que ainda predomina(va) naquela
nação, embora a figura da serviçal negra aludida seja trazida à lume via silenciamento,
sobretudo porque afro-descendentes nesta obra aparecem apenas como fantasmas de um
passado visto como glorioso para Amanda. Eles são fantasmas por serem tratados com
insensível invisibilidade e também por assombrarem o presente de total decadência
financeira da matriarca. A citação também ilustra o fato de que a figura da mulher negra é
trazida à memória pela lembrança da classe social a qual fazia parte, ou seja, a de serviçal,
subalternizada pelo poder branco hegemônico que a cercava e lhe determinava a esfera de
atuação, castrando-lhe outras possibilidades no sentido profissional, financeiro e social,
devido ao preconceito racial. Isto ilustra a quase impossibilidade, naquele ponto da
história, para alguém em tal condição social, ascender socialmente.
A citação a seguir mostra outra questão, o uso de um linguajar depreciativo para se
fazer referência aos afro-americanos:
AMANDA: Um domingo à tarde in Blue Mountain – sua mãe recebeu – dezessete!
– pretendentes! Bem, às vezes não havia cadeiras suficientes para acomodá-los.
Nós tínhamos que mandar um nego trazer cadeiras da capela (WILLIAMS, 1949,
p. 5; grifo nosso).
No original em inglês ela diz ―nigger‖, isto é, ―nego‖, palavra que expressa um
sentido pejorativo que a tradução para a língua portuguesa não permite expressar
plenamente.
É importante considerar que o enredo da peça se passa cerca de 10 anos antes da
ação dramática, ou seja, na década de 1930, período da Grande Depressão Americana,
todavia, Amanda, criada no contexto imediato à abolição da escravatura, não se

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desvencilhou de hábitos escravagistas que ainda ressoavam àquela altura de sua vida na
sua prática discursiva:
AMANDA: No Sul nós tínhamos tantos serviçais. Passou, passou, passou. Tudo
vestígios de uma vida graciosa. Passou completamente! Eu não estava preparada
para o que o futuro me trouxe. Todos os meus pretendentes eram filhos de
fazendeiros e então, claro, eu imaginava que me casaria com um e constituiria
minha família em um grande pedaço de terra cheio de serviçais (WILLIAMS,
1949, p. 26).
Observa-se aqui que o discurso saudosista de Amanda é marcado pela experiência
da falta, da perda de um passado irrecuperável, no qual a figura do afro-americano lhe era
fundamental pelo papel que desempenhava no universo das relações de raça e classe. Isto
mostra os desdobramentos do processo colonizador empreendido contra a figura do negro
– fica implícito que esses serviçais são afro-americanos quando se considera seu discurso
como um todo acerca de empregados domésticos - dentro da metrópole imperialista
americana, os quais para ali foram trazidos como animais de carga para realizar o trabalho
pesado, notadamente na área da agricultura.
Merece destaque o fato de que o texto de Williams foi escrito quase cem anos após
a ―libertação‖ dos escravos nos Estados Unidos, mas ainda revela o quanto aquele processo
de ―libertação‖ continuava sendo visto como um gesto que, pode-se dizer, continuava
sendo, de certo modo, ―simbólico‖, sobretudo porque aqueles indivìduos permaneceram
escravos de uma construção ideológica que os aprisionou na própria cor e em uma
condição social, em contraste com uma minoria branca que continuava a dominá-los pelo
poder do discurso racista e da manutenção deles na condição de subalternos, isto é, na
classe trabalhadora, sem perspectivas favoráveis de mudanças, naquele ponto da história,
em relação ao Sonho Americano que desde a colonização americana foi propagado como
sendo ―para todos‖ que ali chegassem.
Observa-se que essas figuras remanescentes da escravidão são apresentadas na obra
como serem invisíveis que rondavam de maneira serviçal e silenciosa as famílias brancas
que precisam deles para se verem como superiores. A nostalgia imperialista de Amanda
reforça a inexistência desses indivíduos enquanto personagens da obra, uma vez que são
retratados sem existência própria nem voz ativa, de modo que eles são apenas construídos
e significados pelo olhar e mentalidade do branco americano, acostumados a dominá-los e,
por eles, serem servidos.

A REPRESENTAÇÃO DA LÍNGUA FRANCESA

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

A língua francesa e as influências daquela cultura europeia são por demais vistas na
literatura americana, notadamente pelo fato histórico da presença de imigrantes franceses
no sul dos Estados Unidos, região onde nasceu e sobre a qual escreveu Tennessee
Williams. Uma das características da poética do autor é exatamente o uso daquele idioma.
Por esta razão, um personagem recorrente nas obras de Williams é a Southern Belle [A
Bela do Sul], aqui ilustrada por Amanda, um termo que designa um personagem histórico,
típico da região sul: uma moça americana, branca, bonita e rica, geralmente filha de
fazendeiros locais, com a qual jovens ricos desejavam casar-se. Ela é um símbolo do Sul,
de sua riqueza e prosperidade material. Seu nome é em francês exatamente porque aquele
idioma e cultura francesa se fixaram no imaginário local e nacional como sinônimo de
refinamento, beleza, erudição, ou seja, de tudo o que é visto como elevado acima da média
e merece ser imitado.
Entretanto, esta representação e compreensão acerca da Southern Belle mudou com
os desdobramentos da Guerra Civil Americana (1861-65), especialmente porque o Sul foi
devastado por aquele conflito bélico em seu território, vindo a ser durante muitas décadas
ainda, o oposto do que havia sido por séculos, isto é, um lugar de riqueza, beleza e
progresso. Sendo a Southern Belle um símbolo da região, tanto aquele ambiente como seu
símbolo passaram a ser vistos pelo consciente coletivo e representados na literatura
americana de forma oposta após a Guerra Civil, ambos passando a representar degradação,
pobreza, envelhecimento, a exemplo da protagonista que dá nome ao conto ―A rose for
Emily‖ (1930), de William Faulkner e Scarlet O‘Hara em E o vento levou (1939), de
Margareth Mitchel, obra citada em The glass managerie. Na verdade, o próprio título da
peça contém uma palavra em francês. Desta vez, o uso de tal idioma tem por finalidade
retratar a delicadeza e a fragilidade feminina, num sentido positivo, tanto dos objetos de
vidro colecionados pela irmã do protagonista, Laura, quanto ela mesma, débil física,
mental e emocionalmente.
Dessa forma, pode-se perceber que o amplo uso deste idioma que é visto na peça
em apreço resgata e mantém um passado valorizado pelos americanos que incorporaram
aquela cultura estrangeira à sua, vendo-a, de certo modo, como superior a sua, porém
tratando-a em pé de igualdade com sua própria cultura em formação, assimilando-a e
tornando-a parte da identidade local, um comportamento ambíguo que oscila entre uma
baixa auto-estima e um complexo de superioridade/inferioridade de uma ex-colônia em
busca de auto-afirmação. Apesar do hibridismo característico da região, esta estratégia de

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se manter apenas elementos de culturas tidas como imitáveis, no caso, a francesa, em


especial, revela a hierarquia ideológica que controlava a nova nação e que perdurou até o
século XX, como mostra a peça de Williams em estudo.
The glass menagerie retrata o quanto a língua francesa foi incorporada ao dia a dia
daquela região sulista: ―AMANDA: Havia os irmãos Crutere, Wesley e Bates. Bates era
um dos mais brilhantes e particulares beaux‖ (WILLIAMS, 1949, p. 5), e ―AMANDA: Há
lua hoje à noite? TOM: Está subindo pela Delicatessen de Garfinkel‖ (WILLIAMS, 1949,
p. 17; grifos nossos). Esta necessidade de se recorrer e valorizar elementos tipicamente
europeus, seja idioma ou qualquer outra manifestação cultural, é um comportamento típico
de uma colônia em busca de se apropriar do que é considerado superior a si mesmo para
ascender no próprio imaginário e no imaginário mundial, afirmando-se interna e
externamente na busca pela própria identidade nacional. Nota-se, portanto, um
comportamento ambíguo do povo americano retratado por Williams: ao passo em que se
tornaram uma metrópole imperialista, aquela nação carrega consigo a marca de ter
―surgido‖ como uma colônia inglesa, aliando-se ao que havia ―de melhor‖, no caso, a
aspectos da cultura francesa, conhecida no mundo como o padrão máximo de tudo que se
pode chamar de ―civilizado‖. Por razões ideológicas, o mesmo não ocorreu em relação às
culturas africanas que também fazem parte da herança cultural estadunidense. Assim, a
formação da cultura americana por mais que seja híbrida, sua literatura revela o quanto ela,
historicamente, tenta excluir ou apagar vestígios de interferências que não lhe agregariam o
tipo de valor que ela deseja(va) para si.
Outra referência à cultura francesa merece destaque:
(Enquanto TOM entra de modo indiferente para tomar um café, ela vira as costas
para ele e fica em pé olhando para a janela [...] Sua luz no rosto dela envelhecida,
mas infantilizada é cruelmente certeira, satírica como um desenho de Daumier.)
(WILLIAMS, 1949, p. 13).
Daumier foi um renomado desenhista francês. Aparentemente, o propósito de
Williams é utilizar-se da dramaticidade expressa nos desenhos daquele artista para ironizar
o drama que Amanda faz em relação a tudo que deseja ressaltar nas suas orientações para
com os filhos. Entretanto, com tantos artistas disponíveis para se utilizar a propósito de tal
ilustração, a escolha por um de nacionalidade francesa não é gratuita. O autor o utiliza para
compor o universo de influência francesa na obra.

IRONIAS DO SONHO AMERICANO E UTOPIAS DE COLONIZAÇÃO

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The glass menagerie destaca utopias de colonização que foram fabricadas para
moldar o que viria a ser os Estados Unidos e destaca a grandeza nacional através dos feitos
de alguns dos seus mais ilustres cidadãos, Benjamim Franklin e Thomas Edison, ambos
inventores que mudaram o mundo com suas descobertas cientìficas: ―AMANDA:
Eletricidade não é uma coisa misteriosa? Não foi Benjamim Franklin que amarrou uma
chave a uma pipa? [...] O Sr. Edison fez a lâmpada Mazda‖ (WILLIAMS, 1949, p. 27).
Esta citação ressalta o desejo de afirmação e poder, bem como a contribuição daquele país
para a ciência mundial, o que o insere no panteão desejado de conquistas científicas no
mesmo nível daquelas tão comumente realizadas no Velho Mundo.
Sendo liberdade, igualdade e oportunidade “para todos”, o lema do propagado
Sonho Americano por ocasião da formação daquela nação, tais características se fixaram
no imaginário universal e nacional, de modo que, como mostra a peça em tela, o homem
americano continua, desde a colonização, sendo visto como empreendedor, capaz de
trabalhar arduamente para atingir o sucesso financeiro, conforme está ressaltado na peça.
Ao se referir a um antigo conhecido do Sul, Amanda observa: ―Aquele garoto Fitzhugh foi
para o Norte e fez uma fortuna – veio a ser conhecido como o Lobo de Wall Street! Ele
tinha o toque de Midas, tudo que ele tocava virava ouro‖ (WILLIAMS, 1949, p. 5). Este é
um típico homem americano, exaltado em suas conquistas financeiras e capacidade de
progredir financeiramente. Um homem digno de imitação.
Sendo a personagem que encarna e mais propaga os ideais do Sonho Americano,
incutindo-o nos filhos, Amanda impõe a filha Laura estudar numa escola técnica em busca
de ascensão financeira, já que agora ela mal consegue sobreviver com a família, somando-
se ao estresse de ter Tom sempre ameaçando abandoná-las, como seu pai o fizera anos
antes da ação dramática. Ironicamente, aquele Sonho foi perdido por Amanda após o
casamento desastroso com um homem pobre que a abandonou com dois filhos. Entretanto,
a matriarca estimula ambos a irem adiante e não se tornarem pessoas dependentes como
ela, que, enquanto jovem rica, não se preparou para o futuro qualificando-se
profissionalmente, uma vez que depositou suas expectativas apenas em um ―bom‖
casamento. Assim, na busca por um pretendente para Laura, a obra destaca que Jim é o
típico descendente de imigrante (irlandês) em busca de progresso:
TOM: Ele estuda em uma escola noturna. AMANDA (brilhando). Esplêndido! O
que ele faz, quer dizer, estuda? TOM: Engenharia de Rádio e Oratória!
AMANDA: Então ele tem planos de progredir neste mundo. [...] Ambos os fatos
são iluminadores. Estas são o tipo de coisa que uma mãe deve saber em relação a
qualquer jovem pretendente de sua filha (WILLIAMS, 1949, p. 19).

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Jim representa o típico homem americano de visão, em busca de um futuro no


mundo moderno e avançado tecnologicamente de sua nação:
JIM: Eu tenho aptidão para a ciência [...] Tenho interesse em eletrodinâmica [...]
Porque eu acredito no futuro da televisão [...] (Os olhos dele estão estrelados.)
Conhecimento – Zzzzzp! Dinheiro – Zzzzzp! – Poder‖ (WILLIAMS, 1949, p. 31 e
32).
Na verdade, por mais que os irlandeses tenham sido vítimas de preconceito tanto
dentro da Grã-Bretanha, Austrália e Estados Unidos desde as primeiras incursões deles
para aqueles países, especialmente pelo fato de que a Irlanda foi a primeira colônia inglesa,
The glass menagerie mostra uma tendência na literatura americana: a de retratar imigrantes
brancos e de origem européia e/ou seus descendentes assimilando a cultura hegemônica
local, seduzidos e rendendo-se a ela e, consequentemente, sendo por ela assimilado,
diferente do que ocorre com os afro-descendentes neste contexto. Tornar-se nativo [going
native] é algo desencorajado no contexto das relações coloniais porque isto implica que o
imigrante branco se tornaria um indígena ao assimilar a cultura local, mas tornar-se
americano é algo recomendável. Jim ilustra esta questão de modo tal que se torna um
símbolo do homem americano, movido pelos ideais do Sonho Americano, o perfeito
pretendente para uma filha de Amanda.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conforme pode ser observado, The glass menagerie revela aspectos de uma
sociedade que surge como periférica, derivando suas noções sobre as relações entre o ―eu‖
e o ―outro‖ em termos do que é valioso e viável, com referências que ainda permanecem
―externas‖, isto é, internacionais, no século XX, no caso, aquelas culturas consideras
dignas de imitação, na busca pela afirmação e manutenção da própria identidade que não
se aceita devidamente enquanto múltipla, isto é, como formada por raças diversas. Aqui, a
―diglossia‖ só é reconhecida e validada se for efetivada entre correspondentes europeus
como línguas de contato (o inglês e o francês). Isto ressalta rasuras de uma zona de contato
cultural caracterizada por uma visão de ―contato‖ divergente no que diz respeito aos
subalternos (no caso, os negros), significando, nesse sentido, ―eu mando e você obedece‖
de forma silenciosa, subserviente e invisível.

REFERÊNCIAS

BONNICI, Thomas. Literatura e pós-colonialismo: estratégias de leitura. Maringá: UEM, 2000.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre o colonialismo. Trad. de Noêmia de Sousa. Lisboa: Sá da Costa,
1978.

DÖRING, Tobias. Postcolonial literatures in English. Sttutgart: Klett, 2008.

DIAS, Daise Lilian Fonseca. A subversão das relações coloniais em O morro dos ventos
uivantes: questões de gênero. Campina Grande: EDUFCG, 2015.

DIAS, Daise Lilian Fonseca. O discurso imperialista em O grande Gatsby. In:


VASCONCELOS, Arlene Fernandes et al. Anais Eletrônicos do II Encontro Nacional
de Estética, Literatura e Filosofia: Romantismo, desdobramentos contemporâneos. Vol
1. Fortaleza: Departamento de Letras da Universidade Federal do Ceará, 2016.

FANON, Franz. Pele negra, máscaras brancas. Trad. de Maria Adriana da Silva Caldas. Rio de
Janeiro: Fator, 1983.

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Trad. de Laura Fraga de Almeida Sampaio. São
Paulo: Edições Loyola, 2009.

SAID, Edward W. Orientalism. 25th anniversary edition.New York: Vintage Books, 2003.

WILLIAMS, Tennessee. The glass managerie. New York: A Signet Book, 1949.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

SESSÃO COORDENADA “ENSINO DE HISTÓRIA”


COORDENADORES:
ELIANA DE SOUSA ROLIM & ISRAEL SOARES DE SOUSA

ENSINO DE HISTÓRIA E INCLUSÃO: DIÁLOGOS SOBRE A EDUCAÇÃO


INCLUSIVA

JEFFERSON FERNANDES DE AQUINO


PIBID/UFCG
[email protected]

RESUMO

É comum se ouvir falar em inclusão, sobretudo nas escolas. Isto se deve por causa de uma
série de políticas públicas que promoveram o acesso à escola e, em muitos casos até a
educação para pessoas com deficiência, adaptando-se ao seu mundo. Assim, não é estranho
se observar alunos com cegueira, surdez, paralisia, dentre outras pelos corredores das
escolas brasileiras. Entretanto, cabe-nos refletir, o que um professor, especialmente, o de
História, pode fazer para melhorar e desenvolver seu aluno? O presente estudo visa
dialogar sobre isso, com profissionais já atuantes na área e, sobretudo com os futuros
docentes a fim de construir um espaço mais inclusivo em nossas salas de aula. Para tanto
objetivamos, neste texto, traçar um caminho que converse sobre as práticas pedagógicas, o
ensino de história e a convivência com o aluno com deficiência.
Palavras-chave: Ensino de História; Inclusão; Práticas Educativas.

INTRODUÇÃO

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Há escolas que são gaiolas e há escolas que são asas.


Rubem Alves

Iniciamos nosso estudo partindo de um questionamento simples e que soma à fala


de Rubem Alves. Afinal, o que nos faz professores? O que nos instiga a buscar a resposta
para tal pergunta reside na essência da educação.
Educar, segundo o dicionário online11, ―é a ação de promover a educação... no
sentido mais amplo educar é socializar‖. Desta forma, o ato de educar invade o universo do
outro no que se refere a troca de informações. Afinal, educar é ensinar, transmitir
conhecimento, desenvolver e orientar as aptidões, é capacitar a criança/jovem para a vida
em sociedade.
Então, dessa forma, o papel do professor é muito mais ampla do que apenas
repassar aquilo que aprendeu ao longo do tempo; o que, em outras palavras seria, jogar na
cabeça do indivíduo fórmulas, dados, datas, entre outros.
Para falar a verdade, o sentido de educação vem sendo moldado ao longo dos anos
e as relações entre alunos e professores tendem a estreitar ainda mais ao transcorrer desse
processo. E é onde reside a essência da educação inclusiva.
Ao pensar este estudo, procuramos compreender como as relações entre o professor
de História e um aluno com deficiência podem se manifestar em sala de aula, visto que,
segundo a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva
(2008), se expressa com o:

[...] objetivo assegurar a inclusão escolar de alunos com deficiência,


transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação,
orientando os sistemas de ensino para garantir: acesso ao ensino regular,
com participação, aprendizagem e continuidade nos níveis mais elevados
do ensino; transversalidade da modalidade de educação especial desde a
educação infantil até a educação superior; oferta do atendimento
educacional especializado; formação de professores para o atendimento
educacional especializado e demais profissionais da educação para a
inclusão; participação da família e da comunidade; acessibilidade
arquitetônica, nos transportes, nos mobiliários, nas comunicações e
informação; e articulação intersetorial na implementação das políticas
públicas. (BRASIL, 2008, p. 14).

11
Disponível em: <https://www.significados.com.br/educar/>. Acesso em 28 set 2017.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Com isso, é sabido dizer que a escola, quando inclusiva, abrange a todos os seus
setores, como garantia do direito de ir e vir de quaisquer cidadãos.
O fato é que historicamente a pessoa com deficiência vem sendo tratada como
alguma coisa na sociedade e a ela era imputada uma condição de ―coitadinha‖, de ―pena‖,
quando não visto como caso de tratamento médico.
A grande logística da educação inclusiva é promover uma sociedade inclusiva.
Partindo do pressuposto que tudo inicia na escola, esta é a primeira a receber a
incumbência de promover a socialização desses indivíduos e, para isto recebe subsídios
para adequar as suas estruturas, capacitar os profissionais envolvidos no processo, entre
outros.
Incluir, significa ―por dentro de‖, ―juntar(-se)‖, ―inserir(-se)‖. No campo da
educação, incluir é promover ações que garantam a igualdade de direitos, ao tempo que
estimular as habilidades de um aluno com quaisquer deficiências, a fim de garantir a sua
autonomia em atividades cotidianas.
Quando falamos em deficiência, nos referimos, geralmente a ausência de algo. Por
isso que, ao tratar de uma pessoa que ―não seja normal‖ 12, o correto é se chamar pessoa
com deficiência, pois para ela, a ausência de alguma habilidade – quer seja visual,
auditiva, intelectual, etc. – não a torna diferente de nós, anormal, uma ―aberração‖, como
se sustentou por anos, quando estudos com esses indivíduos não eram estimulados.
O processo de inclusão é marcado por ações que visem promover a autonomia,
como bem já dissemos, do indivíduo frente às ações cotidianas. Embora isto soe como uma
―limitação‖ do ensino à pessoa com deficiência, o ato de se afirmar que a escolarização
desses indivíduos objetivem a sua autonomia implica na vastidão desse universo, mas não
impede que um cego, um surdo, um deficiente físico, por exemplo, galguem voos maiores,
mas que, para que o processo de ensino e aprendizagem aconteça, se faz necessário adotar
ações que primem por esse objetivo.
É preciso conhecer a realidade de cada aluno para que as metodologias aplicadas
surtam o efeito desejado, visto que para cada deficiência existem tecnologias e
metodologias específicas que auxiliam o professor em um dado conteúdo.

12
O termo entre aspas refere-se a uma forma não usual de tratar as pessoas: como ―normais‖, para sem
deficiência e ―anormais‖ ou por meio de algum estereótipo para àquelas que possuem quaisquer deficiências.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Por outro lado se faz necessário que o professor compreenda o seu papel enquanto
agente promotor de uma aprendizagem e busque soluções para os seus alunos, promovendo
a ação integrada de alunos, o diálogo com outros profissionais da turma e do Atendimento
Educacional Especializado (AEE).

DA ARTE DE ENSINAR HISTÓRIA À FORMAÇÃO DO CIDADÃO: UMA


DISCURSÃO SOBRE O ENSINO DE HISTÓRIA PARA ALUNOS COM
DEFICIÊNCIA.

Bem sabemos que as práticas pedagógicas que envolvem a disciplina de História


estão ligadas ao estudo do tempo e das ações humanas ao longo dele. Lógico que esta não é
uma definição finita da História e seus fins, bem como de seu ensino, mas nos propicia
nortear uma discussão.
Assim, no que se refere ao ensino de História pelo que preconiza os Parâmetros
Curriculares Nacionais (1998) e a Lei de Diretrizes e Base da Educação Brasileira (LDB,
Lei nº 9394/1996) (1996) este componente curricular chega à sala de aula com um objetivo
bem simples, ao tempo que é muito complexo: formar para o exercício da cidadania.
No que tange o campo da historiografia, podemos afirmar que a História sempre
buscou criar a sua própria identidade como ciência e, no campo educacional, como
disciplina. Segundo Fonseca (2011):

A trajetória da História ensinada nas escolas não corresponde,


necessariamente, à da História do campo do conhecimento, mesmo
porque, durante muito tempo [...] parte dela confundiu-se com a história
sagrada, isto é com a história bíblica, que era ensinada nas escolas onde a
influência das igrejas cristãs era significativa. A história ―profana‖,
principalmente sobre a Antiguidade, chegava a aparecer, por meio dos
textos clássicos. [...] A afirmação das identidades nacionais e a
legitimação dos poderes políticos fizeram com que a História ocupasse
posição central no conjunto de disciplinas escolares [...]. (FONSCECA,
2011, p.21-22;24)

A partir da fala de Fonseca, podemos compreender melhor como a História foi se


consolidando, tanto no campo científico quanto no espaço escolar, sendo atribuída, a ela,
uma missão de formar o cidadão por meio da identidade.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

O ser cidadão, como já bem discutido nas linhas deste estudo, além de objetivo da
disciplina História segundo os documentos oficiais da educação brasileira, é bem enfocado
a partir das lutas sociais e construção da ideia de nação/povo brasileiro em face aos
processos que marcaram revoltas, transformações políticas e sociais de cada época vivida
em nosso país e no mundo.
Espera-se, portanto, que ao entrar em contato com esses processos, os alunos
possam se envolver, e até mesmo se identificar com alguns deles, levantando
questionamentos sobre algumas características da época, naquela tentativa de reafirmar que
o hoje é diferente, mas também pode ser semelhante.
Com isso, percebe-se que o aluno cria seu primeiro laço de identidade através da
história: a noção do certo e errado como extensão de um processo histórico. Exemplo disso
é discutir a questão das igualdades, racismo (como ato preconceituoso e criminoso), entre
outros temas. A própria presença do aluno com deficiência é um caso de direitos
adquiridos ao longo do tempo e que pode ser explorado pelo professor.
A escola, para Mantoan (2006), não é apenas um ambiente sob o qual todos tendem
a passar para aprender algo, mas devemos compreender o papel da escola na formação do
cidadão, tornando-o um membro efetivo da sociedade, seguindo a finalidade natural que é
―[...] educar para a liberdade, para a expressão máxima da capacidade de cada um e para a
cooperação e o entendimento entre as pessoas.‖ (MANTOAN, 2006, p.185).
Sob nossa ótica, somar ao convívio escolar crianças com características diferentes
permite aos alunos perceberem o mundo diversificado que eles vivem e entender essa
diversidade existente no globo, trabalhando de forma mais eficaz, conceitos como
cidadania, democracia, igualdade, de modo a derrubar barreiras construídas por séculos de
história excludente e compreendendo a variedade ético-racial, linguística distribuída por
toda a sociedade, ao mesmo tempo entendendo que, mesmo com diferenças, cada um é
capaz de ser independente.
Compreendemos também que a escola não pode, e nem deve ser constituída apenas
dos personagens que atuam diretamente no cenário escolar. Esta é a construção de vários
personagens e, para isto, necessita da atuação de todos para que a educação aconteça de
forma efetiva.
O processo de inclusão é marcado por ações que visem, como dissemos
anteriormente, promover a autonomia do indivíduo frente às ações cotidianas e no que se
refere ao papel do professor de História, este tem função primordial de conduzir tal aluno a

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

compreender os seus direitos enquanto cidadão, a partir de questões práticas que se


estendem as datações e processos históricos.
Assim, no que tange aplicação de metodologias para o ensino de História, o contato
inicial do professor da sala regular deve ser com o docente do Atendimento Educacional
Especializado, pois com a troca de informações entre ambos, temos a fórmula ideal para se
começar a construção de um plano com estratégias que visem a atingir não somente àquele
aluno com deficiência, mas todos os alunos. Isso é inclusão!
O Atendimento Educacional Especializado (AEE) é uma extensão da escola que
visa trabalhar com os alunos com deficiência que estejam (ou não) matriculados na escola.
Este, por sua vez tem como função, segundo a Resolução nº4/2009 que institui as diretrizes
operacionais para o AEE, citado em Bedaque (2015):

Art. 2º - O AEE tem como função complementar ou suplementar a


formação do aluno por meio da disponibilização de serviços, recursos de
acessibilidade e estratégias que eliminem as barreiras para sua plena
participação na sociedade e desenvolvimento de sua aprendizagem.
(BRASIL, 2009; in: BEDAQUE, 2015, p.28).

Ainda de acordo com a lei, o Atendimento Educacional Especializado independe da


origem do aluno no que tange o seu acompanhamento, ou seja, este é oferecido a todos
aqueles com deficiência e que estejam matriculados em alguma modalidade de ensino quer
seja na rede pública ou privada e sua oferta não substitui a sala de aula regular.
Com isso, a inclusão nas escolas é um processo que dever ser encarado no conjunto
e não apenas como responsabilidade de um só. Visto isto, devemos começar a
compreender o nosso papel enquanto docentes que seja na sala regular ou no AEE.
Conhecer os seus alunos é tarefa primordial para qualquer professor. Saber o
conteúdo a ser ministrado, suas dificuldades, suas habilidades permite ao professor
potencializar a dinamização dos conteúdos e sua aplicabilidade.
Como docentes temos, na sala regular que edificar um saber, fomentando as
descobertas e desbravamentos de cada aluno – quer seja ele com ou sem deficiência e
esteja isto desvinculado de qual metodologia será utilizada. Para isto, o professor deve,
antes de iniciar quaisquer planos, levar em consideração o seu próprio conhecimento
prévio da turma que será aplicada aquela atividade, afim de instiga-la a alcançar o saber
almejado.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

De modo que ter um aluno com deficiência em sala de aula não é tarefa fácil, nem
por isso impossível, mas ainda causa estranheza por parte de muitos profissionais que, por
vezes, se julgam inaptos a trabalhar, mas que, por um razão ou outra, aceitam a turma, mas
não buscam interagir com outros professores da turma e do AEE.
Mas, como bem afirmamos anteriormente, nem a educação, nem a inclusão são
processos individualistas, ambos necessitam de uma atuação conjunta. E tal afirmação nos
indica a resposta para um questionamento: como trabalhar com um aluno que tenha
quaisquer tipos de deficiência?
Segundo Bedaque (2015):

O trabalho colaborativo, segundo Vigotsky (1984,p.97), encontra-se


explicitado na sua principal teoria: a zona de desenvolvimento proximal
(ZDP). [...] Assim, a ZDP é ―algo coletivo‖. O trabalho desenvolvido em
colaboração com o outro possibilita transcender os limites dos indivíduos.
[...] Dessa forma, podemos considerar que a articulação entre o professor
de sala regular e o professor especializado pode ser uma ponte para que
os profissionais alcancem níveis de aprendizagem superior e os alunos
possam avançar no processo de aprendizagem. Nesse sentido, as
dimensões da colaboração precisam ser consideraras: professor
especialista e professor de sala comum; professor especialista e aluno;
professor de sala comum e aluno; aluno e aluno; aluno e demais membros
da escola. (BEDAQUE, 2015, p. 32)

Embora o Atendimento Educacional Especializado seja a resposta para o início de


uma ação conjunta para focalizar no aprendizado de um aluno com deficiência, a sala de
AEE não é um espaço burocrático, onde o indivíduo se reporta quando quer resolver um
problema. É um acompanhamento, uma extensão da sala de aula comum e, como extensão
deve levar as suas alegrias e lamúrias para os demais espaços que a escola oferece, a fim de
receber e compartilhar ideias para a melhoria da educação na escola como um todo.
Mais do que isso, cabe entender que a essência do trabalho colaborativo está não
apenas na atuação entre os docentes, mas no envolvimento de toda a comunidade escolar.
Focalizamos a essência do trabalho colaborativo, a importância da atuação junto
com o docente do AEE e todas as outras questões que permeiam o trabalho dentro da
educação inclusiva para justificar a essência desse estudo que, não se apresenta como um
manual de como se trabalhar com alunos com deficiência, mas que iluminam os caminhos
para que possamos garantir o direito desses indivíduos à educação.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Dentro do ensino da História, dos seus vastos temas, o professor pode, utilizando a
sua criatividade, somando a um diálogo prévio com o docente do AEE e algumas outras
tecnologias, oportunizar um aprendizado ao aluno com um tipo específico de deficiência.
Ao ensinar, por exemplo, numa turma de 7º ano do ensino fundamental, Expansão
Marítima, um professor de História geralmente busca se apegar aos mapas para
exemplificar as rotas marítimas, a importância do desbravamento de outros caminhos para
o Oriente, ou seja, utiliza-se de um instrumento além do convencional quadro e pincel (ou
giz) para ilustrar, na aula, o interesse dos europeus à época das grandes navegações.
Imaginando, nesta mesma sala de aula um aluno com deficiência visual, como
poderia o professor se utilizar do mesmo método? Uma solução imediata para isto seria
ver, junto com o professor do AEE, um mapa em alto relevo, ou, confeccionar um,
utilizando um mapa impresso e suas divisas – e no caso, também as rotas – com cola ou
outro material que faça o alto relevo.
Outra solução é utilizar uma das várias tecnologias assistivas 13 que podem auxiliar
o trabalho do professor. Uma delas foi desenvolvida pelo Instituto de Geociências e
Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista (UNESP) para as aulas de geografia. O
aplicativo MAPAVOX, segundo o site da universidade:

É um software desenvolvido para ser uma ferramenta complementar nas


aulas de geografia e cartografia aos alunos com deficiência visual, através
da utilização de maquetes táteis que representem cenários do mundo real.
Desenvolvido para ser utilizado em microcomputadores com sistema
operacional Windows 95 ou superior, ele possibilita a integração de
maquete tátil ao sistema de síntese de voz - DOSVOX, permitindo assim, a
emissão de sons, textos e imagens pré-programados e a criação e edição de
novos textos.
Bastante versáteis, as maquetes geradas acopladas a um computador
munido do programa MAPAVOX permite ao usuário programar a inserção
e emissão de informações sonoras sobre a área tocada. As informações são
acionadas por sensores presentes na maquete, que se conecta a um
microcomputador por meio do Mapavox. Desse modo, a transmissão dos
dados pode ser iniciada por meio de um toque do usuário ou pelos
comandos no micro. (Site: UNESP) 14

13
Sobre uma definição de Tecnologia Assistiva, Gonçalves e Furtado (2015) entendem que: ―A Tecnologia
Assistiva é uma área do conhecimento de característica interdisciplinar que tem por objetivo proporcionar à
pessoa com deficiência mais independência, qualidade de vida e inclusão social [...].‖ (GONÇALVES E
FURTADO, 2015, p.47).
14
Disponível em <http://www.rc.unesp.br/igce/ceapla/cartografiatatil/cartografia.php>. Acesso em 02 out
2017

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Embora o aplicativo seja voltado para aulas de Geografia, uma adaptação a este
sistema para atender a uma necessidade da disciplina de História é uma solução provável.
Sabemos, logicamente, que para cada tipo de deficiência são exigidas metodologias
e práticas – e até mesmo uso de recursos tecnológicos – diferentes, mas não nos cabe aqui
analisar cada tipo de tecnologia assistiva para cada tipo de deficiência.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A escola tem que ser esse lugar em que as crianças tem a oportunidade
de ser elas mesmas e onde as diferenças não sejam escondidas, mas
destacadas.
Mantoan

Todo processo de inclusão inicia com a própria inclusão dos docentes no universo
das pessoas com deficiência. O lidar com as diferenças é um grande desafio para quaisquer
pessoas.
O fato é que, muitas vezes, o diferente nos causa estranheza, porém não nos pode
causar o sentimento de pena e piedade. A nova geração de alunos já aprenderam a lidar
com essa diferença, cabe-nos, agora aprender a trabalhar com o diferente, ao tempo que
trabalhá-lo no coletivo.
As ações na sala de aula, devem ser promovidas para a inclusão, caso contrário,
cometeremos o pecado de apenas inserirmos esses indivíduos, não lhes proporcionando a
experiência do trabalho em grupo, das ações coletivas e, sobretudo, do aprendizado.
Um exemplo bem simples disso é quando um docente – independente do
componente curricular – agenda um trabalho em equipe. Geralmente, ao aluno com
deficiência sempre é negligenciado esse tipo de atividade, pois, na vil mentalidade do
professor esse, pelo simples fato de ser ―especial‖, já está aprovado. E não é assim que tem
que acontecer. Onde está o processo de aprendizado desse aluno? Onde fica a troca de
experiências, o momento da descoberta, do aprender algo novo?
Um professor não pode negligenciar o potencial de um aluno com deficiência.
Simplesmente não deve deixar passar despercebido um aluno com quaisquer tipos de
deficiência. E nem tampouco deve esquecer de seu papel como professor.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Aqui falamos de trabalho colaborativo, de tecnologias assistivas, de Atendimento


Educacional Especializado, além da própria ação do docente em sala de aula. Esse
conjunto, quando unido, promove mais do que a inclusão nas escolas... É capaz de
promover o desenvolvimento do aluno e a formação de um cidadão consciente.
Para nós, professores de História, formar um cidadão é mais que uma consequência
do nosso trabalho, é nossa missão segundo os documentos oficiais da educação brasileira,
por isso que se impute, ao ensino da História, uma melhor semelhança às temáticas
transversais. Como falar de direitos do homem e do cidadão, como abordar a ideia de
liberdade e igualdade se nós, enquanto docentes, negligenciarmos o próprio processo de
inclusão? Isso é, no mínimo, contraditório.
Por fim, nossa reflexão acerca do ensino de História e o processo de inclusão, gira
em torno do tripé: sala de aula/formação docente, Atendimento Educacional Especializado
e trabalho colaborativo. Sem esse tripé, sem essa combinação e troca de experiências e
informações, não há inclusão, nem educação.

REFERÊNCIAS

BEDAQUE, Selma Andrade de Paula. Atendimento Educacional Especializado.


EdUFERSA: Mossoró, 2015.

BRASIL. Lei de Diretrizes e Base da Educação Brasileira. Lei nº9394 de 20 de


dezembro de 1996. Disponível em:
<http://portal.mec.gov.br/seesp/arquivos/pdf/lei9394_ldbn1.pdf>. Acesso em 28 set 207.

_______. MEC. Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação


Inclusiva. Disponível em:
<http://portal.mec.gov.br/arquivos/pdf/politicaeducespecial.pdf>. Acesso em 28 set 2017.

_______. MEC. Secretaria de Ensino Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais:


História. Brasília: MEC/SEF, 1998.
FONSECA, Thais Nívia de Lima e. História e Ensino de História. 3ªed. Autêntica: Belo
Horizonte: 2011.

GONÇALVES, Maria de Jesus; FURTADO, Ulisses de Melo. Educação a Distância e


Tecnologia Assistiva. Mossoró: EdUFERSA, 2015.

HORN, Geraldo Balduíno; GERMINIARI, Geyso Dongley. O Ensino de História e seu


currículo: teoria e método. 3ª ed. Petrópolis: Vozes, 2010.

JESUS, Denyse Meyrelles de; EFFGEN, Ariadna Pereira Siqueira. Formação Docente e
Práticas Pedagógicas: conexões, possibilidades e tensões. In: MIRANDA, Theresinha

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Guimarães; FILHO, Teófilo Alves Galvão. (Orgs.). O professor e a educação inclusiva:


formação, práticas e lugares. Salvador: EDUFBA, 2012, p.17-24.

KARNAL, Leandro. Conversas com um jovem professor. São Paulo: Contexto, 2016.

MANTOAN, Maria Teresa Égler (org.). O desafio das diferenças nas escolas. 4ªed.
Petrópolis: Vozes, 2011.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

O CALDEIRÃO DA SANTA CRUZ DO DESERTO COMO PATRIMÔNIO


CULTURAL E O ENSINO DE HISTÓRIA NA EDUCAÇÃO BÁSICA

ANTÔNIA LUCIVÂNIA DA SILVA


URCA
[email protected]

PAULA CRISTIANE DE LYRA SANTOS


URCA
[email protected]

RESUMO
Buscamos apresentar possibilidades do ensino de História a partir do patrimônio cultural
através de vivências e reflexões realizadas no ano de 2016 com alunos do 9º ano, em
Crato-CE, com os quais trabalhamos a ―história local‖ sendo o elemento gerador, o
Caldeirão da Santa Cruz do Deserto, que faz parte do patrimônio tangível. Dialogamos
com os conceitos de memória, silenciamento e patrimônio Cultural tendo Fonseca (2003)
como referencial, para quem o patrimônio ultrapassa a materialidade. As discussões que
embasaram as práticas de ensino foram fomentadas pelo PIBID e
PROFHISTÓRIA/URCA, programas dos quais fazemos parte. Como resultados temos a
indicar uma aprendizagem significativa e avaliação processual o que constitui a
socialização dessa experiência parte importante do processo de ensino-aprendizagem.
Palavras-chave: Memória; Silenciamento; Patrimônio Cultural; Caldeirão da Santa Cruz
do Deserto.

INTRODUÇÃO/REFLEXÃO

Neste trabalho buscamos centralizar nossa discussão em torno de algumas


atividades desenvolvidas na disciplina de História no ano de 2016 com alunos do 9º ano,
em Crato-CE, com os quais trabalhamos a ―história local‖ tendo como elemento gerador
das aulas o patrimônio cultural da cidade, onde se situa a escola na qual as ações
educativas foram desenvolvidas. As propostas de aulas foram parte das práticas do
Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência – PIBID, subprojeto
História/URCA, cujo tema contemplado em 2016 foi o patrimônio cultural, sendo estas
discussões enriquecidas com a disciplina de educação patrimonial, ofertada pelo
ProfHistória/URCA, programa do qual fazemos parte.
A equipe do PIBID que atuou na Escola José Alves de Figueiredo, no momento, era
composta por seis bolsistas, que juntamente com a supervisora desenvolveram atividades
numa turma de ensino fundamental composta por cerca de 25 estudantes, com idades entre

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

13 e 14 anos, advindos tanto da zona rural como da zona urbana. A escola se localiza em
um bairro próximo ao centro da cidade do Crato e atende a um público composto por
adolescentes filhos da classe trabalhadora. Situando melhor a turma, podemos dizer que se
trata de um público bem diversificado, sendo parte deles vindos de pequenas escolas
particulares, e a maioria vinda de escolas públicas. Há alunos com um maior nível de
maturidade intelectual e exercício de leitura, enquanto outros apresentam acentuados
problemas de disciplina intelectual e comportamental.
Entretanto, apesar dos problemas citados, a turma em nenhum momento apresentou
objeções à presença dos bolsistas graduandos da Universidade Regional do Cariri –
URCA, nem às propostas de atividades fora do espaço escolar, o que foi para nós um
aspecto positivo, pois há escolas, ou mesmo turmas, que entendem atividades que fujam do
livro didático, da resolução de atividades ou das ações convencionais desenvolvidas no
espaço da sala, como aula. Atividades extraescolares são consideradas como algo externo
ao currículo ou mesmo como passeio, por exemplo, mas não consideram estas como
práticas de aprendizagem.
Desde o primeiro contato, os estudantes aceitaram e foram colaboradores, porém a
maneira deles, pois não devemos compreender a aceitação como uma disposição a
assumirem uma postura extremamente séria, de silêncio total e não interpretar pequenas
distrações ou brincadeiras como sinônimo de ojeriza. São estudantes que apresentam uma
diversidade comportamental e que parte deles ainda não desenvolveu bem suas estratégias
de controle emocional e de autodisciplina, o que requer dos docentes maleabilidade e
estrutura emocional para compreender que nem sempre a distração é sinônimo de não
aceitação. Antes, é mais manifestação desordenada de seus impulsos e de questões muitas
vezes exteriores a escola, do que mesmo uma contestação da aula.
Tendo a equipe de bolsistas, incialmente observado a turma, a preocupação foi em
como unir patrimônio cultural com o ensino de História de uma forma que fizesse sentido,
que tornasse as questões abstratas em algo mais palpável, perceptível e mais próxima das
questões de onde vivem, porém sem reduzir o ensino a mera história do local desconectada
de contextos mais amplos, pois entendemos que esta não é meramente local, mas dialoga
com questões mais abrangentes.
Por termos como proposta, a temática patrimônio cultural, consideramos ser
necessária uma sondagem com os alunos a fim de saber que compreensões os discentes
tinham desse assunto e em seguida traçar estratégias que contemplassem as carências

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intelectuais dos alunos e inserisse o que a equipe de bolsistas, com orientação da


coordenação do projeto, acreditava ser indispensável de se saber sobre o patrimônio
cultural.
Foi então organizada uma atividade teórica introdutória aos conceitos básicos
tornando possível se saber o que é patrimônio cultural; quem tem o poder de decidir se
algo é ou não oficialmente reconhecido como patrimônio; o que é tombamento e registro e
a relação que há entre o patrimônio, a História, a memória e a identidade de um povo, de
uma cidade ou país.
Ao fazermos a sondagem dos conhecimentos que já tinham sobre o conteúdo a ser
trabalhado, nenhum estudante indicou ritos, saberes, práticas, celebrações como sendo
patrimônio. Todas as respostas se limitaram aos bens tangíveis, mais especificamente à
arquitetura. Não sabiam como nem por que determinado bem é tido como patrimônio, o
que nos levou a perceber que para eles, o patrimônio é algo natural, fora do tempo e de um
contexto, desconhecendo totalmente a ideia de conflito em torno desses bens. É a visão do
patrimônio como algo sagrado intocável do qual o povo tem que manter distância para não
maculá-lo, ou como um conjunto de velharias, prédios arcaicos empoeirados sem nenhuma
utilidade para presente.
Por mais que ao longo da trajetória da patrimonialização de bens no Brasil, muitas
mudanças tenham ocorrido no campo da lei, sendo ampliado o que se entende por
patrimônio, essas não tão novas compreensões permanecem afastadas de parte significativa
da sociedade e inclusive de professores e estudantes. Mesmo com o artigo 216 da
Constituição federal de 1988 a qual entende as formas de expressão; os modos de criar,
fazer e viver como integrantes do patrimônio e com o decreto nº 3551/2000 e as várias
ações de registros e tombamentos, essas questões nem sempre adentram a escola.
Dentre os vários fatores que geram essa situação, os quais não aprofundaremos
aqui, acreditamos que um deles seja a cultura escolar, na qual ainda é bastante forte no
Brasil, de tomar o livro didático como modelador das aulas. Não nos ocuparemos aqui em
atacar o livro didático, mas de elucidar que por mais que diversos estudantes sequer
tenham a prática de leitura do livro em casa e muitas vezes criem estratégias para não levar
o livro para a escola, ele ainda é para muitos, sejam professores, pais, diretores,
coordenadores e os próprios alunos, um agente de grande poder na condução dos
conteúdos escolares.

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Essas constatações nos levaram a decidir que direcionamento dar às atividades. A


primeira ação pedagógica foi desenvolvida no tempo de duas horas aulas, consistindo no
momento de apresentação dos conceitos, apresentação de imagens e pequenos vídeos,
todos ligados ao patrimônio cultural de Crato e o momento avaliativo, no qual os alunos
expuseram suas considerações sobre a aula explicitando o que aprenderam. Porém,
estamos tratando não de uma situação hipotética, mas de uma situação concreta e, portanto,
queremos explicitar que nem tudo acontece conforme planejado. Nem todos os alunos se
dispuseram a se expressar oralmente o que nos possibilitaria saber se a aula trouxera
alguma contribuição. Há estudantes que se recusam a falar, seja por insegurança, por falta
de compreensão ou por dificuldade de articular suas ideias, ou mesmo por medo de passar
por constrangimento diante da turma.
Após a aula introdutória tivemos que fazer uma seleção dos bens patrimoniais
procurando, intercalar as histórias suscitadas pelo patrimônio com parte do conteúdo
programático do currículo escolar, sendo que dentre as várias possibilidades de se trabalhar
a História pelo viés do patrimônio local, tomamos como um dos recortes um bem tombado
como patrimônio cultural tangível, que é o Caldeirão da Santa Cruz do Deserto, localizado
na zona rural da cidade do Crato-Ceará.

BREVE HISTÓRIA DO CALDEIRÃO

Para melhor situar o leitor no contexto, a comunidade Caldeirão foi formada no ano
de 1926 na zona rural de Crato, ao Sul do Ceará e liderada por um beato seguidor do Padre
Cícero Romão Batista, vindo da Paraìba ao Juazeiro do Norte após as notìcias do ―milagre‖
da hóstia15, acontecido em Juazeiro do Norte no ano de 1989, tendo como protagonistas o
Padre Cícero e a Beata Maria de Araújo. O lugar é chamado de Caldeirão devido aos
aspectos naturais.
O nome da propriedade é proveniente das formas geológicas, denominadas de
Caldeirão, que são escavações realizadas pela força das águas ocasionada nas
rochas, ocasionando a dissecação do relevo e formando espécies de reservatórios
naturais que acumulavam água inclusive nos tempo de estiagem favorecendo a
agricultura no local. (SILVA, 2010, p. 78).

15. No ano de 1989 em Juazeiro do Norte enquanto o Padre Cícero Romão Batista celebrava a missa, ao
entregar a comunhão à beata Maria de Araújo, segundo os relatos que foram propagados, a hóstia teria se
transformado em sangue. Sangue este que para uns seria o sangue de Cristo e para outros, seria obra diabólica
ou mesmo um embuste. A repercussão dessa história resultou na crença na santidade do Padre Cícero para
parte da população e em punição ao padre Cícero por parte do Vaticano, que suspendeu as ordens do padre
Cícero, não podendo portanto atuar como padre.

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Ainda para o mesmo autor, esse lugar era chamado de Caldeirão dos Jesuítas, pois
se acredita que na época da expulsão dos jesuítas pelo Marquês de Pombal, dois membros
da ordem teriam se refugiado nas imediações desse ―caldeirão‖. Mais tarde, com a
experiência vivenciada pelos formadores de uma comunidade coletiva liderada pelo Beato
José Lourenço, beato penitente que tinham a cruz como símbolo de sua comunidade, a
expressão Caldeirão dos Jesuítas foi substituída por Caldeirão da Santa Cruz do Deserto.
A experiência coletivista do Caldeirão da Santa Cruz do Deserto teve dez anos de
duração, de 1926 a 1936. Sendo este sítio propriedade do Padre Cícero, este recomendou a
instalação do Beato José Lourenço e dos camponeses que viviam sob orientação do
mesmo, e juntos, construíram a comunidade edificando casas, construindo roças, engenhos,
oficinas de artesanato e açudes. A experiência coletiva do grupo anterior a 1926 tinha sido
parcialmente desmontada em decorrência da venda da terra em que viviam no Sítio Baixa
D‘Antas, também zona rural de Crato, que o Beato, anteriormente orientado pelo Padre
Cícero, já havia arrendado em meados de 1894.
Apesar de a comunidade ter como modelo o trabalho e posse coletiva dos bens,
guiados por princípios religiosos cristãos e conduta pacífica, os que lá viveram, cerca de
1000 pessoas ou mais, foram considerados perigosos no entender dos princípios que
guiavam a sociedade brasileira. Não condizia com o modelo de civilização que se
pretendia, chegando mesmo o modelo implantado no Caldeirão a ser visto como oposição à
civilização, sinônimo do atraso e da barbárie.
Por estas questões levantadas por setores das elites agrárias, da Igreja Católica,
destacando a Ordem dos Salesianos16 e as autoridades políticas, em 1936 se decidiu pôr
fim à comunidade, o que se deu por uma operação militar em setembro de 1936. Nesta foi
ordenada a desocupação do Caldeirão, se destruíram as casas, as plantações e se saquearam
os bens, sendo apenas uma parte desses entregue à justiça, que fez leilão. Parte do dinheiro
foi utilizada na compra de uma propriedade no Sítio União, em Exu Pernambuco, para
onde o Beato foi com apenas algumas poucas pessoas em 1940, após se convencer de que
as autoridades do Ceará não lhe permitiriam mais permanecer no Caldeirão.
Após o desmanche da comunidade, em 1937 houve um confronto na Serra do
Araripe, entre alguns ex-moradores do Caldeirão e integrantes da força militar, resultando
em oito mortes, sendo quatro de cada lado, o que fortaleceu o discurso da periculosidade

16. Com a morte do Padre Cícero no ano de 1934, as terras do Caldeirão passaram a pertencer à Ordem dos
Salesianos, conforme estava definido no testamento do Padre Cícero.

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do povo de Caldeirão, levando as autoridades estaduais a mandar uma segunda força


militar, a qual atuou na Serra do Araripe, buscando combater os que ainda estavam
refugiados nas matas.
Após estas investidas violentas, sucedeu uma ação política de silenciamento dos
fatos lá ocorridos e a construção de uma memória negativa em torno dos eventos lá
vivenciados. Porém, com as novas perspectivas políticas, a experiência comunitária do
Caldeirão começa a sair do campo do esquecimento para o da lembrança, chegando a ser
entendido como digno de reconhecimento como patrimônio cultural, sendo registrado no
Livro de Tombo da Secretaria de Cultura do Estado do Ceará no ano de 2005.
Muito tem a ser dito acerca do Caldeirão, todavia tomaremos neste artigo, como
centro da abordagem mais a experiência de ensino vivenciada com os alunos do ensino
fundamental e as reflexões sobre o que foi realizado, sendo esta breve história da
comunidade aqui mencionada apenas a título de contextualização.

REFLETINDO SOBRE AS PRÁTICAS PEDAGÓGICAS

Não pretendemos impor as reflexões sobre o patrimônio como única estratégia para
se ensinar e aprender História local, porém pensamos que numa época em que as
polêmicas em torno desse tema ocupam os espaços fora da escola e estão presentes em
vários lugares, pois praticamente toda cidade tem seus lugares vistos como patrimônio e no
caso específico do Estado do Ceará, o número de bens que foram inscritos nos livro de
tombo, livro dos registros do patrimônio intangível, cresceu a partir do período de 2003 a
2006, devido a um plano de cultura, criado na gestão do governador Lúcio Alcântara,
tendo como uma das metas tombar e registrar diversos bens representativos da cultura das
cidades que integram o Ceará, a temática patrimônio cultural aparece como fundamental já
que questões como a memória, e o silenciamento podem ser tratados com os alunos.
Entendemos que seja válido que essas discussões permeiem os conteúdos escolares,
uma vez que por meio delas é possível trabalhar conceitos e conteúdos relativos à História
de uma forma que se dê mais materialidade aos mesmos. Como exemplo, o aluno pode
entender o passado e as relações com o presente, a partir de elementos simbólicos
materializados na capela de Santo Inácio de Loyola 17, na formação geológica denominada

17. Caldeirão foi tombado por suas referências históricas, contendo nesse espaço os seguintes bens materiais:
a capela de Santo Inácio Loyola, cuja construção fora iniciada no início da década de 1930, as ruínas de um

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caldeirão, nas ruínas das casas do Caldeirão e seu entorno ou por meio da prática das
romarias para esta localidade, facilitando até mesmo o entendimento de que a História não
é apenas o que aconteceu em lugares geograficamente distantes, pois ―a história local pode
estabelecer a aproximação entre segmentos populares e o ensino de história.‖ (BARBOSA,
2006, p. 65).
Cientes da impossibilidade de tratar todas as questões pertinentes, em duas aulas, o
plano norteador foi elaborado para ser desenvolvido ao longo de atividades extraclasse,
utilizando a metodologia de aulas de campo, nas quais eram retomadas as questões dos
conflitos presentes no patrimônio. Falar de patrimônio é desvendar de certa forma o véu
que cobre o passado. É adentrar um universo de tensões que muitas vezes não se revelam
ao primeiro olhar. É sair do lugar da contemplação para enxergar as nuances que se
escondem por trás de uma história romantizada que muitas vezes é vista sem conexão com
outras temporalidades.
Para melhor especificar as tensões existentes no próprio processo de
patrimonialização, podemos exemplificar com o caso do tombamento do primeiro terreiro
de Candomblé, em Salvador, no ano de 1984, tendo o antropólogo Gilberto Velho (2006)
como condutor do processo, fato que suscitou intensa mobilização favorável e contra o
tombamento, pois havia o choque entre uma visão mais restrita do que deveria ser tido
como patrimônio e uma visão mais abrangente que questionava o reducionismo dos
critérios estabelecidos pelas leis patrimoniais. Ou o exemplo do processo de tombamento
do Santuário de Bom Jesus da Lapa, do qual fala Fonseca (2003), na Bahia, arquivado em
1968, porque o relator, antropólogo Luís de Castro Farias, via um conflito entre a
conservação da edificação e seu uso, a prática de ―um culto de cunho popular‖ (2003, p.
61) que tinha uma dinâmica própria, envolvendo a ampliação, renovação e mesmo
inovação do espaço. Ou, para aproximar mais, o próprio tombamento do Caldeirão, pôde
ser tomado como elemento para explicar como se constrói um patrimônio cultural. E, como
o patrimônio é histórico, suas regras são modificadas conforme a consciência que se tem
em cada período da história. Caldeirão não seria tombado como patrimônio anterior à
elaboração da Constituição de 1988 e a criação de decretos regulamentadores do artigo 216
desta constituição, e mesmo as inovações das leis que regem a política patrimonial na
esfera estadual, haja vista que o Caldeirão foi tombado no ano de 2005 pela Secretaria

cemitério, o caldeirão formado por rochas, as ruínas da residência do beato e duas casas que ainda se
conservam erguidas.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Estadual de Cultura, após o Estado do Ceará ter adequado seu aparato legal às leis e
decretos federais, o que permitiu o seu enquadramento como patrimônio cultural.
Nessa perspectiva, as aulas foram ministradas de forma a fugir do patrimônio como
mero campo da contemplação e partindo para uma historicização dos bens patrimoniais
desde o entendimento da história da instituição do patrimônio cultural no Brasil,
perpassando a história do próprio bem tombado, os conflitos que o envolveram e seus
significados no presente.
Mas é preciso problematizar o que é patrimônio.
A expressão designa um bem destinado ao usufruto de uma comunidade que se
ampliou a dimensões planetárias, construído pela cumulação contínua de uma
diversidade de objetos que se congregam por seu passado comum: obras e obras-
primas das belas-artes e das artes aplicadas, trabalhos e produtos de todos os
saberes e savoir-faire dos seres humanos. (CHOAY, 2006, p. 11).

Sobre o mesmo conceito recorremos a Fonseca, para quem:


A expressão ―patrimônio histórico e artìstico‖ evoca um conjunto de
monumentos antigos que devemos preservar, ou porque constituem obras de arte
excepcionais, ou por terem sido palco de eventos marcantes referidos em
documentos e em narrativas dos historiadores. Entretanto, essa imagem
construída pela política de patrimônio conduzida pelo Estado por mais de
sessenta anos, está longe de refletir a diversidade, assim como as tensões e os
conflitos que caracterizam a produção cultural do Brasil, sobretudo a atual, mas
também a do passado‖. (FONSECA, 2003, p. 56).

O patrimônio não é imutável. Não tem sentido próprio e isolado, e mesmo sendo
visto como pertencente a uma coletividade, ele nem sempre faz sentido para todas as
pessoas e parte delas sequer entende que determinado lugar, prática, saber, objeto ou
arquitetura integra o patrimônio e não conhece a história que perpassa esses bens. Fonseca
chama atenção dizendo que ―o poder simbólico dos patrimônios nacionais é relativo e tem
alcance limitado‖ (1997, p. 12), visto que não faz sentido para toda a sociedade, muitas
vezes até pelo desconhecimento. Como se identificar com algo que não se conhece?
O povo, geralmente se mantem ou é mantido afastado do patrimônio, sendo este
muitas vezes restrito aos intelectuais, a quem o Estado concede o poder de avaliar e definir
o que integra ou não o patrimônio. Mas é também verdade que os intelectuais podem ter
um papel de agente transformador da compreensão que se tem sobre patrimônio.
Fonseca, ao discutir sobre o patrimônio cultural e suas políticas, entende que
―trata-se de uma política conduzida por intelectuais que requer um grau de especialização
em determinadas áreas do saber (arte, história, arquitetura, arqueologia, etnologia,
antropologia‖ (1997, p. 12). A autora faz questionamentos pertinentes. Ela cita que cerca
de quase mil bens tombados ―funcionam mais como sìmbolos abstratos e distantes da
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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

nação do que como marcos efetivos de uma identidade nacional com que a maioria da
população se identifica e que integram a imagem externa do Brasil‖ (FONSECA, 1997, p.
17). Ela mostra que o carnaval, futebol, samba, a fórmula 1 e as telenovelas no exterior e
no Brasil, muitas vezes tem mais força de identificação, de representação do país, do que
mesmo aqueles bens que integram os cânones patrimoniais.
Recorremos a esse aparato conceitual não para levar a teoria no sentido mais formal
para os alunos, pois eles não suportariam nem é papel do ensino fundamental levar textos
teóricos densos para a sala de aula. Entretanto a equipe de bolsistas, enquanto responsáveis
pela mediação do conhecimento, necessitou de tais compreensões para ter condição de
articular o pensamento e o discurso e possibilitar as devidas reflexões, de modo a sair da
tendência de se restringir apenas ao campo da sacralização do patrimônio, numa visão
superficial e naturalizadora.
Entendemos que os alunos não precisam ser capazes de ler um teórico sobre
patrimônio cultural, mas são muito bem capazes de entender que o patrimônio congrega
processos históricos e que ele pode se tornar referência da identidade de um povo. Que
algo se torna patrimônio porque uma coletividade assim o compreende e é oficializado ou
não, conforme uma relação de forças, de disputas políticas, disputas em torno de uma
memória. Podem compreender que o conceito de patrimônio, aquilo que preenchem o
significado dessa palavra, pode mudar e que essas mudanças surgem de questionamentos,
de interesses, de reivindicações. Podem entender que um bem tangível 18 ou intangível é
dotado de significados e simbolismos construído pelas pessoas e esses simbolismos são
criados a partir de acontecimentos, não são simples invenções desprovidas de sentidos.
Exemplo, o valor simbólico contido no espaço do Caldeirão e nos bens materiais lá
presentes, se dão não porque foram inventados ficcionalmente mas foi em decorrência de
um conjunto de práticas reais que existiram nesse espaço, das quais os agentes históricos
foram pessoas que estavam dentro e pessoas que estavam fora do Caldeirão. As relações
criadas e fatos acontecidos tornam esse lugar digno de ser rememorado. E mesmo assim só
são vistos como merecedores de uma rememoração em decorrência de um regime de
historicidade e de patrimonialização que tornou possível que o referido lugar com os
resquícios de vestígios materiais e sua História, fosse digno de se tornar pública.

18. Nos apropriamos do conceito de patrimônio cultural tangível e intangível, ao invés de material e
imaterial, defendido por Cecília Londres Fonseca (2003). Para ela, patrimônio imaterial é um equívoco, uma
vez que ele se materializa ainda que por tempo muito breve. Uma celebração ou uma dança, tido como
imaterial, se materializa enquanto os praticantes estão atuando na dança ou no ritual da celebração.

93
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Na efetivação da aula de campo percebemos aspectos positivos e algumas


dificuldades, embora estas não tenham comprometido a aprendizagem. Como dificuldades,
apontamos o tempo de disponibilidade do motorista e o dos alunos, só havendo a
possibilidade de fazer a aula no horário no qual estavam matriculados, pois se realizado no
contra turno parcela significativa da turma seria excluída em virtude de questões
particulares que os impossibilitam de frequentar atividades fora do horário convencional,
seja porque alguns moram na zona rural e nem sempre dispõem de dinheiro para pagar
passagem, seja porque desenvolvem algum serviço em casa ou fora, para complementar a
renda familiar, ou mesmo em alguns casos, por não estarem dispostos a fazer um esforço
extra para participar de atividades educativas. Quanto ao ônibus e o motorista, são cedidos
pela prefeitura municipal, sendo ele o mesmo transporte que realiza o trajeto diário no
transporte de alunos da zona rural, o que já reduz o tempo de duração das visitas de campo.
Os aspectos positivos: os estudantes se motivaram mais, diante da possibilidade de
aulas fora de sala, embora tenha que se ter bastante cuidado para que a aula não se
transforme em um momento de simples lazer; puderam tornar palpável aspectos abstratos
do patrimônio; dar materialidade aos conteúdos. Aproximar questões nacionais de questões
locais o que nem sempre é possível no espaço escolar.
Com base não só nas respostas dos estudantes a perguntas feitas por nós, mas
também nas perguntas dos alunos, sobre diversos aspectos da comunidade que se
organizou no Caldeirão, pudemos identificar que as ações pedagógicas estavam surtindo
efeito. Entendemos que as dúvidas também são indícios de aprendizagem e participação,
pois se um aluno faz pergunta, mesmo quando se é uma pergunta simples, pressupõe que o
assunto lhe interessa e lhe faz sentido. Parte dos alunos afirmou nunca ter ouvido falar da
História do Caldeirão, exceto os que já eram veteranos na escola, pois no oitavo ano
haviam estudado história do Caldeirão e os fatos políticos e religiosos de Juazeiro.
Entendemos que os resultados foram positivos, pois eles foram atenciosos no momento das
atividades e em vários momentos faziam perguntas sobre o assunto bem como respondiam
a nossas indagações, ainda que com o vocabulário próprio deles, não necessariamente
utilizando uma linguagem ressignificada e conceitual.
Entendemos que falhamos em não materializar os resultados. Optamos por não
exigir produção escrita, por receio de desmotivá-los. Limitamos a avaliação a participação
e expressão oral, o que limita a manifestação de alguns alunos, pois alguns não se sentem
a vontade para falar. A maioria dos bolsistas do PIBID/HISTÓRIA/URCA era nova no

94
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

programa e isso contribuiu para que tenhamos ficado inseguros em exigir uma produção
escrita ou outro tipo de avaliação mais complexa, com receio de que a turma por achar as
atividades difíceis, se recusasse em aceitar a equipe de bolsistas e não se dispusessem às
atividades.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Aprendemos com essas experiências, que o patrimônio cultural seja ele tangível ou
intangível, tem significativo potencial para ser adotado como caminho para se conhecer a
história seja da região em que se vive ou mesmo numa dimensão nacional ou mundial.
Aquilo que se define como patrimônio é resquício de um passado ainda atuante no presente
e dele podemos extrair histórias silenciadas, pois quando se opta por designar um bem
como patrimônio, ele nem sempre é referência para a história de todos os grupos sociais.
―A cada ato de preservação corresponde a pelo menos um de destruição‖ (FÉLIX, 2016, p.
35).
É possível pensar o que foi silenciado, por aquilo que está sendo lembrado. Tombar
ou registrar é um ato de selecionar e também um ato de poder. Quando se patrimonializa,
geralmente se impõe uma narrativa que sobrepõe várias outras possibilidades de se contar
o passado. E em meio a tantas lembranças e silenciamentos é atribuição da disciplina de
história problematizar o patrimônio tombado/registrado e trazer a tona outras narrativas e
por meio delas propiciar aos discentes o exercício do pensamento crítico.
Seguindo esse percurso metodológico com o estudo do patrimônio representado
pelo Caldeirão, os estudantes puderam não só conhecer um pouco da História de Crato
interligada a História do país, como conhecer minimamente o conceito de patrimônio,
registro, tombamento e suas demais particularidades. Facilitou a compreensão das
mudanças históricas, perceber as diferenças entre o passado e o presente, visto que
enquanto narrávamos o passado, os estudantes percebiam que o modo de viver dos anos
1920 e 1930 era diferente do século XXI.
Buscamos desenvolver nos alunos a ideia de que em todo patrimônio há intenções.
Há uma história ou várias possíveis. Procuramos incutir o olhar desnaturalizador com a
pretensão de que consigam captar aquilo que se esconde por traz de um saber, de uma
celebração, de um lugar, arquitetura ou obra de arte e enxergá-las também como campo de
conflitos visto que podem enaltecer uma memória em detrimento de outras, mas, sobretudo

95
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

também romper com a visão do patrimônio como sendo apenas o que diz respeito aos
grandes personagens e aos grupos mais poderosos da sociedade, todavia não se trata de cair
na banalização de que tudo é patrimônio.

BIBLIOGRAFIA

BARBOSA, Vilma de Lurdes. Ensino de história local: redescobrindo sentidos.


SAECULUM, Revista de História, João Pessoa, jul./dez. 2006.

CHOAY, Françoise. ―Introdução: monumentos e monumento histórico”. In. CHOAY,


Françoise. A alegoria do patrimônio. 4ª ed. São Paulo: Estação da Liberdade/Unesp, 2006,
p. 11-29.
FÉLIX, Almir Batista de Oliveira. O patrimônio cultural e os livros didáticos de
história ou de como se constrói o sentimento de pertencimento. Tese de doutorado em
história. PUC. São Paulo, 2016.

FONSECA, Maria Cecília Londres. O patrimônio em processo. Ed. UFRJ/MINC.


IPHAN, 1997.

FONSECA, Maria Cecília Londres. Para além da pedra e cal: Por uma concepção ampla
de patrimônio cultural. Rio de Janeiro, DP&A, 2003.

PELEGTINI, Sandra C.A. O patrimônio cultural e a materialização das memórias


individuais e coletivas. UNESP-FCLAS-CEDAP, v.3, n.1, 2007.

SILVA, Judson Jorge da. Caldeirão e Assentamento 10 de Abril – passado e presente na


luta por terra no Cariri cearense. Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Ceará,
Programa de Pós-Graduação em Geografia. Fortaleza, 2010.

VELHO, Gilberto. Patrimônio, negociação e conflito. MANA 12 (1): 237-248, 2006.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

O ENSINO DE HISTÓRIA COLONIAL À LUZ DOS DIREITOS HUMANOS

YAN BEZERRA DE MORAIS


UFRPE
[email protected]

RESUMO

O objetivo deste artigo é refletir sobre o ensino da história colonial brasileira, tendo como
perspectiva os preceitos dos Direitos Humanos. Por que ensinar, ou melhor, por que nossos
estudantes devem aprender sobre a história colonial? Como o estudo sobre este período
pode colaborar para as formações das identidades dos nossos estudantes? Como devem ser
tratados os povos indígenas e os povos africanos que foram escravizados na América
portuguesa? Acreditamos que a reflexão através do ensino e da aprendizagem de
determinadas barbáries da história humana, como a escravidão negra e indígena, é uma
forma de superá-las e evitar que se repitam, assim como um ensino de história colonial
baseado nas diretrizes dos Direitos Humanos nos permite pensarmos as permanências na
nossa sociedade quando se trata de preconceitos e racismos.
Palavras-chave: ensino de história; Direitos Humanos; escravismo colonial.

INTRODUÇÃO

Com o advento da Nova História Política, os estudos coloniais vêm ganhando


novas roupagens através de novas perspectivas metodológicas, apoiadas em aportes
documentais por muito tempo escanteados ou, pelo menos, pobremente explorados para a
análise historiográfica, assim como sob novas proposições teóricas que lançam feixes de
luz sobre outros problemas e outros sujeitos. No entanto, quando falamos sobre o ensino da
história colonial, precisamos colocar em pauta e analisarmos até que ponto essas novas
proposições, digamos, acadêmicas, chegam e/ou podem chegar às salas de aula do ensino
básico.
A partir dessa necessidade de pensar o ensino desta história, nos perguntamos: por
que ensinar história colonial? E como ensinar esta história buscando não excluir aqueles
sujeitos que foram, de certa forma, suprimidos socialmente e também nas relações políticas
naqueles três séculos? Acreditamos que um ensino comprometido com as bases lançadas
pelos Direitos Humanos é um caminho a se seguir e que pode nos fornecer subsídios para
um ensino de história colonial propositivo, problematizador e capaz de ser interconectado
com a realidade contemporânea.
Nosso objetivo, portanto, é discutir sobre um ensino de história que, tomando por
base uma educação amparada nos Direitos Humanos, pode discutir nosso passado

97
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

escravizador de negros traficados da África e de populações e nações indígenas mutiladas


ou eliminadas no período colonial. Nos três séculos que podem ser tidos como raízes da
nossa sociedade, esses sujeitos históricos fizeram parte tanto quanto os europeus, mas não
são, ainda, tratados pelo ensino de história de forma a superarmos questões que,
acreditamos, decorrem deste período e ainda ecoam profundamente em nossa sociedade tão
tradicional19 (JANOTTI, 1997).

ALGUMAS PALAVRAS SOBRE O ENSINO DE HISTÓRIA

Na contemporaneidade, a História-conhecimento pode dar inteligibilidade e


justificação para o tempo presente, para conhecermos a nós e aos outros, explicar o mundo,
nos orientar na vida prática cotidiana e enfrentar as suas contingências. É por isso que o
saber escolar decorrente do ensino de história tem diversas funções que não são restritas a
um conhecimento pelo conhecimento. Em suas funções deve, i) facilitar a compreensão do
presente; ii) preparar os alunos para a vida adulta; iii) despertar interesse pelo passado; iv)
potencializar nas crianças e adolescentes um sentido de identidade e contribuir para o
conhecimento e a compreensão de outros países e culturas do mundo atual; v) contribuir
para o desenvolvimento das faculdades mentais por meio do estudo disciplinado (exercício
racional de compreensão); vi) introduzir os alunos em um conhecimento e no domínio de
uma metodologia rigorosa, própria dos historiadores; vii) enriquecer outras áreas do
currículo (CAIMI, 2015).
Diversos são os autores que apontam essas funções através de um processo mais
amplo, conhecido como ―conscientização‖, a qual vai além do processo puramente escolar,
mas não deixa de ser o ponto-chave de um ensino que se pretenda ser significativo para os
estudantes e, consequentemente, de importância social (DIAS & FREITAS, 2016).
De acordo com Margarida Dias e Itamar Freitas, a conscientização exige reflexão
crítica (capacidade de perceber e analisar desigualdades sociais e, assim, apoiar a igualdade
e a equidade), ação crítica (crença na eficácia da ação em prol da igualdade social), e

19
Maria de Lourdes Janotti coloca não é possível ignorarmos acontecimentos da história colonial em que se
encontram raízes da nossa sociedade tradicional tão resistente às mudanças, da noção arraigada de um Estado
patrimonialista, dos preconceitos raciais e da desvalorização do trabalho manual. JANOTTI, Maria de
Lourdes. História, política e ensino. In: BITTENCOURT, Circe (Orgs.). O saber histórico em sala de aula.
São Paulo: Contexto, 1997, p. 42-53.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

motivação crítica (capacidade de engajar-se e de comprometer-se moralmente com a


mudança social).
Neste processo, o importante no papel do educador é criar, junto com seus alunos,
os meios necessários para que eles desenvolvam sua autoconsciência, sua identidade, que
se percebam enquanto agentes sociais, históricos e culturais (FREIRE, 2002). Assim como
dar a conhecer a situação de marginalidade e constantemente conscientizar sobre tal;
encorajar os marginalizados a problematizarem sua situação; fomentar a criação de
identidade coletiva; e estimular os indivíduos e grupos a promoverem ações em prol da
transformação de suas vidas e de outrem (DIAS & FREITAS, 2016).
Tendo em vista nosso objetivo de pensar num ensino de história colonial que, à luz
dos Direitos Humanos, coloque em pauta situações de barbárie que marcaram nossa
sociedade e ainda ressoam em nossas relações sociopolíticas e também culturais cotidianas,
sobretudo pelos preconceitos e desigualdades diversas, temos que lembrar do que diz o
pedagogo Paulo Freire: ―Faz parte igualmente do pensar certo a rejeição mais decidida a
qualquer forma de discriminação. A prática preconceituosa de raça, de classe, de gênero
ofende a substantividade do ser humano e nega radicalmente a democracia‖ (FREIRE,
2002, p. 25).
Somente um ensino comprometido com a problematização e o encerramento dos
ciclos de ódios pode dar sentido a um processo educacional mais amplo voltado para a
plena democracia dos povos.

DIREITOS HUMANOS E ENSINO DE HISTÓRIA: UMA RELAÇÃO PROFÍCUA

O que são Direitos Humanos e como podemos relacioná-los não apenas à História,
mas também ao ensino de história? Antes de mais, Direitos Humanos são todos aqueles
direitos inerentes a todo ser humano, como o direito à vida, à liberdade, à opinião e
expressão, ao trabalho, à educação, dentre outros. Se entendermos os Direitos Humanos
enquanto prática social, veremos que a escola é um lugar privilegiado para exercê-la
através do ensino (FRANZEN, 2015). Douglas Franzen propõe que a relação entre ensino
de história e Direitos Humanos seja pautada na afirmação de valores, atitudes e práticas
sociais que expressem valorização dos Direitos Humanos; além da formação de uma
consciência crítica cidadã que se faça presente na vida do estudante nos níveis cognitivo,

99
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

social, cultural e político; além de um fortalecimento de práticas individuais e coletivas em


favor da promoção, proteção e defesa dos Direitos Humanos.
Como vemos, a relação entre ensino de história e Direitos Humanos é bastante
profícua na formação das identidades estudantis, pois agrega diversos valores
extremamente necessários para uma sociedade mais justa e longe de barbáries.
São as barbáries recorrentes na história da humanidade, segundo Theodor Adorno,
que o ensino deve buscar descontruir, não no sentido histórico, negando-as, mas através da
História evitar que se repitam na sociedade e no construir de sua história (ADORNO,
1995). Por isso que uma educação baseada em Direitos Humanos deve ser auto-reflexiva, e
através desse processo quebrar estigmas, preconceitos, intolerâncias, que na maioria das
vezes são os primeiros passos para as barbáries humanas:

Culpados são unicamente os que, desprovidos de consciência, voltaram


contra aqueles seu ódio e sua fúria agressiva. É necessário contrapor-se a
uma tal ausência de consciência, é preciso evitar que as pessoas golpeiem
para os lados sem refletir a respeito de si próprias. A educação tem
sentido unicamente como educação dirigida a uma auto-reflexão crítica
(ADORNO, 1995, p. 2).

Em termos metodológicos deste ensino de história que aqui discutimos,


corroboramos Franzen (2015) quando afirma que a noção de processo histórico deve ser
latente, tendo em vista que as categorias de temporalidade e perspectiva processual
remetem a um entendimento do tempo histórico, do espaço e dos sujeitos que compõem a
trama do cotidiano e das relações sociopolíticas, tirando da marginalidade agentes da
história por muito tempo deixados de lado do ensino de história ou, quando abordados,
ainda carregados de estigmas e reforçando visões preconceituosas e discriminatórias.
Desta forma, um ensino de história apoiado nas noções de Direitos Humanos deve
levar para a sala de aula situações-problema recorrentes na sociedade e discutir formas de
resolvê-las, como por exemplo, os diversos preconceitos ainda muito em voga acerca das
pessoas negras e dos indígenas, categorias as quais são o foco da nossa abordagem com a
história colonial. Assim como se deve tratar as datas comemorativas que permeiam o
calendário escolar de forma articulada com os conteúdos dos Direitos Humanos de forma
transversal, interdisciplinar e disciplinar (FRANZEN, 2015).
Quando aborda os descobrimentos nas Américas e o início dos processos
colonizadores, Janice Silva coloca em xeque esses fatos enquanto temas de comemoração.
Acreditamos que o que a autora propõe se adequa muito bem ao que propomos para o

100
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

ensino de história colonial: essa história não deve ser voltada para a cristalização de
hegemonias ou de perspectivas, mas, antes de tudo, deve ser para problematizar as
múltiplas realidades passadas (SILVA, 1992). As tradições indígenas e a cultura afro-
brasileira devem ser trabalhadas apoiadas nos Direitos Humanos justamente para superar
qualquer resquício da nossa condição colonial, na qual populações negras eram vítimas do
cativeiro e populações indígenas do extermínio e da preação, tendo que modificar seus
modos de vida e traçar estratégias constantemente de adaptação e resistência às normas
impositivas. Situações que, guardadas as devidas proporções, ainda tem reflexos
coetaneamente.

O ENSINO DE HISTÓRIA COLONIAL À LUZ DOS DIREITOS HUMANOS

Considerando as funções de um ensino de história em sua relação com os Direitos


Humanos, nos cabe, agora, pensar sobre o ensino de história colonial sob estas diretrizes.
O primeiro ponto a que iremos nos deter é: a necessidade de historicizar os
excluídos da história para uma prática de ensino problematizadora e criadora de sentido
prático na vida dos estudantes e de suas identidades em construção. Assim, é necessário
evidenciar e colocar em pauta a visão que se tinha acerca dos povos indígenas e escravos
negros, de modo que se coloque em perspectiva as permanências da nossa sociedade.
No Brasil, temos leis que embasam esta necessidade, como é o caso da Lei 10.639
de 200320, que vem acrescentar à Lei 9.394 de 199621 — a qual estabelece as Leis de
Diretrizes e Bases da Educação — a regulamentação do ensino sobre a História e a Cultura
Afro-brasileira, aí incluindo nosso período colonial.
Já em março de 2008, a Lei 11.645 22 complementa a Lei 10.639, acrescentando
também, para o ensino básico, os estudos sobre a História e a Cultura Indígena, entendidas
igualmente como formadoras do povo dito brasileiro.

20
BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. LEI Nº 10.639, DE 9
DE JANEIRO DE 2003. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e
bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática
"História e Cultura Afro-Brasileira", e dá outras providências.
21
BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. LEI Nº 9.394, DE 20
DE DEZEMBRO DE 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional.
22
BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. LEI Nº 11.645, DE 10
MARÇO DE 2008. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei no 10.639, de 9

101
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Quando vemos políticas públicas no sentido de trazer à tona, no ensino básico,


questões como essas, não podemos nos esquecer de que diversos setores da sociedade civil
lutaram, durante décadas, para a inserção de tais temas, se baseando nos valores pregados
pelos Direitos Humanos de que todos os povos merecem não apenas ter acesso à educação,
mas terem suas histórias contadas e suas culturas valorizadas, processo que deve se dar,
principalmente e incisivamente, na educação.
A situação dos povos indígenas e também da população negra do Brasil, quando
colocada numa perspectiva histórica de longo prazo, permite-nos perceber e combater
visões relativistas do mundo sociopolítico atual, ainda bastante marcado pelo preconceito e
pelo racismo para com essas populações. No período colonial, por exemplo, os estatutos
jurídicos destes povos eram completamente diferentes, lendo-se inferiores aos dos
colonizadores — brancos, europeus e dominantes politicamente.
Maria Emília dos Santos faz um breve apanhado da discussão que se tinha no
período colonial acerca dos indígenas e que aqui nos cabe como rápida digressão. A autora
nos coloca a par de alguns dos argumentos da época acerca da questão: aos habitantes do
Novo Mundo poderia ser conferido o estatuto de humanos? Diversas outras questões
balizaram essa discussão, tratando os indígenas tanto como inferiores quanto como
superiores, os bons selvagens e os maus selvagens, se tinham cultura ou se agiam conforme
sua natureza selvagem, e daí por diante (SANTOS, 2017).

Entre os séculos XV ao XVI (Renascimento) temos a primeira


interrogação sobre a existência múltipla do homem. Mas, que ainda não
pode ser considerada científica. Os índios eram definidos não pelo que
eles realmente eram, mas pela falta de elementos ocidentais: eram
considerados sem lei, sem moral, sem família e sem razão. Sabemos hoje
que esses critérios são etnocêntricos, ou seja, o europeu olhava a cultura
indígena e a comparava com a sua, portanto, via o índio
permanentemente em falta e influenciados pela natureza (ora negativa,
ora positiva). Ainda não se percebia que cada cultura tem a sua lógica
própria. A única lógica possível na época era a ocidental, branca e da elite
(SANTOS, 2017, p. 165).

Já sobre o enfoque aos povos negros escravizados, consideramos muito bem


apropriadas as palavras de Kabengele Munanga (2015, p. 28):

de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial
da rede de ensino a obrigatoriedade da temática ―História e Cultura Afro-Brasileira e Indìgena‖.

102
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

A questão do negro tal como colocada hoje se apoia sobre uma


constatação: o tráfico e a escravidão ocupam uma posição marginal na
história nacional. No entanto, a história e a cultura dos escravizados são
constitutivas da história coletiva como são o tráfico e a escravidão. Ora, a
história nacional não integra ou pouco integra os relatos de sofrimento, de
resistência, de silêncio e de participação.

Portanto, não se trata de um ensino de história colonial que busque atribuir um


sentimento de pena às histórias desses povos e a esses povos, mas de reconhecimento de
sua participação ativa na construção da nossa sociedade, que, na contramão, foram
desvalorizados social, cultural e politicamente no nosso país. É necessário apontar como
esses sujeitos não foram vítimas passivas. Foram vítimas, sim, mas as relações
sociopolíticas e culturais envolviam, também, esses sujeitos, combatendo a visão da
imobilidade, da passividade desses povos frente às situações bárbaras a que foram
submetidos durante séculos.
Essa perspectiva de valorização da história e da cultura desses povos, como uma
conquista em Direitos Humanos, pode fornecer aos estudantes do ensino básico subsídios
para a auto-conscientização sobre as realidades em que estão inseridos, através da análise
dos processos históricos, das mudanças, das permanências, dos meios que se pode ter para
a busca de uma sociedade progressivamente mais justa e igualitária. Em tempos de
conservadorismo, a educação é — se não o único — o principal meio de combate, de
resistência, e de perspectiva de mudanças.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Gostaríamos de encerrar o presente texto — mas nem de longe a discussão proposta


— trazendo as palavras de João José Reis, historiador da escravidão e da história dos
negros no Brasil, que em agradecimento ao recebimento do Prêmio Machado de Assis da
Academia Brasileira de Letras em julho de 2017, disse:

Políticas de inclusão racial, além do esforço para educar e informar todos


os brasileiros sobre a imensa contribuição dos africanos e seus
descendentes para a formação histórica e cultural do país, são, entre
outras, medidas necessárias — não sei se suficientes — no combate ao
legado nefasto da escravidão. Prefiro acreditar que seja produto da
ignorância, e não desfaçatez, gestos de delinquência simbólica como
batizar um restaurante chique de Senzala. Desejo, desejamos um país

103
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

onde não seja preciso uma jovem negra empunhar, numa recente
manifestação de rua, cartaz que dizia: ―A casa-grande surta quando a
senzala aprende a ler‖ (REIS, 2017).

Reiteramos, portanto, que somente teremos uma sociedade mais justa e igualitária
quando formos capazes de superar os resquícios das barbáries que mancham nossa história.
Superação que virá pela problematização, pela divulgação, pela educação e informação
como propõe o historiador acima. A história do período colonial — assim como dos outros
momentos da nossa trajetória enquanto formação de uma nação e de um país — demonstra
que ainda precisamos discutir e problematizar essas questões em sala de aula. Nas aulas de
história, os Direitos Humanos são fontes das quais temos de beber.

REFERÊNCIAS

ADORNO, T. Educação após Auschwitz. In: Educação e Emancipação. Rio de Janeiro,


Paz e Terra, 1995.

BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. LEI
Nº 10.639, DE 9 DE JANEIRO DE 2003. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de
1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo
oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-
Brasileira", e dá outras providências.

_______. LEI Nº 9.394, DE 20 DE DEZEMBRO DE 1996. Estabelece as diretrizes e


bases da educação nacional.

_______. LEI Nº 11.645, DE 10 MARÇO DE 2008. Altera a Lei no 9.394, de 20 de


dezembro de 1996, modificada pela Lei no 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece
as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de
ensino a obrigatoriedade da temática ―História e Cultura Afro-Brasileira e Indìgena‖.

CAIMI, Flávia Eloisa. O que precisa saber um professor de História? História & Ensino,
Londrina, v. 21, n. 2, p. 105-124, 2015.

DIAS, Margarida & FREITAS, I. Ensino de História e Formação da consciência crítica. In:
MOLINA, Ana & FERREIRA, Carlos. Entre textos e contextos: caminhos do ensino de
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FRANZEN, Douglas. Ensino de História numa perspectiva de Direitos Humanos: métodos


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104
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 25. ed.
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JANOTTI, Maria de Lourdes. História, política e ensino. In: BITTENCOURT, Circe


(Orgs.). O saber histórico em sala de aula. São Paulo: Contexto, 1997, p. 42-53.

MUNANGA, Kabengele. Por que ensinar a história da África e do negro no Brasil de


hoje? Revista do Instituo de Estudos Brasileiros, n. 62, 2015, p. 20-31.

REIS, João José. Discurso em agradecimento ao Prêmio Machado de Assis da Academia


Brasileira de Letras. 20 de julho de 2017. Disponível em:
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SANTOS, Maria Emília Vasconcelos dos. Antropologia: diversidade, etnocentrismo e


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da. (Orgs.). O Ensino da temática indígena: subsídios didáticos para o estudo das
sociodiversidades indígenas. Recife: Edições Rascunhos, 2017, p. 161-180.

SILVA, Janice Theodoro da. Descobrimento da América: a comemoração como narciso da


cultura latino-americana. In: América Barroca: temas e variações. São Paulo: EDUSP,
1992.

105
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

A INTELIGIBILIDADE DOS CONCEITOS HISTÓRICOS NOS LIVROS


DIDÁTICOS: UM PRÉ-REQUISITO PARA A CONSTRUÇÃO DO
CONHECIMENTO HISTÓRICO E PARA FORMAÇÃO CIDADÃ

ALESSANDRA MICHELLE ALVARES ANDRADE23


UFRN
[email protected]

RESUMO
O presente trabalho tem o objetivo discutir a formação cidadã a partir da construção do
Conhecimento Histórico que se faz possível através da inteligibilidade dos conceitos históricos
trazidos nos livros didáticos. Nesse contexto, discutiremos as contribuição e dificuldades de se
trabalhar com o livro didático na atualidade, tendo em vista que da forma que se apresentam,
de forma resumida e sem muitas explicações, dificulta o entendimento e provoca o desinteresse
por parte do aluno, comprometendo a construção do Conhecimento Histórico, muito embora
ainda seja um dos recursos didáticos mais utilizados no processo ensino-aprendizagem. Assim,
acreditamos que atuação crítico-cidadão só se fará possível a partir de uma educação de
qualidade, a qual perpassa por investimento em qualificação profissional e novas abordagens
didático-pedagógicas.
Palavras-chave: Ensino de História; Livro didático; Conceitos Históricos; Tecnologia;
Formação cidadã.

APRESENTAÇÃO

Este trabalho se propõe a discutir a formação cidadã que se processa por meio da
Construção do Conhecimento Histórico, desenvolvido a partir da inteligibilidade dos
conceitos históricos contidos nos livros didáticos e da busca por uma educação de
qualidade. Embora, o livro didático ainda seja um dos recursos pedagógicos mais
utilizados no processo educacional na maioria das escolas públicas brasileiras, este
material de maneira isolada, em algumas ocasiões, não tem sido suficiente para atender aos
objetivos do Ensino de História. Acreditamos que uma educação de qualidade que
contemple a formação cidadã, só se fará possível através do investimento em qualificação
profissional, políticas públicas e recursos didático-pedagógicos diferenciados, tendo como
destaque os tecnológicos, os quais oportunizam a maior participação em sociedade através
do universo digital.

23
Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Ensino de História (PROFHISTÓRIA) da Universidade Federal do
Rio Grande do Norte.

106
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Nosso objetivo principal é pensar a escola e o Ensino de História como meios de


contribuição para a formação de um aluno crítico e socialmente atuante através do trabalho
com conceitos históricos contidos nos livros didáticos e com a introdução de recursos
educacionais midiáticos que possam contribuir para tornar o ensino de História
significativo e dinâmico no processo de construção do Conhecimento Histórico em sala de
aula e fora dela.
Segundo o Portal Brasil24, quem não possui acesso à educação é incapaz de exigir e
exercer direitos políticos, sociais, civis e econômicos, dificultando assim sua inclusão na
sociedade moderna. Assim sendo, a educação não é apenas um direito inalienável de todos
os cidadãos, mas também uma condição para o exercício pleno dos direitos sociais,
econômicos, civis e políticos. De acordo com as Diretrizes Curriculares Nacionais 25
(DCN), há uma emergência na atualização de políticas públicas educacionais que
substanciem o acesso de todo brasileiro à formação cidadã.
Pautada pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação26 (LDB) e demais dispositivos
legais, a Educação Básica propõe-se a estimular no educando a reflexão crítica, propositiva
e orientar na formação inicial e continuada para que possam atuar como protagonista de
sua vida em sociedade. Desta forma, a educação apresenta-se como um processo de
socialização da cultura e da vida, no qual se constroem, se mantêm e se transformam
saberes, conhecimentos e valores.
Com vistas a alcançar esta qualidade educacional, é proposta do Conselho Nacional
de Educação27 (CNE) o estabelecimento de uma Base Nacional Comum Curricular, ainda
em discussão no cenário nacional, que terá como um dos objetivos nortear as avaliações e a
elaboração de livros didáticos e de outros documentos pedagógicos, assim como a
organização curricular. Esta supõe uma forma de trabalho na escola, que consistirá na

24
Fonte: Portal Brasil. Disponível em:< http://www.brasil.gov.br/cidadania-e-justica/2009/11/acesso-a-educacao>.
Acesso em 28 set. 2017.
³As Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) são normas obrigatórias para a Educação Básica que orientam o
planejamento curricular das escolas e dos sistemas de ensino. Elas são concebidas, discutidas e fixadas pelo Conselho
Nacional de Educação (CNE). As diretrizes buscam promover a equidade de aprendizagem, garantindo que conteúdos
básicos sejam ensinados para todos os alunos, sem deixar de levar em consideração os diversos contextos nos quais eles
estão inseridos.
26
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira, LDB (Lei 9394/96) é a lei que regulamenta o sistema educacional
brasileiro, reafirmando o direito à educação, garantido pela Constituição Federal. Estabelece os princípios da educação e
os deveres do Estado em relação à Educação escolar pública, definindo suas responsabilidades, em regime de
colaboração, entre União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios.
27
O Conselho Nacional de Educação (CNE) é um órgão independente associado ao Ministério da Educação e tem como
missão, aprimorara e consolidar a Educação nacional de qualidade assegurando a participação da sociedade. O Conselho
foi constituído na Lei 9.131 de 1995. O CNE auxilia o ministério da Educação, formulando e avaliando a política
nacional da área, zelando pela qualidade do ensino e pelo cumprimento da legislação educacional. O órgão emite ainda
pareceres e resoluções e decide privativamente e autonomamente sobre assuntos que lhe são pertinentes.

107
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

seleção de conteúdos e atividades de aprendizagem, de métodos, procedimentos, técnicas e


recursos didático-pedagógicos que visam o desenvolvimento de conhecimento, habilidade,
valores e práticas, de forma que as experiências escolares estejam articuladas com as
vivências e saberes dos alunos, com os conhecimentos historicamente acumulados em
sociedade para, a partir daí contribuir com a construção das identidades dos estudantes.

O LIVRO DIDÁTICO E A ESCOLA

Um desses recursos pedagógicos contemplados pela Base Nacional Curricular


Comum28 (BNCC), é o livro didático que, em alguns casos figura como o único material
que o professor dispõe para a organização de suas aulas (CARIE, 2008 p. 6). É o mais
utilizado instrumento de trabalho na tradição escolar entre professor e aluno, fazendo parte
do cotidiano a, pelo menos, dois séculos (BITTENCOUR, 2009, p. 295). Feito para uso
diário, sua distribuição é gratuita nas escolas públicas, assegurada pelo governo e
regulamentada pelo Programa Nacional do Livro Didático29 (PNLD).
A partir da segunda metade do século XX, ocorreu um significativo aumento nos
estudos críticos a respeito do livro didático, de História e de seus conteúdos escolares, nos
quais foram constatados preconceitos, visões estereotipadas de grupos e populações.
Muitas vezes o livro era utilizado como um instrumento a serviço da ideologia e da
perpetuação de um ensino tradicional (BITTENCOUR, 2009, p. 303). Em função de ser
um suporte de conhecimentos escolares, o Estado interfere diretamente sobre sua
produção, estabelecendo critérios de avaliação através do PNLD.
Visando a qualidade dos livros didáticos em relação ao agenciamento coletivo
relacionado à cidadania, prevê parcerias com as universidades públicas e, dessa forma,
garante uma avaliação acadêmica das coleções (VENERA, 2013, p. 123), as quais são
organizadas em guias e disponibilizadas às escolas participantes pelo Fundo Nacional de

28
A Base Nacional Curricular Comum (BNCC) é um documento que visa sistematizar o que é ensinado nas escolas do
Brasil inteiro, englobando todas as fases da educação básica, desde a Educação Infantil até o final do Ensino Médio.
Trata-se de uma espécie de lista com objetivos de aprendizagem de cada uma das etapas de sua formação nas áreas de
Linguagem, Matemática, Ciências da Natureza e Ciências Humanas. Longe de ser um currículo totalmente fixo. A Base
Nacional é uma ferramenta que orienta a elaboração do currículo específico de cada escola, sem desconsiderar as
particularidades metodológicas, sociais e regionais de cada uma.
29
O Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) tem como principal objetivo subsidiar o trabalho pedagógico dos
professores por meio da distribuição de coleções de livros didáticos da educação básica. O programa é executado em
ciclos trienais alternados. Assim, a cada ano o MEC adquire e substitui livros para todos os alunos de um segmento, que
pode ser: anos iniciais do ensino fundamental, anos finais do ensino fundamental ou ensino médio. À exceção dos livros
consumíveis, os livros distribuídos devem ser conservados e devolvidos para a utilização por outros alunos por um
período de três anos.

108
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Desenvolvimento da Educação30 (FNDE). Nas escolas, as coleções são avaliadas e


selecionadas pelos professores que a utilizarão por um período de três anos.

O livro didático é um material escolar que pode ser analisado como um instrumento
didático-pedagógico favorecedor da construção do conhecimento, pois apresenta recursos
de aprendizagem tais como exercícios, questionários, leituras complementares e sugestões
de trabalho em grupo e individuais. Muito embora este recurso didático, de maneira
isolada, muitas vezes não atingem os objetivos do Ensino de História 31. Vale salientar
ainda, que o livro didático é produzido por indivíduos ou grupos que perpetuam sua forma
de pensar e agir e, consequentemente, suas identidades culturais e tradições, sendo
evidentes as relações de representações em que se misturam os interesses públicos e
privados.
A proposta político-pedagógica das escolas, assim como as aulas ministradas pelos
professores, deve estar articulada à realidade do alunado, relacionando os conteúdos
escolares como a vida cotidiana. Trata-se de uma condição importante para que os alunos
possam se reconhecer como parte dessa cultura e construir identidades afirmativas o que,
também, pode levá-los a atuar sobre a sua realidade e transformá-la com base na maior
compreensão que adquirem sobre ela. Muito embora, alguns livros didáticos não trabalhem
a História local, não oportunizando tal relação de identidade entre o aluno e o conteúdo
abordado no livro didático.
Um dos objetivos do ensino de História é o pensar historicamente, (OLIVEIRA,
2010, p. 19). Assim, o Ensino de História deve ser entendido como condição para que o
aluno possa participar do processo de fazer histórico, contribuindo para a formação de
cidadãos conscientes da importância e participação social. É importante destacar que o
livro didático deveria apresenta-se como um instrumento para promover este pensar por
meio de conteúdos e abordagens apresentadas pelos autores e analisados pelo PNLD.
Porém, estes objetivos não serão alcançados se os alunos não conseguirem se reconhecer
como sujeitos históricos e nem entender, por dificuldade de interpretação de texto ou pela
falta de inteligibilidade, os conceitos históricos neste material.

30
O Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) é responsável por captar e distribuir recursos financeiros
a vários programas do Ensino Fundamental. Ao financiar e executar esses programas, o FNDE reforça a educação de
milhões de crianças brasileiras diretamente beneficiadas por ele.
31
Segundo as DCN, um dos principais objetivos do Ensino de História é a formação cidadã.

109
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Desta forma, tornar os conceitos Históricos apresentados nos livros didáticos


inteligíveis é indispensável para a construção do conhecimento histórico uma vez que a
História trabalha com conceitos próprios e conceitos gerais, produzidos pela experiência
humana. ―É impossìvel dizer que alguma coisa é, sem dizer o que ela é. A reflexão sobre
os fatos implica a evocação de conceitos‖ (SCHLEGEL, apud PROST, 2015, p. 115). Ao
ministrar a disciplina, o professor deve privilegiar o desenvolvimento de habilidades
pertinentes a conceitos das ciências humanas, visto que o aluno da Educação Básica
precisa estruturar e desenvolver conteúdos e noções elementares do pensar historicamente.
Para tanto, o ensino de história precisa ser significativo, estimulante e oferecer meios para
que o aluno seja capaz de estabelecer ligações entre o que é estudado nos livros e em sala
de aula com seu cotidiano e universo de interesses.
As problemáticas que se apresentam neste trabalho são: Como se alcançar os
objetivos propostos para o Ensino de História a partir da inteligibilidade dos conceitos
históricos apresentados nos livros didáticos? Como contribuir para o desenvolvimento
crítico argumentativo do jovem de formas a promover a construção do Conhecimento
Histórico? Como oportunizar o processo de formação cidadã? Para uma educação que se
propõe a formar cidadão críticos e atuantes, a escola precisa proporcionar para os alunos
Educação Básica um meio de perceber-se como parte integrante do mundo, a partir da
interpretação dos conceitos que estão presentes no livro didático. Da mesma forma que
precisa fornecer instrumentos para que o aluno seja protagonista de sua vida e possa
construir conhecimento.
De acordo com as DCN, é tarefa da escola criar situações que provoquem nos
estudantes a necessidade e o desejo de pesquisar e experimentar situações de aprendizagem
como conquista individual e coletiva, a partir do contexto o particular e local, em elo com
o geral e transnacional. Assim, a proposta político-pedagógica das escolas, assim como as
aulas ministradas pelos professores, deve estar articulada à realidade do seu alunado para
que a comunidade escolar venha a conhecer melhor e valorizar a cultura local,
relacionando os conteúdos escolares como a vida cotidiana, as vivências e expectativas do
publico jovem que frequenta a Educação básica na atualidade.

OS CONCEITOS

110
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Os conceitos históricos podem ser entendidos como termos ou expressões que não
pertencem a qualquer outro vocabulário. Eles são instrumentos com os quais o historiador
procura consolidar e organizar a realidade, levando o passado e exprimir sua especificidade
e suas significações. Um conceito histórico inclui por si só uma pluralidade de
significações e experiências.

Os conceitos da História (...) são constituídos por uma série de generalizações


sucessivas e definidos pela enumeração de certos números de traços pertinentes que têm a
ver com a generalidade empírica, e não com a necessidade lógica. (PROST, 2015, p.119)
O conceito histórico atinge certa forma de generalidade por ser o resumo de várias
observações que registram similitudes e identificam fenômenos recorrentes. A História
exerce sua ação sobre os conceitos e é influenciada por eles. Assim, é impossível entender
a História sem recorrer aos conceitos, os quais são ferramentas intelectuais indispensáveis
para a construção do conhecimento histórico. De acordo com Prost, ―explica-los é sempre
explicitá-los, desenvolvê-los, desdobrá-los‖ (PROST, 2015, p. 121). Eles, são mais que
uma descrição resumida, são construídos pelo agrupamento de traços comuns ao mesmo
fenômeno, muitas vezes, incorporam uma argumentação e referem-se a uma teoria, que por
sua vez pode formar uma ―rede conceitual‖ 32.
Inevitavelmente, estudar História é fazer uso de conceitos Históricos e entender os
processos históricos só se faz possível quando esses conceitos se tornam inteligíveis. Desta
forma, o professor precisa procurar mecanismos para auxiliar no processo de entendimento
ou explicação desses conceitos, quando o livro didático não o faz de forma satisfatória.
Nessa perspectiva, devemos recorrer à pesquisa por recursos didáticos que auxiliem o
professor em sala de aula.

PENSANDO EM NOVAS PROPOSTAS


Tendo como uma das propostas educacionais a formação cidadã para uma vida
solidária e democrática, com visão crítica da realidade e espírito participativo, faz-se
necessário para atingir este objetivo, mobilizar os alunos para refletir sobre o
conhecimento histórico que é direcionado pela atuação do professor pautada pela
metodologia e recursos didáticos.

32
Segundo PROST, os conceitos históricos, por serem abstratos e fazerem referência a uma teoria, formam uma rede
conceitual que corresponde a um conjunto de termos inter-relacionados sob uma forma instável, seja de oposição,
associação ou substituição.

111
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Nessa perspectiva, é fundamental que escola e professores pensem na elaboração de


propostas didático-pedagógica diferenciada que visem estimular a participação do alunado
no processo de ensino-aprendizagem e que se proponham ao desenvolvimento crítico-
argumentativo trabalhando os conceitos Históricos contidos nos livros didáticos visando à
construção do conhecimento Histórico.
Tornar o Ensino de História significativo e fazer dos conceitos históricos trazidos
nos livros didáticos inteligíveis para o anulado pode ser alcançado a partir do
desenvolvimento de pesquisas que busquem alternativas por material didáticos
pedagógicos complementares que visem aproximar a escola do universo do jovem do
Ensino Fundamental. Para tanto, é necessário ter a devida preocupação em considerar os
interesses dos alunos, os objetivos do Ensino de História, as políticas públicas, o currículo
e planejamento escolar a fim de possibilitar o desenvolvimento de habilidades críticas,
interpretativas e contextualizadas no processo de construção do conhecimento Histórico
que, neste caso, pode ser favorecido a partir da introdução de recursos didático-
pedagógicos complementares e diferenciado a parir da incorporação de novas práticas
educacionais, sistematizando conhecimentos, de proporcionar oportunidades para a
formação de conceitos e oportunizando o desenvolvimento do raciocínio abstrato, dentre
outras.

UMA EDUCAÇÃO NOVA PARA UMA NOVA JUVENTUDE

A prática pedagógica faz parte de um processo intencional no qual tanto aluno


como professores precisam ter claros seus objetivos para que a aprendizagem seja
significativa. Para a melhoria no ensino de história faz se necessário que o professor defina
uma concepção de história para que possa haver uma articulação entre teoria (saber) e
metodologia (como fazer). Também é importante no processo ensino-aprendizagem o
investimento em formação inicial e contínua dos professores, priorizando a prática
pedagógica, compreendendo-a como potencializadora da construção do conhecimento
histórico.
Qualquer proposta didático-pedagógica que tenha como finalidade tornar o ensino
significativo para os educandos precisa mobilizá-los à participação. Assim sendo,
propõem-se atividades que mobilizem os alunos com o intuito de construir o conhecimento
Histórico a partir do trabalho com os conceitos trazidos nos livros didáticos. A intenção

112
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

não é criar uma proposta inovadora ou uma formula mágica de ensino-aprendizagem, mas
mobilizar alunos e professores a efetuarem pequenas mudanças no fazer pedagógico.
Seminários, júri simulado, exposição de fotos (com o acervo pessoal dos próprios alunos e
seus familiares), vídeos feitos com celulares, entrevistas, música, teatro e outras atividades
lúdicas podem ser mobilizadas como instrumentos de pedagógicos para tornar os conceitos
históricos inteligíveis, facilitando a compreensão e incentivando a participação dos alunos
nas aulas, além de estabelecer uma conexão entre os conteúdos escolares e o cotidiano dos
educandos, tornando assim, o ensino de História significativo.
O uso de ferramentas didáticas midiáticas também pode ser um importante elo entre
o universo do aluno, o Ensino de História e a formação cidadã. Tendo em vista que a
sociedade atual está inserida no mundo digital, a inclusão do aluno no ambiente virtual
torna-se fundamental no processo de formação cidadã. Acreditando que a formação
cidadão se faz a partir da apropriação crítica e criativa de todos os recursos técnicos
dispostos em sociedade. Desta forma, trabalhando com os recursos tecnológico-midiáticos
o professor estará também contribuindo para a formação de cidadãos críticos, analíticos e
socialmente protagonistas.
O universo vivenciado pelo jovem do século XXI está inserido no mundo virtual
através das séries, vídeos, jogos, redes sócias, entre outros onde o intenso contato com os
meios de comunicação acabam produzindo impactos sociais que são refletidos em sala de
aula. Por outro lado, os recursos midiáticos não se limitam ao entretenimento. Nossa
sociedade está cada dia mais digital: no transporte público, nas agências bancárias, nas
informações, comunicações e tantos outros. Por tanto, a apropriação dos recursos técnicos
e virtuais são fundamentais para o amplo desenvolvimento da vida em sociedade.
A inclusão digital relacionada à cidadania pode ser observada também a partir de
ações do Governo como a ―Cidadania Digital‖ especificada no site do Ministério do
Planejamento, Desenvolvimento e Gestão,33 que condiciona o acesso aos serviços públicos
digitais à Plataforma de Cidadania Digital como sendo o ―canal único e integrado para a
disponibilização de informações, solicitação eletrônica e acompanhamento de serviços‖.
Não podemos esquecer que esta mobilização e transformação no contexto
educacional passam por incentivo à qualificação profissional do professor e pela busca por
uma melhoria do Ensino de História. Uma dessas políticas educacionais é o Mestrado

33
Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão. Disponível em:
<http://www.planejamento.gov.br/cidadaniadigital>. Acesso em 29 set. 2017.

113
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Profissional em Ensino de História - ProfHistória que é um programa de pós-graduação


stricto sensu em formato semipresencial em Ensino de História, reconhecido pela
Coordenação de Aperfeiçoamento Pessoal de Nível Superior (CAPES) do Ministério da
Educação. Este programa tem por objetivo proporcionar formação continuada aos docentes
de História da Educação Básica, com o objetivo de dar qualificação certificada para o
exercício da profissão, contribuindo para a melhoria da qualidade do ensino.
O programa de pós-graduação com ênfase em Ensino de História surge no cenário
nacional a partir da necessidade de se pensar a respeito do ensino escolar, considerando
seus saberes e práticas, assim como sua relação com o conhecimento produzido da
academia. Ele procura dar entendimento as várias formas de ensinar e aprender história que
muitas vezes colocam-se distantes uma da outra. O ProfHistória propicia a reflexão e a
produção acadêmica voltada para o ensino da disciplina na Educação Básica, reduzindo o
abismo entre o escrever e o ensinar história.

PALAVRAS FINAIS

Acreditamos que a formação cidadã será alcançada quando nossa sociedade puder
dispor de uma educação de qualidade. Esta precisa está pautada em três pilares de
fundamentação: qualificação profissional, políticas públicas e novas metodologias de
ensino-aprendizagem. Entendemos que a cidadania é um processo de construção que só
será possível no momento em que tivermos investimento em qualificação dos professores e
recursos didático-pedagógicos diferenciados oportunizados por políticas públicas que
possibilitem o pleno desenvolvimento da capacidade crítica e do protagonismo do alunado
e subsidiem o trabalho dos profissionais da educação. Através do ensino significativo e do
Ensino de História, neste caso favorecidos pelo estudo dos conceitos históricos trazidos
nos livros didáticos e trabalhados com o auxílio do professor em sala de aula o jovem
poderá associá-los as suas vidas e atuar de forma crítica e participativa em sociedade.
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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

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116
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

POR UMA HISTÓRIA LOCAL: ENSINO DE HISTÓRIA, CURRÍCULO E MATERIAIS


DIDÁTICOS34

MYZIARA MIRANDA DA SILVA VASCONCELOS


UFPB
[email protected]

RESUMO

No Brasil, a partir da década de 1970, os historiadores despertaram para a história regional e local,
demonstrando interesse por questões do cotidiano e por sujeitos históricos até então silenciados
pela historiografia tradicional. Partindo do princípio que o local é o lugar de experiência e
observação privilegiado do sentir-se sujeito da história, o ensino de história local assume uma
importância singular por permitir a inserção do educando na comunidade da qual é partícipe,
possibilitando que, com base no conhecimento da sua realidade, ele seja capaz de protagonizar
ações e propor práticas para solucionar problemas e transformar seu espaço de vivência. Por este
motivo, observamos como as orientações curriculares prescrevem seu ensino, no âmbito nacional e
estadual, bem como apresentamos um levantamento dos materiais didáticos que contemplam o
estudo da história da Paraíba.
Palavras-chave: Ensino de História; História Local; Currículo; Materiais Didáticos.

Apesar de amplamente praticada nos países europeus – França, Itália, Inglaterra,


Alemanha, Noruega – constituindo-se como uma tradição alicerçada, a história local
ocupou uma posição periférica na historiografia brasileira por longo tempo. Segundo
Correa (2002, p.11), isso se deve a ―sua escrita predominantemente diletante e sua
narrativa demasiado subjetiva‖. Este autor destacou que na Europa a história local é feita
por historiadores de profissão, cuja produção resulta de diálogos com os amadores, os
quais, por sua vez, são detentores de informações e fontes inéditas, em muitos casos,
guardiões de arquivos privados que certamente jamais seriam acessados pelos
profissionais. Desse modo, foram estabelecidas redes de colaboração entre amadores e
acadêmicos contribuindo para consolidação da história local europeia.
No Brasil, assim como nos demais países da América Latina, a história local não
era habitualmente produzida por historiadores de profissão, mas por membros da

34
Este texto é uma adaptação de um capítulo da dissertação intitulada ―Povos Indìgenas na Paraìba:
prescrições legais e representações nos materiais didáticos da história local para o Ensino Fundamental
(1996-2015)‖, defendida no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Paraíba.

117
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

comunidade local, figuras notórias como advogados, médicos, políticos, jornalistas,


professores ou clérigos. Estes historiadores diletantes não seguem nenhuma teoria ou
método reconhecidos pelo meio acadêmico, costumam atribuir um caráter biográfico ou
genealógico a sua produção, e se utilizam de uma visão linear da história. Para Correa
(2002), esse amadorismo em sua escrita justifica por certo o descrédito da história local
teve por longo tempo no seio da historiografia brasileira35.
Para Donner (2012), é possível destacar a existência de múltiplas práticas de
história local que resultam em diversas escritas da história. A autora definiu que, quando
realizada por não profissionais, a história local ―é um gênero de publicações que pretende
dar conta das especificidades de uma cidade, região, etnia, não tem como público alvo a
Academia, mas sim, os grupos aos quais se refere‖ (DONNER, 2012, p. 224). Estes
pesquisadores não têm a preocupação em explicitar seus métodos e procedimentos, nem
em identificar suas fontes, tampouco estabelecem relações com outras produções anteriores
de mesma temática. Por este motivo, seus trabalhos não são considerados historiográficos,
porém possuem grande importância para os historiadores profissionais por trazerem muitas
pistas/fontes, apesar da ausência do rigor acadêmico de suas pesquisas.
Os historiadores diletantes possuem acesso privilegiado tanto as fontes escritas,
sendo em alguns casos organizadores de arquivos pessoais, quanto as fontes orais, visto o
domínio sobre os aspectos culturais, econômicos e geográficos do local de estudo, além do
conhecimento pessoal dos moradores da região. Embora não possuam uma metodologia
reconhecida para utilizar estas fontes, sendo criticados por tratar como verdade absoluta as
narrativas nelas contidas, tais trabalhos são muitas vezes a única versão da história de uma
determinada localidade.
Outro perigo no qual recorrem diversos pesquisadores não profissionais é
considerar sua própria experiência empírica como fonte, confundindo sua biografia com a
história da comunidade local. Além disso, para Correa (2002, p. 14), ―a escrita da história
local diletante contém uma avaliação positiva do processo histórico devido ao tratamento
demasiado subjetivo por parte do seu autor [...]‖, ou seja, a versão da história costuma
variar dependendo das escolhas do autor que, por sua vez, confere relevância a
determinados acontecimentos em detrimento de outros, conforme sua posição social e seus
interesses pessoais. Por este motivo, é comum estes historiadores amadores evidenciarem a

35
Esse cenário mudou bastante nos últimos anos devido ao interesse crescente dos historiadores por
temáticas locais, haja vista a grande produção acadêmica dos Programas de Pós-graduação, muitos dos quais,
inclusive, possuem Linhas de Pesquisa dedicadas à História Regional (UFPB) e à História Local (UNEB).

118
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

trajetória de pessoas ou famílias locais proeminentes, dando visibilidade apenas aos grupos
mais abastados e as camadas dirigentes, recaindo no deslize da história personalista
(MELO, 2015).
São muitas as críticas dirigidas aos pesquisadores diletantes, porém, devido a sua
escrita está dissociada do rigor acadêmico, seus textos tendem a alcançar um maior número
de leitores, não raro são lidos e debatidos pelos próprios moradores da localidade, o que é
dificilmente alcançado pelas produções dos historiadores profissionais. Certamente, disso
resulta o interesse cada vez maior dos acadêmicos acerca dos memorialistas e da história
local.
Somente a partir da década de 1970 foi que os historiadores brasileiros –
acompanhando uma tendência internacional caracterizada pela adesão de novas
abordagens, temas e fontes – voltaram-se para a história regional e local, demonstrando
interesse por questões do cotidiano e por sujeitos históricos até então silenciados pela
historiografia tradicional. Segundo Melo (2015), nas décadas finais do século XX e o
início do XXI, ocorreu uma
[...] revisão nas concepções do que são as histórias regionais e histórias locais,
quando são consideradas novas dimensões, novos olhares, novos objetos e novas
preocupações, especialmente em tributo aos protagonistas históricos até então
silenciados, excluídos e alijados da historiografia oficial que, a partir de então,
alcançam uma maior visibilidade nos processos históricos. (MELO, 2015, p.31).

O esgotamento de modelos de interpretação baseados nas macroanálises e a


necessidade em se apropriar de contextos locais conduziu os pesquisadores a uma
aproximação com a Antropologia, a Geografia e as Ciências Sociais, tomando de
empréstimo teorias e metodologias próprias dessas áreas do conhecimento. Por meio deste
diálogo interdisciplinar, os historiadores puderam definir um conceito fundamental para o
trabalho em escala local, o conceito de região.
Afastando-se da visão determinante que considera a região como o espaço limitado
pelas demarcações políticas e geográficas, a historiografia tem se aproximado da
compreensão de que a organização espacial é fruto da construção humana, estando em
constante articulação com a ação coletiva e expressando uma singularidade relacionada a
uma realidade social mais ampla. Dessa forma, o conceito de região não está restrito aos
limites administrativos, visto que se refere ao espaço socialmente construído pelas relações
políticas, econômicas, sociais e culturais dos grupos envolvidos.
Neste contexto, concordamos com Toledo (2010) quando a autora afirmou que

119
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

[...] a história local é entendida aqui como uma modalidade de estudos históricos
que, ao operar em diferentes escalas de análises, contribui para a construção de
processos interpretativos sobre as diferentes formas de como os atores sociais se
constituem historicamente. Ou seja, interessa-se pelos modos de viver, coletivos
e individuais, dos sujeitos e grupos sociais situados em espaços que são
coletivamente construídos e representados, na contemporaneidade, pelo poder
político e econômico, sob a forma estrutural de ―bairros‖ e ―cidades‖.
(TOLEDO, 2010, p. 751).

Embora esteja vinculada ao contexto nacional, a história regional e local não é


apenas o seu reflexo em uma escala menor, tampouco tem a função de reafirmá-lo.
Conforme Melo (2015, p. 35), a história nacional não deve ―ser simplesmente o somatório
das histórias locais e regionais‖, porém a redução da escala de análise possibilita
evidenciar aspectos desconsiderados pelas macro abordagens que são imprescindíveis para
seu entendimento. Enquanto a história nacional tende a destacar as semelhanças recaindo
em generalizações, a história local revela o específico, o particular, ressaltando as
diferenças. Dessa forma, local e global se complementam e não podem estar separados.
Empenhada em definir este novo campo de estudo, a historiografia tem associado
história local a micro-história italiana36, segundo a qual autores como Edoardo Grendi,
Jacques Revel, Giovanni Levi, Carlo Ginzburg – num esforço por abandonar ―os grandes
modelos interpretativos triunfantes da história social‖ (LIMA, 2012, p. 213) – propunham
uma metodologia de pesquisa histórica caracterizada pela redução da escala de análise e
observação. Conforme Levi (2011, p. 141), o que define a micro-história é sua capacidade
de, por meio da observação microscópica, revelar questões que de outro modo não seriam
observadas ou estariam distorcidas pelas generalizações.
Para alguns autores a história local está inegavelmente filiada à micro-história,
apropriando-se de seu aparato metodológico. Entendemos, no entanto, que embora ambas
trabalhem com escalas reduzidas, a micro-história tem buscado associar as suas análises a
um maior número possível de contextos, procedendo o estudo do singular para
compreender realidades mais amplas. Em outras palavras, a micro-história faz um caminho
metodológico inverso para pensar a história em termos globais, pois se apoia nas
experiências particulares, individuais e cotidianas para entender a construção de contextos
coletivos, como apontou Levi (2011, p. 144), utilizando a ―análise microscópica dos

36 Segundo Giovanni Levi (2011, p. 135), a micro-história ―é essencialmente uma prática historiográfica em
que suas referências teóricas são variadas e, em certo modo, ecléticas‖. Enquanto prática, se baseia na
redução da escala de observação, na análise microscópica e no estudo intensivo do material documental.

120
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

acontecimentos mais insignificantes, como meio de se chegar a conclusões de mais amplo


alcance‖.
A história local é, por sua vez, um recurso teórico-metodológico de pesquisa e
ensino, circunscrita num recorte espacial determinado pela atuação dos sujeitos, porém em
articulação com dimensões históricas mais amplas. Dessa forma, a abordagem regional e
local da história ―apresenta a possibilidade de uma prática relacional entre contextos
diferenciados, contemplando a diversidade histórica dos lugares e dos seus protagonistas‖
(MELO, 2015, p. 47). Não é possível compreender as construções históricas locais
isoladamente37. É necessário, portanto, a associação entre o micro e o macro, sem que
exista uma hierarquia entre estas escalas, mas sim uma variação que é indispensável para
uma visão global do objeto de estudo38.
A história local, enquanto estratégia metodológica para a pesquisa e o ensino,
possui as suas especificidades e requer ferramentas particulares que presume

(...) a presença da história em todos os lugares; a integração dos lugares a outros


espaços e contextos; a inclusão de novos problemas e novos objetos à
investigação histórica, bem como a ampliação/diversificação dos sujeitos e das
fontes históricas; a aproximação afetiva e física dos indivíduos com o objeto de
estudo como um dos fatores motivadores para a produção e divulgação do
conhecimento; o apego à localidade como uma condição motivadora para a
aprendizagem; o local como lugar de experiência e observação privilegiado do
sentir-se sujeito da história. (FAGUNDES, 2006, p. 94).

No Brasil, o processo de consolidação da história local enquanto campo de pesquisa


está associado a criação dos inúmeros programas de pós-graduação em História nas
diferentes regiões do país, possibilitando a produção de um volume considerável de
trabalhos voltados às questões locais, quer pela busca pelo fortalecimento das identidades
regionais, quer pelo acesso privilegiado às fontes (DONNER, 2012; FAGUNDES; 2006;
MELO, 2015).
Uma produção representativa desta tendência historiográfica nos meios acadêmicos
brasileiros foi a publicação, em 1990, do livro ―República em Migalhas‖, organizado por

37
Considerar a história local de modo isolado significa recair no erro do localismo. Melo (2015, p. 64-65)
destacou os perigos e equívocos que devem ser evitados quando se opta pelo trabalho com história local,
quais sejam: 1) não definir marcos relacionais entre a realidade local e os contextos mais amplos da história;
2) considerar o fazer pesquisa no campo da história local mais simples do que fazê-lo na esfera nacional; e 3)
desenvolver uma perspectiva reducionista e/ou localista, isto é, uma visão estreita do local desconsiderando
a importância e relação com outros espaços.
38 Nesse sentido, Neves (1997, p. 22) afirmou que ―o local fora do contexto geral é apenas um fragmento, e
o geral, sem o respaldo das realidades locais, é apenas uma abstração, e, neste caso, ambos estarão destituídos
de sentido‖.

121
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Marcos A. da Silva. A coletânea abordou questões teórico-metodológicas relacionadas a


definição do conceito de região, a identificação e delimitação do objeto de estudo da
história local e a discussão do método para utilização das fontes orais. A obra apresentou
ainda diversas possibilidades de estudo de história regional e local, bem como ressaltou a
variedade de fontes empregadas. O livro ―República em Migalhas‖ foi resultado das
discussões iniciadas no XIII Simpósio Nacional da ANPUH/1985, realizado em Curitiba,
expressando o interesse dos círculos acadêmicos pela temática regional e local.
O uso deste recurso teórico-metodológico não se restringiu apenas a pesquisa –
através da produção de monografias, dissertações e teses – mas esteve presente também no
ensino de história. Neste sentido, destacamos a atuação do Núcleo de Documentação e
Informação Histórica Regional – NDIHR/UFPB39 que, desde a sua implantação em 1976,
tem se preocupado com a relação pesquisa/ensino desenvolvendo atividades ligadas aos
diferentes níveis da Educação Básica.
A história regional/local é por definição a área específica de pesquisa do NDIHR,
que atua tanto na análise documental e organização de acervos, quanto na produção
historiográfica sistematizada em linhas temáticas40, privilegiando a história da Paraíba.
Dentre as linhas de pesquisa, ressaltamos ―Educação e Sociedade‖ devido a sua vinculação
com uma proposta desenvolvida pelo Núcleo desde a década de 1980, caracterizada pela
articulação entre a história local e o ensino básico. Nesta linha foram realizados projetos de
―Resgate do Processo Histórico e Cultural dos Municìpios Paraibanos‖41, com o objetivo
de produzir material didático para as séries iniciais do Ensino Fundamental. O NDIHR
também foi responsável por promover um curso de formação para os professores dos

39 O Núcleo de Documentação e Informação Histórica Regional – NDIHR é um órgão suplementar da


Reitoria da Universidade Federal da Paraíba, localizado no Campus I – João Pessoa-PB, tendo como
objetivos básicos o resgate e a preservação da memória e a produção do conhecimento crítico sobre a
realidade nordestina. O NDIHR possui uma equipe multidisciplinar que abrange profissionais das áreas da
História, Filosofia, Sociologia, Educação, Comunicação, Psicanálise, Arquivologia, Ciência da Informação e
Geociências. Disponível em <http://www.ndihr.ufpb.br/programa/educacaoesociedade.html> Acesso 03 mar.
2017.
40 No total são 11 linhas temáticas: Estrutura de Poder, Indústria e Trabalho no Nordeste, Educação e
Sociedade, Questão Agrária na Paraíba, Arqueologia, Manifestações Culturais na Paraíba, Sexo e Relações
de Gênero, Relações Comerciais da Paraíba, Formação Histórica da Rede Urbana, Economia Pesqueira do
Nordeste, Movimentos Sociais Urbanos.
41 O projeto inicial foi sobre a história de Patos (1982-1983), e em uma parceria com o Instituto de
Desenvolvimento Estadual e Municipal da Paraíba (IDEME), prosseguindo com a história dos municípios de
Ingá (1989-1993), Pedras de Fogo (1989-1993), Conde (1991-1996), Cabedelo (1994-1996), Areia (1995-
1996), Guarabira (1996-1999). Atualmente a pesquisa é realizada no município de Serra Branca, no Cariri
paraibano. Disponível em <http://www.ndihr.ufpb.br/programa/educacaoesociedade.html> Acesso 03 mar.
2017.

122
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

municípios envolvidos, a fim de orientá-los acerca das possibilidades de uso dos materiais
produzidos (MELO, 2015).
Outra produção do NDIHR voltada ao ensino de história regional/local foi a
publicação de livros sobre História da Paraíba destinada, especificamente, aos professores
de Ensino Fundamental e Médio, na tentativa de reduzir a lacuna bibliográfica nesta área.
A coleção denominada ―História Temática da Paraìba‖ foi organizada em quatro volumes 42
conforme os temas discutidos pelos pesquisadores nas diversas linhas de pesquisa do
Núcleo.
Estas e outras iniciativas evidenciaram a importância da articulação entre pesquisa
e ensino no tangente ao estudo da história regional/local. Neste sentido, Neves (1997, p.
19) afirmou que ―a ligação, imprescindìvel, entre o conhecimento e a ação, em história,
embasa todas as concepções que atribuem importância fundamental à história local, uma
vez que ela é o espaço de ação, por definição‖. Trata-se, portanto, da relação indissociável
entre a produção/construção e a socialização do conhecimento e, deste, com as ações dos
sujeitos históricos que ocorrem, por excelência, na escala do local.
Neste contexto, o ensino de história local assume uma importância singular por
possibilitar a inserção do educando na comunidade da qual é partícipe, favorecendo que,
com base no conhecimento da sua realidade local, seja capaz de protagonizar ações e
propor práticas para solucionar problemas e transformar seu espaço de vivências.
Entendemos que o ensino da história da comunidade, do bairro e da cidade dos educandos
contribui de modo significativo para que se percebam sujeitos da história. Por este motivo,
as orientações curriculares costumam prescrever o ensino de história local, principalmente
nos primeiros anos de escolarização, como poderemos verificar através da análise da Lei
de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), dos Parâmetros Curriculares
Nacionais (PCN) do Ensino Fundamental (anos iniciais) e dos Referenciais Curriculares
para o Ensino Fundamental da Paraíba (RCEF-PB).
A LDBEN definiu que é responsabilidade da União, em colaboração com os
Estados, o Distrito Federal e os Municípios, estabelecer competências e diretrizes para
orientar os currículos e seus conteúdos mínimos, a fim de proporcionar uma formação
básica comum. Ainda sobre esta matéria, a LDBEN determinou que essa base nacional

42 Foram quatro volumes, cada um deles relacionado a um tema: Vol. 1 – O Trabalho da Paraíba; Vol. 2 –
Atividades Produtivas na Paraíba; Vol. 3 – Questão Urbana na Paraíba; e Vol. 4 – Estrutura de Poder na
Paraíba. Os autores, à época, eram todos docentes do Departamento de História da UFPB.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

comum deverá ser complementada por uma parte diversificada, considerando as


características da região e do local de vivência do educando. Conforme a redação do caput
do Art. 26, alterado pela Lei 12.796/2013,

Os currículos da educação infantil43, do ensino fundamental e do ensino médio


devem ter base nacional comum, a ser complementada, em cada sistema de
ensino e em cada estabelecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida
pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e
dos educandos (BRASIL, 2013).

Visando à garantia de um currículo de base nacional comum, de um lado, e o


respeito às diversidades regionais, culturais, políticas existentes no país, de outro, o
Ministério da Educação publicou, a partir de 1997, os Parâmetros Curriculares Nacionais –
PCN, com o objetivo de orientar o trabalho dos professores, auxiliando-os na elaboração
do currículo, no planejamento das aulas e na seleção de materiais didáticos.

No âmbito do Ensino de História, as prescrições curriculares oficiais,


consubstanciadas nos PCN, reforçam o consenso acerca da impossibilidade de se estudar a
História na sua totalidade, nos seus variados tempos e sociedades, admitindo que ―a
história ensinada é sempre fruto de uma seleção‖ (GUIMARÃES, 2012, p. 61). Mas, como
fazer essa seleção? Que critérios adotar para realizar tais escolhas? Quais conteúdos
ensinar? O que seria importante e significativo ensinar nas aulas de história? Se
considerarmos o aspecto dinâmico do currículo, não encontraremos uma lista pronta e
completa dos conteúdos a ser ensinados, mas sim caminhos possíveis a serem tomados
como referenciais.

Segundo os PCN, o objetivo do ensino de História no Ensino Fundamental é


contribuir para que os alunos ampliem a compreensão de sua realidade, sendo capazes de
confrontá-la e relacioná-la com outras realidades históricas, a fim de fazer escolhas e agir
de acordo com seus próprios critérios (BRASIL, 1997). Este documento44 aponta para uma

43 A nova redação, alterada pela Lei nº 12.796/2013, incluiu na normativa a Educação Infantil, visto que a
divisão do currículo em uma parcela de base nacional comum e outra diversificada só estava prevista para o
Ensino Fundamental e Médio.

44 A elaboração dos PCN de História é anterior a Lei nº 11.274/2006, que alterou a Lei de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional, ampliando para nove anos a duração do Ensino Fundamental. Nesse sentido,
enquanto as novas Bases Nacionais Comuns Curriculares não forem implementadas, esses documentos que
analisamos continuam sendo consideradas as prescrições oficiais.

124
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

organização curricular pautada em eixos temáticos, conforme demonstramos no quadro a


seguir.

Quadro 1 – Organização Curricular PCN de História do Ensino Fundamental


Ensino Ciclos Eixos temáticos
Fundamental
Anos Iniciais Primeiro Ciclo História local e do cotidiano
Segundo Ciclo História das organizações populacionais
Anos Finais Terceiro Ciclo História das relações sociais, da cultura e do
trabalho
Quarto Ciclo História das representações e das relações de
poder
FONTE: BRASIL, 1997b. (Adaptado pela autora.)

Os eixos temáticos propostos para os anos iniciais do Ensino Fundamental


enfatizam o estudo de história local, sem deixar de considerar suas relações com o
regional, o nacional e o global. Esta preocupação em aproximar o aluno de seu cotidiano,
da sua família e de seu entorno visa a estabelecer identidades e diferenças com outros
indivíduos e grupos sociais presentes na realidade vivenciada por ele (BRASIL, 1997). Os
conteúdos propostos devem, assim, integrar a história do cotidiano da criança, do seu
tempo e do seu espaço a uma situação mais ampla, incluindo outros contextos históricos.
Em outras palavras, o ensino de história local e do cotidiano permite articular a história
individual a uma história coletiva (BITTENCOURT, 2011).

No primeiro ciclo, os PCN indicam que os alunos iniciem seus estudos pelo tempo
presente, comparando a vida em família com a de outra coletividade mais ampla a qual
passam a integrar – a escola. O estudo da localidade prevê um levantamento das
semelhanças e diferenças sociais, econômicas e culturais entre os alunos da classe e deles
com as demais pessoas que compõem a escola, além da identificação das mudanças e
permanências dos costumes das famílias e nas instituições escolares ao longo do tempo.
Neste sentido, os PCN apontaram que o ensino de história local proporciona aos alunos
informações favorecendo

[...] pesquisas com depoimentos e relatos de pessoas da escola, da família e de


outros grupos de convívio, fotografias e gravuras, observações e análises de
comportamentos sociais e de obras humanas: habitações, utensílios caseiros,

125
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

ferramentas de trabalho, vestimentas, produção de alimentos, brincadeiras,


músicas, jogos, entre outros (BRASIL, 1997, p. 40).

Após o conhecimento das características dos grupos sociais de convívio diário do


estudante, sugere-se a ampliação dos estudos sobre os modos de vida de outros grupos da
localidade no presente, traçando comparações. Por fim, é recomendada a pesquisa sobre o
passado do lugar para observar as transformações e as continuidades nas vivências sociais,
econômicas e culturais da coletividade no tempo. A partir disso, os PCN aconselham o
trabalho com a história de uma comunidade indígena que habita ou habitou a mesma região
onde os alunos moram, em virtude de possibilitar a percepção das mudanças ocorridas
naquele espaço e, concomitantemente, contribuir para o conhecimento dos costumes, das
relações sociais e de formas de trabalho diferentes do cotidiano do educando.

Apropriando-se do conhecimento sobre o local no qual residem, os estudantes


enriquecerão ―seu repertório histórico com informações de outras localidades para que
possam compreender que seu espaço circundante estabelece diferentes relações locais,
regionais, nacionais e mundiais‖ (BRASIL, 1997, p. 46), sendo esta a proposta para o
segundo ciclo do Ensino Fundamental. Somente o alargamento das fronteiras temporais e
espaciais possibilitarão aos sujeitos históricos a compreensão das particularidades locais,
bem como dos elementos partilhados e recriados a partir das relações com outros lugares.
Dessa forma, entendemos que as prescrições dos PCN estão em consonância com a
historiografia no que diz respeito ao ensino de história regional/local, visto que recomenda
a articulação do local com dimensões históricas mais amplas.

Os Referenciais Curriculares para o Ensino Fundamental do Estado da Paraíba –


RCEF-PB, publicado em 2010, também prescreveram o ensino de história local para os
anos iniciais do Ensino Fundamental. Considerando a estrutura de 9 anos, os RCEF-PB
estabeleceram como eixo orientador no 3º ano o estudo dos ―Grupos de convívio, grupos
sociais e sociedade no espaço vivido (local/cidade)‖, sugerindo os conteúdos a serem
trabalhados, conforme reproduzimos no quadro a seguir:

Quadro 2 – Organização de Conteúdos para o 3º ano do Ensino Fundamental – RCEF-PB

Unidade Conteúdo
I Nossos lugares de vivências e suas lembranças – ruas e bairros.

126
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

(Os lugares e a identidade social)


II Cidade – uma construção de muitos tempos. (Estrutura e
Organização Social: desigualdades sociais)

III Modos de Vida e Sobrevivência. (Relações de trabalho, produção
e cotidiano, relação cidade/campo)

IV Administração, Cidadania e Cultura. (Relações de Poder,


participação política, Culturas e Diversidades Culturais)

FONTE: PARAÍBA, 2010. (Adaptado pela autora.)

Nesta proposta, espera-se que o aluno conheça os aspectos de constituição da rua,


do bairro e da cidade onde vive como lugar, percebendo suas funções e organização como
resultado da experiência histórica dos moradores na atualidade ou em outros tempos. O
ensino da história do local de vivência suscita discussões e reflexões acerca das ações
possíveis para melhorar as condições das ruas/bairros ou cidade, contribuindo para a
formação e consolidação da identidade social dos estudantes que passam a se
reconhecerem enquanto agentes responsáveis e transformadores de sua própria história
(PARAÍBA, 2010).

Se o local é o objeto de estudo indicado para o 3º ano do Ensino Fundamental, os


RCEF-PB ampliaram a escala de observação no 4º ano ao prescreveram o ensino de
História da Paraíba. No eixo ―Sociedade, grupos sociais e suas relações em diferentes
espaços e tempo‖, os referenciais estabelecem o estudo da história local (Paraìba) em
articulação com a história nacional, como demonstramos no quadro abaixo:

Quadro 3 – Organização de Conteúdos para o 4º ano do Ensino Fundamental - RCEF-PB

Unidade Conteúdo
I A história que se narra – passos para a pesquisa e a história que se
faz. Histórias do meu lugar
II O cotidiano e a formação política – tempos da Paraíba (Abrir para
o Brasil)

III No dia-a-dia, no trabalho e na luta – tempos da Paraíba (Abrir
para o Brasil)

127
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

IV Vive-se e aprende-se a viver na diversidade: educação, cultura,


esporte e lazer na Paraíba

FONTE: PARAÍBA, 2010. (Adaptado pela autora.)

O caminho apontado pelos RCEF-PB para os anos iniciais do Ensino Fundamental


parte do estudo da identidade pessoal e social (eu e nós) para o local/regional (rua, bairro,
cidade, estado), buscando sempre a associação com temporalidades e espacialidades mais
estendidas. Neste sentido, os RCEF-PB estão em conformidade com as prescrições dos
PCN, indicando ―que os estudos sejam disparados a partir de realidades locais, ganhem
dimensões históricas e espaciais múltiplas e retornem ao local, na perspectiva de desvendá-
lo, de desconstruí-lo e de reconstruí-lo em dimensões mais complexas‖ (BRASIL, 1997b,
p. 47). No entanto, os próprios referenciais apontaram que um dos entraves a efetivação
desta proposta curricular é a ausência ou inadequação de materiais didáticos que
privilegiem as histórias regionais/locais.

Em razão das orientações dispostas nos PCN, reverberadas nos RCEF-PB, o


Programa Nacional do Livro Didático – PNLD incluiu em seus editais, a partir de 2004,
uma convocação de editores para o processo de seleção e aquisição de livros de História
Regional, visando a atender uma demanda por materiais didáticos que contemplassem a
história regional/local. O Programa definiu critérios de avaliação destes materiais, muitos
dos quais são comuns a análise das coleções didáticas, como a inserção da História e da
Cultura da África, dos afrodescendentes e dos povos indígenas, por exemplo. Embora a
avaliação destes artefatos só tenha se iniciado em 2004, a sua produção e distribuição nas
escolas é anterior a seleção do PNLD e extrapola seus critérios, conforme verificamos após
um levantamento dos materiais didáticos de História da Paraíba.

Há uma variedade de artefatos que podem ser usados no contexto escolar com a
função de contribuir no processo de ensino e aprendizagem, sendo, portanto, denominados
materiais didáticos. Deste universo, selecionamos os livros que se dedicam ao ensino da
história local que, segundo Freitas (2009, p. 9), ―registram a experiência de grupos que se
identificam por fronteiras espaciais e socioculturais – seja na dimensão de uma cidade, seja
nos limites de um Estado ou de uma região do Brasil‖.

128
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Após um levantamento dos materiais de didáticos de História da Paraíba,


publicados nas duas últimas décadas, inventariamos 19 títulos45, dos quais seis são
destinados aos anos iniciais do Ensino Fundamental (32%), nove aos alunos do Ensino
Médio (47%) e em quatro títulos não há indicação de nível de ensino (21%). Este conjunto
de fontes é diverso quanto ao tipo de abordagem, variando entre livros didáticos,
paradidáticos, história em quadrinhos, manuais de preparação para vestibulares e
concursos, coletânea de textos e livros temáticos.

Embora o ensino de história local não esteja expressamente indicado nas


orientações curriculares nacionais para o Ensino Médio, como ocorre nas prescrições dos
anos iniciais do Ensino Fundamental, esta temática foi contemplada nos conteúdos
programáticos dos exames de ingresso das universidades públicas do estado da Paraíba
durante longo período precedente a implementação do ENEM – Exame Nacional do
Ensino Médio, como instrumento de seleção46. Portanto, o ensino de história local nas
escolas de Ensino Médio da Paraíba – públicas e privadas, esteve mais atrelado à
preparação para os vestibulares das instituições de ensino superior do estado do que às
exigências curriculares dos referenciais nacionais ou locais, justificando o número
considerável de publicações encontradas.

Já os materiais didáticos destinados aos anos iniciais do Ensino Fundamental 47


formam um total de seis títulos, sendo cinco livros didáticos e um paradidático, publicados
em 1997, três em 2011, um em 2014 e o outro em 2007, respectivamente. Dos cinco livros
didáticos de história destinados aos anos iniciais do Ensino Fundamental encontrados em
nosso levantamento, quatro foram analisados e aprovados pelos editais para o PNLD 2010,
2013 e 201648, por atenderem aos critérios de seleção estabelecidos.

45
Esses materiais didáticos foram encontrados em vários acervos pessoais, em livrarias comerciais, em
bibliotecas de Instituições de Ensino Superior (IES) e de escolas públicas municipais e estaduais e ―sebos‖ na
cidade de João Pessoa-PB. Consultamos editoras, bibliotecas e ―sebos‖ on line.
46A temática local figurou/figura entre os conteúdos programáticos de certames de ingresso no serviço
público do estado, como por exemplo, no concurso para Oficiais (Polícia e Bombeiros) e para professores da
Educação Básica. Registramos também, que por conta dessas exigências a História da Paraíba é contemplada
em duas disciplinas no curso de Graduação em Licenciatura Plena em História da Universidade Federal da
Paraíba.
47
Os anos finais do Ensino Fundamental (do 6º ao 9º ano, antigas de 5ª a 8ª série) não tem indicação nos
PCN, nem nos RCEF-PB para o estudo da História da Paraíba, porém isso não significa que os professores
não possam lecionar esse conteúdo, inclusive se levarmos em conta a necessidade da adoção do jogo de
escalas entre o global – nacional – regional – local.
48
Os livros didáticos distribuídos pelo FNDE, através do PNLD, devem ser utilizados por três anos
consecutivos. Os livros de língua portuguesa, matemática, ciências, história, geografia e os livros regionais

129
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

O livro didático regional destinado aos anos iniciais do Ensino Fundamental e


registrado no PNLD possui um significativo diferencial sobre os demais materiais
encontrados, isto porque este artefato é bastante prestigiado pelas políticas públicas
direcionadas à Educação Básica. Segundo Freitas (2009), o Brasil é o país que mais investe
na aquisição e distribuição de livros didáticos e, para isso, utiliza recursos provenientes do
Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação – FNDE. Por este motivo, certamente,
estes livros têm uma circulação e um alcance maior se comparado aos demais.

Ao procedermos o levantamento dos materiais didáticos de História da Paraíba,


verificamos que a maioria dos livros catalogados aborda a história do estado a partir da
divisão tradicional (Colônia, Império, República), apresentando também aspectos da
cultura local, bem como os símbolos do estado. Espera-se que por meio do estudo da
história local os estudantes percebam as transformações sucedidas ao longo do tempo e
reconheçam-se como parte deste processo, a fim de formarem a sua identidade de
paraibano.

REFERÊNCIAS

BITTENCOUT, Circe Maria Fernandes. Ensino de história: fundamento e métodos. 4ª ed. São
Paulo: Cortez, 2011.

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cultura, Caxias do Sul,v. 2, n. 2, p. 11-32, jul./dez. 2002.

DONNER, Sandra Cristina. História Local: discutindo conceitos e pensando na


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FREITAS, Itamar (org). História regional para a escolarização básica no Brasil: o livro didático
em questão (2006/2009). São Cristóvão: Editora UFS, 2009.

são reutilizáveis, ou seja, devem ser devolvidos ao final do ano para serem utilizados por outros alunos. Os
editais, publicados com intervalo de três anos para cada nível de ensino, estabelecem as regras para a
inscrição do livro didático, determinando o prazo e os regulamentos para a habilitação das obras pelas
editoras. Eles são geralmente publicados 2 anos antes do início da vigência das obras, assim o PNLD 2016,
por exemplo, teve Edital publicado em 2014, avaliação e distribuição em 2015, com vigência entre 2016-
2018. Por este motivo, a estrutura de organização do PNLD é trienal.

130
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

GUIMARÃES, Selva. Didática e prática de ensino de História: Experiências, reflexões e


aprendizados. 13ª ed. ver. e amp. Campinas: Papirus, 2012.

LEVI, Giovanni. Sobre a micro-história. In. BURKE, Peter (org.). A escrita da história: novas
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TOLEDO, Maria Aparecida Leopoldino Tursi. História local, historiografia e ensino: sobre as
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PARAÍBA. Secretaria de Estado da Educação e Cultura. Gerência Executiva da Educação Infantil e


Ensino Fundamental. Referenciais Curriculares do Ensino Fundamental: Ciências Humanas,
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Disponível em
<http://portal.virtual.ufpb.br/historia/novo_site/Biblioteca/complementares/rcefvol2cienciahumana
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BRASIL. Presidência da República. Lei nº 12.796, de 4 de abril de 2013. Altera a Lei no 9.394,
de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para dispor
sobre a formação dos profissionais da educação e dar outras providências. (2013). Disponível em
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2013/Lei/L12796.htm#art1> Acesso 28
mai. 2015.

131
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

SESSÃO COORDENADA “HISTÓRIA E CULTURA”


COORDENADORES:
ANA PAULA DA CRUZ PEREIRA DE MORAIS & MARIA
LUCINETE FORTUNATO

O VELÓRIO É UM ESPETÁCULO: TRAJES E TRAJETOS PARA O PREPARO


DA BOA MORTE E NA HORA DO MORTO

OLINDINA TICIANE SOUSA DE ARAÚJO49


UEPB
[email protected]

ORIENTADORA: MARIA DO SOCORRO CIPRIANO50

RESUMO

Pautando na necessidade de (re)conhecer os lugares constituídos por elementos históricos


e culturais destinados às práticas ritualísticas da morte e ao preparo do morto, em Nova
Palmeira-PB, este texto pretende, mediante a análise de fotografias de época, pensar o ato
de velar o corpo morto, compreendido enquanto ritual fúnebre doméstico, como uma
manifestação de sujeitos vivos para assegurar a passagem do morrente à vida eterna,
entendendo a ação de fotografar os velórios como uma prática responsável por garantir a
perpetuação da memória do morto e reforçar a existência da morte entre aqueles que
possuem o registro do momento fúnebre em imagens fotográficas. Sendo assim, o trabalho
está norteado pelos referências teóricos de João José Reis, Michel Vovelle, Philippe Ariès,
dentre outros.
Palavras-chave: Fotografia. História. Morte. Velório. Ritual.

49
Graduanda em História Licenciatura pela Universidade Estadual da Paraíba, campus de Campina Grande-
PB.
50
Professora efetiva vinculada ao Departamento de História da Universidade Estadual da Paraíba, campus I.

132
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

INTRODUÇÃO

Em algumas culturas a ausência do ente querido passa a ser representada por


objetos pessoais e memórias iconográficas. Afinal, diante da morte, como reter o corpo que
desaparece diante dos olhos?
Durante a pesquisa e o exercício da escrita histórica, percebi que não seria possível
delimitar as fotografias de mortos insolados ou de mortos e vivos sobre uma mesma
circunstância à região de Nova Palmeira, pois havia muitos retratos mortuários que
chegaram aos seus donos e donas como objetos iconográficos recheados por laços de
afetividades e lembranças, às vezes, com dedicatórias de saudades e outras de um último
adeus.
Outras imagens trouxeram as atitudes diante da morte pratica pelos próprios
habitantes de Nova Palmeira em décadas passadas. Em algumas fotografias de muitos anos
as informações sobre as pessoas que aparecem próximo ao defunto se perderam, estando-
me, pois, perante ausência de referências e o esquecimento apresentado pelos proprietários
das fotografias. Mesmo com estes detalhes anunciados, minha intenção não foi realizar um
trabalho sobre a antropologia da morte, mas estabelecer olhares múltiplos sobre os trajetos
incorporados pela morte e o morrer, em Nova Palmeira, no século XX.
Antes de tratar desse universo sensível da morte e das práticas do morrer no
contexto da cidade de Nova Palmeira, nas décadas de 40 e 50 do século XX, é necessário
historicizar a emergência da fotografia e o seu uso no campo de produção histórica, as
questões entorno da morte e as possibilidades de interpretações sobre os retratos fúnebres.

A INTERMITENTE DA VIDA: A MORTE


Os rituais fúnebres, entendidos como evidencias da morte, assumem funções sociais
e culturais importantes em determinadas sociedades Ocidentais, pois as práticas, ainda
resistentes em relação ao cuidado com a morte e o corpo do morto, embora podendo está
ressignificadas e adaptadas mediante a realidade social de um dado contexto, reafirmam a
existência do morrer e, consequentemente, externalizam a experiência de finitude humana.
A história da morte vem despertando interesses, dentre outras coisas, pelas atitudes
diante da morte (re)lidas em várias sociedades como processos contínuos ou descontínuos,
conforme as ideias e os comportamentos acerca das concepções de morte, do morto e do
morrer. Pensando a diversidade de estudos realizados por historiadores e as mudanças
diante das atitudes à morte, apresenta Reis (1991, p.73): ―Os estudos já elaborados,

133
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

principalmente na França, são numerosos o bastante para que seja possível fazer um
mapeamento básico do tema. (...) apesar de obedecer a ritmos e lógicas culturais próprios‖.
De tal modo, entende-se que o ser humano se mantem em estado de angústia diante
da morte e é ser histórico pela finitude física e ação no tempo. Assim, desde os
pensamentos remotos, o coletivo humano buscou anemizar as problemáticas do morrer
com alternativas que apresentassem a morte como uma condição natural, estando, pois, em
convivência real com a continuidade da vida representada pelas manifestações dicotômicas
e, ao mesmo tempo, assíduas, sendo experimentada pela sociedade que fabricou os seus
símbolos, os cultos e as ritualísticas, compreendidas, também, enquanto tentativas de
dominar a morte em vida e a vida pós a morte.
Em outras palavras, segundo Carneiro (2012, p.25), ―A morte é problemática para
os vivos, de modo que sua ritualização tem tido a função de lidar com o contexto da
finitude. O sentido deste jogo existencial (...) elabora-se e apresenta-se para os
sobreviventes‖. Ainda assim, a ideia de morte parece comover e a lembrança recorrente da
condição de desaparecer não é a única preocupação dos vivos.
Sobre estes pilares, a experimentação do morrer passa a ser algo acontecido de
forma solitária pelo moribundo, mas a vivência da morte torna-se uma ação sentida e
consentida por práticas coletivas desenvolvidas por valores próprios advindos de cada
grupo social. Segundo Chiavenato (1998, p.105), ―O homem não tem experiência pessoal
da morte- a morte que ele conhece e ―experimenta‖ é a morte do outro: a sua consciência é
a da morte alheia‖.
Na mesma proporção em que o ser humano vivencia a morte do outro, ele passou a
temer a própria morte. Por estas circunstâncias, os indivíduos costumam inventar uma série
de rituais para assegurar o cumprimento da relação entre vida e morte. Em sociedades que
estabelecem ligações com Deus(es), segundo Chiavenato (1998, p.15), nota-se que:
―Dentro dessa cultura a morte raramente é encarada como natural ou normal. Natural ou
normal é a vida‖.
Portanto, percebeu-se que os seres humanos tiveram, quase sempre, o cuidado com
a morte e, sendo assim, o medo de morrer se fez atrelado a este processo. Mesmo com
todos os preparos em vida, a morte se coloca como um evento inesperado, como uma ação
dolorosa com rupturas de afeto físico e que depois se apresenta enquanto mistério
indecifrável.

134
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

A FOTOGRAFIA
No século XIX, o ato de capturar a imagem e fixa-la foi uma invenção que seduziu
muitos contemporâneos e provocou desconfianças por parte de outros. Mas, passadas
algumas décadas, o retrato vai-se tornando objeto de luxo e privilégio para quem pretendia
se fazer representar em vida e também para eternizar a memória de um parente morto, ao
exemplo dos retratos fúnebres, que se transformam numa espécie de ritual moderno.
A fotografia surge por volta do início do século XIX, enquanto uma técnica de
reproduzir imagens de forma mecânica mediante o uso de equipamentos e sob o processo
de substâncias químicas para a obtenção do material e das informações contidas nas
imagens produzidas. Assim, para compreender a finalidade imposta à fotografia ainda no
século XIX, Mauad (1996, p.2) diz que: ―O caráter de prova irrefutável do que realmente
aconteceu, atribuído à imagem fotográfica pelo pensamento da época, transformou-se num
duplo de realidade, num espelho, cuja magia estava em perenizar a imagem que refletia‖.
Desde a sua trajetória, a fotografia e o seu uso foi apreciado pela sua capacidade de
apreensão em recortes de um contexto e como provas, indícios, relacionados à existência
de um fato, que exibiu acontecimentos de interesse público, apresentando, assim,
fragmentos visuais sobre as ações, as vestimentas, as diversas atividades dos sujeitos, etc.
Conforme Kossoy (2009, p.19), ―(...) a fotografia ganhou elevado status de credibilidade.
Se, por um lado, ela tem valor incontestável por proporcionar continuamente a todos (...),
por outro, ela sempre se prestou e sempre se prestará aos mais diferentes e interesseiros
usos dirigidos‖.
Vale ressaltar que a concepção de fotografia, como reprodução da realidade e
verdade dos fatos simples e límpido, tornou-se um pensamento desmanchado pelos vários
críticos que apontaram a existência de intencionalidades, denunciando a evidência das
múltiplas interpretações sobre uma determinada fotografia, por exemplo. Pois, a imagem
capturada pela lente da máquina fotográfica é resultado da escolha de um ângulo, de um
olhar e, portanto, ela apenas representa o fragmento do real. Mauad (1996), por exemplo,
entende que entre o objeto e a representação da imagem existe uma série de fatores
ajustados construídos historicamente e culturalmente, de acordo com a inserção no espaço
e tempo.
Quando do uso da fotografia como fonte historiográfica, Kossoy (2009, p.22)
defende que ―Cabe aos historiadores e especialistas no estudo das imagens, a tarefa de
desmontagem de construções ideológicas materializadas em testemunhos fotográficos‖. Ou

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

seja, as imagens fotográficas não são repositórios de verdade única, fixa e invariável. Pelo
contrário, ainda conforme Kossoy (2009), há uma incessante necessidade de decifrar
aquilo que está intrinsicamente representado nas fotografias, pois é importante
compreender as razões que levou o sujeito fotógrafo criar a imagem, já que a mesma está
em diálogo com os seus elementos constitutivos.
Para Mauad (2008, p.37), ―Nesse sentido, o fotógrafo atua como mediador cultural
ao traduzir em imagens técnicas sua experiência subjetiva frente ao mundo social‖. Em
outras palavras, o que se encontra na imagem fotografada como assunto é fruto de uma
sequência marcada pela seleção de escolhas atreladas ao processo de criação da fotografia,
estando, pois, conduzida, organizada e idealizada pelo sujeito fotógrafo que captura a
imagem, uma representação a partir do real e a transforma em materialidade documental ou
apenas em um registro de estilo de vida.
Conforme o exposto, a fotografia, neste caso específico, se reconhece como fonte
para a produção da escrita histórica e exige do historiador um lugar de interpretação, pois
há fotografias que um dia esteve presente no contexto de sua produção e foi guardada entre
as lembranças, como indícios de memória do passado, junto as pistas deixadas por quem a
produziu e usou de alguma maneira. Também não se pode negar a existência de fotografias
que desejam recuperar o seu lugar de presente, embora fazendo parte de outro/novo
contexto e a partir de outros/novos olhares. Deste modo, compartilho da ideia de Mauad
(1996), quando: as imagens não falam sozinhas, é preciso fazer-lhes as perguntas.

OS RETRATOS MORTUÁRIOS
Com o surgimento da fotografia no século XIX, juntamente com a sua utilização no
Brasil e em outras partes do mundo, não é de estranhar a infinidade de possibilidades
registradas pelas lentes da câmera fotográfica, uma vez que podemos vê em imagens a
reprodução possível do real, desde convivências e experiências do cotidiano até a própria
morte, embora seja uma morte do outro.
Ainda no início do século XIX, a circunstância de criar um registro fotográfico da
família ou de um membro ficou durante muito tempo restrito às condições de famílias
abastadas na sociedade, pois o custo financeiro de uma fotografia era relativamente alto
naquele contexto. Todavia, durante o século XX, o valor do registro fotográfico tornou-se
mais acessível, assim, as máquinas fotográficas e o ato de fotografar passaram a alcançar,
de certa forma, vários segmentos sociais.

136
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

A fotografia mortuária surge logo após o ato fotográfico e se tornar arte, enquanto
técnica e capacidade de perenizar momentos tidos como parte de um presente que já se
transformou em passado. Conforme Koury (2006, p. 107), no Brasil, ―Sua popularização,
contudo, vai se dar entre os anos de 1920 e 1950, quando é utilizada por várias camadas da
população‖.
Ainda, assim, o retrato do morto faz parte das intimidades e da privacidade de
álbuns fotográficos, caixas de sapatos, gavetas ou envelopes de seus familiares como uma
tentativa de eternização da memória através da imagem do morto. Por isso que, nas
palavras de Koury (2006, p. 106), o registro fotográfico do morto e do seu momento de
morte ―(...) tem por função preservar o corpo morto de um ente querido para a posteridade,
na hora final de despedida, antes do sepultamento‖.
As imagens de morte, assim como outros rituais e objetos interligados às
manifestação de luto, assumem o papel social e de produção de memória coletiva ou
individual para representar o sujeito morto de forma visual, visto que uma das aparentes
pretensões é preencher simbolicamente um espaço lacunar deixo pela ausência física do
morto entre os familiares. Segundo Soares (2007, p.19), ―A representação imagética
assume o papel de instrumento de apoio para o bom trabalho de luto e, (...) como uma
forma de lutar contra a ameaça que cerca a todos os indivíduos, a assustadora ameaça do
esquecimento‖.
A necessidade de reproduzir as feições de morte, mediante a representação do
morto em telas pintadas, esculturas e, posteriormente, fotografias, tornou-se uma prática
recorrente, já que a finalidade de retratar o morrer impõe-se de maneira significativa e
simbólico entre determinados grupos sociais, pois aquele que é ou está sendo representado
não irá compor, a partir daquele momento consumado pela morte, a vitalidade apresente no
mundo dos vivos.
Desde modo, para se entender uma fotografia como fonte, e neste caso específico a
fotografia mortuária, é preciso reconhecê-la como um objeto inserido em uma dada
sociedade e produto da mesma, coexistindo junto a um sistema articulado de diversificados
códigos e símbolos fornecidos pelo próprio universo cultural da sociedade que a produziu
sobre circunstancias de cortes temporais e de espaço. Sobre os ―cortes‖ da fotografia nas
palavras de Dubois (2012, p.168): ―O ato fotográfico implica portanto não apenas um gesto
de corte na continuidade do real, mas também a ideia de uma passagem, de uma
transposição irredutìvel‖.

137
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Ainda no século XIX, os mortos eram fotografados em seus leitos de morte


contidos em suas moradias, visto que essa herança foi proveniente das práticas realizadas
nas pinturas fúnebres. Assim, os retratos mortuários tornam-se vastos, ricos de significados
e variados em estilos, tamanhos e cor, mostrando-nos a variedade de rituais fúnebres
agregados ao cotidiano da morte conforme sexo, idade, condições econômicas, crença
religiosa, posição social e práticas culturais. Para Kossoy (1989, p.22), ―A imagem
fotográfica é o que resta do acontecimento, fragmento congelado de uma realidade
passada, informação maior de vida e morte (...)‖.
Os retratos mortuários podiam apresentar o defunto da cintura para cima ou com
todo o corpo, com enquadramento lateral, mediante um distanciamento suficiente entre o
fotógrafo e o fotografado, podendo fazer parte da imagem os familiares, mobílias
decorativas da casa, artefatos pessoais do morto ou símbolos de religiosidade. Para Koury
(2006, p.107), ―Em todas elas um conjunto de convenções indica não apenas a boa morte,
ou a morte tranquila, mas também o luto, a dor impressa no rigor das vestes e nas
expressões dos que ficam. Indicam também a importância do morto, e de sua família, na
comunidade‖.
Destarte, a fotografia mortuária, no caso do Brasil, atingiu auges de prática em
determinados contextos sociais, mais precisamente na primeira metade do século XX,
depois de 1950 o ato fotográfico fúnebre se popularizou e hoje o reconhecimento da
cultura de imagens mortuárias ganharam outras ressignificações ou, até mesmo, o
desinteresse de uso/práticas pelas gerações mais atuais.

A BOA MORTE NA HORA DO MORTO


Algumas culturas, principalmente as compreendidas à sociedade Ocidental, criaram
e enraizaram, ao longo dos séculos, entre seus pares, cautelas para a condição do
nascimento e da morte. A cultura Ocidental cristã externalizou uma notória preocupação
em relação ao destino da alma depois da morte, por isso desenvolveram rituais para
assegurar o ideal de bem morrer ou boa morte, na tentativa de segurança aos vivos a
realização fundamental da passagem dos mortos à morte.
No referente ao preparo da morte e do corpo morto, alimentou-se entre as
sociedades do Ocidente, por exemplo, a crença de que se o morto fizesse uma passagem
plena e feliz ajudaria os vivos, quando da interseção junto aos agentes religiosos do mundo
espiritual. Conforme Reis (1991, p.90), ― Daì terem as pessoas todo o interesse em cuidar

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

bem de seus mortos, assim como da própria morte. (...) Os mortos ganharam mais
importância no catolicismo popular, ainda impregnado de fortes componentes mágicos e
pagãos‖.
O medo da morte, em contextos passados, não estava unicamente atrelado a
condenação da alma à passagem do purgatório ou ao inferno. Destarte, ―Efetivamente ,
existe uma ponte entre os dois mundos, que é o medo de ser enterrado vivo e a ameaça da
morte aparente‖. (ARIÈS, 2003, p.157). A morte aparente, inesperada ou repentina,
preocupou e perturbou durante décadas as sociedades cristãs por causa dos projetos
fracassados de bem morrer. De fato, o que sabemos é que mudam as maneiras de morrer e
as atitudes diante da morte, mas o medo da mesma continua presente na sociedade
ocidental, principalmente, até os dias atuais, como colocado por Chiavenato (1998).
O medo beirava muito mais a possibilidade de viver sem um plano para a morte,
que, na maioria das vezes, se apresentava em forma de testamento, pois este preparo do
bem morrer atenuavam as preocupações em relação ao destino no além e condicionava os
vivos a atender os pré-requisitos deixados pelo moribundo. Sendo assim, nas observações
de Ariès (2003, p.69), ―Do século XIII ao século XVIII, o testamento foi o meio para cada
indivíduo exprimir, frequentemente de modo muito pessoal, seus sentimentos, sua fé
religiosa, seu apego às coisas, aos seres que amava (...)‖.
Os últimos sacramentos empreendidos pela igreja católica, a exemplo da extrema-
unção, eram realizados como auxìlio de encaminhamentos da alma na hora do morto. ―O
sacramento perdoava os pecados pendentes do enfermo, culpas esquecidas durante a
confissão, mas podia também resultar em sua recuperação fìsica (...)‖. (REIS, 1991, p.103).
No entanto, é importante ressaltar que muitos morriam sem os sacramentos pelas
condições sociais ou em consequência da morte inesperada. De acordo com Reis (1991,
p.100), ―Uma boa morte era sempre acompanhada por especialistas em bem morrer e
solidários espectadores. Ela não poderia ser vivida na solidão‖.
Durante a exumação da morte do moribundo, porta e janelas da casa eram fechadas
para evitar a entrada de maus espíritos e, quando do velório, as mesmas eram abertas para a
saída da alma do morto da residência, como bem apresenta em Reis (1991) no livro a
Morte é uma Festa. Ao analisar uma iconografia do século XII, sobre a hora da morte,
Ariès (2003, p.50) observa concepções do imaginário da morte: ―(...) um espetáculo
reservado unicamente ao moribundo, que, aliás, o contempla com um pouco de inquietude

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

e muita indiferença. Seres sobrenaturais invadiram o quarto e se comprimem na cabeceira


do ―jacente‖.
Outro elemento assegurador da boa morte ou bem morrer eram as mortalhas. Como
qualquer outro costume mortuário no Brasil, as pessoas escolhiam as próprias mortalhas,
ao ponto de definirem cores e modelos, deixando esclarecidas as escolhas em seus
testamentos. No Brasil, o uso de mortalhas franciscanas foi uma herança oriunda das
influências portuguesas. Em muitos casos o traje de São Francisco de Assim foi utilizado,
pois acreditava que o santo possuía lugar de destacam no mundo espiritual cristão e que a
sua principal função era resgatar almas do purgatório.
A respeito da mortalha branca, ainda nos rituais fúnebres cristãs, aquela
simbolizava a pureza, a paz e a alegria de uma vida eterna, a certeza da ressurreição. Por
volta do século XIX e século XX ainda é possível, mediante os registros de óbitos e/ou
pelas fotografias mortuárias, observar o uso de lençóis brancos enrolados ao corpo do
defunto. Esta representação reproduzia a maneira do sepultamento de Jesus Cristo e
viabilizava a ressurreição à vida eterna. Nas palavras de Reis (1991, p.119), ―Havia
mortalhas brancas, pretas, coloridas, vermelhas. Havia mortalhas que imitava roupas de
santos (...), as de várias invocações de Nossa Senhora (...), muitas pessoas com os hábitos
de suas confrarias‖.
De tamanha importância, os velórios representavam um último reencontro do
defunto com os seus parentes e (des)conhecidos, além de apresentar-se como uma maneira
de saudar o desejo pela boa passagem do morto à vida eterna. Os nítidos funerais do século
XIX, no Brasil, principalmente os de origem africana, eram explícitos espetáculos
públicos, uma vez que ―O barulho, e não o silêncio, acompanha os rituais fúnebres em
diversas sociedades, nas quais é visto como facilitador de comunicação entre o homem e o
sobrenatural. Entre os africanos, por exemplo, a morte silenciosa era uma má morte‖.
(REIS, 1991, p.105).
No entanto, sobre contextos atuais, notamos a morte manifesta em condições
silenciosas e íntimas, nos mais particulares corpos sociais. Possivelmente, os velórios
modernos do final do século XX e início do XXI vêm ganhando novas releituras e novas
concepções enquanto um espetáculo da morte.
Mediante as fotografias mortuárias dos séculos passados, pode-se notar um
condimento nos gestos e o comportamento equilibrando dos participantes nas fotografias.
Parece que os velórios começam a assumir novas práticas ou negar costumes de outrora,

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

visto que as possibilidades de espetacularização do morrer ainda se exibem nos trajes


mortuários, nas cenas arranjadas e na certeza da existência da morte vivenciada pelo
espectador. Portanto, ―Em fotografias de velórios raras vezes podem ser percebidos gestos
de desespero, pranto, momentos de desmaio ou exaltação‖. (RIEDL, 2002, p.17).
Diante disso, podemos perceber as múltiplas possibilidades de preparo e atitudes
diante da morte e do morrer iniciadas pelos seres humanos, em um ciclo vital. No entanto,
torna-se importante enfatizar tais manifestações como elementos intrinsicamente imbuídos
por construções culturais e sociais, pensadas a partir de seus símbolos, signos e sinais
representados por suas crenças e imaginários.

MEMÓRIA(S) SAUDADA(S) PELA MORTE: NOVA PALMEIRA, SÉCULO XX


A este ponto, detenho-me aos retratos mortuários e a análise de seus respectivos
cortejos fúnebres, entendidos como atitudes diante da morte, praticados não apenas na
cidade de Nova Palmeira-PB51 em épocas passadas. De tal modo, primeiramente, refiro-me
àquelas fotografias que chegaram aos seus/suas respectivos(as) donos/donas como últimas
lembranças de seus familiares e amigos residentes em outras localidades.
Estas fotografias mortuárias podem assumir um caráter biográfico, pois se trata de
um registro imagético de um fim de ciclo destinados aos seres vivos: a morte. Além disso,
estimulam memórias ou silenciamentos, reafirmam laços de afetividade e recordações de
momentos envolvidos por lembranças fragmentadas. Para Kossoy (1989, p.101), ―Ela dá a
noção precisa do microespaço e tempo representado, estimulando a mente à lembrança
(...). É, para o historiador, uma possibilidade (...) de descoberta e interpretação da vida
histórica‖.
Estas mesmas imagens podem conter indício de crenças, a posição na sociedade e
as condições econômicas do defunto fotografado. Nesta perspectiva, em contextos
passados, as fotografias mortuárias serviram para presentificar a memória do morto entre
os vivos. Ou seja, ―(...) a foto, naquilo que faz o próprio surgimento de sua imagem, opera
na ausência do sujeito‖. (DUBOIS, 2012, p.32, grifo do autor).

51
A Pequena cidade de Nova Palmeira encontra-se localizada no Estado da Paraíba, a uma distância de
aproximadamente 240 km da capital João Pessoa, estando, também situada na microrregião do Seridó
Oriental Paraibano.

141
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

A imagem ao lado foi escolhida, dentre as várias encontradas nos álbuns de


família e caixas de sapato dos populares de Nova Palmeira, pela riqueza de elementos
constitutivos em cena, pelas possibilidades de interpretações com o auxílio da
historiografia mortuária (a história da morte) e pelas diversas leituras sociais e culturais
que a imagem fotográfica fúnebre exibe.
Ao modo de possíveis
Figura 01: Velório de Firmina
Rosa
Ano: 1951
Fotógrafo: Desconhecido
Suporte de papel no tamanho
11,5 cm x 17,5 cm
Acervo particular de Efigênia
Rosa Dantas (Dona Geninha).

observações gerais visíveis a


olho nu, podemos notar que o
retrato mortuário data de 1951 e
trata-se do velório da Senhora
Firmina Rosa residente, à época, no município de Parelhas-RN, visto que estás
informações são apresentadas no verso da fotografia. Ainda assim, podemos verificar as
condições físicas do papel usado para impressão da imagem, pois o mesmo apresenta
rachaduras, desgastes ocasionados pelo tempo e a forma de conservação, além de fissuras
realizadas pelas traças, principalmente.
A parte superior do caixão, no lado referente à cabeça da morta, está apoiada em
uma cadeira, na posição que permita a visualização do corpo morto de forma integral.
Assim, pode-se entender a intencionalidade do ato fotográfico, pois aparentemente a ação
do fotógrafo em capturar o momento já era esperada pelos espectadores que compõe o
retrato fúnebre, isso se justifica, dentre outras coisas, por algumas pessoas e todas as
crianças possuírem o olhar direcionado ao sentido do qual a fotografia é criada, ou seja, o
lugar do fotógrafo e da sua câmera fotográfica.
Deste modo, tornar-se notório o seguinte comportamento presente na figura 01,
mediante os apontamentos discorridos por Bourdieu (2006, p.38), ―Confrontado com um
olhar que fixa e imobiliza aparências, adotar a mais digna das atitudes, a mais sóbria e a
mais cerimonial, colocar-se de forma rígida e imóvel (...), é reduzir o risco de parecer
desajeitado (...)‖.

142
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Tal afirmação ainda nos faz recordar a ideia de que o ato fotográfico para algumas
dessas pessoas, representadas nesta imagem do velório, poderia ser uma condição distante
de suas realidades financeiras. Por isso, demonstram expressões faciais de tristeza pelo
momento vivenciado, mas se apresentam com atitudes controladas, sem choro ou gestos de
desespero, na tentativa de preparar uma imagem apropriada de si para os outros, como diria
Pierre Bourdieu (2006).
Outros aspectos interessantes presentes na imagem são os acessórios fúnebres,
enquanto definidores da integridade religiosa e moral do cadáver, como o caixão sem
tampa ou, pelo menos, podendo estar excluído da fotografia mortuária. Sobre este ponto,
subentende-se a ideia de representar a morta em um estado de sono profundo. De tal modo,
observa-se o corpo envolto de um lençol branco e não uma mortalha. Reis (1991) fala
dessa prática como uma tentativa de imitação à Cristo, cuja finalidade estaria relacionada a
certeza de sua ressurreição e condição de vida eterna.
Aparentemente, o velório aconteceu na sala da casa, pois observamos ligeiramente
pontos de iluminação na fotografia, em suas exterminadas esquerda e direita, apontando
um possível indício de porta e janelas abertas. Segundo a crença advinda das religiosidades
populares, durante o velório, porta e janelas da casa do defunto deveriam se manter abertas
para a saída de sua alma, como os pés também deveriam ficar na direção da porta para
encaminhar o espírito no bom caminho.
A ritualística fúnebre presente neste cortejo da morta Firmina Rosa se torna ainda
mais interessante e definidor de caráter social e econômico, quando da presença de um
padre em seus trajes sacerdotais. ―Na tradição registrada por Câmara Cascudo, a presença
de sacerdotes no funeral prevenia a metamorfose do morto em alma penada. (...) os padres
velavam o corpo para salva a alma (...)‖. (REIS, 1991, p.142). O retrato na parede do
Coração de Jesus, os três anjos meninas, a cruz por trás do padre e as duas velas nos
castiças (uma vela está acena) completam este cenário do velório com um espetáculo
fúnebre regido por elementos do catolicismo, pelas concepções que parte do imaginário
popular e pela certeza de vida eterna.
Vale ressaltar que o verso desta fotografia trás a seguinte mensagem de acessível
visualização: ―Osório Casimiro dos Santos e filhos, convidam sobrinhos e cunhados para
assistirem a missa que mandam celebrar por alma de sua inesquecível esposa. A missa no
dia 10 de setembro, as 7 horas. Para Maria Rita e família. Parelhas, 31 de agosto de
1951”. Portanto, vemos um caso de ―foto-convite‖ de missa com a imagem do velório. Sob

143
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

as palavras escritas no verso, observamos a memória e a saudade se confundindo entre as


frases. Este retrato se espalha por entre os familiares como um vestígio documental, um
indício partindo do real, que a senhora Firmina Rosa existiu e já se tornou inesquecível,
embora acredite que a mesma continue viva em algum lugar, quando da expressão:
―mandam celebrar por alma de sua inesquecível esposa‖.
Em muitas fotografias de defuntos encontradas nos álbuns de retratos ou envelopes
das pessoas de Nova Palmeira, foi observado, principalmente entre as décadas de 1950 a
1970, um maior número de fotografias de mortos ou o recebimento deste tipo de retrato
advindo de parentes com dedicatórias saudosas em manifestação de memória perenizada
do morto.
Em muitos casos, as seguintes expressões de saudade e desconforto para com a
morte estivem marcadas nos versos das fotografias mortuárias: a última lembrança do
irmão; última lembrança que parte para sempre; receba essa única lembrança de sempre;
guarde este como uma lembrança inesquecível; Saudades inesquecíveis do meu
inesquecível esposo; a minha querida vó ofereço está fotografia. Esta prática parece ser o
que RIELD (2002, p.30) observou nos retratos fúnebres encontrados no Cariri do Ceará:
―(...) os chamados santinhos, lembranças dos mortos, que parecem ter se tornado populares
apenas no século XX‖.
Nova Palmeira, na década de 1940, era um pequeno povoado conhecido pelo nome
de Riacho do Jerimum.52 Este mesmo povoado ainda não conhecia o sistema de energia
elétrica, pois a sua iluminação pública se dava pelas resistências criadas por um grande
gerador, ligado aproximadamente entre 18h:00 min e desligado por voltas das 21h:00 min
em casos mais extraordinários.
Certa vez, os moradores deste povoado Riacho do Jerimum, sob a luz de um
candeeiro, vivenciou algo extremamente novo para uma comunidade ainda tão pacata: o
primeiro assassinato, segundo o relato dos mais antigos residentes de Nova Palmeira. A
fotografia mortuária que será apresentada em seguida é fruto deste episódio que marcou a
memória de seus habitantes mais antigos e que, de fato, comoveu pelas circunstâncias da
morte repentina e trágica. Pouco se sabe sobre a história deste fato, o que nos restam são
apenas fragmentos provenientes da oralidade e, possivelmente, a presente fotografia.
Observamos adiante:

52
Nova Palmeira foi elevada a condição de município mediante a lei municipal de nº 3102/14-12-1963.

144
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

O morto do retrato usou o traje de São Francisco de Assis, sendo possível


identificar a presença do cordão ateado aos nós de um lado e do outro lado um terço preso
ao mesmo cordão. O uso desta mortalha de
santo poderia está atrelada a maneira da
morte do indivíduo, na medida a qual se
subentende que ele não teve tempo para
preparar a sua boa morte ou bem morrer.
Para Reis
Figura 02: Velório
(1991, p.120), ―O uso de Justo Lourenço
Ano: 1948
de mortalha de santos Carimbo da Photo
Pires
representava um apelo Suporte de papel no
tamanho: 6 cm x 9
para que eles
cm
ajudassem os mortos Acervo particular de
Manoel Roque
assim vestidos‖. Outro Ferreira.

fator determinante das


mortalhas é o seu caráter de proteger os
mortos em suas viagens para o além.
Seus braços estão cruzados, seu cabelo cortado e a barda feita. Estas características
estéticas elencadas nos remetem a um aparente cuidado com a ―última fisionomia‖ do
morto. Pois, a ideia não é fotografar a morte, visto que ela já aconteceu e nem cristalizar no
tempo os preparos do morrer, mas registrar aquilo que seria a última lembrança ou o
indício de que a morte aconteceu para o sujeito do retrato fúnebre.
As crianças meninas em trajes de anjo apresentam a idealização, propriamente dita,
de um ser angelical, com roupas brancas, asas e tiara com uma estrela de papel laminado.
Na concepção de Koury, estas coroas brilhantes representavam a iluminação do caminho
para eternidade. Em uma das grinaldas de flores de papel nota-se uma pequena faixa
escrita reafirmando, mais uma vez nas fotos de defuntos, a ideia de memória e afetividade:
Eterna Lembrança de seus pais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Sendo assim, na atividade de coletas das fotografias em Nova Palmeira, pude notar
a repetição com frequência desta imagem nos acervos pessoais de retratos fotográficos,
principalmente dos habitantes mais antigos. Há época, pareceu ser importante a presença

145
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

deste retrato mortuário de Justo Lourenço entre os arquivos particulares, por um desejo de
revisitar os laços emocionais e as memórias construídas em torno do episódio, no final da
década de 1940, como uma tentativa de regresso do morto ou, melhor dizendo, negação da
sua morte trágica percebida no ato da fotografia.
De fato, nem todas as competências de interpretação sobre os retratos mortuários e
os preparos à morte são decifradas por historiadores, porém fica nitidamente entendido que
estas imagens do morto ajudaram a fortalecer o processo do luto, reunir familiares,
demonstrar as posses do defunto em seu velório e preparar a sua passagem ao além.
Assim como outras maneiras intencionais de fotografar, a fotografia mortuária, em
conjunto aos trajes e trajetos para o bem morrer, reafirmam a necessidade de lembrar e o
denuncia o medo do esquecimento.

REFERÊNCIAS

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de Janeiro: Ediouro, 2003.
ARIÈS, Philippe. O Homem Diante da Morte. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1982.
BOURDIEU, Pierre; BOURDIEU, Marie-Claire. O Camponês e a Fotografia. Revista de
Sociologia Política, nº 26, p. 31-39, jun 2006.
CARNEIRO, Maristela. Construções Tumulares e Representações de Alteridade:
Materialidade e simbolismo no Cemitério Municipal São José, Ponta Grossa/PR/BR, 1881 a
2011. (Dissertação) Mestre em Ciências Sociais. Universidade Estadual de Ponta Grossa, Ponta
Grossa, 2012.
CHIAVENTO, Júlio José. A Morte: uma abordagem sociocultural. São Paulo: moderna, 1998.
(coleção polêmica).
DUBOIS, Philippe. O Golpe do Corte: a questão do espaço e do tempo no ato fotográfico. In__
O Ato Fotográfico. Tradução de Marina Appenzeller. 14º ed. Campinas, SP: Papirus, 2012, p.
161-217.
KOSSOY, Boris. Realidades e Ficções na Trama Fotográfica. 4º ed. São Paulo: Ateliê
Editorial, 2009.
KOSSOY, Boris. Fotografia e História. São Paulo: Ática, 1989.
KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro. O Imaginário Urbano sobre a Fotografia e Morte em
Belo Horizonte, MG, nos Anos Finais do Século XX. VARIA HISTORIA. Belo Horizonte,
vol. 22, nº 35, p.100-122, jan/jun 2006.
MAUAD, Ana Maria. Através da Imagem: fotografia e história interfaces. Tempo. Rio de
Janeiro, vol. 1, nº 2, 1996, p. 73-98.

146
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

MAUAD, Ana Maria. O olhar engajado: fotografia contemporânea e as dimensões políticas da


cultura visual. Artcultura. Uberlândia. Vol.10, nº 16, p.33-50, jan/jun 2008.
REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século
XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
RIELD, Titus. Últimas Lembranças: retratos da morte no cariri, região do nordeste brasileiro.
São Paulo: Annablume, Fortaleza: Secult, 2002.
SOARES, Miguel Augusto Pinto. Representação da Morte: Fotografias e Memória. Porto
Alegre-RS. Dissertação (Mestrado em História) Universidade Católica do Rio Grande do Sul,
Porto Alegre-RS, 2007.
VOVELLE, Michael. A morte e o além-mundo na Provença segundo os altares dedicados às
almas do purgatório (séculos XV-XX). In:___ Imagens e Imaginário na História. São Paulo:
Átila, 1997, p.44-85.

147
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

DO ROCK BRASIL AO ROCK POPTYGUAR: UM CENÁRIO DE


CONTRACULTURA SOB OS ARES DA NOVA REPÚBLICA

BRENDA SOARES SILVA


UFCG
[email protected]

RESUMO

Artigo retirado da pesquisa de mestrado intitulada: ―Na trilha da redemocratização: Rock,


Representação e Identidade em Natal/RN‖, em desenvolvimento junto ao Programa de Pós
Graduação em História da Universidade Federal de Campina Grande. A partir da noção de
cenário, objetivamos apresentar o rock nacional – BRock – e local – Rock PopTyguar –
compreendendo-os enquanto relacionados. Para tanto conceituamos a produção musical
brasileira de rock da época e apresentamos o contexto contracultural natalense oitentista e
as bandas estudadas – Fluidos e Modus Vivendi, Cabeças Errantes, Cantocalismo e
Alfândega; bem como analisamos algumas canções produzidas. Teoricamente nos
pautamos nas discussões de Luiz Tatit, Jannoti Jr., Marcos Napolitano, entre outros.
Palavras-chave: Rock; Cenário; Natal.

ROCK BRASIL: UM GÊNERO E CENÁRIO

O cenário Rock Brasil, traz em seu background influências do movimento punk53


britânico da década de 1970 como Artur Dapieve salienta: ―Mesmo que preferisse formas
menos agressivas [...] este BRock devia tudo, corpo e alma, ao lema punk, „do-it-
yourself‟54, faça-você-mesmo.‖ (DAPIEVE, 1995, p.23)
Produzido por músicos que nasceram, em sua maioria, na década de 1960 e
cresceram sob o contexto político militar, o contato direto com o período foi fundamental
para o desenvolvimento dessa vertente do rock nos anos 1980 – influenciada pelo punk. O

53
O surgimento do punk rock foi uma reação aos rumos tomados pelo desenvolvimento do rock nos anos
1970, siginificando uma volta a alguns parâmetros iniciais do gênero, relacionados à simplicidade na
composição e na execução musical [...] com um verniz mais agressivo e adaptado aos novos tempos.Dentre
alguns elementos trazidos pelo punk rock, destacam-se, em termos de performances envolvendo palco e
plateia, o mosh (salto dos artistas sobre a plateia) e o pogo ou a roda (espécie de encanação de brigas
envolvendo o público nos shows). (SILVA, 2013, p.58)
54
O rock ouvido na década de 1980 aqui no Brasil é tributário do movimento punk inglês que explodiu em
1977 com o lema do-it-yourself (faça-você-mesmo). Mesmo as bandas brasileiras que não possuíam qualquer
vinculação orgânica com a estética ou a sonoridade punk, herdaram essa tradição, essa possibilidade de
criação sem preocupações estéticas rigorosas. O fato é que esse lema, essa prática, deu condições a jovens
sem qualquer intimidade com instrumentos musicais, a condição de com uma guitarra, um baixo e bateria
expressar seus sentimentos, opiniões, dores, angústias e reivindicações. Possivelmente essa seja uma das
explicações para o surgimento de centenas de bandas em torno do rock nos anos de 1980 no Brasil. (SOUZA,
2005, p.18-9)

148
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

punk quer desafiar, e principalmente enfatizar os problemas sociais, a situação econômica


desfavorável, e encontra na música uma ótima forma de se expressar. Os brasileiros
acabam flertando com esta abordagem e o Rock Brasil neste período traz muito dessa
influência.
Como destaca Silva, ―O punk rock e a new wave 55 eram as principais influências
para boa parte da geração das novas bandas brasileiras de rock que apareceram no início
dos anos 1980. Tal geração, no ápice de seu estouro comercial [...] começa a ser
denominada como pop rock ou BRock.‖ (2013, p.70)
O BRock, ou Rock Brasil da década de 1980, tem como bandas representantes
Titãs, Legião Urbana, Engenheiros do Hawaii, Os Paralamas do Sucesso, Camisa de
Vênus, Barão Vermelho, Ira!, Ultraje a Rigor, Plebe Rude, Garotos Podres, entre outras.
Os seus arranjos privilegiam o som das guitarras e muitas vezes incluem solos de baixo,
bem como as canções têm, em média, uma duração em torno de 3 minutos.
Para situar a cena rock historicamente, tendo em vista entender suas influências e
trocas de experiências com o momento, torna-se necessário discutir brevemente a categoria
de gênero musical. Podemos seguir a discussão de Jannoti Júnior, para definir tal conceito.
Os gêneros e suas configurações nas canções descrevem não somente quem são
os consumidores, mas também as possibilidades de significação de determinado
tipo de música para determinado público. Na rotulação está presente um certo
modo de partilhar a experiência e o conhecimento musical. (JANNOTI JÚNIOR,
2006, p. 40)

Napolitano destaca que um gênero musical não se define apenas por seu ―ritmo‖,
sendo, portanto, ―uma convenção, de um conjunto de propriedades fluidas, constantemente
debatidas e redefinidas por uma certa comunidade musical de criadores, empresários,
crìticos e audiências anônimas‖ (2008, p.156)
Logo, podemos assimilar que o gênero rock é um estilo de vida, um cenário, que
possui um público e artistas não passivos e não somente reduzido à meros ‗jogos‘
comerciais. O gênero musical está para além dos interesses da indústria e permeia os
campos das sensibilidades, tanto do artista como do público. Os sujeitos que compõem este
cenário, através de suas identificações, selecionam a partir do que os influencia, o que
produzir, no caso dos artistas, e o que consumir enquanto público.

55
―(...) enquanto o punk era essencialmente rock de guitarras tocado nos mais altos decibéis, a new wave era
um bailão de misturas. Funk, ska, reggae, música eletrônica e rockabilly se misturavam ao som da Motown e
dos girl groups. A new wave era ao mesmo tempo futurista (abarcava sons eletrônicos) e retrô (no visual e no
rock básico). (ROMANHOLI, 1999, p.50 apud SILVA, 2013, p.67)

149
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Tatit demonstra em sua discussão de ―Semiótica da Canção‖ que o gênero se


caracteriza quando se integram ―inúmeras unidades sonoras numa seqüência com outras do
mesmo paradigma‖ (1997, p.101)
Nesse sentido, notamos que para uma canção se configurar como sendo pertencente a
um determinado gênero musical, devemos compreender os seus elementos, suas
características de composição.
Seguindo estas linhas de pensamento, entendemos o gênero como um agrupamento de
características presentes na composição musical e que se relacionam quanto à sua melodia,
quanto as características da letra, bem como, quanto aos discursos, ou ideais por trás da
canção, estes referentes às subjetividades do compositor, e ainda quanto as performances,
estéticas de apresentação e atitudes, tanto do ouvinte, como do músico.
Destarte, podemos compreender as relações de influência que compõem um cenário
como bilaterais, ou seja, ao produzir arte, este artista traz em sua bagagem influências, em
seguida, o material produzido é encontrado por um sujeito, que se torna público deste
artista, por se identificar com o que foi produzido. Este, por sua vez, encontra outros
sujeitos que também se identificam com este material e podem estabelecer uma relação
entre si, proporcionada por esta identificação em comum.
Todo material produzido como artístico, é produto de uma subjetividade ligada ao meio
social, que é, por sua vez, influenciada por outras produções artísticas, bem como pelo seu
público, que não consome passivamente, e tem suas demandas sobre o que o artista produz
podendo se identificar, ou não, com a produção. Ainda, influencia novas produções,
podendo, assim, trazer novos públicos, bem como, proporcionar que estes se identifiquem
entre si. Quando essa identificação ocorre o cenário se institucionaliza, e esta
institucionalização se pauta sob essas influências mútuas existentes do artista para o
público; do público para o artista; de artista para artista; e de público para público.
A necessidade de representar-se de determinados grupos encontra-se na necessidade
de entender e aplicar em sua realidade o meio social, compreender, interpretar e dar sentido
a ela, se relacionar e se inserir nesse meio em correlação com outros grupos. São atores
sociais (sujeitos) em disputas de poder e hegemonia perante o ambiente.

NATAL ROCK „N‟ ROLL: O CENÁRIO ROCK POPTYGUAR

150
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

O que mais chama a atenção de um público a uma produção artística, é a


identificação deste com o que é produzido, e as mudanças trazidas pelos novos ares de
abertura política nos fizeram perceber que a ênfase musical também se modificou,
influenciada pelo novo contexto. O rock ganhou espaço nesse momento de liberdade como
símbolo da rebeldia e contracultura. O público jovem ansiava por uma nova linguagem,
que ali vinha por uma tendência mais clara, despojada, com críticas mais diretas e até
irônicas.
Percebe-se, pela sonoridade das bandas do período, que a década de 1980 é bastante
plural, mostrando várias dimensões do rock, várias vertentes de abordagem, pois apesar
das temáticas trazidas pelas músicas serem aproximadas, as bandas têm sua caraterística
própria, de modo que ao ouvir é possível identificar diferenças técnicas e melódicas56.
Podem ser identificadas, características em comum entre estes músicos, que em sua
maioria eram jovens de classe média, alguns sendo também universitários. Também se
verifica que da época de formação, a conjuntura de pré-abertura política influenciava o
conteúdo musical produzido por estas bandas, bem como o que tais músicos procuravam
escutar. O que entrega um gancho para uma reflexão em torno da produção e reprodução
dessa musicalidade como uma espécie de ―reação em cadeia‖, que como discute
Friedlander (1996), estabelece um rock no qual
[...] imitavam um artista que parecia e agia como outros aceitos por seu círculo
de amigos. Então, as novas bandas se apropriavam do ‗visual‘ particular de
grupos da subcultura e de outros músicos, torcendo para estabelecer uma
identidade. (FRIEDLANDER, 1996, p. 406)

Um cenário se compõe e se difunde a partir da influência estabelecida entre os


sujeitos que se identificam, com determinados pontos de vista e atitudes, em meio, sempre,
a uma conjuntura específica. Assim, o Rock Brasil pode ser pensado como um cenário
fruto de uma interação entre sujeitos, o que nos permite perceber uma identificação e uma
consequente propagação do estilo entre algumas pessoas e lugares, dando-lhe um aspecto
de rede. Relacionando, desta forma, grupos de pessoas em diferentes espaços, mesmo
permeadas por diferentes subjetividades, mas apresentando uma característica em comum.

56
Algumas se apresentam mais punk, outras flertam mais com o SKA, por exemplo. Bem como suas
temáticas podem ser mais voltadas ao caráter contestador político-social, como também a um viés mais
humanista, individualista.

151
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Como apresenta o artigo ―Delìrio Urbano e Mais Fanzines e Alternativos dos 80‖ -
presente na compilação ―Delìrio Urbano‖ lançada em 2014 pelo selo natalense Sebo
Vermelho Edições – a produção contracultural ganha maior ênfase e repercussão no:
[...] período de abertura política, quando artistas da MPB, marcados pela postura
antiditadura militar, e da poesia marginal, que tinha fortes traços da geração
hippie, deram lugar à juventude do rock, que explodia em todo o país com
bandas Legião Urbana, Barão Vermelho, e Titãs, as quais tinham em suas
formações os poetas Renato Russo, Cazuza e Arnaldo Antunes, respectivamente.
[...] Em Natal, não foi diferente. A partir de 1983, o gênero musical trouxe
consigo uma leva de novos artistas dispostos a mostrar suas produções.
(SANTIAGO, 2014)

Na década de 1980 cada vez mais, na cidade de Natal, encontramos espaços abertos
para a produção artística-contracultural. Em 1981 aconteceu 1° seminário de semiótica e
arte no qual a Fundação Brasileira de Semiótica foi fundada, após este seminário as
palavras: Performance, Semiótica, art-door, vídeo-art, multimídia, foram incorporadas ao
vocabulário da cultura local, ao cotidiano do núcleo de arte e cultura da UFRN‖
(ALBERTO, 1989).
O artigo de Jais Alberto ainda aponta que
Na música, ocorreram shows e espetáculos para todos os gostos do rock ao
grande sucesso da lambada. A partir da segunda metade da década, Natal entrou
no roteiro de grandes shows rock – e destes, destaque para os shows dos Titãs, a
maior banda de rock do Brasil, na década. Os Titãs estiveram pela primeira vez
em Natal em 1988, e depois no primeiro semestre de 1989. A cidade também
recebeu artistas internacionais, como o KISTCH Ray Connif, em 1987. [...] No
teatro, destaque para jovens atores que formaram a premiada Stabanada Cia de
Repertório, grupo que sacudiu o setor marasmo em que estava mergulhado ao
longo da década. Jesiel Figueiredo, incansável ator e diretor de teatro, conseguiu
montar um teatro de espetáculos populares no bairro do Alecrim [...] A literatura
local cresceu, mais em quantidade do que em qualidade. Dezenas de lançamentos
literários constaram da agenda cultural nos últimos anos, destacando-se porém
alguns autores com trabalhos de boa qualidade: Manoel Onofre Jr., [...]. Além do
surgimento do jornal literário ―O Galo‖, a literatura viveu outro momento de
festa com a presença do poeta paulista Haroldo de Campos em Natal, em outubro
de 1988 e a comemoração do centenário de nascimento do poeta Fernando
Pessoa. E este ano, os 150 anos de nascimento de Machado de Assis. Outro setor
que experimentou crescimento, ao longo da década, foi o de artes plásticas,
também com a realização de dezenas de exposições individuais e coletivas. [...]
(ALBERTO, 1989)

A contracultura sempre se fez presente na cidade de Natal e não se deve apenas à


influências externas, de outros espaços, pois as próprias circunstâncias dos espaços locais
configuram as suas produções.
A melhor definição para o rock da década de 1980 na cidade de Natal, pode ser a
apresentada pelo Fanzine Delìrio Urbano: ―New-Rock PopTyguar.‖ Visto que, neste temos
uma perspectiva mais alocada ao espaço natalense, o que nos possibilita visualizar as

152
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

bandas como pertencentes a um cenário, de determinado tempo e espaço, com uma


produção musical característica, e que em partes guardam similaridades com a produção do
eixo central de BRock, porém trazendo em seu bojo suas dissemelhanças e características
específicas.
Os grupos natalenses ‗passeiam‘ pelos dois vieses predominantes nas temáticas das
bandas de rock do período, ou seja, as questões de cunho político-social e as de cunho
existencial. As letras das canções foram obtidas a partir de nosso acervo pessoal, bem
como programas de shows cedidos do acervo pessoal de Vlamir Cruz, ex-integrante da
Cabeças Errantes. Algumas ainda foram transcritas através da audição disponível em sítios
como o YouTube, bem como blogs e sítios oficiais das bandas.

FLUIDOS E MODUS VIVENDI

No início da década de 1980, no ano de 1982, encontramos os primeiros registros


da banda Fluidos, esta composta pelo vocalista Carito Cavalcanti, o guitarrista Manoca, o
baixista Roberto Marlon (Bob Crazy), o tecladista Ricardo Tadeu e o baterista Fernando
Suassuna. O repertório era em sua maioria autoral, mas, também se aventuravam por
covers de bandas nacionais e internacionais. A proposta da banda voltava-se, inicialmente,
para um rock progressivo 57 que, segundo os ouvintes e os próprios músicos, era bastante
influenciado pelo psicodelismo, como relata Carito, no artigo ―Carito por ele mesmo 58‖,
escrito para o periódico ‗Delìrio Urbano‘.
No ano de 1984 o grupo começou a ganhar destaque na cidade de Natal, quando da
realização de um show em Pirangi, região metropolitana da capital, e passou a ser
convidada para se apresentar em festivais, como o ‗Festival de Artes Do Natal‘ 59 daquele
ano; e também se apresentou no Centro de Turismo. Todas essas apresentações atraíram
um público bastante expressivo.

57
Gênero de algumas bandas do final dos anos 1960 e início dos anos 1970, também chamado Art Rock. As
músicas são mais longas e de conteúdo profundo. Os intricados arranjos utilizavam tecnologia de ponta,
sintetizadores e um grande número de efeitos sonoros e visuais. (DOURADO, 2004, p. 284)
58
Delírio Urbano
59
Organizado pela COOART, cooperativa de artistas locais natalenses, o Festival de Artes Do Natal teve sua
primeira edição no ano de 1978 e se estendeu até o ano de 1988. Buscando realizar o enaltecimento da
produção artística local e regional, o festival divide-se nos mais variados formatos de arte, realizando uma
miscelânea, se dedicava em apresentar shows musicais, teatrais, de dança, artes visuais (vídeo, cinema,
multimeios), literatura.

153
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

No ano de 1985 a banda passou por um processo de modificação no qual alguns


integrantes saíram, entre eles o vocalista, Carito. A fluidos seguiu com um novo vocalista:
Mário Henrique Araújo, e se encaminhou para o Rio de Janeiro em busca de uma
profissionalização, e bem como de galgar algum reconhecimento nacional. Na cidade,
gravaram um compacto simples, ―fazendo um som mais leve, dentro de um estilo mais
pop. No mesmo ano o grupo sofreu um acidente de carro. Depois de alguns meses, seus
integrantes voltaram para Natal e foi anunciado o fim do grupo‖ 60
A Fluidos traz canções bastante marcantes para a juventude natalense da década de
1980, a canção tem o poder de reunir aqueles que se com ela se identificam, os shows são
espaços de sociabilidade, e nesse sentido uma canção que bem exemplifica essa questão é
intitulada ―Peregrinos do Som ou Representantes do Rock and Roll‖
[...] Ta todo mundo no mesmo barco/ remando com fé meu irmão/ de enfrentar
todos os perigos/ que pintarem nessa escuridão/ eu, vocês, nos, todo mundo/
amantes sensíveis do som/ representantes do rock and roll

Outras canções da Fluidos remetem bastante ao cenário do Rock PoPTyguar ao


cenário, bem como ao Rock Brasil como um todo, principalmente na canção intitulada
‗Rock Brasil‘, que mostra o rock como pertencente a um espaço e à uma época, seja a
partir de que modos forem a sua expressão, esta é, sim, Rock Brasil:
[...] são pessoas, são robores/ animais e computadores/ que buscam entre si/ o
enigma do saber/ Tudo isso é rock n roll/ isso tudo é rock n roll/ fluindo como
sangue/ pelas ruas da cidade

Carito seguiu seu caminho e em 1986, formou seu novo trabalho musical, a Modus
Vivendi. A banda era composta por: Carito no vocal, Alexandre Miúda na guitarra, Nelson
Benevides nos teclados, Erick Firmino no baixo e Lênio Santos na bateria, e chegou a ter
um projeto de gravação de disco aprovado, porém o selo pela qual se lançaria, acabou
falindo antes da gravação. Passou ainda por variadas formações chegando a ter até 7
integrantes, terminando mais ‗enxuta‘ com: Carito no vocal, Edu Gomez na guitarra,
Fernando Suassuna na bateria e Dudu Taufic no baixo sintetizado e teclados.
O material das bandas gravado em áudio é praticamente inexistente, devido as
dificuldades de gravação, bem como à ação do tempo. Porém, em acervo pessoal de
Vlamir Cruz, ex-guitarrista da banda Cabeças Errantes, encontramos alguns programas de
shows nos quais podemos ter acesso a algumas das letras. Um ponto interessante é que,
uma forma de se fazer divulgar era por meio da panfletagem e os shows eram um espaço

60
Blog do Carito

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de sociabilidade. Nesse sentido, eram entregues os chamados ‗programas‘ que continham


imagens da banda, uma breve explicação sobre o show, e claro, letras das canções a serem
tocadas. Isso servia para fazer o público aprender e conhecer melhor a banda uma vez que
na conjuntura de 1980-90, as gravações eram um processo complicado e caro.
O repertório da Modus Vivendi também era em sua maioria autoral, e em meio à
ele também eram tocadas algumas releituras e homenagens à outras bandas. Como diz
Carito em seu blog as músicas são um ―[...] reflexo de uma realidade urbana, as letras da
banda falavam da geração dos seus integrantes, tendo uma postura crítica, às vezes irônica,
conjugando muitas vezes humor e amor, irreverência, poesia e ritmo. Com os sentimentos
à flor da pele, mostrou uma Natal jovem, densa, noturna e antropofágica‖ 61
Nas letras das canções da banda Modus Vivendi, percebemos uma maior presença
de canções mais ‗politizadas‘. Porém temas individuais também são encontrados. A canção
―Sabotagem‖ de 1986 pode ser analisada como uma clara referência ao perìodo ditatorial
imediatamente anterior pelo qual os músicos passaram e que agora encontravam na
―liberdade‖ democrática, o espaço para se expressarem:
Sons que não tocam no rádio/ livros que não são publicados/ filmes que não passam
no cinema / notícias que não saem no jornal/[...]/ assuntos que não são
estudados/matérias que não dão na escola/ Relações que não são relacionadas/ [...]/
normas que não são normais[...]/ vidas que não são registradas/ gênios que não saem
da lâmpada/ aldeias que não são globais/ bobos que não são da corte [...]/ neurônios
queimados na fogueira / Memórias que não estão na história / origens que não são
originais.62

A Modus Vivendi teve seu fim oficial em 1999, após ganhar bastante visibilidade
na cidade de Natal, chegando a ganhar festivais e até a aparecer no Programa Palco MTV,
da antiga Music Television Brasil (MTV-BR); quando Carito envia um comunicado à
imprensa local anunciando o fim.

CABEÇAS ERRANTES

Outra banda que ganhou bastante destaque nesta época em Natal é a Cabeças
Errantes. Formada no ano de 1982, por rapazes moradores do Bairro Vermelho, na capital
potiguar a Cabeças Errantes teve seus trabalhos mais divulgados a partir do ano 1985
conforme destacou em entrevista o vocalista e guitarrista da banda à época, Vlamir Cruz. A

61
Blog do carito
62
CARITO. Modus Vivendi, 2010. Disponível em: < http://www.carito.art.br/?page_id=509 > Acesso em: 03
de mar 2014

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

banda passou por variadas formações sendo a mais conhecida delas, composta por Vlamir
Cruz, no vocal, Ricardo Menezes na guitarra, Bob no baixo, Tampinha na bateria e Pedro
Pereira nas performances.
A banda teve maior popularidade em meados da década de 1980 e a sua sonoridade
era influenciada mais por um hard rock63, ou ainda, rock progressivo. Segundo Vlamir
Cruz, encontramos na Cabeças Errantes, um rock que bebeu na fonte da década de 1970 e
que traz uma perspectiva mais existencialista em suas letras numa sonoridade um pouco
mais agressiva, por assim dizer.
O grupo também não possui registros gravados disponíveis. No depoimento de
Vlamir Cruz, podemos perceber um exemplo de uma contracultura que recusa os atos de
padronização presentes nas tentativas de cooptação por parte da indústria cultural, como se
o rock constituísse cenários imutáveis64. Os integrantes da banda Cabeças Errantes e de
algumas outras bandas natalenses não se viam como sendo influenciados diretamente pelos
grupos musicais em auge, no eixo sul-sudeste, na década de 1980 e suas temáticas:
É claro que tínhamos uma certa cara feia do segmento cultural mais ranzinza de
dizer ―‗porra‘ a gente ‗tá‘ num pais que as coisas ‗tão‘ carregadas e vocês ‗tão‘ aì
fazendo música - vamos dizer - alegre, a gente tem que contestar‖ [...] Mas a
gente desce do palco e os caras conversam com a gente e vê que não somos
alienados, [...] nós não éramos alienados, mas também não era uma necessidade
de estar falando só daquilo nas nossas músicas, algumas músicas do Cabeças
Errantes falam disso, a gente tem uma música chamada ―Sete minutos depois do
fim‖ 65 que fala um pouco disso, uma chamada ―Tio Sam‖ 66 falando de uma
relação de capital, do americano que vem que domina tudo mas que tá lá
conversando com moscou e combinando a guerrinha lá na américa central e a
gente aqui, terceiro mundo só assistindo;

As canções da Cabeças Errantes trazem uma sonoridade menos ‗deglutìvel‘ do que


outras bandas. O fim da banda ocorreu de forma gradativa, na qual os integrantes por
necessidades pessoais, acabaram seguindo outros caminhos profissionais. Vlamir Cruz
contudo ainda continua no ramo musical como produtor, no qual comando o selo
Mudernage.

63
Termo que nos anos 1960 designava alguns gêneros de rock agressivo e menos comercial de bandas como
o Cream e MC5. As músicas incorporavam elementos do blues, do rock n roll e do pop. (DOURADO, 2004,
p. 156)
64
ver Goffman & Joy.
65
―Refaça seus planos pro futuro/ já fiz meus molotovs e armadilhas/ se era esse eu desejo/ está declarada a
nossa guerra‖
66
Tio Sam: Você tem olhos azuis/ sua casa é tão branca/ seu olhar não me seduz/ vai pra lá com sua banca/
Pelo telefone vermelho/ fala com o kremelim/ amanha duas da tarde/ guerra na américa central/ Meu terceiro
mundo/ já está duro sem grana/ você traz os dólares no bolso/ e as algemas na mão/ Vai pra casa Tio Sam/
vai cuidar de suas feridas/ olha mais seu Harlem/ a ku-klux-klan

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CANTOCALISMO

A banda Cantocalismo também foi formada no ano de 1982, realizando seu


primeiro show do ano de 1983, era composta pelo vocalista Cacau Vasconcelos; Roberto
Taufic, na guitarra; Aluízio Di Brito no baixo e Ginho Hasbun na bateria. Como declaram
em entrevista os ex-integrantes Roberto Taufic e Ginho Hasbun.
O principal registro da Cantocalismo é o disco autointitulado de 1988. Lançado de
forma independente, o disco é uma compilação das canções que mais se destacaram no
repertório da banda. As datações das composições não são exatas porém todas as canções
deste disco (imagem abaixo) foram trabalhadas pela banda durante a década de 1980, mais
precisamente a partir de 1983-1987.
A visibilidade que a banda atingiu a coloca como uma das principais bandas da
história da música potiguar, prova disso foi o show realizado no Teatro Alberto Maranhão
no ano de 1986 e que conseguiu trazer em torno de 2 mil pessoas, bem como o lançamento
do disco em 1988 foi televisionado pelo InterTV Cabugi, afiliada da Rede Globo no Estado
do Rio Grande do Norte, ou ainda o show realizado no Palácio dos Esportes que também
atraiu um público de em torno de 2 mil pessoas.
A sonoridade da Cantocalismo permeava uma rítmica mais pop, contudo, em
performance de palco a banda priorizava um (re)arranjo instrumental que flertava com o
rock progressivo. Em entrevista Roberto Taufic e Ginho, ex-integrantes, contam que
geralmente as abordagens da banda, também, giravam em sua maioria em torno de
questões existenciais, contudo, ao realizarmos a análise podemos considerar também a
possibilidade do exercício do subconsciente no ato de composição, referências implícitas
podem ser percebidas. Como aponta Ginho:
Se você for analisar esse repertório [...] ele tem de tudo um pouco aqui, ―Areia e
mar‖ é uma música tìpica de verão adolescente, namoro, menina bonita, se for
pra ―Tudo o que vem de cima‖ é politizada, ―Telebaby‖ é uma romântica,
―Pixote‖ é politizada, uma mensagem, se você prestar atenção na letra, vai ver
que até hoje, a favela, a criança, a polìcia... ―Produto musical‖ 67 é uma crítica ao
mercado de produções música comercial, ou seja quem faz sucesso n é a

67
Meu sonho era ? um som instrumental/ e me realizar dentro do meu eu, pra levantar a grana mergulhei no
comercial/ mudando de cabeça abri mão do era meu/ fazia rock e letra ? cultural/ Falava do Brasil e do seu
baixo astral/ a minha posição ia mais de intelectual/ e em tão pouco tempo fui sucesso nacional/ não era isso
que eu queria e tudo foi p mim/ pensar num belo dia ser o Tom Jobim/ fui um cara produzido pra fazer de ti/
Apenas um ouvido e não mais sentir no teu corpo a minha música/ De repente eu senti que tudo era igual e
tudo o que eu fazia era tão artificial/ e mergulhei num drama de pensar no que deixei/ garoto propaganda só
assim eu tinha vez/ mas tudo vai passar em breve eu vou mudar/ fazer aquele som e me sintonizar já chega
dessa ? de poder me deixar levar/ só penso no ? e não sou produto musical.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

qualidade, ou seja, a banda era crìtica nisso, [...] e ―Poema pra lua‖ 68 vai mais
por uma questão romântica e ―Perceber‖ era mais politizada.

Na canção ―Voraz‖, podemos perceber que o fim do controle ditatorial brasileiro


acaba provocando reflexões sobre como andaria a sociedade dali para frente, destacando
também os resquícios, da mentalidade formada no período ditatorial.
[...] o que será do rio sem a represa/ que será do riso sem a tristeza/ guarda o teu
credo na fortaleza/ tu repetirás e tu perderás a cabeça negando, uivando, como de
surpresa o sangue gelando, veneno/ muito generoso em tua certeza/ traz um copo
d‘água da tua nobreza/ pedes um preço justo pela tristeza/ podem e és voraz/ e tu
perderás a cabeça/ dos filhos, dos bichos de toda a natureza/ há gente tomando a
tua fortaleza/ dos filhos, dos bichos de toda a natureza. 69

A banda acabou de uma forma gradativa, por fatores como novos caminhos
profissionais seguidos pelos integrantes; desentendimentos técnicos em termos de que
gênero musical adotar em suas músicas, pois, alguns integrantes queriam ceder à um
formato mais comercial, no caso o pop-rock, mais em alta na época, outros queriam seguir
numa linha mais condizente com suas ideologias. Deste modo, o grupo foi se desgastando
até que chegou ao fim. Pouco tempo depois, ainda foi lançado um segundo LP, contudo,
somente dois integrantes da banda permaneceram nesta gravação, o baixista Aluízio e o
baterista Ginho.

ALFÂNDEGA

A banda Alfândega também é uma representante do cenário de New Rock


PoPTyguar na cidade de Natal. Depois de passar por algumas formações iniciais a banda
pode ser caracterizada como composta por Rômulo Tavares no baixo, Pedro Queiroga na
bateria, Carlos Henrique no vocal e Arthur Winston no baixo. Os componentes eram
universitários e formaram a banda no ano de 1988. As músicas se dividiam em autorais e
covers de canções de bandas que eram influência para a sua sonoridade, como informam
em entrevista o músico Rômulo Tavares, e o funcionário público e também músico Pedro
Queiroga.
As letras de suas músicas expressam esse fazer poético e falam das diversas
matizes do sentimento que existe no dia-a-dia de seus componentes: amor,
esperança, indignação, etc. Daí o nome da banda, Alfândega, o lugar por onde

68
Ainda assim podemos notar aqui as alusões implícitas já mencionadas, permeadas pelo momento histórico
vivido ―Sonhar pode ser atrevido quem sabe no mundo de agora/ ninar no grito é poder embalar um
pedação da aurora/ de repente um poema pra lua [...]‖ – grifo nosso
69
CANTOCALISMO. Cantocalismo. WR-Salvador-BA, 1988. Faixa 2

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passam os fatos cotidianos e os sentimentos por eles gerados que são percebidos
e transformados em produtos musicais (MACEDO, 2013)70

A Alfândega chegou a abrir shows de bandas como Engenheiros do Hawaii e


Biquíni Cavadão. E, assim como, a Cantocalismo chegou a atrair, só ela, no Palácio dos
Esportes, na capital potiguar, um público de em torno de 2 mil pessoas.
O auge da banda se deu no período de 1988-92, período época na qual as suas
gravações independentes eram bastante reproduzidas nas rádios, como podemos encontrar
no sítio da banda: ―Nesta mesma época, músicas da Banda Alfândega como Homens
Maus, Homens do Cais, Florbela e Babel eram destaques na programação das rádios-rock
de Natal‖.71
A sonoridade aqui também vai do rock progressivo ao pop-rock, sendo bastante
semelhante ao que se ouvia em termos de rock na década de 1980 no Brasil. Quanto a
performance a Alfândega segue por uma linha mais tradicional, apresentando-se em
quarteto com seus instrumentos. Rômulo Tavares, integrante da Alfândega aponta em
entrevista o predominante fator existencialista na produção em questão. Melodicamente, a
banda segue a ‗febre‘ do rock Brasil, segundo entrevista. Contudo como aponta Romulo
Tavares e Pedro Queiroga:
Nosso trabalho letrístico, nossa mensagem, nosso conteúdo, é muito
existencialista a gente tinha alguma coisa de política, mas não éramos aquela
banda de protesto, nem também aquela banda que só fala de coisas juvenis, a
gente gostava muito de dramas existenciais do ser humano;

Porém podem, sim, ser verificadas nas canções relações implícitas, afinal todo
sujeito age socialmente enquanto filho de seu tempo. Deste modo a letra de ―MPB (Medo
Popular Brasileiro)‖ há uma reflexão sobre o lugar social ocupado pelo individuo
contemporâneo, esse tipo de reflexão normalmente é provocada em conjunturas de crise e
pode-se identificar em menção implícita, em uma conjuntura pós-ditatorial, o pensamento
da sociedade representado:
Eu tenho medo de ser preso, de ser preto, de amar/ Eu tenho medo de ternura, de
aventura ,de voar/ Medo, eu tenho medo de mim / Eu quero ter um amor que me
liberte desta situação, falsificação inerte( eu quero já )/ Eu tenho medo do que você
faz do que sou capaz e do que não sou também / Eu tenho medo de arriscar, de me
entregar ao querer bem. 72

70
MACEDO, Marcus A. Alfandega (1988-2004). Natal, 11 out. 2013. Disponível em: <
http://sompotiguar.blogspot.com.br/2013/10/alfandega-1988-2004.html> Acesso em: 11 de mai de 2014
71
https://romulotavares9.wixsite.com/alfandega/bio
72
Alfândega. 1988-2004. Sonopress-Rimo, 2004. Faixa 3

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

A letra de Rock PoPTyguar ―Homens Maus‖ é uma das que mais remetem o
cenário, à cena BRock na produção da Alfândega, como o próprio baixista Rômulo
Tavares diz em entrevista: ―essa era uma música bem titãs mesmo‖. Em termos de letra, a
canção também traz muito dos temas presentes no cenário do BRock, como pode ser
percebido abaixo:
E aí professor... já bateu no aluno? Já gritou a lição?/ e ai jogador... já chutou o
juiz? Já arrumou o seu gol? E aí torcedor... já rasgou a bandeira? Já brigou na
geral? E aí homem mau? E aí senador... já ganhou seu cache? Já brincou de PC?
E aí leitor... já votou no pior? Num boçal da TV?

O grupo encontra-se ativo até hoje, porém a história da banda é permeada por
alguns hiatos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com base nas letras, melodias, bem como na apresentação estéticas das bandas
expostas, compreende-se que o rock não era apenas um estilo musical, mas um cenário
característico, cujas propostas se voltavam para destacar a insatisfação com as questões
políticas e sociais da época. As músicas dos roqueiros traziam críticas de forma direta, sem
metamorfosear ou ocultar. Nota-se, aqui, a transição entre a repressão à produção
fonográfica – que precisava disfarçar suas letras no período ditatorial ou pagar o preço do
exílio, quando não da tortura e da prisão – e a liberdade de expressão trazida nas letras de
rock do período da redemocratização, permitindo que estas pudessem criticar e fazer
reivindicações aos governos de forma direta.
As bandas natalenses ao se localizarem em um espaço fora do eixo comercial de
produção, o espaço de Natal, apresentam em suas canções as particularidades deste e,
devendo-se a isto, acabam negando a existência de influências diretas com o BRock tal
qual definido por Artur Dapieve, como podemos perceber em entrevista concedida pelos
músicos. Contudo, ao analisarmos os elementos que compõem o cenário no qual se
encontra as bandas natalenses e seu público, podemos notar que havia, sim, uma produção
de rock, tal qual a característica do eixo central da década de 1980, na cidade de Natal.
Entendemos assim que a relação existente entre o cenário BRock e o Rock PopTyguar
consistiu em um: ―[...] hibridismo às avessas, ou seja, cria um suposto diferenciar-se, uma
constituição de ser ―diferente‖ e único, todavia (re)cria tribos e grupos que se vestem e se

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

comportam de maneira análoga. É um querer se diferenciar querendo ser aceito.‖


(ENCARNAÇÃO, 2009, p.12)
Propomos, neste artigo, entender o BRock como uma produção nacional, feita por
brasileiros, sem limitá-lo à ser exclusivamente um rock cujas temáticas eram apenas
político-sociais, ou presas à um único trecho geográfico. Destarte, não podemos aglutinar
em uma só barca todas as bandas, nem as colocar como passivas diante do que era
produzido no Sul e Sudeste do Brasil. O que devemos, é identificar as relações de
semelhança e dissemelhança que caracterizam o rock natalense como PopTyguar e,
todavia, parte do BRock, por ser também uma música produzida no Brasil. Sendo, assim,
um cenário que por mais que tenha bases calcadas no exterior do país, possui uma
caraterística de Brasil nele.

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162
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TATIT, Luiz. Musicando a semiótica. São Paulo: Annablume, 1997.

163
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

AS IMAGENS E OS PODERES DA EDIÇÃO: UMA DISCUSSÃO EDITORIAL NO


CAMPO DA LITERATURA DE CORDEL

JOSÉ RODRIGUES FILHO


UFCG
[email protected]

RESUMO

O artigo propõe realizar reflexões sobre os sentidos, funções e intenções editoriais


presentes na produção dos livros e das imagens no campo da literatura de cordel.
Compreendemos que a realização da análise da imagem está diretamente ligada as funções
editoriais, as quais interferem nas formas de leitura, interpretação, e na constituição de uma
memória iconográfica atrelada a este suporte. Nesse sentido, além de utilizarmos Roger
Chartier (2004, 2014) e Robert Darnton (1990, 1998) como aporte teórico, nos pautaremos
em discussões de trabalhos sobre o sistema editorial da literatura de cordel, com enfoques
na edição de textos e imagens. Aplicando a discussão teórica, procuraremos compreender
de que forma as intervenções editoriais contribuem para a construção de uma imagética
relacionada ao cordel, a qual é constituidora de ideologias que permeiam os campos social,
político e cultural.
Palavras-chave: literatura de cordel; cultura visual; sistema editorial.

A PRODUÇÃO EDITORIAL: UMA LEITURA A PARTIR DE ROGER


CHARTIER E ROBERT DARNTON

Os dois mais importantes historiadores que se dedicaram a estudar a história do


livro e das práticas de leitura foram Roger Chartier e Robert Darnton. Seus trabalhos
apontam para a importância da elaboração, difusão e recepção dos livros, assim como
destina atenção para as estratégias elaboras pelos diversos sujeitos para a difusão,
propagação e transmissão de ideais presentes no campo cultural destes produtos. Mas de
que forma estes dois autores contribuem para este trabalho? Convém, na pesquisa que se
apresenta atentar para as contribuições destes historiadores para um item em especifico: a
produção editorial dos livros e das imagens, as quais possuem mensagens que visam
constituir ideias perpassadas por intencionalidades. Dessa maneira, se observará a seguir
como seus estudos, inicialmente com Roger Chartier e em seguida com Robert Darnton
contemplam este trabalho.

164
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Em seu livro História Cultural: entre práticas e representações, Roger


Chartier (1990) dedica um dos capítulos ao estudo dos Textos e edições da chamada
literatura de cordel, a qual, por sua vez, pertencia à chamada Biblieothèque bleue da França
do século XVII. Ao realizar a pesquisa sobre estes livros, o historiador Roger Chartier
elabora o conceito ―redes de textos‖ para dizer que os textos editados na cidade de Troyes
(França) no século XVII possuíam uma unidade, assim como relações entre si que
permitiam a construção de um diálogo:

São assim criadas redes de textos, que por vezes remetem explicitamente uns
para os outros, que trabalham sobre o mesmo motivos, reproduzidos, alterados
ou invertidos, e cujas relações não são de modo algum fundamentalmente
diferentes das que existem, no interior de um texto, entre os seus diversos
fragmentos. (p. 174).

Os textos estariam assim, interligados entre si, formando uma ―rede‖ de ligação
de ideias e mensagens. Essa ―rede de texto‖ se torna possìvel por meio das intervenções
dos editores, os quais, ―propõem ao seu público textos que originam séries‖, e estas por sua
vez, elaboram narrativas que estariam interligadas entre si. As imagens também elaboram
séries, assim como os textos, elaboram uma identidade, relações entre si, estabelecem um
diálogo.

Neste sentido, o autor vem apresentar que a produção editorial está permeada
por intenções que buscam ir de encontro ao leitor e ao seu cotidiano. Em outras palavras,
pensando o contexto da França do século XVII, era preciso reelaborar textos que
atendessem ao público que se destinava o escrito. Se torna importante compreender que os
agentes responsáveis pela produção dos livros, como os editores, estão inseridos em um
lugar de produção, lugar este que influencia diretamente as operações editoriais, assim
como nas estratégias utilizadas, nas escolhas efetuadas. Os ―livros de cordel‖ editados em
Troyes do século XVII possuíam, como aponta Chartier (1990), um duplo objetivo: ser
moralizante e elaborar uma ―nova legibilidade‖ aos textos. Em outras palavras, o autor
alerta para fato de que, compreender os cordéis é compreender o próprio impresso e sua
produção, a qual está inserida no que ele chama de ―formula editorial‖, a qual dá ao livro
características próprias. (CHARTIER, 1990, p. 178).

Quanto à imagem, o que representa? Chartier (1990) explica que encontrou em


sua pesquisa ―numerosos‖ livros que possuem imagem. Para ele, as imagens postas nas
capas dos livros de cordel possuem significado, melhor dizendo um duplo significado. O
primeiro, segundo ele está não apenas em diminuir o tamanho da página onde está presente

165
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

o tìtulo, mas também ―codificar‖ e fixar uma ―imagem-sìmbolo‖ ao tìtulo do poema, a


imagem do texto estabelece, para Chartier (1990), relações com o texto, ela ―induz uma
leitura‖, oferece por meio da imagem uma indicação sobre o entendimento do texto. Uma
questão interessante atenta-se para o fato de que, segundo ele, quando a imagem não
possibilita a compreensão da ―totalidade do livro‖, ela propõe uma ―analogia que irá
orientar a decifração‖ do texto pelo leitor (p.179). As imagens se apresentam não como
meras ilustrações, além de aumentarem a ―sedução‖ pelos textos, são portadoras de
códigos que se direcionam para os próprios textos e para outros produtos culturais.

Em Leitura e leitores na Franca do Antigo Regime, Chartier (2004) dá


continuidade às discussões em torno das estratégias editoriais atreladas a produção dos
livros e das imagens na França do século XVI ao XVIII. Neste trabalho, o autor vem
apresentar que na arte da impressão os ―textos e imagens estão associados‖, contudo, em
―proporções muito diversas‖. As diferenças existem, contudo como o autor destaca, elas
―não são nitidamente distintas‖, o que acarreta na transmissão de diálogos e formas entre
estas produções assim como outras a exemplo de cartazes e pasquins. (CHARTIER, 2004,
p. 107).

Ao realizar uma discussão sobre ―as imagens soltas‖, impressas em tamanhos


grandes e que realizavam uma junção de textos e imagem que tinham por sua vez, em
grande parte, caráter religioso, Chartier (2004) discorre sobre o seu uso. Eram elas
distribuídas na cidade e expostas nas igrejas durante as festas religiosas dedicadas a santos,
outras destas imagens sacras eram distribuìdas aos ―congregados‖ que a aproveitavam para
colar nas oficinas de trabalho e na parede de seus quartos. Como agiam? Elas alimentavam
―[...] a piedade dos que lêem e dos que não lêem, e podemos pensar que sua presença
familiar, no seio do cotidiano, atrai pouco a pouco para o escrito todos aqueles aos quais as
pequenas escolas urbanas não ensinaram o abc‖ (p. 109). As imagens expressavam dessa
maneira uma mensagem ligada a cultura religiosa que regia em grande parte aquela
sociedade.

Neste ponto, Chartier (2004) se refere às imagens religiosas que simbolizam o


―Santìssimo Sacramento, o Rosário, o santo padroeiro‖. Para ele, as imagens contribuem
para uma ―representação figurada e sensìvel do próprio objeto da devoção comunitária‖, ao
tempo em que se tornam uma forma de leitura mesmo para os que não leem, elas
alimentam uma piedade ao tempo em que aproximam os indivíduos do campo escrito.

166
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Torna-se claro como as imagens são portadoras de uma ideologia que busca educar para o
respeito, a devoção. As imagens serviam como doutrinadoras ao tempo em que
aproximavam os seus leitores do espaço escrito.

As imagens produzidas em Paris do final do século XVI eram produzidas em


grande parte por encomenda a gravadores e impressores que trabalhavam com a produção
de imagens principalmente religiosas. Os impressos de gravuras religiosas apresentam uma
sociedade fortemente marcada pela religiosidade. Sobre elas Chartier (2004) aponta que
possuíam caractéricas, o autor elenca duas: uma primeira está ligada a reimpressão em
grande quantidade, quando uma mesma imagem ―permite tiragens múltiplas, por várias
vezes‖. Uma segunda caracterìstica elencada pelo autor diz respeito a uma evolução da
imagem, as quais começam a receber um tamanho menor em relevo, onde passam a ser
utilizadas enquanto ilustração de livros.

Esse uso duplo das imagens representa as ―múltiplas reutilizações‖ das


imagens religiosas produzidas naquele contexto. Se faz importante apontar que estes usos e
diversos manuseios realizados com as imagens advém de estratégias que permeiam o
campo editorial. Os agentes responsáveis pelo encomenda, confecção e que definem sua
utilização o fazem com intenções que permeiam o campo da produção e difusão dos livros
e das imagens na França do Antigo Regime.

Quais usos são dados às imagens neste período? Pode-se dizer que não apenas
religioso. Ao longo do século XVII, durante as guerras religiosas na França, as imagens
começam a adquirir novos usos e funções. Chartier (2004) chama atenção para o
crescimento de imagens profanas neste período e explica que tal crescimento está atrelado
a um objetivo polìtico, ligado a estas guerras, o que ocasiona segundo ele ―uma guerra de
imagens‖. As imagens adquirem assim novos significados, suas mensagens se invertem
quando reutilizadas.

Convém salientar que os sujeitos detentores do poder fazem uso das imagens
para atender aos seus interesses, os quais estão diretamente ligados a questões políticas e
ideológicas. Henrique IV foi um destes sujeitos que soube fazer uso das imagens quando
foi conveniente, mandando que fossem gravadas iconografias de propagandas dos feitos
reais e que difundissem sua imagem. Quando não foram convenientes, mandou serem

167
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

queimadas. Os sujeitos fazem nas imagens operações, que busca atender a interesses
políticos, ideológicos atrelados ao campo do poder.

Nesse sentido, Chartier (2004) adquire razão ao afirmar que ―nos séculos XVI
e XVII, sob formas diversas, que quase sempre autorizam uma dupla leitura, a do texto e a
da imagem, a imprensa difundiu amplamente um material tipográfico abundante...‖ (p.
113). Ela torna-se responsável por transformar ―profundamente uma cultura‖ que em
grande parte era restrita a poucos grupos. Convém questionar: quando se constitui o
mercado popular dos impressos na França? Chartier (2004) responde:

Na história da edição e da leitura na França, os anos 1530-1600 marcam uma


etapa decisiva. Com efeito, nesse século amplamente recortado... é que se
constitui um mercado ‗popular‘ do impresso. Ele foi certamente preparado pela
circulação de todo um material que, desde os livretos xilográficos, reúnem
imagem e texto, tornando assim familiar o escrito, mesmo para aqueles que não
sabem ler. Essa relação nova com o impresso não se separa das relações
estabelecidas no seio da sociabilidade popular, seja ela laboriosa, religiosa ou
festiva (p. 127).

A construção de um mercado editorial ―popular‖ representou a circulação de


textos e imagens em uma sociedade marcada pelo grande índice de analfabetismo. As
sociabilidades populares não se separavam assim dessa cultura impressa, pelo contrário,
esta estabelecia relações com a vida religiosa e festiva daqueles povos.

A produção editorial é permeada por ideias que tendem a se difundir


amplamente no mercado, assim como conquistar o gosto do público leitor. Pode ser
entendido assim que tanto imagens como textos ―[...] são resultado de múltiplas operações
que supõe uma ampla variedade de decisões, técnicas e habilidades‖ (CHARTIER, 2014,
p. 38). Estas por sua vez são advindas de sujeitos que comtemplam, nas palavras de outro
importante historiador do livro e das práticas de leitura o ―circuito de comunicações‖
(DARNTON, 1990), onde estão presentes os mais diversos sujeitos interessados na
produção dos livros, entre eles o editor, considerado neste trabalho figura ímpar nas
decisões e opções realizadas na produção editorial de livros e imagens.

Neste sentido é importante ser compreendido ainda que ―o livro não é uma
entidade fechada: é uma relação; é um centro de inúmeras relações‖ (CHARTIER, 2014, p.
42) que possibilitam uma diversificação cultural entre os mais diversos elementos que o
compõem. Inserida nestas relações se encontra as decisões de inclusão e exclusão do que
deve ou não ser inserido em sua produção. Neste trabalho, o conceito de ―livro‖ é
entendido como amplo, que abarca não apenas o relato escrito, mas também o visual. O

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

historiador Robert Darnton oferece outras reflexões sobre este importante elemento
cultural.

O conceito de ―circuito de comunicações‖, já apresentado neste trabalho,


proposto por Robert Darnton (1990) se torna importante por representar a transmissão de

[...] mensagens, transformando-as durante o percurso, conforme passam do


pensamento para o texto, para a letra impressa e de novo para o pensamento. A
história do livro se interessa por cada fase desse processo e pelo processo como
um todo, em todas as suas variações no tempo e no espaço, e em todas as suas
relações com outros sistemas, econômico, social, político e cultural, no meio
circundante (p. 112).

Cabe se fazer claro que este conceito possibilita o entendimento dos diversos
interesses presentes na produção dos livros. As estratégias e táticas utilizadas representam
a posição de cada sujeito (autor, editor) na produção editorial, seus interesses,
intencionalidades e caminhos traçados durante a produção e distribuição destes artefatos
culturais. É bem verdade, ainda hoje, a afirmação de Robert Darnton (1990), que o papel
do editor ―[...] como figura especìfica diferenciada do mestre livreiro e do impressor, ainda
demanda um estudo sistemático‖ (p. 123). Este sujeito é o responsável pelas escolhas,
articulações e decisões do processo editorial. Contudo, ainda hoje, suas práticas culturais e
sociais são pouco estudadas. É preciso que esta figura seja observada de perto, entende-la
como sujeito primordial na elaboração dos livros e imagens é fundamental.

O que representa a história dos livros? Para Darnton (1998), ela se caracteriza
enquanto uma ―nova disciplina das ciências humanas‖, permitindo

[...] adquirir uma visão mais ampla da literatura e da história da cultura em geral.
Ao identificar os livros que passavam palas mãos de uma sociedade inteira, ao
descobrir (pelo menos até certo ponto) em que medida os leitores conseguiam
compreendê-los, podemos estudar a literatura como parte de um sistema cultural
geral (p. 14).

Os estudos culturais representam um dos pontos centrais da chamada história


do livro. Dessa maneira, ela é entendida enquanto um sistema de comunicação, a qual,
―[...] pertence a uma cultura geral, em que veículos de todo tipo – impressos, manuscritos,
orais e visuais – se entrecruzam e se interligam‖ (DARTON, 1998, p. 14). Darnton (1998)
chama atenção para os diálogos estabelecidos entre os diversos ―veìculos‖
comunicacionais como o jornal e as canções, os quais estabeleceram uma rede de
interferência e influência de forma reciproca na França do século XVII. A literatura pode
ser entendida assim como pertencente a uma cultura, a qual, por sua vez, permite o

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

entrecruzamento, a interligação o diálogo com as linguagens verbais (impressas); orais e


visuais.

É preciso ser compreendido que os editores exercem suas funções diante do


livro não de forma neutra, ingênua, mas sim intencional, suas escolhas não estão fora dos
seus circuitos, do seu lugar social, e das influências advindas dele. Se torna importante
ressaltar que os significados elaborados pelos editores correspondiam não apenas aos
textos, suas influências eram referentes também as ―estratégias de mercado‖, ―aspecto
gráfico‖ assim como as ilustrações que deveriam comtemplar o livro. (DARNTON, 1998,
p.200).

A partir destas reflexões, se torna possível compreender que a produção e


editoração dos livros e das imagens não está dissociado da cultura em que os sujeitos,
como o editor, está inserido. A discussão não se encerra por aqui, a continuação se dará
com outros enfoques, agora no campo da literatura de cordel.

A PRODUÇÃO EDITORIAL NO CAMPO DA LITERATURA DE CORDEL

Anteriormente o leitor observou que a partir do século XVI emergiu um


mercado editorial e popular na França do Antigo Regime (CHARTIER, 2004). No Brasil o
mercado editorial da literatura de cordel se constituiu nas primeiras décadas do século XX.
A reutilização de antigos prelos advindos de jornais, a formação de uma rede de
colaborados que ajudavam a difundir estes livros, entre outras características, representam
a constituição de um mercado editorial característico da literatura de cordel, responsável
pelo difusão de textos e imagens que iniciou-se com Leandro Gomes de Barros em Recife
e seguiu-se com João Martins de Athayde, naquela mesma cidade; Francisco das Chagas
Batista na Paraíba e José Bernardo da Silva em Juazeiro do Norte. Estes sujeitos atuavam
enquanto poetas, proprietários e editores. Partiam deles as diversas intervenções editoriais
que atenderiam ao mercado comercial, assim como ao gosto do público leitor, constituindo
neste, mensagens e memória de histórias de amor, valentia assim como de crítica política e
social.

Contudo, pensar a produção editorial de livros e imagens no campo da


literatura de cordel é se remeter aos primórdios editoriais da imprensa ilustrada no Brasil.

170
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Alguns pesquisadores, como Everardo Ramos, aponta para estes primórdios. Segundo ele,
as origens da impressa ilustrada no Brasil se deu no ano de 1876 com o surgimento da
intitulada A Revista Ilustrada, que tinha como objetivo combater a escravatura através das
caricaturas elaboradas e publicadas neste periódico. Contudo, é preciso atentar para o fato
de que, os primeiros impressos brasileiros começam a ser produzidos por volta do ano de
1808 quando a Corte Portuguesa fugida de Portugal implanta no Rio de Janeiro a primeira
gráfica, e é dela que surgem as primeiras impressões de jornais. Todavia, é no ano de 1844
com o lançamento de A Lanterna Mágica que começam as primeiras publicações das
revistas com caricaturas e desenhos que atingem seu sucesso durante a ―segunda metade do
século XIX‖ (RAMOS, s/d).

As ilustrações usadas na imprensa brasileira em seu inicio apontavam para um


―contraste entre imagens‖, em outras palavras o que se evidencia, segundo Ramos (s/d) é
que algumas imagens utilizadas em revistas brasileiras eram importadas da Europa, e
traziam imagens de personagens famosos por meio da utilização de vinhetas que serviam
como ilustração para as revistas brasileiras. Em outros casos usava-se xilogravuras para
jornais brasileiros, esta outra arte gráfica era tida como ―rudimentar‖ expressando algo
antigo, ultrapassado. São essas duas técnicas (clichê e xilogravura) que apresentam o inicio
desta produção de imagens na imprensa brasileira, e que não se restringe a ela.

Como vem sendo apontado neste trabalho, à produção de textos e imagens não
está isenta de poderes e interesses, estes elementos se fazem presentes nas diversas etapas
da sua produção editorial. As imagens postas nos periódicos brasileiros, como as
xilogravuras eram utilizadas não de forma ingênua, mas sim intencional, e objetivavam,
acima de tudo, transmitir ideias, que tendiam a elencar criticas politicas e sociais. O que
pode ser observado assim é que, ―o discurso visual‖, como define RAMOS (s/d),
desempenhava um grande papel nos jornais que circulavam no Brasil no século XIX, em
especifico na cidade de Recife, pois, possuìam um grande ―poder de ênfase e sìntese‖,
fazendo com que as criticas realizadas sobre determinados espaços da sociedade, como o
campo político, se tornassem cada vez mais forte e claro.

No campo da literatura de cordel a utilização de imagens nas capas dos


folhetos começa nas primeiras décadas do século XX quando poetas e editores como
Leandro Gomes de Barros, João Martins Athayde e Francisco das Chagas Batistas
começam a utilizar ornamentos e pequenas imagens nas capas dos folhetos de cordel. Essa

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

técnica buscava agradar esteticamente aos leitores, facilitando de outro modo o


reconhecimento das histórias por meio da utilização de uma imagem, assim como
possibilitava aos editores a venda em maior quantidade dos folhetos, tornando-os
esteticamente mais ―bonitos‖, mas não apenas isso; as imagens representavam também
mensagens visuais, que se direcionavam para os leitores dos folhetos.

Contudo, é preciso ser compreendido que anteriormente a década de 1950 os


trabalhos de escritor e ilustrador eram dissociadas, ou seja, pessoas diferentes faziam estes
trabalhos. Contudo, já por os idos dos anos de 1960 as funções de escritor, ilustrador,
editor e gráfico se confundem, ou seja, não se há mais uma divisão de funções na produção
como antes, agora, a mesma pessoa exercia todas essas funções, com intuito de diminuição
dos custos de produção a fim de oferecer um preço baixo do impresso ao comprador
(Ramos, 2007).

No que o historiador da arte Everardo Ramos (2007) chama de ―apropriação


coletiva de modelos‖ se observa que tanto a elaboração de textos como de imagens, em
partes, advinha da reapropriação de outros modelos sociais e culturais. No caso dos
poemas, outros folhetos e livros da chamada ―cultura erudita‖, contribuìam em partes para
a invenção e reinvenção de poemas. No campo das imagens, é importante ser lembrado que
as primeiras iconografias utilizadas nos folhetos de cordel advinham, sobretudo, da
reapropriação de imagens de outros modelos visuais, como o jornal e o cinema.

Leandro Gomes de Barros recorria nas primeiras décadas do século XX a


alguns desenhistas da cidade de Recife para encomendar imagens para as capas dos
folhetos editados por ele. João Martins de Athayde recorria a desenhistas assim como
Gomes de Barros, contudo, é com ele que se intensifica a utilização de imagens
fotográficas nas capas dos folhetos de cordel. João Athayde fazia uso de imagens do
cinema para ilustrar os seus folhetos, transmitindo para os leitores, mensagens não apenas
verbais, mas também visuais sobre histórias de heróis, vilões e amores. O que se torna
importante ser destacado neste cenário é o fato do meio sócio e cultural do editor
influencia-lo diretamente nas suas escolhas visuais. Athayde era um amante do cinema
(GRILO, 2015), seu gosto pelas histórias de romance, por exemplo, influenciaram-no na
escolha de imagens para os seus folhetos. Ao tempo em que oferecia aos leitores histórias
de personagens muitas vezes criados pelos poetas, oferecia aos leitores o contato com
artistas de cinema hollywoodiano.

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Figura 1: Folheto do poeta João Athayde com imagem de artistas de cinema. Ano 1974.

No folheto republicado no ano de 1974 do poeta e editor João Martins de


Athayde o leitor observa a representação a imagem de um casal de artistas de cinema. O
romance aborda a história de dois personagens, Joãozinho e Mariquinha. A forma como a
imagem foi criada e inserida no folheto gira em torno do encontro entre um casal, envoltos
de um clima de conquista e amor. Algo que se torna ainda mais enfático por meio da
utilização de uma vinheta ao redor da imagem, em que se observa o conjunto de flores que
contribui para o enfoque no amor, romance e pureza. Além da utilização de uma imagem
advinda do cinema, o editor, por meio de uma intervenção editorial faz uso de outra
ferramenta visual para enfatizar a história posta no folheto. Estas escolhas e intervenções
agem como constituidoras de narrativas visuais, as quais, por sua vez, estão imersas em
uma cultura visual.

O modelo iniciado com João Athayde seguiu-se no campo editorial da


literatura de cordel. Apesar das dificuldades da reutilização de clichês de artistas de
cinema, devido a sua falta ou o que pode ser chamado de vida útil dos clichês, os editores
começam a fazer uso de xilogravuras para as capas dos folhetos de cordel que abordavam o
tema romance, amor.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Figura 2: Folheto do poeta José Costa Leite, com imagem de artistas de cinema. Sem data de
publicação

Figura 3 Republicação do poema As aventuras de Renato e Elvira. A xilogravura retrata o casal. Sem
data de publicação

Assim como na França do século XVI, quando as imagens religiosas começam


a ser reutilizadas, emergindo com novos significados; no Brasil, com a literatura de cordel
tal estratégia começa a ser aplicada. Dessa maneira, no campo de interesse deste trabalho,
vale ser apontado que tal reutilização era utilizada com uma estratégia editorial, e ao se
repetirem em outros folhetos, em outros momentos, as imagens adquiriam outras
mensagens e significados, que direcionavam o leitor do texto para a compreensão de outros
mecanismos culturais. Assim, o uso de clichês, fotografias e xilogravuras começaram a ser
utilizadas repetidas vezes em folhetos com histórias distintas.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Folhetos representando a reutilização de imagens em folhetos com narrativas distintas.

Quando reutilizadas, essas imagens assumem novas narrativas, novas


mensagens, novas ideias. No primeiro caso, o clichê utilizado nos folhetos sobre o Padre
Cícero, assume mensagens distintas. Em um primeiro folheto, o poeta Romano Elias da
Paz (s/d) utiliza a imagem enquanto representação da Canonização do Padre Cícero
Romão, a reutilização da mesma imagem pelo poeta José Costa Leite (s/d), aborda outra
mensagem, mesmo se tratando do Padre Cícero, a ideia agora é apresentar a sua carta
misteriosa, anunciando os sinais do fim do mundo.

Já no segundo caso, o poeta Manoel Camilo Rezende (s/d) anuncia uma peleja sua
com outro poeta, e para isso, utiliza um retrato do seu rosto para demonstrar a sua ―discussão‖. Ao
editar outro folheto A ressurreição do Poeta que não morreu (s/d) a mesma imagem volta a ser
reutilizada, apesar do poema girar em torno do autor, a reutilização da imagem assume outra
mensagem aborda uma outra história, ao tempo em que grava na memória dos leitores a sua
imagem, tornando-a conhecida. No último exemplo, a xilogravura que retrata uma cena de
amor, afeto entre um casal, retrata no folheto A filha do Capitão e Rufino (1973), uma cena
de amor, um romance que inunda o desenho da capa. Quando reutilizada no folheto Quem se casa
faz um laço pra colocar no pescoço, sem uma data de publicação, a imagem se reelaborar com
outra mensagem, expressa não mais um romance, mas um alerta aqueles que pretendem um dia se
unir em matrimónio.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apesar das discussões aqui elencadas, é preciso atentar-se para o fato de que os
poetas e editores não se prendem necessariamente a modelos ou padrões verbais e visuais.
Os sujeitos envolvidos no campo editorial também elaboram seus próprios modelos, agem
de forma a construir seu repertorio visual, buscam o ―ineditismo‖ em suas obras (RAMOS,
2007). Não cabe a generalização. Dessa maneira, é preciso ser compreendido que no
campo da literatura de cordel os diversos sujeitos inseridos na editoração deste suporte não
se prendem unicamente a modelos, eles elaboram também os seus, o que lhe é conveniente.

Estes sujeitos utilizam suas próprias estratégias, táticas e intervenções em


busca da elaboração do seu produto de forma a atingir o seu público leitor, e inserir-se no
mercado editorial. O meio social, político e cultural do poeta, do ilustrador e do editor
interferem diretamente na construção das mensagens verbais e visuais. Neste campo, a
cultura ―erudita‖ e ―popular‖ entra em diálogo, insere-se no que o historiador Carlo
Ginzburg (1987) chama de ―circularidade cultural‖. Além disso, é preciso ser
compreendido que tanto a oralidade, como a linguagem verbal dos poemas estão
diretamente ligadas ao suporte visual. A leitura da imagem está inserida no diálogo destas
linguagens assim como nas intervenções editoriais, que apresentam as escolhas e decisões
advindas do meio social, politico e cultural dos poetas e editores. Nesse sentido, autores e
editores são responsáveis por este sistema de comunicação e intermediação destes artefatos
culturais.

LITERATURA DE CORDEL

ATHAYDE, João Martins de. História de Joãozinho e Mariquinha. Juazeiro do Norte:


Tipografia São Francisco, 1974.
COSTA LEITE, José. A Carta Misteriosa do Padre Cícero Romão. [S.l: s.ed, s.d].
____________. A filha do Capitão e Rufino: o Rei do Barulho. Condado-PE: A Voz da
Poesia Nordestina, 1973.
____________. As aventuras de Renato e Elvira. Condado-PE: A Voz da Poesia
Nordestina, s.d.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

___________. Quem se casa faz um laço para colocar no pescoço. Condado-PE: A Voz
da Poesia Nordestina, s.d.
PAZ, Romano Elias da. A Canonização do Padre Cícero Romão Batista e seus
Milagres em Vida no Juazeiro. Belém-PB: s.ed, s.d.
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Estrela da Poesia, s.d.
___________. Discussão de Manoel Camilo com um Protestante. Campina Grande:
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178
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

“NOSSO REIS DE CONGO”:


REPRESENTAÇÕES DA REALEZA NO CONGADO DE POMBAL-PB

THIAGO DOS SANTOS FARIAS


UFCG
[email protected]

RESUMO

A figura do Rei no congado ganha destaque, sua desempenho ―teatral‖, seu traje branco,
coroa na cabeça e um guarda chuva para se proteger do sol, remonta as antigas embaixadas
africanas do século XVI. Todavia, em Pombal-PB o aspecto mais festivo e de louvor ao
catolicismo tem maior expressão nas ações desta figura com significado renovado. O
objetivo deste trabalho é analisar as representações relacionadas à figura do Rei de Congo
na cidade, os aspectos simbólicos e culturais. A justificativa parte do principio de
podermos compreender melhor esse destaque do Rei e seu significado para a cultura local.
Partimos então, de uma metodologia de analise bibliográfica e do canto de embaixada dos
congos. Teoricamente o texto terá como norte as discussões estabelecidas por Roger
Chartier (1990), Marina de Mello e Souza (2006) e Roberto Benjamin (1977) acerca do
tema.
Palavras-chave: Rei de Congo; representação; cultura.

INTRODUÇÃO

O rei do congado em Pombal é uma figura representativa que chefia o grupo


conhecido como ―Pretinhos de Congo‖, uma referência certamente à reminiscência de um
passado africano distante, porem mantendo a nomenclatura que incorpora a simbologia
ritual presente lado a lado as praticas religiosas do catolicismo romano, da devoção aos
santos mais comuns como Nossa Senhora do Rosário e São Benedito. Portanto, este
trabalho busca perceber como o reis de Congo 73 nomeadamente uma figura simbólica pode
ser percebida a partir de rua representação de realeza. De seu status divino que remonta a
uma tradição africana trazida para as Américas e reconstituída a partir dos agrupamentos
das irmandades negras.
A análise aqui pretendida comporta enfatizar aspectos relevantes e que aparem nos
textos da bibliografia citada e que sem dúvida é o ponto chave para iniciarmos nossa
discussão.

73
A palavra reis de Congo é uma acentuação de documentos da época colonial onde administradores assim
se referiam aos reis constituídos no Brasil dentro das irmandades negras que eram devotas de orangos
(santos católicos de sua preferencia).

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Primeiramente propomos perceber a partir do tópico “Reis negros e o poder


simbólico na historiografia afro-brasileira” como alguns autores - principalmente
Marina de Melo e Sousa (2002) e John Kelly Thornton (2004) - discutem o contexto que
antecede a chegada ou mesmo a constituição destes reinados negros na América e no
Brasil. Também apontamos por meio de outro tópico intitulado: “Meus Pretinhos do
Congo” na procissão do Rosário “” o papel exercido pelo rei do congado em Pombal
quando das celebrações relativas a Festa do Rosário acontecida a cada primeiro domingo
de outubro. E por último, asseveremos a discussão denominada “Nosso Reis aqui não
manda...” para compreender o papel do reis de Congo entre os seus numa referencia a sua
―autoridade divina‖.
A metodologia do trabalho consistirá da analise bibliográfica disponível sobre o
tema cujo material é composto por artigos e livros, fazendo uma leitura e interpretação dos
textos. A partir dai poderemos melhor entender a proposta aqui encabeçada em relação a
analise das representações sobre reis de Congo. Além disso, a leitura que faremos é uma
leitura ancorada na História Cultural onde diversos autores têm sustentado suas abordagens
sobre os conceitos de práticas, representações, imagens, simbologias e rituais.
Ao final, pretendemos concluir nossa discussão para tentar perceber como essa
figura do reis de Congo se constitui em Pombal e quais os aspectos representativos que lhe
confere autoridade diante dos seus e do lugar em que se reelabora estas representações.

REIS NEGROS E O PODER SIMBÓLICO NA HISTORIOGRAFIA AFRO-


BRASILEIRA.

Ao iniciarmos este tópico cabe aqui falar um pouco do contexto em que essa
realeza se insere e da historiografia sobre os reis negros que remonta a África Centro
Ocidental (Reino do Congo e Angola), onde Marina de Mello e Souza relata que ―Os
indícios para o século XVIII mostram que havia celebrações em torno de reis de diversas
nações, preferencialmente centro-africanas, mas não só7, enquanto as fontes relativas ao
século XIX falam quase só em rei do Congo‖ (2005, p. 83). Isto inca que a realeza existia
por toda África central, porem haverá de se destacar os reis de Congo, que provavelmente
tiveram uma acentuada participação nas práticas do catolicismo romano implementadas
nesta parte do continente, bem como tiveram também uma reação muito forte com o trafico

180
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

pelo fado de haver um destaque destes nos relatos do século XIX, um momento de
acentuado trafico de africanos para as Américas, principalmente.
Esse contexto, é fundamental para entendemos como se constrói essa acentuação e
um relato mais aprofundado sobre os reis de Congo. Não que deixasse de existir outros
reis, outras autoridades, porem estes acabou por algum motivo se destacando. Talvez o
motivo seja esta presença forte de uma estruturação hierárquica romana que fez com que
adaptações fossem mais fáceis para os reis de Congo do que para outros reis. Era comum
que reis de várias nações se reunissem para festejar ou mesmo para prestar homenagens.
Sobre isso, podemos perceber o seguinte:

Apenas amanhecia o dia de Reis, o campo de São Domingos, nas proximidades


da capela, opulentava-se de um espetáculo variado e estranho em que
Moçambiques, Cabundás, Benguelas, Rebolos, Congos, Cassanges, Minas, e a
pluralidade finalmente dos representantes das nações d‘África, escravos no
Brasil, exibiam-se autênticos, cada qual com seu característico fundamental, seu
tipo próprio, sua estética privativa (FILHO, 1945, p. 383 apud SOUSA, 2005, p.
83).

O relato do autor acima demonstra uma diversidade de nações com seus ritos,
cores, performances e todo um ―variado espetaculoso‖ criando encenações, danças, forma
de apresentação no dia Reis para juntas as nações, festejar o espetáculo divino que hora se
manifestava em suas ações e crenças. Estas representações, encenações são maneiras de
―enxerguemos uma variabilidade de imagens e textos produzidos historicamente e que
permitem observar as práticas sociais e estratégias dos homens no seu cotidiano‖
(CHARTIER, 1990, p. 21-25), são variações das práticas destas nações reunidas em
práticas seus ritos de fé. A dança, a musica, os trajes são representações destes reis e o
destaque do reis de Congo é a síntese da compreensão de que o universo simbólico
africano por mais que existam pontos específicos é de uma variabilidade enorme de
práticas simbólicas.
Está variabilidade também se sustenta na especificidade e na historicidade de
acontecimentos que existe no contexto dessa África Central e que aqui discutidos nos faz
perceber como a importância destes reis. E novamente Marina de Mello e Souza nos
chama a atenção quando se trata de reis de Congo para dizer que:

A crônica portuguesa da época registrou com detalhes os episódios ligados à


conversão dos chefes congoleses e no século XVI houve uma grande
aproximação entre Portugal e o Congo, que no entanto manteve sua soberania. O
momento de maior força do chamado reino do Congo - um determinado

181
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território cujas aldeias se sujeitavam a uma autoridade central - foi o período do


governo de Mbemba Nzinga (1507-1542), batizado ainda criança com o nome de
Afonso no momento inaugural da aceitação do catolicismo por parte de alguns
chefes congoleses. D. Afonso I entrou para a história como o mais importante rei
católico do Congo, mantendo correspondência com D. João II, D. Manuel I e D.
João III de Portugal e apoiando a disseminação do catolicismo entre a população
por ele governada (2005, p. 84).

As informações acima sobre o reino do Congo e sobre a realeza nela, seu poder,
suas relações e a manutenção das relações com os reis de Portugal determinaram essa
acentuação de que os reis de Congo são a expressão mais conhecida entre todas as nações
africanas existentes. O fato de um rei convertido ao catolicismo ainda criança é uma
notória demonstração do peso simbólico que estes reis desempenharam durante o processo
de cristianização da África Central junto com todas as outras formas de relações
estabelecidas sejam elas de conflitos militares, econômicos, políticos ou mesmo de uma
diplomacia demonstrada nessa representação e adoção de nomes portugueses para reis
africanos.
Há que se compreender, portanto, que não há o estabelecimento de relações
superficiais, simbólicas, mas de uma profundidade que chama a mudança de nomenclatura
do chefe local para atender um conjunto de interesses de ambos os lados. A conversão
católica é, portanto, para esse reis uma experiência que será revivenciada nos trópicos
americanos no decurso dos séculos, principalmente o século XIX, momento em que as
organizações leigas - irmandades - se constituem para formatar sua resistência cotidiana.
O aporte fundamental para isso talvez esteja na logica de que o trafico escravo foi
mais que uma atividade comercial com relação as pessoas, mas também um momento onde
houve uma reelaboração cultural transposta por essa ruptura, por essa desterritorialização.
Sobre isso, John Kelly Thornton (2004) reflete da seguinte forma:

A ausência de uma especificidade étnica e cultural necessária para manter ou


recriar a cultura africana nas Américas levou os escravos a formarem uma nova
cultura. Essa nova cultura tem raízes africanas, baseia-se num denominador
comum das muitas variadas culturas da África que serviram de alicerces, porém
foi criada em um contexto no qual os elementos da cultura europeia serviram de
material de ligação. Além disso, não somente a cultura europeia infiltrou-se na
sociedade escrava, mas ela era muito mais homogênea do que as diferenças
culturais africanas, conferindo-lhe uma coerência que faltava nas da África. A
mistura resultante foi nitidamente influenciada pelas culturas europeia e euro-
americanas, com elementos africanos dando-lhe mais sabor do que substância
(2004, p. 254).

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Compreendemos assim, que as trocas culturais, as relações estabelecidas e essa


desterritorialização tem um efeito prático no decurso do tempo. E que a forma como a
população negra se organizou dentro do espaço das irmandades negras com seus reis de
Congo demonstra a capacidade de resistência cultural dos povos africanos, principalmente
aqueles que foram influenciados pelo catolicismo em sua integralidade.

“MEUS PRETINHOS DO CONGO” NA PROCISSÃO DO ROSÁRIO.

O primeiro domingo de outubro é Festa do Rosário em Pombal e os chamados


―Grupos Folclóricos‖ participam ativamente da festa em louvor aos santos católicos, em
nome da cultura e da tradição. Todos reunidos: Pontões (Soldados do Rosário), Congos
(Pretinho de Congo) e o tradicional Reisado que se apresentam a população no cortejo que
leva o Rosário até a Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos no centro da cidade
construída por nativos (Índios) e africanos escravizado, e datada de 1721. Lateralmente
situada a centro histórico da cidade o monumento religioso é abrigo da fé popular da das
expressões da cultura local.
É no Domingo do Rosário que o grupo cultural mais festejado participa: os Congos,
tendo atualmente o senhor Miguel Ferreira como ―Reis‖.

Figura 1: O Reis de Congo de Pombal no centro com guarda-sol na mão


o senhor Miguel Ferreira (Acervo pessoal do autor).

183
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

No congado de Pombal o reis de Congo se apresenta como chefe do grupo e é ele


que conduz os congadeiros74 com seu traje de paletó branco, coroa na cabeça, guarda-sol
na mão direita e coroa enfeitada na cabeça (nos últimos anos tem sido cinza o paletó por
uma preferencia do senhor Miguel Ferreira) como simbologia de sua ―chefatura‖ diante do
que representa para os congadeiros.
Durante o cortejo do Rosário se limita a acompanhá-lo sempre no centro ladeado
por seus comandados (os congos) que em numero de dez na forma duas filas (cordão ou
ala) de cinco cada. Uma vestida de camisa azul longa com uma faixa vermelha e saia de
renda branca a outra com camisa vermelha longa com uma faixa azul e saia branca de
renda. E todos com um ―chapéu‖ em forma de cone nos mesmos padrões dos trajes para
cada lado, empunhando na mão direita seus maracás. Estes são os trajes simbólicos que
comporta os congos para a participação no cortejo e sua apresentação.
A ritualística do congado de Pombal se comporta como uma embaixada africana
que remonta as relações travadas por congoleses e portugueses no século XVI, cujo papel
de apresentação do congado se dá pela via do auxiliar do rei, o secretário:

Figura 2: Do lado direito da imagem destaque para Francisco Tertuliano de Sousa (Chico Barro), secretário
do congado de Pombal entre as décadas de 1970 e 1980 (Imagem adaptada: capa do Documentário Sonoro do
Folclore Brasileiro - nº 18).

Na ritualística do congado de Pombal o Rei e o Secretário são figuras


extremamente importantes, são eles os puxadores da música, da dança e tem a
responsabilidade de manter acesa o desejo dos brincantes de continuar dançando e
participando das expressões representativas que o grupo realiza.

74
Denominação literal para aqueles que dançam ou brincam o congado.

184
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Durante o cortejo do Rosário, procissão que sai da ―Casa do Rosário‖ e vai até a
igreja no centro da cidade. Nela o comportamento dos congos é de acompanhar o Rosário e
dar projeção ao Rei e Rainha do Rosário que em suas mãos carregam o objeto religioso
com o devido zelo, inspirados na fé católica que os guia. Os Congos rufam seus maracás,
como sinal de sua presença no cortejo e rememorando a ritualística de sua encenação
dramática acompanhada do som deste instrumento artesanal.
Ainda no percurso do cortejo do Rosário se mantem em duas alas compostas por
trajes vermelhos e azuis, indo no meio do povo lembrando as embaixadas africanas nos
cortejos das festas religiosas tanto na África como em Portugal que encenavam dentro do
espaço normatizado da religiosidade da igreja romana sua resistência e criação de uma
identidade conjunta.
A representação do ―Reis de Congo‖ no espaço da procissão do Rosário em Pombal
é a de um monarca simbólico que ocupa seu espaço junto com os brincantes para
rememorar seu papel simbólico. Ao lado da igreja e de certa forma, abaixo dela, o é o Rei
Congo por princípio uma figura da cultura local, popular, festiva e devocional. Suas ações
estão sendo legitimadas pela igreja enquanto este faz parte da festa em louvor ao Rosário.
Sendo assim, é podemos compreender as afirmações de Marina de Mello e Souza
quando afirma que,

A rememoração simbólica do reino africano católico afirmava uma


―africanidade‖, ou seja uma conexão com a África construìda a partir do Brasil e
da experiência aqui vivida, que indicava uma particularidade da comunidade
negra, uma identidade própria que a distinguia mesmo quando adotava o
catolicismo e outras tradições de origem portuguesa como a organização em
irmandades leigas (2005, p. 90).

O produto desta identificação e desta reelaboração talvez seja a recriação continua


de um reinado simbólico em face de suas características culturais, dança, trajes,
encenações, instrumentos e devoção aos santos católicos. Há, portanto, um ajustamento da
cultura que se hibridiza para permanecer viva. A resistência indentitária é a marca da
estruturação das Congadas protagonizadas por seus ―Reis de Congo‖.

“NOSSO REIS AQUI NÃO MANDA...”.

―Meus pretinhos de Congo


Donde vem nessa hora
D` abarc´ Aruanda e

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Vamos pr´ Angola‖75

Neste ponto discutiremos as representações do rei de Congo a luz de sua


musicalidade e da análise proposta por Roberto Benjamim (1977) acerca dos Congos de
Pombal. A proposição implica em uma leitura do entrecho musical dramático que por meio
de um cântico da oralidade foi sendo registrado e comporta algumas representações
explicitas no texto poético.
O trecho do cântico acima, faz uma referência ao nome ao qual o grupo dos Congos
é conhecido: ―Pretinhos de Congo‖, uma reminiscência da cultura africana que festejava
seus ―pretos velhos‖, ―pretos da guiné‖ que no contexto aqui analisado são figuras que são
lembradas dentro do contigo na hora do entrecho dramático. Some-se a isso uma referência
a Angola como um reino africano do século XVI que foi grande entreposto de escravos
trazidos pelo Atlântico para as américas, principalmente o Brasil.
Em outro trecho, o cântico de embaixada dos Congos de Pombal dá voz ao aspecto
religioso em louvação a Nossa Senhora do Rosário dos Pretos. Assim diz o cântico,

Santana dá louvor
Rosário de Maria,
Enche o céu de glória,
E a terra de alegria.
Dizei, dizei, hoje nesse dia (2x),
Vamos ver o Rosário
Vamos ver Maria76

O cântico de embaixada dos Congos de Pombal revela devoção católica, maria na


principalmente, pois revela uma introdução ao louvor da ―divindade romana‖ que ora se
sustenta na fé popular, hora na recriação cultural que vem dos grupos instituídos tanto a
própria igreja quando os já citados Congos.
O entrecho dramático reveja que a fé e a ressignificação do catolicismo feita pelo
reinado Congo traz para se as formas de fazer e representar o congado, e que tais formas
passam pela maneira como se organizam, se estrutural e atual, isso diz respeito a como se
faz a descrição do momento de apresentação dos Congos, onde,

Os Congos apresentam-se em duas alas de 5 participantes cada. Os elementos


dos dois cordões vestem saias rendadas brancas, cujos bordados lembram as
alvas que os padres usavam entre os paramentos da missa; por baixo, vestem
uma saia de armar com um aro de arame e, sob esta, a ―saia de baixo‖, sobre

75
Cântico de embaixada dos Congos de Pombal-PB (BEIJAMIM, 1977, p. 10).
76
Cântico introdutório dos Congos de Pombal-PB (BEIJAMIM, 1977, p. 10).

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

calças compridas brancas. Calçam sandálias sertanejas rústicas ou sapatos,


indiferentemente. Sobre a cabeça portam chapéus afunilados de papelão, na cor
da blusa, enfeitados de espelhos, vidrilhos e areia prateada. Os congos do cordão
do Secretário ventem blusas azuis e os do cordão do Embaixador, encarnadas. O
Secretário sobre a blusa azul porta uma faixa encarnada e o Embaixador uma
faixa azul sobre sua blusa encarnada (BENJAMIN, 1977, p. 09).

Roberto Benjamim nos faz perceber como se dá esta estruturação, como o reinado
dos Congos se apresenta e realiza sua ritualística. O rei do Congo em Pombal revela neste
sentido a simbologia de rememorar as formas africanas de identidade, isso no sentido de
que a representação da realeza passa pelo comportamento de todos no grupo compondo o
congado, suas maneiras de ser e fazer o ritual do congado. Manifesta, portanto, na
musicalidade, no cortejo dramático e em dançar com suas saias brancas e seus maracás em
punho. Demonstram assim que,

A música dos Congos é produzida pelos maracás e marcada pelos vigorosos


passos de dança, acompanhados de viola. Os Congos fazem as invocações
iniciais e dançam sem se preocupar com a presença do Reis no trono; na verdade
ele está ausente da cena, do ponto de vista antiilusionista da apresentação (...)
tanto o canto, como a fala das embaixadas é dita em português estropiado e
algumas palavras soltas, que parecem ser de dialeto africano, de sentido
inteiramente esquecido (BENJAMIN, 1977 p. 06).

Essa musicalidade comporta o entendimento de que as representações simbólicas da


do cântico, dá dança, dos trajes da realeza no congado de Pombal revelem como ela se
organiza, em torno de homens comuns, de afro-brasileiros que rememoram suas tradições,
por representações advindas das heranças africanas, uma simbologia que serve para as
práticas das Congadas, dado o relato de Roberto Benjamim, que em seu livro traça um
apanhado discricionário de uma prática cantadeira rica de detalhes que são mais
perceptíveis aos olhos de quem vê o ritual acontecer sem dele participar, sem estar incluso
(FARIAS, 2016, p. 39).
Estando assim, revelado um laço indissociável da cultura negra que preserva os
hábitos dos ―homem cor‖ que caracteriza a historiografia africana em torno do estudo dos
reis negros.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

REFERÊNCIAS

BENJAMIN, Roberto. Congos da Paraíba. Caderno de Folclore – FUNART, 1977.

FILHO, Mello Moraes. Festas e tradições populares do Brasil. -3ª Edição, Rio de
Janeiro: F. Briguiet & Cia. Editores, 1946.

SOUZA, Marina de Mello e. Reis do congo no Brasil, séculos XVIII e XIX. In: Revista de
História, n. 152, 2005, p. 79-98.

THORNTON, John Kelly. A África na formação do mundo atlântico: 1400 – 1800 –


Rio de Janeiro: Else vier 2004.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

A HISTÓRIA NA MESA: A MISSCIGENAÇÃO CULTURAL NAS PRÁTICAS E


HÁBITOS ALIMENTARES E NO COTIDIANO NA HISTÓRIA DA
ALIMENTAÇÃO NO BRASIL

ALBERTO MONTENEGRO LIMA


PPGH/UFCG
[email protected]

RESUMO

O presente artigo se pauta na temática das práticas e hábitos alimentares na História da


Alimentação no Brasil, a partir do processo de miscigenação cultural que se fez presente
ao longo da história colonial brasileira, partindo da premissa das influências que os
diversos atores sociais (indígenas, europeus e africanos) deixaram no processo de
construção de uma ―cozinha brasileira‖, que resulta desse mesmo processo multicultural e
analisadas a partir de aspectos sociológicos, culturais, biológicos, históricos e rituais,
tomando como referências Luís da Câmara Cascudo e Gilberto Freyre, que nos mostram as
particularidades sobre a culinária brasileira, no tocante a miscigenação étnica e cultural das
práticas e hábitos alimentares variados do povo brasileiro. Assim como também nos
aspectos do cotidiano, as táticas e práticas de subsistência e de sobrevivência, no contexto
da colonização na América Portuguesa, nos séculos XVI e XVII, trazendo para essa
discussão Michel de Certeau.
Palavras-chave: Alimentação; cotidiano; miscigenação cultural.

INTRODUÇÃO:

INÚTIL PENSAR que os alimentos contenham


apenas os elementos indispensáveis a nutrição.
Contém substancias imponderáveis e decisivas
para o espírito, a alegria, disposição criadora, bom
humor (...).77

Luís da Câmara Cascudo

Como atesta a epígrafe acima, o alimento é algo importantíssimo na vida do ser


humano, pois vai muito além de ser apenas uma necessidade nutricional. É mais do que
isso. O alimento em si, representa as nossas alegrias, quando estamos numa
confraternização, por exemplo, como também a ausência deste, que por vezes nos causa
tristeza, dor, sofrimento, queixas, etc.

77
CASCUDO, Luís da Câmara. História da Alimentação no Brasil. v. 2. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo:
USP, 1983. 926 p.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Assim, percebermos o valor simbólico, repleto de subjetividades, que a


alimentação possui na vida e no cotidiano de cada um de nós. Haja vista que, os nossos
hábitos alimentares contam muito da nossa história – história essa que, mesmo sem saber,
renovamos toda vez que repetimos um costume ou toda vez que ingerimos determinado
alimento.
Portanto, ―alimentar-se de História‖ – no sentido de tratar, trabalhar com essa área
das Ciências Humanas e Sociais - é uma tarefa que, ao mesmo tempo, é apaixonante e
perturbadora, posto que tal desafio mexe conosco, atinge o mais íntimo das nossas
sensibilidades. Dessa feita, é isso que busco neste artigo (que futuramente possa ser
utilizado na minha dissertação de mestrado), ou seja, mexer com as nossas sensibilidades e
com os nossos sentidos, ao analisar os hábitos e costumes alimentares brasileiros, no
tocante à miscigenação alimentar na cultura brasileira e a construção de uma ―cozinha
tìpica brasileira‖, além das práticas e táticas cotidianas de subsistência dos colonos, para
sobreviverem na América Portuguesa.
E por que analisar a temática da alimentação à luz da História Cultural? Pois bem, é
muito comum observarmos os movimentos da História através de conflitos armados e
revoluções ou de motivações de ordens políticas, econômicas e de mobilizações sociais.
No entanto, nos esquecemos de que, por trás do desenrolar dos processos históricos
podem existir razões diretamente ligadas a um ato básico cotidiano que é extremamente
necessário ao funcionamento biológico do organismo humano: a alimentação. É neste
sentido que podemos perceber que a história não foi feita apenas pelos grandes vultos.
Tampouco pelas estruturas econômicas, e que ela está entrelaçada não só dos grandes fatos
– como já mencionamos anteriormente – mas de pessoas comuns.
Conforme Luce Giard (1996), ainda há espaço para as microinvenções e essas
microinvenções são meio para fazermos nossas próprias escolhas em tudo que criamos.
Neste sentido, os nossos hábitos e costumes alimentares também se dão no âmbito cultural,
nas relações do cotidiano, nos interstícios do dia-a-dia (GIARD, 1996, p. 285/86).
Visto que, os silenciados – com relação aos novos temas introduzidos nos estudos
historiográficos, tais como a história dos negros, dos indígenas, das mulheres, dos homens
pobres livres, das nossas práticas culturais em geral - estão tendo a oportunidade de falar,
através dos discursos da Nova História Cultural Francesa, utilizados para inclusão de
muitos que ficaram à margem da dita História, a exemplo da temática da alimentação.

190
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Diante disso, buscamos ressaltar a importância cada vez mais crescente que está
sendo dada aos nossos hábitos alimentares, no universo das Ciências Humanas e Sociais.
Tendo em vista que a temática da alimentação esteve durante algum tempo às margens da
escrita da história no Brasil, uma vez que, a alimentação, assim também como as suas
práticas culturais, se constituiu em espaços e objetos privilegiados quase que
exclusivamente de estudos antropológicos, principalmente no século XIX e nas primeiras
décadas do século passado.
Entretanto, devido à grande contribuição das novas abordagens no campo da
chamada Nova História Cultural Francesa (já mencionada anteriormente), a partir do
advento da chamada Terceira Geração da Escola dos Annales, da década de 1970 em
diante, em que ocorreu uma verdadeira revolução documental no campo historiográfico,
houve uma mudança muito significativa em relação ao estudo das práticas cotidianas,
ocasionando, nos últimos anos, uma retomada da temática da alimentação, através de um
diálogo interdisciplinar com outras áreas afins, na escrita da história de nossos hábitos e
costumes alimentares.
Como bem atestam Jacques Le Goff, em “Documento/ Monumento” (1974) e
Michel de Certeau, em “A Escrita da História” (1982), ambos discorrem sobre esse
momento em que os mais variados registros da presença do homem no passado – entre eles
estão, sem dúvidas, os nossos hábitos e costumes alimentares, desde os primórdios –
passaram a serem objetos de estudo do historiador, usados, por assim dizer, para escrever a
―história nossa de cada dia‖.
Nesse sentido, dentro do campo historiográfico brasileiro, ocorreu uma maior
abertura e dialogo interdisciplinar com as demais ciências humanas, a partir da década de
1980, assim como também com as ciências do corpo – a biologia, e a nutrição, a medicina.
Assim, a questão da alimentação deve se situar no centro das atenções dos
historiadores e de reflexões sobre o processo histórico da sociedade, pois, a nosso ver, a
História é a disciplina que oferece um suporte fundamental e projeta perspectivas, quanto à
construção de uma história de nossos hábitos alimentares, perpassando as nossas práticas
cotidianas, como parte da história do patrimônio cultural do Brasil.
Para além de uma simples temática, a História da Alimentação é algo que engloba
uma série de problemáticas e reflexões que são, antes de tudo, históricas. Portanto falar de
uma história da alimentação no Brasil é mexer com o cotidiano de nossa gente, a partir dos
hábitos alimentares que possuem suas raízes, por assim dizer, no passado colonial do país.

191
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

A MISCIGENAÇÃO ALIMENTAR NA CULTURA BRASILEIRA

De que maneira ocorreu o processo de construção da brasilidade alimentar? Quais


foram os principais ―ingredientes‖ que serviram de base para a constituição de uma mesa
―tipicamente brasileira‖? Como os hábitos alimentares mais comuns do povo brasileiro
foram moldados historicamente em torno de uma sociabilidade representada pelos
costumes do colonizador europeu, do indígena e do africano, dentre outras procedências?
Esses e outros questionamentos nos levam a refletir sobre nossas práticas culturais,
simbólicas e históricas, no tocante a maneira como nos relacionamos com o alimento, que
segundo Sidney W. Mintz, pela sua natureza vital o comer assume uma posição central
para o ser humano, já que é através do comer que o homem incorpora nutrientes essenciais
ao seu organismo e nutre-se de simbolismo (MINTZ, 2001. p.31-42).
Nesse sentido, nossas escolhas alimentares estão relacionadas ao nosso universo
simbólico e cultural, que são uma afirmação de nossa identidade. Ainda de acordo com
este autor: "Comer é uma atividade humana central não só por sua frequência, constante e
necessária, mas também porque cedo se torna a esfera onde se permite uma escolha"
(MINTZ, 2001, p. 36). Escolha essa, porém limitada pela disponibilidade de recursos e
acessibilidade aos alimentos. Assim, o nosso comportamento alimentar está diretamente
relacionado à nossa identidade social.
Para além dessa discussão antropológica, colocada anteriormente, as práticas
alimentares de um povo, como ressalta Maciel (2004), é construída através de todo um
processo histórico, articulando um grande conjunto de elementos que encontram
referências na tradição. Sendo assim, a nossa cozinha não pode ser reduzida a um
inventário, a um repertório de ingredientes, pronta e acabada (MACIEL, 2004, p. 25- 39).
Pelo contrário, a construção de nossos hábitos e costumes alimentares tem seu
―embrião‖, por assim dizer, com as ―viagens dos alimentos‖, a partir das chamadas
Grandes Navegações (séculos XV e XVI), evento histórico que condicionou um maior
intercâmbio cultural e alimentar entre o Velho e o Novo Mundos.
Nesse contexto, houve uma relevante troca de produtos alimentares, uma vez que
muitos alimentos desconhecidos dos europeus – como o milho, a mandioca, o cacau, entre
outros – foram introduzidos na Europa, como também em outras partes do mundo,
ocorrendo o mesmo com os alimentos de origem europeia, africana e asiática, que

192
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

encontraram, no caso do Brasil, um terreno fértil para se desenvolver, mesmo que a custa
das vegetações nativas, como foi o caso da cana-de-açúcar, nos primórdios da colonização
portuguesa.
Em linhas gerais, pode-se descrever a construção de uma ―cozinha à brasileira‖,
partindo dos grandes deslocamentos populacionais e das trocas daí decorrentes, pois, ao se
deslocarem as populações levam consigo toda uma bagagem de práticas culturais
alimentares. Não somente isso, mas também técnicas, ingredientes, valores, preferências,
prescrições, e porque não, proibições (MACIEL, 2004, p. 38).
Portanto, é de grande estima que ―invocamos‖, para endossar essa discussão em
torno da construção da brasilidade alimentar, o folclorista potiguar Luís da Câmara
Cascudo, que em seu livro “História da Alimentação no Brasil” (CASCUDO, 1983, p.
926), procura analisar o processo de miscigenação alimentar no interior da cultura
brasileira através de múltiplos aspectos, sejam eles sociológicos, culturais, históricos,
biológicos e rituais, partindo das matrizes nativa, europeia e africana, apontando como a
miscigenação cultural desses povos também teve reflexo na construção da identidade
alimentar brasileira.
E, antes de tudo, Cascudo afirma que “o número de livros sobre a cozinha
brasileira, com base na pesquisa e na informação histórica, é extremamente reduzido, de
difícil leitura e confundidos com as coleções de receitas, de todas as procedências”
(CASCUDO, 1983, p. 414). Cabe aqui destacarmos a grande importância que este autor
dedicou a temática da alimentação, ao ponto de vislumbrar ―a cozinha como sendo
realmente uma arte, mas uma Arte Menor; e o ambiente da cozinha como um apaixonante
motivo de Arte‖ (CASCUDO, 1983, p. 417).
Entretanto, apesar de sua admiração profunda por essa cozinha artística, requintada
de banquetes e festins, já pomposa no período colonial, Luís da Câmara Cascudo a critica
com veemência, visto que defende uma cozinha cotidiana correspondente ao passadio do
povo espalhado pelo Brasil, pois “o povo não come galinha assada com recheio, peixes
com espinha ao molho branco (...) Come carne, farinha feijão, arroz (CASCUDO, 1983,
p. 431).
Nessa perspectiva, podemos ressaltar que a cozinha dos povos colonizadores não
erradicou a cozinha dos povos colonizados. Pelo contrário, houve uma miscigenação
cultural, entre ambas e, no caso de nossos hábitos alimentares, além das contribuições

193
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

nativas e europeias, tivemos também a forte influência dos alimentos de origem africana,
que engrossaram o caldo do caldeirão culinário brasileiro.
Assim, o passado colonial brasileiro foi marcado por miscigenação cultural (no
tocante ao intercâmbio entre hábitos culturais de diversos povos que formam uma
determinada cultura), uma vez que nossos hábitos alimentares fazem parte de um conjunto
de bens e práticas tradicionais que nos identificam como nação ou como povo, sendo
apreciado como um dom, algo que recebemos do passado com tal prestigio simbólico que
não cabe aqui discuti-lo.
No dizer de Cascudo, “A cozinha brasileira é um trabalho português de
aculturação (transculturação) compulsória, utilizando as reservas amerabas e os recursos
africanos aclimatados (...)” (CASCUDO, 1983, p. 410). E, embora a cozinha brasileira
tenha nascido ao mesmo tempo em que nasceu o brasileiro, no século XVI, ainda conforme
o autor, os elementos que constituem a cozinha nativa contribuíram para que ela se
mantivesse poderosa e natural, distanciada, em parte, da influência acentuadamente
lusitana.
Todavia, para o folclorista potiguar, a miscigenação entre mamelucos, mulatos e
brancos europeus, entre outras coisas, acabou unificando a alimentação pela convergência
oficial dos níveis humanos, isto é, assim como seus pais, mulatos e mamelucos também se
alimentavam da comida de branco e todos bebiam, sem distinção de hierarquia social, a
cachaça, aguardente de cana, que participava de todos os pigmentos (CASCUDO, 1983, p.
432).
Pela sua influência irresistível sobre as populações nativas e africanas no Brasil
colonial, a cozinha portuguesa, como ressalta Luís da Câmara Cascudo, corroborou para
que a multidão de escravos jamais possuísse uma autonomia alimentar, já que essas
populações escravas não trabalhavam isoladas da administração senhorial.
Com isso, a cozinha brasileira torna-se, no seu ponto de vista, um símbolo nacional
de rebeldia, visto que, nos momentos de comoção revolucionária esta era usada
exclusivamente como um índice de liberdade, independência e autonomia. Portanto, a
cozinha reflete para Câmara Cascudo como:

Um quadro de normalidade social, do cotidiano, do real imediato,


insusceptível de qualquer deformação interpretativa. (Segundo ele) a
manutenção usual dos alimentos regionais é um elemento poderoso de
defesa coletiva, no sentido psicológico, mantendo, como permanente, as
características da nutrição popular. (CASCUDO, 1983, p. 444-47)

194
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Segundo José Reginaldo Santos Gonçalves (2004), o tema alimentação se encontra


amplamente difundido nos relatos etnográficos de Luís da Câmara Cascudo, apontando
para a questão de que esse escritor incorpora as práticas culinárias brasileiras, assim como
as maneiras de preparo e consumo de comidas e bebidas, a outras temáticas como o
folclore popular, os festins, as celebrações religiosas, que fazem parte do nosso patrimônio
cultural.
Dito isto, chegamos ao consenso de que, no processo de construção e
miscigenação da tradição culinária brasileira, não podemos deixar de lado a grande
importância dos elementos formadores da sociedade e da cultura brasileira, uma vez que é
impossível negar que a cozinha brasileira seja o resultado de uma grande mistura de
diversas procedências.
Isso nos leva a perceber que não há uma homogeneidade na nossa tradição
culinária, visto que ela apresenta uma diversidade regional, derivada não apenas dos seus
aspectos físicos, mas também das variadas condições históricas e de apropriação e
colonização do território. Nesse sentido, cada região possui hábitos alimentares peculiares,
conferindo-lhes, também, uma autenticidade, dado ao tamanho do território brasileiro.
Partindo deste pressuposto, temos como referência os estudos de Gilberto Freyre
que abordam a temática da culinária regional nordestina, a partir do lugar de onde este
autor escreve. Com efeito, o sociólogo pernambucano Gilberto Freyre, em sua obra “Casa
Grande e Senzala” (1981), mostra particularidades sobre a culinária regional brasileira,
partindo de uma abordagem sociológica através da mistura racial: a branca, a negra e a
amarela. E que foi a partir dessa miscigenação étnica e cultural que mesclou o Brasil
durante os séculos XVI ao XVIII, que foi construída a noção de brasilidade sob um aspecto
peculiar – a alimentação.
Aponta Freyre (1981) que, durante o período colonial manteve-se em diversas
regiões do Brasil uma alimentação extremamente pobre, devido, entre outras coisas, aos
alimentos que vinham de Portugal ser caros e escassos. Outros motivos estão relacionados
com a insuficiente atividade agrícola de subsistência e a precariedade no transporte dos
alimentos de uma região a outra mais distante e também pelo crescimento acelerado da
população.
Inúmeros fatores contribuíram para que houvesse um desequilíbrio alimentar dos
brasileiros no período colonial e um deles foi justamente a política econômica portuguesa

195
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

voltada para a exportação do açúcar, cujo cultivo da cana-de-açúcar tinha que cada vez
mais ocupar vastas extensões de terras não deixando espaços para outras agriculturas de
subsistências.
A título de ilustração, vemos que no século XVIII, com a descoberta de metais
preciosos na região das chamadas Minas Gerais, as condições de alimentação dos
habitantes da colônia portuguesa na América não melhoraram. O deslocamento exagerado
de pessoas em direção às Minas Gerais fez com que houvesse um grande desabastecimento
que acarretou numa alimentação pobre e deficiente.
Essa escassez de alimentos perdurou durante todo o período colonial, e se agravou
de tal forma, que os governadores de províncias passaram a incentivar os lavradores a
plantar a mandioca, o feijão e o milho, como tentativa de sanear a fome de grande parte da
população pobre e faminta.
Diante de toda essa pobreza alimentar, os portugueses instalados na colônia tiveram
de fazer adaptações – táticas de resistência e subsistência - para garantir sua sobrevivência
num cotidiano tão diverso, como a colônia portuguesa na América. Assim, substituíram
determinados alimentos existentes aqui no Brasil pelos que eram muito utilizados em
Portugal.
Portanto, esse quadro alimentar, caracterizado pela pobreza de nutrientes, vai
exigir do português, improvisação e criatividade contribuindo, desta forma, para
construção da mesa típica regional brasileira. Visto que como afirma Câmara Cascudo que
“a identidade alimentar não apenas fixa a continuidade cultural, mas a contiguidade do
grupo na extensão do social”. (CASCUDO, 1983, p. 43). Posto que, o que se vivencia no
cotidiano, na verdade, é resultado de uma combinação de coisas, relações, concepções e
percepções.
Se por um lado, trabalhos clássicos nas áreas da Antropologia e da Sociologia, já
abordavam o tema da História da Alimentação no Brasil, como os escritos, outrora
expostos nesse artigo, de Câmara Cascudo e Gilberto Freyre, que analisam os aspectos
culturais do Brasil – folclore, música, dança, lendas, festas, culinária, entre outros – desde
as primeiras décadas do século XX, por outro lado, já existem hoje muitos trabalhos no
campo historiográfico direcionados a essa temática, visto que a alimentação, dentro do
universo da cultura material e imaterial, é um objeto de pesquisa que possui grandes
visibilidades.

196
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Um exemplo desse interesse cada vez mais crescente dos historiadores pela
temática da alimentação pode ser vislumbrado no artigo de Maria Eunice Maciel (2004),
intitulado de “Uma cozinha à brasileira”. Neste artigo, a historiadora afirma que uma
cozinha é construída através de todo um processo histórico, articulando um grande
conjunto de elementos que encontram referências na tradição, pois, com muita frequência,
a criação de uma cozinha é descrita como um somatório de elementos diversos (MACIEL,
2004, p. 30).
No Brasil, essa situação é particularmente observável, sendo recorrente a ideia de
que a ―cozinha brasileira‖ é fruto de ―influências‖ de diferentes grupos sociais (em geral
indicados como ―raças‖ e/ou ―etnias‖), os quais ―contribuìram‖ harmonicamente para a sua
formação. (MACIEL, 2004, p. 34).
Sem sombra de dúvidas, quando pensamos o Brasil e todas as práticas culturais
dos seus habitantes, a primeira imagem que vem à mente é a diversidade da pluralidade de
fazeres e saberes seculares da nossa gente. E em meio a toda essa diversidade de culturas,
encontramos as ―raìzes‖ dos nossos hábitos alimentícios, no decorrer de um processo que
é, antes de tudo, histórico.
Considerando que existe uma multiplicidade de textos escritos sobre a História da
Alimentação no Brasil, abrangendo aspectos dos mais variados, como a produção,
distribuição, o preparo e consumo dos alimentos, assim como também os seus mais
variados significados sociais, políticos, econômicos, sexuais, estéticos, religiosos, etc.;
Assim, também há uma riqueza de alimentos descritos nos relatos dos cronistas e viajantes
que percorreram o território colonial português na América, do século XVI ao século
XVIII, relatando a variedade de frutos, hortaliças, vários tipos de animais e peixes, aves,
crustáceos, entre outros.
Como bem relata Henrique Carneiro em seu livro “Comida e Sociedade: Uma
história da alimentação” (2003), que a cozinha revela um microcosmo da sociedade, com
todo o significado simbólico na construção de regras e sistemas alimentares, impregnada
de cultura. Nesse livro, o autor, dentre outros assuntos, sugere aos historiadores direções
no campo da História da Alimentação, segundo as perspectivas das Ciências Humanas, que
possam revelar aspectos da vida cotidiana a partir do universo da comida. Nessa medida,
“comer não é um ato solitário ou autônomo do ser humano, ao contrário, é a origem da
socialização” (CARNEIRO, 2003, p. 71). Logo:

197
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

A alimentação é assim um fato da cultura material, da infraestrutura da


sociedade; um fato da troca e do comércio, da história econômica e
social, ou seja, parte da estrutura produtiva da sociedade. Mas também é
um fato ideológico, das representações da sociedade – religiosas,
artísticas e morais – ou seja, um objeto histórico complexo, para o qual
abordagem cientifica deve ser multifacetada. (CARNEIRO, 2003, p. 71).

Como assegura Giard, que no campo histórico, os nossos hábitos alimentares se


encontram entrelaçados por histórias que estão, de certa maneira, silenciadas, como
também de gestos repetidos nas atividades do cotidiano, que vão se juntando e criando
práticas, táticas de adaptações e de representações dos costumes no dia-a-dia das pessoas
(GIARD, 1996, p. 236).
Vale salientar que, a comida, a alimentação sempre deu muito que pensar, pois não
existe grupo humano que não se alimente, assim como também não há sociedade que deixe
de criar significados e simbolizar aquilo que come, assim como o modo que se come. Posto
que, nenhum alimento é simplesmente cru ou pronto, ou mesmo unicamente cozido, visto
que, cada sociedade, também, se expressa e fala de si, a começar pela maneira de como
arranja a comida e nas maneiras como faz do alimento um discurso e mesmo até uma
representação.
Desta forma, observamos nessas práticas e hábitos alimentares da cozinha
brasileira, que são conhecimentos antigos que vem sendo recriados ao longo do tempo e
nestas dinâmicas constantes de transmissão e recepção de saberes que não cessa nunca, há
permanências, rupturas e apropriações no cotidiano. Como aponta Michel de Certeau ―o
homem inventa o cotidiano graças às artes de fazer, astúcias sutis, táticas de resistência
pelas quais se altera os objetos e os códigos, se reapropria do espaço e do uso a seu jeito‖
(CERTEAU, 1994, p. 25).

COTIDIANO E PRÁTICAS ALIMENTARES NA AMÉRICA PORTUGUESA NOS


SÉCULOS XVI E XVII

Ao revisitarmos os estudos interdisciplinares a respeito da história da alimentação


na América Portuguesa, nos séculos XVI e XVII, nos deparamos com uma multiplicidade
de textos e relatos que versam sobre as práticas culinárias e os hábitos alimentares dos
inúmeros povos indígenas e como tais práticas alimentares foram assimiladas, por assim
dizer, pelo colonizador europeu, mas que teve de adaptar-se a um novo ―cardápio

198
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

alimentar‖, a partir de práticas e táticas de subsistências – por exemplo, substituir o trigo


pela farinha de mandioca - a fim de garantir sua sobrevivência.
Nessa medida, partindo do conceito de cotidiano, abordado pelo jesuíta e
antropólogo francês Michel de Certeau (1994), procuramos, ainda, analisar nesse artigo, as
práticas e táticas de resistências/subsistências dos colonos, no cotidiano colonial brasileiro.
Uma vez que o tema do cotidiano tem aparecido com frequência nas pesquisas no tocante a
questões mais rotineiras que compõem os acontecimentos diários da vida e os significados
que as pessoas vão construindo, nos seus hábitos, nos rituais em que celebram no recinto
doméstico, principalmente, nesse caso na cozinha.
Posto isto, optamos, num primeiro momento, por analisar a concepção certeauriana
de cotidiano como “aquilo que nos é dado cada dia (ou que nos cabe em partilha), nos
pressiona dia após dia, nos oprime, pois existe uma opressão no presente” (CERTEAU,
1994, p. 31). Dessa forma, podemos ressaltar que também as práticas culinárias brasileiras
estão inseridas nesse contexto mais amplo de relações cotidianas, visto que no interior da
chamada Nova História da Cultura e/ou História do Cotidiano se encontram objetos
materiais – utensílios, monumentos, etc. – e imateriais, como é o caso da alimentação.
Vale salientar que, Michel de Certeau, na sua escrita sobre o cotidiano, se aproxima
daquilo que denominamos de ―história antropológica‖, que investe na possibilidade de
decifrar normas culturais através do próprio cotidiano. Dito isto, percebemos que, de certa
maneira, essa invenção do cotidiano se dá graças ao que Certeau chama de “artes de
fazer”, “astúcias sutis”, “táticas de resistência”, que vão alterando os objetos e os
códigos, e estabelecendo uma (re) apropriação do espaço e do uso ao jeito de cada um.
(CERTEAU, 1994, p. 32).
78
Com isso, chamamos a atenção para as práticas culturais (CHARTIER, 1990, p.
33) que perpassam o cotidiano dos habitantes do Brasil Colônia nos primeiros decênios da
colonização portuguesa, no tocante as práticas de subsistência e táticas de resistências, no
que diz respeito à adaptação desses colonos ao cotidiano alimentar na América Portuguesa,
nos séculos XVI e XVII, encontrando na mandioca e seus derivados, o sustento para
sobreviver. Haja vista que, a farinha de mandioca é considerada o mais importante

78
Segundo José D‘Assunção Barros, ao fazer uma leitura de Roger Chartier, são práticas culturais não apenas a leitura de
um livro, uma técnica artística ou uma modalidade de ensino, mas também os modos como, em uma dada sociedade, os
homens falam e se calam, comem e bebem, sentam-se e andam, conversam ou discute, solidarizam-se ou hostilizam-se,
morrem ou adoecem, tratam seus loucos ou recebem os estrangeiros. A História Cultural e a contribuição de Roger
Chartier. In: O Campo da História – Especialidades e Abordagens, Petrópolis: Vozes, 2004, p. 131.

199
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

alimento da colônia, pois se encontra na base alimentar dos homens e mulheres


nordestinos, desde esse período da história do Brasil.
Nesse contexto, normalmente são datadas do final do século XVI, as principais
descrições das práticas culinárias na América Portuguesa, como aponta um dos capítulos
do livro “Viagem à terra do Brasil” (LÉRY,1570, Cap. IX), escrito pelo francês Jean de
Léry, em que narra, com minúcias, as práticas culinárias e alimentares dos indígenas e seu
cotidiano com quem entrou em contato.
Ainda sobre esse fluxo de descrições dos víveres encontrados na Colônia,
conforme Câmara Cascudo, é larga e movimentada a documentação do século XVI, sobre
a terra e seus habitantes, em que aparecem nos relatos de cronistas e viajantes – Gandavo,
Anchieta, Nóbrega, Thevet, Lèry, Hans Standen, Gabriel Soares de Sousa
(CASCUDO,1983, p. 502) - além das cartas jesuíticas, que pormenorizam as provisões,
indígenas e adaptadas ao paladar europeu, através da miscigenação de alimentos das mais
diversas procedências.
Entretanto, tais escritos e registros sobre essas várias práticas cotidianas descritas
por esses cronistas e viajantes, são vistas pelo folclorista potiguar como se tratando de
descrições e relações genéricas, puramente descritivas e impessoais.
Salientando que, tais cronistas e viajantes estavam imbuídos de um conceito de
79
―civilidade‖ e de ―cientificidade,‖ que construíram seus relatos a partir de seus
pressupostos de análise, discursos preconceituosos e, por vezes, autoritários, conforme o
espírito da sua época, visto que se trata de um período na História, em que o Velho Mundo
se encontra com o Novo, o desconhecido, de terras que não sabiam que existiam, até o
momento.
Em vários relatos dos cronistas e viajantes dos séculos XVI e XVII, os alimentos
nativos são descritos de maneira que enfatizam sua importância para a sobrevivência em
regiões desconhecidas pelos europeus, nos territórios ocupados. Por isso, os colonizadores
tiveram que se adaptar a culinária indígena, substituindo os alimentos de sua terra natal por
um novo e desconhecido cardápio, à moda indígena. Daí se tratar de uma tática de
resistência do cotidiano, conforme Certeau (1994), desses colonos, no sentido de adaptar

79
Tzvetan Todorov, em “A Conquista da América: a questão do Outro”, analisa essa relação representada pelo eu
branco, cristão, europeu, civilizado e colonizador, este se mostra como agente construtor das identidades tomando por
referência seus modelos e critérios religiosos, intelectuais e culturais que a partir da linguagem (escrita) vai se
estabelecendo no meio social e gerando o lugar do outro.

200
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

os alimentos tão estranhos aos seus paladares, mas cuja necessidade de sobrevivência
assim exigia.
Para José Martins Catharino (1995), quando da chegada dos colonizadores
portugueses à América, os indígenas já haviam resolvido o problema com seu instinto
natural, em relação à pobreza proteica da mandioca, pois faziam um concentrado muito
rico, em proteínas; fermentavam e enriqueciam a massa com vitaminas e sais minerais,
usando alguns temperos, como pimenta, sal e outros.
Nesse sentido, há, por traz deste sistema, um modo de se fazer comida e de se
comer, que fala mais do que o alimento em si, sobre as maneiras originais de conservação
nos trópicos sobre os ajustes à subsistência e à sobrevivência, sobre a negociação entre
valores como hierarquia, desigualdade e fome. Assim, um cardápio composto de uma
construção de identidades étnicas, contendo farinha de mandioca ou de milho, de peixe, um
pedaço de carne-seca e a mistura toda molhada pelo caldo do feijão, das favas ou das
verduras, constituindo um tripé culinário no Brasil Colônia (SILVA, 2005, p. 149).
No cotidiano, tanto dos colonizadores quanto dos indígenas da América
Portuguesa, nos séculos XVI e XVII, as práticas e hábitos alimentares representavam algo
muito importante, visto que havia muito que se explorar na nova conquista, aquilo que de
bom ela dava a alimentação dos que ali chegavam. Dessa feita, na longa enumeração dos
produtos alimentares da terra, a ênfase era colocada tanto na abundância quanto no sabor.
Haja vista que “as práticas culinárias se situam no mais elementar da vida
cotidiana, no nível mais necessário e mais desprezado (...)” (GIARD, 1994, p. 218), pois é
no cotidiano das pessoas que os fatos históricos são construídos, em que as trocas culturais
se manifestam das mais variadas maneiras possíveis, como no caso da necessidade que os
colonizadores tiveram de readaptar os seus paladares, a partir de táticas de resistências,
acostumados com as iguarias europeias, a um novo e desconhecido sabor, isto é ―as
80
delìcias do Descobrimento,‖ já que não tinham outras formas de conseguir alimento
estando tão distantes de sua pátria.
Portanto, pensar o cotidiano é buscar com frequência as questões que são
consagradas como rotineiras do homem ordinário, do sujeito comum que elabora seu
saber/fazer no dia-a-dia. A partir de sua prática ele constrói seus significados, dando
sentido a sua vida, que é vivenciada por meio da convivência com o coletivo. É no

80
HUE, Sheila Moura. Delícias do Descobrimento: A Gastronomia Brasileira no século XVI. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2009. 207 p.

201
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

cotidiano, pensado por Michel de Certeau, que o ser humano constrói seus hábitos,
costumes, rituais e táticas de sobrevivência.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para nossa grata surpresa, enquanto pesquisadores, historiadores e admiradores da


cultura – material e/ou imaterial - finalmente a temática acerca da história da alimentação –
assim como outros temas relacionados ao campo de estudo da História Cultural – obteve
um espaço de debate dentro das Ciências Sociais e Humanas e, ao mesmo tempo, propõe
um maior diálogo interdisciplinar entre a História, a Sociologia, a Antropologia, a Política,
como também com outras áreas do conhecimento, a exemplo da Nutrição e da Biologia.
Nesse contexto, percebermos como, historicamente, os nossos hábitos e costumes
alimentares foram sendo moldados a partir de produções culturais múltiplas e interétnicas,
que ressaltou numa ―cozinha tipicamente brasileira‖. Cozinha esta, riquìssima de gêneros
alimentícios, que reflete a nossa identidade, enquanto povo, uma vez que a mesma é fruto
de uma combinação de elementos culinários diversos e, portanto, não é homogênea. É
antes de tudo, resultado da variedade das culinárias regionais, que possuem suas próprias
particularidades, no tocante a alimentação.
Entretanto, ainda há muitas abordagens a serem discutidas e elaboradas - quanto à
escrita da História da Alimentação no Brasil - como, por exemplo, a questão da relação
entre Natureza e História, isto é, uma escrita de uma História Ambiental, que buscarei
analisar em futuras pesquisas acadêmicas (Mestrado, Doutorado, etc.). Haja vista que, a
alimentação, nas suas mais variadas dimensões, é uma modalidade cultural muito
complexa, que exige daqueles que a ―degusta‖ - no sentido das pesquisas sobre nossas
práticas, hábitos e costumes alimentares - uma dedicação quase que exclusiva, com muita
sutileza e seriedade.
Então, só assim ―desfrutaremos‖ dos ―manjares‖ oferecidos por essa temática
(História da Alimentação) tão apaixonante, que ao longo de todo um processo histórico foi
construída e, simultaneamente, despertou uma rede de sociabilidade que abarca diferentes
culturas, sejam elas nativas, europeias e/ou africanas.
Certamente, nossa identidade alimentar resulta desse hibridismo sociocultural, aqui
ilustrado pela mandioca do indígena, pelo vinho do colonizador português e pelo azeite-de-
dendê do escravo negro africano – além das técnicas de preparo dos alimentos, herdadas

202
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

destes - que em conjunto e, ao longo de nossa história, construíram nossos modos/maneiras


de se relacionar com os alimentos, ao mesmo tempo em que traçamos laços culturais e
relações sociais com o ―outro‖, com o ―diferente‖, visto que, é na cozinha - que são
encontrados os alimentos de origens diversas – onde são ―reinventadas‖ as nossas raìzes
culturais e indentitárias, no tocante aos nossos hábitos e costumes alimentares.
Nesse sentido, buscamos – ao longo do presente artigo - ressaltar a grande
importância da alimentação no cotidiano da história colonial, assim como também a
construção da chamada ―brasilidade alimentar‖ (já mencionada), com destaque para a
farinha de mandioca, base da alimentação colonial, cuja origem indígena do cultivo, do
preparo desse alimento, foi herdada pelos colonizadores portugueses, e que permanece até
hoje em nossas mesas.
Posto que, no cotidiano de homens e mulheres colonos na América Portuguesa, as
práticas e táticas de sobrevivência foram sendo construídas a partir da adaptação do
paladar europeu aos víveres e iguarias nativas e posteriormente sendo acrescidos alimentos
de origem africana, uma vez que, para sobreviver no Novo Mundo, os colonizadores
tiveram que modificar seus hábitos e costumes alimentares, reinventando assim seu
cotidiano.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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TODOROV, Tzvetan. A Conquista da América: a questão do Outro. 2 ed. São Paulo:


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204
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

“DONOS DE UMA MISSÃO”: A ANÁLISE DA COMUNIDADE


DE PENITENTES DA ORDEM DA SANTA CRUZ DE AURORA CE
(1990 - 2017)

PAULO SÉRGIO DA SILVA SANTOS


UFCG/CFP
[email protected]

ORIENTADORA: DRA. ROSILENE MELO


UFCG/CFP
[email protected]

RESUMO
Alguns agricultores da comunidade do sítio Salgadinho de Aurora CE participam de uma
irmandade de penitentes denominados ―Ordem da Santa Cruz‘, tal grupo de homens é
repleta de simbologias, representações e misticismo importante para a religiosidade
daquele lugar. O estudo destes penitentes requer um olhar mais etnográfico e antropológico
intrinsecamente ligado a História, por isso o uso teórico-metodológico da História Cultural.
O recorte temporal fundamenta-se a partir das transformações internas da ordem da Santa
Cruz na década de 1990 a 2017. As fontes utilizadas para a análise são: fotografias e
recursos áudios visuais. Portanto é importante compreender as simbologias religiosas e
fazer uma análise cultural destes penitentes, adentrando no mundo destes homens donos de
uma missão.
Palavras-chave: Penitentes; religiosidade; cultura e missão.

INTRODUÇÃO
Os penitentes são grupos de homens que se apropriam de um aparato de ideias
místicas e religiosas que justificam suas atuações. Estes homens são identificados como
donos de uma missão, um papel simbológico perene na sua cosmogonia. O compromisso
deles é salvaguardar a comunidade dos pecados ou dissipar esses males, seja pela oração,
cânticos, promessas, rituais ou autoflagelação.

A comunidade de penitentes deste estudo é o grupo de homens do município de


Aurora CE no sitio Salgadinho. Estes homens são agricultores que se reúnem em datas
sacras, ou seja, dias santos e festividades religiosas em pró de sua missão. O líder da ordem
de penitentes é denominado decurião, o senhor Geraldo Caboclo de 80 anos, sua função é

205
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

de orientador e de interlocutor entre comunidade do sítio e os penitentes, pois é costumeiro


solicitarem: rezas, alertais, benditos e terços. A simbiose entre penitentes e meio social é
essencial para manutenção destes grupos.

Essa religiosidade dos penitentes é rica em atributos a partir de uma própria leitura
do sagrado provocado por fatores sociais, históricos e culturais. Essa delimitação de uma
nova e/ou outra fé no catolicismo diferenciado fundamentado na proximidade entre
sagrado e profano.

Para a pesquisadora Dra Anna Christina Farias de Carvalho em seu artigo ―Fé e
tradição oral: práticas mágico-religiosas presentes nos rituais das irmandades de penitentes
do Cariri cearense (2007)‖ defende a proposta que essa religiosidade é um encontro de
influências sociais e culturais que moldaram uma reelaboração do catolicismo e por
consequência a dicotomia sagrado e profano. Carvalho frisa:

Nesse sentido, entendemos que magia e religião são sistemas de crenças que, ao
se fundirem na perspectiva da religiosidade popular, moldam por conivência
entre o sagrado e o profano, como práticas e crenças autoproduzidas e/ ou re-
significadas (CARVALHO, 2007, p. 61).

Destarte essa re-significação é intrínseca nas irmandades de penitentes. Sua fé é


baseada num catolicismo que ressalta práticas que promovem uma salvação da alma,
condenação do pecado e a iminência de uma aproximidade do fim do mundo. As ideias do
medo, pecado, penitência e salvação garantem essa mística religiosa que permeia os
penitentes.

A irmandade da ordem da santa Cruz desperta inúmeros questionamentos


pertinentes aos recortes para esta análise, cada especificidade carrega consigo um leque de
representações. Os vestuários, os benditos, os rituais e costumes demonstram o interesse
em demarcar eles como edificadores de uma doutrina religiosa que precisa sobreviver
diante das atualidades.

A demarcação do lugar é essencial aos penitentes, pois sustenta uma identidade


cultural coletiva. Eles se identificam pela missão que carregam. Entre as particularidades
dos penitentes do sítio Salgadinho é o fato deles atuarem no meio rural e na cidade, isso
permite resistirem através do signo de sacros e do misticismo, porque além de povoarem o

206
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

imaginário popular, eles se deslocam em espaços diferentes, com a mesma postura


marcando os laços de identidade.

A análise dos penitentes no decorrer das décadas 1990 a 2017 é relevante para
adentrar nas simbologias e representações que carrega esses agentes culturais. Nestes anos
os deslocamentos no campo religiosidade, sociais e culturais da ordem da Santa Cruz se
edificam por meio de readaptações diante das transformações da comunidade. Diante
dessas mudanças o discurso de ―donos de uma salvação‖ se torna um elo que unifica e
atribui sentidos entre aqueles agricultores.

O imaginário em torno dos penitentes são frutos de uma cultura de aproximação do


catolicismo com o meio, percebe-se a mescla de elementos típicos da igreja católica como
menção a santos, passagens bíblica, orações e rituais aliado a uma religiosidade marcada
por mártires81, Padre Cícero e Frei Damião. Dessa maneira é errônea cair no ostracismo de
não tocar nessas particularidades culturais. Não é a toa que alguns desses agricultores são
atuantes nas igrejas locais. Carvalho salienta:

Neste sentido, as condutas religiosas atípicas praticadas por integrantes das


irmandades de penitentes, não são resultado de mudanças radicais de valores
religiosos, ao contrário, convergem para crenças orientadas por valores religiosos
católicos como a crença na Santíssima Trindade, e na Igreja Católica, devoção a
santos e santas católicos, prática da oração, caridade e crença na Bíblia, como
fontes de salvação eterna (CARVALHO, 2003, p.3).

Para Carvalho (2003) os penitentes abrangem lugares místicos e sacros que não
negam sua essência, por isso não significa colossais metamorfoses de práticas religiosas,
para a autora é visível a fé na salvação via igreja, bíblia, santos etc. No entanto apropriação
desses aparatos sacros mesclados as especificidades da religiosidade popular
proporcionaram re-siginificações, não negações das raízes.

PELO SIGNO DA SALVAÇÃO

Falas sobre o medo, punição, pecados e salvação são engrenagens típicas de


inúmeras crenças como Jean Delumeau em ―História do medo no Ocidente: 1300-1800‖
(1989) detalha. Tais sentimentos moveram as pessoas em diferentes religiões, épocas e
mentalidades a criarem mecanismos de defesas, assim como os penitentes.
81
A exemplo da mártir Francisca, figura da religiosidade aurorense.

207
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

A ideia do fim, do juízo final e por consequentemente a condenação da alma ecoam


nos benditos dos penitentes. Inúmeras vezes eles repetem uma frase em um dos rituais que
gravei, como um mantra: ―Senhor perdoa meus pecados!‖
Reconhecer o pecado já um passo importante para aqueles agricultores, porém o
essencial é apagar esse erro, para isso usam mecanismos como rezas, benditos e
autoflagelação. Oliveira Filho aborda essa perspectiva do medo, do castigo e da ira divina:

Fica evidente então, a força com que a ideia de castigo divino chega ao
imaginário desse grupo de pessoas. Apesar de muito forte no imaginário da
cristandade católica, o temor a ira divina desenvolve-se com mais eficácia nesse
grupo; acreditamos que muito desse reforço aos castigos de Deus deva-se tanto
aos discursos do Padre Cícero, santo de principal devoção para o grupo, tanto
como pela assimilação das teorias inclusas na ―Missão Abreviada‖, o livro que o
penitente tremia freneticamente como um escudo, citado anteriormente
(OLIVEIRA FILHO, 2013, p.6).

Há uma diversidade de penitentes na região do Cariri cearense e cada grupo possui


suas especificidades, por exemplo, a ordem da Santa Cruz do sítio Salgadinho de Aurora
Ceará elaboram uma simbologia entrelaçada as premissas que Oliveira Filho salienta,
porém sobressai o pressuposto a ideia de dono de uma missão e/ou donos de um costume
essencial ao meio.
Mesmo perene o temor a Deus, em seus benditos as palavras - chave provém em
valorizar o caminho da Salvação e um Deus misericordioso. Muitos desses homens são de
ordens da igreja católica do município, isso influência alguns pressuposto do grupo.
Pela ideia de salvação que eles se mantêm culturalmente e são interligados a sua
comunidade, onde necessidades espirituais são saciadas. Presenciei no dia 21 de março de
2017 um ritual na casa do decurião entretimento a uma promessa de sua esposa quando se
encontrava doente. Em nome de Padre Cìcero e a ―mãe das Dores‖ rezaram pela
madrugada. Documentando em vídeo e fotografias esse ritual o teor forte da fé e
determinação em cumprir seu papel diante da ligação com o divino era muito visível e
significativo.

A comunidade do sítio Salgadinho presencia periodicamente rezas, entoamentos de


benditos e outros rituais nas estradas de terras ou cruzeiros nas madrugadas. A
representação simbólica cultural dos penitentes e sua importância para o meio social que
estão inseridos são intrínsecas. Os penitentes da ordem da Santa Cruz atendem solicitações

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

de rituais até na sede do município de Aurora CE. O que diferencia de outras comunidades
da região e até na cidade, a comunidade do Sitio Espinheiro do mesmo município são mais
―fechados‖ e se dedicam apenas aos anseios da sua localidade.

A ideia do lugar social de Certeau (1982) é tão importante ser apresentada quando
se pretende analisar culturas, por meio social é palpável e visível as experiências e o
cotidiano dos indivíduos e coletivo. Separar ou menosprezar os laços socioculturais
deixaria essa pesquisa com enormes lacunas, em suas falas, vestimentas, rituais e costumes
estão relacionados a sua comunidade, não é a toa eles trabalharem com agricultura.

A esperança na salvação repassa em captar almas, e eliminar seus pecados, todavia


quando se faz necessário pedi chuvas para a plantação. O signo da salvação fundamentado
no temor, sobretudo delimitado na representação de um deus que prover benesses e perdão
dos pecados para os seus, justificando uso de atos penitência desses ―filhos‖.

RITUAIS: PONTES ENTRE COMUNIDADE E O SAGRADO

Os penitentes no imaginário popular são denotados de significantes místicas, misto


de receio, admiração e superstições. Eles resistem em suas localidades porque seus rituais
tem um espaço essencial na religiosidade. Os penitentes alvos desse estudo/pesquisa são
entidades que aproximam o sagrado, que elaboram um catolicismo tão próximo que não
guarda nenhuma ressalva a fazer apelo a padre Cìcero, frei Damião ou ―mártires
populares‖.

Os rituais dos penitentes da ordem da santa Cruz são entrelaçados aos cultos e datas
católicas, entre eles orações na semana santa, terços e alertais 82 em outras datas sacras ou
diante de solicitações de moradores do sítio. O ato de autoflagelação tão repleto de
simbologia acontece na sexta feira santa e tem intuito de demarcar a missão primordial dos
penitentes aurorenses (a ―salvação‖), fazendo a limpeza de pecados da carne, pois o
sofrimento de flagelar é uma ponte com o que Cristo fez com a humanidade.

Os alertais acontecem esporadicamente em datas aleatórias dependem de


promessas, pedidos, renovações de casa e curas. O alertai ou terço de penitentes que
presenciado para esta pesquisa foi em menção a uma cura da esposa do decurião (Geraldo

82
Terços mesclados a benditos e suplicas.

209
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Caboclo) e diante desse momento religioso as fotografias retiradas apresentam alguns


aspectos importantes para discutir.

(Foto 1: alertai realizado pelos penitentes da ordem da Santa Cruz Aurora CE.
Fonte:http://blogdaaurorajc.blogspot.com.br/2012/01/penitentes-de-aurora-um-
exemplo-de.html. Acesso 01/08/2017).

(Foto 2: acervo pessoal, terço de penitentes da ordem da Santa Cruz em Aurora CE.
21/03 /2017).

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

No altar (Foto 2) representação do Padre Cícero fortalece o catolicismo próprio que


resignificado adere costumes, práticas e santos populares. Outros aspectos na imagem são
as vestimentas aparentemente em padrão e adesão de membros sem o vestuário. Todos
estão dispostos diante do altar da casa e na frente estão o decurião e seu provável sucessor.
O espaço só pode ser presenciado por homens, as mulheres (inclusive quem solicitou o
ritual) permanecem recruzas na cozinha da casa.

Os penitentes se encontraram numa estrada de terra, e no silêncio da madrugada


caminhavam até a residência que realizariam o ritual. Os sons que os penitentes ecoam nas
madrugadas despertam uma série de memórias e misticismos. Como Santos menciona com
os penitentes do município de Porteiras CE.

Nesse sentido, o elo estabelecido entre o som que ecoava da tradição oral dos
penitentes e seus sentidos práticos revelam chaves mnemônicas, elementos que,
ao serem percebidos, logo despertavam as atenções dos devotos. Portanto, a
imagem guardada, enquanto um conceito e reconstruída na memória social sobre
os penitentes, possui relevância simbólica, no tocante às práticas de
rememoração da triste morte da Rufina. São assim memórias do som. Conforme
alguns devotos, os versos entoados nos cortejos dos penitentes foram
rememorados, entre o esforço da voz e o choro da saudade (SANTOS, 2012, p.
32).

Os benditos entoados ativam o imaginário e marca a memória sobre acontecimentos


da comunidade os penitentes de Porteiras são apegados a devoção da santa cruz da Rufina,
lugar de penitência e onde a martirização de uma pessoa torna-a uma ―santa‖ em processo
de canonização cultural.
Em Aurora CE a figura da mártir Francisca83 também é presente na devoção de
penitentes e tem uma história recorrente no Cariri cearense, de pessoas que despertam o
sentimento de santidade a partir da sua partida. Há uma capela para a ―santa de Aurora
CE‖ e comumente em rituais de penitentes, rezadeiras e em renovações clamam sua
devoção.
Nos rituais as orações da tradição católica são cantadas em ritmo ditado pelo
decurião, outras particularidades ritualísticas são como cada penitente se posiciona em
direção ao altar, a frente ficam o decurião e seus sucessores (os filhos), posteriormente por
critérios aleatórios os outros penitentes e os mais idosos na última fileira.

83
Personalidade da religiosidade aurorense marcada pela memória de um assassinato cruel, para a população
local é uma ―santa‖.

211
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Por meio das fotografias também podemos compreender outras especificidades


ritualísticas, a exemplo, do fenômeno de manter suas faces cobertas e não permitirem
mulheres no recinto, entre outros costumes da ordem da Santa Cruz.

(Foto 3: o acervo pessoal, fotografia do terço de penitentes da ordem da Santa Cruz


em Aurora CE. 21/03 /2017).

212
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

(Foto 4: ritual de autoflagelação do penitentes da ordem da Santa Cruz Fonte:


http://blogdaaurorajc.blogspot.com.br/2011/12/penitentes-autoflagelacao-do-
corpo.html. Acesso 01/08/2017).

Isso de manter suas identidades reservadas proporciona uma áurea de mistério em


torno deles. Visível nas fotografias que os penitentes resguardam seus rostos com um
capuz que completam a vestimenta. No ritual eles permanecem constantemente
cabisbaixos, demonstrando simbolicamente que são servos.
Os rituais são pontes entre comunidade e o sagrado. Por isso eles são importantes e
possui simbologias tanto culturais e sociais. Os penitentes são homens de admiração da
comunidade, pois além de possuírem uma missão são também pessoas com um caráter e
postura ética respeitáveis.

CONCLUSÃO

Destarte, reforçando a premissa que os penitentes da comunidade da ordem da


Santa Cruz representam e se significam por meio de uma missão caracterizada pela busca
pela salvação. Os rituais dos penitentes são canais entre o sagrado e o meio social, a busca
e os pedidos por terços, alertais e benditos dos penitentes em ocasiões sacras ou em
promessas relacionam e dão espaço atuante na religiosidade da localidade.

Segundo Delumeau (1989 p.213) as pessoas acreditavam fielmente na idade média


que ― ―Os novos Céus‖ e a ―nova terra‖ que, segundo São Pedro, um dia devem acolher a
humanidade quando eles estiver liberta do pecado [...]‖, ou seja, almejavam maneiras de
eliminações dos pecados através de suplicas ou penitências para obter a salvação.

Na ―História do medo no Ocidente: 1300-1800‖ (1989) o autor traça um paralelo


entre o medo e o pecado, a simbologia da libertação deste como algo recorrente no temor
coletivo. Os penitentes são marcados pela busca dessa limpeza espiritual, aliás, sua missão.
O ato da autoflagelação justifica-se pelo medo do desconhecido, do fim, e sobretudo, da
sensação ou simbologia que a dor como elemento que arranca os pecados quando
aproximam do sofrimento carnal de Cristo.

Outra discussão neste artigo é reelaboração do catolicismo que os penitentes


realizam numa simbiose entre o laico e oficial ou popular e clerical. Segundo Carvalho

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

(2007, p.78 ) ―O catolicismo diferenciado praticado no Cariri cearense caracterizado por


pautar-se pela experiência cotidiana de seus agentes produtores em contraposição ao
instituìdo clericalmente [...]‖. Uma fé católica que abrange elementos como Padre Cìcero,
Frei Damião ou rituais como novenas, terços, renovações e benzedeiras tornam a
religiosidade como elemento de identidade.

Os penitentes do sítio Salgadinho de Aurora CE são uma ordem sacra que tem um
laço forte com o sagrado. Essa ligação é fruto de uma mescla de discursos baseados numa
ortodoxia católica mesclada com elementos populares. A princípio os grupos de penitentes
na região do Cariri cearense eram muitos grupos, diante da pesquisas atuais são poucos que
se mantêm diante da atualidade. A década de 1990 até 2017 no município de Aurora CE de
inúmeras ordens de penitentes em zonas rurais restam duas.

Portanto, os esses homens sacros possuem um papel social, cultural e religioso


forjado em sua comunidade e baseado no discurso da salvação via expurgação dos
pecados, conotando serem suas missões. Os penitentes resguardam essa simbologia do
medo, misticismo e da salvação em uma religiosidade que resiste na zona rural de Aurora
CE.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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gráfica Editora, 2012.

CARVALHO, Anna Christina Farias de. As irmandades de penitentes do Cariri Cearense


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– XXII SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – João Pessoa, 2003. Disponível:
http://anais.anpuh.org/?p=18938. Acesso 29/02/2016.

CARVALHO, Anna Christina Farias de. Fé e tradição oral: práticas mágicos- religiosas
presentes nos rituais dos penitentes do cariri cearense. Oralidades, 2, 2007, p. 61-82.

CARVALHO, Anna Christina Farias de. Sob o signo da e da mística: um estudo das
irmandades de penitentes no Cariri Cearense. 1. Ed – Fortaleza: Editora IMEPH,
2011.Disponível://www.acsrm.org/interactivo/fscommand/GT05_FariasAnnaChristina.pdf.
Acesso 28/03/2016.

CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense-Universitária,


1982.

214
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente: 1300-1800. tradução Maria Lucia


Machado, tradução das notas Heloísa Jahn. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

DE OLIVEIRA FILHO, Roberto Viana. A outra face de Deus: as representações da


ideia de castigo divino no grupo “penitentes peregrinos públicos” em Juazeiro do
Norte: XVIII Simpósio Nacional de História da ANPUH.2013.

DOS SANTOS, Cícero Joaquim. A cruz que alumeia o mundo: narrativas memoráveis
sobre os penitentes e a devoção à Cruz da Rufina, no sul do Ceará. Revista Brasileira
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NOBRE, Edianne Santos. Festas e praticas religiosas no Cariri Cearense nos relatos de
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RAMOS, Felipe Aires. Identidades em trânsito: praticas de rezas no Cariri paraibano


(1945-1960). UFPB. 2013.

TAVARES, Amarílio Gonçalves. Aurora: História e Folclore. 2ª Ed. João pessoa PB,
Avantes. 1999.

215
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

SESSÃO COORDENADA “HISTÓRIA E EDUCAÇÃO”


COORDENADORES:
JOSEANE ABÍLIO DE SOUSA FERREIRA & ISAMARC
GONÇALVES LÔBO

O TRABALHO DOCENTE E OS DILEMAS DA PROFISSÃO

WILLYAN RAMON DE SOUZA PACHECO84


UFCG
[email protected]

RESUMO
Na sociedade contemporânea, a profissão docente exige cada vez mais de seus
profissionais. Os professores, principalmente os da rede pública de ensino, precisam estar
lotados em várias instituições para que a sua dedicação diária seja minimamente
recompensada. A priori, pretende-se nesse artigo, explorar os elementos políticos e sociais
que influenciam na determinação da carga horária de trabalho dos professores, como
também nas formas de sua organização. Dessa forma, usaremos como aporte teórico Tardif
e Lessard (2008), buscando evidenciar os fatores que influenciam nesse processo. Assim,
reconhecer a potencialidade da mediação pedagógica, numa ação transformadora que
insere o sujeito no campo das possibilidades, evidencia a necessidade de criar políticas que
estabeleçam efetivamente a valorização do trabalho docente.
Palavras-chave: Formação docente; Ensino-aprendizagem; Desafios.

INTRODUÇÃO

84
Graduando do curso de Licenciatura em Pedagogia na Universidade Federal de Campina Grande (UFCG-
CFP), bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID-CAPES), membro do
Grupo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em Educação, Linguagem e Práticas Sociais (GIEPELPS-
CNPq).

216
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

A profissão docente e todo o processo que constitui essa formação, sustenta-se em


concepções que visualizam essa atividade como ação contínua, como prática que está em
constante transformação. Compreende-se assim, a formação docente como busca
incessante pelo ressignificar, aprimorar os conhecimentos a partir das relações favorecidas
pelos contextos sociais a qual ele e os discentes estão inseridos.
Os desafios que circundam o trabalho docente estão estreitamente relacionados a
questões que se referem a carga horária de trabalho estabelecida por determinado sistema
contratual. O professor deve não só cumprir as funções fundamentais de sua profissão, mas
dedicar uma quantidade de tempo significativo para a resolução de problemas que vão
além de sua atuação em sala de aula.
Os dilemas da formação docente são evidenciados como consequências de um
sistema que não se compromete com a qualidade do ensino, nem muito menos com as
condições de trabalho do professor. Estando, dessa maneira, o docente submetido a exercer
sua profissão em condições mínimas, favorecendo também minimamente o processo de
ensino-aprendizagem. Nessa perspectiva, compreende-se a necessidade de buscar
instrumentos que possam potencializar a aprendizagem dos discentes, sem que seja
necessário um alto investimento governamental, essa tarefa árdua torna o trabalho docente
uma ação cansativa e por vezes sobrecarregada.
Colocam-se, então, questões acerca das interações que devem ser proporcionadas
para a construção significativa dos conhecimentos sistemáticos. O professor busca nas
experiências empíricas vivenciadas pelos discentes, contextualizar os conhecimentos e
oportunizar um processo de aprendizagem que evidencie a assimilação como alterativa
para materializar o conhecimento abstrato.
Nesse aspecto, o objetivo desse trabalho é evidenciar as questões políticas e sociais
que influenciam na determinação do processo de ensino-aprendizagem, como também na
formação do profissional docente e na definição da carga horária de seu trabalho. Nesse
sentido, buscaremos explorar de forma sistemáticas diversas questões acerca da formação
docente que são colocadas na contemporaneidade.
Para tal, usaremos como metodologia pesquisas bibliográficas e assim
desenvolveremos nosso estudo a partir de obras de autores como Freire (2011), Tardif
(2002), Alarcão (1998), Nóvoa (1997) e Sacristan (1991), direcionando nossa atenção a
questões que circundam a profissão docente e aos dilemas que constituem essa prática na
sociedade contemporânea.

217
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

DESAFIOS E DILEMAS: CONSTRUINDO APRENDIZAGENS SIGNIFICATIVAS

Ser professor na contemporaneidade é colocar-se no centro de um processo de


formação constante, é evidenciar-se como incompleto, é direcionar o olhar humanístico às
particularidades de cada aluno, de cada especificidade que constitui sua pessoalidade. O
docente está inserido em uma sociedade que exige de si mais do que lhe foi proporcionado
em sua formação inicial, muitos desafios são colocados e vários são aqueles que desistem,
desmotivados, mal remunerados. Explorados, os professores buscam diariamente
melhorias que conduzam o trabalho docente a uma profissão prazerosa ou minimamente
agradável.
É certo que ainda no processo de formação, o docente busca compreender os
instrumentos que legitimam sua profissão, as ferramentas revolucionárias que podem ser
utilizadas para reconstruir uma nação. Os sonhos de ser professor para transformar uma
sociedade é a principal motivação que pode levar jovens a ingressar nas licenciaturas, nada
de muito atrativo existe lá, nas escolas, que direcionem estes estudantes a ingressar no
magistério, é o desejo de mudança que os direciona a essa profissão.
Temos a nossa disposição, escolas sucateadas, professores sobrecarregados e alunos
que não veem a educação como uma ferramenta de ascensão social, temos governos
municipais, estaduais e federais que não dão a importância necessária ao ensino, e os que
pensam em investir são reprimidos por poderes superiores que fazem questão de dizer que
existem outras prioridades. Vivemos numa sociedade que não se orgulha de seus
professores, que não querem ser professores, que não veem muito sentido em estudar se
não for para fazer cursos que lhe deem rapidamente um retorno financeiro.
Essa triste realidade faz parte da história do Brasil, faz parte do cotidiano das
escolas, dos professores e dos alunos que vão em busca de uma refeição que lhe é alegada.
Os dilemas de ser professor em uma sociedade capitalista estão submersos em abismos
maiores e menores, em alternativas menos ruins, acontece que não há muito o que se fazer,
não institucionalmente, através de apoios governamentais e de poderes executivos que
primem pelo conhecimento. Ser professor é ir à guerra todos os dias e lutar contra um
sistema que deseja seu fracasso.
É nessa perspectiva que o trabalho docente se configura numa atividade afetiva,
emocional, numa profissão que visualiza o sujeito em sua dimensão humana, que luta

218
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

todos os dias em busca de melhorias que podem ou não acontecer. É trabalhar no campo
das incertezas e acreditar que a semente plantada dará frutos e reproduzirão o mesmo afeto.
Trabalhar numa concepção humanística, dialógica, otimista pode ter seu preço, mas para
construir uma sociedade humanizada qualquer valor é baixo.
Assim, evidenciamos a formação docente desde o início como uma profissão que
está estreitamente vinculada ao ser social, ao seu contexto, as suas limitações, é nesse
sentido que ser professor é uma tarefa árdua pois requer empatia, precisa-se gostar do que
faz e fazer com amor. Como nos mostra (TARDIF, 2002, p. 130) ―uma boa parte do
trabalho docente é de cunho afetivo, emocional. Baseia-se em emoções, em afetos, na
capacidade não somente de pensar nos alunos, mas igualmente de perceber e sentir suas
emoções, seus temores, suas alegrias, seus próprios bloqueios afetivos‖.
Nesse aspecto, o docente precisa não apenas dirigir seu olhar ao ensino, mas ao
processo que constitui a ação de ensinar, isto é, as relações que devem ser constituídas
durante uma mediação pedagógica, as representações que são construídas diante do aluno
no processo de aprender a aprender. Devemos compreender a singularidade de ensinar,
devemos evidenciar que ensinar não é transferir conhecimento, mas oportunizar a sua
construção (FREIRE, 2011), precisamos colocar-nos sempre na posição de aprendiz para
que a aprendizagem seja uma ação mútua, coletiva e dialógica, nunca centralizada e
autoritarista.
É nesse aspecto que reside no professor a competência para visualizar no sujeito a
predisposição para aprender e ensinar. Aprender a aprender deve ser sempre ressignificar o
conhecimento que se sabe ao desconhecido. Não deve ser descartada a bagagem social,
cultural e intelectual que o sujeito traz consigo de casa para a escola, mas sim, deve ser
visualizada como uma oportunidade para conhecer novas manifestações de conhecimento,
experiências que são constituídas no âmago das vivências particulares de cada sujeito.
Com isso, evidenciamos a necessidade de estar sempre suscetível a novas
possibilidades, a trabalhar de modo interativo, coletivo, construindo cada conhecimento de
modo constante, concreto. Os desafios para a atuação docente de modo institucionalizado
são inúmeros, então resta-nos trabalhar com a contextualização do conhecimento, investir
na relação professor-aluno, na assimilação do conhecimento, nas trocas de experiências.
Assim, devemos trabalhar com o grupo, com as especificidades de cada um e construir
conceitos a partir do que nos é colocado, como nos esclarece Tardif:

219
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

O professor tem que trabalhar com grupos, mas também tem de se dedicar aos
indivíduos; deve dar sua matéria, mas de acordo com os alunos, que vão
assimilá-la de maneira muito diferente; deve agradar aos alunos mas sem que
isso se transforme em favoritismo; deve motivá-los, sem paparicá-los; deve
avaliá-los, sem excluí-los, etc. Ensinar é, portanto, fazer escolhas constantemente
em plena interação com os alunos. Ora, essas escolhas dependem da experiência
dos professores, de seus conhecimentos, convicções e crenças, de seu
compromisso com o que fazem, de suas representações a respeito dos alunos e,
evidentemente, dos próprios alunos. (2002, p. 132).

Dessa maneira, o trabalho docente exige que o professor esteja constantemente em


contato com seus alunos, proporcionando experiências de aprendizagens que vão além da
escola, essa é a proposta para uma educação significativa, os conhecimentos devem ser
construídos para longo prazo, os educandos devem evidenciar a escola como instituição
que possibilita seu crescimento integral.
Observamos, então, a árdua tarefa que deve ser desenvolvida pelo docente na sala
de aula, não trata-se apenas de ministrar suas aulas e emitir um juízo de valor aos
conhecimentos constituídos no âmbito do processo de ensino-aprendizagem, antes requer
que todos os paradigmas acerca da construção e evidenciação da aprendizagem
significativa seja feita com o aluno, de modo que ele esteja esclarecido sobre os objetivos
de cada conteúdo, compreendendo os requisitos avaliativos que devem ser contemplados.
A avaliação deve, então, ser vista como uma oportunidade de crescimento e construção de
conhecimento.
Nesse aspecto, o docente não pode direcionar seu olhar apenas ao resultado, mas ao
processo, ao percurso que foi caminhado pelo discente, a sua evolução. Dessa maneira seu
desempenho deve ser avaliado a partir do ponto que ele estava e a que ponto ele conseguiu
chegar, isto é, deve-se visualizar o avanço, o crescimento. Não podemos adotar uma
profecia realizadora onde o professor diga o que o aluno deveria ter apreendido, onde a
delimitação do conhecimento está sendo colocado de modo comparativo ao que o professor
sabe e ao que o aluno não sabe.
Assim, podemos esclarecer essa concepção interacionista que o conhecimento se
constrói, essa visão que nos coloca como condicionantes e condicionados, que evidencia a
influência da interação com o outro na constituição da aprendizagem, dos saberes
necessários a formação integral do sujeito. Com isso, podemos observar o contexto social
do sujeito como fator determinante na produção dos conhecimentos, na aquisição do saber
sistematizado, nessa perspectiva, Tardif, acrescenta:

220
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

O ensino se desenvolve num contexto de múltiplas interações que representam


condicionantes diversos para a atuação do professor. Esses condicionantes não
são problemas abstratos como aqueles encontrados pelo cientista, nem problemas
técnicos, como aqueles com os quais se deparam os técnicos e os tecnólogos. O
cientista e o técnico trabalham a partir de modelos e seus condicionantes
resultam da aplicação ou da elaboração desses modelos. Com o docente é
diferente. No exercício cotidiano de sua função, os condicionantes aparecem
relacionados a situações concretas que não são passíveis de definições acabadas
e que exigem improvisação e habilidade pessoal, bem como a capacidade de
enfrentar situações mais ou menos transitórias e variáveis. Ora, lidar com
condicionantes e situações é formador: somente isso permite aos docentes
desenvolver os habitus (isto é, certas disposições adquiridas na e pela prática
real), que lhe permitirão justamente enfrentar os condicionantes e imponderáveis
da profissão. Os habitus podem transformar-se num estilo de ensino, em
―macetes‖ da profissão e até mesmo em traços da ―personalidade profissional‖:
eles se manifestam, então, através de um saber-ser e de um saber-fazer pessoais e
profissionais validados pelo trabalho cotidiano. (2002, p. 49).

Em decorrência disso, percebe-se no trabalho docente a competência para articular


diversas situações que possibilitarão a construção do conhecimento sistematizado. Seria
esse um exercício contínuo que é vivenciado diariamente a partir dos desafios que são
colocados no âmbito da sala de aula, experiências que irão oportunizar ao docente o
amadurecimento de sua prática, uma ação reflexiva que possibilitará o constante
aprimoramento de sua mediação pedagógica.
São essas experiências, que são constituídas a partir de problemáticas, que a
formação profissional do professor constitui-se como atividade constante, como ação
contínua. O docente utiliza-se de condicionantes que influenciam sua prática docente e
mobiliza-se para a reconstrução de sua prática. É a experiência diária que irá construir um
profissional competente para solucionar diversos problemas que são colocados no
cotidiano escolar.
O discente, nesse aspecto, é o sujeito que irá possibilitar essa reflexividade crítica
no professor, onde será oportunizado a relação mútua de aprendizagens técnicas e
empíricas, conhecimentos que favorecem o crescimento intelectual e permite a ambos
ressignificar os conceitos adquiridos na singularidade de suas vivências. Em decorrência
disso, os desafios que circundam a profissão docente podem ser substituídos pelas
representações que colocam docente e discente como sujeitos em processo de
aprendizagem.
Nessa perspectiva, o docente não é determinado apenas por fatores técnicos, pela
formação básica, pelos conhecimentos sistematizados constituídos no âmbito da formação
acadêmica, tampouco ele é constituído apenas por experiências, pelas relações construídas
coletivamente, pelos conhecimentos empíricos trazidos pelos alunos ou vivenciados em

221
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

seu próprio contexto. A formação docente se constrói diariamente através de ambas


relações que favorecem o aprimoramento constante do profissional docente. Assim,
Alarcão esclarece:

O conhecimento do professor não é meramente acadêmico, racional, feito de


factos, noções e teorias, como também não é um conhecimento feito só de
experiência. É um saber que consiste em gerir a informação disponível e adequá-
la estrategicamente ao contexto da situação formativa, em que, em cada instante,
se situa sem perder de vista os objetivos traçados. É um saber agir em situação.
Mas não se fique com uma idéia pragmático-funcionalista do papel do professor
na sociedade, porque o professor tem que ser um homem ou uma mulher, ser
pensante e crítico, com responsabilidades sociais no nível da construção e do
desenvolvimento da sociedade. (1998, p. 104).

Com isso, observamos na ação docente a competência para gerir informação e


desenvolver um processo de ensino-aprendizagem a partir dos conhecimentos que são
oportunizados no âmbito da prática pedagógica. Trabalho que é desenvolvido de modo
sistemático e contínuo, partindo de conceitos já estabelecidos, articulando com saberes já
constituídos e possibilitando a assimilação de um sobre o outro.
Torna-se necessário deixar evidente que existem muitas outras questões
pedagógicas que são colocadas no âmbito da sala de aula, mas não são constituídas nela.
Podemos citar o trabalho invisível do professor, que seria o trabalho feito em casa, as
correções de provas e trabalhos, os planejamentos e outras questões que, no geral, são
desenvolvidas distantes da instituição de ensino e fora da carga horária de trabalho
estabelecida de modo institucional.
O trabalho invisível do professor são as atividades destinadas a avaliar e refletir
acerca do processo de aprendizagem, são atividades que ficam distantes da instituição,
porém tratam de questões que são vivenciadas nela. A carga horária de trabalho reserva
uma porcentagem especifica que se destina a atividades extra-sala, no entanto, com o
tempo que é reservado, sequer é possível desenvolver um planejamento com todo o corpo
docente da instituição.
Além do trabalho invisível, existe o trabalho elástico que é o trabalho que também é
desenvolvido fora da carga horária de trabalho do profissional docente, no entanto são
atividades diretamente relacionadas com a qualidade do ensino oferecido. São as atividades
que buscam o aprimoramento da formação docente e consequentemente das metodologias
que são desenvolvidas no âmbito da sala de aula.

222
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

O trabalho elástico está relacionado a projetos de pesquisa, extensão, autoformação,


etc. No geral é o trabalho que permite inserir o aluno em aprendizagens que vão além do
âmbito da sala de aula, atividades que busquem potencializar as habilidades que são
desenvolvidas cotidianamente. Também permite oportunizar a formação continuada do
professor, possibilitando um processo de autoformação, de reflexividade crítica acerca de
sua prática docente.
Nessa perspectiva, a carga horária de trabalho do professor se constitui através de
variáveis que vão desde o sistema contratual até o regime de trabalho, além de ser
diretamente influenciada pela gestão governamental em vigor. Desse modo, é feita uma
seleção a partir das necessidades de determinada localidade e partir disso é definido qual
regime o docente irá assumir. A partir dessas questões burocráticas, o trabalho docente
assume uma característica que visa o ensinar e o aprender, isto é, que permitirá ao docente
direcionar o processo de ensino-aprendizagem de modo significativo ou não.
Encontramo-nos novamente com a personalidade do professor, com a característica
intelectual, formativa, pessoal que irá definir qual tipo de educação será construída e
mediada. É essa concepção pessoal que transformará a ação sistemática, burocrática e
cansativa do ensinar, numa ação coletiva, concreta e significativa que deverá ser o
aprender. Nesse aspecto, evidenciamos no professor a competência para definir a qualidade
do ensino que por ele será proporcionado, assim Tardif, reflete:

Aquilo que nos parece ser a característica do trabalho investido ou vivido é a


integração ou absorção da personalidade do trabalhador no processo de trabalho
quotidiano enquanto elemento central que contribui para a realização desse
processo. (...) Nesse tipo de atividade, a personalidade do trabalhador, suas
emoções, sua afetividade fazem parte integrante do processo de trabalho: a
própria pessoa, com suas qualidades, seus defeitos, sua sensibilidade, em suma,
tudo o que ela é, torna-se, de certa maneira, um instrumento de trabalho. Nesse
sentido ela é um componente tecnológico das profissões de interação. Essa
tecnologia emocional é representada por posturas físicas, por maneiras de estar
com os alunos. (1998, p. 104).

Portanto, o professor torna-se naquele espaço de aprender o responsável pelo


direcionamento do processo. Estamos convictos que a construção do conhecimento deve
ser uma ação coletiva e dialógica, mas precisamos deixar evidente que também deve ser
uma prática intencional e direcionada. Assim, precisamos compreender que toda a
mediação pedagógica, que toda a prática docente deve ser construída através da
intencionalidade do professor.

223
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

É exatamente nessa questão que reside a concepção de competência, onde o


profissional deve estar convicto de sua responsabilidade social e de sua influência na
formação do sujeito discente. O professor é o sujeito que possibilitará o crescimento
intelectual do discente, que potencializará sua formação e o inserirá em estágios
posteriores de aprendizagens, que trará as contribuições necessárias para a concretização
de seus ideais. Acerca da competência docente, Sacristan acrescenta:

A competência docente não é tanto uma técnica composta por uma série de
destrezas baseadas em conhecimentos concretos ou na experiência, nem uma
simples descoberta pessoal. O professor não é um técnico nem um improvisador,
mas sim um profissional que pode utilizar o seu conhecimento e a sua
experiência para se desenvolver em contextos pedagógicos práticos pré-
existentes. (1991, p. 74).

As práticas que são desenvolvidas pela competência do professor estão associadas


as suas experiências profissionais, a sua formação e a relação que ele faz entre elas e os
conhecimentos empíricos trazidos pelos alunos. A competência de articular esses
conhecimentos e estruturá-los de modo coletivo é a principal característica do profissional
que visualiza a educação como um processo constante e que deve ser construído através
das relações sociais estabelecidas entre professor e aluno.
Assim, podemos explorar a competência docente numa dimensão formativa, uma
vez que deve-se partir das experiências e da formação profissional inicial para conseguir
compreender as questões que circundam a competência pedagógica do professor.
Observando que essas características formativas não são constituídas apenas pelo
emaranhado de teorias que são discutidas durante sua formação profissional, mas
oportunizadas durante as experiências vivências no âmbito da sala de aula.
Desse modo, a formação do professor se constitui em uma identidade formativa que
se caracteriza numa ação de busca constante, de descobertas e inquietações, experiências
proporcionadas cotidianamente. Esses paradigmas são colocados em questão quando
observamos a formação docente como processo contínuo de autoformação, de construção e
reconstrução, de ação reflexiva e ressignificação. Nessa perspectiva, Nóvoa acrescenta:

A formação não se constrói por acumulação (de cursos, de conhecimentos ou de


técnicas), mas sim através de um trabalho de reflexividade crítica sobre as
práticas e de (re)construção permanente de uma identidade pessoal. Por isso é tão
importante investir a pessoa e dar um estatuto ao saber da experiência. (1997, p.
25)

224
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Em decorrência disso, a formação se constitui através de múltiplas aprendizagens


que são oportunizadas através das vivências do sujeito em formação. Seria essa formação
construída inicialmente através da mediação pedagógica do professor que direciona esse
processo e posteriormente, a partir do próprio sujeito que busca novos conhecimentos para
superar os desafios constantes que são vivenciados na sala de aula. Essas questões nos
colocam a refletir de modo pragmático a formação docente, compreendendo-a como
processo contínuo e permanente, onde o professor busca ressignificar diariamente sua
prática, sua postura e sua identidade.
Desse modo, os desafios pedagógicos e os dilemas da profissão docente, estão
centralizados em questões rotineiras que exigem do professor uma postura flexível e
dialógica. O conhecimento não deve estar mais centralizado em um sujeito, mas deve ser
explorado de modo concreto as suas diversas manifestações, as possibilidades de aprender
através das especificidades de cada educando, compreendendo o processo de ensino-
aprendizagem a partir da singularidade do sujeito.
Portanto, o professor não deve compreender o processo de aprendizagem como uma
ação seletiva que busca evidenciar quem sabe mais ou quem sabe menos, mas quem sabe
de diferentes formas e precisa ser colocada como manifestações de conhecimentos
populares. Essa concepção está relacionada com a carga horária de trabalho do professor,
uma vez que é a partir dessa institucionalização que o professor articula sua prática de
modo significativo, concreto e coletivo.

CONSIDERAÇÕES PROVISÓRIAS

Diante das questões abordadas, podemos evidenciar no trabalho docente uma


característica formativa que busca diante dos desafios, redimensionar metodologias e
práticas pedagógicas para assim possibilitar o processo de ensino-aprendizagem de modo
concreto e significativo. Sabemos que essa é a postura docente que deve ser assumida
pelos profissionais da educação que buscam em sua mediação docente a oportunidade para
construir conhecimentos que favoreçam o crescimento humano, técnico e político dos
discentes.
Assim, a atuação docente deve ser mediada numa perspectiva construtiva que
possibilite e oportunize o discente se inserir no processo de construção da aprendizagem,
evidenciado no aluno a competência para relacionar seus conhecimentos empíricos a uma

225
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

prática dialógica e humanística. Dessa forma, o professor precisa em sua prática docente
permitir que o aluno esteja incluído nesse processo, não apenas sendo submetido a ele, mas
possibilitando a sua produção.
Com isso, compreendemos os desafios da profissão docente e os dilemas que
constituem sua formação como questões que buscam fragmentar uma prática que
potencialize os conhecimentos dos discentes. Nesse aspecto, a carga horaria de trabalho do
professor se caracteriza como instrumento que pode minimizar ou oportunizar uma
mediação docente comprometida com o crescimento intelectual do sujeito discente.
Portanto, compreender o processo de formação como atividade contínua e
evidenciar no aluno a predisposição para aprender e ensinar, deve ser um compromisso
social com o trabalho docente. O professor não pode centralizar-se como detentor do
conhecimento, mas como mediador do saber, como sujeito que possibilitará a construção e
a dialogicidade. Deve-se nesse sentido, primar pela valorização de uma abordagem
coletiva, que visualize nas experiências socioculturais uma oportunidade para construir
aprendizagens significativas.

REFERÊNCIAS

ALARCÃO, Isabel. Formação Continuada como Instrumento de Formação Docente. In:


VEIGA, Ilma. (Org.). Caminhos da profissionalização do magistério. Campinas:
Papirus, 1998.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 43. ed.
São Paulo: Paz e Terra, 2011.

NÓVOA, António. Formação de Professores e Profissão Docente. In: NÓVOA, António.


(Org.). Os Professores e sua Formação. Lisboa: Dom Quixote, 1997.
TARDIF, Maurice. Saberes Docentes e Formação Docente. Petrópolis: Vozes, 2002.
SACRISTÁN, J. Gimeno. Consciência e Ação sobre a Prática como Libertação
Profissional dos Professores. In: NÓVOA, António. (Org.). Profissão Professor. Porto:
Porto Editora, 1991.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

A EDUCABILIDADE DO MOVIMENTO HIP HOP: DIFICULDADES E


PERSPECTIVAS

FRANCISCO ANDERSON VARELABEZERRA


UFCG
[email protected]

DORGIVAL GONÇALVES FERNANDES


UFCG
[email protected]

RESUMO

O artigo problematiza a educabilidade do movimento hip hop, centrando-se no seu caráter


sociopolítico, artístico e educacional tendo em vista o trabalho de conscientização política,
de lutas e resistências de jovens pobres brasileiros no atual contexto brasileiro. Analisa
exemplos de como o hip hop atua em prol da educação formal e não formal e demonstra a
importância desse movimento para as minorias ao adentrar, de modo formal ou não formal,
no âmbito escolar, possibilitando debates sobre politização e valorização da cultura negra e
visibilizando pensamentos e ações de pessoas que sofrem e combatem preconceitos,
exclusões e violências. Porém, o hip hop enfrenta dificuldades para adentrar no espaço
escolar devido à marginalização social sofrida pelo movimento e ao fato de a instituição
escolar seguir um padrão curricular conservador sem espaços para diferenciadas formas
educacionais, o que leva o hip hop a produzir mais efetivamente práticas educacionais não
formais nos espaços da instituição escolar.
Palavras-chave: Hip hop; Educação não formal; Conscientização política, Exclusão;
Resistência.

INTRODUÇÃO

O presente artigo aborda o movimento hip hop, e de modo mais específico,


considerando-se a abrangência desse movimento, analisa-o como agente educativo e de
conscientização social. Nesse sentido destacamos o rap como um dos elementos do
movimento que se expressa por meio do ―Ritmo e Poesia‖, dando voz aos seus
participantes com a finalidade de construir movimentos de intervenção na educação e nas
lutas sociais. O desenvolvimento de tal problemática parte da seguinte questão: como se dá
a educação nesse movimento social e cultural tendo em vista o processo de conscientização
política?

Essa questão foi elaborada tendo em vista a contexto histórico no qual o movimento
hip hop teve início e tem se desenvolvido. Quanto à educação, sabemos que esse

227
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

movimento não se atém, apenas e propriamente, à educação formal, ministrada na


instituição escolar, mas ocorre de modo mais preponderante e efetivo no âmbito
extraescolar, pois o objetivo do movimento hip hop, desde o início, visava a educação e a
conscientização social e política das minorias oprimidas, em sua maior parte formada pela
população negra que sofria - e ainda sofre - diversos tipos de injustiças e opressões, tais
como segregação racial, exclusão social e econômica, e por isso lutavam contra o sistema
econômico social onde essas injustiças se potencializavam cada vez mais, o capitalismo.

Sob uma visão sociológica o movimento hip hop foi interpretado como expressão
artístico-político. A crise econômica sofrida por vários países, a exemplo dos Estados
Unidos da América, ainda em consequência da segunda guerra mundial, ocasionou
diversos problemas: desemprego, corte dos serviços públicos, aumento da violência
urbana. Assim, em meados da década de 1970, os Estados Unidos da América, já se
configurando como uma das principais potencias mundiais, colocam em prática as políticas
neoliberais visando estabilizar a economia do país. Tais problemas, entre outros, causaram
efetivos efeitos na vida dos jovens pobres dos guetos e periferias daquele país e foram de
extrema relevância para a criação do Movimento Hip Hop, assumindo um caráter político,
artístico, cultural e social. Sobre a criação desse movimento, afirma Santos (2011, p.17):

Foi em meio a esse contexto de crise econômica, aumento dos problemas sociais
e desestruturação urbana que surgiu o hip-hop. Criado por jovens negros e
pobres dos Estados Unidos, inicialmente na cidade de Nova York, o hip-hop é a
união de rap (música), break (dança) e grafite [...]. Todavia, para além da
literalidade do conceito, essa manifestação foi utilizada como instrumento de
resistência, alternativa de lazer e transformou-se num movimento político-
cultural de uma parte considerável da juventude negra e pobre americana e, a
partir dos anos 1980, em muitos outros países.

Considerando-se a afirmação de Santos quanto aos aspectos de resistência, cultura e


política assumidos pelo movimento hip hop, é possível compreender que esse movimento
além de uma forma artística de expressões corporais, visuais e auditivas, assume também
caráter educacional, no qual os rappers em suas poesias em forma de músicas falam sobre a
sua realidade, sobre experiências vividas nas zonas periféricas, buscando sempre em suas
letras a transmissão de mensagens políticas que contestavam o status quo e denúncias
sociais, com letras sempre bem elaboradas, a todo momento visando uma educação não-
formal voltada para as populações de zonas periféricas.
A escrita deste artigo, cuja metodologia usada para a sua produção se pauta na
pesquisa bibliográfica, objetiva empreender uma análise sobre questões relativas ao

228
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

movimento hip hop enquanto agente educativo, buscando mostrar que esse movimento tem
importância cultural e educativa para as minorias sociais e políticas que não tiveram a
oportunidade de receber uma escolarização justa e igualitária. Assim objetivamos também
explicitar a necessidade de que o hip hop seja debatido e mostrado no âmbito escolar,
dando ênfase ao seu caráter de militância politizadora e de conscientização social,
retratando a cultura negra, mostrando-a do ponto de vista das pessoas que sofrem diversos
tipos de preconceitos como exclusão social, cultural, violência policial, discriminação
racial entre outros, valorizando também a cultura afrodescendente que está arraigada no
movimento hip hop.

BREVE HISTÓRIA DO MOVIMENTO HIP HOP

O movimento hip hop na atualidade tem sido caracterizado como um movimento


social de caráter educativo e de militância política, mas para entendermos tal
caracterização é necessário compreender o contexto histórico do seu surgimento.
O cenário político nos Estados Unidos, onde se origina o movimento hip hop,
passava por diversos tipos de problemas, entre esses os raciais. Foi na região sul desse país,
lugar onde a escravidão foi mais disseminada e políticas segregacionistas semelhantes às
do Apartheid na África do Sul foram instituídas. Locais públicos como ônibus possuíam
assentos específicos para brancos e negros, nos banheiros e bebedouros havia também essa
separação, em alguns lugares eram somente permitidas a entrada de pessoas brancas, até
1954 nas escolas também só podia ser permitido o ingresso de pessoas brancas. Era uma
época na qual o sistema era em sua totalidade racista e suas políticas se baseavam na
segregação racial. Os negros em condições extremamente precárias se rebelam contra tais
injustiças e leis fascistas, como por exemplo, as leis Jim Crow85. Dessa forma iniciava-se a
mobilização em busca de direitos iguais.
Foi nesse período de intensa luta que surgiram nomes de grande importância para
as lutas da população negra, tais como Malcolm X86 e Martim Luther King87, entre outros.

85
As leis de Jim Crow foram leis locais e estaduais, promulgadas nos Estados do Sul dos Estados Unidos,
que institucionalizaram a segregação racial, afetando afro-americanos, asiáticos e outros grupos étnicos.
Vigoraram entre 1876 e 1965.
86
Malcolm X foi um dos maiores representantes na defesa dos direitos dos negros nos Estados Unidos.
Nascido no dia 19 de maio de 1925 na cidade de Omaha, Malcolm Little era filho de Earl Little e de Louise
Little. Ver mais em: <http://www.infoescola.com/biografias/malcolm-x/>

229
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Também foi fundado o partido dos Panteras Negras com o intuito de dar continuidade às
lutas as quais vinha sendo exercidas em prol da população negra, com ideologias de caráter
socialista e anticapitalista, que buscava dar voz a comunidade afro-americana.
Após o assassinato de Martin Luther King a maioria da população negra
―despertou‖, o partido criou mais forças com a mobilização em massa da população negra,
assim trazendo mais pessoas que contribuíam nas lutas contra as políticas segregacionistas.
Porém devido o partido ser considerado radicalista pelas autoridades da época, chegando
ao ponto de lutar pelos seus direitos através de forças armadas, houve perseguições e
investigações por parte do Departamento Federal de Investigação dos Estados Unidos
(FBI) e gradativamente o movimento foi também perdendo forças por conta de motivos
políticos governamentais, na tentativa de extinguir as lutas afro-americanas.
Eis que em meio a esse cenário, surgiu o movimento social que objetivava expor os
problemas que a população negra vinha enfrentando, o movimento hip hop. Este foi
influenciado pelas lutas que já haviam sido travadas contra o sistema governamental
opressor.
Embora o senso comum localize o surgimento do movimento hip hop nos Estados
Unidos, este tem origem em outro país, a Jamaica, onde teve início por volta da década de
1940. No final da década de 1960 e início da década de 1970 começou a haver a migração
de jovens jamaicanos para os Estados Unidos devido à crise que a ilha passava, grande
parte desses jovens se alojava nos subúrbios norte-americanos. Os jovens imigrantes
começaram a realizar eventos festivos semelhantes aos que realizavam na Jamaica e que
eram conhecidos como Black Parties, isto é, festas nas quais majoritariamente quem as
frequentava era a população negra e de situação econômica desfavorecida. O movimento
hip hop viria a surgir em meio a esse cenário no qual, de início, era uma forma simples
dessa população que sofria com as políticas segregacionistas e lutavam contra o sistema
capitalista, realizar atividades de lazer.
Porém como esse período foi marcado pelas políticas segregacionistas e de
opressão racial ou socioeconômica, entre outras, o movimento viria a ser usado como
forma de expressão em prol da luta contra essas diversas situações e também como forma
de educação não-formal, orientando a população que estava engajada no movimento. Foi

87
Martin Luther King Jr. foi um importante pastor evangélico e ativista político norte-americano. Nascido na
cidade de Atlanta em 15 de janeiro de 1929. Em 14 de outubro de 1964, recebeu o prémio Nobel da Paz em
função de seu trabalho, combatendo pacificamente o preconceito racial nos EUA. Ver mais
em:<http://www.suapesquisa.com/biografias/luther_king.htm>

230
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

então que o hip hop surge como resposta aos problemas enfrentados pela população dos
bairros pobres de Nova York como o Bronx, Harlem e Broonklyn, entre outros. Com a
marginalização vivenciada nesses bairros, o hip hop surge como movimento cultural-
político, ou seja, como reação a situação que sofriam. Nesta perspectiva, como assinala
Ivan Messias (2008), o termo hip hop significa movimentar-se político-esteticamente.
Os elementos que compõem o hip hop e que já existiam em manifestações culturais
da Jamaica como forma de diversão e lazer, são: O Rap (rythm and poetry) é um relato
musical por meio de ritmo e poesia com letras improvisadas; o DJ (disc jockey) fica
encarregado de mixar as músicas e fazer o ritmo envolvente do rap; o MC (máster of
cerimonies) é o responsável por relatar todos os problemas da comunidade e experiências
de vida, assim alertando e orientando os que escutam suas rimas; o B. boy (break boy) é o
elemento que representa o movimento por meio das expressões corporais, ou seja, por
meio da dança de rua, seja street dance, break, entre outros estilos; e por último o elemento
Grafite que é mostrado por meio da arte de pinturas em muros, trens e locais públicos de
fácil visibilidade.
Assim, com a junção desses elementos já utilizados antes na Jamaica para a
realização de festas e momentos de lazer dos jovens, foram compostos a cultura e o
movimento hip hop, que com a sua migração foi instaurada nos Estados Unidos. A partir
das lutas e movimentos sociais o hip hop proporcionou e deu chances para que a população
negra envolvida pudesse expor suas aflições, porém o hip hop tomou proporções
gigantescas, não se atendo somente ao público dos Estados Unidos. Sobre a expansão do
hip hop para além dos EUA, Ivan Messias afirma:

O rap extrapolou as fronteiras da negritude, pois em países diversos ele incorpora


distintas bandeiras de luta, com demandas específicas: migração, religiosidade,
gangsters não-negros. Na Alemanha da década de 90, por exemplo, o grupo de
rap Kanake enfrenta o nacionalismo dos Skinreds. Seria ingenuidade e
―romantização‖ crer na contestação e ―guetificação‖ de qualquer expressão
artística, mesmo quando, a princípio, os veículos de comunicação rejeitam-se.
(MESSIAS, 2008, p.37)

Destarte, o movimento hip hop por ultrapassar as barreiras de uma só causa, ou


seja, a luta racial negra, esse passa a ser considerado um movimento social, pois
mobilizava a luta artística dos mais diversos grupos juvenis, seja em relação à luta de
igualdade de gênero, respeito pelos credos religiosos e outros.

231
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

No Brasil, o movimento que já corria várias partes do mundo com o intuito de


conscientizar minorias oprimidas, chega por volta da década de 1980, por meio da força
mercadológica do capitalismo, assim Ferreira e Menezes (2005, p. 8) afirmam:

Este fato muito se deve à força mercadológica do fenômeno de venda das


produções artísticas internacionais no país. Na capital paulista, berço das
manifestações do hip hop, por exemplo, foi por meio dos bailes e das lojas
específicas de musicalidade negra que a cultura hip hop se inseriu entre a
―galera‖.

Deste modo surgiram vários grupos no Brasil, da mesma forma como ocorreu nos
Estados Unidos, o movimento aqui no nosso país também teve a pretensão de servir à
conscientização das populações de zonas periféricas sobre a importância do seu
engajamento no cenário político, sempre buscando fomentar essa orientação por meio da
arte que a cultura hip hop proporciona. Apesar de ser aceito por parte da população
marginalizada, pelo motivo de não está diretamente ligado ao ambiente escolar e também
pelo fato de ter surgido no meio da população negra, o movimento hip hop não foi aceito
positivamente pela sociedade. Porém o rap foi sendo difundido por alguns grupos que
foram fazendo sucesso e conquistando a mídia nacional, tais como Thayde e Dj Hum, logo
em seguida Racionais Mcs, Detentos do Rap, Câmbio Negro, Sabotage, entre outros.
Todos sempre com a ideologia de contestação do estado político atual, mostrando a
realidade da vida das pessoas que moram nas periferias e o que sofrem, como a violência
policial, falta de oportunidade educacional e cultural, expondo a criminalidade e sempre
buscando a inclusão social da população que tem sofrido com essas questões.

A EDUCAÇÃO FORMAL: DIÁLOGO ENTRE A ESCOLA E O RAP

Apesar do seu caráter educativo, das suas características de conscientização social,


politizadora e educacional e dos benefícios que o movimento cultural proporcionou nos
lugares onde foi inserido, o movimento hip hop não conseguiu adquirir o seu espaço dentro
do âmbito da educação formal. Isto por diversos fatores, mas o principal deles é
exatamente a questão da marginalização que o movimento sofreu devido a etnia e a
condição econômica dos seus criadores e principalmente pelo seu sentido de contestação
ao status quo social, político e econômico.
A educação formal se caracteriza por ser sistematizada e acontece na instituição
escolar, seguindo um padrão histórico onde o professor seria o principal mediador do

232
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

conhecimento formalizado a ser transmitindo para os alunos, se baseando nas leis de


diretrizes educacionais organizadas pelo estado burguês e regimentadas para que ocorra a
educação a serviço de uma estrutura social desigual e injusta. A educação formal, segundo
Gadotti (2005, p.2), seria aquela que:

Tem objetivos claros e específicos e é representada principalmente pelas escolas


e universidades. Ela depende de uma diretriz educacional centralizada como o
currículo, com estruturas hierárquicas e burocráticas, determinadas em nível
nacional, com órgãos fiscalizadores dos ministérios da educação.

Logo, devido a educação formal seguir esse padrão estrutural e burocrático, esta
não tem dado espaço para aspectos educacionais diferenciados, como é o caso do
movimento hip hop. Foi por esse motivo que o mesmo não tem tido lugar no âmbito formal
da educação escolar, mas também há a questão relacionada ao preconceito e
marginalização do movimento e as questões políticas que dificultam a sua entrada na
estrutura da educação formal. Existem, todavia, diversos casos e exemplos da junção entre
a educação formal e o movimento hip hop.
Um dos casos bem-sucedido de integração entre escola e movimento hip hop é o
exemplo do professor Pablo88, formado em química pela Universidade Presbiteriana
Mackenzie, de São Paulo, e morador do bairro Capão Redondo. Porém, antes de tudo,
devemos compreender que o seu exemplo não deve ser tido como verdade única e
absoluta, pois o fato do caso ter ocorrido com sucesso não significa que este se aplica e
muito menos representa toda instituição escolar e todo movimento hip hop. Mas com
certeza é uma prova de que a junção entre esse movimento e essa instituição pode ser
adotada.
O envolvimento do professor Pablo com o movimento hip hop veio exatamente por
ser um jovem negro de zona periférica. Na comunidade onde morava foi um dos poucos
que conseguiu concluir o ensino médio e entrar na universidade e após a sua formação
como professor de química, viu que como ele, aqueles jovens de zona periférica também
tinham capacidade de entrar no ensino superior, mesmo contando com todas as
dificuldades encontradas como o não acesso a uma educação de qualidade, baixas

88
Professor Pablo – Blequisploiteixion é o título do segundo álbum do Professor ―rapper‖ Pablo. O tìtulo tem
o título de um movimento que foi a revolução do homem negro dos Estados Unidos nas grandes telas, com
filmes onde eles eram os atores principais. O movimento chamado de ―Blaxploitation‖ começou no início dos
anos 70 e foi adaptado a nossa gramática por um professor de química que canta Rap. Assim como o
movimento cinematográfico, Pablo, desde o seu primeiro disco, procurou mostrar o negro no papel principal
e sem estereótipos. Entrevista em vídeo sobre a sua história, ver em:
<https://globoplay.globo.com/v/2104867/>

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

condições financeiras, falta de inclusão social e cultural, entre outros fatores negativos.
Assim esse professor decidiu realizar palestrar motivacionais e de conscientização social
com um grupo de amigos nas escolas, criando um pequeno projeto idealizado por eles, no
qual buscava mostrar aos jovens que apesar das dificuldades encontradas era possível
―vencer na vida‖ por meio dos estudos, sempre mostrando para aqueles jovens que o maior
ato de rebeldia contra o sistema para quem nasce pobre é estudar. Porém, não teve êxito de
início nessas palestras. Diz o Professor Pablo (2012):

Quando chegávamos nas escolas, eu mais três amigos, todos negrões, de jaqueta,
o pessoal jurava que era show de rap, então ficava uma galera atenta olhando, aí
quando a gente começava a conversa já tinha uma galera falando, não quero
ouvir isso e fugiam, então comecei a perceber que se a gente chegasse e cantasse
iriamos mobilizar muito mais gente.

Esta situação levou o professor Pablo a escrever as suas primeiras letras de rap e
viu que era possível haver essa ligação do ambiente escolar com o rap, na qual é possível
também aprender por meio da música, principalmente para os jovens de periferia, pois o
contexto descrito nas letras das canções é contexto social, econômico e cultural no qual a
grande maioria dos jovens pobres de periferia está inserido. Ele deu continuidade a sua
carreira de professor e agregou a de rapper, na qual seu nome artístico ainda continuava o
mesmo enquanto docente: ―Professor Pablo‖. Foi como ficou conhecido, realizando ações
sociais, palestras sobre cidadania, violência, assuntos da periferia em geral em escolas e
comunidades carentes.
A educação não formal se diferencia da educação formal, embora ambas tenham, a
princípio, o mesmo objetivo, que é o de educar o cidadão para viver em harmonia no meio
social, despertar o senso crítico e a consciência acerca dos seus direitos e deveres perante a
sociedade. Porém os métodos para a execução do ato educacional são de certa forma
diferenciados. Como vimos anteriormente, para que ocorra a educação formal é necessário
haver a sistematização e burocratização do processo, e uma das principais características
da educação não formal é especificamente essa, a questão de não necessitar seguir esse
sistema, no qual a educação se dá por meio das instituições tais como escolas e
universidades. Segundo Gohn (2006, p. 2), a educação não formal é aquela que:

designa um processo com várias dimensões tais como: a aprendizagem política


dos direitos dos indivíduos enquanto cidadãos; a capacitação dos indivíduos para
o trabalho, por meio da aprendizagem de habilidades e/ou desenvolvimento de
potencialidades; a aprendizagem e exercício de práticas que capacitam os
indivíduos a se organizarem com objetivos comunitários, voltadas para a solução
de problemas coletivos cotidianos; a aprendizagem de conteúdos que

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

possibilitem aos indivíduos fazerem uma leitura do mundo do ponto de vista de


compreensão do que se passa ao seu redor; a educação desenvolvida na mídia e
pela mídia, em especial a eletrônica etc.

É considerando a especificidade apontada por Ghon que o movimento hip hop tem
o seu lugar dentro da educação não formal, pois desde a sua origem o movimento buscou a
fomentar a orientação política dos direitos pertencentes aos cidadãos, realizando atividades
comunitárias voltadas para a solução dos problemas coletivos na sociedade. Sendo assim,
consideramos a educação não-formal como um dos núcleos básicos de uma Pedagogia
Social (GOHN, 2006). A educação não-formal é também uma atividade educacional
organizada e sistemática, mas levada a efeito fora do sistema formal. Daí também alguns a
chamarem impropriamente de ―educação informal‖ (GADOTTI, 2005). De acordo com o
que os autores afirmam é possível compreender que a educação formal e não formal estão
intrinsicamente ligadas, com alguns fatores que as diferenciam, mas o objetivo de ambas é
sempre o mesmo, a educação do cidadão para agir em prol da sociedade.
Na educação formal o principal mediador do conhecimento é o professor, mas na
educação não formal e mais especificamente no movimento hip hop quem seria esse
mediador do conhecimento? O rap (ritmo e poesia) que é uma das vertentes do hip hop e
pode ser considerada a ―voz‖ do movimento, alguém que se aproximaria da figura do
professor no cenário da educação não formal seria o rapper, com suas composições
poéticas em formato musical fazendo relatos ou orientações educacionais em prol das
comunidades.
No cenário atual da música brasileira ainda existem muitos artistas com o espírito
que o movimento hip hop proporcionou no início da década de 70, que foi o de passar o
conhecimento, conscientizar e dar o poder de militância política para aquelas minorias que
não tiveram a oportunidade de receber adequadamente a educação formal. Artistas como
Gabriel o Pensador, Fábio Brazza, Racionais Mc‘s, Eduardo e outros ainda tentam fazer o
papel do ―professor‖ dentro do movimento hip hop, entre esses será citado o exemplo do
Mc Marechal.
Rodrigo Vieira, mais conhecido como Mc Marechal, há mais de quinze anos como
rapper lutando dentro movimento hip hop no Brasil, nunca se submeteu à mídia na
tentativa de ocultar as verdades que são expostas em seus versos sobre o sistema opressor
que desfavorece em geral as populações de classes pobres e de baixo poder econômico.
Desde o início quando entrou no movimento seu foco foi buscar educar e politizar as
comunidades nas quais realizava seus shows. A partir dessa ideologia, foi então que em

235
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

2012 ele reverteu um dos seus cachês para a compra de livros com o intuito de distribuí-los
em seu próximo show, ele viu que a reação do público foi positiva e isso o levou à ideia de
criar o Projeto livrar89. Livrar vem da junção das palavras ―livro‖ e ―levar‖, e remete à
essência da perspectiva libertária, um dos cinco elementos da cultura hip hop.
No ano de 2016 o projeto completou quatro anos de sua criação, e com uma marca
expressiva de mais de 5.000 livros distribuídos gratuitamente, possibilitando assim a
difusão de conhecimento e proporcionando a leitura para muitos jovens de zonas
periféricas que nunca tiveram a oportunidade de receber um livro em mãos. São exemplos
como ações desse tipo realizadas pelo Mc Marechal que nos possibilita ver que a educação
por meio da música rap é possível, seguindo a linha educacional não formal, na qual ocorre
no âmbito extraescolar, que apesar de sofrer ainda com a marginalização do movimento é
possível fazer essa ligação entre escola-rap-educação.
Em uma de suas músicas o rapper Mc Marechal busca passar a mensagem referente
ao projeto por ele fundado. Também existem diversas outras mensagens como a que retrata
e resgata a cultura africana, a exemplo da música intitulada ―Griot‖ 90. Nesta o MC faz
denúncias e críticas ao nosso sistema educacional e aos métodos de ensino atrasados, no
qual somos ―escravos‖ da reprodução, não existindo o incentivo ao raciocìnio livre para
criar, criticar ou inovar.

Trecho da música ―Griot‖:

[...] E eles dizem que eu sou louco, ainda acredito em movimento


Mais que gravar, quero semear algo de valor pro tempo
[...] Porta voz de quem trabalha, Malcolm X
nós por nós da forma que for necessária
Em breve coleta de livros nos evento em várias áreas
Incentivos pra ter mais bibliotecas comunitárias
Depois das bibliotecas um centro de estudo avançado
Substituir as escolas, métodos dos atrasados

89
Projeto Livrar é uma ação de distribuição de livros idealizado pela escritora e produtora cultural Lâmia
Brito e pelo músico e produtor musical Mc Marechal. As distribuições acontecem em shows do selo musical
#VVAR e os objetivos são o fomento a leitura, a descoberta de novos leitores e garantir a visibilidade aos
autores desses livros. Ver mais em:<www.projetolivrar.com.br>
Vídeo sobre o projeto:<https://www.youtube.com/watch?v=0N7tNleWS3I>
90
Os Griots, são indivíduos que tinham compromisso de prescrever e transmitir histórias, fatos históricos, os
conhecimentos e as canções de seu povo. Existem gritos músicos e gritos contadores de histórias. Eles
ensinavam a arte, o conhecimento de plantas, tradições, histórias e davam conselhos aos jovens príncipes,
eram responsáveis por transmitir a tradição e a cultura. Vivem hoje na África ocidental.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Nos preparam pra ser escravos, não incentivam o raciocínio


Deviam mostrar marcos da história mais parecidos com Plínio
Explicam o domínio de quem fabrica o dinheiro
Faz em prol do seu sonho e suborna seu travesseiro
Faz tu acreditar que só sobreviver já tá maneiro
O jogo é sujo, segundo grau pra ser lixeiro
Geral tá sem dinheiro, eu tô bolado
Que volte a época que os Mc's eram mais politizados
E quando show com renda pra revolução for anunciado
Isso é papo de 10 minutos os ingressos ter esgotados
Estádio lotado geral mostrando o que somos
Sobreviventes no inferno mais de 50 mil manos
muitos deles descalços, pois jamais nos deslumbramos
Preferimos morrer assim, sendo donos de onde pisamos
Jesus, João Batista, Pensador, Gogh, Brown, Rakim, Gentileza,
Gandhi, Mandela, Marley, Fela, Lutherking
Pra ser mais um tô na pista, filosofia Um só Caminho
E os meios justificam-se agora porque essa porra não tem fim.(Mc Marechal, 2011).

Pelo fato da instituição escolar seguir um padrão curricular de ensino no qual não
abre espaços para as diversas formas educacionais, como por exemplo, o movimento hip
hop que pode ser usado no âmbito educacional, a difusão das práticas educacionais que o
movimento proporciona são dificultadas e barradas na escola. Porém para compreender
melhor como ocorre esse tipo de educação diferenciada, outro exemplo que podemos citar
é o projeto extraescolar ―Programa Escola Aberta‖, realizado nas zonas periféricas de
Recife, que fez essa relação entre a escola e o movimento hip hop, possibilitando a
participação das comunidades na escola por meio de oficinas, práticas educativas e
sociopolíticas.
Este projeto foi realizado com pessoas de baixa renda em comunidades nas quais a
escola está inserida e apresenta inúmeros tipos de problemas como carência em relação aos
serviços de saneamento básico, equipamentos de lazer e estrutura de urbanização como
transporte, segurança pública, água tratada, além de outros fatores que dificultam a entrada
e permanência dos alunos na escola. As práticas realizadas pelo projeto contribuem para
uma nova visão de mundo, despertando o senso crítico acerca da realidade vivenciada
pelos jovens e são formadas ações participativas e mobilizadoras, como forma de garantir
que os princípios e os valores que nutrem o movimento circulem e transformem a cultura
política desses jovens (MENEZES et al., 2010).

237
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

A educação formal, por meio do currículo escolar, no exercício educacional, em


grande parte dos casos, não está preocupada em considerar criticamente o contexto cultural
e socioeconômico no qual o aluno está inserido, não buscando desenvolver no educando o
senso crítico e político, diferentemente do movimento hip hop que tem como uma das suas
prioridades esses objetivos. A escola, via de regra, busca sempre seguir o seu currículo
estabelecido com rigidez, sem gerar ―brechas‖ para novas possibilidades de ensino e
aprendizagem. Contrariando essa perspectiva, o propósito do projeto Escola Aberta foi:

De garantir ocupação, lazer, recreação e profissionalização para os jovens desses


lugares, busca diferentes sujeitos para viabilizar seus objetivos. No caso do
movimento hip hop já é de conhecimento público seu poder de atrair a juventude
de modo geral, em especial, a juventude pobre, por conta de suas raízes [...] A
adesão desses jovens ocorre por sua proposta de ludicidade, conhecimento,
corporeidade e criatividade, e isso também é reconhecido pela política que
convoca o movimento para atuar no programa. (MENEZES et al., 2010, p. 92)

Com a inserção do projeto na escola em comunidades de Recife, foi possível ver


que pelo motivo do mesmo não fazer parte do projeto político-pedagógico da escola, ou
seja, por não está pautado no currículo escolar, foram encontradas dificuldades no diálogo
entre os conteúdos abordados nas salas de aulas e oficinas que o projeto Escola Aberta
oferecia com o intuito de dinamizar as aulas, difundir e propagar o conhecimento.
Observa-se nos trabalhos realizados nas oficinas, que apesar das dificuldades de
diálogo entre a escola e o projeto, foram adotadas pelas escolas que aceitaram o projeto,
práticas nas quais o movimento hip hop proporcionou atividades educativas, conforme
descrição abaixo:

Uma é instrumental ou episódica, em que se utilizam estratégias de divulgação


das oficinas, a partir das apresentações em datas comemorativas. Com isso,
busca-se a adesão de um número cada vez maior de alunos. A outra apropriação
é mais pedagógica, já que uma professora da disciplina de artes foi referenciada
e informou que desenvolvia trabalhos com o grafite como linguagem atual e
música de rap, ao trabalhar música brasileira. (MENEZES et al., 2010, p. 100)

Deste modo, podemos perceber que o movimento hip hop busca desenvolver e
seguir um padrão diferenciado do que a escola, de praxe, repassa para exercer o ato
educacional. O movimento busca interagir com os alunos por meios lúdicos, sempre
visando à interação direta entre aluno, professor e material didático, possibilitando a
entrada de conteúdos que serão debatidos nas escolas e que despertam o interesse dos
alunos no que se refere a sua realidade e contexto cultural de onde estão inseridos. Assim,
alguns temas, tais como sexualidade, drogas, ação policial e violência contra a mulher

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

cativa de modo efetivo o interesse nos jovens (MENEZES et al., 2010). Esses são temas,
entre outros, que a escola, com a sua rigidez curricular, dificilmente coloca em livre
discussão junto aos alunos. Julgamos ser necessário que haja na escola a discussão das
questões mais prementes que afetam a vida dos jovens estudantes pobres, negros,
moradores de periferia, ou seja, temas que de fato retrate a realidade no qual o aluno se
encontra e que possa ser visto por ele como algo que será um aprendizado útil para a sua
vida e seu contexto social.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pretendeu-se neste trabalho expor uma discussão pautada na temática relacionada


ao movimento hip hop e educação (formal ou não formal), fazendo uma contextualização
histórica que se remeteu à questão educacional, cultural e libertária que esse movimento
pode proporcionar para as populações que engajadas na luta política comunitária em prol
da igualdade de direitos e melhoria das condições de vida.
Consideramos que a questão levantada e que motivou a escrita do artigo foi
problematizada a contento, qual seja: como se dá a educação e o processo de
conscientização no movimento social, cultural e político denominado Hip Hop? Como nos
foi possível ver, a educação praticada nesse movimento não é exatamente a que ocorre no
âmbito escolar, mas sim, de modo mais efetivo, fora dessa instituição, haja vista que seu
principal objetivo educacional é conscientizar política e socialmente os sujeitos pobres,
negros e moradores de periferia, enfatizando o senso crítico e o engajamento político para
pessoas de comunidades carentes. Assim fazendo com que esses sujeitos tomem
consciência acerca dos seus direitos como cidadãos. Objetivo que inexiste na educação
escolar atual – a educação política e crítica acerca da realidade vivida pelos jovens pobres,
negros e moradores de periferia.
Também foi possível ver que apesar das dificuldades de diálogo encontradas entre a
escola e o movimento hip hop, é possível haver a junção de ambas instâncias educativas,
porém um dos fatores recorrentes que impedem que isso aconteça é a marginalização e o
preconceito sofridos pelo movimento. A perspectiva libertaria que o movimento hip hop
proporciona enquanto agente educativo, com base no seu contexto histórico e cenário em
que surgiu, é possível chegar à conclusão que esse movimento pode se inserir no âmbito
escolar, como foi exposto ao longo da escrita do artigo. Todavia, para isto é imprescindível
que seja flexibilizado o currículo das escolas localizadas em zonas periféricas, pois esse é o

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

contexto no qual, majoritariamente, os alunos estão inseridos, aproximando a sua realidade


dos conteúdos vistos na escola, possibilitando ao hip hop facilitar o processo de ensino e
aprendizagem.

REFERÊNCIAS

GADOTTI, M. A questão da educação formal/não-formal. Institute Internacional des


Droits de 1º Enfant (ide). Droit à l‘éducation: solution à tous les problèmes ou problème
sans solution? Sion (Suisse), 18 au 22 octubre, 2005, p 1-11.
GOHN, M. G. Educação não-formal na pedagogia social. In: Anais do I Congresso
Interno de Pedagogia Social. São Paulo: Universidade de São Paulo, Mar. 2006.

KURTIS, E. A origem do Hip Hop e seu compromisso. Disponível


em:www.vaiserrimando.com.br/2014/02/21origem-hip-hop-e-o-seu-compromisso. Acesso
em: 15 set. 2016.

MACEDO, I.; FIUZA, A. F. A educação informal e o rap como agente educativo.


Eccos, n 31, p 17, 2013.

MENEZES, J. A.; COSTA, M. R.; FERREIRA, D. F. T. Escola e movimento hip hop: o


campo das possibilidades educativas para a juventude. ETD – Educação Temática Digital,
Campinas, v.12, n.esp., p.83-106, set. 2010.

MENEZES, J. A.; FERREIRA, D. F. T. Entre a escola e o movimento hip hop: O


Campo das Possibilidades Educativas para a Juventude do Recife. Revista TCC- Revista de
divulgação científica do curso de Pedagogia-UFPE, v. 3, p. 1-25, 2011.

MESSIAS, I S. Hip Hop, Educação e Poder: O Rap como instrumento de educação não-
formal. 2008. 157 f. Dissertação Mestrado (mestrado) – Universidade Federal da Bahia.
Faculdade de Comunicação, Salvador, 2008.

MORENO, R. C. ALMEIDA, A. M. F. O engajamento político dos jovens no


movimento hip hop. Revista Brasileira de educação, v. 14, n. 40.p. 130-142, 2009.

Professor Pablo. Programa Jô Soares. Entrevista. Vídeo (17mn). 2012. Disponível em:
https://globoplay.globo.com/v/2104867/. Acesso em: 28 de setembro de 2016.

SANTOS, R. E. Resistência da juventude negra no contexto neoliberal. Revista Cultural


Crítica. São Paulo. HIP HOP, 2º SEM 2011. Disponível em: <
http://www.apropucsp.org.br/revistas/revista-cultura-critica>. Acesso em: 28 de setembro
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240
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

VIEIRA, R. Mc Marechal – Música “Griot”. Disponível em: https://youtu.be/eH2doV-


F1zM. Acesso em: 28 de setembro de 2016.

INCLUSÃOESCOLAR, PRÁXIS E RELAÇÕES SOCIAIS: O CASO CEEIGEF


(CENTRO DE EDUCAÇÃO ESPECIAL INTEGRADA GENY FERREIRA) – PB

LUANNA MICHAELLY SOARES RODRIGUES


[email protected]

RESUMO
O objetivo do presente texto é discutir a inclusão escolar enquanto práxis, destacando sua
historicidade e problematizandosuas relações estabelecidas com a sociedade
contemporânea. Este artigo se ocupa em analisar os impactos da inclusão e o tratamento
que a sociedade emprega a essa questão, tomando como referência a escola CEEIGEF
(Centro de Educação Especial Integrada Geny Ferreira), que é uma instituição
discursivamente inclusiva, localizada na cidade de Sousa-PB. Para tecer tais reflexões,
tomara-se como referência as perspectivas de Foucault (2001) Lopes (2011), Díaz (2012),
entre outros pesquisadores, que possuem importantes reflexões na área.
Palavras-Chave: Inclusão Escolar. Sociedade. Educação. Desafio.

INTRODUÇÃO

Inclusão e exclusão são conceitos e práticas socialmente e historicamente variadas e


controversas. O historiador francês Michel Foucault, em seus estudos compreende-as
enquanto invenções modernas e que nem sempre existiram enquanto exercício na
sociedade.

Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua "política geral" de verdade:
isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros;
os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir uns e outros; as
técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade;
o estatuto que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro.
(FOUCAULT,1998, p.12)

Nessa perspectiva, a inclusão é uma espécie de construção e de uma verdade


concebida por instâncias ou grupos e ancoradas por um discurso. Nesse sentido, a inclusão
pressupõe jogos de poder e de verdades. Uma vez que (...) ―não há relações de poder sem
constituição correlata de um campo de saber; nem saber que não suponha e não constitua
ao mesmo tempo relações de poder‖. (FOUCAULT, 2004, p.27).
A necessidade de incluir as diversidades e as heterogeneidades surge em um
contexto social marcado pela existência de sujeitos diferentes. Em uma sociedade

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

fundamentada na diferença e nas múltiplas identidades é inviável um ensino articulado na


homogeneidade, desconsiderando assim as alteridades, as diversidades e as diferenças.
A discussão acerca da temática Inclusão na Escola ganha força a partir do momento
no qual se reconhece a necessidade de acomodar a pluralidade de novos sujeitos e novos
tipos de alunos que surgem trazendo para as salas de aula novos anseios, novas inquietudes
e novas necessidades. O respeito às novas identidades é uma das realidades que faz surgir
demandas para uma educação inclusiva, pois ―só construímos a nossa identidade por
contraponto à existência de outros que se distinguem de nós, então a inclusividade faz todo
o sentido‖. (CÉSAR, 2003, p.119). Assim, é engano pensar que a inclusão é benéfica
somente para os alunos com deficiência, ao contrário a inclusão traz contribuições
positivas para a formação identitáriade todos os alunos conviventes na escola.
Inclusão é o desejo de fazer a intersecção de alunos com necessidades específicas e
múltiplas, garantindo que mesmo frente as suas aparentes limitações eles consigam acesso
a um ensino aprendizagem de qualidade e mais que isso, que as interações entre os alunos
formem um conjunto heterogêneo, respeitando as especificidades de cada um, mas que
garanta acesso ao conhecimento de maneira igualitária.
Garantir a acomodação e a efetiva participação do aluno no cotidiano da escola,
fazendo-se sujeito ativo e participativo da produção do conhecimento é o grande objetivo
da inclusão escolar. Dessa forma, incluir é operacionalizar as necessidades do aluno, de
modo que ele não seja um elo perdido na atmosfera escolar. ―A inclusão traz no seu bojo a
equiparação de oportunidades, a mútua interação de pessoas com e sem deficiência e o
pleno acesso aos recursos da sociedade.‖ (MACIEL, 2000, p.52). A igualdade oferecida
pela inclusão prevê um acesso igualitário e democrático ao conhecimento escolar, mesmo
que seja em ritmos diferentes e irregulares, pautado no diálogo e convivência das
diferenças.
Apesar da relativa familiaridade com a inclusão, muitas são as escolas que têm se
mostrado resistentes a ―Abrir-se para o outro, para o diferente, para o estranho, para o
estrangeiro, para o não- sabido, o não – pensado, o não-valorado‖ (ALBURQUERQUE,
2010, p.09). Tal instituição reluta em colocar em perspectiva o diferente, o singular.
Se a sala de aula é uma janela aberta para o mundo e para a sociedade e ambos são
multifacetados, ela precisa lidar com a diversidade de alunos e acabar com a ação de
silenciar as diferenças e as diversidades. ―A espacialidade da modernidade e o espaço
escolar insistem em ser como irmãs de sangue (...) que só buscam restringir o outro para

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

longe de se território, de sua lìngua, de sua sexualidade, de seu gênero‖ (SKLIAR, 2003,
p.45).
Desse modo, ―(...) o desafio é estender a inclusão a um número maior de escolas e
comunidades e (...) ter em mente que o principal propósito é facilitar e ajudar a
aprendizagem‖. (STAINBACK, 1999, p.12).
Não é desejo dos princípios inclusivos disfarçar as necessidades especiais e
específicas dos discentes, ao contrário é reconhecendo essas particularidades que a
inclusão promove a atividade de englobar todos em um só sistema. Considerando que,
―Não se compreende, hoje, uma Educação especial para uma fatia de crianças jovens, não
se compreende que seja necessário separar as pessoas para as educar, para as ensinar a
viver com os outros, para as juntar depois‖. (SANCHES, 2006, p.68). A inclusão não se
faz na delimitação de territórios, para cada aluno. Não há sistematização e nem separação
no decorrer do processo de ensino e aprendizagem, pelo fato de que a inclusão acontece
quando as necessidades e as normalidades ditas se mesclam e se juntam para a aquisição
do s saberes.
Nesse contexto complexo, o CEEIGEF (Centro de Educação Especial Integrada
Geny Ferreira) integra um panorama de instituições que acredita que o ensino precisa
abrir-se para o novo, para o improvável e descontínuo, pois é preciso sair dessa zona de
mesmice, que só leva à práticas antiquadas, para trilhar novos caminhos e novas formas de
aprender e ensinar, que garantam uma aprendizagem múltipla e dinâmica.
A instituição denominada Centro de Educação Especial Integrada Geny Ferreira,
criada em 04 de março de 1990, foi fundada e idealizada pelo casal Geny Ferreira de Sousa
e Aloysio Rodrigues de Sousa. Esta instituição foi uma reformulação estrutural e
ideológica da então Escola Saci Pererê; localizada na rua Raimundo Braga Rolim,22, no
bairro Dr. Zezé, Sousa-PB, CEP.58804-490.
A Escola Saci Pererê era privada e recebia as crianças de bairros vizinhos, no curso
de pré-escolar e alfabetização. No ano 1992, a Sra. Geny Ferreira de Sousa, encontrava-se
só a frente dos trabalhos, tendo em vista que Sr. Aloysio Rodrigues de Sousa, que até então
era tido como diretor da escola, havia se afastado da família e consequentemente da escola.
No ano, de 1993, foi implantado o trabalho de inclusão e a escola passou a atender pessoas
com várias deficiências. Uma vez que mudou o trabalho, modificou também o nome da
escola, passando a ser: Escola Especial de 1º Grau Saci Pererê, e em 1996, passou a
atender o ensino infantil/inclusivo, e ensino fundamental/inclusivo. No dia 09 de agosto de

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

1999, por via de consequência, foi necessário mudar a razão social da escola, a partir dessa
data passou a ser Centro de Educação Especial Integrada Geny Ferreira (CEEIGEF).
Esta escola enfrenta muitos desafios, entre eles o da formação de seus funcionários.
Apesar de que, os próprios documentos que regem a educação brasileira discutem tem
buscado dar subsídios para as escolas praticar a inclusão, o que ainda precisa ser efetivado
na prática.
Na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDB, de 1996, são
conjecturados ―professores com especialização adequada em nìvel médio ou superior, para
atendimento especializado, bem como professores do ensino regular capacitados para a
integração desses educando nas classes comuns‖. (Art. 58, III). Isto é, a tal lei permite
formação em nível médio, o que vai a contrapartida com a orientação geral para o
magistério, que, aliás, tem exigido e motivado a formação no ensino superior.
Sabe-se que ―A compreensão dos pressupostos que perpassam a práxis do professor
e a racionalidade pedagógica que fundamenta o trabalho docente implica perspectivas
teórico-metodológicas cujo olhar permite apreender a epistemologia da prática docente
(...)‖. (THERRIEN; CARVALHO, 2009.p.130). Nesse sentido, a racionalidade que deveria
orientar o trabalho pedagógico é uma junção dos princípios da teoria e da prática.
Diante disso, ao longo deste artigo discutiremos as práxis pedagógicas utilizadas
pelo corpo docente da escola CEEIGEF no desafio de empreender uma educação inclusiva.
Nesse sentido, não nos interessa apenas os aspectos teóricos, mas os operacionais usados
pelos docentes para enriquecer e tornar o ambiente de aprendizagem ainda mais profícuo.
É interessante problematizar os aspectos teóricos e metodológicos que orientam a
prática pedagógica dos professores da escola em questão. Para isso, será de fundamental
importância analisar documentos em que apareçam esses anseios, além de ouvir os relatos
do corpo docente da escola.
Assim, pretende-se aqui discutir o conceito de inclusão, com ênfase no Centro de
Educação Especial Integrada Geny Ferreira (CEEIGEF), problematizando a práxis desta
escola. Esta reflexão, ora proposta, integra uma pesquisa de Trabalho de Conclusão de
Curso. Desse modo, não pretendemos abarcar neste artigo, de forma extensa todas as
problematizações defendidas pelo TCC.

INCLUSÃO

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

A inclusão parece ser questão própria da nossa sociedade atual, no entanto ―seus
usos estão registrados desde os séculos XVI e XVII. Pela etimologia, sabemos que
inclusão foi usada na Academia dos Singulares de Lisboa já em1665‖. (LOPES, 2011,
285). Nesse sentido, o termo e a discussão sobre inclusão não parecem ser tão novos.
No Brasil, o debate sobre a inclusão remonta o século XVI, ―com médicos e
pedagogos que, desafiando os conceitos vigentes na época, acreditaram nas possibilidades
de indivìduos até então considerados ineducáveis‖. (MENDES, 2006, p.387)
O que mudou com o passar dos anos foi a forma de se conceber a inclusão. ―Os
seus usos, então, eram diferentes daqueles que vimos circular bem mais tarde,
principalmente se colocarmos como marco a Conferência de Educação para Todos,
ocorrida em 1990, em Jontiem na Tailândia‖. (LOPES, 2011, 285). Essa Conferência é um
dos mais importantes símbolos da luta pela garantia de educação para todos, acolhendo as
diferenças. Essa conferência também foi produto da efervescência dos anos de 1990 em
termos de discutir a inclusão.
―A partir da década de 1970, houve uma mudança, e as escolas comuns passaram a
aceitar crianças ou adolescentes deficientes em classes comuns, ou, pelo menos, em classes
especiais‖. (MENDES, 2006, p.390). Na década de 1980, houve uma grande campanha,
mobilização social e das Nações Unidas para que houvesse o cumprimento das leis que
determinavam a inclusão na escola de crianças e jovens deficientes. Esta década foi
marcada pelo intenso movimento a favor da integração da pessoa com deficiência, de
modo que buscou inserir o aluno na classe regular e também no ensino especial.
A educação de pessoas com deficiência nesse período ocorria de forma muito
tímida, sendo que nem as famílias destas pessoas e nem a escola estavam preparados para
esta árdua tarefa. Isso ocorria não somente pelo preconceito que ainda existia na mente das
pessoas em relação a este tema, mas também por causa da grande falta de informação e
formação continuada para os professores a respeito dessa temática. Ou seja, o investimento
ainda era pouco na formação de profissionais para lidar com tais pessoas, de modo a
preparar a escola para de fato integrar.
Portanto, nessa época essas pessoas começavam a ser integradas na rede regular de
ensino, entretanto, norteadas pelo que dizia a medicina sobre crianças com deficiências, ou
seja, ainda havia certo rótulo médico, em relação a indivíduos portadores de deficiências. E
nem todas as pessoas com deficiência possuía o mesmo direito, sendo que havia um

245
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

regulamento que decidia quais eram os alunos aptos para ingressarem na rede regular de
ensino. E os que não possuíam um determinado nível cognitivo, eram encaminhadas para
salas especiais, o que só disseminava o preconceito.
Neste período eram os discentes que tinham que se adaptarem à escola e não a
escola a eles, o que tornava a escola excludente, em vez de inclusiva. E o fato de serem os
alunos que tinham que se adaptarem fazia com que houvesse a evasão escolar por parte
dessas crianças, ou simplesmente a nunca ida delas à escola. Sendo, pois, assim, o que era
para ser integração, virou uma integração cheia de dificuldades e que não integrava.
―Atualmente, de uma maneira gradativa, vem sendo reconhecido que a inclusão, no
ambiente comum de ensino, daqueles que são comumente excluídos é essencial para a sua
dignidade e para o exercìcio dos seus direitos humanos‖ (MARTINS, p.18). O princìpio, a
filosofia da educação inclusiva consiste em incluir, juntar pessoas, sejam elas sem
deficiência ou portadoras de alguma deficiência, com o objetivo de todos juntos, formar
homens e mulheres capazes de atuar na sociedade em que se vive.
Desse modo, A educação inclusiva acredita que todos são capazes e pessoas com
deficiências também têm seus potenciais, o que os tornam importantes para suas famílias e
para toda a sociedade, de modo que devem sair de suas zonas de conforto, para irem para o
mundo estudar, trabalhar e atuar. A educação inclusiva aposta em uma escola para todos e
todas, sem discriminação e sem preconceito, sem estereótipos e mais humana.

CEEIGEF (CENTRO DE EDUCAÇÃO ESPECIAL INTEGRADA GENY


FERREIRA): INCLUSÃO E PRÁXIS.

O Centro de Educação Especial Integrada Geny Ferreira (CEEIGEF) é uma


referência em termos de inclusão no município de SOUSA-PB. A entidade é filantrópica,
mas possui convênio com a prefeitura desta cidade, recebendo assim recursos financeiros
da gestão municipal para se manter em exercício.
A escola especial foi criada para substituir a escola comum no
atendimento a alunos com deficiência, assumindo o compromisso da
escola comum, sem uma definição clara do seu próprio. É importante
esclarecer que houve um tempo em que se sentia que esses alunos não
eram capazes de arcar com o compromisso primordial da escola comum
de serem introduzidos no mundo social, cultural e científico, a não ser em
condições muito específicas e fora dessa escola. (BATISTA, 2005, p.07).

246
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Nessa perspectiva, é importante afirmar que o (CEEIGEF) enquanto instituição


escolar possui objetivos claros de oferecer oportunidade de educação digna e de qualidade
para aqueles que muitas vezes são ignorados ou marginalizados na escola comum.
Confronto de habilidades realizado pela escola

Fonte: Página do Ceeigef no Facebook¹.


O objetivo da escola é oferecer educação de qualidade para crianças e jovens
portadores de alguma deficiência, seja física ou mental. No CEEIGEF A inclusão é
percebida como uma responsabilidade coletiva da comunidade escolar. Nessa perspectiva
todos são responsáveis pelo êxito ou fracasso. (MARTINS, 2006, p.22)
Cercas de mil e trezentos alunos estão matriculadas no Centro de Educação
Especial Integrada Geny Ferreira, entre eles alunos que não possuem qualquer tipo de
deficiência.

A escola ao desenvolver o atendimento educacional especializado deve


oferecer todas as oportunidades possíveis para que nos espaços
educacionais em que ele aconteça o aluno seja incentivado a se expressar,
pesquisar, inventar hipóteses e reinventar o conhecimento livremente.
(BATISTA, 2005, p.16).
Os docentes do CEEIGEF acreditam em um processo de ensino e aprendizagem
baseado no ativismo dos alunos e em sua capacidade de construir saberes a partir da
liberdade intelectual. A escola promove um ensino baseado no desenvolvimento de
projetos e no engajamento dos alunos junto a eles.
247
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Na concepção inclusiva, a adaptação escolar ao conteúdo escolar é


realizada pelo próprio aluno e testemunha a sua emancipação intelectual.
Essa emancipação é consequência do processo de auto-regulação da
aprendizagem, em que o aluno assimila o novo conhecimento, de acordo
com suas possibilidades de incorporá-la ao que já sabe conhece.
(BATISTA, 2005, p.11)

Nesse sentido, a escola não busca disfarçar as deficiências, ao contrário encoraja os


alunos a superar seus próprios limites, muitas vezes impostos pela concepção da sociedade
e pela própria vivência familiar, que o coloca como incapaz.

XXII SEMANA DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA

Fonte: Página do Ceeigef no Facebook¹.

O Centro de Educação Especial Integrada Geny Ferreira propõe a inclusão a partir


da diversidade e não estabelece limites de diferença na escola para os alunos. Segundo
relatos da fundadora e diretora da escola Geny Ferreira, a escola já enfrentou muito
preconceito dos pais de alunos, que não queriam a possibilidade dos seus filhos ditos
normais e saudáveis estudar em meio a crianças deficientes.

248
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Assim, a escola busca uma aprendizagem inclusiva pautada na percepção do outro,


uma vez que ―é na escola que desenvolvemos o espìrito crìtico, a observação e o
reconhecimento do outro em todas as suas dimensões‖. (BATISTA, 2005, p.07).
Nossas pesquisas junto à instituição estão em andamento e pretendemos no
próximo trabalho apresentar esse processo de inclusão a partir de seus limites e
perspectivas, compreendendo a inclusão como uma realidade ainda não alcançada
totalmente, mas que depende de uma série de fatores, como a formação de professores, a
quebra de preconceitos das pessoas e um investimento pesado do estado; entre vários
outros fatores.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Promover e assegurar a inclusão não é tarefa fácil. O Centro de Educação Especial


Integrada Geny Ferreira (CEEIGEF), trava batalhas no âmbito pedagógico e social, além
do financeiro.
Incluir na diversidade, facilitando uma aprendizagem dinâmico e ativo tem sido a
meta buscada pela escola, desde sua fundação.
Ao trabalhar focando no desenvolvimento de um aluno livre e capaz de interagir na
sociedade em que vive, essa instituição de ensino tem quebrado o preconceito, combatido a
exclusão e tem tornado mais fácil a vida das famílias sousenses.
E mesmo em meio a adversidades, inclusive, para manter o projeto ao longo desses
anos, esse centro de educação tem trabalhado de acordo com os documentos que regem a
educação brasileira, no sentido de construir um ensino inovador, democrático e pleno, de
modo a vencer tudo que prende o discente e torna-lo um cidadão livre e democrático, com
os mesmos direitos e deveres de qualquer outro aluno.

REFERÊNCIAS

ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz. Por um ensino que deforme: o docente na


pós-modernidade. In: Áurea da Paz Pinheiro e Sandra C. A. Pelegrini. (Org.). Tempo,
Memória e Patrimônio Cultural. 1 ed. Teresina: EDUFPI, 2010, v. 1, p. 55-72..

CANÁRIO, Rui. A Escola tem futuro? Das promessas às incertezas. Porto Alegre:
Artmed, 2006

249
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

CÉSAR, M. A escola inclusiva enquanto espaço-tempo de diálogo de todos para todos. In:
RODRIGUES, David (org.), Perspectivas sobre a inclusão. Da educação à sociedade.
Porto: Porto Editora,2003

FOUCAULT, Michel. Os anormais. tradução de Eduardo Brandão. 2001.


______________ Microfísica do poder.13. ed., Rio de Janeiro: Edições Graal, 1998

LOPES, Maura Corcini. Norma, inclusão e governamentalidade neoliberal. Foucault:


filosofia & política. Belo Horizonte: Autêntica Editora, p. 283-298, 2011.

MACIEL, Maria Regina Cazzaniga. Portadores de deficiência: a questão da inclusão. São


Paulo: Em perspectiva, v. 14, n. 2, p. 51-56, 2000

MENDES, Enicéia Gonçalves. A radicalização do debate sobre inclusão escolar no


Brasil. Revista Brasileira de Educação, v. 11, n. 33, p. 387-405, 2006.

MARTINS, Lucia de Araújo Ramos; PIRES, Gláucia Nascimento da Luz; MELO FRLV.
Inclusão: compartilhando saberes. Petrópolis, RJ: Vozes, 2006.

SANCHES, Isabel; TEODORO, António. Da integração à inclusão escolar: cruzando


perspectivas e conceitos. Revista Lusófona de Educação, v. 8, n. 8, 2006.

SKLIAR, Carlos. A Educação e a Pergunta pelos Outros: Diferença, Alteridade,


Diversidade e os Outros ―Outros”.In.:Revista Ponto de Vista.n.05,Florianópolis:2003.

THERRIEN, Jacques; CARVALHO, Antônia Dalva França. O professor no trabalho:


epistemologia da prática e ação/cognição situada–elementos para a análise da práxis
pedagógica. Revista Brasileira de formação de professores, v. 1, n. 1, p. 129-147, 2009.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

ENTRE DISCIPLINA E COTIDIANO: O COLÉGIO NOSSA SENHORA


AUXILIADORA NA PERSPECTIVA DOS SEUS SUJEITOS HISTÓRICOS, EM
SOUSA-PB (1958-1969).

ANA PAULA ESTRELA


UFCG
[email protected]
RESUMO

O presente artigo tem como objetivo analisar os aspectos disciplinares e cotidianos vividos
por ex-alunas no Colégio Nossa Senhora Auxiliadora, na cidade de Sousa-PB, no período
de 1958 a 1969. Perceberemos o Colégio enquanto espaço de disciplina, verdade e poder,
sob a perspectiva foucaultiana, identificando como são voltados os olhares dos gestores do
educandário para formação de sujeitos dóceis, passivos e submissos. Apresentaremos como
a influência da Igreja Católica e seus princípios morais tornaram esta realidade disciplinar
mais presente. Refletiremos as vivências cotidianas dentro do Colégio como uma dimensão
da resistência dessa alunas à disciplina e normas impostas, baseando nos conceitos de
estratégias e táticas propostos pelo historiador Michel de Certeau.
Palavras-chave: Igreja Católica; Disciplina; Cotidiano; Memória.

INTRODUÇÃO

Este artigo tem como objetivo analisar, refletir e problematizar a relação entre a
disciplina escolar e o cotidiano vivido por ex-alunas no Colégio Nossa Senhora
Auxiliadora. A pesquisa se insere em aspectos culturais, através da memória e a história
que permite uma visão ampla da temática. Direcionamos a análise para questões de
vivências cotidianas na plena juventude dessas ex-alunas, em que permitem um leque de
possibilidades e problemáticas para compreensão desse ambiente escolar.
Com leituras sobre o livro clássico A Escrita da História91, de Michel De Certeau
(2002), entendemos que o lugar é aquele praticado pelo sujeito na pesquisa, em que o lugar
problematizado é o Colégio Nossa Senhora Auxiliadora, em que justamente ocorreram as
vivências, o cotidiano, os aspectos disciplinares e as influências da Igreja Católica na vida
dessas jovens durante seus períodos escolares. Este Colégio é situado na cidade de Sousa-
PB, desenvolvendo uma educação com ideais e princípios católicos, através da
Congregação das Filhas de Santa Tereza de Jesus. Assim, a educação proposta nesse
educandário é motivada na perspectiva da Congregação, pelos princípios de bons
costumes, da fé, solidariedade e valores morais com ética.
91
CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002.

251
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

A perspectiva teórica está contida nos estudos e perspectivas da História Cultural e


da História da Educação, em que a nossa problemática sobre o cotidiano e disciplina
escolar está inserida nesses campos de pesquisa. Autores como Michel De Certeau (2002),
Foucault (1996), Sandra Pesavento (2013), Durval Muniz (1994), são estudiosos clássicos
da historiografia dos estudos culturais e seus pensamentos também estão problematizados
nas perspectivas educacionais. Nossa pesquisa apresenta uma abordagem diferenciada, em
que os conceitos de estratégias e táticas juntamente com verdade, poder e disciplina,
dialogam entre si, mostrando uma multiplicidade de perspectivas que se aproximam e que
aconteceram após uma virada de temáticas, propostos pelos estudos culturais.
Certeau explica que o espaço ou lugar é aquele que acontece uma prática e que
pode ser modificada e realizada de diferentes formas. A escola em si é um lugar dinâmico,
em que se reorganiza cotidianamente entre estratégias e táticas, si reconstruindo a cada dia.
Assim, refletiremos as vivências cotidianas dentro do Colégio, baseando nos conceitos de
estratégias e táticas propostas pelo historiador.
Perceberemos o Colégio enquanto espaço de disciplina, verdade e poder, sob a
perspectiva foucaultiana, identificando como são voltados os olhares dos gestores do
educandário para formação de sujeitos dóceis, passivos e submissos. Além disso,
apresentaremos como a influência da Igreja Católica e seus princípios morais tornaram esta
realidade disciplinar mais presente.
Ao debruçar com a historiografia do Michel Foucault (1996) e seus pensamentos
sendo utilizados para educação, refletimos e chegamos à conclusão que a escola/colégio é
um espaço transformador intelectualmente, como também pessoalmente. Foucault tem sido
bastante importante para analisar as problemáticas educativas atuais e era um crítico de
instituições que propagavam discursos de verdade, problematizando o poder e a disciplina
existente nesses espaços e como isso modificava e influenciava para produção de sujeitos
cada vez mais voltados a passividade e submissão.
Em relação aos recursos metodológicos teremos as fontes orais, que são bastante
utilizadas nas pesquisas com perspectivas historiográficas culturais, em que o historiador
problematiza a memória dos sujeitos, possibilitando a vivência relatada dos fatos numa
coletividade. Apresentaremos uma variedade de fontes, tais como: a escrita, a oral e a
iconográfica, fazendo com que ocorra assim, uma relação no campo da História Cultural.
Assim, iremos utilizar como metodologia a História Oral, realizando entrevistas
gravadas com cinco ex-alunas, uma ex-diretora e uma ex-professora que vivenciaram esses

252
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

momentos nesse determinado período, em que estas participaram do passado e estão nos
possibilitando com seus depoimentos compreender o presente.
Os discursos e suas verdades também permitem uma análise crítica do nosso objeto
de estudo, entendendo como isso está presente e se perpassou a ponto de nos tornar sujeitos
desses discursos, de ver como eles se naturalizaram, ficando hegemônicos, ―a partir de
práticas mínimas, de ínfimos enunciados, de cotidianas e institucionalizadas regras, normas
e exercìcios‖ (FISCHER, 2003, p. 386).
A relevância da pesquisa está em perceber, problematizar e desvendar o que se
passava de fato nesse espaço educacional religioso, através dos depoimentos dos próprios
atores, isto é, as ex-alunas. Estas ao descreverem suas lembranças, pela memória,
colocarão uma nova visão do Colégio. Não será mais o discurso das madres e superioras
que dirigem o Colégio, a serem ouvidos e analisados. A voz destas alunas é o que terá
ênfase e destaque e a partir disso, haverá um confronto de discursos e assim, entenderemos
o que ocorria neste espaço.
O recorte temporal tem como marco o ano de 1958, em que se implantou o Colégio
na cidade de Sousa até o ano de 1969, em que se percebe de destaque nesse recorte é o
período do contexto político do nosso país, em que a Ditadura Militar estava instaurada,
refletindo em um momento onde o conservadorismo era forte, se revelando também na
educação. A educação brasileira esteve ligada a esse processo histórico e assim, iremos
perceber até que ponto o Estado esteve relacionado com a disciplina e moralidade católica
neste educandário sousense.
Como recorte espacial é destacado a cidade de Sousa92 que é marcada por sua
referência em aspectos políticos, econômicos, culturais e em destaque religioso, dando uma
ênfase notória a importância do C.N.S.A93. Sousa teve seu desenvolvimento econômico
através da sua elite, que detinha da produção econômica e ansiou por uma educação que
fosse adequada a realidade deles. Então a sociedade sousense, juntamente com o padre
João Cartaxo Rolim conseguiram implantar na cidade um Colégio religioso que
propiciasse a formação educacional e religiosa da mocidade feminina.

92
A formação do núcleo urbano de Sousa iniciou com as grandes fazendas que surgiram as margens do Rio
do Peixe. A economia sousense seguia a produção agrícola algodoeira, sendo reflexo do Brasil que tinha o
algodão como principal produto de exportação, possibilitando assim o crescimento urbano. A urbanização
intensificou em Sousa a partir da década de 1910 com o aumento das atividades comerciais, venda e
comercialização dos produtos agropecuários produzidos.
93
Abreviação do nome: Colégio Nossa Senhora Auxiliadora.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Portanto, utilizaremos então para questionar e analisar a pesquisa, destes conceitos


de disciplina, verdade, poder, influência da Igreja Católica, cotidiano, estratégias e táticas,
análises de discursos, além da memória e sua importância nos estudos historiográficos, que
são perspectivas semelhantes à temática proposta para que o desenvolvimento e
compreensão sejam efetivados.

C.N.S.A: O HISTÓRICO DE SUA IMPLANTAÇÃO EM SOUSA

Fizemos um levantamento por meio da pesquisa na cidade de Sousa com relação às


obras historiográficas acerca do Colégio Nossa Senhora Auxiliadora para problematizar o
que se foi discutido sobre a implantação desse educandário, que transformou a educação da
cidade. Conseguimos ter contato com os seguintes livros: Antes que ninguém me conte
(1986); Além do Rio (2012) e a Revista Comemorativa dos 50 anos do Colégio Nossa
Senhora Auxiliadora (2008).
Julieta Gadelha faz uma narração da fundação de cada escola e colégio existente na
cidade no período que desenvolveu seu livro. Não cabe aqui analisar cada um deles, pois
nosso objeto de estudo é o Colégio Nossa Senhora Auxiliadora. Ela faz um breve
comentário sobre o Colégio, sem fazer uma análise crítica do mesmo, destacando a
fundação do educandário:

―O Ginásio Nossa Senhora Auxiliadora chegou, depois de uma série de


trabalhos sem êxito, pelo Cônego Oriel Fernandes, cabendo ao padre João
Cartaxo Rolim, vigário da Paróquia de Nossa Senhora dos Remédios, o
mérito de sua instalação, através da orientação de irmãs religiosas, Ordem
de Santa Teresa, do Ceará. Foi fundado em março de 1958 e funciona no
Antigo prédio da Caridade, doado pelos herdeiros, com a condição de
que, no momento em que deixar de servir à causa educacional, voltará
aos seus legìtimos donos‖ (GADELHA, 1986, p. 70).

Seu trabalho tem a finalidade de exaltar ou destacar os grandes acontecimentos e


personagens da história da cidade, sendo algo comum nas historiografias da época, sem ter
uma necessidade de se discutir os significados e divergências desse tipo de narrativa. A
autora Rafaela Pereira94 em sua tese analisa sobre esse tipo de historiografia marcante,
destacando a desenvolvida na cidade de Sousa:

94
DÁRIO, Rafaela Pereira. Nos caminhos do progresso, nas veredas da modernização: representações da
cidade de Sousa-PB. Dissertação – Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal da
Paraíba, João Pessoa – PB, 2012.

254
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

―Até a década de 1980 era muito comum se deparar com trabalhos sobre
as cidades onde a preocupação maior era elevar os grandes vultos, evocar
sobre a fundação da urbe, sem, contudo, realizarem análise crítica em
seus conteúdos, ou seja, tais trabalhos refletiam a postura da época, não
podendo ser considerados inferiores por conta disso, tendo em vista a
grande contribuição dos mesmos na e para a história das cidades‖
(DÁRIO, 2012, p. 45).

De maneira semelhante, o livro Além do Rio (2012) de Augusto Ferraz é uma obra
que apresenta um panorama fotográfico da cidade sousense, em que o autor buscou fazer
um álbum fotográfico da mesma, apresentando referências e notas sobre cada imagem.
Ferraz destaca que a finalidade de seu trabalho era registrar a evolução arquitetônica da
cidade no século XX, mostrando as manifestações dos costumes, as atividades sociais,
comerciais e de lazer durante este período, possibilitando aos pesquisadores em geral uma
fonte de pesquisa.
A vinda da Congregação das Filhas de Santa Teresa de Jesus para cidade ocorreu
após a chegada de Padre João Cartaxo Rolim que se encarregou de ir até a cidade do Crato,
sob a orientação do bispo Dom Zacarias Rolim de Moura. Chegando à cidade, Padre João
conseguiu trazer a Madre Teresa Machado à cidade sousense, que na época era Superiora
Maior da Ordem, e a mesma aceitou o pedido de implantar um colégio religioso.
Percebemos que nas produções havia uma visão de que devido à cidade ter uma
forte religiosidade, que foi marcada pelo suposto Milagre Eucarístico, a necessidade de um
colégio religioso em Sousa foi marcante. Isto é bastante presente na Revista Comemorativa
dos 50 anos do Colégio Nossa Senhora Auxiliadora. A mesma foi uma edição festiva do
Colégio, que visou relatar momentos, vivências, contexto e depoimentos sobre o mesmo,
para homenagear nessa data significativa. Assim como nos dois trabalhos acima, não havia
uma análise problemática do Colégio na revista, mas alguns depoimentos e textos escritos
nos auxiliaram para investigar sobre o C.N.S.A. A princípio a gestora Madre Aurélia, tem
em várias páginas seus textos sendo destacados, em que a mesma foi diretora desse espaço,
chegando à cidade em 21 de abril de 1965 e foi a quinta Superiora Geral da Congregação,
mostrando ter um conhecimento do Colégio e também do papel da Congregação.
Ela faz um panorama da implantação do Colégio, afirmando que a influência
católica presente no lugar, possibilitou crescer o desejo do ―povo‖ por um educandário
religioso. Com isto, uma questão surgiu: quem era este povo que desejava um educandário
religioso? Era a elite sousense, que até então na cidade não existia um colégio que fosse de

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

muita influência religiosa e que propiciasse um ensino melhor do que o público ou seria a
maioria da população, que nesse contexto da educação nacional, apenas uma minoria tinha
acesso a educação?
Entendemos assim que as congregações religiosas, a principio, têm um ideal de
servir a sociedade e, sobretudo, aqueles mais necessitados. A Congregação das Filhas de
Santa Teresa de Jesus através do bispo Dom Quintino tinha esse pensamento, mas que ao
longo do tempo, as instituições educacionais foram sendo destinada a elite, que tinha
recursos para colocar suas filhas nos educandários. O mesmo aconteceu em Sousa, pois o
Colégio passou a ser destinado às jovens moças da elite sousense, ganhando o educandário
um prestígio sem igual.

A INFLUÊNCIA DA IGREJA CATÓLICA NA EDUCAÇÃO E SUA


MORALIDADE REFLETIDA NA DISCIPLINA DO EDUCANDÁRIO

A Igreja Católica tem forte influência na participação das construções das


instituições de ensino, consolidando sua hegemonia na formação das elites dirigentes por
meio da criação de vários colégios católicos. Nosso estado teve a atuação de Dom Adauto,
que deu apoio à instalação de Colégios Católicos na Parahyba do Norte, legitimando ações
para formação de sacerdotes que iriam ensinar em tais Colégios e trouxe ordens e
congregações católicas para administrarem as escolas locais, consolidando a instrução
confessional na Paraíba. Isso tem semelhança com a influência de Dom Quintino e também
a do Padre João Cartaxo Rolim, que foi importante para concretização da implantação do
Colégio Nossa Senhora Auxiliadora, compreendendo que a fundação desses colégios
religiosos era realizada sob a forte predominância de pessoas religiosas da Igreja Católica.
A disciplina que impera nos colégios religiosos se volta para uma rigidez com suas
alunas, sendo uma característica marcante da educação religiosa, tendo além dos conteúdos
escolares, uma preocupação com a oração, o cuidado com o comportamento das meninas,
os valores éticos, entre outros aspectos.
Ao longo dos séculos, o papel dado as mulheres historicamente no nosso país foi de
submissão aos homens, sofrendo com as desigualdades, os preconceitos e a moralidade que
as prendiam diante da sociedade. No período republicano, essa mentalidade se perpetuou e
durou por um longo período, que até hoje percebemos o reflexo disso no nosso cotidiano e
na sociedade.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Nesse contexto, as jovens moças que tiveram suas vidas entrelaçadas aos costumes
e valores da época sentiram as consequências do extremo moralismo e de suas funções já
preestabelecidas pelas suas famílias. A elas caberiam as funções de uma boa esposa, rainha
do seu lar e uma boa mãe, auxiliando e aceitando a vida proporcionada pelo seu esposo,
seja ela qual for.
Na coleção História da Vida Privada no Brasil 3 (1998), o artigo das autoras
Marina Maluf e Maria Lúcia, discute esse papel que era determinada para as mulheres,
sendo isso a realidade delas, em que suas trajetórias já estavam decididas pelos seus pais,
cabendo a elas apenas aceitar tal situação.
Esse tripé foi expandido tanto pela religiosidade católica quanto pela mentalidade
da sociedade da época, em que se difundiu a ponto de se tornar algo normal e que ao fugir
dessa realidade e desenvolver os mecanismos de resistências, foi considerado um equívoco
que deveria ser combatido. Esse era o discurso dos conservadores, que se estendeu para
população, seja ela de qualquer esfera econômica e social. Segundo as autoras, ―a imagem
da mãe-esposa-dona de casa como a principal e mais importante função da mulher
correspondia àquilo que era pregado pela Igreja, ensinado por médicos e juristas,
legitimado pelo Estado e divulgado pela imprensa‖ (MALUF; MOTT, p. 374, 1998).
Nesse contexto, havia o incentivo ao casamento, que era enfatizado na educação,
sobretudo a religiosa, visando moldar os costumes, os pensamentos, o comportamento e
também o caráter. Havia então muitos conselhos, regras e fórmulas para que o matrimônio
fosse preservado, tanto as mulheres, como também os homens eram instruídos a praticar
isso.
Assim abordaremos essas questões ao realizar as entrevistas, em que perguntaremos
como essa realidade social estava presente em suas vidas; o que as marcaram em seus
percursos no Colégio Nossa Senhora Auxiliadora; os conflitos; o cotidiano; a influência
católica; a disciplina imposta e suas trajetórias de vida. Com as análises dos depoimentos,
que serão transformados em fontes historiográficas, perceberemos como essa realidade
predominava e quais os mecanismos de luta e resistências essas senhoras desenvolveram.
O papel profissional que a cabia a mulher, pertencente ou não da elite, era o
magistério, em que isso estava bastante perpassado em suas vidas, através da religiosidade
forte que marcava o cariri cearense, como também a cidade de Sousa. Pessoas como Dom
Adauto, Dom Quintino, Padre Ibiapina, Padre João Cartaxo Rolim, entre outros, tinham
uma forte influência na sociedade do Ceará e em Sousa e que a elite então destinava suas

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

filhas para vivenciar a religiosidade. Para esse período era algo bastante comum e que não
havia discussão ou receio em obter essa educação.
As mulheres se profissionalizavam ao oficio de serem professoras, sob os
princípios católicos, em que sua educação era instruída de valores, comportamentos e
costumes regulados pela Igreja Católica e legitimado pelo Estado. Porém, segundo Tatiana
Medeiros, a educação profissionalizantes das mulheres, no início, não foi bem aceito.
―Ressalte-se que no Brasil, mais especificamente na Parahyba do Norte,
ainda vivia-se sob a égide total das tradições patriarcalistas mais
arraigadas, desfavorável à presença da mulher na vida pública, que, por
conseguinte, recomendava a manutenção dos padrões consagrados ao
feminino na ordem familiar, ou seja, na dependência ao marido e as
atividades de ocupação doméstica‖ (SANTOS, p. 4, 2010).

As escolas e colégios religiosos visavam educar essas mulheres para serem


professoras, pois essa profissão não representava uma forma de retirar o papel central
delas, que era cuidar do lar e a maternidade. Assim dava para conciliar as funções e era
algo aceito pela sociedade. Tatiana ressalta que ―historicamente, tinha-se o discurso de que
não havia nada mais natural para a mulher do que a profissão de professora, essa condição
profissional era a sua principal marca identitária‖ (2010, p. 7-8).
Portanto, essa rigidez era devido à ligação da instituição de ensino com a Igreja
Católica, em que impedia o questionamento das alunas ou seus pensamentos e ideias na
aula, fazendo com que elas se sentissem intimidadas. O ensino religioso tem o problema de
não se compreender as várias religiões, devido às instituições privadas continuarem
estabelecendo uma ordem católica, mantendo a sociedade católica e uma elite dominante
ligada à cristandade, com o discurso de se combater os maus hábitos, pois possibilitava a
sociedade viver livre de certos pecados. Assim, entendemos que tanto em escolas públicas
quanto os colégios privados, o ensino religioso é feito para catequizar e educar as alunas na
fé católica.

C.N.S.A: UM ESPAÇO DISCIPLINADOR E DE VIVÊNCIAS COTIDIANAS

O filósofo Foucault e seus questionamentos, análises e conclusões tem sido


bastante utilizado para o embasamento nas problemáticas educativas atuais. Ele era crítico
de instituições que propagavam discursos de verdade, problematizando o poder e a
disciplina existente nesses espaços e como isso modificava e influenciava para produção de
sujeitos cada vez mais voltados a passividade e submissão. Com base nisso, evidenciamos

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

que iremos a partir da perspectiva foucaultiana, enxergar o nosso redor com clareza e
realidade, o que de fato essas instituições têm por trás de seus discursos de verdade,
sobretudo no Colégio Nossa Senhora Auxiliadora.

―É um mecanismo de poder que permite extrair dos corpos tempo e


trabalho, mais do que bens e riqueza. É um tipo de poder que se exerce
continuamente por vigilância e não de forma descontínua por sistemas de
tributos e de obrigações crônicas‖ (FOUCAULT, 1999, p. 42).

O artigo das autoras Caroline Caciano e Giuliana Arboite da Silva, denominado


Foucault e Educação: As práticas de poder e a escola atual (2012), explicam que a
educação não foi pesquisada pelo filósofo Foucault, mas que ele buscava conhecer o
sujeito, sendo que era ―em uma análise minuciosa do sujeito que Foucault apresentava uma
nova perspectiva para educação‖ (CACIANO e ARBOITE, 2012, p.2).
O filósofo em seu livro clássico Vigiar e Punir (1996), analisou historicamente
exército, fábricas, prisões, asilos e escolas, percebendo atitudes de modificações no corpo e
mente dos sujeitos, surgindo à percepção do homem que pode ser moldado, disciplinado e
submisso, através de normas e punições, pois o objetivo era que exercessem em suas
atividades como cidadãos ―dóceis‖ para não desrespeitar as normas estabelecidas pelo
poder do Estado. Elas explicam que ―Foucault ressalta que nas escolas a disciplina é
moldada a partir de uma distribuição dos indivíduos no espaço utilizando técnicas para
obter um sujeito cada vez mais submisso‖. (CACIANO e ARBOITE, 2012, p.3).
Com isso, as instituições educativas apresentam discursos de ―verdades‖ para que
sejam assimilados e respeitados. Segundo o artigo da autora Jennifer Gore, intitulado
Foucault e Educação: Fascinantes desafios (1994), analisa que ―a ‗verdade‘ está
circuladamente, ligada a sistemas de poder, que a produzem e a apóiam, e a efeitos de
poder que ela induz e que a reproduzem‖. (GORE, 1994, p.2). Este poder está relacionado
não apenas a professora, como também aos diretores, supervisores do espaço escolar, aos
pais, estudantes e o governo, que possuem e exercem seus poderes nas instituições
educativas.
A autora explica que Foucault chama atenção para reconsiderar pressupostos sobre
a escolarização e olhar atentamente para as chamadas ―micropráticas‖ do poder nas
instituições educativas. Como nosso objeto de análise é um espaço escolar religioso, o
papel e influência da Igreja Católica, com seus princípios morais, não pode deixar de ser

259
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

problematizado. Sabemos do quanto a Igreja desenvolve seus discursos de verdade e


pratica o seu poder em sociedade, desde muito tempo.
Foucault analisou que ―o poder disciplinar se exerce tornando-se invisível: impondo
aos que submete um princípio de visibilidade obrigatória‖ (GORE, 1994, p.4). Com base
nisso, perceberemos esta noção disciplinar invisível através dos depoimentos orais das ex-
alunas, em que tornará possível a compreensão desta prática pela visão dos seus próprios
sujeitos históricos envolvidos.
Com isso, ao entrevistar as alunas poderemos questionar e discutir, como e de que
forma elas foram modificadas, através das normas, que deveriam ser respeitadas. Estas
jovens entendiam que as normas eram importantes, pois acreditavam que seguir as regras
era o correto, sobretudo por terem como disciplinadoras madres religiosas. E Foucault com
seus questionamentos, problematizou instituições que utilizavam práticas e usos de poder,
verdade e disciplina, pois isso a seu ver transformaria os sujeitos/pessoas em passivos,
obedientes e submissos.
Os conceitos de estratégias e táticas permitem a análise do cotidiano vivenciado
pelas ex-alunas no Colégio Auxiliadora, em que se entende por estratégias um ―lugar
suscetível de ser circunscrito como algo próprio‖ e que ―podem gerir as relações com uma
exterioridade‖. O conceito de tática diz respeito ―a ação calculada que é determinada pela
ausência de um próprio, não tendo por lugar senão o do outro‖ (CERTEAU, 1990, p.99-
100).
Marília95 em seu artigo sintetiza a diferença desses dois conceitos chaves da obra de
Certeau. Ela explica que as estratégias postulam um lugar do poder e do querer próprio, em
que são capazes de produzir e impor. As táticas permitem apenas utilizar, manipular e
alterar algo, sendo os mecanismos de resistências desenvolvidos. Ela complementa que a
tática ―é a arte do fraco, sem lugar próprio, comandada pela ausência de um poder‖ e que
na ―pesquisa do cotidiano significa inscrever-se de uma maneira de ver as coisas, para
outra‖ (DURAN, 2012, p.45).
Marília explica que é necessário considerar os saberes e valores que permeavam as
práticas do espaço escolar, suas estratégias e táticas próprias, em que segundo Marília
―busca a compreensão de suas regras próprias e de seu desenvolvimento‖ (DURAN, 2007,

95
DURAN, Marília Claret Geraes. Uma leitura do cotidiano escolar com Michel de Certeau. International
Studies on Law and Education, set-dez, 2012.

260
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

p.121). Além disso, identificaremos como foram desenvolvidas essas táticas para resistir ao
poder disciplinar que estava sendo imposto.
É necessário compreender como esses dois conceitos centrais da pesquisa têm em
comum e o que divergem. Foucault e Certeau são autores que travaram os debates sobre os
aspectos disciplinares e seus mecanismos de resistências. O primeiro analisou as relações
de poder, incluindo as disciplinares e o segundo analisou o cotidiano entre as estratégias e
as táticas, percebendo que nas normas e imposições podem-se encontrar resistências e
assim desenvolver novas formas de organização na sociedade.
As autoras Larissa Meira e Emilayne Souto 96 interpretam os conceitos de
estratégias e táticas:

―[...] isso quer dizer que a estratégia é fundada sobre um ―lugar próprio‖
que autoriza uma variedade de formas de domínio de saberes,
conhecimentos e verdades, permitindo atribuir ao ―outro‖ uma situação
de dependência, estranheza, ausência de autonomia. A estratégia,
portanto, é organizada sobre (e por meio) as relações de poder. A tática,
por sua vez, é uma ação calculada determinada pela ausência de um
―lugar próprio‖ e é justamente a carência dessa condição que permite
transformar sua máxima debilidade em sua potencial condição de
fortaleza. São as táticas que infiltradas na heterogeneidade social,
esquivam-se, insinuam-se, contrapõem-se‖ (VASCONCELOS; SOUTO,
2014, p.3).

Elas discutem as divergências entre os conceitos de Certeau e a análise de Foucault


sobre o poder disciplinar:

―Assim, as estratégias e táticas não estariam em pólos opostos ou


separados, uma vez que os modelos estratégicos operariam sobre a
subjetividade ao possibilitar uma instrospecção disciplinaria,
convertendo, dessa forma, o sujeito no algoz de sua própria submissão.
Logo, enquanto Certeau proporciona novos olhares sobre os horizontes
da aparente reprodução da norma, Foucault não nos deixa olvidar que as
estratégias podem incorporar as dissidências, apropriá-las, ressignificá-
las‖ (VASCONCELOS; SOUTO, 2014, p.5).

Portanto, o que aproxima esses dois autores são as resistências, em que Foucault
trata do poder disciplinar, suas formas, técnicas e discurso, enquanto Certeau também
discute esse aspecto do poder, mas focaliza as astúcias da tática, deixando claro que esses

96
VASCONCELOS, Larissa Meira de; SOUTO, Emilayne. Notas para um debate entre Michel Foucault e
Michel De Certeau. 1º Encontro Internacional de Estudos Foucaultianos: Governamentalidade e Segurança
João Pessoa-PB, 2014.

261
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

autores investigaram as variadas formas de resistir às normas impostas. As táticas são por
vezes invisíveis, mas existem e são politizadas, atuando nas ações cotidianas.

MEMÓRIA E HISTÓRIA: DISCUTINDO COM AS FONTES

Nossa pesquisa tem como fundamento metodológico o conceito de memória, tendo


como principal fonte o depoimento oral, em que realizaremos a sistematização e
interpretação da disciplina, cotidiano e influências católicas, em que essas vivências estão
na formação dessas alunas. Assim, iremos perceber por meio das narrativas e dos
documentos como cada história dessas alunas individualmente, foram influenciadas e
também condicionadas ao contexto do Colégio.
Na dissertação da autora Tatiana de Medeiros Santos 97, a mesma explica que ―a
memória é também uma construção do passado, mas pautada em emoções e vivências; ela
é flexível, e os eventos são lembrados à luz da experiência subseqüente e das necessidades
do presente‖ (SANTOS, 2009, p.33). Ela enfatiza que há diferenças entre a história e a
memória, mas que isso possibilita os dois conceitos se complementarem.
Os estudos da memória serão evidenciados pela história oral, com os depoimentos
gravados e que iremos fazer a transcrição para serem analisados como fonte. Para Tatiana,
isto se tornou possìvel, pois houve ―contribuições trazidas pela Nova História Cultural que
passaram a enriquecer o campo de ação da história e com a utilização da evidência oral
desfazem-se as barreiras entre os críticos e o público, entre a instituição educacional e o
mundo exterior‖ (SANTOS, 2009, p. 37).
As alunas irão através dos seus depoimentos apresentarem suas memórias,
relatando suas experiências sociais, suas subjetividades, rememorando as lembranças que
ficaram enraizadas nas suas experiências ao longo do tempo que elas vivem. Tatiana
analisa que a ―memória é a capacidade de lembrar por excelência o que passou em
determinada época e a história deve reproduzir de geração a geração, os fatos dessa
memória, em um constante envolvimento prolongando o original‖ (SANTOS, 2009, p.43).
Para ela, ―a função da memória é o conhecimento do passado que se organiza,
ordena o tempo e situa-se cronologicamente através de cada indivíduo que realiza o ato de

97
SANTOS, Tatiana de Medeiros. Magistério em declínio: histórias e memórias de ex-alunas do Magistério
do Colégio Nossa Senhora das Neves (1970). Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal
da Paraíba, João Pessoa, 2009.

262
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

rememorar‖ (SANTOS, 2009, p.43). Assim, perceberemos que a escola é um espaço que
está propicio para memória social.
Durval Muniz problematiza a memória e sua relação com a história, apontando as
diferenças entre eles, pois a História interpreta o fato ocorrido posteriormente, trabalhando
com as experiências de vários grupos e a memória trabalha internamente, ficando presa a
uma visão de grupo. Ele explica o porquê a História é violação:

―Deste ponto de vista mais uma vez a História é violação; o historiador se


acha no direito de introduzir-se na vida de diferentes grupos e pessoas,
em diferentes épocas, emitir juízos de valor quase sempre presididos pela
busca das diferenças, já que o passado na História é construído como uma
diferença do presente. Enquanto as memórias falam de si ou dos seus
procurando encontrar uma estabilidade, uma identidade entre o passado e
o presente, o passado é construído como uma semelhança do presente,
por isso, as recordações estão cheias de reclamações em relação às
mudanças, às diferenças e busquem sempre preservar a idéia de uma
essência que atravessa os tempos‖ (MUNIZ, 1994, pg.49).

Segundo Muniz, a memória dos sujeitos tem uma afetividade que surge pela
emoção e que trazem também um nível imaginativo através das imagens e sensações
vividas socialmente.
―[...] as memórias possuem ainda um nível afetivo que está ligado à
forma de sensibilidade social que está preso o individuo. Ela surge das
emoções que depositamos em cada recordação, ela é como o gosto que
nos provêm da sensação evocada ou lembrada‖ (MUNIZ, 1994, pg.45).

Portanto, nossa pesquisa permite além do diálogo da História da Educação com a


História Cultural, possibilita uma interação com as fontes, em que os depoimentos orais
serão analisados juntamente com as fotografias e imagens proporcionadas pelas próprias
entrevistadas e pelo Memorial do Colégio Auxiliadora. Utilizaremos também de
Regimentos Escolares e das referências bibliográficas do referencial teórico já citado. Com
isso, contribuirá para uma pesquisa completa desenvolvendo conexões e interpretações
propostas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A história das instituições educativas também está voltada para as políticas locais,
em suas relações com o poder econômico e também ao social. Percebemos isto ao fato da
elite sousense ter tido a participação nesse processo de implantação do educandário nesta

263
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

cidade. Com base nisso, entendemos que é por meio da História da Educação que
conseguimos reconstituir as transformações que ocorreram no campo educacional, de
ensino e de pesquisa, através das diversas instituições escolares e suas relações políticas
educativas, suas ideologias e o âmbito social.
A História da Educação permite a reflexão, investigação e problematização da
atuação das instituições escolares, fornecendo uma compreensão do processo evolutivo
educacional, da sociedade e da cultura. É por meio da investigação das instituições
escolares que percebemos o mesmo como lugar de práticas políticas, pedagógicas,
religiosas e culturais, permitindo entender como se configurou este espaço, o cotidiano, a
disciplina, as questões econômicas e sociais.
A partir do que foi discutido, concluímos que esse educandário desenvolveu, nesse
recorte temporal, a predominância da disciplina, em que perpassava devidos os fatores
políticos, econômicos, culturais e a mentalidade da época. Os discursos prevaleciam à
verdade que se queriam evidenciar, através do conservadorismo e na moralidade que foram
influenciados pela Igreja Católica.
A preparação educacional dessas jovens destacou que as escolhas foram
preestabelecidas e que cabia a elas aceitar ou elas enxergavam como normal, pois o
respeito e a obediência estavam atrelados a submissão e passividade. Diante disso, as ex-
alunas vão expor como desenvolveram seus mecanismos de resistências, segundo o
conceito de Certeau as suas táticas, que reflete a ausência de poder, mas também utiliza
maneiras de alterar as imposições sofridas.
Portanto, destacamos de maneira geral, os conceitos que estão dando suporte ao
entendimento da temática, as metodologias que serão necessárias para analisar as fontes e
as compreensões efetuadas, através do levantamento bibliográfico.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembranças de velhos. TA, 1994.

CACIANO, Caroline; ARBOITE DA SILVA, Giuliana . Foucault e Educação: as práticas


de poder e a escola atual. [S.l.: s.n.], 2012. 1-11 p. v. 2.

CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano: artes de fazer. Petropolis: 12. Ed.
Vozes, 1994.

264
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

DA ROSA, Renata Vidica Marques. Feminização do Magistério: representações e espaço


docente. Revista Pandora Brasil – edição especial, nº4 – Cultura e Materialidade escolar,
2011.
FERRAZ, Augusto. Além do Rio – Uma fotografia da Paisagem Urbana. João Pessoa:
AGT Produções, 2012.

FISCHER, Rosa Maria Bueno. Foucault revoluciona a pesquisa em


educação?. Perspectiva, v. 21, n. 2, p. 371-389, 2003.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. Vozes, 1996.

GADELHA, Julieta Pordeus. Antes que Ninguém me Conte. João Pessoa: A UNIÃO –
Superintendência de Imprensa e Editora, 1986.

GOIANA, Ivaneide Severo; DE QUEIROZ, Zuleide Fernandes. Educação na


Congregação das Filhas de Santa Teresa de Jesus: Um resgate histórico das Instituições
Teresianas na região do Cariri. Universidade Regional do Cariri – URCA, p.1-12.

GORE, Jennifer M. ―Foucault e educação: fascinantes desafios‖. In: Silva, Tomaz Tadeu.
O sujeito da educação. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 9-20.

MUNIZ, Durval. Violar memórias e gestar a História: Abordagem a uma problemática


fecunda que torna a tarefa do historiador um ―parto difìcil‖. Clio - Série História do
Nordeste, nº 15, p. 39-52, 1994.
Revista Comemorativa dos 50 anos do Colégio Nossa Senhora Auxiliadora. Sousa-PB:
Edição Comemorativa Jubileu de Ouro 50 anos, dez. 2008.

SANTOS, Tatiana Medeiros. Reminiscências de ex-alunas da última turma do curso


normal do Colégio Nossa Senhora das Neves (1970). Universidade Federal de Recife,
2010.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & história cultural. 2ª Edição. Belo Horizonte:
Autêntica, p. 1-132, 2005.

265
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

COMPREENDENDO O PROCESSO EDUCACIONAL ATRAVÉS DO PAPEL DO


PROFESSOR: UMA BREVE ANALISE DA REVISTA DO ENSINO DA DÉCADA
DE 30

98
MARIA PEREIRA DE SOUSA
[email protected]

―Porque todas as coisas da vida


tem que ser feita com carinho.‖
(D. Rosa, 2017)

RESUMO
Este trabalho propõe uma discussão sobre o processo educacional na década de 1930,
através da publicação de artigos da Revista do Ensino, um editorial trimensal de
responsabilidade da Diretoria do Ensino Primário do Estado da Paraíba, publicada através
das Officinas da Imprensa Official em João Pessoa. De forma sistematizada esse estudo
através de leituras e interpretação de alguns artigos dos exemplares do Anno I N.1 de abril
de 1932, Anno II N.2 julho de 1932, Anno III N.10 julho de 1934 e Anno V N. 14
Dezembro de 1937, busca compreender os principais métodos didáticos utilizados e a
postura do professor desse período, a fim de refletir como o processo de ensino-
aprendizagem estava pensado e ate que ponto a postura adotada pelo professor era
responsável por essa tarefa.
Palavras-chave: Revista do Ensino; ensino; papel do professor.

A REVISTA DO ENSINO E SEU PÚBLICO ALVO

A fonte desse estudo e base de analise para compreendermos parte do processo de


ensino e aprendizagem é a Revista de Ensino, uma publicação trimensal de
responsabilidade da Diretoria do Ensino Primário do Estado da Paraíba publicada através
das Officinas da Imprensa Official em João Pessoa na década de 1930. Foi utilizada a
leitura e a interpretação de alguns artigos dos exemplares do Anno I nº1 de abril de 1932,
Anno II nº 2 de julho de 1932, Anno III nº 10 julho de 1934 e Anno V nº 14 Dezembro de
1937.
Segundo artigo publicado na sua edição de 1932 por Brito e Ribeiro99 a revista em
sua gênese veio para atender a necessidade de um órgão de publicação que fossem

98
Graduada em Licenciatura plena em História pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG- CFP)
2015.
99
Revista do Ensino, Anno I N. 2 Julho de 1932. s/p.

266
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

divulgados assuntos de ordem técnica e profissional, servindo como uma espécie de


estimulo a todos que se interessassem pelos problemas e assuntos ligados à educação da
Paraíba.
Sob o decreto de N.287, de 18 de maio de 1932100 a ―Revista do Ensino‖ torna-se
obrigatória a sua assinatura para todo o professor público do estado. Segundo esse decreto:

Será obrigatório para todos os funcionários do magistério primaraio e


normal a assinatura da Revista do Ensino mediante a contribuição de seis
mil réis (6$000) anual, em prestações semestraes de três mil réis (3$000).
A prestação semestral será descontada em folha pela repartição
pagadora101.
Nesse sentido entende-se que esse veículo de informações da década de 30 tratava
os mais diversos assuntos ligados ao processo de ensino aprendizagem, e que tinha como
publico alvo o professor, para consolidar melhor essa afirmação apresento abaixo a analise
de alguns artigos que discutem aspectos da metodologia e didática do ensino e a postura ou
o que era esperado como uma postura correta por parte do educador.

ENSINAR: UMA BREVE LEITURA DOS PRINCIPAIS MÉTODOS DIDÁTICOS


DA DÉCADA DE 30

Pensar o processo de ensino aprendizagem na década de 30 parece uma tarefa


escorregadia, não podemos tele transportar no tempo e averiguar o passado mais podemos
recorrer às fontes produzidas nesse passado e a partir delas esclarecemos duvidas e
questões. Partindo desse pressuposto recorri a Revista do Ensino e a leitura de alguns de
seus artigos, e o cenário dos métodos didáticos utilizados nesse período foi desenhado por
alguns de seus autores.
Segundo o Mons. Pedro Anisio, em artigo publicado na revista em sua edição de
julho de 1932102 sobre os princípios fundamentais do método didático, reduz-se entre todos
os princìpios ao da ―ordem natural‖. Segundo ele, é necessário conhecer a ordem natural
do ―desenvolvimento psychico‖ e adaptar o ensino á idade, ao nìvel mental as aptidões e
capacidade do sujeito. Afirma ainda que:

100
Revista do Ensino, Anno I N. 2 Julho de 1932. s/p.
101
Revista do Ensino, Anno I N. 2 Julho de 1932. s/p.
102
Revista do Ensino, Anno I N. 2 Julho de 1932. P.32

267
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

O ensino deve acompanhar o desenvolvimento mental, passando do


concreto ao abstrato, as definições, a aplicação das regras da grammatica.
Ás noções e apreciações fundamentaes da arithemetica, etc. por outros
termos, os passos do ensinamento devem corresponder aos passos
naturaes da mente103.

Nesse sentido, entende-se uma preocupação em considerar as limitações mentais do


aluno, melhor dizendo, sua capacidade natural de aprendizagem de acordo com a sua
idade. O ensino deveria se ajustar as limitações do desenvolvimento do raciocínio do
sujeito. O Mons. Pedro Anisio nos confirma isso ao considerar em seu artigo que ―[...] só
uma coisa aqui é essencial, a saber, que o ensino se amolde a capacidade do educando‖. 104
Sobre a postura didática do professor o autor, depois de esclarecer que o
ensinamento deve se ajustar a ordem natural do desenvolvimento do aluno, afirma que o
professor deve usar uma linguagem clara como método de ensino-aprendizagem de acordo
com sua ideia:

[...] o dever principal do que ensina é meditar a matéria de suas ações, por
ordem, distinção, clareza nas ideias, usar palavras apropriadas, sempre ao
alcance do alunno, ilustrar, em todo o ensinamento com semelhanças,
exemplos, contrastes, etc. 105

Nesse processo de ensino-aprendizagem fica clara uma preocupação em adaptar a


metodologia do professor ao educando. Em outro artigo da mesma edição da revista escrito
por Alice de Azevedo Monteiro se defende a ideia que estudar e brincar devem ser duas
atividades em harmonia. De acordo com a autora:

A escola moderna é a escola oficina, escola-laboratorio, escola-jardim.


Escola, que perdeu o jeito austero de sala de conferencias para gente
trintona e experiente para ser um alegre salão, onde os moveis práticos e
baratos, claros, leves, inteligentes dispostos, são avivados pela graça
moderna dos cretones floridos, bizarros, vistosos [...].106

O cenário apresentado neste período parece marcado por mudanças no que diz
respeito aos métodos didáticos pedagógicos, não é intuito desse trabalho nesse momento
afirmar de forma especifica os tipos de mudanças ou os impactos que elas trouxeram ao

103
Revista do Ensino, Anno I N. 2 Julho de 1932. p.33
104
Revista do Ensino, Anno I N. 2 Julho de 1932. p. 33
105
Revista do Ensino, Anno I N. 2 Julho de 1932. p.34
106
Revista do Ensino, Anno I N. 2 Julho de 1932. s/p.

268
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

ensino, mas não é impreciso dizer que nesse momento a educação passa a beber na fonte
da escola nova e que os métodos didáticos de ensino, começam a aderir a alguns aspectos
extraídos dessa fonte.
Sobre esses indícios de adaptação á novos métodos em outro artigo publicado na
edição de abril de 1932, pelos autores, lemos a seguinte informação:

O desenvolvimento da instrução escolar em nosso pais trouxe a adopção


de novos methodos e processos pedagógicos, que se estão processando
através de algumas dificuldades, que não devem intimidar os
encarregados de sua direção [...] em vários pontos do pais em adeantados
centros de educação, a escola nova está em plena florescência. Resta
entretanto que se lhe não oponham obstáculos capazes de anular os
esforços dos professores esclarecidos que seguem as modernas tendências
da pedagogia.107

Diante dessa informação entende-se que o ensino, nesse período visava uma
mudança otimista onde os novos métodos didáticos pedagógicos deveriam ser pensados
para que o educando fosse levado em consideração, o terno escola moderna aparece nos
artigos lidos, associado a ideia que o ensino deveria enveredar por novos caminhos em
busca de uma melhor qualidade, ou como uma tentativa de melhor aproveitamento e
rendimentos do que era ensinado pelo professor.
Não é objetivo deste trabalho, considerar que a Revista de Ensino incentivava ou
apontava aspectos da escola moderna como uma metodologia que deveria ser adotada, ao
passo que recomendava excluir o ensino tradicional, apenas propõe-se uma reflexão que
segundo os seus artigos os autores buscavam discutir a relevância de se adotar propostas e
metodologias que dinamizassem o processo de ensino aprendizagem desse período, e que
atentassem para as mudanças que estavam vindo á tona nesse cenário educacional.

O PAPEL DO PROFESSOR DESENHADO PELA REVISTA DO ENSINO: UM


CONVITE AO SACERDÓCIO UMA MISSÃO SAGRADA

O papel do professor é um aspecto importante para entendermos o processo


educacional do período que propomos estudar neste trabalho, isso porque detectamos com
facilidade na leitura dos artigos da revista, afirmações que declaram ser o docente o

107
Revista do Ensino Anno I N. 1 Abril de 1932 p. 15

269
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

principal responsável pelo desenvolvimento de um eficiente processo educacional.


Junqueira Matos, em artigo publicado em Julho de 1934108, com conselhos e instruções
dedicados ao professor, declara: ―A tua missão é sublime; não a desvirtues [...] E`s
professor e és paraìbano: honra a tua profissão e engrandece o teu pequeno Estado‖.
A escola deveria ser vista como um templo pelo educador, e a profissão como um
verdadeiro sacerdócio, a ele cabia todas as expectativas positivas que a educação pudesse
ter sucesso, era o professor quem deveria instigar no aluno as habilidades e a capacidade de
aprendizagem. Nesse mesmo artigo o autor afirma: ―Se és bom professor, facilmente terás
bôa escola e consequentemente bons alunos‖ 109.
Em um desses conselhos o autor declara ser indispensável ao professor a formação
continuada, e a atualização de seus saberes e métodos, inclusive indicando a adesão aos
novos paradigmas que se apresentavam a educação nesse período.

Os livros são teus melhores amigos. Deles não te podes separar. Não
julgues que tens habilitação necessária para o integral cumprimento dos
teus deveres. Estuda, acompanha esse movimento renovador que se
processa por toda parte. O livro dos mestres, as revistas, as conferencias,
as aulas de um colega talvez te revelem a necessidade ingente que tens de
estudar.110

Outra característica que deveria ser associada ao professor, para um bom


desempenho da sua função, era a imparcialidade. Matos (1934, p. 6), defende: ―[...] a tua
politica é a tua escola. O teu eleitorado, os alunos que precisam de ti o mesmo
tratamento.‖111. Nesse sentido, o professor deveria ser neutro a respeito de suas opiniões,
guardar para si qualquer manifestação de opiniões.
É uma observação pertinente afirmar que os caminhos que a escola deveria seguir
estavam sob a responsabilidade do professor. Era o seu desempenho e sua postura que
determinava o êxito e o dinamismo do processo de ensino aprendizagem, ele deveria
buscar instruções e aplica-las a fim de garantir um melhor rendimento. Matos (1934, p. 8)
conclui:

108
Revista do Ensino, Anno III N.10, Julho de 1934 p.3.
109
Revista do Ensino, Anno III N.10, Julho de 1934 p.8
110
Revista do Ensino, Anno III N.10, Julho de 1934 p.5
111
Revista do Ensino, Anno III N.10, Julho de 1934 p.6

270
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Dá nova orientação á tua escola. Fóge desse tradicionalismo em que tens


vivido. Organiza excursões escolares, museus, bibliotecas e instituições
auxiliares do ensino. Ouve teu inspetor: pede-lhe orientações. Transforma
a tua escola.

A educação estava, portanto sob a responsabilidade do professor, cabia a ele


garantir que o processo de ensino e aprendizagem acontecesse, a escola e o aluno ficariam
sobre a sua incumbência, e sua principal tarefa seria articular junto à escola mecanismos
que garantissem a aprendizagem do aluno.
Neste sentido, a postura adotada pelo docente estava atrelada ao ensino tradicional,
uma vez que nesse tipo de ensino o processo de aprendizagem está centrado na mão do
professor. Único agente ativo deste processo. Nele está concentrada toda a fonte de saber,
dando grande ênfase à memorização dos conteúdos cabendo aos alunos apenas a tarefa de
reproduzir os saberes tais como lhe são passados, sem exercer nenhuma análise,
questionamento ou crítica do que está sendo estudado. O que importa é apenas a
reprodução legítima de fatos, datas e nomes. Como vem nos confirmar Nicoletti Mizukami
(1986, p. 14):

Este tipo de ensino em ternos gerais se preocupa mais com a variedade e


quantidade de noções, conceitos, informações que com a formação do
pensamento reflexivo, evidencia-se uma preocupação com a sistematização
dos conhecimentos apresentados de forma acabada.

Se os artigos descrevem em parte um professor responsável pelo processo de ensino


aprendizagem, concentrando em seus ombros a tarefa de desenvolver a educação junto à
escola, como exemplo de um ensino tradicional, por outro lado os autores não
desconsideram a postura de um professor que facilite e dinamize esse ensino, quando
descrevem em seus conselhos que cabe ao docente uma postura capaz de aderir a novos
paradigmas e adotar sempre metodologias capazes de proporcionar ao aluno melhores
condições de aprendizagem.
É pertinente afirmar que o papel do professor idealizado por estes autores estava
associado à postura de um docente mediador do conhecimento, uma vez que ele deveria
propor estratégias que facilitassem a aprendizagem, essa figura do professor mediador é
típica do movimento da escola nova, embora estejamos discutindo um período anterior a
esse movimento, sem correr o risco de cometer anacronismos, destacamos o que Schmidt
(2002, p. 30) nos afirma a respeito do papel do professor no movimento da escola nova

271
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

―[...] professor é o responsável por ensinar ao aluno como captar e valorizar a diversidade
das fontes e dos pontos de vistas históricos, levando-o a reconstruir, por adução, o percurso
da narrativa histórica.‖.
Neste sentido, o professor exerce o papel de mediador entre o aluno e o percurso
que este faz para a elaboração e construção do conhecimento histórico. O professor deve
entender-se não como detentor do saber, mais como facilitador e promotor do
conhecimento, deve perceber o aluno como um sujeito ativo no processo de ensino-
aprendizagem.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A proposta deste trabalho é entender como a Revista do Ensino da década de 30,


publicada na Paraíba compreendia o processo educacional através do papel do professor,
após a leitura de alguns dos seus artigos apresentamos aqui uma interpretação dessa
postura docente segundo as ideias colocadas por seus autores, em alguns conselhos
proferidos de como o professor deveria encarrar a profissão tal qual um sacerdócio, ou uma
missão, caberia a ele desenvolver o processo educacional e está sempre à disposição da
escola, era o professor encarregado pelos conteúdos e as metodologias a ser aplicadas e
manter uma conduta virtuosa, neutra, e solidaria para com sua turma.
Destacam-se claramente características de um ensino tradicional onde ao professor
cabe a postura de detentor do saber ou responsável pelo ensino e pelo aprendizado dos
alunos, no entanto não se pode deixar de levar em consideração alguns aspectos também
colocados nestes conselhos como a sugestão que o professor seja capaz de estar sempre em
formação continuada, a fim de reconhecer a necessidade de sempre aprender mais e não
achar que já sabe o suficiente, ser atento às especificidades dos alunos, propor
metodologias que se adequem a essas especificidades, alertar a escola a necessidade de
aderir a novos paradigmas que surgem para o ensino.
Estes conselhos, portanto também se enveredam pelas concepções não apenas de
um ensino tradicional, mais também a postura do que propõe a escola nova, o que
entendemos com a realização deste trabalho é que embora de forma tímida os autores da
Revista do Ensino da década de 30, já buscavam fugir desse modelo tradicional de ensino,
mesmo com suas restrições e concepções próprias ao seu tempo se evidenciam alguns

272
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

indícios de uma postura docente que procurava no processo de ensino aprendizagem,


incluir o aluno como sujeito desse processo.

REFERÊNCIAS

Revista do Ensino Orgão da Directoria do Ensino Primario . Anno I, Abril de 1932 n. 1


Imp. Off. João pessoa 1932 n. 471

Revista do Ensino. Orgão da Directoria do Ensino Primario Anno I, Julho de 1932 n. 2


Imp. Off. João pessoa 1932 n. 884

Revista do Ensino. Orgão da Directoria do Ensino Primario Anno III, julho de 1934 n.10.
Imp. Off. João pessoa 1934

Revista do Ensino Orgão do Departamento de Educação AnnoV, Dezembro de 1937, n.14


Imp. Off. João pessoa 1937

MIZUKAMI G.N. Ensino: As Abordagens No Processo. São Paulo: EPU.1986.

SCHIMIDT Maria Auxiliadora; CAINELLI Marlene. Ensinar história. São


Paulo: Scipione, 2004.

273
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

USO DA HISTORIA ORAL NA PRODUÇÃO DE UMA NARRATIVA


BIOGRÁFICA

PEDRO FELIPE RIBEIRO SILVA


UFCG
[email protected]

ORIENTADORA: ANA RITA UHLE


UFCG
[email protected]

RESUMO
O presente trabalho propõe discutir os critérios de utilização e análise dos relatos de
história de vida por meio de uma narrativa biográfica. Para tanto, analisamos as
experiências profissionais de Maria do Disterro, professora de ensino religioso da cidade
de Cajazeiras, Paraíba, a partir de um relato que se afirma dentro de um percurso
sequencial, produzindo uma história de vida. Compreendendo a sua formação e os espaços
onde atuou, percebendo a sua existência individual dentro de uma superfície socialmente
constituída, levando em conta os desencontros e descontinuidades. Assim, o nosso olhar
perpassa pelo campo dos novos significados que essa escrita historiográfica adquiriu, como
assinala Benito Bisso Schmidt sobre as dúvidas quanto aos atuais desafios da área,
exigindo dos historiadores um distanciamento a linearidade cronológica e envolver-se com
diferentes temporalidades.
Palavras-chave: História Oral; narrativa biográfica; profissionalização docente.

INTRODUÇÃO

A produção de uma história de vida. Dentro dessa perspectiva o sujeito compreende


a sua existência por um caminho linear temporal, onde Pierre Bourdieu sintetiza que ―uma
vida é inseparavelmente o conjunto dos acontecimentos de uma existência individual
concebida como uma história e o relato dessa história‖ (1986, p. 183). A análise que o
autor realiza em torno da produção biográfica se torna um expoente dos cuidados que
diversos historiadores procuram ater no ato de criação. Para tanto, o sociólogo francês
utiliza o termo ilusão, para demarcar a sedução de uma tradição literária desse gênero da
escrita historiográfica.
Produzir uma história de vida, tratar a vida como uma história, isto é, como o
relato coerente de uma sequência de acontecimentos com significado e direção,
talvez seja conformar-se com uma ilusão retórica, uma representação comum da
existência que toda uma tradição literária não deixou e não deixa de reforçar.
(BOURDIEU, 1986, p. 185).

274
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Nesse sentido, o seguinte trabalho tem a intensão de realizar discussão teórica em


torno das controvérsias que recaem sobre a produção biográfica, que ajuda a compreender
a opção por esse gênero historiográfico, que visam analisar as experiências profissionais de
Maria do Disterro, professora de ensino religioso da cidade de Cajazeiras, Paraíba, por
meio de uma narrativa biográfica. Um arranjo teórico e cuidados metodológicos
enriquecedores para o desenvolvimento do meu trabalho de conclusão de curso. É no
tocante interior do corpo de sujeitos que constituem o espaço escolar que vai surgir a
problematização da nossa pesquisa, abordando a história profissional dessa professora e as
suas atuações no processo de ensino escolar, perpassando pelas concepções da temática no
campo de estudos da História da Educação, um ponto que voltaremos a discutir a frente no
decorrer desse texto.
Esse debate dirigido à biografia histórica consiste em apontar para o receio de uma
produção do modelo tradicional de apologia aos grandes vultos e suas práticas, que se
empenhou com os fatos, deixando à margem a análise das estruturas socioeconômicas,
políticas e culturais. Um olhar mais aprofundado sobre a compreensão desse
tradicionalismo, perceberemos o arraigado dinamismo historicista com a funcionalidade de
apontar exemplos para sociedade, ―era a chamada ―historia mestra da vida‖ (historia
magistral vitae), que qual cabia ao passado iluminar o futuro‖ (SCHMIDT, 2003, p. 58).
Concebendo o homem, um indivíduo de forma unitária, sendo o centro das indagações dos
diversos campos de estudos no processo de transformações do fazer científico no advento
da modernidade, esse dado momento é afirmado por um compromisso em selecionar
indivíduos relacionados às vitorias militares e a importância de cargos no Estado para
descrever de modo coerente um projeto linear da brilhante história de vida dos heróis.
Após a consolidação do espaço de produção historiográfica pela Escola dos Annales nas
últimas décadas do século XX, a biografia que estava assim concebida de modo intrínseco
a história política – o principal campo de compromisso da escrita da história tradicional
dos séculos XVIII e XIX – é posta a desuso, concebida como essa última, pertencente a
uma fase que foi superada. A história política adquiriu nos anos finais do mesmo século
dos Annales um modo cultural de compreensão que possibilitou um acesso amistoso a essa
na nova história. Com isso, um movimento em torno da narrativa biográfica iniciou-se nos
anos de 1980 trazendo a essa uma nova roupagem para a mesma. Em ambos os casos, a
exposição acima não busca formular um espaço de compreensão dualista, entre defensores
tradicionais de uma escrita e progressistas da nova história. A Escola dos Annales é o

275
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

momento presente da história, e suas contribuições para os avanços desse saber científico
são incontestáveis. Para tanto, os historiadores que se enveredaram atualmente pela
narrativa biográfica articularam essa escrita à história-problema, característica principal de
defesa dos Annales, o principal contestador da biografia histórica.

A NARRATIVA BIOGRÁFICA
Diante desse cenário os estudos de Benito Bisso Schmidt nos apresentam elementos
que constituem a produção biográfica recente. O enfoque nos personagens é primeiro
ponto, não se prendendo aos grandes homens da sociedade, como é observado em toda a
trajetória tradicional dessa escrita. A escolha perpassa pela perspectiva de
representatividade do ―homem-comum‖. O autor nos convida a perceber a possibilidade de
investigar ―os espaços de exercìcio da liberdade possìveis em uma determinada sociedade‖
(2000, p. 4), salientando que não busca realizar parâmetros entre classes, ou indivíduos e
suas importâncias. Esse último termo é o que menos se leva em consideração nessa
abordagem. A importância, como objetivo referente à relação do personagem com a
sociedade evoca o oportunismo das críticas à narrativa biográfica. Pois é perceptível nas
produções atuais o afastamento dessas emboscadas em vista da renovação da escrita. ―Isso
acontece, geralmente, quando seus autores levam em conta as críticas já feitas ao gênero,
procurando integrá-las às suas preocupações.‖ (2003, p. 65). Fugindo desse apologético
meio de destacar indivíduos e suas condutas positivas ou negativas, atendendo os
propósitos educacionais das sociedades normativas, o objetivo da narrativa biográfica está
pautado nas questões cotidianas do contexto em que os biografados estão inseridos, outro
ponto discutido pelo autor. Ao designar “A ilusão biográfica”, Bourdieu intitula uma
questão muito discutida sobre o gênero, outro ponto examinado por Schmidt, que se refere
à forma de construção da narrativa biográfica. Pois a mesma exige dos historiadores um
distanciamento a linearidade cronológica e envolver-se com diferentes temporalidades. É
um desafio! ―Assim, um dos principais desafios dos biógrafos na atualidade é captar os
personagens enfocados a partir de diferentes ângulos, constituindo-os não de uma maneira
coerente e estável, mas levando em conta suas hesitações, incertezas, incoerências,
transformações.‖ (2014, p. 197).
Entretanto, dentro do viés de múltiplos olhares sobre a História, o gênero biográfico
surge como um campo frutífero, que abre espaço para a interação entre a história e
literatura, ficção e realidade. Esse é o ultimo ponto examinado pelo autor dos atuais

276
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

aspectos de maior discussão referentes à narrativa biográfica. O indivíduo apresentado


como possibilidade nesse novo fazer histórico, acompanha uma ―tendência‖ da própria
natureza atual do fazer biográfico, tendo como exemplo a própria literatura, em que o
romance moderno rompe com esse indivíduo unitário e seu advento (SCHMIDT, p. 193).
Mas que de forma alguma retira a biografia histórica do seu compromisso cientìfico. ―A
biografia constitui na verdade o canal privilegiado através do qual os questionamentos e as
técnicas peculiares da literatura se transmitem à historiografia.‖ (LEVI, 1996, p. 168).
O historiador italiano Giovanni Levi aponta uma relação indireta da literatura no
que se refere a modelos e esquemas biográficos, que possibilita na sua ótica, uma
―renovação da história narrativa‖ (1986, p.189), no uso de técnicas argumentativas no texto
escrito que fazem da pesquisa um ato de comunicação. O mesmo sugere uma tipologia
para a produção de um texto biográfico, apresentando as formas de compreender as
determinações que pertencem ao grupo social e o espaço de atividade dos atores (a
liberdade de ação do indivíduo). Uma biografia modal, no qual o indivíduo é a
materialização concentrada de atribuições do grupo social ao qual é sujeito pertencente.
Em um segundo modelo de produção, propõe a biografia e contexto, onde por meio da
analise dos comportamentos de um quadro mais amplo desses busca montar um cenário de
percepção mais clara do indivíduo. E por último a biografia e os casos extremos, de um
modo que possa para além dos determinantes sociais, perceber os conflitos decorrentes
dessa relação.
A narrativa biográfica possibilita um detalhamento de questões observadas no
processo de criação das fontes, ―que dê conta dos elementos contraditórios que constituem
a identidade de um indivìduo e das diferentes representações que dele se possa ter‖ (LEVI,
1986, p. 171). Contradições que segundo Mary Del Priori vem sendo resolvida no campo
historiográfico por meio da biografia. ―Trata-se, portanto, de achar um equilíbrio entre o
indivíduo ou o personagem, seu livre-arbítrio, suas intenções pessoais e a escala mais
ampla de convenções culturais e ―mentalidades coletivas‖ nas quais ele está imerso.‖
(2009, p. 11).
Dentro dessa perspectiva de análise do indivíduo e sua relação com a sociedade,
Norbert Elias apresenta no seu estudo sobre a história de vida do músico Mozart. Um
indivíduo e sua posição social constituída com a alta capacidade de criação artística
correspondendo aos modos desejados pelas cortes na Europa. E em meio a isso, a
conflituosa relação do indivíduo e sua genialidade incomodada com a estrutura social das

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

cortes que limitavam os seus anseios. Um percurso de descontinuidades em um conflito


relacionado à liberdade de um gênio e as determinações sociais da estrutura aristocrata da
corte nos limites em que o sujeito está inserido.

O USO DA HISTÓRIA ORAL

Como se pode ver, a produção biográfica no campo da história é perpassada de


discussões referentes aos comprometimentos científicos pautados pelo novo fazer
histórico, porém, importantes para se compreender as possibilidades mais interessantes de
construir essa narrativa. É nesse sentido que iremos refletir o uso da História Oral durante a
pesquisa. Enquanto definição, a historiadora Sônia Maria de Freitas realiza uma série de
considerações a respeito da sua utilização em um processo que lhe defini. ―História Oral é
um método de pesquisa que utiliza a técnica da entrevista e outros procedimentos
articulados entre si, no registro de narrativas da experiência humana‖ (2006, p. 5). Para
tanto, as entrevistas possibilitam a criação de fontes com a finalidade de compreendermos
o passado, sendo um processo conjunto de analise que envolve documentos escritos e
imagens, produzir uma narrativa biográfica. A metodologia não se resume unicamente ao
eventual momento da gravação. O método se torna eficaz na sua funcionalidade, quando
nos atentamos para os procedimentos anteriores e posteriores a entrevista. Em um primeiro
momento a autora nos apresenta um processo sequencial, que envolve a escolha do tema,
produzir uma ficha biográfica do sujeito investigado e partir desses dados elaborar um
roteiro para a entrevista. Entretanto, apesar da potencialidade de ―resgatar o indivìduo
como sujeito no processo histórico‖ (2006, p. 29), a relação que o pesquisador estabelece
com o entrevistado, seja nas estratégias que conduzem a gravação, respeitando nesse
momento a escolha do local e o tempo de entrevista, quanto aos procedimentos pós-
entrevista, na transcrição do áudio e conferência da escrita realizada pelo entrevistado.
Espera-se do intelectual o seu compromisso ético com o material adquirido, um respeito
pela pessoa com que está trabalhando. Pois a ânsia pela veracidade do saber científico não
pode nos fechar os olhos para esses cuidados. Ao observar os cuidados em assegurar esse
comportamento Alessandro Portelli, aponta algumas precauções.
Por um lado, o reconhecimento da existência de múltiplas narrativas nos protege
da crença farisaica e totalitária de que a ―ciência‖ nos transforma em depositários
de verdades únicas e incontestáveis. Por outro, a utópica busca da verdade
protege-nos da premissa irresponsável de que todas as histórias são equivalentes
e intercambiáveis e, em última análise, irrelevantes. O fato de possíveis verdades

278
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

serem ilimitadas não significa que todas são verdadeiras no mesmo sentido, nem
que inexistem manipulações, inexatidões e erros. (PORTELLI, 1997, p. 15.)

É importante ressaltar, do modo que a narrativa biográfica é alvo de debate sobre a


sua relevância quanto ao conhecimento histórico, o mesmo ocorre com as fontes orais, não
sendo aceitas por alguns grupos de pesquisadores. Sônia Maria de Freitas contestando
qualquer modo de compreensão subsidiária que posiciona essa fonte à margem do campo
de desenvolvimento da ciência histórica.
Para alguns historiadores tradicionais, os depoimentos orais são tidos como
fontes subjetivas por nutrirem-se da memória individual que, às vezes pode ser
falível e fantasiosa. No entanto, em História Oral o entrevistado é considerado,
ele próprio, um agente histórico. Neste sentido, é importante resgatar sua visão
acerca de sua própria experiência e dos acontecimentos sociais dos quais
participou. Por outro lado, a subjetividade está presente em todas as fontes
históricas, sejam elas orais, escritas ou visuais. O que interessa em História Oral
é saber por que o entrevistado foi seletivo ou omisso, pois esta seletividade tem o
seu significado. (DE FREITAS, p. 44, 2006).

Um documento não fala por si só, e as informações do seu conteúdo possui uma
produção textual composta de elementos, sujeitada por uma escolha. Dentro de uma
perspectiva que denomine uma objetividade na documentação escrita, é indispensável
perceber o mesmo teor de subjetividade que constitui as fortes orais criadas pelo processo
de entrevista.
Além disso, a fonte oral concilia as memórias do passado vivido, em que o sujeito
entrevistado relata lembranças de diversas situações vivenciadas de modo coerente,
buscando um sentido para sua existência no dado período em que está sendo questionado
pelo pesquisador. O mais interessante, é compreender que essa retrospectiva, é mediada
pela recuperação de vivências que ocorreram em diferentes momentos do passado, e esse
processo caracteriza a memória histórica.
As pessoas não têm em suas memórias uma visão fixa, estática, cristalizada dos
acontecimentos que ocorreram no passado. Pelo contrário, existem múltiplas
possibilidades de se construir uma ―versão‖ do passado e transmiti-la oralmente
de acordo com as necessidades do presente. É nesse momento da narrativa de
uma ―versão‖ do passado, que as lembranças deixam de ser memorias para se
tornarem histórias. (KENSKI, 2013, p. 58).

No entanto, retornamos ao pressuposto de ilusão intitulado por Bourdieu,


preocupando-se com o afastamento de produzir uma análise do método estrutural da
linguagem simples na compreensão de história de vida, descritiva em etapas, no sentido de
―um fim da história‖. Compreende-se dessa maneira que a vida é orientada dentro de um
279
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

projeto previamente elaborado e transcrito em uma conexão cronológica. Nesse sentido, o


exame da fonte oral inicia-se na situação de investigação, no momento em que está sendo
realizada a entrevista. Onde o investigado percebe-se o momento dentro de um espaço de
interrogatório, e fará disso a sua melhor produção de si, apresentando uma autoimagem
oficial. No momento da escrita, o autor apresenta como proposta a construção de uma
superfície social, uma avaliação rigorosa que o investigador aplica na descrição da
personalidade instituída socialmente. Essa deve ser compreendida na sua produção de si,
como indivíduo de atributos e atribuições que pertencem a um campo onde diferentes
agentes agem em consideração a esse dentro de uma movimentação de sentido. Desse
modo, é possível avaliar a relação de pertencimento socialmente instituído da professora
Maria do Disterro com as posições ocupadas, compreendendo a apresentação de si dentro
do campo educacional onde atuou.

A ABORDAGEM HISTÓRICA

Em razão da ―complexidade do campo de atuação dos professores‖ (VICENTINI,


2009, p. 18), optamos em construir uma narrativa biográfica acentuada por conceitos da
História da Educação, referentes à História da profissão docente, discutindo experiências
profissionais da professora Maria do Disterro, analisando os dados que foram obtidos nos
relatos orais da mesma. Um processo que está intrinsecamente ligado a constituição e
desenvolvimento da história do professor que é estudo por António Novóa enquanto
categoria profissional.
O ponto inicial dessa investigação foi a Escola Maria Guimarães Coelho, instituição
que atua no desenvolvimento da Educação Infantil e o Ensino Fundamental, situada no
bairro São Francisco, na cidade de Cajazeiras – PB, que é alvo de uma visão
preconceituosa, vinda de grande parte da população da cidade, um espaço escolar invisível
que não consegue ser enxergado na sua atuação. Essa percepção foi sendo alcançada
durante as oportunidades de atuação que tive na instituição. Em especial uma professora
relatou a repercussão de seu remanejamento para essa escola, uma visão distorcida que ela
afirmar ser de demais colegas que pertencem a Secretária de Educação do Município.
Diante de um cenário de desigualdade social, ao qual o nosso sistema político propicia
tamanho choque de realidades, presentes em um mesmo espaço, as experiências
desenvolvidas na mesma instituição por meio do Programa Mais Educação (um programa

280
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

de ampliação da jornada escolar das escolas públicas no intuito de construir uma educação
integral); Estágio Supervisionado; o Projeto de Extensão “Meu lugar na escola, meu lugar
no mundo”, e o relato dos sujeitos que compõem esse espaço foram desenhando um campo
possível para questionar as atribuições da docência e abrangência de espaços dessa
atuação.
Em meio a isso, no processo de levantamento das fontes documentais no arquivo da
Escola Municipal Maria Guimarães Coelho, o nome da professora Maria do Disterro se
destacou consecutivamente por dez anos na admissão do cargo de diretora desta
instituição. O passo seguinte foi localiza-la e entender sua relação com a escola.
Acompanhando a satisfação de ser convidada a participar da pesquisa essa disponibilizou
fotografias que fazem parte do seu acervo pessoal. Diante disso, o sentimento de chegar ao
ponto de partida de um trabalho foi alcançado.
Ao observarmos a escola, percebemos um espaço construído por vários sujeitos,
que tem na sua trajetória histórica uma variedade de atribuições que vai constituindo esse
modelo de instituição educacional da sociedade moderna, existente até os dias atuais como
algo necessário para diversos interesses. Hoje ela ocupa as diversas áreas geográficas de
agrupamentos humanos. Na área urbana onde ele vai surgir quase como um modelo
universal, podemos observar que a escola como espaço educacional faz parte de memórias
de uma determinada fase da vida de vários sujeitos, e isso não pode nos levar a crer em um
espaço somente de passagens, pois cada sujeito é constituinte daquele espaço, e as suas
ações individuais refletidas nas ações coletivas são elementos que constroem a história
dessa instituição.
Observa-se na descrição acima, o destaque do nosso olhar sobre dois elementos de
investigação, o professor e a escola. A instituição escolar é o espaço construído para a ação
do professor no processo de transmissão de conhecimentos que atendem aos interesses do
Estado. Essa relação surge na nossa pesquisa como ponto de partida, aproximando-se da
das referencias do campo de análise sobre a profissão de professor. Desse acordo com as
pretensões da pesquisa, preocupada com a análise, articulada a perspectiva da história-
problema, buscando problematizar o processo de profissionalização da nossa biografada.
Nesse sentido, percebemos que ―a história da profissão docente permitiria contar a história
da escolarização de um ponto de vista que é, ao mesmo tempo, plural e único‖
(VICENTINI, 2009, p. 20). A instituição escolar possui uma cultura própria que ―é
efetivamente uma cultura conforme, e seria necessário definir, a cada período, os limites

281
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

que traçam a fronteira do possìvel e do impossìvel.‖ (JULIA, 2001, p. 32). Evidentemente


essa cultura escolar se caracteriza em um conjunto de normas, que se estruturam no espaço
educativo, compreendido aqui como campo, onde reconstruiremos as atuações da
professora Maria do Disterro, perpassado de possibilidades e procedimentos institucionais
que a mesma se submeteu. Discutindo as condições materiais da sua formação e exercício
do magistério. Um processo que está intrinsecamente ligado a constituição e
desenvolvimento da história do professor que é estudo por António Novóa enquanto
categoria profissional, que é permeada diferenciações.
Em um passado nem tão distante por meio do olhar da temporalidade histórica, os
agentes envolvidos no campo educacional brasileiro da década de 1980, partiam de
diferentes posições sociais e possuíam um modo de pensar sobre aquele momento. Os
agentes que se submeteram ao acesso as vagas de preparação para atuar como professores
no ensino do 1º grau, observando as condições objetivas se enveredaram no leque de
possibilidades institucionais. A opção desses agentes interagiu com as transformações que
a sociedade sofreu com os anos finais do século passado e o advento do novo. Exigindo
desses uma atualização de sua prática.
Ao falar de condições, podemos imaginar que ao menos uma geração de
docentes, possuísse uma base comum de conhecimentos a partir da instauração
de uma modalidade especifica de preparação e que esta geração tivesse
convivido, durante certo tempo, com uma geração anterior, formada a partir de
outras referenciais. (VICENTINI, 2009, p.28)

As condições de formação da professora Maria do Disterro foram propiciadas pelo


Colégio Nossa Senhora de Lourdes que realizava a preparação dos professores por meio de
um currículo que estava em vigência no país desde a Lei de complementação n. 5.692, de
1971, que aproximou o Curso Normal ao ginásio/colegial, constituindo o curso de
Habilitação Específica para o Magistério, que nos anos de 1980, passou por um processo
de avaliação de especialistas da área. Havia um desconforto desses ao observar o preparo
dos professores que atuavam nas primeiras séries do 1º grau (anos inicias do ensino básico,
modo pelo qual é conhecido atualmente) tendo uma formação estruturada no ensino de 2º
grau (correspondente ao atual ensino médio). No livro História da profissão docente no
Brasil: representações em disputa, Paula Perin Vicentini discute as precariedades da
aplicação desse currìculo, em que se observa o ―modo apressado‖ (2009, p.49) dessa
formação. O Estado buscou dessa forma, garantir algum tipo de preparo que acrescentasse

282
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

um número significativo de docentes em salas de aula por todo o país. Um currículo que se
submeteu as particularidades regionais para se concretizar.
Em razão disso, a implementação do Curso de Magistério não foi imediata e
tampouco se processou nas mesmas condições em todas as regiões brasileiras, o
que se tornou necessário prever, na lei, as variações possíveis em termos da
preparação para que todos pudessem ajustar-se às normas legais. Desse modo,
estabeceram-se várias modalidades de estudo aceitável para o exercício docente
no primeiro grau, sendo a escolarização mínima requerida a Habilitação para o
Magistério (curso de 3 anos em nível de segundo grau), que permitia ensinar de
1ª a 2ª séries. (VICENTINI, 2009, p. 50).

A caracterização dos processos educacionais que ocorreram no Brasil no período


mencionado acima deve ser verificada a partir de um olhar minucioso sobre a
diferenciação dos ritmos de organização de cada região, intrinsecamente associado ao
projeto de formação de novas instituições escolares de diversos locais do país, tendo na
cidade de Cajazeiras o surgimento de instituições de ensino das sérias inicias do 1º grau de
responsabilidade municipal dentro desse contexto. Podemos assim, compreender as
condições possíveis de formação pelo qual a professora Maria do Disterro se submeteu, em
um processo acelerado de preparação de nível secundário que lhe habilitou atuar nessas
novas salas de aula do município.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Observa-se que o uso da História Oral ampliou o processo de construção dessa


pesquisa. O encontro com a professora Maria do Disterro foi determinante para a escolha
do tema, o seu relato de história de vida, possibilitando a criação de fontes orais que estão
sendo cuidadosamente analisadas na produção da narrativa biográfica. Uma abordagem
que acompanha o movimento atual do gênero, articulada a historia-problema, distanciando-
se do pressuposto ilusório, um sinal de alerta que formula o discurso de rejeição dos
críticos à biografia. Analisando as vivências no campo profissional de Maria do Disterro,
que estão intrinsecamente vinculadas às políticas de ampliação do numero de professores
desenvolvidos no Brasil com os cursos de Habilitação Específica para o Magistério,
possibilitando a sua atuação no processo de institucionalização das novas escolas
municipais de Cajazeiras nos anos de 1980, discutindo as atribuições históricas desse papel
no ensino.

283
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Editora FGV, 1996.
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ELIAS, Norbert. Mozart: sociologia de um gênio. Zahar, 1994.

JULIA, Dominique. A cultura escolar como objeto histórico. 2001.

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LEVI, Giovanni. Usos da biografia. In: FERREIRA, Marieta de Moraes, AMADO,


Janaína. Usos e Abusos da História Oral. Rio de Janeiro: FGV. 2006, p. 174, p. 167-182.

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Cruz do Sul: EDUNISC, 2000.

284
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

UTILIZANDO MÚSICA POP COMO FERRAMENTA PARA ENSINO DE


LÍNGUA E CULTURA ESTRANGEIRA

SIDNEY VICENTE SOUZA


UFCG/CFP
[email protected]

RESUMO

Uma das ferramentas mais eficazes para expressar sentimentos ou narrar histórias é a
música, ela esteve presente em toda história da humanidade exercendo diversos papéis e
atualmente está presente no entretenimento mundial. A música está inserida em sessões
exclusivas no mundo das artes, mas também está presente no entretenimento vendido em
larga escala, influenciando fortemente o comportamento social, registrando marcas na
história. Se a música tem poder de narrar, expressar ou até mesmo influenciar, é necessário
analisar esta expressão cultural para o uso na educação. Podemos usufruir da popularidade
das canções para ensinar uma língua/cultura estrangeira, analisando os assuntos presentes
nas composições, trazendo para a sala de aula maior interação entre disciplinas utilizando
das produções de entretenimento como ferramenta didática.
Palavras-chave: Música; Cultura; Ensino.

INTRODUÇÃO

A educação é o pilar para a formação da sociedade e através dela podemos nos


organizar e construir uma ponte segura para nosso futuro, através da educação, arte e da
cultura como um todo, podemos analisar nosso passado estudar costumes, crenças e
culturas, identificando as ações necessárias para a construção social, transmitindo
conhecimento para as próximas gerações. Para que esta contribuição aconteça é necessário
estudar os contextos nos quais a sociedade está inserida, qual a cultura produzida pela
sociedade e qual sociedade é produzida pela cultura, sendo assim, é por meio do
conhecimento que podemos observar fenômenos e mudanças nos comportamentos e na
cultura. Nesse sentido, um dos principais papéis deste processo de conhecimento e análise
é o domínio da linguagem.

[...] a criança nasce com uma única [...] capacidade, a capacidade ilimitada de
aprender e, nesse processo, desenvolver sua inteligência - que se constitui
mediante a linguagem oral, a aten-ção, a memória, o pensamento, o controle da
própria conduta, a linguagem escrita, o desenho, o cálculo (KESTER, 2004, pg.
136).

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

A linguagem escrita e oral pode colocar em prática os desejos e externar


pensamentos; a comunicação num sentido genérico pode ser considerada um dispositivo
poderoso na natureza, e com este dispositivo podemos tentar compreender os seres,
interpretar necessidades, sendo o outro um ser humano, podemos tentar assimilar seus
pensamentos sejam eles racionais ou abstratos.
O homem pode se comunicar através de diversos recursos, entre eles a arte, a
música como uma expressão artística pode nos ajudar a compreender diversos contextos,
podemos comparar, analisar e conhecer novas culturas através de suas produções culturais,
segundo (CANCLINI, 1998, p.151) ―podemos analisar as condições textuais e
extratextuais, estéticas e sociais, em que a interação entre os membros do campo gere e
renova o sentido‖. Além de toda a carga histórica e cultural a música pode nos oferecer
entretenimento e diversão, e estes aspectos a tornam uma ferramenta atrativa para a sala de
aula.
Neste artigo buscaremos analisar os diversos aspectos da música pop, buscando
transformar as produções de entretenimento cultural em ferramentas práticas para o ensino
de cultura e língua estrangeira. Estando a música presente em diversos aspectos e
momentos da vida do homem contemporâneo buscaremos neste artigo entender a sua
importância e seu impacto sobre a sociedade, músicas populares oferecem um rico acervo
de informação sobre as identidades, grupos, religiões, culturas, nações, rituais e
movimentos sociais.
Este acervo cultural se expande através da globalização e se movimenta nas redes
de comunicação utilizando a indústria do entretenimento como uma plataforma para
produção de ideias, estas produções precisam ser analisadas, discutidas pois estão inseridas
em diversas camadas na cultura contemporânea gerando e lançando diariamente tendências
para representar os jovens. Estas ideias que são produzidas e propagadas devem ser
constantemente avaliadas e não podem ser ignoradas, precisam ser bem utilizadas, e o
objetivo deste artigo é apresentar a música pop como um possível instrumento para os
professores ensinarem cultura e língua estrangeira, usufruindo do entretenimento como
uma ferramenta atrativa para o processo educativo.

COMPREENDENDO OUTRA CULTURA

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

A escola é o local ideal para criar espaços de introdução às noções básicas sobre
sociedade, este espaço é necessário para que o aluno possa compreender as diversidades
culturais, a coletividade e tudo que gira em torno das relações entre pessoas. A educação
precisa servir às demandas do desenvolvimento sócio cultural e o ensino de línguas pode
ser um dos pilares mais importantes para a construção dos saberes. Seja o conhecimento
proveniente de uma cultura local ou estrangeira é importante que seja analisado, discutido
e se validado, disseminado e registrado para que o processo de troca de informações entre
culturas seja bem aproveitado. É importante criar espaços para o questionamento, para que
seja possível comparar, reparar e repensar as condições sociais.
Compreender outras culturas é entender a diversidade do estilo de vida humana e
todos os dilemas que circundam o homem contemporâneo, é de extrema valia considerar o
processo de globalização em que estamos inseridos, e toda a intervenção que uma cultura
pode exercer sobre a outra, este processo de influências entre culturas é histórico e está
presente por exemplo nos processos de colonização.
Conhecer o estrangeiro pode não ser bem recebido na sala de aula, os alunos
compreendem geralmente o assunto como desnecessário, sem valor ou surreal. Estas
imagens construídas negativamente não são exclusivas do ensino de língua, diversas outras
disciplinas sofrem neste processo de invalidez educacional. O estado crítico de política do
Brasil tem gradativamente sucateado o ensino público e cada vez mais transmitir o valor e
a importância da escola tem sido uma tarefa árdua para os profissionais da educação, e é
necessário se pensar em novas fórmulas para se transmitir o valor e a importância da
educação.

Uma das razões para tamanha ênfase na importância do ensino e da


aprendizagem do inglês nas escolas deriva do senso comum de acordo com o
qual as línguas estrangeiras, em especial o inglês, desempenham papel
fundamental na obtenção de sucesso econômico dos aprendizes (LORELAY,
2009, pg. 57).

Além da língua materna, uma segunda língua pode ser extremamente eficaz na
construção dos saberes pois ao utilizar outro idioma podemos ir além das disponibilidades
linguísticas locais. Se o idioma utilizado para comunicação, estudo e pesquisa é o inglês, a
possibilidade de obter variados resultados é maior, segundo Lane em seu artigo no site
Babbel, o inglês é a terceira língua mais falada no mundo, possui 360 milhões de falantes
nativos e aproximadamente 500 milhões de pessoas que falam o idioma como segunda
língua, ou seja, quase 900 milhões de falantes o que significa que aproximadamente 14%

287
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

do planeta fala inglês, enquanto o português é falado por aproximadamente 215 milhões de
nativos, representando apenas 3,5% de falantes no mundo. O número de falantes da língua
inglesa é expressivo pois é a língua das comunicações, negócios e do entretenimento,
sendo assim, questões que circundam à aplicação do inglês no currículo escolar, precisam
ser pensadas, para que o uso desta língua e cultura seja proveitoso no desenvolvimento
linguístico e cultural dos alunos.

USUFRUINDO DA TECNOLOGIA

A internet tem aproximado o homem culturalmente, o compartilhamento de


informações tem sido intenso e ininterrupto nos últimos tempos, as culturas se relacionam,
os pensamentos se impõem, e as discussões acontecem num ritmo frenético no mundo
virtual. Não se limitando apenas nas produções culturais-locais, com a tecnologia da
internet o aluno pode amplamente acessar inúmeras produções de diversas culturas
potencializando sua visão de mundo proporcionando maior interação com outras realidades
sociais e outros modelos de vida.
Ao longo da história a tecnologia contribuiu fortemente para mudança de
comportamento social, e atualmente a internet flexibiliza o tempo e espaço, manipulando o
contato humano, tornando a comunicação física e presencial algo obsoleto. As distâncias
calculadas pela geografia, não são mais um problema para o intercâmbio cultural, pois com
toda a conexão virtual disponível e estendida mundialmente é possível compartilhar e
receber cultura.
O ensino público brasileiro ainda está atrasado no que se diz respeito ao
intercâmbio de culturas na sala de aula, por diversos motivos, muitos deles relacionados a
situação econômica, educacional e política do país. Outro fator que agrava o atraso dos
alunos é o modo como os temas e disciplinas são abordados, muitos professores possuem
métodos ultrapassados para o ensino de cultura e língua.
O professor precisa estar pronto para lidar com os assuntos que circulam o mundo e
entender o papel da escola neste processo de compartilhamento de informações e precisa
saber utilizar as tendências, notícias e modas ao seu favor, transformar assuntos
aparentemente paralelos em assuntos sincronizados com a disciplina, é possível que o
professor atraia os alunos por meio das temáticas discutidas e vivenciadas por eles. É
interessante que o professor se ―sintonize‖ com o mundo e entenda os espaços, as

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

atividades e tudo que está para além da sala de aula, para que seja possível converter a
cultura dos alunos em educação, transformar a tecnologia em uma ferramenta apropriada
para sala de aula.

OS ALUNOS E A MÚSICA POP

A música esteve presente em toda história da humanidade exercendo diversos


papéis e atualmente está fortemente presente no entretenimento mundial. Através dela
podemos compreender outra língua, contexto e cultura, o ritmo musical reproduz marcas
características de uma cultura, suas composições expressam ideias, sensações e
experiências que podem influenciar o comportamento social, estas influências precisam ser
pensadas, pois as discussões externas que são absorvidas pelos alunos não podem ser
separadas das disciplinas abordadas dentro da sala de aula; é necessário que o professor
saiba relacionar o conteúdo apresentado dentro da escola com o conteúdo apresentado fora
dela; é necessário tornar viável as atividades para que se relacionem com a realidade em
que os alunos estão inseridos.

[...]percebi que as aulas de inglês nos moldes que eu conhecia nunca


funcionariam numa escola situada em meio a uma área de invasões onde água
encanada e luz elétrica não faziam parte da rotina da comunidade. Seriam
necessárias várias modificações no planejamento das aulas. A primeira delas
consistia no reconhecimento das realidades em que viviam meus alunos e das
aspirações deles. (LORELAY, 2005, p.89).

não podemos ignorar métodos alternativos de aprendizado, nem podemos ignorar


uma das fontes mais populares de circulação de informação, é necessário repensar
diariamente os métodos utilizados na educação, a aula precisa ser acima de tudo um
momento interessante, de acordo com Baoan (2008) a música pode servir como estímulo,
motivando e aumentando o interesse dos alunos na aprendizagem de línguas, sendo assim a
música pode facilitar esse processo, ela está inserida no cotidiano dos alunos, que a
consomem em larga escala reproduzindo pensamentos e mensagens que encontram nelas.
Uma música que se populariza entre os jovens, automaticamente se torna uma
música pop, geralmente esta música está presente em diversos meios de comunicação e é
vendida em larga escala assumindo papéis de importância na indústria cultural, quanto
mais a música é reproduzida, mais sucesso a ela é atribuído, e o ciclo só acaba com a
popularização de uma outra produção. Algumas produções fonográficas se tornam tão

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

icônicas na cultura mundial que se tornam um sucesso atemporal, infinitamente


reproduzidas por todo o mundo, o conceito de sucesso torna a música pop não somente
uma expressão de um grupo, ou uma tendência, mas um status social, posição de poder ou
um local de fala, essas músicas possuem poder de narrar e geralmente se tornam hinos
entre os jovens, representando pensamentos da juventude.
As temáticas abordadas na música pop precisam ser interpretadas e discutidas; a
popularidade dela pode representar traços de uma cultura pautada no consumismo
frenético, tornando o conceito de sucesso financeiro extremamente popular entre os jovens
deste século que estão inseridos num mundo guiado pelo dinheiro.
Sabendo da importância atribuída pelos alunos com a música pop e do poder
exercido por ela, o professor pode utilizar canções como suporte para mediar o
conhecimento dentro da sala de aula, é possível utilizar a letra, ritmo, temática, gênero e
tudo que constitui a obra para criticar ou representar um tema de acordo com as
necessidades da atividade. A música pop pode ser utilizada como plano de fundo para aula
e pode ser esmiuçada e discutida em detalhes, relacionando o contexto da música ao
contexto vivido pelos alunos. Existem infinitas músicas de diversas culturas que tratam de
diferentes temas e cabe ao professor estudar as opções adaptando as produções artísticas ao
currículo escolar.

AS MÚLTIPLAS FACES DO POP

Para falar sobre as diversas faces do pop é imprescindível citar dois grandes nomes
que mudaram as formas como a música popular passou a ser representada, foi a partir dos
anos 80 que Michael Jackson (cantor mundialmente conhecido como rei do pop)
influenciou toda a cultura das gerações seguintes com sua música e performance. Seu
trabalho foi influenciado por diversos tipos de atores e dançarinos do cinema dos anos 50,
entre eles podemos destacar os trabalhos de Fred Astaire e Genne Kelly. Utilizando a
Dança de rua como base, reinventou as clássicas performances de Elvis Presley e James
Brown; transformou aspectos banalizados da cultura afro em referência, trouxe para a
universo de espetáculos musicais coreografias que desafiavam a razão e a lógica, seu maior
trunfo foi representar a cultura popular, detalhe que até antes de sua chegada era pouco
valorizado e explorado nos espetáculos, Michael Jackson cresceu no entretenimento e
reinou absolutamente sozinho neste universo musical até a chegada de Madonna em 1984.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Foi a partir de 1984 que Madonna ferozmente conquistou seu espaço,


revolucionando a posição das mulheres na música, além de contribuir como uma
representante feminina no mundo da dança, canto e performance, trouxe para a música pop
a crítica ácida ao sistema político, instituições religiosas e organizações diversas.
Posicionou se firmemente em apoio às minorias utilizando a música como um instrumento
de protesto; foi pioneira em experimentos que fundiam as sete artes (Música, Artes
Cênicas, Pintura, Escultura, Arquitetura, Literatura e Cinema) sua capacidade criativa e de
reinvenção a tornou uma referência para o mundo das artes populares; transformou os
pacatos shows musicais (focados apenas na música) em espetáculos cheios de adereços
com inúmeras trocas de figurinos, atuações teatrais mescladas à dança.
Todas estas habilidades de Madonna e Michael Jackson os tornaram personalidades
muito importantes e influentes no mundo da música, portanto, a cultura pop não seria a
mesma sem a existência destes dois gigantes que contribuíram para a evolução das
performances musicais. Ambos repaginaram o entretenimento musical dos últimos 30
anos, são artistas que ainda influenciam muitas culturas e muitas produções artísticas, não
somente musicais, são artistas ―multiuso‖ presentes na música, cinema, literatura e mais
recentemente estão presentes também na educação.

DEFININDO A MÚSICA POP

A música pop ao longo da história em diversos momentos representou as ideias de


pequenos grupos ou em outros casos representou uma cultura inteira, uma nação. A música
pop utiliza como recurso técnico a repetição de palavras, frases e refrãos em suas
composições, abusa de rimas e possuem em sua maioria letras simples que abordam
assuntos relacionados ao cotidiano, este sistema simples torna as composições da música
pop atraentes e representativas por sua ―arte acessìvel‖ e legibilidade.
Além do som, a música pop tem outras finalidades para o público que a consome,
podemos exemplificar com a dança, muitos jovens brasileiros que consomem estas músicas
de língua inglesa, na grande maioria, não entendem as mensagens contidas nas letras,
porém, grande parte dos consumidores são atraídos pelo ritmo e melodia tornando a música
não somente um objeto de apreciação, mas também um objeto de ação.
Esta relação da música pop com a dança se deve a herança do Disco, Euro pop e
Funk, cantoras como Cher, Donna Summer e grupos como ABBA, Bee Gees e Ohio

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Players inauguraram as pistas de dança ao redor de todo o mundo entre as décadas de 60 e


70 unindo gêneros musicais jamais experimentados, ousando misturar instrumentais com
sintetizadores, consequentemente a música nesta época não unia somente a diversidade
sonora, unia culturas, etnias, gêneros, classes. Foi então a partir deste período que toda a
produção fonográfica dançante e popular tornou se automaticamente música pop.

A INDÚSTRIA DO ENTRETENIMENTO

A indústria fonográfica pop tem crescido consideravelmente nos últimos dez anos,
o uso da internet como plataforma de divulgação potencializou a manifestação desta
cultura, posterior à internet todo o entretenimento dependia de redes de televisão e rádio
que entre as décadas de 80 e 90 desempenharam papel fundamental para firmar a presença
do pop no mundo musical.
No início dos anos 50 o rádio tornou se o principal veículo de transmissão de
músicas, em seguida a televisão se tornará o principal meio para expressar essa cultura; a
popularização da televisão no fim dos anos 60 proporcionou espaço para as famosas
performances, foi por meio de programas da televisão americana como Saturday Night
Live que o mundo passou a ouvir e ver a música pop através da dança. As premiações
musicais, shows via satélite, programas de auditório, diluíram a cultura pop americana por
todos os continentes. Apoiados na experiente indústria Hollywoodiana a televisão
americana tornou se uma das mais influentes no cenário musical.
Em 1981 o canal Music Television mais conhecido popularmente como MTV
(Canal subsidiário da Viacom Media Network) é fundado, tomando para si toda a atenção
da produção cultural americana, pois seu conceito era reproduzir videoclipes durante toda a
programação utilizando DJs (Disco Jóquei) como apresentadores. Este projeto foi um
sucesso instantâneo pois se distinguia dos inúmeros canais que não possuíam foco na
reprodução de músicas.
Em um regime rígido e ininterrupto de lançamentos, o canal tornou se o centro das
atenções tratando de assuntos relacionados ao mundo pop, desde programas de bastidores a
shows reproduzidos ao vivo para todo o mundo, a MTV viabilizou a propaganda e a
promoção de artistas tornando os ainda mais populares e influentes. Ano a ano a estética
dos videoclipes, espetáculos e premiações musicais se tornavam mais opulentas e
―glamourizados‖, a música pop seguia as proporções televisivas da época, relacionando o

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

cinema hollywoodiano, teatro e uma infinidade de vertentes artísticas que se fundem ou se


relacionavam com a música pop.
Críticos e apreciadores de música no geral, consideram a música pop fútil,
comercial e irrelevante. Se observada pela perspectiva de funções ou representações a
música pop pode tomar diversas formas, ela é vasta e seu catálogo é imenso. O gênero Pop
está ligado a popularidade das canções e o fato deste tipo de produção está intimamente
ligada a performances dançantes, seu ritmo, composição, e melodia não podem ser
definidos pois cada época possui seu traço e sua música, por exemplo: o Disco, New Wave
e o Funk foram os gêneros mais populares nos anos 70 enquanto o Rock, Dance Music e
R&B se popularizaram nos anos 80, assim como o Country, Euro pop e o Metal foram
extremamente populares nos anos 90. Sendo assim dificilmente poderemos classificar ou
determinar a qualidade ou um estilo específico para a música pop já que cada período tem
sua marca e sua necessidade, o discurso dos anos 70 não é o mesmo dos anos 2000, os
problemas sociais tão representados na música mudam de acordo com a cultura, tempo e
sociedade, ou seja, existem músicas e ritmos diferentes para pessoas, necessidades e
épocas diferentes.
Dizer que a música pop é irrelevante é um equívoco gravíssimo, se ela está presente
em diversas culturas e está diluída em diversos gêneros musicais, logo, possui poder de
adaptação cultural e pode transmitir e reproduzir as ideias de uma cultura numa escala
mundial, se está cultura tem o capital como seu principal pilar este aspecto se refletirá na
música e se propagou no mundo possuindo um alto poder comercial e automaticamente
pode exercer influência sobre outras culturas, estas influências não podem ser ignoradas
principalmente se elas estiverem dentro do ambiente escolar; se esta música circula
livremente entre os jovens é necessário relevar todos estes aspectos que tornam a música
um objeto riquíssimo para difundir ideias.

FERRAMENTA DE APRENDIZAGEM

Para desenvolver atividades para ensinar com a música pop é necessário pesquisa e
acima de tudo sincronia com as tendências universais da música e atualização sempre que
possível sobre as modas musicais e tudo que se discute no mundo da música, conhecer o
material utilizado proporcionará maior segurança para o professor e credibilidade para os
alunos, é dever do professor estudar os antecedentes e referências da música, o tipo de

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

linguagem utilizada também deve ser uma prioridade para o professor, a música está
inserida em algum contexto social, e geralmente é uma narrativa, ou seja, conhecer e
buscar entender as diversas nuances da sociedade podem ajudar o professor a compreender
as mensagens nas músicas.

 Identificar o perfil musical dos alunos pode facilitar o processo de escolha do


trabalho.
 Consultar os alunos previamente pode evitar frustrações com relação a escolha do
material a ser utilizado.
 Atentar se na busca por informações sobre o material e seu impacto sobre a
sociedade.
 Estudar o histórico de trabalhos do artista pode ajudar a compreender as motivações
para a atual produção.
 Analisar a recepção da crítica especializada e do público no geral poderá contribuir
para entender a relevância da música.

EXEMPLO DE MATERIAL PARA PLANEJAMENTO DE AULAS

Para entender a aplicação da música pop no ensino utilizaremos como material de


exemplo o trabalho produzido pela cantora Beyoncé lançado no início do ano de 2016, seu
sexto álbum de estúdio intitulado LEMONADE. O trabalho foi apresentado ao mundo
como álbum visual, um conceito artístico contemporâneo amplamente explorado nos
últimos 5 anos na cultura pop, estes álbuns visuais consistem em uma representação visual
(filme) para as músicas, cada faixa do disco possui um vídeo clipe, que compilados tornam
se um segmento cinematográfico, constituindo uma espécie de curta metragem.
Ambientado e inspirado na cultura negra do Sul dos Estados Unidos o álbum
LEMONADE aborda as experiências de vida da mulher negra através da história, com
ajuda dos poemas de Warsan Shire uma poeta Somali de 27 anos o enredo denuncia o
machismo, protesta contra o preconceito racial e a artista utiliza discursos políticos como
alertas; O trabalho faz um tributo ao movimento Black Lives Matters que protesta contra o
preconceito racial e vem se fortalecendo nos Estados Unidos nos últimos três anos.
Beyoncé utiliza de todos recursos da cultura do entretenimento para dar visibilidade a
mulher negra e enaltece a cultura afro-americana transmitindo diversas mensagens, dentre

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

elas, podemos destacar o tìtulo do álbum, inspirado no ditado popular ―Se a vida lhe
oferecer um limão, faça uma limonada‖. A artista incentiva seu público a tentar
transformar adversidades em vantagens, tentando superar as dificuldades da melhor forma
possível.
A crìtica especializada considera o álbum LEMONADE um ―Divisor de águas‖ na
carreira da cantora Beyoncé. De acordo com as resenhas críticas no site Metacritics o
álbum possui excelente média, 92 de 100 pontos que o site costuma intitular de Metalscore
uma análise universal, baseada em 33 críticos especializados. Este número é extremamente
satisfatório se comparado com a média de notas do álbum anterior da artista, o álbum
BEYONCÉ (2013) recebeu média final de 85 Metalscore.
O site compila e media as críticas especializadas sobre diversos trabalhos do mundo
do entretenimento. A nota máxima (100) para o álbum LEMONADE foi atribuída por um
jornalista do Telegraph, um importante e antigo jornal do Reino Unido, para Bernstein
(2016) ―LEMONADE é de longe o álbum mais forte de Beyoncé [...] Com LEMONADE,
Beyoncé prova que existe uma linha fina entre amor e ódio‖ (tradução nossa).
Notamos que os ―mais importantes‖ crìticos dos maiores jornais são em sua maioria
homens brancos de países desenvolvidos, europeus ou norte-americanos. Avaliar o álbum
apenas sob esta perspectiva é problemático, sendo ele um trabalho voltado para um público
diferente, público em sua maioria, feminino, negro e pobre. Sendo assim, é necessário
avaliar o trabalho também sob perspectiva do público em geral e considerar a crítica tecida
por ele. A atenção exclusiva à crítica especializada em música é um erro e pode deixar
lacunas na avaliação que somente o público alvo (mulheres negras e pobres) que tem uma
experiência de vida diferente e um olhar sobre o mundo e uma narrativa exclusiva pode
preencher.
Em diversos aspectos o público comum pode avaliar o trabalho com mais
propriedades, à experiência das mulheres ouvintes em relação ao discurso da artista tornam
o público alvo um potencial crítico. Toda esta preocupação na perspectiva de avaliação se
dá pelo histórico que o homem branco-europeu-cristão tem sobre a arte em geral, na qual
as obras só são validadas sob a perspectiva europeia-caucasiana-cristã-heteronormativa,
geralmente a arte com influências e referências africanas é tida como algo extraordinário,
excêntrico e seus valores são atribuídos como exóticos.

Devemos estar atentos ao fato que tecer elogios à beleza do negro, a sua dança,
música e culinária não constituem um avanço no combate ao preconceito étnico-

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

racial, nem tão pouco asseguram aos negros, condições de igualdade na


ocupação dos espaços sociais nas diferentes áreas do conhecimento. (Paixão,
2009, p. 4).

O projeto LEMONADE foi bem recebido pela crítica popular e a aprovação não se
deteve apenas nos grandes jornais, as declarações, resenhas de ativistas negras no site
Youtube foram bastante expressivos em todo o mundo, em diversas resenhas de sites
mulheres de diversos locais do mundo em diversas línguas resumem o álbum como um
excelente representante na cultura negra feminina e um importante trabalho de
emponderamento na contemporaneidade.
O trabalho foi promovido sem descansos no primeiro semestre do ano de 2016 e
rendeu excelentes marcas de reprodução em torno do mundo. Beyoncé durante meses
atraiu toda a atenção para seu trabalho, no universo da cultura pop o projeto artístico
obteve êxito e até o momento é amplamente reproduzido, comentado e discutido pelos
jovens de todo o mundo tornando se um material excelente para ser utilizado dentro da sala
de aula, já que o mesmo é repetidamente discutido fora dela, principalmente nas redes
sociais.

UTILIZANDO O MATERIAL SELECIONADO

A partir deste trabalho musical podemos utilizar a presença do discurso étnico e


racial como ponto de partida para discussões que englobam a diversidade cultural, é
interessante que o professor possa com trabalhos como este desmistificar esta cultura que é
tão vista como exótica e incluir na agenda de estudos estas temáticas considerando e
reforçando a existência e a natureza da cultura afro em nosso país.
Através dos poemas de Warsan Shire inseridos no álbum podemos analisar o
discurso contra o racismo e a posição da mulher negra na sociedade, em uma perspectiva
de análise histórica o professor pode utilizar este trabalho musical como estimulante para
pesquisas que envolvem o estudo sobre o processo de escravização e todo o contexto
político e social que envolve a história da mulher e do homem negro.
Em uma aula de línguas estrangeira além da prática da leiture e escrita o Listening
é essencial, e a música pode ser um excelente objeto para trabalho, além da composição
escrita podemos utilizar o som, tornado se então uma excelente ferramenta para atividade
que demandam dinâmicas. O excesso de repetição contida nas músicas da cultura pop,

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

embaladas por ritmos dançantes tornam o processo de absorção mais rápido e prazeroso; o
contexto em que as palavras são colocadas, metáforas que são identificadas e interpretadas,
e os diálogos que podem estar presentes nas composições são alguns dos aspectos
presentes na música que podem melhorar o processo de aprendizado.
O vocabulário das composições musicais geralmente refletem a condição
linguística de um grupo ou em alguns casos pode representar uma variação linguística, seja
esta variação uma expressão formal ou informal, aspectos como estes tornam o processo de
identificação do idioma mais natural e gradativamente a tendência é de melhorias no
processo de aquisição da língua.
As denúncias encontradas neste trabalho artístico são assuntos extremamente
recorrentes em todo o mundo, tornando o álbum um material mais ―refrescante‖ para
iniciar discussões já que o trabalho engloba geografia, história, arte, sociologia, filosofia,
antropologia e outros de forma suave, um excelente ponto de partida para introdução de
outros materiais de cunho acadêmico que demandem mais dedicação e leitura.
Muitos alunos possuem dificuldade para imergir em diversos assuntos propostos
pela academia principalmente assuntos que se relacionem com a cultura afro muitas vezes
isto acontece pelo não-reconhecimento da cultura, reconhecer este traço na cultura
brasileira é importante para o desenvolvimento social e iniciar os debates com a
flexibilidade da arte na música é um excelente estimulante e pode facilitar um processo de
conhecimento que até então seguindo as recomendações tradicionais da academia pode
parecer enigmático.
Mais facilmente um aluno do ensino público estará aberto a uma produção do
entretenimento como um álbum, do que um livro, o professor como mediador do
conhecimento deve juntamente com seus teóricos discutir as produções e incentivar os
alunos no processo de aquisição de conhecimento, buscar aprofundar a pesquisa utilizando
estes materiais como porta de entrada. Como o próprio título do álbum propõe o professor
pode com estes ―limões‖, que seriam relativos aos produtos que a mídia e o entretenimento
oferecem em larga escala para os jovens alunos e fazer uma ―limonada‖ ou seja,
transformar as desvantagens em vantagens no ensino de cultura e língua estrangeira.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

As possibilidades são inúmeras para discutir história, interpretar as artes, situar-se


geograficamente, analisar a linguagem e compreender contextos sociais através da música
pop, através dela, podemos iniciar estudos sobre as influências pelas quais este grupo de
alunos sofrem, verificar as possibilidades de acentuar ou contestar as mensagens contidas
nos trabalhos musicais, por meio do ritmo e toda a alegoria por trás das grandes produções
pop podemos tentar atrair alunos para dentro dos temas de forma que os envolvam e se
relacionem com as temáticas de forma mais simples e objetiva, a produção pop pode
oferecer um plano de fundo para as aulas exemplificando situações, contextos históricos,
pode também enriquecer e facilitar o contato do aluno com a língua estudada tornando o
processo possivelmente mais atrativo e prazeroso. O extenso catálogo de músicas pop pode
oferecer ao professor infinitas possibilidades, adaptando a temática das músicas ao
currículo da disciplina seja ela relacionada a cultura ou língua inglesa.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

SESSÃO COORDENADA “HISTÓRIA E GÊNERO”


COORDENADORES:
MARIANA MOREIRA NETO, LIGIA CALADO DE MEDEIROS &
JÚLIA BENZAQUEN

A CONDIÇÃO FEMININA NO SÉCULO XIX EM “O PAPEL DE PAREDE


AMARELO”

MAYARA MARQUES DE SANTANA112


UFCG
[email protected]

PALOMA MARIANO DUARTE 113


UFCG
[email protected]

RESUMO
Este artigo tem como objetivo analisar a condição feminina no conto ―The Yellow
Wallpaper‖ (1892), da escritora Charlotte Perkins Gilman, a partir do contexto patriarcal
do século XIX. Também será discutida a presença de elementos góticos e a influência da
escrita de Poe (1809-1849), particularmente suas referências do grotesco e do arabesco
contidas na obra de Gilman para ressaltar a opressão da mulher, e uma análise comparativa
com a obra Jane Eyre (1847) de Brontë. Este texto utiliza-se dos aportes teóricos tais como
Gibbs (1994), inspecionando a crítica da autora em relação à condição de repressão da
mulher, e Stein (1983) para observar os aspectos góticos utilizados. Por fim buscou-se
contribuir para uma reflexão sobre a situação opressiva que a mulher foi condicionada no
contexto do conto.
Palavras-chaves: patriarcal; gótico; repressão; grotesco.

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Graduanda em Letras-Língua Inglesa pela Universidade Federal de Campina Grande-Cajazeiras.
113
Graduanda em Letras-Língua Inglesa pela Universidade Federal de Campina Grande-Cajazeiras.

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INTRODUÇÃO

O conto ―The Yellow Wallpaper‖ (1892) situa-se em um contexto social marcado


pela repressão da mulher e a extrema valorização da figura masculina, nesse sentido a
autora apresenta a opressão feminina em relação ao matrimonio, a sociedade e ao poder do
homem. Observa-se que transparecem questões sociais da época vivida pela protagonista,
em uma sociedade patriarcal onde mulheres, crianças, negros e escravos eram vistos
apenas como objetos sem opinião própria. Gilman desenvolve em seu conto lutas internas
de uma época onde a literatura era uma das únicas formas de liberdade para as mulheres.
Nas análises presentes neste trabalho serão apresentados traços de grande
importância do gótico feminino que expressam o sofrimento das mulheres sobre a
repressão patriarcal, que subseguem na loucura da mesma. Aprisionada em seus
pensamentos e medos a personagem encontra na literatura e em sua própria loucura uma
forma de libertação da vida imposta pelo marido e pela sociedade em vista de sua condição
social considerada inferior ao homem. Em seu conto, Gilman faz uso de metáforas e
simbolismos e traços sobrenaturais, como também de arranjos psicológicos para retratar de
forma brilhante as provações sofridas pelo gênero feminino na luta pela igualdade de
gênero.

CHARLOTTE PERKINS GILMAN: UMA MULHER SUBVERSIVA

A escritora americana Charlotte Perkins Gilman era conhecida como uma jornalista
feminista que defendia os direitos das mulheres, ela nasceu em 1860, em Hartford,
Connecticut, e escrevia sobre temas como justiça e desigualdade social, porém tinha como
foco principal de escrita a luta das mulheres contra o aprisionamento dentro da sociedade e
dentro do casamento. Em muitos de seus trabalhos como por exemplo relativas às
crianças (1900), The Home (1904), e o Trabalho Humano (1904), Mulheres e Economia
(1898), Gilman apresenta seu ponto de vista em relação a criação dos filhos e a condição
da mulher, que está diretamente ligada as tarefas domésticas.

Na literatura, ela escreveu contos e histórias, porém sua obra de maior destaque foi
o conto ―The Yellow Wallpaper‖ escrito em 1892, que narra a vida de uma mulher
aprisionada nos seus próprios pensamentos, que não é compreendida nem pelo marido e

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nem pela sociedade. Este conto foi uma revolução para sua época, pois tratava em forma
de sátira o tratamento do repouso, recomendado as mulheres com problemas psicológicos,
além de traços da vida da autora, como por exemplo, o casamento mal sucedido, a
depressão pós-parto, entre outras características comuns à vida das mulheres à época.

Gilman casou-se pela primeira vez em 1884 com Charles Walter Stetson, e tiveram
uma filha, Katherine. Depois da maternidade Charlotte apresentou graves crises de
depressão, sendo consultada por um médico chamado Dr. Weir Mitchell. Ela foi orientada
a repousar por algum tempo até que se apresentassem melhoras, mas ela decide romper
com o tratamento, e se mudar para a Califórnia, onde se separa do primeiro marido, e se
casa com George Houghton Gilman. Em 1935, esses aspectos sobre da vida da autora
foram descritos em sua autobiografia The Living of Charlotte Perkins Gilman.

A escritora publicou vários poemas, sempre abordando questões feministas, como a


mulher ter direito ao voto, o aprisionamento das mulheres em relação ao casamento e as
injustiças sofridas por elas. Ela apresenta isso em um dos seus romances intitulado Herland
(1915), uma utopia feminista que obteve grande sucesso. Depois de se casar com George,
seu primo, com quem viveu até sua morte 1934, ela foi diagnosticada com um câncer de
mama e um ano depois da morte dele, cometeu suicídio.

O PAPEL SOCIAL DA MULHER: FEMINISMO E PATRIARCALISMO

Quando Gilman escreveu o conto ―The Yellow Wallpaper‖, os Estados Unidos


passavam por mudanças importantes no processo de industrialização e aspectos sociais,
incluindo questões voltadas ao papel social da mulher. Contudo nos século XVIII e início
do século XIX, algumas mulheres não se limitavam apenas nos trabalhos domésticos,
muitas delas trabalhavam, por exemplo, em lojas da família, ou em sua própria loja,
principalmente mulheres de classe média. Outras de classe baixa trabalhavam em fazendas,
e ainda como professoras, o que fomentou mais tarde com a criação de escolas para
mulheres. No entanto, as mulheres ainda ficavam limitadas a cargos voltados para o lar, o
que ainda era uma forma de restrição imposta pela sociedade patriarcal.

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Em meio às lutas travadas pelas mulheres daquela época, cresceu a descentralização


do homem, onde somente ele trabalhava, e mantinha cargos fora do eixo doméstico. Em
reação à exclusão social feminina, surgiu o movimento feminista, caracterizado
principalmente por debater sobre os papeis femininos e masculinos na sociedade, bem
como sobre a subordinação da mulher no campo social, justificada pela questão sexual, em
que se apropriam das diferenças biológicas para justificarem a inferioridade das mulheres,
reduzindo-as apenas a tarefas ligadas a reprodução da família e os cuidados do lar.

Na Idade Média, no período Feudal, as mulheres tinham certa atuação na economia,


mais estava voltado sempre para as questões domésticas, como por exemplo, bordar e
trabalhar no tear, o que enriquecia a figura da mulher daquela época por ser considerada
com muitas qualidades e digna de um marido rico e de grande ascensão social. Nesta
época, existia uma hierarquia entre homem e mulher, um padrão escolhido e imposto pela
sociedade masculina, onde reinava a opressão voltadas as mulheres e a imposição do
casamento, dentre outras políticas de comportamento, portanto, o papel feminino limitava-
se apenas a Mulher-Mãe-Esposa.

A religião também servia como apoio para justificar a subordinação da mulher


perante o homem. Alguns trechos bíblicos apresentam Adão e Eva como casal modelo,
logo foram utilizados como um dos meios para justificar a postura da mulher, sempre
submissa ao homem, porque o castigo de Eva pelo pecado foi ser submissa ao marido.
Assim como também, a divergência salarial insistia em diminuir o valor da mulher cada
vez mais, pois elas mesmas trabalhavam com carga horária igual ou superior aos homens e
eram mal remuneradas, e o trabalho exercido por elas tornou-se desvalorizado e com
salários mais baixos.

Na sociedade patriarcal, a ideia de inferiorização da mulher a partir da reprodução


biológica era muito utilizada, pois acreditavam que a mulher era biologicamente
fragilizada e incapaz, por isso, elas eram excluídas da sociedade. Este modelo de família
vem sendo desconstruído a partir das políticas de ascensão a mulher, e as oportunidades
abertas para ela no mercado de trabalho. Alguns fatores contribuíram para o
enfraquecimento da força do patriarcalismo, como por exemplo, os movimentos
feministas, a inserção ao mercado de trabalho, os avanços na medicina que proporcionaram
mais controle sobre a gravidez, e a rápida popularização das ideias.

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Todavia, toda a desvalorização da mulher em diferentes aspectos, era tudo o que


Charlotte Perkins Gilman não concordava, porém ela apresentou em suas obras críticas e
sátiras em relação a essa sociedade opressora e patriarcal do século XIX, lutando ao lado
do movimento feminista e das mulheres por direitos e por uma sociedade igualitária,
utilizando assim de uma literatura gótica para expressar esses anseios.

A LITERATURA GÓTICA E A INFLUÊNCIA DE POE NA ESCRITA DE


GILMAN

Nesse sentido, a literatura gótica desabrocha na Europa em meados do século


XVIII. Na Inglaterra, quando o romancista inglês Horace Walpole (1717-1797) publica O
Castelo de Otranto em 1764. A exploração de temas góticos, tais como, o conflito entre o
bárbaro e o civilizado, a dissolução das fronteiras entre o eu e o outro, a interpretação entre
o natural e o sobrenatural, a utilização dos motivos como o duplo, fantasmas, criaturas
sobrenaturais, plano metafísico são presentes nesse estilo.

Além disso, as paisagens medievais e naturais ganham um grande significado nesse


tipo de literatura, a exemplo de castelos, templos, florestas, mares, muitas vezes
representando o desconhecido, o oculto conjuntamente com o viés religioso, com rituais
nas florestas, nos quais o paganismo é notável, a exemplo de obras tais como: A letra
escarlate (1850), Drácula (1897) e Mobidick (1851).

Assim, a literatura gótica é uma mistura do racional e emocional, do natural e


artificial, da perfeição e imperfeição. Dessa maneira, esses aspectos como as sombras, o
macabro, o obscuro e o sobrenatural agem de modo a envolver o público leitor em uma
atmosfera de mistério, tensão e satisfação, pois incentiva a conhecer a outra face da vida,
vencendo seus próprios limites, também aborda a tristeza e desilusões.

Portanto, pode-se compreender que o gótico liberta o público das amarras


impostas pela sociedade, das amarras decorrentes do belo, da perfeição, do colorido, do
harmonioso, logo funcionando como um movimento contra o racionalismo exacerbado.
Entre outras linhas do gótico também, há ―o gótico feminino‖, definido por Stein (1983,
p126): ―The female Gothic may thus be seen as a version of the Gothic created by women

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authors to explore formely unspeakable, ―monstrous,‖ aspectros of women‘s lives‖114 e é


exatamente o que Gilman realça em seu conto, denunciando a opressão feminina pelo
patriarcado, sua submissão como gênero inferior, a incapacidade da mulher com escritora,
como resultado do controle da sociedade patriarcal.
No gótico feminino, a viagem é um motivo que representa a viagem interior
feminina. A literatura feminina utiliza-se desse elemento como metáfora, simbolizando a
independência, a liberdade almejada pelas mulheres, uma vez que a mulher é vista como
monstro por desafiar os preceitos da sociedade, por serem, por exemplo, escritoras que se
rebelam por serem excluídas, buscando a verdade e que reagem contra a vida de submissão
feminina. Outro elemento desta vertente é a mulher como louca. É através da loucura que
ela reflete sua condição de aprisionamento, descobrindo sua subjetividade, por isso Stein
(1983, p. 130) aponta: ―Some female writers see madness as insightful, as a heroic inner
journey, a way to integrate the self.‖115 Assim elas tentam se reintegrar à sociedade, por
meio da loucura buscando se libertar das amarras, ao refletirem sobre sua condição
conseguindo assim descobrir seu eu escondido.
E assim, seguindo este estilo literário da psicologia do terror, um importante
escritor americano ganhou grande destaque, Edgar Allan Poe (1809-1849). Os temas
recorrentes de suas obras são a morte, o luto, o macabro, posicionando-se com seus
romances sombrios a uma resposta contra transcendentalismo, movimento esse que
qualificava autores como Walt Whitman (1819-1892), Hawthorne e Melville, pois foram
chamados de transcendentalistas por conta do viés religioso, por vezes messiânicas de suas
obras.

Aliás, muitos dos personagens de Poe sofrem de problemas psicológicos, e são


maníacos, enlouquecidos, percebemos que essas características são refletidas na mulher do
conto The Yellow Paper. Considera-se que essa obra tem influência do estilo de Poe, não
somente a parte psicológica de Poe refletida na personagem, mas Gilman vai além na sua
escrita quando insere o grotesco e o arabesco também característica da obra Poe‟sTales of

114
"O gótico feminino pode, assim, ser visto como uma versão do Gotico criado por autoras mulheres para
explorar anteriormente o horrìvel,―mosntruoso‖, "aspectos da vida das mulheres". (Stein, 1983, p. 126,
tradução nossa)
115
Algumas escritoras femininas veem a loucura como perspicaz, como uma heróica jornada interior , uma
maneira de integrar a si (STEIN, 1983, p. 130, tradução nossa)

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the Grothesque and Arabesque (1840)116 tratando do padrão do papel de parede, no qual
Poe relaciona a algo ―estranhamente misto e fantástico‖, assim de acordo com Davison
(2004, p.64) ―The arabesque designs are active symbols of Poe‘s efforts to melt away the
rigid pattern that is imposed by man‘s reason‖ .117

Logo, são esses elementos que Gilman alcança no seu conto, questionando a
sociedade patriarcal de forma simbólica, através dos arranjos ornamentais do papel de
parede arabesco, que é algo grotesco na literatura, remetendo a idéia de uma câmera
fotográfica, onde uma visão distante se mostra uma imagem bonita, mas de perto é algo
conflituoso, perturbador, pinturas incongruentes, feias, bizarras com formas estranhas,
obedecendo a um padrão geométrico, que significamente é feito por homens. E logo a
cultura árabe é bastante representativa nesse conto, pois é totalmente repressora no modo
como as mulheres são tratadas nessa sociedade, tornando-se uma referência pra Gilman
para refletirem e criticarem a condição da mulher em mundo dominado por mentes
masculinas.

A CONDIÇÃO FEMININA NO CONTO THE YELLOW WALLPAPER

O conto ―The Yellow Wallpaper‖, caracteriza-se como autobiográfico. Ele é


narrado em primeira pessoa por uma narradora homodiegética, a qual observa-se que a sua
perspectiva passa pela visão da própria narradora protagonista, atuando em uma posição de
limitação e restrição de seus sentimentos, pensamentos e percepções. Assim, Reutes (2002,
p.82) afirma que ―essa instância narrativa não nos permite saber com certeza aquilo que se
passa (ou se passou) na cabeça de outras personagens e restringe as mudanças de lugares
ao trajeto de vida da personagem que narra‖. A narradora é uma mulher inicialmente
perturbada em decorrência de uma depressão pós-parto, e seu quadro evolui no decorrer da
narração ao ponto da loucura. Ela escreve um diário secretamente, então não se identifica,
pois é proibida de praticar atividades intelectuais.

Em relação à estrutura do texto, pode-se dizer que a forma interna se trata de um


diário e sua forma externa é um conto. Percebe-se também que a escrita é fragmentada,
induzindo ao leitor à personalidade desequilibrada da narradora e, intencionalmente, a

116
Conto do Grotesco e Arabesco de Poe (tradução nossa)
117
Os desenhos de arabesco são símbolos ativos de esforços de Poe pra fundir o padrão rígido que é imposto
pela razão do homem.‖ (DAVISON, 2004, p. 64, tradução nossa).

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autora usa uma linguagem de diário, em razão de ser algo utilizado apenas por mulheres,
sem credibilidade na literatura. Com tal característica, critica sutilmente a limitação da
mulher em produzir textos literários.

A narrativa inicia-se com a exposição do pensamento da protagonista sobre o lugar


que seu marido John escolheu para supostamente passarem o verão, junto com sua
governanta Jennie, irmã de John. O lugar é descrito como estranho, uma mansão colonial
de ar sombrio, remetendo a uma atmosfera obscura e desconhecida, aludindo ao gótico. A
todo o momento, ela desconfia que existe algo oculto, porém seu marido não dar
credibilidade aos seus sentimentos, por ser médico, e incrédulo naquilo que a ciência não
pode comprovar. Logo, percebe-se que a narradora apresenta-se de modo irônico em
relação a sua relação matrimonial ―[...] I would say a haunted house and reach the height of
romantic felicity- but that would be asking too much of fate!‖ (GILMAN, 1892, p. 1894)118
assim têm-se uma ironia verbal, pois a narradora tem consciência de sua ironia sobre a
situação conjugal, pois ela não está feliz.

De acordo com Gibbs (1994 apud CONZ, 2010, p. 10) observa-se o estudo de
três tipos de ironias, conhecidas como ironia verbal, situacional e dramática:
(a) Ironia verbal é uma figura de linguagem na qual o falante intenciona ser
entendido como falando alguma coisa que contrasta com o uso literal do que foi
dito.
(b) Ironia situacional resulta do reconhecimento de estranheza de uma dada
situação, havendo discrepância entre o resulta do esperado e o resultado real.
(c) Ironia dramática é quando há uma diferença de consciência entre a
personagem de uma obra literária e seu leitor; quando as palavras e ações
possuem significância que o leitor entende, mas não a personagem.

Além disso, em outro trecho, também encontram-se uma espécie de ironia


dramática, referindo ao que o personagem está pensando, mas que o leitor já sabe, pois a
personagem diz que está escrevendo em um papel morto, mas o leitor está tendo acesso a
essa leitura ―John is a physician, and perhaps- (I would not say it to a living soul, of
course, but this is dead paper and a great relief o my mind)- perhaps that is one reason I do
not get well faster.‖ (GILMAN, 1892, p. 1894)119

118
―[...]eu diria mesmo uma casa assombrada, e atinjo o auge da felicidade romântica — mas isso seria exigir
demasiado do destino! ‖ (GILMAN, 1892, p. 4, tradução de José Manuel Lopes)
119
―O John é médico e talvez (não o diria a ninguém, é claro, mas isto é papel morto e um grande alívio para
o meu estado de espírito) — talvez seja essa uma razão para que eu não melhore mais rapidamente.‖
(GILMAN, 1892, p. 4, tradução de José Manuel Lopes)

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Também observamos que ela escreve para distrair a mente, já que a mesma sofre
com problemas mentais, isso é uma forma de expressar seus pensamentos, já que o marido
ignora o que ela sente e também pode ser por isso que seu estado mental não melhore: ele a
trata como uma criança e por ser médico, pensa ter o controle total da saúde de sua esposa.

Nota-se que a narradora é diagnosticada, pelo marido, com uma ―leve histeria‖, e
historicamente a histeria e a depressão eram doenças comuns das mulheres no século XIX.
Assim, ela é proibida de efetuar qualquer atividade que conduzisse a um cansaço da mente.
Em vista disso, ela era proibida de escrever e questiona a insignificância que seu marido
dar a doença, e também a autora indaga de forma mais ampla e profunda, o que se pode
fazer em discordância a submissão da mulher. Gilman também está criticando a repressão
na literatura feminina, pois as mulheres eram condicionadas a escreverem apenas em
diários, pois suas escritas não eram valorizadas.

Portanto, obervar-se que ela encontra voz no diário secreto, uma representação da
mulher escritora e a repressão que a mesma sofria, relacionando com o contexto da mulher
da época, que era oprimida pela sociedade patriarcal, condicionada a uma figura frágil,
limitada e aos afazeres domésticos do casamento. Sua voz está sendo negada, mas isso tem
um caráter subversivo, pois ela tem voz através da escrita, em contraposição ao marido que
representa o vilão gótico, o qual policia e a oprime, controlando a vida de sua esposa.
Gilman inspirada na escrita de Poe, foca no aspecto sombrio, tratando a questão da
opressão feminina como sujeito inferior em uma sociedade patriarcal. Ademais, a autora
usa da verossimilhança para criticar o tipo de tratamento para a depressão existente nesse
período, da cura pelo descanso.

Nessa obra, Gilman, critica a opressão da sociedade patriarcal do século XIX e,


sobretudo o tratamento ineficaz imposto a mulher através da cura pelo descanso,
direcionado para as mulheres que sofriam de problemas psicológicos, tais como histeria ou
a depressão pós-parto, este último caracterizava a doença da protagonista, assim faz
referência, de modo crítico, ao médico que cuidou do caso da autora e recomendou esse
tratamento: ―John says if I don‘t pick up faster he shall send me to Weir Mitchell in the
fall. But I don‘t want to go there at all. I had a friend who was in his hands once, and she
says he is just like John and my brother only more so!‖ 120(GILMAN, 1892, p. 1137).

120
“O John disse que, se eu não melhorar, me enviará para o Dr. Weir Mitchell no Outono. Mas eu não
quero, de modo nenhum, ir para lá. Tive uma amiga que esteve, em tempos, nas suas mãos, e ela diz-me que

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Também destaca-se um fator simbólico: a personagem principal não tem nome, ela escreve
um diário, mas não se identifica, representando todas as mulheres anônimas que sofrem
com a opressão do sistema patriarcado.

Aliás, no decorrer do desenvolvimento do enredo, a personagem principal vai


mergulhando no seu estado de loucura, ficando em ambiente isolado em um quarto que
lembra um berçário, isso sugere a maneira infantil de como ela era tratada, como uma
criança que requer vigilância. Sendo que na verdade esse local é um antigo manicômio,
onde ela é cercada de cuidados do marido e da governanta, e é nesse espaço que toda
estória ganha sentido através da sua imaginação em relação a um papel de parede amarelo.
E ela busca compreender por que o papel a perturba. O papel também é usado para
esconder algo decadente, mas quando ela começa a olhá-lo de perto, vai se descobrindo.

Em vista disso, podemos relacionar o simbolismo da cor do papel a algo


degradável, também luz que é a oposição da escuridão. Então a protagonista começa a
refletir sua condição, a compreender a escuridão profunda que está inseria, de modo que o
papel ajuda a entender sua vida, mas também a enlouquece de vez. Ela enxerga uma
mulher presa, no papel, assim como o padrão da sociedade patriarcal prende a mulher,
enclausura-a, não a deixa exprimir seus pensamentos, poda sua liberdade intelectual
impedindo-a de escrever. Pode-se ainda inferir que a cor amarela é relacionada a Apolo, o
deus das artes, do intelecto, da beleza e da razão, e é justamente a cor amarela que faz com
que a personagem aprofunde-se em sua mente em busca da razão de sua prisão intelectual.

No caso da figura de John, ele representa o sistema patriarcal, assim como Jennie é
o exemplo da mulher que aceita a condição de submissão, eles conspiram, sem maldade,
pode-se dizer que contra a liberdade da narradora que percebe o que há nas entrelinhas das
falas de ambos. Nota-se outra ironia verbal acerca de Jennie: ―She is a perfect and
121
enthusiastic housekeeper, and hopes for no better profession.‖ (GILMAN, 1892, p.
1136). Constata-se a crítica que autora faz a posição de Jennie, como antagonista, visto
que, sem perceber age como uma inimiga que a policia, pois ela é uma mulher conformada,
em contraste com a narradora que deseja liberdade.

ele é tal e qual como o John e como o meu irmão, só que ainda pior do que eles!‖. (GILMAN, 1892, p. 16
tradução de José Manuel Lopes)
121
―Ela é uma dona de casa perfeita e entusiasmada, e não deseja outra profissão melhor.‖ (GILMAN, 1892,
p. 15, tradução de José Manuel Lopes)

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Com relação à questão de liberdade, há vários momentos que a narradora


interrompe sua escrita, pois ela é controlada por John e Jennie para não refletir sobre sua
situação. Também há um período da estória em que a narradora fica sem privacidade e
interrompe sua escrita, e só volta a escrever depois que as visitas vão embora. É
fundamental que se discuta a data que marca esse tempo de retorno da protagonista à
escrita, visto que é feito de modo irônico, Gilman utiliza-se da ironia dramática: ―Well, the
Fourth of July is over! The people are all gone, and I am tired out.‖122(GILMAN, 1892, p.
1137), pois esse dia marca a independência dos Estados Unidos, 04 de Julho.
Porém, é exatamente o que a narradora não tem, ―independência‖, ela anseia internamente
por liberdade, representando a figura da mulher americana que está vivendo sem
independência, totalmente dominada pelo patriarcalismo.

Observa-se nessa obra, a presença do gótico feminino, onde a figura feminina se


comporta como mulher monstro, buscando a verdade, a mesma não se adapta à vida de
submissão, ela foge das regras impostas pela sociedade. Têm-se também a perda da
liberdade da heroína, que está condenada à morte em vida, enclausurada na
mansão/manicômio alugada pelo marido. Assim como também o papel de parede torna-se
um elemento gótico, o papel é o fantasma, porque fica assombrando a personagem, já que
o fantasma não tem corpo, o papel é a tela, pela qual ela vê sua vida projetada, consiste em
um símbolo inocente do lar, escondendo uma parede velha, e simbolicamente, ele oculta a
condição da mulher, assim conduz a uma estética visão da mulher bela e do marido
cuidadoso.

Ademais, percebe-se a presença da loucura como um dos elementos do conflito da


literatura gótica feminina, pois a loucura traz iluminação para a mulher, uma vez que
retrata um estágio de elevado grau de compreensão de sua realidade que não pode ser
mudada, logo a loucura é entendida como o excesso máximo à subjetividade. De acordo
com Stein (1983, p. 124)

These heroines experience madness as a stage on the journey toward self-


knowledge. In these inner journeys – the female equivalent of the male adventure

122
―Bem, o Quatro de Julho acabou! As pessoas já se foram embora e eu estou exausta.‖ (GILMAN, 1892, p.
15, tradução de José Manuel Lopes)

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– the heroines learn to identify with their hidden selves and to reaffirm the values
which had previously been denied. 123.

Assim têm-se a protagonista com um nível intelectual elevado, aprisionada no


patriarcalismo, sendo que ela só consegue a plena liberdade através da loucura, a qual
representa sua liberdade, no sentido de descoberta da própria subjetividade, quando ela tem
compreensão total sobre sua condição.

Vê-se assim, que no gótico feminino há a deformidade no pensamento da mulher, e


pode-se também exemplificar com a personagem Bertha da obra Jane Eyre(1847), de
Charlotte Bronte (1816-1855). Ela é uma mulher mestiça, louca, presa em um casamento
de interesses, Bertha é selvagem, na obra, ela é tratada como um animal feroz, um
contraste da protagonista Jane Eyre, que não exprime seus desejos ocultos, e Bertha se
comporta como o outro de Jane Eyre, representando seus desejos sexuais reprimidos.
Ainda comparando Bertha e a personagem de Gilman vê-se uma dupla representação do
aprisionamento, a casa representa o aprisionamento paternalista, assim como a prisão do
asilo, em ambas as obras.

Observa-se que Bertha é o outro, que vem de uma colônia, sendo explorada e
aprisionada por seu marido, já a protagonista de The Yellow Wallpaper, está no início da
sua loucura, e ela quem está contando sua estória, onde sua cunhada Jennie, funciona como
Grace Poole - que cuidava de Bertha- são mulheres que policiam as outras. Percebe-se
similarmente, que os dois maridos são tratados como bons, em suas consciências pensam
que o modo como tratavam suas esposas, era o melhor, vemos que Bertha não tem voz,
Jane Eyre quem a descreve, porém, a loucura da personagem de Gilman tem voz através da
escrita. Por sua vez, vê-se que no caso de Bertha, a mulher da colônia é a mais oprimida,
pelo patriarcado e pelo imaginário colonial.

Aliás, a autora inglesa Charlotte Brontë, também explora com riqueza a condição
da mulher do século XIX, quando através da personagem Jane Eyre, critica a sociedade
que oprime e reprime a figura feminina:

Supõe-se que as mulheres são muito calmas em geral, mas elas sentem da mesma
forma que os homens; precisam tanto do exercício para suas faculdades, e de um
campo para seus esforços, quanto seus irmãos; sofrem com uma contenção

123
Essas heroínas experimentam a loucura como uma etapa no caminho para a auto-conhecimento. Nestas
jornadas internas - o equivalente feminino da aventura masculina - as heroínas aprendem a identificar-se com
os seus próprios ocultos e para reafirmar os valores que anteriormente tinham sido negados. (tradução nossa)

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demasiado rígida, uma estagnação demasiado absoluta, exatamente como os


homens sofreriam; e é tacanhez das criaturas irmãs mais privilegiadas dizer que
elas devem limitar-se a fazer pudins e tricotar meias, a tocar piano e bordar
mochilas. É impensado condená-las, ou rir delas, se buscam fazer mais ou
aprender mais que o que os costumes decretam necessário para seu sexo.
(BONTË, 1983, p. 101)

Este conto de Gilman explora com profundidade por meio de uma heroína gótica, a
vitimização, o confinamento, o cerceamento da mulher como escritora, inclusive ela tem
uma visão da maternidade e os afazeres domésticos como um impedimento para a escrita
feminina, reforçado pelo sistema dominador que é do patriarcalismo. A autora enriquece a
obra quando utiliza a estética do grotesco e do arabesco presentes na escrita de Poe (1840)
através do padrão do papel de parede, o que provoca perturbação na protagonista, já que o
grotesco traz a ideia de estranho, bizarro, incongruente. Ainda em relação a Poe, conhecido
como o pai do simbolismo e da ficção, percebe-se a voz maníaca e enlouquecida da autora
nos personagens de Poe.

Portanto, percebe-se que o grotesco é apresentado pelos arranjos ornamentais do


arabesco contigo no papel de parede, assim sobre esta forma desconcertante Wolfgang
Kayser (1964, p.229 apud BATALHA 2008, p. 184) assinala ―[...] as representações do
grotesco constituem a oposição mais evidente a qualquer espécie de racionalismo e
qualquer sistemática do pensar‖. Dessa forma, vê-se a personagem incomodada pelo
padrão do papel ―I can almost fancy radiation after all- the interminable grotesque seems to
form round a common center and rush off in headlong plunges of equal
distraction.‖124(GILMAN, 1892, P. 1138). Pode-se verificar que a mulher do conto fica
perturbada pelo padrão do papel, pois ele é repetido e sem fim, pois o arabesco extrapola
os limites da parede, provocando a angústia do infinito, e essa instabilidade reflete o
padrão da vida dela, representando a vida das mulheres, intermináveis, sem começo e nem
fim, a protagonista fica procurando o fim do desenho, mas não encontra.

No que diz respeito à estética do arabesco é exatamente assim, os desenhos são em


formas de galhos intermináveis, um padrão repetido, porém o que há de mais interessante é
a origem da produção desse padrão, pois é feita somente por homens, e é onde a escritora

124
“(...) quase posso imaginar um padrão de irradiação, apesar de tudo — esses grotescos desenhos
intermináveis parecem formar-se em torno de um centro comum para depois se precipitarem em grandes
mergulhos de cabeça, de igual distração.” (GILMAN, 1892 p. 18, tradução de José Manuel Lopes)

312
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

consegue tocar no ponto crucial do seu conto, pois esse padrão reflete uma cultura
estrangeira que subjuga e oprime a classe feminina, a cultura árabe. Por essa arte ser
produzida por homens, têm-se um sentido da posição da mulher, Gilman usa uma
linguagem verbal e imagética, para mostrar que são os homens que repetem o padrão da
vida das mulheres.

Constata-se que o arabesco é uma forma de arte árabe, o qual também reflete a
visão teológica do mundo árabe, de não fazer imagem, principalmente formas humanas,
agindo de acordo com seus princípios religiosos. Assim têm-se, a significância religiosa do
papel de parede, representando o padrão religioso das leis islâmicas, o qual a autora afunila
mais ainda sua crítica, pois quem determina o padrão de educação das mulheres islâmicas
são os homens, influenciados pelos princípios do Alcorão. Assim vê-se a beleza crítica da
obra, pois ela está questionando o padrão religioso e também o papel de gênero. O
arabesco é totalmente racional, o qual obedece ao padrão geométrico e matemático, é nesse
sentindo que a escritora questiona o padrão de tratamento das mulheres, da razão.

Esse modelo estético do arabesco também representa o desconhecido, o que não é


familiar na cultura outremizada, torna-se monstruoso, isso remete ao gótico imperial, pois
a verdadeira natureza do arabesco é algo monstruoso, com formas fantasmagóricas. Como
é enfatizado por Wolfgang Kayser (1964, p.68 apud BATALHA, 2008, p. 184)

Nenhum feito sublime em si mesmo ou nenhum feito grotesco em si mesmo são


suficientes para formar um todo ―belo‖ ou ―dramático‖, mas é no grotesco que
existe justamente o contraste indissolúvel, sinistro, e que não deveria existir. A
percepção e a revelação de semelhante simultaneidade incompatível têm um
aspecto diabólico, pois semelhante procedimento destrói as ordens e abre um
abismo onde pensávamos avançar com segurança.

Em vista disso, considera-se o grotesco uma categoria da filosofia, a oposição do


belo e o feio, onde por meio do papel de parede e a riqueza de detalhe contido no mesmo,
compreende-se que o simples extrapola o profundo. Diante disso, observa-se que esse
papel de parede faz com que a mulher do conto viaje para dentro de si mesma, de modo
que a autora antecipa a psicologia moderna, mostrando que há lucidez na loucura,
descobrindo sua subjetividade. No desfecho do conto, a mulher enlouquece totalmente, e
rasga o papel libertando a mulher que estava presa nele, porém ela é vitoriosa no final,
mostrando que John estava errado, por ser médico e não curá-la, e antecipadamente ela já
sabia sua cura e de forma considerável, a voz que resisti até o fim é a dela. John desmaia
ao ver seu estado rastejante e totalmente louca: ―Now why should that man have fainted?

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But he did, and right across my path by the wall, so that I had to creep over him every
time!‖125(GILMAN, 1892, p. 1149).

Por fim, ela se liberta da prisão da mente, olha com superioridade para aqueles que
lhe aprisionaram em si mesma, descobre sua subjetividade, visto que antes não entendia
sua condição, ela não concordava, mas não tinha consciência de sua situação de
prisioneira. No desenvolvimento da sua loucura, ela vai tomando consciência e tornando-se
sã, em oposição da ―antagonista‖, Jennie, que ao termino da narrativa continua aprisionada
e não descobre sua subjetividade.

CONCLUSÃO

Em suma foi discutido nesse estudo, o tom irônico da autora, onde podemos
destacar dois tipos de ironia: a ironia dramática e a ironia verbal. Somando-se a isso de
forma mais abrangente, foram analisados os aspectos do gótico feminino, o qual destaca-se
que a loucura é um motivo literário do gótico, e é através desse elemento que a
protagonista reflete sobre sua condição, tentando buscar a verdade, a partir do papel de
parede amarelo. Observa-se que o papel de parede funciona como uma espécie de projetor
da vida da personagem, no qual ela enxerga uma mulher presa no papel até chegar ao
ponto de identificar-se com aquela situação, pois representava sua condição dentro do
casamento e, também de modo amplo, dentro da sociedade patriarcalista.

Assim, a autora utiliza dessa obra para expor e denunciar a condição de submissão
da mulher, de modo que Gilman situa sua vida particular com a vida da protagonista,
revelando a repressão que a mulher do século XIX ainda sofria, devido a uma sociedade
patriarcalista. Também foram destacados a influência da escrita de Poe nessa obra, com
seus estudos do grotesco e do arabesco, vê-se a forma profunda com que Gilman aborda
sua crítica feminista, ao usar o padrão árabe do papel de parede, significando o padrão da
sociedade patriarcal, observamos então que de forma harmoniosa, ela excede o simples
para atingir o profundo.

125
“Agora digam-me, por que razão teria aquele homem desmaiado? Mas é que desmaiou mesmo, e logo no
meu caminho, junto à parede, de modo que tinha sempre que rastejar por cima dele.‖ (GILMAN, 1892 p. 19
tradução de José Manuel Lopes)

314
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

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Cambridge: Cambridge University Press, 1994. In: CONZ, Jaqueline. Ironia e verbal:
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https://www.lume.ufrgs.br/bitstream_id/66571/000775562.pdf

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KAYSER, W. Lo grotesco: suconfiguraciónen pintura y literatura. Traducción directa do


alemán por Ilse M. de Brugger. Buenos Aires: Nova, 1964. In: BATALHA, Maria Cristina.
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Revista Lusófona de Línguas, Culturas e Tradução, [S.l.], n. 04, dec. 2010. ISSN 1646-
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REUSTES, Yves. A análise da narrativa: o texto, a ficção e a narração. Tradução Maria


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ZABEL, Morton Dauwen. A arte da ficção nos Estados Unidos. In: Contos norte-
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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

A QUESTÃO DA AUTORIA FEMININA NA LITERATURA INGLESA


OITOCENTISTA

ISRAEL SOUZA DE OLIVEIRA


UFCG
[email protected]

RESUMO

O objetivo deste trabalho é analisar aspectos da trajetória feminina rumo à autoria no


contexto histórico do século XIX, em especial na Inglaterra. Para tanto, serão elencadas
algumas dificuldades que as mulheres encontraram ao longo de sua história, em especial
para se tornarem escritoras publicadas e reconhecidas pelo público e pela crítica de então.
Dentre elas, o duplo padrão da crítica literária que as acusava de produzir textos inferiores,
sobretudo por trataram da questão da domesticidade e também pela dita preferência
feminina pelo gênero romanesco, considerado inferior à época, visto ser ainda um gênero
em processo de formação e ascensão. Tais aspectos serão discutidos e exemplificados com
autoras e obras literárias tanto americanas quanto inglesas, para destacar o que se tornou
uma tradição literária de autoria feminina naquele século.
Palavras-chaves: Feminismo; sociedade; autoria feminina.

INTRODUÇÃO

A literatura é um instrumento comunicativo de extrema importância através da qual


o autor transmite aos leitores – sobretudo no caso da literatura escrita devido a uma
circulação maior - conhecimentos, principalmente culturais. Dentre suas funções, as obras
literárias têm como objetivo tornar o leitor conhecedor das experiências vividas pela
sociedade numa determinada época, proporcionando-lhe uma maior possibilidade de
abertura crítica acerca de determinados comportamentos, notadamente no caso da mulher,
ao fazerem referência aos modos de vida da classe feminina, o que pode levar o leitor a
refletir e criticar a realidade que o cerca. Esses conhecimentos transmitidos através da
literatura podem proporcionar uma ampliação do horizonte cultural do leitor, pois além de
lhe apresentar aspectos culturais de diferentes formas de vida e comportamentais de povos
diferentes ao longo da história, promove a discussão de temas importantes, ao tempo em
que desperta nos leitores não só o gosto pela leitura, mas também um senso crítico mais
apurado.

316
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Diante disso, é importante considerar que, o século XIX não foi um período fácil
para as mulheres. Nele, elas eram submetidas às condições sociais impostas pela sociedade
- de modo muito mais difícil do que nos dias atuais -, bem como pelo pensamento machista
que era fortalecido e apoiado por princípios religiosos, os quais a compreendiam como
mero ―instrumento‖ de procriação. Além disso, a figura feminina não usufruìa de direitos
igualitários quando comparado aos homens da mesma época, por exemplo: não tinha
direito ao voto; se fosse casada e, por algum motivo se divorciasse, não teria o direito de
ficar com a guarda dos filhos; não poderia ter bens materiais em seu nome, muito menos
administrá-los em caso de perda dos parentes masculinos, conforme atestam Gilbert e
Gubar (1996). Já o acesso à educação era totalmente limitado a um aprendizado básico,
direcionado à maneira de como se comportar na sociedade, especialmente como dona de
casa de forma que agradasse os homens, em especial, ao marido, o que a relegava a uma
situação de total submissão, como mostra Araújo (apud PRIORE, 1997, p.50):

O programa de estudos destinado às meninas era bem diferente do dirigido aos


meninos, e mesmo nas matérias comuns, ministradas separadamente, o
aprendizado delas limitava-se ao mínimo, de forma ligeira, leve. Só as que mais
tarde seriam destinadas ao convento aprendiam latim e música; as demais
restringiam-se ao que interessava ao funcionamento do futuro lar: ler, escrever,
contar, coser e bordar‖

Entretanto, mesmo em condições tão adversas, a partir do século XVIII surge, de


forma sistemática no mundo ocidental, uma profusão de escritos saídos da pena feminina,
sejam eles ensaios feministas em prol da causa das mulheres, a exemplo de A vindication
of the rights of women (1792), de Mary Wolstonecraft, sejam romances, como as obras
góticas de Ann Redcliff. Ainda assim, é apenas no século XIX que surge uma literatura de
autoria feminina, com grandes nomes, tais como, Jane Austen, as irmãs Brontë e George
Eliott – isto, considerando-se o contexto anglo-americano (DIAS, 2015).
O percurso das mulheres como sujeito da produção histórica e literária tem sofrido
e enfrentado muitas dificuldades e opressões que parecem insolúveis, em muitos casos,
devido à dominação atrelada ao poder e desigualdade presentes na sociedade, fruto da
suposta superioridade masculina e, consequente, suposta inferioridade feminina. Afinal,
eram apenas os homens que formulavam e estabeleciam as regras que organizam a
sociedade naquela época, especialmente no período patriarcal ao ponto de terem tornado as
mulheres, por muito tempo, ―invisìveis‖ e silenciadas em todas as esferas da vida produtiva
e ativa no espaço social.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Esta situação não era diferente no espaço literário, sobretudo até o século XIX,
visto que as mulheres viviam numa espécie de confinamento, ―trancadas‖ na casa do pai ou
do marido. Muitas delas realizavam seus escritos de maneira privada e íntima, no silêncio
da noite, em seus quartos, local onde respondiam às cartas recebidas, mantinham seus
diários atualizados, talvez como forma de terapia, especialmente ao relatar suas vidas em
forma de escrita (PERROT, 2007). Além disso, no caso de possíveis publicações, elas
deveriam sair ―pelas portas dos fundos‖, muitas vezes em forma de pseudônimos
masculinos com o intuito de apagar a imagem feminina devido aos preconceitos
relacionados, inclusive, aos temas abordados nos seus escritos pela crença de
―improdutividade‖ atribuìda às suas produções que muitas vezes tratavam exclusivamente
das próprias experiências de vida. Assim, através da escrita, elas expressavam de forma
implícita suas mais profundas angustias e insatisfações com aquelas rotinas submissas ao
seu provedor (pai ou marido) e aproveitava esta única ―arma‖ – a escrita - para criticar a
condição ao qual estavam destinadas: domesticidade, procriação e a serem anjos do lar. De
acordo com Moreira (2005, p. 235):

As escritoras do século XIX (...) vivenciaram um conflito no que dizia respeito à


criação literária, pois oscilavam entre assumir um comportamento que as
definisse como autoras e/ou instrutoras; ou seja, elas internalizaram os códigos
socioculturais vigentes e, consequentemente, sentiram-se inadequadas nos papéis
que o patriarcado lhes fixou e ameaçadas na identidade.

No entanto, o discurso predominante do sistema patriarcal não foi capaz de


silenciar as vozes femininas insatisfeitas com o estereótipo de serem tidas como ―segundo
sexo‖ na terminologia de Beauvoir (1980), ou rotuladas como seres incapazes de
exercerem funções que fossem além das que eram destinadas a elas, cuja escrita poderia
ser uma forma de ganhar espaço e integração polìtica à sociedade ―ao descreverem modos
de socialização, papéis sociais e até mesmo sentimentos esperados em determinadas
situações‖ (TELLES, 2002, p. 402), em que somente os homens poderiam estar inseridos.
Sendo assim, é notório que a produção literária de autoria feminina enfrentou várias
barreiras ao longo da história, mais precisamente entre os séculos XIII e XIX. Segundo
Moers, em seu livro Literary Women (1976), neste período já havia uma dominação –
mesmo que ainda pequeno - na produção de romances escritos por mulheres na Inglaterra,
porém, somente no final do século XIX foi que as mulheres conseguiram maior espaço no
meio editorial (DIAS, 2015). Assim, entre estas etapas de busca e consolidação no

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universo literário, compreende-se o período que vai desde a fase de aceitação das obras
pelas editoras para a publicação até a recepção destas, principalmente por parte dos leitores
masculinos, considerados na época os críticos literários.
Entretanto, estes processos não eram simples nem fáceis, pois havia na maioria das
vezes imposições sociais que barravam e limitavam estes escritos, principalmente os
produzidos pelas mulheres. As irmãs Brontë – Emily Brontë (1818-1848), Charlotte (1816-
1855) e Anne (1820-1848), por exemplo, ficaram excluídas por muito tempo do espaço
literário já que elas usaram pseudônimos masculinos ou apenas as iniciais do nome em
algumas de suas obras como tantas outras escritoras. Com isso, elas objetivaram ocultar a
―imagem feminina‖ devido ao forte preconceito e suposta ―incapacidade‖ atribuìda as suas
atividades de escritas. A este respeito, Lobo (1998, p. 5) destaca:

Ser o outro, o excluso, o estranho é próprio da mulher que quer penetrar no sério
mundo acadêmico ou literário. Não se pode ignorar que, por motivos
mitológicos, antropológicos, sociológicos e históricos, a mulher foi excluída do
mundo da escrita – só podendo introduzir seu nome na história europeia por
assim dizer através de arestas e frestas que conseguiu abrir através de seu
aprendizado de ler e escrever em conventos.

Além disso, outro fator que barrava as produções literárias femininas era à
desvalorização dos temas abordados nas obras, visto que eles prestigiavam, na sua maioria,
apenas o espaço doméstico/familiar. Entretanto, por meio destas escritas, as mulheres
puderam usá-las a seu favor como um grito de protesto (ainda que de maneira implícita) ao
fazerem referência à insatisfação delas com a vida limitada que as prendiam neste universo
patriarcal, sempre dependente da figura masculina. Ainda sobre isso, Dias (2015, p. 18)
ressalta:

Um dos grandes preconceitos que as mulheres escritoras tiveram de enfrentar no


século XIX foi a desqualificação dos temas abordados em suas obras, dentre
eles, havia a principal acusação sobre a ―incômoda‖ presença do que chamavam
de ―domesticidade‖ nas obras femininas. Muitas vezes esse julgamento acontecia
a priori, baseado no tradicional e limitado acesso à educação disponível às
mulheres, como mostra Showalter. A sociedade, em geral, imaginava que o que
saía da pena de uma mulher deveria ser tão limitada quanto a visão de mundo
que a opinião pública julgava que elas tinham sobre a vida, sobre as artes, sobre
tudo.

Além do mais, as críticas masculinas não eram as únicas geradas sobre as


produções femininas, haja vista que algumas escritoras que também buscavam espaço no
meio literário, a exemplo das escritoras inglesas Herriet Martineau (1802-1876) e George

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Eliot (1819-1880), demonstravam desconforto com o papel atribuído às personagens do


seu sexo, principalmente nos romances, visto que na maioria das vezes retratavam um
certo ―desespero‖ na busca pelo casamento/espaço doméstico/mãe (DIAS, 2015). Isso
ocorria porque o casamento era a única saída para elas, sobretudo porque trabalhar era algo
mal visto para a reputação feminina e não casar significava tornar-se dependente da boa
vontade de parentes para sustentá-las, após a morte dos pais. Então, não havia
possibilidades da mulher ser plenamente aceita naquela época, pois se ela escrevesse sobre
domesticidade era criticada, se abordasse temas que transgredisse a moral das normas
impostas pelo sistema patriarcal, também seria criticada, ainda que a primeira opção fosse
bem mais conveniente para elas.
Entretanto, mesmo diante dessas barreiras, a figura da mulher sempre ocupou lugar
de destaque como protagonistas na literatura de autoria masculina mesmo em nesse
período em que muitos direitos eram negados as mulheres bem como seus espaços
limitados pelo patriarcalismo, a exemplo de Emma Bovary, personagem do famoso
romance Madame Bovary (1857), escrito pelo francês Gustave Flaubert (1821-1880);
Salomé (1891), do irlandês Oscar Wilde (1854-1900); Eliza Doolittle em Pigmaleão
(1913), do também irlandês George Bernard Shaw (1856-1950); Daisy Buchanan em O
grande Gatsby (1925), do americano F. Scott Fitzgerald (1896-1940), entre tantas outras
que foram protagonistas nas obras desde a Antiguidade Clássica, representadas na ficção
da maneira que o escritor desejasse, diante do contexto histórico em que estavam inseridas.
Todavia, suas representações nas obras masculinas poderiam ser considerada de
maneira supostamente positiva: quando incorporavam personagens submissas e
obedientes, subordinadas a viver no contexto real, tais como esposas, mães e donas do lar,
consideradas ―anjos‖ capazes de se sacrificarem por aqueles que as rodeavam. Mas
também havia tipos de personagens consideradas de forma negativa: bruxas, adúlteras,
prostitutas, entre outras quando transgrediam as normas sociais consideradas aceitáveis
naquele contexto.
Mesmo assim, por muito tempo, a mulher foi tratada de modo inferior não só na
literatura, mas no real contexto como seres passivas e submissas, por serem vistas de
maneira inferior devido principalmente a suposta fragilidade física em relação aos homens
que eram classificados como fortes e corajosos, por isso, tidos como donos do poder pelo
sistema patriarcal. Sobre isso, Colling (2014, p.13) relata que as personagens femininas:

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ainda são apresentadas como morais, frágeis, dóceis, emotivas, amantes da paz, da
estabilidade e da comodidade do lar, incapazes de tomar decisões, desprovidas da
capacidade de abstração, intuitivas, crédulas, sensíveis, ternas e pudicas.

Portanto, era negada a elas a liberdade de expressar o que sentiam ou pensavam,


como também falar ou viver conforme elas necessitassem, pois eram controladas pelas
decisões impostas por seus pais ou maridos, responsáveis por deixá-las invisíveis no
âmbito social patriarcal, não permitindo que elas mostrassem suas habilidades de exercer
atividades profissionais ou não, como leitura, escrita, nem mesmo aquelas ligadas as artes
como música e pintura, trabalhos da esfera pública em geral. Para Barreto (2004, p. 64), o
patriarcalismo:

[...] É caracterizado por uma autoridade imposta institucionalmente, do homem


sobre mulheres e filhos no ambiente familiar, permeando toda organização da
sociedade, da produção e do consumo, da política, à legislação e à cultura.

Logo, cabe ressaltar que a liberdade da mulher nesse período era limitada apenas ao
espaço privado ligado ao âmbito doméstico/maternal e restrito ao espaço social, enquanto
os homens mantinham-se donos do poder nos espaços públicos e privados. Além disso,
suas vestimentas também deveriam estar de acordo com os padrões morais aceitáveis pela
sociedade, pois elas também faziam parte dos ―negócios‖ de seus maridos nas reuniões ou
jantares oferecidos com interesses lucrativos. Nestas ocasiões elas deveriam manter uma
postura adequada mesmo contra a própria vontade. Além do mais, Dantas (2016, p. 27)
ainda destaca outras limitações atribuídas ao modo de vida delas mesmo no âmbito
doméstico:

Às mulheres não era dado o direito de ―pensar‖ sobre a sociedade, o comércio, as


relações da política, a refletir sobre o poder, nem sequer a discordar da
arrumação da sua própria casa, caso tivesse opinião contrária a do marido, muito
menos expor ideias sobre tais temas da sociedade. Entretanto, algumas poucas
mulheres já começavam a despontar e compartilhar com o meio as suas ideias e,
principalmente, a expor seu ponto de vista sobre a maneira incômoda como os
homens as julgavam.

Todavia, nem todas as escritoras tinham o mesmo pensamento em prosseguir com


seus escritos e torná-los acessíveis ao público leitor, embora, algumas tenham prosseguido
no meio literário, a exemplo de Jane Austen, as irmãs Brontë, Kate Chopin, entre outras.
Algumas utilizavam o diário pessoal para escrever pequenas histórias que serviram de

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maneira significativa para publicações futuras. Ora, Kate Chopin, uma escritora sulista dos
Estados Unidos continha em seu próprio diário escritos inicias que deram início nas
produções de suas obras aos trinta e dois anos quando foi instruída pelo seu médico a
escrever com fins terapêuticos após a perda de sua mãe. Sendo assim, as obras escritas
pelas mulheres daquela época de submissão/passividade proporcionam aos leitores atuais
terem acesso aos costumes e ao modo como elas viveram, uma vez que nesses diários,
essas escritoras e tantas outras que adotaram esta prática refletiram sobre o próprio papel
na sociedade e na maneira como representaram a realidade da qual faziam parte através da
literatura. Já as mulheres que preferiram se livrar de seus escritos restam sobre elas
somente referências esparsas em textos de pessoas que as conheciam ou de pesquisas
realizadas de acordo com os relatos da época.
Portanto, desde que as mulheres passaram a retratar suas rotinas de esposa/dona de
casa através do meio literário, discussões sobre a quebra dos padrões de suas escritas em
relação aos modelos canônicos de autoria masculina foram elencados em meio a uma
tradição que as inferiorizavam. Embora, já no final do século XVIII, foi permitido que as
mulheres escrevessem, mas tais textos, de modo geral, consistiam em receitas, diários,
manuais domésticos de como manter a casa em ordem, entre outros gêneros, desde que não
violassem os bons costumes e a moral da cultura patriarcal (TEDESCHI, 2008).
Algumas delas iam além, e aproveitavam suas histórias para criticar a sociedade
opressora. Foi isso que Kate Chopin fez em seu romance intitulado “The Awakening”
(1899), traduzido em português para “O despertar” (1889). Assim, a autora inseriu através
da personagem Edna Pontellier, pensamentos e ações considerados a frente do seu tempo,
que confrontavam todos os princípios morais de uma sociedade patriarcal, tudo isso em
razão da busca pela identidade de sua protagonista que, embora já fosse casada a mais de 8
anos, descobriu o amor, a sexualidade, a independência através de outro homem mais
novo. Acerca da recepção do romance de Chopin e o conteúdo, Sroczynski (2004, p.
10:11) afirma:

O despertar surpreende o público e a crítica. Um romance no qual se explora a


individualidade da mulher, em que se celebra a sexualidade feminina, em que se
discutem as tensões entre as imposições do casamento e os desejos eróticos, em
que se questionam os mitos da maternidade, provoca reações hostis
considerando-se, principalmente, os arraigados preconceitos sociais e os padrões
morais concernentes ao contexto no qual a obra estava inserida.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Por isso, todos os livros foram retirados das bibliotecas e queimados em praça
pública por ter sido considerado uma ameaça aos princípios patriarcais tendo em vista que
o publico leitor na sua maioria fossem as mulheres. Isso fez com que a escritora Kate
Chopin fosse esquecida por muito tempo da literatura, e somente nos anos sessenta, com a
ascensão da critica literária feminina foi que ela ganhou novos espaços, principalmente nas
pesquisas acadêmicas sobre feminismo.
Entretanto, outras escritoras também sofreram para hoje serem reconhecidas no
mundo editorial literário. Virginia Woolf, em Um teto todo seu (1929), iniciou seu texto
fazendo uma ironia ao sistema patriarcal por retirar da mulher a liberdade de escrita e a
independência, ao dizer que ―a mulher precisa ter dinheiro e um teto todo dela se pretende
mesmo escrever ficção‖ (WOOLF, 2004, p. 8). Neste discurso, a escritora enfatizou a
limitação e econômica de total dependência do seu provedor - no caso pai ou esposo – uma
das barreiras que dificultavam seus sonhos de se tornarem reconhecidas como escritoras,
principalmente quando a publicação tinha que ser custeadas por elas mesmas e a restrição
espacial delimitada apenas ao espaço doméstico, a própria casa, confinadas em seus
quartos.
Mesmo diante de tantos percalços, os escritos femininos foram aos poucos
ganhando destaque e se tornaram essenciais para motivar e dar voz às mulheres no espaço
literário. Sobre isso, Perrot (2005, p.13) destaca a importância dos escritos iniciais
femininos:

[...] Inicialmente isoladas na escrita privada e familiar, autorizadas a formas


específicas de escrita pública (educação, caridade, cozinha, etiqueta...), elas se
apropriaram progressivamente de todos os campos da comunicação e da criação:
poesia, romance sobretudo, história às vezes, ciência e filosofia mais
dificilmente.

Assim, o século XIX foi um período de destaque nos escritos de autoria feminina,
situação que logo espalhou-se pela Europa e Estados Unidos bem como no Brasil. Dentre
os escritos literários de autoria feminina, podem-se destacar contos, poesias e romances
como os gêneros de maior produção. Segundo Vasconcelos (2002, p. 107) ―[...] o romance
foi o instrumento escolhido por muitas delas [mulheres do século XIX] exatamente como
meio de expressão, de denúncia, de revolta e de recusa de sua situação‖. Além do mais,
poesias ou contos eram mais fáceis de serem publicados e a circulação destes era mais

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viável e acessível a todas as mulheres principalmente, tendo em vista que estes eram
inseridos em jornais e revistas.
Além do mais, o romance foi o gênero literário que prevaleceu na Inglaterra durante
o século XIX, ao qual foi fortalecido, inicialmente, pelos escritos de Jane Austen,
considerada a principal representante do romance inglês por tratar nos seus escritos o que
realmente interessava a ela - a conduta das pessoas que estavam misturadas a uma
sociedade tomada pela ambição, onde os valores eram mais importantes do que o próprio
―Eu‖ (FREIRE, 2011). As obras de Austen ajudaram a moldar a nação inglesa, uma vez
que retratavam aquela sociedade patriarcal e imperialista (DIAS, 2015).
Ainda sobre o romance, Perrot (2007, p. 99-100) afirma que foi este gênero ―[...]
em particular, que se tornou o território das grandes romancistas inglesas (Jane Austen, as
irmãs Brontë, George Eliot, Virginia Woolf e as demais) [...]‖. Além disso, para Lukács
(1964) este gênero literário tornou-se o mais simbólico e representativo da sociedade
burguesa por mostrar as contradições e conflitos dos personagens entre os desejos pessoais
e sociais, onde o herói inicia uma luta a fim de modificar alguns princípios impostos pela
sociedade, por exemplo, o acesso à educação era limitado de acordo com a classe social de
cada indivíduo. O autor defende que o romance é um gênero burguês porque trata dos
anseios da burguesia em ascensão e sua necessidade de promover mudanças sociais nas
rígidas regras sociais estabelecidas para cada classe social. Neste sentido, o herói do
romance é problemático porque luta contra as amarras sociais que impediam seu pleno
desenvolvimento como indivíduo. Esta questão se adequa perfeitamente aos romances de
autoria feminina, visto que eles apresentam heroínas problemáticas que lutam contra as
forças opressoras da sociedade, a exemplo de Edna Pontellier em O despertar.
Assim, as lutas travadas contra as opressões machistas amparadas pelo sistema
patriarcal aos poucos foram sendo desmistificadas através das vozes femininas que
eclodiram no espaço literário, e que durante séculos reivindicaram/reivindicam um espaço
digno e igualitário em todas as esferas sociais, das quais eram/são excluídas. Os relatos e
experiências destas escritoras/protagonistas na literatura de modo geral, ao longo da
história, tornaram-se relevantes para que houvesse um reconhecimento cultural e
acadêmico em seus diversos gêneros, de modo que estes possam servir de modelos para o
papel da figura feminina inserida na obra seja repensada e assim destacada como ―sujeito‖
e não como ―objeto‖ nos escritos futuros, já que, segundo Patrocìnio (2010, p. 29) a

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

―Literatura busca a formação de um espaço próprio [...] em que a mulher seja o sujeito do
discurso [...]‖ afim de que esta possa ―construir sua própria representação‖.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Portanto, é notório o quanto a mulher batalhou para alcançar seus objetivos, e ser
reconhecida como sujeito ativo dentro da sociedade, em especial no mundo editorial.
Pois seu percurso foi árduo e repleto de lutas para hoje ter, dentro do possível liberdade e a
igualdade conquistada: trajam-se da maneira que as satisfazem, escolhem seu esposo,
podem ter sua profissão/independência, estudam o que lhes agrada, andam sozinhas, etc.
No entanto, mesmo estando no século XXI, ainda é possível encontrar em alguns países
mulheres em situação de estrema submissão. Em relação à escrita de autoria feminina
houve uma evolução significativa, pois elas conseguiram reconhecimento nesse mundo
editorial: não precisam mais usar pseudônimos masculinos, a escrita não é mais realizada
numa espécie de confinamento, os temas são livres de acordo com o que realmente lhes
agrada ou agrada o público leitor e tem melhores condições econômicas para custearem
suas publicações.
Conforme pode ser observado, foi muito difícil para as mulheres se aventurarem no
universo editorial, mas mesmo assim, após um longo caminho de lutas elas conseguiram
empreender mudanças e oferecer uma nova roupagem em teorias que foram formuladas
pelos homens, trazendo-as atualmente para o centro das pesquisas acadêmicas literárias.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

MARIA BONITA E DADÁ: AS REPRESENTAÇÕES DAS MULHERES


CANGACEIRAS NA LITERATURA DE CORDEL

NADJA CLAUDINALE DA COSTA CLAUDINO


PPGH/ UFPB
[email protected]

RESUMO
O cordel, uma das importantes manifestações da cultura popular nordestina, teve no
cangaço um dos seus grandes temas. Além de comentar as violências de Lampião e seu
bando, com a entrada das mulheres no cangaço, fato ocorrido em 1930, os cordelistas
agregaram romance e o erotismo como importantes elementos dos seus versos. As
mulheres são representadas no cordel sob diversos aspectos. Mas como as mulheres que
participaram do cangaço entre os anos de 1930 até 1940 são representadas na literatura de
cordel? Para refletirmos sobre isto trabalharemos com cordéis que versam sobre as
trajetórias de duas das mais famosas cangaceiras: Maria Gomes de Oliveira (Maria Bonita)
e Sérgia Ribeiro da Silva (Dadá). A partir disto pensaremos quais lugares foram/são
instituídos para as mulheres no verso popular.
Palavras-chave: Mulheres; Cangaço; Cordel; Cangaceiras.

Maria Gomes de Oliveira nasceu no dia 08 de março de 1911, na fazenda Malhada


da Caiçara, município de Glória, hoje Paulo Afonso, Bahia. Ter nascido no dia 08 de
março, comemorado como o Dia Internacional da Mulher é mais um detalhe usado na sua
significação de mulher sertaneja, guerreira, forte, desafiadora dos preceitos de seu tempo.
Em artigo escrito sobre as cangaceiras, o autor Leandro Fernandes traz que é a partir da
data de nascimento de Maria Bonita que as outras mulheres do cangaço são homenageadas:
Desta forma, no Dia Internacional da Mulher, fica a lembrança destas guerreiras
do sol quente que, empurradas para a garganta do cangaço, calçaram as
alpercatas, pisando firmemente as veredas ínvias dos sertões, imortalizadas pelos
cordelistas e violeiros. Enfrentaram, com lágrimas nos olhos e muitas coragem,
todas as agruras, ao lado de seus maridos (FERNANDES, 2010, p. 22).

Maria Gomes de Oliveira, ―Maria de dona Déa‖, ―Maria Déa‖, ―Santinha‖, ―Maria
do Capitão‖, foi mulher de muitos epìtetos e de muitas histórias. Seu nome aparece sempre
atrelado ao de alguém. Primeiro era Maria, mas Maria de Dona Déa, pertencendo à sua
mãe, algo comum no sertão nordestino e que facilitava a identificação das pessoas, os
nomes dos filhos estavam muito ligados aos de suas mães. Alguns testemunhos afirmam
que ao entrar no cangaço, Lampião renomeou sua companheira e a partir daí passou a ser
chamada de Santinha. Lins (1997) fala desta nomeação e vê nela não apenas uma questão
estratégica para dificultar a identificação da mulher que estava com ele, mas sim uma

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

tentativa de construir para sua mulher uma nova identidade, onde sua vida anterior fosse
esquecida. Podemos pensar também num esforço por parte de Lampião de cobrir com esse
nome os atos cometidos por Maria Bonita para viver com ele, atos considerados levianos e
indignos de uma mulher honesta. Pois não podemos deixar de pensar que indo viver com
um cangaceiro, Maria Déa quebrou o laço sagrado do matrimônio, portanto, era
considerada pela sociedade como uma adúltera.
Os testemunhos dão conta que Maria Déa vivia um casamento infeliz, marcado por
brigas, com seu primo legítimo, o sapateiro Zé de Neném, por isso, enquanto esteve casada
era conhecida como Maria Neném. Segundo muitas elaborações, Zé de Neném era
considerado pela esposa como covarde e fraco e que o fato de não ter dado filhos à sua
mulher era mais uma demonstração dessa fraqueza moral e física. Até uma suposta
homossexualidade é colocada no meio das suposições:

O problema é que, além de ser pessoalmente sem graça – até desdentado ele era
–, Zé de Neném não desempenhava bem o seu digamos assim, papel de marido.
Quase nunca procurava a jovem esposa e ainda parecia muito mais fazê-lo para
cumprir a obrigação do que propriamente por apreciar a companhia da mulher.
Maria Deia chegou a pensar que, na verdade, ele gostava mesmo era de homem e
só tinha se casado para disfarçar a preferência. Ela fantasiou muitas vezes se
entregar a outros ao longo daqueles sete anos de casamento, mas nunca teve
coragem. Pois agora Zé de Nénem teria uma boa lição: ninguém menos que
Lampião, o cabra mais corajoso, famoso e cobiçado de todo o sertão, estava
interessado nela. Quem era Zé de Neném perto de Lampião? Ninguém
(OLIVEIRA, 2012, p. 143).

Os relatos que dão conta da fraqueza de Zé de Neném e da força de Lampião tiram


de Maria Bonita o poder de decisão de sua ação, estava dividida entre um fraco e o forte e
na condição de mulher, teria escolhido o homem mais poderoso e sexualmente ativo que
poderia talvez lhe dar filhos. Essa narrativa atenua e justifica, frente ao julgamento dos
autores, a dissolução do casamento de Maria Déa. Novamente seus atos são atrelados aos
homens, pois teria sido a fraqueza do marido que a impulsionou a seguir o bando de
Lampião.
Se Maria Bonita entrou para o cangaço voluntariamente, temos na figura de Dadá
uma cangaceira que entra compulsoriamente no cangaço. Iremos através da narrativa do
filme Dadá e Corisco (1996), de Rosemberg Cariri, conhecer sua entrada forçada no
cangaço. A ação do filme se dá através da narração de uma mulher, que tem na sua plateia
de ouvintes, homens e mulheres pescadores, o cenário é uma praia, a conversa começa com
poucos expectadores que aumentam à medida que história vai sendo aprofundada como os
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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

caminhos de Corisco e Dadá pelo sertão. Assim o mar e o sertão são utilizados como
metáforas, o sertão é como o mar, misterioso, perigoso, imenso, capaz de causar fascínio e
curiosidade. A natureza do litoral e do sertão são também personagens relevantes. A
aspereza da ação dos homens se confunde com a aspereza do sertão, suas paisagens
cinzentas, o sol forte ressecando os animais, as almas de homens e mulheres. Os bichos
rastejando no solo pedregoso estão presentes na encenação do estupro de Dadá, violentada
de forma brutal por Corisco, brutalidade que a colocou doente. A violência, porém, é
minimizada na narração e até romantizada, sendo o amor colocado como a outra face do
ódio da menina. Na versão cinematográfica Dadá odiou Corisco, mas também o amou ao
ponto de tentar defendê-lo da morte. Que Dadá foi representada no filme? Ao meu ver,
uma Dadá diversa da construída pela própria. A Dadá do cinema é mostrada como a
mulher que sofre por estar no cangaço, ao ver seus filhos morrendo pede a Corisco para
abandonarem o cangaço. Em uma das cenas Dadá faz ajustes em um vestido de Maria
Bonita, o vestido cobria o corpo de Maria que ouvia as reclamações de Dadá com ar de
impaciência, mais preocupada com sua pele próxima dos alfinetes manuseados por Dadá.
Maria Bonita é representada como mulher vaidosa e voluntariosa, acostumada com a vida
de riquezas do cangaço fala com orgulho da recepção que ela e Lampião tiveram em uma
cidade do interior, com prefeito, delegado e padre prestando homenagem aos dois. A
tristonha Dadá parece inconformada e até mesmo espantada com a forma como Maria
encarava o cangaço com alegria, como se fosse uma grande festa. Para ela restava apenas a
solidão, o medo e a morte constante dos filhos transformados em anjos de uma corte
comandada por São Jorge.126
No livro Gente de Lampião: Dadá e Corisco (2003 [1982]), do pesquisador do
cangaço Antônio Amaury Correa de Araújo, escrito após entrevistas com a cangaceira
Dadá, que passou alguns meses morando na casa do autor, e também com entrevistas
realizadas com outros cangaceiros. O Autor assim relata a entrada de Dadá no bando.

Corisco violenta a menina. Virgem, Sérgia sofre violenta hemorragia. Fica


traumatizada, física e mentalmente. Cria aversão a seu raptor, passa a evitá-lo.
Dia seguinte, corpo dolorido, febre e calafrios, é obrigada a seguir viagem. Cai a
tarde quando chegam à casa de uma tia de Corisco, dona Vitalina. Apeiam-se
Corisco toma a bênção à tia e vai direto ao assunto: quer deixar a menina ali,

126
Ver: CORISCO e Dadá. Direção: Rosemberg Cariry. Fortaleza: Cariri Filmes, 1996. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=XmT6_8ouAIY. Acesso em: 15. Out. 2015.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

para que lhe cuidem da saúde. Deixa algum dinheiro e parte, prometendo voltar
breve.
Sérgia fica ali quase três anos. Corisco foi visita-la várias vezes. Trazia cortes de
pano, perfumes, jóias e dinheiro. Procurava agradar a pequena. Sussuarana,
como a chamava o cangaceiro, odiava Corisco. Quando ele chegava de surpresa
o comportamento da menina se alterava: tornava-se retraída, desconfiada.
Mostrava claramente desagrado pela presença de seu raptor. (ARAÚJO, 2003
[1982], p. 46)

No mesmo livro uma frase foi escolhida para fazer parte da contracapa, onde está
escrito ―Dadá valia mais que muito cangaceiro‖. Segundo o autor do livro, foi dita pelo
cangaceiro Labareda, um dos subchefes de grupo. Percebo na frase que o valor da mulher
não está intrínseco no fato mesmo de ser mulher, mas sim de ser uma mulher com atitudes
ditas masculinas. Valia mais que um cangaceiro, parece um elogio. No contexto em que foi
dito é elogiosa, reflete a elevação da figura de Dadá, mas é uma valorização subordinada à
masculinidade. A própria Dadá assumiu o discurso de sua diferença frente às outras
mulheres, quando faz isso se distancia do feminino e o coloca num lugar de inferioridade,
de fraqueza. ―Com exceção de Dadá, nenhuma das mulheres no cangaço tomava parte nos
combates, mas elas se afirmavam como companheiras de um cangaceiro‖. (GRUSPAN-
JASMIM, 2006, p. 36). A positividade atribuída a Dadá, sempre direcionada para o
masculino, reflete o papel da mulher na sociedade sertaneja, pois como apontei no começo
do capítulo, na sociedade sertaneja a masculinidade era ainda mais imperiosamente
desejada e necessária. Mas como estas duas mulheres foram imortalizadas na literatura de
cordel? Não pretendo com este trabalho trazer à tona todos os discursos sobre Dadá e
Maria Bonita, pois são muitos e diversificados, mas espero refletir sobre como os
cordelistas acentuaram nos seus versos a sexualidade, beleza, dando ao cangaço uma
conotação romântica que minimiza a violência.
A literatura de cordel foi durante muito tempo percebida como uma literatura feita,
e também utilizada, pelas classes subalternas que não tiveram acesso à literatura
considerada erudita. Galvão nos diz que ―os depoimentos parecem indicar, assim, que a
alfabetização das pessoas por intermédio do cordel se dava de maneira autodidata por meio
da memorização dos poemas‖ (GALVÃO, 2002, p. 125). Por ser produzida e largamente
utilizada por pessoas que viviam no interior do Nordeste, ela não foi pensada como fonte
histórica importante, os discursos produzidos por ela caíam apenas no anedótico. Mas
pensando a partir dos pressupostos da História Cultural, a literatura de cordel passou a ser
utilizada em maior escala, principalmente em trabalhos relacionados com a história do

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Nordeste e a história do cangaço. Nestes casos, abandona-se o pensar apenas em termo de


cultura na chamada alta cultura e/ou cultura erudita.

O termo cultura costuma se referir às artes e às ciências. Depois foi empregado


para descrever seus equivalentes populares – música folclórica, medicina popular
e assim por diante. Na última geração, a palavra passou a se referir a uma ampla
gama de artefatos (imagens, ferramentas, casas e assim por diante e práticas
(conversar, ler, jogar) (BURKE, 2008, p. 43).

A literatura de cordel tem em sua base primordial a oralidade, pois antes de


existirem tipografias que imprimiam os folhetos, os temas do cordel eram tratados pelos
repentistas, que cantavam as histórias, criando os versos de improviso. Albuquerque (2013)
considera que a literatura de cordel praticada no Brasil sofreu influência de nossos
colonizadores portugueses, que por sua vez, já havia sido influenciada pela literatura
popular de povos como franceses e espanhóis. Melo (2010) e Albuquerque (2013) nos
informam que o cordel tinha a característica de ter sua leitura feita em grupo, o que
aumentava sua abrangência. A leitura dos versos em praça pública, nos alpendres das casas
de fazenda ou então pelo próprio cordelista nas feiras não tinha só a função do
entretenimento, mas também a função informativa, numa época de jornais escassos.
Mas uma pergunta se faz necessária: Como as mulheres são mostradas no universo
do verso popular? Ao pensar na representação das cangaceiras na literatura de cordel não
podemos deixar de problematizar a própria representação das mulheres no cordel. As
mulheres assumem comumente papéis de divinização, quando são donzelas e puras como
em um dos mais famosos cordéis: A História da Donzela Teodora. Assim, na literatura de
cordel existem as princesas e donzelas ou as mulheres que têm os aspectos de sua
sexualidade expostos de forma a ridicularizar e as humilhar num discurso repleto de
preconceitos e violência. Sobre a representação das heroínas no cordel, Costa diz:

Em Portugal, surgiram dois famosos folhetos: ―História da Donzela Teodora‖


(1712) e ―Princesa Magalona‖ (1732), como exemplos dos primeiros romances
ibéricos que versejavam sobre rainhas, princesas, heroínas sofredoras. Mulheres
desejadas, amadas, apaixonadas, odiadas e valentes... Aqui no Nordeste
brasileiro, a mulher valente virou exemplo de destemidas ‗cangaceiras‘, como –
Maria Bonita, Dadá, Sila e tantas outras (COSTA, 2015, p. 22).

No cordel Vida, Vingança e Morte de Corisco a violência sofrida por Dadá ao ser
raptada por Corisco é apagada e surge pelas mãos do poeta popular uma história de amor e
encantamento entre os dois:

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Assim que viu Virgulino,


Unido a Maria Déia,
Como não tinha mulher
Corisco teve uma ideia
Ir buscar Sérgia querida,
Espelho de sua vida,
Atriz de sua plateia.
(D‘ALMEIDA FILHO, s/d, p. 18)

Foi logo e trouxe em seguida


A Sérgia, sua esperança,
Que também eram chamada
Por Dadá desde criança;
O amado desde menino,]
Ele esperava Cristino
Com fé e perseverança.
(D‘ALMEIDA FILHO, s/d, p. 18)

Sozinho, Corisco abraça


E beija a amada sua,]
Enquanto a luz do luar
No alto do céu flutua,
Num amor santo e fiel
Tiveram a lua-de-mel
Sob as cortinas da Lua
(D‘ALMEIDA FILHO, s/d, p. 19)

Se Dadá foi mostrada como uma mulher amorosa e apaixonada, não podemos
esquecer as imagens de valentia e bravura também atribuídas a estas mulheres, e que
mesmo nestes discursos de exaltação, há uma tentativa de subordinação do feminino. Ao
refletir sobre as imagens da mulher-macho, a historiadora Alômia Abrantes da Silva,
pensou também o cangaço como mais um lugar em que este discurso encontrou eco. A
respeito disto Silva (2008, p. 114) diz:

O cangaço será facilmente capturado por estas redes discursivas, alimentando


estereótipos físicos e perfis psicológicos, que não escaparão às narrativas
literárias. Em especial, colaborá intensamente para dar volume e cores às
imagens da ―mulher-macho‖ como uma tipificação das mulheres sertanejas.

E foi principalmente através da literatura de cordel que as mulheres cangaceiras


surgiram nas elaborações como mulheres guerreiras, belicosas.
O cordel Maria Bonita – mulher macho sim senhor já traz no título a
masculinização da figura de Maria Bonita. O autor tenta traçar a mulher do século XX
como sendo independente no que diferem das mulheres de século anteriores que na sua
concepção eram tratadas como objetos do prazer sexual do homem e da violência
masculina. Para ele esse tempo tinha ficado perdido no passado.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Porem os tempos mudaram


E a mulher se libertou
De todo jugo dos homens
Que tanto lhe escravizou
Hoje a mulher virou gente,
Já existe Presidente
Pra isso muito lutou
(CAVALCANTE, 1983, p. 2)

O cordelista lança um discurso que é uma tentativa de exaltação às mulheres, mas


seu discurso denota que a mulher já tinha conquistado todos os espaços da sociedade e
deixara de sofrer com o machismo e a violência decorrente dele. Se nos dias de hoje, as
mulheres ainda sofrem discriminação, violência verbal, física e psicológica, recebem
salários menores para desempenhar as mesmas funções masculinas. O que podemos dizer
da época em que o cordel foi escrito? Na visão do autor, a entrada das mulheres em
diferentes áreas de trabalho constituía o fim das lutas femininas e a total emancipação
feminina.
Existe a mulher Chauffer,
Aviadora, Barbeira,
Deputada e Senadora,
Professora, Conselheira,
Juíza, Telefonista,
Doutora – Médica, esportista
Militar e Cangaceira.
(CAVALCANTE, 1983, p. 3)

Essas estrofes anteriores são a introdução que o autor precisou criar para lançar o
leitor na história de vida de Maria Déa, menina que ele constrói como sendo muito pobre,
com nenhuma escolaridade e sem profissionalização ou perspectiva de um futuro
profissional. Na sua elaboração, apenas estas dificuldades explicariam a opção de Maria
Déa em casar com um ―Lambe-Sola‖. Aqui novamente se percebe a tentativa da
desqualificação da masculinidade de Zé de Neném, da qual falei anteriormente. Esta
desvirilização do marido de Maria Déa alcançou os escritos de memorialistas, de
historiadores e também dos cordelistas. Nesta elaboração, ela aceitou o casamento como
um fardo, uma obrigação:
Para não morrer de fome
Maria se sujeitou
Casar-se com o jovem Déa
Porque o pai a obrigou
Mulher nova, cheia de vida
Pra não ser ―mulher perdida‖
O casamento aceitou.
(CAVALCANTE, 1983, p. 2)

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

A partir deste quadro o cordelista narra os anos de casamento de Maria Déa como
anos de infelicidade conjugal, e tendo como causa desta infelicidade o gênio de Maria.
Nesta narrativa poética, é neste momento que vai sendo gestada na sertaneja uma
admiração por Lampião, não apenas no aspecto romântico, mas uma admiração que
preenche sua vontade de engajamento na luta cangaceira. Aparece assim uma Maria Bonita
preocupada com as questões sociais:
Sentia Maria Déa
A injustiça do Sertão.
O terror dos Coronéis
Que não tinham coração,
Por isso mesmo falava
Que um dia se encontrava
Com o Capitão Lampião.
(CAVALCANTE, 1983, p. 3)

O autor explica que ao realiza o desejo de se juntar a Lampião, Maria Bonita teve
logo participação nas escaramuças do grupo, sendo de grande valia na hora do combate.
Cinco soldados ficaram
Sem vida naquele dia.
Um morto por Labareda
E os outros dois por Maria,
Lampião dois alvejou
Porém nenhum não matou
Do jeito que ele queria
(CAVALCANTE, 1983, p. 6)

Cavalcante acentua assim o caráter guerreiro da entrada de Maria Bonita no


cangaço, e começa a delimitar os comportamentos masculinos dela e como sua presença no
grupo muda a partir do momento em que pega em armas e deixa de ser apenas
companheira de Lampião.

Maria depois da luta


Quando chegou na guarida
Deu ordens para as mulheres
Ir tratando da comida.
Foi curar dois alvejados
Pelos tiros dos soldados
Na grande luta renhida.
(CAVALCANTE, 1983, p. 6)

Nesta elaboração houve a troca de lugares, ela deixa as panelas e passa a dar
ordem nas mulheres que não desempenhavam um papel guerreiro no grupo, cuidava dos
feridos de guerra, tarefa importante reservada aos homens. Portanto tinha dado provas de
ser uma mulher- macho, comparada a animais perigosos e traiçoeiros.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Maria Bonita era


Mulher macho, sim senhor,
Porque na hora de sua luta
Era a fera do terror,
Era a cobra cainana
Ou a tigre suçuarana
Que todos tinham pavor.
(CAVALCANTE, 1983, p. 7)

Outro folheto do mesmo autor reforça as características guerreiras de Maria


Bonita. O ABC de Maria Bonita, Lampião e seus cangaceiros, publicado em 1976 elabora
um Lampião cansado da vida cangaceira, querendo se estabelecer como um operário e
Maria Bonita o incentivando a continuar na luta, dizia:

―Gosto muito desta vida


Do cangaço do sertão,
Enquanto você for vivo
Não tiro o rifle da mão...‖
Dizia ela contente
Na vista de sua gente
Osculando Lampião.
(CAVALCANTE, 1976, p. 3)

O autor continua reforçando a identificação de Maria Bonita com a vida


cangaceira, a partir de sua personalidade extremamente violenta, não deixando de afirmar
que ela era uma mulher, mas que de forma conflituosa com essa condição tinha ímpetos de
matar:
- Inda que me dê um troço
Não abandono o cangaço
Pois no dia que não brigo
Eu sinto o maior cansaço
Sou mulher, é verdade,
Porém a minha vontade
É sangrar gente no aço!
(CAVALCANTE, 1976, p. 3)

Para pensar como foi criada imagem de Maria Bonita como guerreira pela
literatura de cordel é importante citar o cordel de Antônio Teodoro dos Santos, um dos
mais importantes e mais conhecidos cordéis sobre Maria Bonita. Araújo (2012 [1985],
p.189) diz que ―Dentre todas as cangaceiras foi Maria Bonita a única a merecer dos vates
caboclos a honra de ter sua vida descrita em versos, em um cordel feito especificamente
com esta finalidade‖.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Os temas tratados na literatura de cordel são variados, os cordelistas partem de sua


própria vivência para escrever os versos, que muitas vezes se centram em acontecimentos
políticos, crimes cotidianos, histórias de amor. Os cordelistas produzem assim, sentidos a
partir de suas experiências. Deixam os termos jurídicos e científicos para fazerem nos seus
versos rimados, nas suas setilhas127 ou nas suas décimas128 a escrita que formula uma
construção identitária do povo sertanejo.

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OLIVEIRA, Maurício. Amores proibidos na história do Brasil. São Paulo: Contexto,


2012.

127
Setilhas são estrofes de sete versos de sete sílabas.
128
Décimas são estrofes de dez versos de sete sílabas.

336
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

SILVA, Alômia Abrantes. Paraíba, Mulher-Macho: Tessituras de gênero, (desa)fios da


História (Paraíba, século XX). 2008. Tese (Doutorado em História), Programa de Pós-
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337
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

FEMINICÍDIO: O CASO VIOLETA FORMIGA


RAYANA BENICIO DE OLIVEIRA
UFPB
[email protected]

RESUMO

Neste trabalho retomo o caso do assassinato de Violeta de Lourdes Formiga, poeta


paraibana, nascida na cidade de Pombal, dia 28 de maio de 1951, que foi assassinada pelo
seu ex-marido, Antonio Olímpio Rosado Maia, na cidade de João Pessoa, Bairro de
Tambaú, no dia 21 de agosto de 1982. Para a construção deste trabalho, algumas obras
foram analisadas como: CORRÊA (1998), ELUF (2007) e BLAY (2008).Para a
contextualização deste crime utilizo as definições propostas por Rita Laura Segato (2006)
que compreende o feminicídio como um crime do patriarcado, de imposição de poder,
realizado através do uso da força física. O feminicídio é um crime de ódio às mulheres,
cuja causa essencial foi à violência de gênero, ou seja, o fato da vítima ser do sexo
feminino foi determinante para a sua morte.
Palavras-chave: Feminicidio; Violeta-Formiga; Assassinato;

Na Secretaria Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres feita pela


Presidência da República Brasileira em 2011, consta que o fenômeno da violência doméstica e
sexual praticada contra mulheres, constitui uma das principais formas de violação dos direitos
humanos, atingindo as mulheres em seus direitos à vida, à saúde e à integridade física. A
Constituição Federal, em seu art. 226, parágrafo 8º assegura a assistência à família, na pessoa de
cada um dos que a integram. Observei que a Constituição Federal trabalha para coibir os
mecanismos da violência contra a mulher, criando estratégias para diminuir a violência, no
âmbito de suas relações. No documento consta que as violências praticadas diferenciam-se entre
homens e mulheres, sendo as mulheres as que sofrem mais perigo dentro de casa:

Homens e mulheres, porém, são atingidos pela violência de maneira


diferenciada. Enquanto os homens tendem a ser vítimas de uma violência
predominantemente praticada no espaço público, as mulheres sofrem
cotidianamente com um fenômeno que se manifesta dentro de seus próprios
lares, na grande parte das vezes praticado por seus (ex) companheiros (…) A
violência contra a mulher em todas as suas formas (psicológica, física, moral,
patrimonial, sexual, tráfico de mulheres) é um fenômeno que atinge mulheres
de diferentes classes sociais, origens, regiões, estados civis, escolaridade ou
raças. Faz-se necessário, portanto, que o Estado brasileiro adote políticas
públicas acessíveis a todas as mulheres, que englobem as diferentes
modalidades pelas quais ela se expressa. (Pacto Nacional de Enfrentamento a
violência contra as mulheres, 2011, p. 16)

338
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Compreendo a violência contra as mulheres como qualquer ato que resulta ou possa
resultar em dano, sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, incluindo ameaças de tais
atos, coerção ou privação arbitrária de liberdade em público ou na vida privada. São muitos os
tipos de violências que envolvem as mulheres, e em muitas dessas situações o amor revestido de
ciúme tem servido de justificativa para legitimar atos violentos. Sandra Raquew dos Santos
Azevêdo (2011) comenta que as histórias de mulheres que passaram por violências são variadas,
mesmo assim é pouco comum um olhar interpretativo de tais problemas, visto que tais atos
possuem várias configurações como a violência física, a psicológica, sexual, moral e patrimonial
manifestando-se de forma heterogênea de acordo com a cultura, o lugar e o tempo, mas
interligadas por uma cultura patriarcal comum, onde o homem é o sujeito de maior valor, que
estabelece o domínio e o poder sobre as mulheres.

Maria Helena de Paula Frota (2012) no livro ―Assassinato de mulheres no Ceará‖,


comenta que os casos de feminicídios íntimos não referem-se a um problema de classe social, e
sim, é uma questão de valores hierárquicos de gênero produzidos culturalmente, já que a
população masculina tem o domìnio social das mulheres desde a criação da humanidade. ―A
violência contra a mulher não tem dia, hora, data, ocasião‖ (2012:99) ela acontece no cotidiano
das mulheres afetadas. Para a autora, ―a morte parece configurar um fim antecipadamente
anunciado por inúmeras violências sofridas‖ (2012:99). Frota (2012) comenta que em 44% das
matérias observadas nos jornais Diário do Nordeste e O Povo, o ciúme e a separação, foram os
motivos mais identificados nas manchetes como as motivações para o assassinato feminino:

A paixão, o sentimento avassalador e descontrolado, exaltado pela literatura


romântica é o motivo de lágrimas de dores e amantes de todos os tempos,
consiste em elemento, normalmente, justificador dos crimes cometidos no
âmbito dos relacionamentos amorosos e sexuais. Daí essa espécie delituosa ter
recebido a nomenclatura jurìdica de ―crimes passionais‖ que se apresentam
como maioria dentre as infrações penais que têm a mulher como principal
vítima (...) O autor do crime passional, como resulta Eluf (2009, p. 117), possui
uma ilimitada necessidade de dominar e uma preocupação exagerada com sua
reputação. Dessa maneira não é difícil se constatar que o criminoso passional
não é um ser amoroso. Ele é cruel e vingativo, uma vez que seu amor próprio
fala mais alto (...) O ato criminoso, assim, não é um gesto de amor, mas de auto
afirmação. (FROTA, 2012, P. 104)

Reconciliações, separações, violências e assassinatos, tornaram-se temas frequentes


que, reforçados por meio de uma herança cultural, reproduziram no inconsciente da população os
estereótipos machistas que associavam os comportamentos relacionados à violência contra as
mulheres como responsabilidade delas próprias. Eva Alterman Blay (2008) ao referir-se ao

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

assassinato de mulheres em São Paulo, destaca o esvaziamento do valor da vida feminina, onde
razões superficiais levam a um assassinato. E, como motivo de muitas mortes de mulheres estão
palavras mal interpretadas, uma recusa de sair, a atitude de negar-se... todos os atos que confrontam
o sexo masculino tornam-se o ―suficiente‖ para que uma vida feminina seja eliminada. Em sìntese,
a mulher foi construída culturalmente como uma pessoa interdependente, desprovida de direitos e
repleta de deveres. Na sociedade do controle do corpo feminino, a mulher não foi constituída como
indivíduo, pois o indivíduo e a individualidade são características masculinas. Estas são algumas
características da construção social da mulher desde a época moderna, com resquícios na sociedade
atual, ―esta é a gênese da desigualdade‖, (Frota, 2011, p. 34) é a base das formas de violência
contra o corpo feminino. Onde são cometidos pequenos assassinato cotidianos contra o corpo
feminino.

Analba Brasão Teixeira (2009) comenta que entre as inúmeras situações de violência
presentes na sociedade contemporânea, as que são frequentemente veiculadas na mídia, são as que
enfatizam o amor como motivação nos casos de feminicìdios ìntimos. Nesses casos, ―é comum,
encontrar destaques em manchetes de jornais com títulos descartando a culpa do parceiro da íntimo
da vìtima: ―Dois amores levam em tragédia‖ (2009: 17) ou mesmo a manchete encontrada no
Jornal O NORTE ―Abandonado, advogado espanca e mata mulher com tiro no peito‖. (Jornal
O NORTE, 22 DE AGOSTO DE 1982)

340
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Figura 1: Manchete do assassinato de Violeta Formiga

A manchete do Jornal O NORTE atribuía a culpa do assassinato a Violeta Formiga,


devido ao ―abandono‖ por ela cometido ao divorciar-se de Antonio Olimpio Rosado Maia129, seu
ex marido. E prioriza o status de advogado do assassino, visto que ele era oriundo de família
abastada, e exercia cargos de advogado, procurador e professor Universitário no Estado da
Paraíba. Esta notícia, sobre crimes cometidos porque a mulher tentava a separação, revela que
este ainda é um padrão cultural aceito na sociedade, mesmo que tal matéria tenha sido publicada
ainda na década de 1980, visto que ainda hoje o jornalismo utiliza a mesma tática sensacionalista
em crimes de gênero. Na matéria houve uma tentativa ―velada‖ do repórter de justificar o crime,
ao relacionar o divórcio como a motivação para o assassinato. Blay (2008) explica que nestes
casos ― mesmo que a mulher fosse violentada anos a fio, o tom da notìcia, fixado desde a
manchete, é o de um crime previsível". (2008: 62)

Violeta Formiga morreu em 21 de agosto de 198130, mas estava legalmente


separada desde maio do mesmo ano. Começara a se relacionar com Rosado Maia, ainda
adolescente. O relacionamento do casal durou aproximadamente 16 anos 131. De acordo com o
Jornal O NORTE, o namoro fora interrompido algumas vezes, mas Violeta Formiga e Rosado
Maia decidiram-se casar rapidamente, em uma cerimônia simples, fora de João Pessoa, com a
presença de alguns amigos íntimos.

Violeta Formiga e Antonio Olimpio Rosado Maia casaram-se em 24 de janeiro de


1980, no Cartório em Cruz do Espírito Santo e ao que aparece em nossas pesquisas é que a união
132
aconteceu de maneira desarmônica, pois em entrevista ao Jornal O NORTE , Djean Formiga,
irmã de Violeta Formiga, falava que o ―casamento de sua irmã com Toinho Maia foi forçado,
porque ela não queria, só aceitou porque ele fazia ameaças de matá-la ou a um de seus irmãos‖.
Ignorando tais ameaças, Violeta Formiga decide separar-se de Antonio Olimpio Rosado Maia.

O motivo da separação do casal, em menos de dois anos, foram traições cometidas


por Antonio Olimpio, motivo exposto no processo de divórcio do casal133. Observei no processo
de divórcio as motivações alegadas por Violeta Formiga para pedir a separação; descobri que

129 Consta no processo crime que Antonio Olimpio Rosado Maia, era um renomado advogado e
professor da Universidade Autônoma, residente do Bairro Miramar em João Pessoa. Verificar: Fórum
Criminal. Comarca de João Pessoa. Tribunal do Júri. Processo n° 84211423. Data de 23 de maio de 1984.
De família rica, seu sobrenome conferia a ele, privilégios sociais garantindo-lhe distinção e poder entre
seus pares.
130 Jornal O NORTE, 24 DE AGOSTO DE 1982.
131 Jornal O NORTE, 22 de agosto de 1982.
132 Jornal O NORTE, 24 DE AGOSTO DE 1982.
133 (Fórum Civil. Comarca de João Pessoa. Vara da família. Separação Judicial. Processo de n°
20019815503251. Data de 08 de agosto de 1981.)

341
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

para ela o casamento estava sendo desfeito, devido há outros relacionamentos amorosos que
Rosado Maia possuía, fato nunca lembrado nas matérias de jornais, por mim verificadas.

Após a leitura da matéria sensacionalista acima, observei em outras matérias, dentre


os jornais analisados, inúmeras versões que desmentem a ideia do abandono cometido por Violeta
Formiga, como motivador do caso de feminicídio. Para alguns jornais, apesar da separação,
Violeta Formiga vivia sob constante pressão e medo, sendo regularmente espancada pelo
advogado:

Em face da situação, o casal entrou em acordo para se desquitar legalmente,


sob a alegação de infidelidade conjugal, por parte dele, que aceitou. A ação de
desquite foi iniciada e o casal se separou, mas Ântonio Maia continuou
pressionando Violeta para que ela saìsse com ele ―caso contrário mataria um
irmão‖ de Violeta.

(Jornal A UNIÃO, 22 de agosto de 1982)

Também ameaçava matá-la (ou a seu irmão) se ela não voltasse a viver com
ele. Ameaçou também matar uma sobrinha de Violeta Formiga, de apenas 3
anos de idade, caso não saísse com ele para reiniciar o interrompido
relacionamento amoroso e sexual. (Jornal A UNIÃO, 24 de novembro de
1994)

Na noite do crime contam que Rosado Maia para forçar Violeta a acompanhá-
lo ao apartamento de Tambaú, ameaçou matar uma sobrinha dela, de apenas
três anos. (Jornal CORREIO DA PARAÍBA, 24 de novembro de 1994)

Foram muitas versões lançadas sobre o assassinato de Violeta Formiga. Muitas


manchetes, matérias pequenas e pequenos comentários sobre o assassinato em jornais. Em poucas
dessas versões pude observari a culpa sendo atribuída a Rosado Maia. Nessas três versões
expostas acima, o modelo da masculinidade hegemônica parece estar em evidência em Rosado
Maia como na passagem: ―Ântonio Maia continuou pressionando Violeta para que ela saísse com
ele ―caso contrário mataria um irmão‖ de Violeta‖.

Todos esses fragmentos de reportagens evidenciam que Rosado Maia, era um


homem completamente violento e tentou de todas as maneiras obrigar Violeta Formiga a
permanecer ―casada‖ com ele. Em outras versões, as ameaças reportavam-se a outros membros da
família de Violeta Formiga. Caso não reatassem, como observado no inquérito policial, ele
mataria ela, seu irmão, ou sua sobrinha. Logo percebemos que o crime analisado, é mais um caso
de feminicídio:

342
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

O feminicídio é a instância última de controle da mulher pelo homem: o


controle da vida e da morte. Ele se expressa como afirmação irrestrita de
posse, igualando a mulher a um objeto, quando cometido por parceiro ou ex-
parceiro; como subjugação da intimidade e da sexualidade da mulher, por meio
da violência sexual associada ao assassinato; como destruição da identidade da
mulher, pela mutilação ou desfiguração de seu corpo; como aviltamento da
dignidade da mulher, submetendo-a a tortura ou a tratamento cruel ou
degradante.(Comissão Parlamentar Mista de Inquérito sobre Violência contra a
Mulher (Relatório Final, CPMI-VCM, 2013) 134

Tal artigo destaca que o Feminicídio é o assassinato de uma mulher pela condição de
ser mulher. As motivações mais usuais são o ódio, o desprezo ou o sentimento de perda
do controle e da propriedade sobre o corpo das mulheres, comuns em sociedades marcadas pela
associação de papéis discriminatórios ao feminino, como é o caso brasileiro:

―Trata-se de um crime de ódio. O conceito surgiu na década de 1970 com o


fim de reconhecer e dar visibilidade à discriminação, opressão, desigualdade e
violência sistemática contra as mulheres, que, em sua forma mais aguda,
culmina na morte. Essa forma de assassinato não constitui um evento isolado e
nem repentino ou inesperado; ao contrário, faz parte de um processo contínuo
de violências, cujas raízes misóginas caracterizam o uso de violência extrema.
Inclui uma vasta gama de abusos, desde verbais, físicos e sexuais, como o
estupro, e diversas formas de mutilação e de barbárie.‖ Eleonora Menicucci,
ministra chefe da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência
(SPM-PR)

Coaduno com Rita Laura Segatto (2006) que explica o feminicídio (2006) como um
crime do patriarcado e como tal são crimes de imposição de poder, com uso de força física.
Devemos ainda considerar, outra dimensão, a noção do feminicídio como um crime de ódio: Ódio
a autonomia e libertação feminina. Para a compreensão do poder investido nas mulheres, textos
como os de Tania Swain (2000) e Margarete Rago (1998), proporcionam o entendimento, que as
mulheres foram constituídas como alvo privilegiado da agressão masculina, devido ao corpo que
impõe lugar no mundo. O corpo feminino é reflexo das marcas de poder e dos mecanismos de
controle que delimitam os corpos em respectivos lugares sociais e morais.

Para Tania Swain, a violência de gênero, pode ser pensada como resultado do
dispositivo de sexualidade, teorizado por Michel Foucault. Resultado da representação social dos

134 Verificar em: http://www.agenciapatriciagalvao.org.br/dossie/violencias/feminicidio. Acessado em:


18 de novembro de 2016.

343
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

seres humanos, que investe em corpos e os define por um sexo biológico, dando-lhes funções e
um lugar social. Por isso compreendemos que a divisão binária e hierárquica dos indivíduos
gerou uma desigualdade e assimetria que permite e institui o uso da violência, tendo como
referência, o corpo biológico. Os homens empregaram e empregam o uso da força física nas
mulheres de forma naturalizada, como parte de uma dominação banal dos corpos femininos. De
acordo com Swain:

A lei normativa, as práticas discursivas e regulatórias definem as práticas


sexuais e em torno delas cristalizam os indivíduos em sujeitos sexuados.
Ordem simbólica, constrói o solo sobre o qual se apoia. Constrói também a
desigualdade, a hierarquia, a inferioridade, o desprezo, a culpa, a abjeção. (…)
O corpo não é apenas discursivamente construído, é objetivado numa escala de
valores e atributos que além das identidades, estabelecem seus critérios
―verdadeiros‖: a verdadeira mulher, sedutora, bela, implacável, imagem na
qual procuram se identificar milhões de seres marcados no feminino. O
―verdadeiro homem‖ macho empedernido, coração seco e músculos túgidos.
135

De acordo com a constituição brasileira, o crime de feminicídio intimo, aquele


praticado por parceiros ou ex parceiros, está previsto na legislação desde a entrada em vigor
da Lei nº 13.104/2015, que alterou o art. 121 do Código Penal (Decreto-Lei nº 2.848/1940), para
prever o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio.

No dia 12 de setembro de 1982, foi dado início a queixa na 1° vara da


Comarca Civil de João Pessoa:

No dia 21 do mês de agosto próximo findo, por volta das 2 horas da


madrugada, Antonio Olimpio Rosado Maia, em uma das escadarias do edifício
Solar dos Navegantes, onde mora, fez disparos de arma de fogo contra sua
mulher Violeta de Lourdes Formiga Maia, atingindo-a e matando-a. (Fórum
Criminal. Comarca de João Pessoa. Tribunal do Júri. Processo n° 84211423.
Pagina 18.Data de 23 de maio de 1984, p.5)

Consta no processo136 como narrado pela advogada Nadja Palitot, na


acusação de homicídio, onde o acusado é Rosado Maia e a vítima é Violeta Formiga, que
no dia anterior ao crime, logo no início da noite Violeta Formiga e Rosado Maia
encontraram- se. De acordo com as fontes analisadas137, eram 19 horas138, quando

135 SWAIN. Tania Navarro. A construção do corpo feminino ou a ―hora da vez do nomadismo
identitário?‖ Textos de História, v.8. n° 1-2, 2000, p 24.
136 Processo Criminal n° 95.002 467-8.
137 Jornal O NORTE, 22 de agosto de 1982; Jornal A UNIÃO, 22 de agosto de 1982, Jornal da Paraíba,
22 de agosto de 1982.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Rosado Maia, esteve na casa situada na rua Pau-brasil, no conjunto dos Bancários, casa
onde moravam os pais de Violeta Formiga e convidou-a para sair. Foram para um
restaurante chinês, chamado ―Kanton‖139. E de lá para o Edifício Solar dos Navegantes,
em Tambaú.
Violeta Formiga foi levada ao prédio que residia Antonio Olímpio Rosado
Maia, Edifício Solar dos Navegantes. Quando chegaram ao prédio, Violeta Formiga
estava chorando com um lenço vermelho em sua boca140. E subiram para o apartamento
502. Violeta Formiga foi espancada, como atesta o laudo pericial.
Eram 2 horas da madrugada, quando ouviu-se o primeiro disparo e Violeta
Formiga não sendo atingida, correu para livrar-se pela escadaria do prédio. Todavia, foi
atingida pelo segundo disparo. Fugindo, Violeta chegou a sair do prédio, sendo então
socorrida com vida, para um hospital. Mas, não resistiu. Consta nos jornais analisados, que
segundo Djian Formiga, irmã da vítima, o relacionamento do casal aconteceu de maneira
forçada, sendo Violeta Formiga obrigada a casar-se com seu assassino:
Segundo a irmã da vítima, em 1981, sob pressão do assassino, Violeta se casou
com ele. Logo, nos primeiros meses de vida conjugal , ainda segundo
afirmação de Djian Formiga, Violeta descobriu que seu marido é epilético.
Diante deste fato negado pelo esposo, e não suportando viver ao seu lado, por
se tratar de um homem extremamente violento, propôs a separação. (Jornal A
UNIÃO, 22 de agosto de 1982)

Nesta entrevista, Djian declarou que Antonio Maia e membros de sua família,
pressionavam Violeta Formiga para que não revelassem o segredo da doença de Rosado Maia. E
assim, ela o fez. Mas, mesmo assim, este não foi motivo suficiente para que seu ex marido
deixasse-a viver.

Violeta de Lourdes Formiga Maia, de 31 anos, foi morta com uma balaa
calibre 7,65, depois de violentamente surrada. A polícia prendeu o advogado
Antonio Omímpio Rosado Maia, seu marido, depois que os irmãos Reinaldo e
Reginaldo Bezerra, porteiros do edifìcio Solar dos Navegantes (…) viram
quando o homem chegou com a mulher amordaçada, as 2 horas da madrugada
de ontem. (Jornal O NORTE, 22 de agosto de 1982)

138 Entrevista dada por Djian Formiga ao Jornal O NORTE, 22 de agosto de 1982.
139 Jornal O Norte, 24 de agosto de 1982.
140 Processo Criminal n° 95.002 467-8.

345
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Segundo consta no jornal os empregados do prédio falaram a polícia que após atirar
em Violeta Formiga, ―ele subiu ao seu apartamento, para ouvir música clássica‖, evidenciando
frieza em seu ato. (Jornal O NORTE, 22 de agosto de 1982) Após o assassinato, a polícia chegou
para prestar esclarecimentos, 6 horas após o crime. Neste momento o assassino já havia se
livrado do carro e das possíveis provas que o incriminariam. Nenhuma prova exata foi encontrada
incriminando Antonio Olímpio Rosado Maia. A empregada da casa de Rosado Maia, Maria
Poncilda, fugiu após dar declarações a imprensa incriminando seu patrão:

A empregada do casal, Maria Poncilda, testemunhou segundo informações da


polícia, o espancamento de Violeta, pelo advogado. A violência das pancadas
deixou Violeta com marcas por todo o corpo e com o rosto desfigurado. A
brutalidade do crime chocou o pacato bairro de Tambaú. (Jornal O NORTE,
22 de agosto de 1982)

Se por muito tempo todas essas cenas foram vistas na sociedade como naturais, hoje,
apesar dessas práticas não terem desaparecido, a naturalização da violência contra a mulher esta
acabando; devido aos discursos que contestam o assujeitamento feminino. Portanto nesta
dissertação, dediquei-me em compreender, quais os motivos fizeram a década de 1980 ser
lembrada como o período com maior número de assassinatos de mulheres praticados por
parceiros íntimos?

Objetivo mostrar que, se no princípio, tais crimes justificavam-se, como crimes de


―motivações passionais‖, hoje percebemos que estes crimes encobriam ―feminicìdios‖. Para a
antropóloga Rita Segato (2011)141 o feminicídio pode ser definido como uma qualificadora do
crime de homicídio motivada pelo ódio contra as mulheres, caracterizado por circunstâncias
específicas em que o pertencimento da mulher ao sexo feminino é central na prática do delito.
Entre essas circunstâncias estão incluídos: os assassinatos em contexto de violência
doméstica/familiar, e o menosprezo ou discriminação à condição de mulher. Os crimes que
caracterizam a qualificadora do feminicídio reportam, no campo simbólico, a destruição da
identidade da vítima e de sua condição de mulher. Segato comenta, que ―a ocupação
depredadora dos corpos femininos ou feminizados se pratica como nunca antes‖. (Oliveira, 2013
apud Segato, 2010)

Rita Laura Segato (2011) comenta que a dificuldade na utilização de um termo


específico em casos de assassinatos femininos, para ela surgiu a cerca de 14 anos atrás, na cidade

141 Verificar: Segato, Rita Laura. Femigenocidio y feminicidio: una propuesta de tipificación. IN:
Estudios de Género y Feminismos. 2011

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

de Ciudad Juarez, fronteira norte do México. Estes assassinatos de mulheres, foram chamados de
"femicìdio" adaptando a expressão Inglês ―femicide‖. O conceito de femicìdio foi utilizado pela
primeira vez por Diana Russel em 1976142, perante o Tribunal Internacional Sobre Crimes
Contra as Mulheres, realizado em Bruxelas, para caracterizar o assassinato de mulheres pelo fato
de serem mulheres. Para a autora femicídio é:

Femicídio tem muitas formas diferentes: por exemplo, o femicídio racista


(quando mulheres negras são mortas por homens brancos); femicídio
homofóbico, ou lésbico, (quando lésbicas são mortas por homens
heterossexuais); femicídio matrimonial (quando mulheres são mortas por seus
maridos); femicídio cometido fora de casa por um estranho: o femicídio em
série; e femicídio em massa. Nesta era da Aids, femicídio inclui a transmissão
deliberada do vírus HIV por estupradores. O conceito de femicídio também
estende-se a si próprio além de definições legais de assassinato para incluir
situações em que mulheres são autorizadas a morrer como resultado de atitudes
misóginas ou práticas sociais. ―Texto traduzido‖ (Russel, 1992, p.7, tradução
nossa)

Para Diana Russel o femicídio acontece em diferentes situações, onde as


mulheres ficam expostas a violência de gênero justificada sob diversos aspectos: por cor,
por sexualidade, por negar-se a permanecer em um relacionamento conjugal. Enfim, o
femicídio é a expressão máxima de poder que os homens submetem as mulheres.
O femicídio representa uma variedade de abusos físicos, psicológicos, verbais
e psíquicos que viola os direitos específicos de todas as pessoas: a vida. O femicídio
utiliza de vários métodos como a tortura, o abuso sexual infantil incestuoso, o abuso
familiar, mutilação genital, heterossexualidade obrigatória, maternidade forçada,
mutilação para alcançar a ideia de mulher perfeita, são várias as formas de domínio nas
mulheres que podem levar a morte.
Na literatura sobre o assunto, alguns autores diferenciam femicídio ou assassinato de
mulheres, de feminicídio ou assassinato de mulheres pautado em gênero ou ainda genocídio de
mulheres, o que confere a esses atos uma significação política. Compreende um tipo de crime que
pesa sobre os Estados, que ao não intervir segundo as obrigações assumidas pelo direito
internacional permite a impunidade a um fenômeno em cuja gênese encontra-se a situação de
descaso em relação às mulheres.

No texto de Rita Laura Segato (2006) ela comenta que o texto de Cuputi e Russel
(1992)- ―Femicide”, tinha a função de desmascarar o patriarcado – instituição que se baseia no

142 Verificar em: Femicide: the politics of woman killing. Diana R. H. Russel. In:
http://www.dianarussell.com/f/femicde(small).pdf

347
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

controle corporal e na capacidade punitiva sobre as mulheres, mostrando a dimensão política


desses assassinatos. Por isso justifica-se a criação de um termo específico, para os homicídios de
mulheres, importância estratégica de politização diante a desigualdade de gênero.

Marcela Lagarde y de los Ríos (2004) comenta que foi no século XX que várias
mulheres começaram a ganhar espaços, criando oportunidades e participar nas mais diversas
áreas da sociedade, cultura e política. Neste período, mulheres de diferentes países dão vida à
cultura feminista para denunciar a opressão de gênero e criar uma consciência crítica sobre a
condição das mulheres. Eram 263 mortos e 4.500 mulheres desaparecidas na Ciudad Juarez e
Chihuahua. Para a autora, vivenciamos tal grau de violência de gênero contra as mulheres, e
assistimos a impunidade dos criminosos e a negligência da justiça, devido a omissão e
cumplicidade das autoridades. Foram décadas marcadas por violência de gênero contra a mulher.
E assim, a sociedade passou a exigir justiça para os crimes e desaparecimentos de meninas e
mulheres.

Para a autora, a violência de gênero já é percebida como um ataque aos direitos


humanos das mulheres. E como toda a forma de violência sua ocorrência não é natural e deve-se
a formação cultural da sociedade patriarcal desigual. Para a autora, ―a violência baseada no
gênero é um mecanismo de política destinada a manter as mulheres em desvantagem e
desigualdade no mundo e nas relações com os homens‖. (2004:04) Contribuindo para
desvalorizar e denegrir as mulheres e reproduz a dominação patriarcal. Deste modo, percebemos
que a violência de gênero contra as mulheres e entre os homens, recria supremacia do sexo dos
homens sobre as mulheres e lhes dá poderes extraordinários na sociedade. Sobre isso, Tania
Navarro Swain (2000) comenta:

A lei normativa, as práticas discursivas e regulatórias definem as práticas


sexuais e em torno delas cristalizam os indivíduos em sujeitos sexuados.
Ordem simbólica, constrói o solo sobre o qual se apoia. Constrói também a
desigualdade, a hierarquia, a inferioridade, o desprezo, a culpa, a abjeção. (…)
O corpo não é apenas discursivamente construído, é objetivado numa escala de
valores e atributos que além das identidades, estabelecem seus critérios
―verdadeiros‖: a verdadeira mulher, sedutora, bela, implacável, imagem na
qual procuram se identificar milhões de seres marcados no feminino. O
―verdadeiro homem‖ macho empedernido, coração seco e músculos túgidos.
(Swain, 2000, p. 24)

Tania Navarro Swain (2000) comenta que as leis regulatórias dos indivíduos criaram
nos homens o poder de repressão e violência sobre as mulheres. Neste sentido, o corpo foi
marcado por poderes e reproduzidos através do uso da força física. Deste modo, essas cenas de

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

violência contra as mulheres foram passadas como ―naturais‖. Assim, as inscrições das diferenças
sexuais, da cultura patriarcal introduz no imaginário social, a naturalização da violência.

O feminino foi marcado por traços de assujeitamento, nos labirintos de uma


identidade já marcada pelo domínio masculino. Aos feminismos, o patriarcado responde de várias
maneiras: pelos insultos habituais que não vou retomar aqui, pelo silêncio, ou pelo uso da força
física. Para a autora, as relações humanas são forjadas em um imaginário patriarcal, que criam
origens universais para melhor justificar sua manutenção. Desta maneira, de acordo com Swain,
―a ficção patriarcal faz do binário hierárquico, o eixo das relações humanas‖, fundando sobre o
sexo e a sexualidade seu bio-poder, que se torna então, ―indiscutìvel‖. Logo, o poder depositado
sobre as mulheres foi exercido através do uso da força física, através do domínio do corpo
feminino.

No texto ―Femicìdios e as mortes de mulheres no Brasil‖, Wânia Pasinato (2011)


busca compreender como o termo femicídio é definido na literatura e quais são as implicações
políticas de seu emprego para a análise sobre mortes de mulheres na América Latina e no Brasil.
A autora explica que tal assunto é complexo, devido ao fato desta ainda ser uma discussão
relativamente recente no país, existindo pouca bibliografia sobre o tema e discussões sobretudo
nos meios militantes mais antenados com os debates internacionais acerca de direitos humanos e
de gênero.

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351
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

MODAS E MODOS: AS MULHERES NO JORNAL DAS MOÇAS.


(RIO DE JANEIRO, 1950 A 1955).

MARIA MARLEIDE MORAIS CARLOS


UFCG
[email protected]

ORIENTADORA: PROFA. DRA. ROSEMERE O. DE SANTANA


UFCG
[email protected]

RESUMO

O Jornal das Moças foi uma revista feminina do século XX e que circulou no Brasil até
1961 propagando conteúdos para o mundo feminino e ressaltava um modelo ideal de
mulher. Este artigo tem por objetivo analisar a figura do feminino a partir da revista Jornal
das Moças, que circulou na cidade do Rio de Janeiro entre os anos de 1914 a 1961 e nas
principais capitais do país. Para este trabalho iremos analisar o Jornal das Moças na
primeira metade dos anos 1950 período este marcado por mudanças nas práticas e
costumes dos brasileiros, tendo como aporte teórico o estudo das representações, com base
nos estudos de Roger Chartier que trabalha as representações a partir do lugar social de
cada sujeito. Partindo disso busco problematizar como esse periódico irá contribuir para a
manutenção de um modelo ideal de mulher ―perfeita‖, uma vez que direto ou indiretamente
foi um dos responsáveis por propagar esse ideal de mulher.
Palavras chaves: representações, feminino, anos 50.

INTRODUÇÃO
No início do século XX as revistas femininas tinham grande importância para a
educação da mulher, através das mesmas era vinculado um modelo de comportamento que
as mulheres deveriam seguir, esse tipo de periódico foi muito propagado no Brasil e em
outros países como França e Estados Unidos, nas revistas eram vinculados matérias
relacionadas ao dia a dia da mulher; temas como culinária, moda, maquiagem, higiene
pessoal, etc.
Tudo o que deveriam ler e consequentemente como falar em seu meio, ou seja, os
modos de ser e viver dentro do mundo feminino, acabava se tornando uma construção
midiática e que era seguido por muitas mulheres, esses periódicos tiveram propagação em
todo o país, desde das capitais até os sertões.
A presente pesquisa analisa as representações femininas a partir da ―moda e
modos" apresentados na Revista Jornal das Moças nos anos de 1950 a 1955 na cidade do

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Rio de Janeiro, o contexto social dessa época é de grande importância para a historiografia
brasileira, pois é nesse período que o país passa por muitas mudanças, dentre elas as
transformações comportamentais e estruturais, as mudanças comportamentais são às novas
influências vindas de outros países como a França que ditou por muito tempo a moda no
Brasil, assim como a educação do corpo por meio da mídia, enquanto que as
transformações estruturais é a forma como nosso país, passará a se organizar diante da
nova estrutura estabelecida.
A moda sendo um espaço amplo, e que merece destaque por contribuir para a
construção do ―modo de vestir, como demonstração de poder e status, transformou a roupa
num sìmbolo de comunicação, contendo palavras e signos próprios‖. (ANDRZEJEWSKI,
2012), corroborando com Andrzejewski percebemos que a roupa carrega consigo esse
simbolismo, assim como o peso da historicidade de uma determinada época e dos lugares
sociais que são formados nela.
Buscamos analisar como a Revista Jornal das Moças tratava essas mudanças em
seus exemplares, já que embora fosse uma revista ilustrativa, não deixa de ter uma
intenção, pois o documento mostra sempre uma mensagem pra seu leitor direto ou
indiretamente. Nesse sentido, nosso principal espaço de pesquisa será a revista, assim,
buscarei dialogar com alguns estudiosos como Roger Chartier (1990), Nukácia Meyre
Araújo de Almeida (2008), Liana Pereira Borba dos Santos (2011), dentre outros, que
trabalham com a temática da pesquisa em questão.
O ―Jornal das Moças‖ circulou no Brasil de maio de 1914 a dezembro de 1961, a
mesma era um periódico semanal e circulava nas quartas-feiras, era produzido na cidade do
Rio de Janeiro/ RJ, pela Editora Menezes, filho & C. Ltda do Rio de Janeiro de
propriedade de Álvaro Menezes diretor e redator e Agostinho Menezes diretor responsável,
e tinha como slogan ―Jornal das moças - A revista de maior penetração no lar‖ fazia jus ao
slogan, pois ―Suas tiragens eram publicadas com distribuição por todo território nacional
cobrindo assim as capitais e o interior‖. (SILVA/ SANTOS, 2013, p. 01).
São aproximadamente 2.422 exemplares da revista disponíveis na Hemeroteca da
Biblioteca Nacional, no site: http://bndigital.bn.br/acervo-digital/jornal-mocas/111031,
produzindo uma extensa quantidade de exemplares quando ativa no mercado editorial. A
metodologia aplicada nesse artigo será analise da revista dando foco na coluna ―Troças &
Traços‖ entre os anos de 1950 a 1955, discussões de textos e análises bibliográficas,

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

fizemos esse recorte pois é nesse período que o Brasil vive um período de muitas
transformações, usaremos alguns exemplares desses anos citados.
As mudanças estão tanto nos hábitos quanto nos costumes, dar-se também início a
um período de modernização e avanços tecnológicos assim como culturais e
comportamentais que não deixam de intervir no mundo feminino. E nesse contexto busco
problematizar como será apresentada a representação feminina nesse periódico, e a partir
dessas mudanças e com as influências vindas de fora do Brasil, pensar também como a
revista lidará com essa modernidade. A Revista Jornal das Moças buscava levar a sua
leitora de tudo um pouco: Modos, Culinária, Moda, Poesia, Horóscopo, Novela dentre
outros assuntos, ou seja, uma revista feminina do início do século XX.
Tais revistas procuravam deixar suas leitoras informadas sobre todas as mudanças
no mundo feminino, assuntos que seriam interessantes elas saberem, não o que poderia está
realmente acontecendo no país, pois a revista tinha um público alvo. A mesma
desempenhava um papel de ―ditador de comportamento social, familiar e religioso
reforçando o papel idealizado ou esperado da sociedade com relação ao papel da mulher
que mudava conforme a passagem das décadas‖ (SILVA/ SANTOS, 2013, p. 01).
Nesse período meados dos anos 1950 aparecerá uma figura de grande destaque no
143
Brasil - Juscelino Kubitschek com seu plano de metas para a modernização do país, a
partir das transformações ocorridas haverá uma formação de representações feminina do
que seria a mulher moderna em meio a tantas inovações vindas de fora, isso não só na
moda, mas também para o lar já que surgirão as novas tecnologias que contribuirá para
uma mudança de comportamentos.
Estudar as representações feminina na primeira metade década de 1950, possibilita
uma nova forma de ver o feminino ocorrida a partir das transformações tanto na mente
como nos comportamentos, os modos seguidos por elas a partir dessas mudanças nos
ajudam a entender como era o cotidiano e onde estavam aquelas leitoras do Jornal das
Moças, buscando entender as formas de educação da mulher e como se forma o estereótipo
da ―mulher perfeita‖ imagem que era formulada pela mìdia época.

143
Juscelino Kubitschek de Oliveira foi um médico, oficial da Polícia Militar mineira e político brasileiro que
ocupou a Presidência da República entre 1956 e 1961.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

APRESENTANDO O JORNAL DAS MOÇAS

O Jornal das Moças foi uma revista fundada no Rio de Janeiro e que entrou em
circulação no ano de 1914 circulando até o ano de 1965, era uma revista semanal e
circulou principalmente nas capitais do país e em algumas cidades do interior. A
distribuição da revista era realizada em todo o Brasil, incluindo estados como Acre,
Amazonas, Alagoas, Ceará, Pernambuco, Paraíba, Santa Catarina, Rio grande do Sul,
Minas Gerais, São Paulo, entre outros. (ALMEIDA, 2008, p. 05).

Sua fabricação era realizada pela Empresa Jornal das Moças – Menezes, Filho &
C. Ltda e dirigida por Álvaro Menezes (diretor e redator) e Agostinho Menezes (diretor e
responsável), a revista chegava nos correios das cidades para seus assinantes. No artigo ―O
Jornal das Moças: uma narrativa ilustrada das mulheres de 30 a 50 & sua passagem por
Pelotas nas décadas‖ é apresentado o conteúdo contido na revista.

O jornal das Moças não era somente um meio de entretenimento ou um


passatempo, com frivolidades para as jovens moças e as donas de casa. Também
era um caderno periódico informativo, com dicas sobre moda e com as últimas
tendências parisienses, dicas de beleza, artes como a poesia e a pintura,
curiosidades, propagandas de produtos dos mais variados de lingerie, produtos
de limpeza, utensílios domésticos, receitas gastronômicas. E, principalmente, era
um ditador de comportamento social, familiar e religioso, reforçando o papel
idealizado ou esperado da sociedade com relação ao papel da mulher, o qual
mudava conforme a passagem das décadas, repaginando-a ou mantendo-a em um
padrão desejado pelo estado, sociedade e meios de comunicação. (DOS
SANTOS SOARES, Diego; DA SILVA, Ursula Rosa. 2013).

Nesse sentido e a partir do que Santos e Silva nos traz podemos perceber que o
Jornal das Moças tinha dois públicos alvos as ―as jovens moças e as donas de casa‖ elas
estão inseridas em um mesmo mundo porém em contextos totalmente distintos. Podemos
tecer dois aspectos nesse âmbito quem eram as moças e as donas de casa do início do
século XX?

A moça no século XX era a futura dona de casa, aquela que estava sob a proteção
dos pais, sendo educada para o casamento e para ser aquela mulher perfeita que todo
homem desejava. Na própria educação das meninas demonstram que havia uma
modelagem para no futuro aquela menina ser a futura esposa, seria aquela que iria cuidar
da casa, dos filhos e do marido, aquela que estaria sempre pronta para atender os pedidos
dos mesmos, esse modelo era transparecido nos manuais de comportamento e nas revistas
femininas.

355
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Por outro lado aquela no entanto que saísse dos padrões estabelecidos pela
sociedade era vista como a ―diferente‖, seria assim excluìda daquele ciclo, pois não haveria
lugar pra ela, o ―novo‖ era revestido por uma resistência social. Nesse aspecto acabavam
sendo refém dos papeis sociais que são criados pela comunidade, através de discursos que
objetivam uma disciplinarização dos sujeitos, você é condicionado a seguir um
determinado padrão e quando não o segue é simplesmente excluído, como nos mostra
Chartier, 1990:

―... as práticas contrastantes devem ser entendidas como, concorrências, que as


suas diferenças são organizadas pelas estratégias de distinção ou de imitação e
que os empregos diversos dos mesmos bens culturais se enraízam nas
disposições do hábitos de cada grupo‖ (Chartier, 1990, p. 137).

Os papeis sociais vão sendo construídos de acordo com o lugar social e esses
lugares demostram quem fala. Assim sendo a revista carrega uma intencionalidade, nela
encontravam-se colunas com assuntos sobre decoração do lar, culinária, noções de higiene,
dicas de conquista afetiva, felicidade conjugal, manutenção do casamento, moda, além de
fotos da alta sociedade fluminense e hollywoodiana. Percebemos assim, que essas revistas
desenvolveram um papel importante na vida dessa mulher moderna, com isso podemos
identificar alguns aspectos dessas leitoras, buscando a partir de seus lugares sociais traçar
possibilidades para entender as representações que são mostradas delas por meio da
revista.

A moda por exemplo desenvolve um papel social muito importante, a de propagar o


ideal da mulher perfeita, quando refiro a moda não é somente com relação ao vestuário,
mas no sentido de tendência, ―coisas novas‖. As propagandas que aparecem na revista nos
ajudam a entender esse ideal de boa esposa, colocando a mesma como responsável pela
boa condução do casamento e do lar, agindo dessa forma a revista também faz uma
educação do corpo propiciando a seguir padrões de beleza estabelecidos pela sociedade,
como também maneiras de se comportar tanto em público e no privado.

AS TROÇAS & TRAÇOS DENTRO DO JORNAL DAS MOÇAS

A revista Jornal das Moças tem uma vasto conteúdo a ser problematizado, em uma
de suas coluna a Troças & Traços nela é publicado conteúdos de forma livre, tanto no que
se refere a identificação quanto aos conteúdos, na mesma podemos identificar conteúdos
de caráter muitas vezes machista com um tom cômico em sua escrita, apresenta ainda

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

histórias em quadrinho além de pequenos contos românticos apresentados de forma


sarcástica e alguns conteúdos filosóficos.

A maioria dos contos possui um tema e são de acordo com o que será tratado na
história, possui também imagens que estão relacionados ao enredo. Na análise da coluna
percebi a presença de um discurso que inferioriza a mulher, através das pequenas histórias
que a revista traz. Na sequência analisamos algumas das histórias que são apresentadas na
revista, e para isso utilizo cinco edições da revista sendo 4 edições do ano de 1950 e uma
edição do ano de 1952, as análises seguem a seguir.

A primeira edição que destaco é a de nº 1805 de 19 de Janeiro de 1950 nessa edição


um historinha chamou a atenção. “Ela - agora mesmo um cego a quem dei uma esmola me
disse: - obrigado, minha bela senhora. Ele – eu tinha minhas dúvidas sobre a cegueira
dele, mas agora vejo que é cego mesmo”. Nesse fragmento a entonação com que o homem
fala da mulher é uma forma de humilhação dele para com ela, o conceito de feio e bonito
deve ser compreendido de forma relativa. A forma como o deficiente visual fala com a
mulher é uma demonstração de respeito, porém na história é usado tendo outro sentido, a
mulher assim é colocada como inferior ao homem.

Na mesma coluna destacamos também outro fragmento que diz: Ele- “Antonieta,
este céu azul, este sol, não te faz lembrar alguma coisa? Ela – Sim. Um magnifico dia para
estender roupa no varal”. Aqui busca-se mostrar como o lugar da mulher é definido e
limitado, papel esse que se resume as tarefas domésticas e que em seu universo não existe
lugar para o lazer, esse ideal de mulher é bem propagado na mídia da época. Esse discurso
de tanto ser reproduzido acaba internalizando muitas vezes na mulher, está se deixa levar
por essa ideologia que mulher perfeita é aquela que está sempre pronta para seu esposo e
que não tem o direito de questiona-lo.

A segunda edição nº 1808 de 09 de Fevereiro de 1950, frisamos a seguinte citação.


“Ela¹ - Que tal o teu casamento? Ela² - No começo foi um poema, depois um romance, e,
agora uma tragédia”. Esse diálogo se dá entre duas mulheres, falando entre si do
casamento, percebemos pelas falas que o mesmo é construído de fases, no qual a maioria
dos casais passam em suas relações, mas o que chama atenção é como essas questões são
expostas no jornal, já que a instituição do matrimonio é tida como sagrada, principalmente
nesse momento, temas desse sentido eram tabus, falar que o casamento não é esse mar de

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

rosas que todos pesavam, seria mais complicado apresentar esse assunto principalmente
nesse meio de comunicação que circularia em muitos lares.

Na edição de nº 1825 de 08 de Junho de 1950 é ressaltado o determinado fragmento


sob o tìtulo ―Teria ido mesmo as nuvens‖: A senhora La Sege, a primeira mulher inglesa que
subiu em um balão, quase chegou a arruinar sua reputação por causa da aludida façanha, devido
haver permanecido nas nuvens com um homem por espaço de uma hora. A mulher aqui é
apresentada como aquela que deveria seguir modelos estabelecidos pela sociedade e que
eram reproduzidos pelos meios a sua volta, aquela que não caminhasse nesse sentido seria
vista como um olhar diferenciado, muitas vezes sendo excluída e tachada como o oposto
da verdadeira mulher, aquela que seria condicionada e limitada ao marido, filho e casa.

Percebemos no trecho acima citado, a Le Sege foi vista com olhares preconceituoso
pelo fato de ser a primeira mulher a andar de balão e ficar um pouco mais de uma hora na
companhia de um homem, pela própria escrita do texto que não possui identificação. Há
um tom de ironia e desconfiança no próprio título “Teria ido mesmo as nuvens”, deixando
plantada uma dúvida da real intenção da mulher e do seu companheiro de voo, quando fala
da reputação ao realizar o esporte, denotando que as aparências conta muito nessa
sociedade, aquilo que é projetado ganha muito mais valor sobre aquilo que realmente é, no
discorrer do texto percebemos isso, a reputação dela foi colocada em conta no momento
em que ela decide subir no balão na companhia masculina.

Vivemos até hoje nessa sociedade do aparentemente correto, sem olhar a fundo o
outro para tecer conclusões, chegando a julgar algo que nem se conhece. A mídia tem esse
poder de comunicação que acaba fazendo essas criações de lugares sociais tanto para o
homem quanto para a mulher, e em nome da moral e dos bons costumes são propagados
esses dois projetos distintos e que não podem ser compartilhados pois teria uma inversão
de papeis que a sociedade não admite.

Por fim a quarta edição de nº 1834 de 10 de Agosto de 1950, destaco a seguinte


história: Um dia de proverbio “- Por que você está triste? – Casei-me, e, minha sogra quer
por força morar conosco. MORAL DA HISTÓRIA: - Uma desgraça nunca vem só”. A
ironia e o tom sarcástico que são mostrados nas histórias dessa coluna nos coloca a refletir
sobre quem as escreveu, por se tratar de um espaço livre e suas autorias são mantidas no
anonimato, isso pode influenciar na forma e nos conteúdos expostos no texto, fica claro o
tom cômico que é usado para referir a esposa e sua mãe, ambas sendo mostradas no
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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

diálogo como algo ruim na vida de um homem. Há uma certa resistência do marido em não
querer que a sogra possa morar com eles, é uma questão de privacidade do casal que passa
a ser ameaçada pela presença da sogra.

A coluna Troças & Traços está bem presente na revista Jornal das Moças,
destaquei para esse momento algumas edições do ano de 1950, porém a coluna se faz
presente durante toda a década que se segue, seguindo sempre a mesma forma de escrita e
sempre ocultando seus autores, introduzindo conteúdos afirmando a posição do homem
perante a mulher. Na edição de nº 1916 de 06 de Março de 1992, a coluna apresenta o
seguinte relato: “Ela- Não me venha mais fazer queixa de seus amigos! Afinal, você é
homem ou não é?” percebemos que a escrita mudou um pouco de foco, em sua grande
maioria o tema principal que tinha destaque era a figura feminina, nessa edição apresenta a
mulher, ela está mais elevada e o tom de voz também está mudado como nos mostra a
seguinte representação retirada da revista Jornal das Moças.

Figura 04- Jornal das Moças, 06 de


Março de 1992, Nº 1916, p. 06.

Na imagem acima podemos perceber como a questão colocada anteriormente fica


representada, a mulher em um tamanho maior que o homem, tendo uma certa autoridade
sobre ele observamos isso através do texto, a mesma no dialogo questiona a sua
masculinidade. Ele no entanto é representado em uma altura inferior a ela e com um
semblante assustado, reconhecendo seu poder. Outro fator que chama atenção na imagem
são os aspectos masculinos presentes na imagem da mulher já que em outras imagens que a

359
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

revista apresenta, são sempre representadas com traços mais delicados, distintos da
imagem acima.

Como afirma Vitorino, 2012:

Olhando ao nosso redor são inúmeras as publicações de revistas, livros, sites


dentre outros, direcionados ao público feminino que nos dão dicas de como agir,
pensar, viver e como devemos aparentar fisicamente, tudo isso visando suprir a
necessidade de incorporação do fenômeno que é a busca de um corpo que se
encaixe no ideário de padrão e beleza inventada na sociedade atual.
(VITORINO, R. K. C. 2012)

As revistas femininas do início do século XX tem uma pegada propagandista muito


forte, inúmeros anúncios são apresentados para que seu público possa seguir, a revista em
questão também vai nesse caminho, essa variedade é de grande importância para sua
comercialização, pois quanto maior for a diversidade de produtos no periódico, mais
atraente será para o público, assim torna quase uma necessidade a busca pela beleza que
está ali exposta nas capas das revistas ao alcance de todas, nessa perspectiva a mídia
tornou-se uma ferramenta de alcance incalculável na propagação de um modelo feminino,
pautado na busca de uma beleza ideal e perfeita.

CONCLUSÃO

―As mudanças no comportamento feminino ocorridas ao longo das três primeiras


décadas deste século incomodaram conservadores, deixaram perplexos os desavisados,
estimularam debates entre os mais progressistas‖. (Maluf, Mott, Novais, 1998), este
fragmento do texto ―Recônditos do mundo feminino‖, nele é mostrado como ocorreram as
mudanças na vida das mulheres entre os séculos XIX e XX, assim com a influência da
mídia na propagação do que seria a mulher moderna, o Jornal das Moças em uma de suas
colunas a ―Troças & Traços‖ traz um tema muito importante que deve ser lavado para o
debate, com relação a discussão de gênero.

No item anterior foi abordada essa coluna, era um espaço livre, e nesse sentido
percebemos uma escrita mais direta, ou seja, o ponto de vista de quem escreve é mais
claro, deve-se também ao fato de não ter identificação, mantendo assim em sigilo o autor,
não sendo assinado os artigos dessa coluna. Percebemos a ausência da receptividade na
comunidade diante de alguns colocações, principalmente com relação a mulher.

Na coluna é apresentada a relação do gênero acompanhado sempre de uma dose de


humor, é transparente o discurso patriarcalista, onde o homem é o provedor da família,

360
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

aquele que está sempre com a verdade, é o chefe de seu lar. Essa fala é bastante marcante,
pois nesse contexto a mulher se torna uma simples sombra de seu esposo, onde a mesma
está sempre submissa aos seus caprichos e vontades, aos poucos essa situação irá mudar e a
mulher ganhará espaço antes monopolizado pelos homens.

Consequentemente vemos a relação de poder que se encontra dentro desse


processo, identificamos essa relação a partir da escrita, nos revelando assim os lugares
sociais e as representações de seu público alvo, as revistas femininas eram consumidas por
famílias da classe média, já que os produtos que eram publicados tinha um alto valor que
não era acessível para todos.

As revistas femininas, por exemplo, no final do século XIX já desempenhavam uma


papel de instruir, informar e entreter suas leitoras sobre as novidades do mundo feminino.
Mas por outro lado não era todas as tendências que circulavam nesse meio, em nome de
uma construção social baseada na ordem, as ilustrações assim como o vestuário propagado
será sempre aquele que preze pelo respeito e que não coloque em risco essa ordem já pré-
estabelecida pelas instituições.

Logo acima trago a discussão da coluna ―Troças & Traços‖ que nos mostra o
discurso de forma sátira que é colocado para a mulher, o anonimato da coluna nos faz
refletir que a possibilidade da escrita serem de homens, já que tiveram mais acesso a esses
meios, não proponho aqui fazer juízo de valor mas a imagem do homem é sempre colocada
como superior a mulher, reafirmando os papeis sociais que são postos por essa sociedade,
onde o homem é o provedor e mais inteligente e a mulher mais fraca e pacifica.

A questão do gênero aparece na revista como algo bem dividido, no qual é


colocado o papel da mulher e do homem, nos periódicos principalmente nas primeiras
revistas femininas, o homem está sempre acima da mulher, ela por sua vez está sempre a
sua sombra, mas por outro lado devemos analisar o contexto em que se encontra essas
mulheres e esses homens. Nesse caso podemos perceber a relação de poder que está
inserida nas transformações que ocorreram nesse momento, homens e mulheres tinham
seus papeis marcados, no qual um não poderia intervir no outro, pois haveria assim um
desequilíbrio dessa ordem social imposta por determinadas instituições como por exemplo
a Igreja.

361
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Esse é um ponto identificado nas revistas femininas, elas nos apresenta os modos e
modas vividos pelos sujeitos de determinado contexto, essa fonte nos abre um leque de
possibilidades para se trabalhar desde do vestuário, comida, leituras até questões mais
complexas como a discussão de gênero. Em Louro, 1997 podemos entender como essas
relações sociais são construídas e assim perceber que elas se constitui a partir de um
conjunto de práticas, assim ela traz:

Em suas relações sociais, atravessadas por diferentes discursos, símbolos,


representações e práticas, os sujeitos vão se construindo como masculinos ou
femininos, arranjando e desarranjando seus lugares sociais, suas disposições,
suas formas de ser e de estar no mundo. Essas construções e esses arranjos são
sempre transitórios, transformando-se não apenas ao longo do tempo,
historicamente, como também transformando-se na articulação com as histórias
pessoais, as identidades sexuais, étnicas, de raça, de classe ... (LOURO, 1997)

No texto a ―Emergência do Gênero‖ Louro vai mostrar como esse lugar do


feminino e do masculino são construídos socialmente, ela abordar os fatores biológicos em
que a mulher é colocada como uma extensão do homem e esta é ―naturalmente‖
dependente do companheiro até os movimentos ―ondas‖ em que as mulheres lutam por
direitos iguais entre os gêneros, todos esses aspectos fazem parte de um discurso que gera
símbolos e representações, que por sua vez se perpetuam na sociedade.

Portanto o Jornal das Moças foi um importante veículo na propagação desse ideário
feminino, aquele de uma mulher perfeita, modelo este que é compartilhado não só pelo
Jornal das Moças, como também por várias revistas femininas desse período. Mostravam
em suas páginas o que era o politicamente correto para a mulher do momento. Utilizado
como manual de instruções tanto as jovens solteiras quanto para as senhoras casadas; para
as solteiras os conselhos e dicas de como seria um bom casamento e para as casadas como
manter o mesmo.

Para esse momento busquei mostrar um pouco da revista, quanto a seus conteúdos e
sua estrutura. E como alguns assuntos estão presentes na revista, apresentando a sua
variedade de conteúdos dirigidos ao público feminino. Os periódicos no geral são de
grande importância para entender o contexto em que essas leitoras estão inseridas e os
lugares sociais que vivem.

FONTES DOCUMENTAIS CONSULTADAS E CITADAS:

362
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

JORNAL DAS MOÇAS, 19 de Janeiro de 1950, nº 1805. Rio de Janeiro: Editora Jornal
das Moças.

JORNAL DAS MOÇAS, 09 de Fevereiro de 1950, nº 1808. Rio de Janeiro: Editora Jornal
das Moças.

JORNAL DAS MOÇAS, 08 de Junho de 1950, nº 1825. Rio de Janeiro: Editora Jornal das
Moças.

JORNAL DAS MOÇAS, 10 de Agosto de 1950, nº 1834. Rio de Janeiro: Editora Jornal
das Moças.

JORNAL DAS MOÇAS, 06 de Março de 1992, nº 1916. Rio de Janeiro: Editora Jornal das
Moças.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
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femininas (1932-1945). 2008. Tese de Doutorado. http://teses. ufc. br.
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público do estado de São Paulo, n. 53, 2012.

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Vozes, 1994.
CHARTIER, Roger et al. A história cultural. Entre práticas e representações. Lisboa:
Difel, 1990.
DOS SANTOS SOARES, Diego; DA SILVA, Ursula Rosa. O JORNAL DAS MOÇAS:
UMA NARRATIVA ILUSTRADA DAS MULHERES DE 30 A 50 & SUA PASSAGEM
POR PELOTAS NAS DÉCADAS. Seminário de História da Arte-Centro de Artes-
UFPel, n. 3, n.1 2013.
DOS SANTOS, Liana Pereira Borba. Mulheres e revistas: A dimensão educativa dos
periódicos femininos Jornal das Moças, Querida e Vida Doméstica nos anos.

DOS SANTOS, Liana Pereira Borba. SER MÃE, SER MODERNA, SER MULHER: A
PROPAGANDA E A DIVULGAÇÃO DE REPRESENTAÇÕES DE MULHER NAS
REVISTAS FEMININAS DOS ANOS 1950.
MALUF, Marina; MOTT, Maria Lúcia; NOVAIS, Fernando A. Recônditos do mundo
feminino. In: República: Da Belle Époque à era do rádio. Companhia das Letras, 1998. p.
367-421.
LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação. Petrópolis: vozes, p. 14-56,
1997.
VITORIANO. Renata Kelly Cavalcante. (Re) vistas a revista: representação feminina no
corpo a corpo (1995 -2005) / Renata Kelly Cavalcante Vitoriano. _ Guarabira: UEPB,
2012.

363
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

SITE CONSULTADO:
Hemeroteca Digital Brasileira. Anos 1950 a 1961. Disponível em:
<http://bndigital.bn.br/acervo-digital/jornal-mocas/111031>. Acesso em 22 de Abril de
2017.

364
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

SESSÃO COORDENADA “HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA”


COORDENADOR:
OSMAR LUIZ DA SILVA FILHO

O TERCEIRO NEGRO DO BRASIL: O CÔNCAVO E O CONVEXO NA


CONSTRUÇÃO HISTORIOGRÁFICA E INDENTITÁRIA BRASILEIRA

CÍCERO COSTA RODRIGUES DOS SANTOS144


[email protected]

RESUMO
O vocábulo Negro traz consigo uma carga histórica estigmatizada pela Escravidão, desde
os primórdios de nossa historiografia, quando o alemão Carl Friederich Phillip Von
Matius, ganhou o concurso monográfico do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro –
IHGB, ―Como se deve escrever a História do Brasil‖, com o escrito a História Geral do
Brasil, no qual divide a sociedade em três grupos: o Branco, o Índio, o Negro. Passado
quase um século da replicação da Ideologia Eugênica Europeia, prefalada anteriormente e
pormenorizada no decorrer do estudo, surge Gilberto Freyre com o livro ―Casa-grande e
Senzala‖ e apresenta uma ―Democracia Racial‖ falaciosa, mas que, contribuiu para
entendermos melhor a miscigenação racial brasileira.
Palavras-chave: Negro; estigmatizada; miscigenação racial; ascensão.

APRESENTAÇÃO

O presente trabalho tem como objetivo a observação dos óbices à ascensão do


Negro no Brasil, os movimentos sociais e suas incursões no sentido de ampliar a
mobilidade socioeconômica deste elemento social e as ações governamentais para inserção
na sociedade, permitindo acesso e permanência na graduação e pós-graduação, uma vez

144 Graduado pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte em 2008.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

que a reportagem a seguir embora apresente uma realidade estadunidense em muito


assemelha-se à brasileira, qual seja,―Even with affirmative Action, Blacks and Hispanics
are more Underrepresented at top Colleges than 35 years ago 145.‖
A discrepância quantitativa de Negros no Ensino Superior em relação à
representação populacional é algo estarrecedor, a miúde apresentaremos as pesquisas do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, acerca da temática. Presenciamos
em loco essa realidade, pois em maio de 2003 ingressamos na Universidade Federal do Rio
Grande do Norte – UFRN, no curso de História, ao adentrar na sala de aula para a primeira
e única disciplina no semestre (por ser conscrito da FAB, não nos foi autorizado pelos
superiores hierárquicos, cursar na íntegra), todas as atenções voltaram-se para o ‗milico‘. O
professor da disciplina Introdução ao Estudo de História iniciou a chamada, enquanto
olhando em volta buscava um rosto amigo/conhecido sem lograr êxito. Ao término da aula,
não tendo como interagir com os demais pois, tinha que retornar ao quartel, com um
questionamento que somente na aula seguinte se confirmou, em uma sala com 30 (trinta)
alunos, apenas 04 (quatro), eram Negros, ou seja, menos de 20% do total. Esta era/é a
realidade educacional do Negro no Brasil, desde o fim da escravidão, o Direito à Educação
perdura sendo tolhido por ações excludentes e reações efêmeras. A Educação, fator ‗sine
qua non‘ para a transformação do Ser, nunca foi alvo de ações eficazes e eficientes do
Governo.
Contudo, somente no 5º período ao assistir um vídeo em que é apresentado um
astronauta Negro, ao ser interpelado com espanto por um colega, inquietamo-nos com a
temática. A forma simples e espontânea com que ele falou, ―nossa um astronauta Negro‖, e
ao olhar-nos tentou consertar, ―não que um Negro não possa ser astronauta‖. Aquela
situação não nos causou indignação e/ou repulsa ao colega, mas, asseverou alguns
questionamentos antigos.

―O racismo do século passado não foi um elemento onipresente


na espécie humana, uma distorção encoberta pelas cópulas
desenfreadas entre as raças, mas uma construção ideológica fruto
de conjunturas históricas, na qual interesses materiais das classes
dominantes encontraram uma justificativa científica para a
importação de europeus, e a inferiorização da maioria dos
brasileiros‖. (EISENBERG, 1987 apud Azevedo, p.12, 2004).

145 New York Times, by Jeremy Ashkenas, Haeyoun Park and Adam Pearce.Aug,24,2017.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Esta afirmativa nos induz a inferir que a ideologia da Democracia Racial era falha,
pois, a amálgama genética e cultural não sobrepujou a Eugenia apregoada no Brasil nos
primórdios do Império, a qual espargiu no esmaecer da República os obstáculos materiais e
imateriais para a aceitação e ascensão do elemento Negro, na sociedade Brasileira. O fim
da escravidão e o surgimento da República não foram garantias de Cidadania, o Direito
Civil, Político e Social (foram inaplicáveis ao novo elemento social), não facilitaram a
inserção dos Negros libertos que, adensaram as favelas, a criminalidade, a violência e o
analfabetismo, heranças do velho sistema.
Qual a origem dessa ideia aviltante do Negro? Qual o motivo de nossa
historiografia respaldar e/ou promulgá-la? Seria verdade a inexistência de intelectuais
Negros no Brasil? No afã de responder estas e outras perguntas apresentamos em dezembro
de 2008 nossa monografia, ‗ O sequestro de Intelecto Negro no Brasil Oitocentista‘.
Entretanto, elencar intelectuais Negros do período, questionar a interferência da
Eugenia em nossa historiografia e apresentar querelas imateriais inter e intrapessoais não
saciaram o desejo por respostas. Notamos a necessidade de ampliar os estudos e mesclar as
referências bibliográficas, pois para melhor responder estes e outros questionamentos, faz-
se indispensável à observação da interferência da Escravidão nas macro e micro relações
sociais do cotidiano.

―Ter consciência da inferioridade significa que a pessoa não


pode afastar do pensamento a formulação de uma espécie de
sentimento crônico do pior tipo de insegurança que conduz a
ansiedade, e talvez algo ainda pior, no caso de se considerar a
inveja como realmente pior que a ansiedade. O medo que os
outros possam desrespeitá-la por algo que ela exiba significa que
ela sempre se sente insegura em seus contatos com os outros;
essa insegurança surge não de fontes misteriosas e um tanto
desconhecidas como uma grande parte de nossas ansiedades, mas
de algo que ela não pode determinar. Isso representa uma
deficiência quase fatal do sistema do ―eu‖ na medida em que este
não consegue disfarçar ou afastar uma formulação definida que
diz ―Eu sou inferior, por tanto as pessoas não gostarão de mim e
eu não poderei sentir-me seguro com elas‖. (GOFFMAN, p. 22,
1988).

A construção do Ser perpassa pela formação fisiológica, psicológica, cognitiva,


intelectual e moral, durante estas etapas deve ser provido ao mesmo condições para a
composição de uma identidade única, mas, atrelada e respaldada por um passado histórico,

367
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

que lhe forneça um elo, um sentimento de pertencimento que o auxiliará em suas relações
com outros elementos sociais. No momento que esse atrelamento por motivos outros não
favorece ao convívio ou o obstaculiza, o Ser em construção busca de forma
consciente/inconsciente desvencilhar-se, assumindo nova identidade ou simplesmente
negando a própria.
A interferência psicológica da Escravidão na construção e aceitação da identidade
brasileira é perceptível na forma e na dimensão em todo o território, independentemente da
estratificação socioeconômica em estudo, o afã de distanciar-se deste passado maculador é
imprescindível para que esse elemento social tenha segurança em relacionar-se com os
demais, sem que as barreiras de um conceito pré-existente obstaculizem esse processo
social natural.
Contudo, o número de Negros que buscam ocultar sua genealogia em detrimento de
uma aceitação social é algo rotineiro, desde os Movimentos Abolicionistas até a
hodiernidade, ademais, com a ascensão social magicamente tornam-se ―transétnicos146‖,
pois quando ―atingem as mais elevadas posições no serviço público adquirem o “tom” ou
“cor” de uma classe deferente daquela à qual pertencem pelo nascimento‖
(GOFFMAN,2008, p.30).
―Quando Koster esteve em Pernambuco nos começos do século
XIX notou que eram mulatos, na sua maior parte, os melhores
mecânicos: mas notou também que já havia homens de cor entre os
―ricos plantadores‖ – senhores das casas-grandes do interior – e os
ricos moradores – moradores de sobrados – do Recife‖ (p.497-
498)[...]―Mas esses poucos mulatos que chegaram a exercer, nos
tempos coloniais, postos de senhores, quando aristocratizados em
capitães-mores, tornavam-se oficialmente brancos‖ (FREYRE, p.
727).

Tal ocorrência ilustra/respalda o intento de Negros (afrodescendentes) do esmaecer


da República buscarem a qualquer custo se distanciar desse passado aviltante, com vistas a
uma aceitação e ascensão social.
Quando observamos grupos de negros lutando por medidas assistencialistas e/ou de
reparação do Governo, questionamo-nos pela contrapartida, pela ação imorredoura e
inerente a todo Ser, que é a busca por Liberdade.

146 Transétnicos: cunhamos esse termo para referendar os Negros que buscam de forma consciente ou
inconsciente distanciar-se das origens, como também buscar assumir status de outro grupo étnico.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Libertar-se do estigma de inferioridade e de submissão, da necessidade do


paternalismo estatal, da autoimagem depreciada e principalmente, do diminuto sentimento
de pertencimento que respalda a dicotomia socioeconômica, cultural e historiográfica entre
Brancos e Negros no Brasil.
Lançamo-nos ao Coliseu das ideias, com o intuito de provar que o Negro não é
‗mera variante humana do espaço fìsico‘, mas, um agente social aguerrido em
transformação. O dia 13 de maio não é/deve ser uma data emblemática para o Negro, pois
a mesma oculta, restringe e oblitera a verdadeira História de luta e
resignação/ressignificação do povo Negro.
O desiderato deste trabalho é decantar as informações, imagens, ideias e escritos
sobre os Negros brasileiros, sobremaneira da primeira metade do século XX, contestando-
lhes suas verdades e convicções. Para que desta maneira, possamos construir uma
‗Democracia democrática‘, imbuìda no bem comum, nas relações equânimes e na
implantação plena dos Direitos vinculados à Cidadania.
Não descartaremos o Medo como dimensão histórica, pois a sombra da Revolução
Haitiana pairava nas mentalidades das elites brasileiras que, almejavam de qualquer
maneira desarticular, desacreditar e obstacular as ações de mobilidade do Negro,
replicando discursos nacionalistas como os abaixo transcritos:

―A exaltação da pátria em frases abstratas, generalizadoras; a


depreciação da pátria nos momentos em que uma argumentação
racista aponta para a inferioridade da 'raça brasileira'; o caráter
considerado irrefutável desta inferioridade, responsável por um
nacionalismo defensivo, que se omite quanto à questão racial; e,
por fim, a demonstração de que amar a pátria significa modificar
sua raça, purificando-a mediante a transfusão de sangue de raças
superiores. Enfim, o problema de se forjar uma identidade nacional
confluía para a questão insistentemente colocada pelos
imigrantistas – a purificação racial, o que queria dizer não só
substituição do negro pelo branco nos setores fundamentais da
produção, como também a esperança de um processo de
miscigenação moralizadora e embranquecedora‖. (AZEVEDO,
p.124)

Outrossim, de uma forma multidisciplinar com estudiosos da História Social, da


Sociologia e Psicologia construiremos um caminho para o entendimento acerca da
integração do Negro na sociedade brasileira do período em estudo. Doravante, todo e

369
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

qualquer pensamento ou escrito monóculo concernente a inserção, integração,


apresentação e ascensão do Negro deve ser reavaliado/reescrito.
As ações afirmativas dos Negros devem ser repensadas excluindo destas o afã pelo
assistencialismo governamental, pois, como disse Pe. Antônio Vieira, ―Não hei de pedir,
pedindo, senão, justificando e argumentando, pois, esse é o direito de quem pede Justiça e
não favor”.147
Hodiernamente é fácil perceber e mensurar o poder das palavras sejam elas
expressadas de forma denotativa ou conotativa, estas regerão as relações inter e
intrapessoais. Percebemos que ao longo de nossa evolução linguística e histórica, o
vocábulo Negro foi vinculado a acontecimentos, situações e ideias pejorativas, tais como:
Peste Negra, Câmbio Negro, ovelha Negra, humor Negro dentre outros utilizados
costumeiramente.
Este condicionamento linguístico e comportamental gera interferência na
construção do ―EU‖ e no relacionamento com os outros, pois cria uma socialização
estereotipada e dualista entre Brancos e Negros. Ao singrarmos por esta ideologia
perceberemos seus efeitos nas querelas ideológicas comportamentais, tais como, a
apresentada pelo escritor afro-americano Langston Hughes, em ―The Negro Artist and the
Racial Mountain.‖148

―One of the most promising of the Young Negro poets said to me


once, ―I want to be a poet – not a Negro Poet‖, meaning, I believe,
―I want to write like a White poet‖; meaning subconsciously, ―I
would like to be a white poet‖; meaning behind that, ―I would like
to be white‖. And I was sorry the young man said that, for no great
poet has ever been afraid of being himself.‖ (…) And the mother
often says ―Don‘t be like niggers‖ when the children are bad. A
frequent phrase from the father is, ―Look how well a white man
does things‖. And so the word white comes to be unconsciously a
symbol of all virtues. It holds for the children beauty, morality,
and money. The whisper of ―I want to be white‖ runs silently
through their minds. (HUGHES, 1926)

147 Sermão pelo Bom Sucesso das Armas de Portugal, I, apud Sermões, tomo I, org. Alcir Pecora, ed.
Hedra, 2000, p.445

148 Disponível em:< https://www.poetryfoundation.org/articles/69395/the-negro-artist-and-the-racial-


mountain>. Acesso em 06 out.2017

370
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Portanto, o nosso intento não será criar uma verdade, mas, questionar as verdades
acerca do Negro no Brasil, para entendermos como a estigmatização deste elemento social,
interferiu e interfere não apenas em suas relações sociais, mas, em sua autoconstrução, na
existência de uma identidade deturpada, de relacionamentos psicossociais fragilizados, por
conceitos preexistentes, omissões pessoais e governamentais.
Almejamos, pois, instaurar reflexões acerca da autoidentificação/aceitação e/ou
reidentificação, em detrimento da continuidade de ações estigmatizadas, como também, do
paternalismo governamental. Para que enfrentamentos da ordem apresentada por Hughes
abaixo transcrito, do prefalado trabalho, perdurem em nossos contatos diários,
obstaculando a harmonização social no Brasil.

―We younger Negro artists who create now intend to express our
individual dark-skinned selves without fear or shame. If white
people are pleased we are glad. If they are not, it doesn‘t matter.
We know we are beautiful. And ugly too. The tom-tom cries and
the tom-tom laughs. If colored people are pleased we are glad. If
they are not, their displeasure doesn‘t matter either. We build our
temples for tomorrow, strong as we know how, and we stand on
top of the mountain, free within ourselves‖. (HUGHES, 1926)

Essas discussões devem ser regidas por uma multidisciplinaridade de ideias e


informações, tendo em vista, que todo e qualquer elemento social não é apenas um
demonstrativo econômico e político, mas, cultural, psicológico e sociológico, e nessa
senda, faz-se necessário um estudo amplo e multidisciplinar para entendermos todas as
nuances de aproximação e distanciamento na sociedade.
Outrossim, ao observarmos o quantitativo de negros nas universidades e pós-
graduação, os desavisados pensarão de pronto na efêmera representatividade do Negro nas
Pós-graduações (remetendo nossa observação para uma dualidade querelante entre Brancos
e Negros), contudo, nosso olhar recairá sobre eles com o intuito de descobrirmos as
façanhas, obstáculos e alianças político-ideológicas para tal desiderato.
Entretanto, não deixaremos de repudiar esta realidade desoladora que circunda a
realidade do Negro no Brasil desde a fatídica Abolição, que em nenhum momento proveu
ao novo elemento liberto condições para sua ressocialização, legando-o analfabetismo,
violência e discriminação.

371
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Almejo que este trabalho, traga inquietações e discussões acerca da socialização do


Negro no Brasil, para que a fala do Dr. Martim Luther King Jr. ultrapasse as fronteiras do
tempo e do espaço, “I Am happy to join you today in what will go down in history as the
greatest demonstration for freedom in the history of our nation‖149
Ao assumirmos o compromisso com o estudo em epígrafe, asseveramos a
necessidade de uma abordagem multidisciplinar para que possamos de forma profícua
observar as ideologias e comportamentos dos Negros e seus interlocutores, concernentes
aos obstáculos existentes desde a construção de uma identidade até a plena integração com
a sociedade.
Com o intento de demonstrar o acesso e permanência do Negro nas Universidades,
durante a primeira metade do século XX, utilizaremos as estatísticas do Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística–IBGE, concomitantemente, elencaremos as ações afirmativas
para realização do pleito deste indivíduo nas referidas instituições.
Lançando mão de estudos acerca da construção da identidade e dos óbices àquelas
estigmatizadas, pleitearemos demonstrar a necessidade de reavaliar/readequar a forma de
ver e ver-se Negro no Brasil.
Cremos que esse possa ser o primeiro passo para a implantação de uma real
‗Democracia Racial‘, na qual, independentemente da cor da tez todos sejam indivìduos de
Direitos e Deveres, tal como apregoa a Carta Magma desta República Federativa.
Ademais, os ademanes não podem ser utilizados de forma a criar uma cisão tão
ignóbil e percuciente, que perdure a toda e qualquer perscrutação imbuída no
apaziguamento das querelas inter e intrapessoais, constituintes de todas as formas e níveis
de relacionamento.
Para o profícuo desenvolvimento e entendimento deste trabalho o dividiremos em
03 (três) partes, com o intuito de ampliar e direcionar a leitura para a importância de
amalgamas disciplinares que, conjugadas poderão melhor explicar e recriar meios de
avaliação e investigação das ocorrências históricas, partindo da premissa que todo
elemento social interfere e sofre interferências, quais sejam econômicas, culturais e
psicológicas.

149 Trecho do Pronunciamento – I have a dream. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?


v=P1YQs4Yprcc>. Acesso em 06 out. 2017.

372
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

‘A margem da vida social organizada e de toda a


esperança, sucumbe a própria inercia (…). O isolamento
econômico, social e cultural do negro, com suas indiscutíveis
consequências funestas, foi um produto natural de sua
incapacidade relativa de sentir, pensar e agir socialmente como
homens livres. Ao recusá-lo, a sociedade repelia, pois, o agente
humano que abrigava, em seu íntimo, o escravo ou o liberto.
(FERNANDES. 1978, p.46-95).

Em primeiro lugar, faremos uma contextualização do imaginário do Negro no


Brasil desde a Abolição até meados da primeira metade do século XX, com o intento, de
observar a existência e/ou inexistência de ações governamentais de inserção deste
elemento social, como também, o efeito da reminiscência de um passado escravista
interferindo nas relações sociais deste indivíduo. O monitoramento da questão educacional
Negra neste período nos fornecerá subsídios para questionarmos a estratificação
socioeconômica. Ensejando uma análise das ações, criações e produções acerca do Negro
brasileiro, as quais não conseguiram romper com o viés da dualidade querelante entre
Brancos e Negros.
Vislumbraremos nessa fase toda a psicosfera 150 criada pelos Escravistas para a
manutenção da submissão e subserviência do Negro, criando mecanismos de obnubilação e
estigmatização que se espraiaram pela sociedade em todos seus níveis e de todas as formas.
Contudo, endossamos e comungamos do mesmo pensamento de Nelson Mandela, na
autobiografia:

―I learned that courage was not the absence of fear, but the triumph
over it (...). The brave man is not who does not feel afraid, but he
who conquers that fear. I never lost hope that this great
transformation would occur (…), I always knew that deep down in
every human heart, there is mercy and generosity. No one is born
hating another person because of the color of his skin, and if they
can learn to hate, they can be taught to love, for love comes more
naturally to the human heart than its opposite (…). Man‘s
goodness is a flame that can be hidden but never extinguished‖.
(MANDELA, 2008)

Inspirados nessas palavras, decantaremos as representações dos Negros no


esmaecer da República, seja na Literatura, na Música e nas variadas formas de produção,

150 Psicosfera: termo refente a atmosfera psíquica, ou seja, é um campo de emanações eletromagnéticas
que envolvem o Ser Humano.

373
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

divulgação e armazenamento de conhecimento, com o afinco de verificar a existência e


manipulação do pensamento eugênico em seus genes.
Em seguida, apresentaremos grupos e entidades do movimento Negro, suas ações e
reivindicações, ou seja, como este elemento social buscava sua inserção na sociedade.
Principalmente, buscando observar as interferências psicológicas aproximando-os ou
afastando-os de suas origens. Culminando com o afã de detectar inovações, assimilações,
pontos de concordância e divergência ao longo da trajetória acadêmica e socioeconômica
dos Negros, para desta forma vislumbrarmos a busca por ações não assistencialistas, mas,
pela construção de uma identidade personificada na introspecção e na autovalorização,
respaldada por uma nova forma de escrever e ver a História.
Analisaremos caso a caso, ponto a ponto, para entendermos e remontarmos todas as
diligências produzidas pelos Negros com o intuito de ascender socioeconomicamente na
sociedade brasileira, enfrentando as correntezas ideológicas tal como os salmões, para
fortalecer e garantir a perpetuação da espécie. O poeta escravista Castro Alves, na poesia
Vozes D'África151, lançou o questionamento, ―Deus! Ó Deus! Onde estás que não
respondes?‖, sob o qual resenharemos possìveis respostas acerca do pleito, ou seja, a
origem, promulgação e internalização do preconceito racial no Brasil.
Metodologicamente tentaremos criar um mosaico ideológico que além de
desanuviar a questão da inserção do Negro na sociedade brasileira, corrobore com a
criação de um novo paradigma acadêmico, que venha orientar as ações e movimentos
acadêmicos e civis no tocante ao afã de medidas afirmativas.

BIBIOGRAFIA
AZEVEDO, Celia Maria de. Onda Negra, Medo Branco: o Negro no Imaginário das
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CAMPEDELLI, Samira, LAJOLO, Marisa. (Org.). Castro Alves: Seleção de textos, notas,
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CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 7. ed. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.

FERNANDES, Florestan. A integração do Negro na Sociedade de Classes. 3. ed. São


Paulo: Ática, v.1, 1978.

151 A obra em epígrafe encontra-se na seleção de textos, notas, estudo biográfico, histórico e crítico por
Mariza Lajolo e Samira Campedelli.

374
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

FREYRE, Gilberto. Casa-grande e Senzala. Ilustrações Cícero Dias e Antônio


Montenegro.41.ed. Rio de Janeiro: Record, 2000.

___________. Sobrados e Mucambos: decadência do patriarcado e desenvolvimento do


urbano. 15.ed. São Paulo: Global,2004.

___________. Ordem e Progresso. 5. ed. Rio de Janeiro: Record,2000.

GOFFMAN, Ervin. Estigma: Nota sobre a Manipulação da Identidade Deteriorada.


Tradução, Márcia Bandeira de Mello Leite Nunes. Rio de Janeiro: LTC, 1988.

_________. A representação do Eu na Vida Cotidiana. Tradução, Maria Celia Santos


Raposo. 15. ed. Petrópolis: Vozes, 2008.

HUGHES, Langston. The Negro Artist and the Black Mountain. Disponível em:<
https://www.poetryfoundation.org/articles/69395/the-negro-artist-and-the-racial-
mountain>. Acesso em 06 out.2017.

MANDELA, Nelson. The Autobiography of Nelson Mandela. Back Bay Books/Little,


Brown and Company. New York- NY, 2008.

PECORA, Alcir. (Org.). Sermão pelo Bom Sucesso das Armas de Portugal, I. apud
Sermões, tomo I. Pecora, ed. Hedra, 2000.

SOUZA, Jessé. A Construção Social da Subcidadania: para uma sociologia política da


modernidade periférica. 2. ed. Belo Horizonte: UFMG editora. 2012.

SANTOS, Cícero Costa Rodrigues dos. O sequestro do Intelecto Negro no Brasil


Oitocentista. Monografia de fim de Curso, da graduação em História UFRN, 2008.
YouTube. Pronunciamento Martim Luther King Junior: I have a dream. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=fz_7luovxPc>. Acesso em 06 out. 2017.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

A PRODUÇÃO BIBLIOGRÁFICA SOBRE O CANGAÇO E A QUESTÃO DA


“VERDADE” HISTÓRICA

WESCLEY RODRIGUES DUTRA


FAFIC
[email protected]

RESUMO

A produção bibliográfica sobre o cangaço teve início com maior profusão na década de
1920. Direcionamos a nossa abordagem para a produção sobre o cangaço da década de
1920 a 1980, pois pretendemos compreender como esse movimento foi sendo
apresentado/representado ao longo das décadas. Nessa perspectiva também é
fundamental uma reflexão sobre a concepção de ―verdade‖, pois os autores que
produziram essas obras mantiveram a postura de que elas continham a ―verdade
histórica‖ sobre o movimento do cangaço e os cangaceiros. Especificamente esse
recorte contemplará a figura do cangaceiro Lampião. Para o alcance do objetivo
lapidado usamos os métodos analítico e bibliográfico.
Palavras-chave: Cangaço; Lampião; Historiografia; Verdade histórica.

INTRODUÇÃO

A produção bibliográfica sobre o cangaço iniciou com maior profusão na década


de 1920, fator interessante, pois o movimento estava no auge do seu desenvolvimento
no sertão nordestino, quando o cangaceiro Virgulino Ferreira da Silva, juntamente com
os demais integrantes do seu bando, iniciava a sua liderança que duraria até 1938.
No presente trabalho, com um olhar mais abrangente, optamos por direcionar a
nossa abordagem galgada na produção sobre o cangaço da década de 1920 até 1980.
Um recorte longo, mas como pretendemos compreender as mudanças de interpretação
sobre o cangaço e o cangaceiro, não teríamos como analisar as rupturas e continuidades
se não fizéssemos esse recorte macro.
Especificamente esse período contemplará a figura do cangaceiro Lampião, o
que se justifica porque em torno da figura desse líder cangaceiro encontraremos
praticamente 90% da produção bibliográfica sobre o cangaço, os demais cangaceiros e
cangaceiras aparecendo como pano de fundo para os feitos do líder cangaceiro.
O recorte temporal seguirá o período de construção da figura do cangaceiro no
formato que hoje é apresentado, sendo Lampião o ―protótipo‖ do autêntico cangaceiro.
De certa maneira, tal ideia tem como argumento justificador o fato dele ter sido o líder
cangaceiro que por mais tempo esteve no cangaço, de meados de 1917 até 1938, ano em

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

que fora morto na Grota do Angico, em Sergipe. Como a produção escriturária sobre
esse personagem apresenta-se mais volumosa, isso possibilita ao pesquisador fazer uma
síntese dos vários lugares sociais que gestaram uma escrita sobre Lampião e os
cangaceiros e como esses escritos, a partir de interesses dispares, produziram um tipo de
cangaceiro e representações.
Como questão que norteará a discussão, indagamos como a produção
bibliográfica apresentou o movimento do cangaço ao longo dos anos de 1920 a 1980?
Nessa perspectiva também é fundamental um questionamento e reflexão sobre a
concepção de ―verdade‖, pois os autores que produziram essas obras sempre
mantiveram uma postura cética de que elas continham a ―verdade histórica‖ sobre o
movimento do cangaço e os cangaceiros.
Salientamos ainda que ao falarmos em obras historiográficas não estamos nos
reduzindo ao entendimento corrente que só quem produz historiografia são os
historiadores de ofício, ou aqueles que estão vinculados a uma Instituição financiadora
oficial ou a uma Universidade. A história, antes de ser um produto/objeto da academia,
é filha do seu tempo, sendo que muitos escritos sobre o cangaço foram elaborados em
um momento no qual nem mesmo a Universidade tinha se enraizado em solo brasileiro,
o que nos leva a não entendermos a produção dos memorialistas, folcloristas e
escritores/historiadores diletantes, como obras de qualidade inferior ou produções a-
historiográficas.
Já em 1942, Lucien Febvre (2009), como dito há pouco, deixava claro que ―a
História é filha de seu tempo‖, sendo que cada época tem a sua Grécia, sua Idade
Média, seu Renascimento e o seu cangaço. ―[...] a historiografia é um produto cultural
que, como qualquer outro, resulta de um complexo conjunto de condições materiais e
psicológicas do ambiente individual e coletivo que a vê nascer‖ (FRANCO JÚNIOR,
2001, p. 14), Cada produção historiográfica é fruto de um contexto histórico e lugares
sociais específicos.

A ESCRITA DA HISTÓRIA DO CANGAÇO E A QUESTÃO DA


DOCUMENTAÇÃO E DA “VERDADE HISTÓRICA”

Todo trabalho historiográfico é uma reconstrução, uma reconstrução bem


delimitada e limitada a partir dos documentos fragmentados que foram legados pelo
passado. Embora o fazer historiográfico tenha como fundamento a responsabilidade

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

com a verdade dos acontecimentos e a ―verdade‖ apresentada pela documentação, essa


verdade é o norte, a estrela guia, o objetivo; um objetivo que na sua inteireza não será
alcançado, pois a verdade dos fatos históricos está enterrada com o próprio
acontecimento histórico, soterrada pelo tempo. O que nos chega é uma breve centelha
dessa verdade, sendo a escrita da história e o fazer historiográfico constituído por
verdades.
Não cabe a nenhum pesquisador e historiador a prerrogativa de se colocar como
guardião ou descobridor de uma verdade histórica, pois os documentos históricos não
guardam no seu todo a ―verdade‖ do passado. Não se pode confundir o registro histórico
e a licença/interpretação/narrativa em torno dos acontecimentos com a verdade,
concluindo que os documentos trazem no seu bojo toda a verdade.
Evidentemente que não estamos negando em nenhum momento a importância
dos documentos como alicerces do fazer historiográfico, pois todo documento ―é a base
para o julgamento histórico‖ (KARNAL; TASCH, 2009, p. 09), o sustentáculo de uma
narrativa, as peças do quebra cabeça que será reestruturado e montado pelo pesquisador
e historiador a partir dos questionamentos e problemas gestados no presente e que leva-
o a olhar para o passado buscando respostas.
Toda pesquisa histórica é produto de um meio, de um ―lugar social‖, de
interesses que alimentam no pesquisador o desejo de sanar as suas inquietações,
levando-o aos documentos em busca de respostas. Deixa-nos claro o historiador Michel
de Certeau (2008, p. 65, grifo do autor): ―Certamente não existem considerações, por
mais gerais que sejam, nem leituras, tanto quanto se possa estendê-las, capazes de
suprimir a particularidade do lugar de onde falo e do domínio em que realizo uma
investigação. Esta marca é indelével.‖ Ainda nessa perspectiva completa o autor, ―meu
patoá representa minha relação com um lugar‖, pois da mesma maneira que produzo
uma narrativa histórica, o historiador também é produzido por um lugar social, é fruto
de condicionantes que influenciam a sua formação e a própria construção
historiográfica.
A historiografia por meio dos seus escritos ―fixa‖ verdades que servem à
explicação dos acontecimentos, mas deve-se reconhecer as limitações dessa explicação
e as lacunas das suas ―verdades‖, principalmente as lacunas deixadas pelos documentos.
Ao selecionarmos um documento para analisarmos o passado, tentando
responder as nossas inquietações de pesquisa, objetivamente já estamos estabelecendo
um recorte, uma preferência, uma intencionalidade, como também estabelecemos qual a

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

memória que deve ser preservada e que tomará forma por meio da nossa narrativa e
escrita. Como isso deve-se levar em conta que os documentos são produzidos e que o
pesquisador e historiador ao escolher determinado documento ele acaba por delimitar a
sua importância para o seu fazer historiográfico, não estando tal escolha sendo
imparcial.
O documento, como produto do passado e objeto de trabalho do pesquisador e
historiador, deixa margem para múltiplas interpretações e releituras dependendo da
problemática de pesquisa, sendo que todo documento abriga a possibilidade de infinitas
releituras. ―[...] o documento não é um documento em si, mas o diálogo entre o presente
e o documento‖ (KARNAL; TASCH, 2009, p. 12), tal diálogo estando perpassado pelos
nossos desejos e indagações sobre um objeto de estudo, pois ―toda pesquisa
historiográfica se articula com um lugar de produção socioeconômico, político e
cultural‖ (CERTEAU, 2008, p. 66).
Salientamos dois pontos com essa discussão: em um primeiro momento é
relevante atentarmos que cada período de produção historiográfica apresentará um tipo
específico de cangaço e de Lampião, baseando-se em documentações históricas as mais
variadas. ―Fato e documento histórico demonstram nossa visão atual do passado, num
diálogo entre a visão contemporânea e as fontes pretéritas‖ (KARNAL; TASCH, 2009,
p. 13, grifo dos autores).
O segundo ponto que devemos salientar, e que justifica a discussão que fizemos
até agora sobre o fazer historiográfico, o lugar social e a produção/seleção dos
documentos históricos, é o que diz respeito ao imperativo categórico presente na
maioria das produções bibliográficas sobre o cangaço que apresentam suas narrativas e
fontes como verdades absolutas. Os escritores se apoderam do discurso de que os seus
escritos e consequentemente as suas fontes de pesquisa são inquestionáveis e
condensam toda a verdade sobre o fenômeno do cangaço. No entanto, tal concepção e
visão de pesquisa com endeusamento e petrificação/santificação das fontes, fazem com
que esses pesquisadores não cruzem dados e informações e questionem a validade das
suas informações.
O primeiro momento da escrita sobre o cangaço, que estará dividida por fases,
acaba reproduzindo toda a visão de história do século XIX e a tradição positivista com o
seu caráter de ―cientificismo‖ da História e a ideia de uma ―história objetiva‖ que não
levava em consideração a relação com um lugar social produtor tanto de documentação
como do próprio historiador e pesquisador.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

A concepção de ―verdade‖ enraìza-se em todos esses escritos, pois a ideia de


―história objetiva‖ aliava-se perfeitamente com a concepção de ―verdade‖. Temos que
levar em conta que os autores que estão falando do cangaço nas décadas de 1930 a 1960
acabaram sendo herdeiros de um ensino de história e um fazer historiográfico que por
muito tempo foi comum no Brasil, história essa que valorizava os grandes feitos e
personagens e crivava a narrativa dos livros com o dogma da ―verdade‖.
Ao elaborarem os seus escritos sobre o cangaço e especificamente sobre
Lampião, esses pesquisadores adotarão como norte a escrita factual e biográfico,
mostrando as ações do lìder cangaceiro e de seus ―sequazes‖, com o intuito de
desqualificar e criminalizar a figura do cangaceiro. Fazendo um paralelo, há nos escritos
atuais o movimento inverso, ao se narrar os fatos da vida e o cotidiano dos cangaceiros
busca-se redimi-los dos seus feitos bestiais, usando como argumento e justificativa as
intempéries climáticas do sertão, a ausência do Estado e as arbitrariedades dos coronéis
e mandatários locais como responsáveis pelo florescimento do cangaço, e a
obrigatoriedade da valentia para que os ―homens‖ não fossem desonrados.
Entendemos que tal abordagem não leva em conta que o próprio Lampião
acabou sendo um coronel, diferente do padrão estereotipado, mas um homem que tinha
em mãos um poder absurdo e foi responsável pelo medo dos sertanejos desvalidos que
não tinham dinheiro para contratar jagunços para se defenderem, tendo que se
submeterem às arbitrariedades exigidas pelos cangaceiros. O medo acabava sendo a
palavra de ordem naquele contexto.
A história factual e ―objetiva‖ atrelada a ideia de ―verdade absoluta‖ acabou
sendo uma constante na abordagem da maior parte da produção historiográfica sobre o
cangaço. O documento acaba sendo um ―Monumento‖ que trás consigo a verdade dos
fatos (LE GOFF, 1996). Tal característica era comum no fazer historiográfico do século
XIX e ainda mantêm-se como guia na tradição da pesquisa dos estudiosos do cangaço.
Muitos dos pesquisadores, principalmente aqueles que elaboraram os seus trabalhos
tendo como fonte os relatos orais de ex-cangaceiros, ex-volantes ou remanescentes do
período de atuação dos cangaceiros, envolveram esses depoimentos com a redoma da
verdade, pois os depoentes, ao terem vivenciado os fatos, estariam acima de qualquer
questionamento sobre a verdade daquilo que é narrado, a experiência daria autenticidade
a fala e a narrativa.
Ao se descobrir um bilhete deixado por um cangaceiro ou mesmo um
diário/caderneta deixado por um volante contanto a perseguição aos bandoleiros nas

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

caatingas, após atestarem a veracidade do documento muitos pesquisadores acabam


transcrevendo esses documentos nos seus textos como verdades imutáveis,
retroalimentando a tradição da Escola Histórica Metódica do século XIX. Não
confrontam as informações, não buscam reconstruir o lugar social ou os ―não ditos‖
(CERTEAU, 2008) responsáveis pela produção daquela documentação.
Uma das heranças da Escola dos Annales no século XX foi o alargamento da
ideia de documentação e a necessidade de se interrogar e problematizar esses
documentos para extrair dele as respostas aos questionamentos de pesquisa. Essa nova
visão do fazer historiográfico problematiza a questão do entendimento de que só um
documento contenha a verdade sobre os fatos históricos, por isso defende que esse
documento seja encaixado dentro de uma série de outros documentos para que se possa
compreendê-lo de uma forma mais geral.
Graças ao esforço de inúmeros pesquisadores há uma vasta documentação sobre
o fenômeno do cangaço, sejam depoimentos dos homens e mulheres que viveram nessa
época, sejam jornais, fotografias, filmes, vestuário etc. Mas há na grande maioria da
produção historiográfica sobre a temática a tentativa de colocar o depoimento oral como
o mais legítimo e autêntico, principalmente se for de remanescentes cangaceiros,
volantes ou vítimas, dando-lhes o crivo de verdade e desqualificando qualquer outra
documentação que coloque-se contrária. De certa maneira, isso é uma limitação a
superação da fase inicial, fase meramente narrativa dos fatos, para uma fase mais
analítica.
Nenhum pesquisador pode abrir mão do fator dúvida, não no aspecto negativo,
mas no sentido de questionar aquilo que está diante de si, de inquirir o documento sobre
aquela informação, de confrontar o explícito com outros documentos. Como nos lembra
Leandro Karnal e Flavia Galli Tatsvh (2009, p. 17): ―O documento histórico é
raramente ‗dócil‘, ‗aberto‘ ou ‗fácil‘‖. Ainda nessa linha de raciocínio para Carlo
Ginzburg (1989), o método do historiador está muito próximo do trabalho exercido por
um detetive ou médico, os quais devem recolher as migalhas ou os indícios, extraindo
coisas que de certa maneira só aparecem de maneira indireta. Deve-se atentar, como nos
lembra Certeau (2008), para os ―não-ditos‖, para assim não se cair nas armadilhas do
próprio documento e entendê-lo como única verdade possível.
Devemos ter o cuidado de não manipularmos o documento para que ele se
adeque aquilo que eu penso ou defendo, ou as minhas hipóteses de pesquisa, criando ―a
minha verdade‖ sobre um determinado fato histórico, prática observável em algumas

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

obras da historiografia do cangaço, que não deixam claro as fontes documentais e o


tratamento metodológico.
Precisamos manter certo cuidado ao dialogarmos com as nossas fontes
documentais e mesmo ao analisá-las, para não cometermos o erro de construir aquilo
que nós queremos que seja verdade, e, especificamente com relação ao cangaço,
impormos a posteridade como um dogma inquestionável. Atentemos que toda pesquisa
é passiva de revisão e de redefinição, sendo as ―verdades‖ momentâneas. O documento
não é importante por si só, o grau de importância estará ligado aos condicionantes
sociais que o produziu, aos questionamentos e problemáticas de pesquisa lançadas pelo
historiador, sendo importante a análise que se faz dele.
Não se pode ser autômato na escrita historiográfica apenas lendo sobre o tema,
escrevendo e ilustrando o trabalho com fontes documentais. As fontes não são
ilustrações, quando postas para análises elas dão credibilidade ao fazer historiográfico.
Também não se pode ir além dos documentos, pois eles limitam o fazer historiográfico
e até mesmo a imaginação e vontades do pesquisador.
Todo documento, seja escrito ou oral, deve passar por um processo de reflexão,
questionamento e análise, isso é um elemento fundamental. Ao nos referirmos
anteriormente a supervalorização do depoimento oral na historiografia do cangaço, não
estamos, em nenhum momento, desqualificando ou relegando a um segundo plano a
importância dessa documentação. O que defendemos é a problematização de qualquer
documento histórico, coisa que, na historiografia tradicional do cangaço, cujos
enraizamentos até hoje tem chegado, se deixa a desejar.
Com respeito aos estudos do cangaço, as fontes orais foram praticamente às
primeiras utilizadas para relatar os fatos vivenciados pelos cangaceiros, antecipando em
décadas a discussão travada na academia sobre a metodologia da história oral, que só
aconteceria nos anos 1960 e 1970 (FERREIRA, 2012, p. 172), pois no âmbito
universitário os pesquisadores mostravam pouco interesse por esse metodologia de
trabalho, considerando-a solúvel e não tão confiável.
Nesse aspecto a literatura produzida sobre o cangaço entre as décadas de 1920 a
1980 valorizou os relatos orais, os depoimentos de vida, e até mesmo os livros de
memórias escritos por aqueles sujeitos que tinham vivenciado os fatos ocorridos. Talvez
por a temática em questão ser um movimento popular, acontecido nos mais distantes
rincões do sertão do Nordeste brasileiro, num espaço eminentemente dominado pelo
analfabetismo, a disponibilidade de fontes escritas era escassa, no entanto, apresentava

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

um profícuo manancial de relatos orais e memórias. Sem essas fontes só restaria os


Relatórios do Governo e as notícias dos jornais da época, o que acabava por deixar
imensas lacunas no entendimento da realidade do cangaço.
Ao contrário do que ocorrerá no século XIX com os Positivistas, que
impuseram o domínio absoluto dos documentos escritos rechaçando a memória
(FERREIRA, 2012), desde o início dos estudos do cangaço se deu aos relatos orais e as
memórias um grande patamar de importância, mas boa parte das vezes essa valorização
exacerbada, talvez pelo encantamento e profundo envolvimento dos pesquisadores com
a temática, acabava por nublar os seus trabalhos e a perspectiva analítica.

A ESCRITA SOBRE O CANGAÇO ENTRE AS DÉCADAS DE 1920 A 1980

Devido ao espaço do presente trabalho sabemos ser impossível apresentar e


analisar todas as obras referentes ao cangaço, mas metodologicamente escolheremos
algumas deles, conforme os períodos discutidos, que sintetizam as principais
características das fases em questão. Nessa perspectiva vamos dividir a produção sobre
o cangaço em dois grandes períodos: 1920 ao final de 1950; e de 1960 a meados de
1980; não deixando de considerar que essa segunda fase que nós nomeamos de
―Renascimento‖ dos estudos do cangaço, está para além de 1980, mas devido o aumento
da produção após esse ano, é oportuno tratá-lo em outro trabalho.
Usamos essa divisão em fases de maneira meramente metodológica para
situarmos as características mais latentes, o que não quer dizer que nos períodos
subsequentes ainda não se encontre características e um tipo de escrita própria do
anterior. É oportuno salientarmos que na década de 1910 e até mesmo no século XIX,
nos deparamos com alguns escritos envolvendo a temática do cangaço, esses não serão
abordados no presente trabalho, por fugir do nosso recorte e objeto.
No que tange ao nosso recorte, no primeiro momento que abrange de 1920 até o
final de 1930, teremos a fase factual, narrativista e jornalística. Inicialmente alguns
escritores ao falarem sobre o cangaço estavam preocupados em justificar as ações do
governo por meio de suas forças volantes para perseguirem os cangaceiros,
especificamente o bando de Lampião que ganhava mais terreno de atuação na década de
1920. É uma prestação de contas dos governantes e coronéis que eram acusados de
protegerem e manterem bandos cangaceiros como mecanismo de garantia do poder da
sua oligarquia e família.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Também se buscava mostrar todas as ―atrocidades‖ e ―bestialidades‖ que os


cangaceiros cometiam, representando-os como ―feras‖ que atentavam contra as famìlias,
o Estado e a paz social. ―Bestas‖ que precisavam ser exterminadas. Todas as notìcias
factuais que ilustravam essas obras estavam envoltas com o véu da crueldade extrema,
como uma espécie de justificativa para atos mais extremos do governo e das forças
volantes para exterminar esses bandos cangaceiros.
Em 1926, na primeira biografia sobre Lampião, escrita por Érico de Almeida e
encomendada pelo governador do Estado da Paraíba, João Suassuna, intitulada
―Lampião, sua história‖, o autor já deixa claro pretender organizar os dados sobre a vida
do ―Rei do Latrocìnio‖ (ALMEIDA, 1926, p. 05), qualificando o cangaceiro como um
―bandido‖ e o verdadeiro mal da região.
O escritor vai apresentando dados sobre a possível ação do governo em prol do
extermínio do banditismo daquela região. Há aì uma pretensão de ―verdade‖, uma
verdade política. Devemos analisar a obra mediante essa informação para entendermos
os não-ditos, as subjetividades e interesses que costuram o livro, pois ―[...] toda
interpretação histórica depende de um sistema de referência; que este sistema
permanece uma ‗filosofia‘ implìcita particular; que infiltrando-se no trabalho de análise,
organiza-o à sua revelia, remete à ‗subjetividade‘ do autor‖ (CERTEAU, 2008, p. 67).
Na mesma perspectiva de justificar a perseguição aos cangaceiros e a não
aliança a estes, vamos encontrar as obras ―Lampeão no Ceará‖, do Major Moysés de
Figueirêdo (1927) e ―História do banditismo na famìlia Santos Chicote‖, de Joaquim
Amaro (1928).
A visão do folclorista Leonardo Mota sobre Lampião sintetiza o padrão de
representação da década de 1920, a de ser o cangaceiro um mal para região, uma
―besta‖ e ―fera‖ que precisava ser exterminada: ―Virgulino Ferreira da Silva, o
famigerado Lampião, que começou a delinquir como reles ladrão de chocalhos, tem a
triste glória de ser o mais brutal dos cangaceiros que hão flagelado os sertões do norte
do Brasil‖ (MOTA, 2002a, p. 29).
No referente ao cangaço, as obras da década de 1920 são poucas, tendo uma
maior visibilidade a de Érico de Almeida, e em Estados mais pontuais, como no Ceará,
as obras do Major Moysés de Figueirêdo e de Joaquim Amaro. As de Leonardo Mota,
―Violeiros do Norte‖ (1925) e ―Sertão Alegre‖ de 1928, trouxeram rápidos capìtulos
sobre o tema do cangaço, especificamente só o segundo fará uma referência direta a

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Lampião. No entanto, teremos uma profusão de cordéis nesse período, que narravam os
feitos dos cangaceiros e suas facetas nas invasões.
A década de 1930 manterá o mesmo estilo de escrita da anterior, mas
encontramos um maior número de obras sobre a temática, pois o cangaço já ganhara
nova conotação nacionalmente, haja vista que a Revolução de 1930 mexerá
substancialmente com as oligarquias locais dos Estados e apresentou uma nova
formatação de Estado para o Brasil.
Obras como ―Almas de Lama e de Aço‖, escrita em 1930 por Gustavo Barroso,
trás uma perspectiva de humanização do cangaço, ou seja, a tentativa de entender os
bandidos, especificamente Lampião, não como sujeitos de personalidade degenerada,
mas fruto de um meio social que impelia esses sujeitos a seguirem a vida do banditismo.
Nesse sentido também estará o livro ―O outro Nordeste‖ de Djacir Menezes, escrito em
1937.
Com exceção da obra de Barroso e Menezes, todos os autores desse período
representarão os cangaceiros como doenças a serem exterminadas, bestas descomunais,
grandes flageladores do sertão nordestino. Por outro lado, algumas narrativas se
propõem a fazer a denúncia da corrupção na política e na polícia que acabava por
favorecer o florescimento e a manutenção do cangaço. Isso fica visìvel nas obras: ―Os
dramas dolorosos do Nordeste‖ (1930) e ―Flagelo de Lampião: relação documentada de
suas hediondas façanhas no Nordeste durante os primeiros 4 meses de 1931‖ (1931), de
Pedro Vergne de Abreu; ―Fatores do Cangaço‖ (1934), de Manuel Cândido; e
―Lampeão‖ (1933), de Ranulpho Prata.
Esse último livro publicado em 1933, apresenta-se como a segunda biografia do
―Rei do Cangaço‖, sendo que o autor deixou claro nas suas primeiras páginas que o
objetivo do seu escrito era denunciar as barbáries cometidas por Lampião nos sertões. É
um filho da elite agrária local, radicado do sul do país, falando sobre as ações dos
cangaceiros contra a população dos sertões. Nas palavras dele: ―A mão que tracejou este
livro é a de um filho dos sertões [...] somos assim, mero porta-voz da angústia de
milhares de seres humildes, dos mais desgraçados do país, pés-rapados, párias,
intocáveis, açoitados por mil flagelos‖ (PRATA, 1933, p. 21). É o clamor para que a
―gente litorânea‖, ―civilizada‖, olhe para os sertões, para aquele pedaço do Brasil no
qual as benesses da civilização ainda não fincou raízes. Segundo ele o progresso
precisava adentrar nos sertões e para isso o extermínio de Lampião e seu bando era algo
necessário e urgente.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Após a morte de Lampião em 1938 e a rápida fragmentação dos bandos com


entregas, prisões e fugas para outras regiões do país, chegou-se ao fim do cangaço em
1940. Nesse período inicia o que chamaríamos de memória maldita sobre esse
movimento, sendo o cangaço tido como algo que deveria ser esquecido, ou pelo menos,
quando lembrado, essa visão deveria ser representada de forma pejorativa.
Na década de 1940 houve uma diminuição substancial na produção sobre a
temática. Praticamente as obras mais contundentes foram ―Bandoleiros das Caatingas‖
de Melchiades da Rocha (1940), e ―Como dei cabo de Lampião‖ do Capitão João
Bezerra (1940). Essa segunda obra sendo um importante livro de memória do homem
que matou Lampião. Ela serviu de baliza para todos os livros que a partir da década de
1950 serão elaborados contando a versão dos volantes sobre as suas ações contra o
cangaço de Lampião. A memória que vai se cristalizando era a do vencedor. É o fim de
um período que condensa todo o discurso representacional dos cangaceiros como um
grande estigma e mácula para a região e para a população pobre sertaneja.
Tanto na década de 1940 como 1950 houve uma produção significativa de
cordéis que contribuíram para a construção de múltiplas representações sobre o
cangaço, produções essas que podemos nomear de épico-romanesca, pois além de
narrarem as ―aventuras‖ dos cangaceiros, possibilitaram um processo de construção de
uma imagem épica em torno do cangaceiro revestindo-o com características de valentia.
Em âmbito nacional o cangaço também será apropriado pela literatura regional.
Podemos citar os livros: ―O baile das quatro artes‖ de Mário de Andrade (1943) e
―Cangaceiros‖ de José Lins do Rego (1953). Essas obras são apenas exemplos, pois na
produção literária regional desse período, sempre teremos a presença de um cangaceiro
nas narrativas.
Em meados de 1960 a temática do cangaço renasceu, sendo que houve uma
profusão de publicações. O sertão dos cangaceiros passou a ser tido como algo exótico,
o faroeste no estilo brasileiro. Os filmes sobre a temática deram visibilidade ao cangaço,
e, de certa maneira, a representação sobre a figura do cangaceiro e principalmente de
Lampião, sendo estas resignificadas. As antigas feras, bestas que traziam infelicidade
aos sertanejos, passaram a ser vistas como vítimas de um sistema, isso na visão marxista
que ganhara corpo na obra ―Cangaceiros e fanáticos‖ de Rui Facó (1963) e ―As táticas
de guerra dos cangaceiros‖ de Chistina Mata Machado (1969). As histórias dos
cangaceiros vão alimentando o discurso sobre o ―herói‖ e o ―bandido‖, tão comum na
produção dessa época.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

A academia também se voltou para a temática. Além da produção de Facó,


tivemos em 1968 a tese defendida na França, ―Os cangaceiros‖, de Maria Isaura Pereira
de Queiroz, que apresentou o cangaço numa perspectiva sociológica, classificando os
tipos de cangaceiros e a realidade social que o produziu. Categorizado teremos: o
cangaceiro dependente, independente e o de calamidade. Os primeiros os que estavam
vinculados a um senhor de terras, sendo os seus jagunços, o segundo, aqueles que eram
itinerantes e que faziam parcerias com os coronéis locais quando isso era conveniente
para ambas às partes; e, por fim, os de calamidade, aqueles homens e mulheres que
entravam no cangaço quando a fome e a seca assolavam o sertão, apresentando-se o
banditismo como a única solução para sobreviverem.
Em 1976, o historiador inglês Eric Hobsbawm publicou o livro ―Bandidos‖, no
qual apresentou o cangaço como um movimento social pré-político, atribuindo a alguns
cangaceiros as características de bandidos sociais, ou seja, aqueles que devido as
circunstâncias tiravam dos ricos para distribuir com os pobres.
Ainda no âmbito acadêmico, em 1980 tivemos o livro ―Lampião, o Rei dos
Cangaceiros‖, do historiador norte-americano Billy Jaynes Chandler, que pesquisou nos
anos de 1973 a 1975, para a construção da sua dissertação de mestrado.
Nesses modelos analíticos se construíram as abordagens após a década de 1980.
Ora os cangaceiros são heróis, vítimas de um sistema corrupto que marginalizava os
pobres sertanejos, ora os cangaceiros são bandidos sanguinários. Assim, até 1960
tivemos os momentos: factual/narrativista dos feitos dos cangaceiros, e o
memorialístico, sendo o cangaço algo de um tempo remoto. Após 1960, de um lado
tivemos o modelo representacional acadêmico sobre esse movimento; do outro o
cangaço seria a epopeia do sertão nordestino, o sinônimo de um tempo de coragem,
audácia, valentia e masculinidade. Nessa época renasce com mais força a ideia de
verdade sobre esse movimento. Os escritores se posicionam como juízes para
instituírem um lugar para o cangaceirismo nordestino.
Nas décadas de 1960 e 1970 tivemos a fase da ―pesquisa oral‖. Os
remanescentes do cangaço foram exaustivamente questionados sobre esse movimento e
seus depoimentos compuseram a produção historiográfica sobre o cangaço. Os autores
passaram a disputar com mais ênfase a ideia de verdade histórica sobre o cangaço,
revestindo os seus documentos orais com o caráter de inquestionáveis e verídicos por
terem os depoentes vivenciado os fatos narrados.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A fase da narrativa factual e biográfica acompanhou praticamente a maior parte


da produção escrita sobre o cangaço desde a década de 1920, formando um verdadeiro
modelo, digamos que cânone, para aqueles que escreveram sobre a temática. Não
estamos dizendo com isso que essa produção não tenha grande importância, muito pelo
contrário, pois ela foi responsável por levantar a documentação e relatos orais sobre a
temática, sendo até hoje relevante para as pesquisas cujo foco seja o cangaço.
Por vezes o cânone factual acabou por preocupar-se com os detalhes do fato do
que com a relevância e conjectura social produtora daquele fato. Por exemplo, debates
que se voltam para a cor da bala que matou Lampião, Maria Bonita e mais nove
cangaceiros na Grota do Angico em 1938 perpassa o interesse de um grande número de
pesquisadores, que investem seus esforços para descobrir tal peculiaridade. Esse detalhe
é apenas um fragmento dentro de uma perspectiva muito maior que é o cangaço. Mais
importante do que descobrir a cor ou o tipo de bala que matou os cangaceiros, é
buscarmos entender a teia de relações e fornecimento de munição para os cangaceiros, a
corrupção que perpassava essas práticas, as pessoas beneficiadas e por que se
beneficiavam, quais interesses estavam por trás de tais atitudes.
Mais importante do que a discussão em torno do fato dos cachorros não terem
latido na Grota do Angico na madrugada de 28 de julho de 1938, é a discussão sobre o
que representou para o sertão nordestino a morte de Lampião, quais os rumos tomados
pelo cangaço após esse episódio, como essa morte foi recepcionada pela comunidade
regional.
Boa parte da história oficial é criada a partir da ótica dos vencedores, os quais
tentam desqualificar ou minimizar a importância dos vencidos, criando representações
pejorativas sobre esses. Em torno da história do cangaço esse processo se deu ao
contrário, a história desse movimento é contato pela ótica dos vencidos, talvez seja uma
das poucas experiências de tal natureza na história do Brasil. Criando dicotomias entre
―mocinho‖ ou ―vilão‖, ―herói‖ ou ―bandidos‖, os pesquisadores acabam exaltando a
figura dos cangaceiros.
Fora as obras de Barroso e Menezes, somente na década de 1960 e 1970
encontraremos uma perspectiva mais analítica sobre esse movimento, quando o cangaço
passou a ser objeto de interesse da academia no momento em que a questão agrária era

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colocada em pauta no país por meio de movimentos ligados a terra, como, por exemplo,
as Ligas Camponesas.
Trabalhos como os de Rui Facó e de Maria Isaura Pereira de Queiroz são
importantes por romperem a perspectiva biográfica ou memorialística do cangaço,
inserindo a temática dentro de uma perspectiva sociológica, buscando entender os
enraizamentos desse movimento dentro da realidade social sertaneja. No entanto,
contraditoriamente, esse período construiu um modelo analítico dentro da academia
sobre o cangaço que acaba influenciando e sendo retroalimentado até os dias atuais.
Modelo este que apresenta esse movimento como o produto de uma sociedade na qual o
Estado oficial ausentava-se ou que travava uma íntima relação com os potentados
locais, tornando o sertão uma área dominada pelo coronelismo, onde o sertanejo era
vitimado pela seca, fome, falta de perspectiva de ascensão social, trabalho servil ou
semi-servil, e a falta de uma justiça ou burocracia jurídica estatal que desse garantias
aos menos abastados. Como dito, na perspectiva de Facó o cangaceirismo apresentava-
se como um meio de resistência a uma realidade de desigualdade, estando tal
abordagem perpassada pela perspectiva marxista da época.
Assim, de um lado encontraremos na produção bibliográfica dos escritores e
pesquisadores diletantes uma abordagem mais factual sobre as ações dos cangaceiros,
do outro, a partir da década de 1960, encontramos na academia a formatação desse
modelo analítico sobre o cangaço que apresentava o cangaceiro como a vítima do
sistema político, econômico e social do Brasil da primeira metade do século XX, sendo
que esse modelo acaba retroalimentando e sendo reafirmado como único válido para o
entendimento do movimento do cangaço dentro da academia. É como se toda a
discussão se esgotasse nessa única corrente analítica.
Não entramos no mérito se é válida ou não essa perspectiva, pois acreditamos
que ela é um caminho possível para a compreensão do cangaço, como também ela é
fruto de uma década na qual essa perspectiva apresentava-se como o modelo
hegemônico dentro das universidades.
Hoje o desafio está na mudança de fase, ou seja, passar da fase narrativista
factual e ir para a fase analítica, de recortes, de especificidades, analisando conjecturas,
confrontando dados e documentos, fatiando o cangaço, indo para além da perspectiva
biográfica, fazendo um questionamento minucioso da documentação até o presente
coletada, uma catalogação das obras já escritas, para se possibilitar uma reviravolta nos
estudos do cangaço, indo do magro ao micro. Uma história do cotidiano, do imaginário,

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dos amores, dos odores, da estética, dos medos. Não com a busca de instituir uma
verdade absoluta sobre esse movimento, mas tentando entendê-lo a partir das suas
minúcias, dos ―não ditos‖, das subjetividades.

REFERÊNCIAS

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

MENEZES, Djacir. O outro Nordeste: ensaio sobre a evolução social e política do


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A CANÇÃO COMO DOCUMENTO HISTÓRICO

ANTONIO MANUEL DA SILVA JUNIOR


UFPB/SESC-PE/SEE-PE
[email protected]

RESUMO

A principal matéria-prima da História são suas fontes. Em cada sociedade percebemos


como as mesmas utilizam-se de diversas formas de preservar sua cultura. Com o avanço
das sociedades e as suas diversas fases: comercial, industrial, liberal e capitalista, as
fontes também começaram a mudar. O oficio do historiador se dá através de
documentos. Nesse artigo iremos utilizar Napolitano (2008) que faz relação entre as
fontes audiovisuais e musicais com a história. Uma outra autora que irá tratar a canção
como fonte ou documento histórico é Miriam Hermeto (2012) que procura realizar uma
abordagem problematizada sobre como utilizar o documento em cinco dimensões. Essas
dimensões são: Dimensão material, Dimensão descritiva, Dimensão explicativa,
Dimensão dialógica e Dimensão sensível.
Palavras-chave: Fontes Históricas, Canção, Documento Histórico

INTRODUÇÃO

A principal matéria-prima da História são suas fontes. A utilização de


determinadas fontes varia de acordo com o tempo, o espaço e também com relação a
identidade cultural do historiador. Em cada sociedade percebemos como as mesmas
utilizam-se de diversas formas de preservar sua cultura. As sociedades primitivas se
utilizavam de pinturas em rochas para deixar suas marcas. As primeiras civilizações que
utilizaram a escrita procuravam grafar seus símbolos em rochas, paredes e blocos de
barro. Essas civilizações, segundo Pinsky (2008, p. 10-17) eram complexas e junto com
elas surgiram a propriedade privada, o comércio, as religiões, as cidades, estados e
Impérios que usavam a escrita para registros gerando uma nova forma de documentos.
Com o avanço das sociedades e as suas diversas fases: comercial, industrial,
liberal e capitalista, as fontes também começaram a mudar. Karl Marx que defendia a
ideia de que a base da sociedade é sua estrutura econômica e que as lutas de classes é o
que movimenta e dá sentido a história influenciou os estudos da Economia e Sociologia.
Percebe-se que no Brasil a influência da historiografia francesa é muito grande.
Sua influência inicia-se no final do século XIX e faz uma proposta de utilização de
outros saberes, outras disciplinas como a Geografia Humana. Com o advento da Escola
dos Annales no início do século XX, percebe-se que a utilização de diversas e variadas
fontes está agregada ao ofício do historiador, gerando os mais diversos tipos de estudos.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

As fontes consultadas e discutidas pelos autores mostram a dimensão


interdisciplinar de suas perspectivas: mapas meteorológicos, processos
quìmicos, documentos de ministérios da agricultura, (…) diários, biografias,
romances, (…), ilustrações, caricaturas, jornais, manuais de bons hábitos,
fotografias, (…), depoimentos orais, filmes mudos, sonoros e coloridos, (…),
programas de festas públicas e particulares, homenagens, músicas,
celebrações religiosas, discursos, trajes especiais e uma infinidade de outras
mais. (PINSKY, 2008, p. 15)

As inúmeras opções agora de utilização de fontes, fez com que os


historiadores começassem a buscar novos objetos de pesquisa. Outra mudança
significativa no trato com as fontes históricas é o avanço da tecnologia, que agilizou a
pesquisa quantitativa e serial. A tecnologia aproximou os homens em tempo real e
passou a integrar o campo de ensino também.

NOVAS FONTES DA HISTORIOGRAFIA


Napolitano (2008, p. 235-283) traz no artigo ―A história depois do papel‖ a
relação entre as fontes audiovisuais (filmes, tv, videoclipes) e musicais com a história,
que vem ganhando espaço na pesquisa histórica. O oficio do historiador se dá através de
documentos. É procurando ―pistas‖ e ―testemunhas‖ que se faz a escrita da história. O
cuidado que se deve ter é justamente as possíveis armadilhas do documento, que nos
documentos audiovisuais e musicais pode-se firmar como ilusão da objetividade ou
pretensa a subjetividade. ―Na perspectiva da moderna prática historiográfica, nenhum
documento fala por si mesmo, ainda que as fontes primárias continuem sendo a alma do
ofìcio do historiador. ‖ (NAPOLITANO, 2008, p. 240)
Uma outra autora que irá tratar a canção como fonte ou documento histórico é
Miriam Hermeto (2012). De início a mesma, procura relacionar a canção com objeto e
fonte no Ensino de História. Busca em Bloch e em Le Goff subsídios para mostrar a
importância da relação entre o homem e o tempo e como o documento deve ser tratado
buscando a definição de Le Goff (O documento é monumento). É colocado por Hermeto
(2012, p. 25) que toda produção humana é documento. A transformação da produção
cultural em documento, vai depender do olhar que o historiador lança sobre ele. Se esse
olhar for crítico e problematizador, o historiador será capaz de perceber e identificar os
sujeitos, o tempo e as relações existentes ali. Assim que se faz um documento histórico.
O uso de uma variedade de documentos na pesquisa do historiador tem sido
bem mais pertinente nas últimas décadas e essa utilização no Ensino de História
também tem sido uma constante, motivando também seu uso na sala de aula. Dentre

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

esses documentos que são hoje constantemente utilizados pelo historiador no seu ofício,
temos a canção. Napolitano (2008, p. 235-236), fala sobre o crescente espaço dado a
outros tipos de fontes e principalmente as fontes audiovisuais e musicais. Essas fontes
entre no rol de fontes primárias e de uma forma desafiadora para o historiador.
Napolitano, em seu texto, verifica que muitas vezes as fontes audiovisuais como o
cinema (documentários), televisão e registros sonoros, são testemunhos diretos e
objetivos da história, já quando se trata de cinema ficcional, novelas e canções, tem uma
carga de subjetividade. Mas ―A questão no entanto, é perceber as fontes audiovisuais e
musicais em suas estruturas internas de linguagem e seus mecanismos de representação
da realidade, a partir de seus códigos internos‖ (NAPOLITANO, 2008, p. 236).
Verificando a questão da canção, e tendo uma visão ―subjetivista‖, devido a
sua natureza estética e polissêmica podemos dizer:

(…) que sugere certa ―ilusão da subjetividade‖, cujos significados


sociológicos e históricos seriam produto de uma dose de especulação por
parte do historiador, na medida em que a obra teria um conjunto de
significados quase insondáveis e relativos, variável de acordo com a fruição
do ouvinte. Prova disso é a supervalorização da ―letra‖ na abordagem da
―canção‖ com documento histórico, dominante até bem pouco tempo entre
historiadores e outros cientistas sociais, ou seja, a crença de que o sentido
histórico da canção estaria ao seu conteúdo verbal, muitas vezes tomado em
si mesmo e apartado da estrutura musical que lhe acompanha e, como
experiência estética, lhe é inseparável. (NAPOLITANO, 2008, p. 236)

Quando se trata de vemos as estruturas internas de linguagem e os mecanismos


de representação, precisamos fazer a decodificação da natureza técnico-estética e da
natureza representacional. A partir dessas decodificações vamos encontrar as linguagens
utilizadas na formulação da canção e quais os personagens e processos históricos que
são desvelados na encenação da canção direta ou indiretamente. O trabalho do
historiador deve percorrer os mesmos caminhos, como toda a operação historiográfica,
buscar a crítica interna e externa, a análise e síntese. É colocado por Hermeto (2012, p.
26) que:

As perguntas que devem ser lançadas à fonte histórica devem informar sobre
esses elementos e as relações entre eles: os sujeitos e seu contexto, seu lugar
social, as distintas relações por eles vivenciadas, o ambiente em que estavam
inseridos, suas identidades, etc.

A contribuição de Hermeto, vem para mostrar que o documento histórico tem


que ser questionado e a forma de questionar esse documento – realizando como é
colocado por Napolitano – a análise e a síntese do que demonstra esse documento.
Trabalhar com documentos musicais (a canção) não isenta o historiador de realizar a

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

crítica ao documento, mesmo que o documento tenha caráter objetivo. Napolitano


alerta-nos sobre as armadilhas que os documentos musicais podem nos prender. Não
podemos cair na ilusão da objetividade do documento. A prática moderna do historiador
não pode dizer que o documento fala por si mesmo. Cada documento, seja qual for o
tipo, apresenta suas evidências e representações.
Napolitano (2008, p. 240) demonstra isso quando

Em outras palavras, sem deixar de ser por uma instituição qualquer, a fonte é
uma evidência de um processo ou de um evento ocorrido, cujo
estabelecimento do dado bruto é apenas o começo de um processo de
interpretação com muitas variáveis. Ao contrário da tradição metódica e
positivista, que acreditava na neutralidade e na autoria e datação, a Nova
História e seus herdeiros apontam para o caráter representacional das fontes,
mesmo as tradicionais fontes escritas, que são documentos e monumentos
carregados de intencionalidade e parcialidade.

As problematizações teóricas da utilização da canção como documento


histórico estão apontadas por Napolitano em uma abordagem no que ele chama de
―Estudos em música popular‖ que congrega conhecimentos da sociologia, antropologia
e história. A grande dificuldade para se escrever a história, utilizando como fonte a
canção é, em determinados períodos a dificuldade de se utilizar o fonograma, a música
em si. Se tem feito alguns estudos da música de uma forma mais sociológica e
etnográfica. Utilizar documentos escritos com conteúdo que retratam o período
estudado, não desclassifica a pesquisa, mas como coloca Napolitano (2008, p. 254)
devemos destacar a importância da incorporação do material musical, mesmo
dificultando a análise metodológico devido a mesma canção assumir diversos
significados culturais dependendo do suporte utilizado.
A produção de documentos históricos a partir da música, dar-se de formas
variadas. Quando Napolitano aponta as três abordagens que se pode trabalhar com
música (Musicologia, Etnomusicologia e ―Estudos em Música Popular‖), verifica-se
que a etnomusicologia é uma grande produtora de fontes audiovisuais, seja a
performance do artista estudado ou a crítica realizada pelo etnógrafo. Para quem irá
realizar os estudos em música popular, as fontes estão mais acessíveis. A produção
fonográfica que a partir do final da década de 1980 está voltada para o mercado e não
mais para ser apenas ouvida e dança, mas sim consumida. O fonograma será a principal
fonte documental do historiador da música popular.
O grande desafio da utilização de fontes musicais no trabalho do historiador é
romper com as tendências de se trabalhar apenas com o texto e não com a canção de

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

forma completa (letra, música e ritmo). Talvez pela dificuldade de não haver uma
organização sistemática do que foi produzido, tendo o historiador se valer de coleções
particulares de colecionadores. Os primeiros estudos historiográficos, por volta da
década de 1970, pegaram embalo nas áreas de Estudos Literários e das Ciências Sociais,
que privilegiavam a ―letra‖ em suas análises. Para o historiador, a letra da canção
serviria como um texto, simulador da realidade social ou uma crônica do cotidiano.
A canção, como é colocado por Napolitano (2003, p. 77), como um
termômetro, um caleidoscópio ou um espelho das mudanças sociais. Como então essa
canção pode tornar-se objeto e fonte na formulação do conhecimento histórico?
Hermeto contribui para a discussão de como o conhecimento histórico é produzido:

(…) o conhecimento histórico é produto de um lugar social, que se relaciona


com os meios socioculturais em que está inserido o sujeito que produz o
conhecimento. Mas é também produto de procedimentos de análise
específicos, relacionados aos conceitos históricos, às fontes e aos critérios
utilizados pra analisa-las. (HERMETO, 2012, p. 24)

Percebe-se que o mesmo meio que produz a canção, produz também o


conhecimento histórico. O meio sociocultural, onde a canção é espelho, caleidoscópio, é
o mesmo que dá corpo para a produção do conhecimento histórico.
Não se pode negar a importância da canção no nosso cotidiano e das interações
entre os meios socioculturais, a formação dos saberes históricos e a participação da
canção. Hermeto (2012, p. 11-12), traz a discussão justamente a importância da música
no nosso cotidiano. Que no nosso dia a dia utilizamos trechos de músicas para
exemplificar situações corriqueiras como a escolha de uma roupa ou com conversar com
amigos utilizando versos. Não fugindo da temática, Hermeto assinala a importância da
canção para a cultura brasileira:

Na cultura brasileira, a canção popular é arte, diversão, fruição, produto de


mercado e, por tudo isso, uma referência cultural bastante presente no dia a
dia. Produzida pelo homem e por ele (re)apropriada cotidianamente, objeto
multifacetado e polissêmico, é elemento importante na constituição da cultura
histórica dos sujeitos. (HERMETO, 2012, p. 12)

Ainda buscando traçar o caminho do historiador dos saberes históricos para a


música, Farias pondera:

Por isso, cada historiador dará sua resposta singular, sua opinião sobre o que
pode vir a ser um tema em determinada expressão musical. Desde que haja
fontes suficientes para respaldar seu discurso, o historiador poderá inventariar
certos sentidos e escrever outros para uma canção, um grupo ou um artista
em sua investida historiográfica, sem perder de vista os já inventados e
consolidados; ele busca não o que ―está evidente‖, mas o que ele procura

396
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

evidenciar, o que ele quer dar visibilidade, não significando que, com isso, se
possa dizer tudo acerca de uma canção ou de seu compositor/intérprete ou
menos ainda de um tema ou contexto histórico como a fama, por exemplo.
(FARIAS, 2011, p. 24)

Quando de se pretende trabalhar com música, portanto a sua observação não


poderá apenas se limitar à sua letra (mesmo que em nossos estudos seja a parte mais
importante), ou seja, é imprescindível também observar a forma musical e sua relação
no contexto que foi elaborada:

(…) esses vìcios podem ser resumidos na operação analìtica, ainda presente
em alguns trabalhos, que fragmenta este objeto sociológica e culturalmente
complexo, analisando ‗letra‘ separada de ‗música‘, ‗contexto‘ separado da
‗obra‘, ‗autor‘ separado da ‗sociedade‘, ‗estética‘ separada de ‗ideologia‘.
(NAPOLITANO, 2002, p. 08).

Procura-se, no entanto, realizar outros tipos de abordagem para que o


pesquisador de história possa trabalhar com mais eficiência. Napolitano, destaca tais
aspectos, mas o que mais lhe interessa é o que traz o sentido sociocultural, ideológico e,
portanto, histórico:

Particularmente para o caso da pesquisa histórica, defendemos essa última


abordagem, pois ela permite situar uma canção objeto da cultura, não
isolando aspectos literários, linguísticos ou tecnológicos que podem ser muito
importantes em outras áreas de pesquisa. (NAPOLITANO, 2008, p. 271).

Partindo dessa visão, poderemos então tomar as músicas produzidas por


diversos compositores como fontes de pesquisa e, posteriormente como material
didático para o ensino de história do Brasil, construindo saberes históricos e formulando
uma determinada cultura histórica.
Para Miriam Hermeto, o termo canção pode ser definido como uma narrativa
que se desenvolve em cerca de 2 a 4 minutos nos quais se constrói e vincula a
representações sociais combinando melodia e texto (letra). A canção é um produto
cultural do século XX que trata de diferentes temáticas para a construção de
representações sociais e sempre dialoga com as referências individuais e locais dos
sujeitos que a compõem. (HERMETO, 2012, p. 32) Em cada período da história da
música, as fontes para a pesquisa mudam. Podemos explorar, de acordo com a época,
partituras, letras, fonogramas em diversos formatos (EP, LP, CD, MP3), filmes e
videoclipes. Além disso, não se pode desprezar as fontes escritas, que falam sobre a
música.
Temos que procurar analisar as canções como fato social. Observando os
sujeitos (individuais e coletivos) diretamente envolvidos na produção das canções e para

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

isso há uma diversidade de fontes:

É possível pensar em uma infinidade de documentos históricos sobre a


canção popular brasileira: desde a própria canção até as impressões do
público, passando por álbuns (LPs, CDs ou DVDs), fonogramas, vestígios de
interações nas redes sociais, fotografias, vídeos de performances,
depoimentos, biografias, textos de críticos musicais, propagandas de álbuns e
shows, reportagens sobre eventos, documentários; os exemplos podem
multiplicar-se aos montes. (HERMETO, 2012, p. 42-43)

Napolitano, utilizando como base o pensamento de Arnaldo Contier, nos fala


que a música não traz sentido diretamente e mesmo com a letra pode adquirir sentidos
cifrados devido as harmonias, melodias, etc.:

Na perspectiva de Contier, o ―sentido cifrado‖ da canção, objeto último da


crítica interna da fonte, começa a se desvelar na análise do contexto histórico
no qual o compositor se insere, como agente social e personagem histórico.
Nessa ótica, o carácter polissêmico do documento musical não é um
obstáculo intransponível e as possibilidades de trabalho do historiador
ancoram-se no mapeamento das ―escutas‖ históricas (Crítica, público e os
próprios artistas, que são também ouvintes) que são sentido histórico às obras
musicais. (NAPOLITANO, 2008, p. 258)

O TRATAMENTO DO DOCUMENTO HISTÓRICO


Dentre as abordagens possíveis para o tratamento do documento histórico,
Hermeto (2012, p. 144-148) procura realizar uma abordagem problematizada sobre
como utilizar o documento em cinco dimensões, onde também realiza uma análise de
como a canção pode ser inserida no processo pedagógico.
Essas dimensões são: Dimensão material: Abordagem sobre a relação entre
melodia/letra/ritmo; Dimensão descritiva: o tema central da música, como ela foi
criada, a narrativa; Dimensão explicativa: Basicamente o contexto que a canção está
inserida e onde ela foi produzida e percebida na sociedade; Dimensão dialógica:
intertextualidade da canção, sua relação com outras canções ou outros conhecimentos;
Dimensão sensível: A carga emocional de quem produziu e de quem escuta,
implicando as relações sociais complexas. Precisamos então, relacionar essas dimensões
quando do trato com o documento histórico, como a canção será trabalhada.
Essas abordagens do documento, aplicadas à canção, devem ser organizadas
pelo professor em suas atividades, para que a canção/música não sirva apenas como
alegoria ao conteúdo trabalhado. Para verificarmos como todo esse trabalho pode ser
realizado com a canção, podemos exemplificar, verificando essas dimensões em uma

398
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

canção. Uma música ideal para a realização desse trabalho seria ―Faroeste Caboclo‖ 152.
A canção tem mais de nove minutos e 157 versos mostra a vida e morte de
João do Santo Cristo na cidade de Brasília. Encontraremos todas as dimensões
propostas nessa canção. Foi escrita no ano de 1979 por Renato Russo e gravada em
1987 no álbum Que País É Este 1978/1987 da Legião Urbana.
O título da canção faz referência ao algo rural, que tem ligação com o cerrado,
o sertão (caboclo) e ao bang-bang americano dos estados do norte (faroeste). A
realidade exposta pela canção é um pouco diferente do que seu título retrata. O cenário
colocado na música também foge – apesar de ser no cerrado brasileiro – as
características do seu título. Faroeste Caboclo fala de Brasília, na época recém-
construída (1960) para ser a capital do Brasil. Brasília que era uma cidade que
apresentava uma característica diferente dos grandes centros urbanos do Brasil, era um a
cidade que não tinha muito o que fazer. Brasília é tema de diversas música do Aborto
Elétrico, da Legião Urbana, do Capital Inicial e da Plebe Rude.
A canção, devido ao seu tamanho, tem diversas variações em seu ritmo e
melodia. Em momentos de mais ―tensão‖ o ritmo se acelera e as guitarras são mais
pesadas. A melodia cantada por Renato Russo também sofre variação em diversos
momentos. Podemos encontrar as cinco dimensões nessa canção, verificando os pontos
colocados por Hermeto (2012, p. 142-148).
A dimensão material, que cita duas questões importantes para serem
analisadas, o suporte e a linguagem torna-se importante para repassar o documento. A
canção pode ser trabalhada em diversos suportes: letra impressa ou projetada, videoclipe
oficial com legendas, vídeos feitos por fãs, apresentações ao vivo somente o áudio ou
em vídeo, etc. Cada tipo de suporte poderá agregar informações ao historiador. Quando
tratamos da linguagem, a relação entre melodia/letra/ritmo é de fundamental
importância. A linguagem pode também ter suas variações a partir do suporte utilizado.
A forma gravada em estúdio das canções ou as apresentações ao vivo, por exemplo,
podem trazer diversas informações diferenciadas e modificar a linguagem utilizada.
Como coloca Hermeto (2012, p. 144): ―(…) canções que circulam em videoclipes
trazem, junto da relação básica melodia/letra/ritmo, a imagem em movimento. Imagens
que recriam e reinterpretam as representações da canção, e que passam a compor a
mensagem para o leitor‖.

152
LEGIÃO URBANA, 1987, f. 9 Disponível em: https://www.letras.mus.br/legiao-urbana/22492/

399
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

A canção ―Faroeste Caboclo‖153, encontra-se em diversos suportes: a gravação


original em estúdio de 1987, uma gravação caseira de Renato Russo, feita em 1982 e
lançada em CD em 2008, gravações ao vivo no Acústico MTV em 1992 e em
apresentações ao vivo em 1990 na turnê do álbum ―As Quatro Estações‖ e em 1994 na
turnê do álbum ―O Descobrimento do Brasil‖. A canção também tornou-se um longa-
metragem em 2013. As apresentações ao vivo, tem sempre uma introdução ou
comentário de Renato Russo durante a música.
Sobre a linguagem utilizada percebemos que, dependendo do suporte, a relação
melodia/letra/ritmo também se modifica. A versão ao vivo do álbum Acústico MTV é
utilizada apenas violões deixando a música mais leve, sem as guitarras, mas que
demonstra a variação necessário para os trechos que acontece o ápice.
O crescente da canção acontece nas estrofes I a IX tendo um dos seus ápices na
estrofe X. Na estrofe seguintes, quando ele ―Conhece Maria Lúcia‖, o ritmo novamente
diminui e a canção segue variando, tendo mais um crescente na estrofe XII, quando
Santo Cristo recebe a proposta de colocar ―bombas em bancas de jornais‖ e também
―não proteger general‖. Após a negativa de Santo Cristo, a estrofe XIII volta a ser
sussurrada por Renato Russo e com apenas o violão, onde ele reflete sobre as palavras
do ―velho‖: ―Você perdeu a sua vida meu irmão‖.
As estrofes XIV a XVI continuam ainda com um ritmo mais lento e cadenciado
para voltar na estrofe XVI o ritmo se acelera falando de ―Jeremias‖ e a melodia cantada
por Renato Russo torna-se mais enfática. Quando Santo Cristo resolve voltar para casa
ele tem uma ―surpresa‖, o que muda o ritmo totalmente da canção.
As estrofes que sucedem, demonstra toda a indignação de Santo Cristo com sua
amada Maria Lúcia. As estrofes de XVII a XX a música continua em um ritmo
acelerado contando toda a ―batalha‖ de Santo Cristo vs. Jeremias.
Terminada a estrofe XX, há um solo de violão mostrando que o ritmo da
canção se altera novamente, ficando mais lento e com apenas o violão. O desfecho do
duelo entre Jeremias e Santo Cristo é colocado nas estrofes XXI e XXII com um ritmo
mais lento. Esse ritmo é quebrado no último verso da canção que é ―gritado‖ por Renato
Russo acompanhado com mais uma vez um rock pesado com guitarras e bateria por
mais 30 segundos da música.
Toda essa variação de ritmo, melodia e letra, demonstra o sentimento do artista

153
A canção não está com sua letra apresentada no artigo devido o limite de páginas, mas poderá ser
acessada em: https://www.letras.mus.br/legiao-urbana/22492/

400
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

que pode ser utilizado para contextualizar toda a narrativa da música.


A dimensão descritiva irá demonstrar o objeto e os temas (o tema) trabalhados
na canção que será utilizado pelo pesquisador. Busca-se segundo Hermeto (2012, p.
145) em identificar a temática principal e as secundárias e o que permite fazer a leitura
história da canção. Interrogar o documento com algumas questões como: quais os
acontecimentos? Quais os sujeitos da ação? Qual o tempo em que se passa a ação? Em
que localização?
A narrativa de ―Faroeste Caboclo‖ mostra vários temas que são trabalhados.
Nas primeiras estrofes (I a VI) temos os a apresentação de temas como: Preconceito,
marginalização, discriminação.
A dificuldade de João do Santo Cristo, personagem central da canção em
conseguir se sustentar honestamente é demonstrada nas estrofes VII e VIII, onde o
mesmo se envolve na criminalidade novamente, mesmo que ele tivesse a esperança nas
promessas que ele via na televisão, mas posteriormente Santo Cristo verificou que teria
que partir para algo ilícito para poder ganhar mais dinheiro.
Santo Cristo começou a sua plantação com fez Pablo (o neto bastardo do seu
bisavô) e começou a fazer sucesso e dinheiro, fugindo da crise, que o afetava quando
era trabalhador comum, carpinteiro que ganhava 100 mil por mês em Taguatinga
(estrofes XI e XX).
Na estrofe XII é apresentado o que ocorria no período da Ditadura Militar
quando os ―linha dura‖ não queriam abrir mão do controle e que realizavam ataques
programados pelos próprios militares. É importante lembrar que segundo Calvani
(1998, p. 233-234) e Rodrigues (1990, p. 11) nos anos 70, uma das estratégias do
regime militar para macular a imagem das esquerdas e dos grupos paramilitares com o
CCC (Comando de Caça aos Comunistas, realizar sequestros e explosão de bombas em
entidades, residências de militares, bancas de jornal, para culpar os que eram contrários
ao regime Militar. Vale salientar também que a composição da música é de 1979,
retratando algo que acontecia na época da produção da música, demonstrando a
atualidade da narrativa de Renato Russo.
Percebe-se ai, que a temporalidade da canção vem dos indícios que
apresentam sobre o Regime Militar (bombas, generais, Brasília) e também o
conhecimento do pesquisador sobre o ano de composição da canção. Fica também bem
claro, na canção sobre a localização dos acontecimentos, a cidade de Brasília. A forma
que é abordado os temas na narrativa da canção irá demonstrar em que posição o artista

401
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

se encontra.
A dimensão explicativa: irá analisar o contexto que a canção está inserida e
onde ela foi produzida e percebida na sociedade. Temos que observar também a canção
em dois contextos: o contexto em que foi escrita e o contexto em que foi interpretada. O
contexto que foi escrita demonstra o local e o que levou o compositor a se debruçar
sobre o tema. A canção ―Faroeste Caboclo‖ irá demonstrar a história de um nordestino
negro que sai da Bahia e tenta a vida em Brasília. Renato Russo, compositor da canção,
viveu sua adolescência em Brasília e provavelmente teve contato com inúmeros
migrantes na cidade. Era nesse contexto que vivia o autor da canção. Era também o
início do processo de abertura política da Ditadura Militar no Brasil, que também está
relatado na canção. Existe também alguns acontecimentos relatados na canção, vividos
por Renato Russo, com as bombas em bancas de jornais e a ―Rockonha 154‖. Outros
acontecimentos, fictícios, mas que condiz com os problemas e conflitos sociais que
existiam (e existem) no Brasil como delinquência juvenil, sistema penitenciário
fragilizado, desemprego, tráfico de drogas, contrabando, promessas de políticos e
criminalidade.
Alguns desses acontecimentos relatados, são da época, mas o leitor de hoje, da
canção, pode verificar ainda em nossa sociedade todos os problemas relatados, exceto
os relatados sobre a Ditadura Militar. É preciso verificar o contexto da canção e sua
historicidade, como os relatos de sua letra podem trazer (ou não) questões históricas.
Mesmo as abordagens fictícias, encaixa-se perfeitamente no contexto de interpretação
atual. Ainda vemos crianças e adolescentes indo para o ―reformatório‖, ainda vemos os
crimes cometidos pelo conflito entre traficantes, ainda vemos palavras dos ministros
dizendo que irão ajudar. Todas essas informações são colhidas pelo autor da canção
através de referências que ele vê ou em acontecimentos presenciais ou idealizados
devido suas leituras sobre o seu contexto.
A dimensão dialógica do documento, irá trabalhar justamente os links que
poderem ocorrer na canção. A discussão sobre o sistema prisional pode partir da análise
desta canção. A ligação com outros textos e outras fontes pode ser realizada. É preciso
perceber quais são esses diálogos e a evocação deles, traz a mensagem final da canção.

154
As ―rockonha‖ aconteceram no mesmo lugar, num sitio em sobradinho (cidade-satélite de Brasília). A
primeira foi um sucesso e, apesar de pouca divulgação, deu tudo certo. Devido a esse sucesso os
organizadores resolveram fazer outra. A segunda, que ficou famosa na música, foi bem diferente da
primeira, a começar pela divulgação, que foi feita pela cidade inteira e até a polícia ficou sabendo.
(\MARCHETI, 2001, p. 48)

402
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Temos nos últimos versos e a melodia final toda uma carga contestatória. A missão
procurada por Santo Cristo, mesmo passando por todos os intemperes relatados na
canção, ―Ele queria era falar com o presidente / Pra ajudar toda essa gente que só faz /
Sofrer!!‖.
A dimensão sensível apresenta para nós, a identificação dos sentimentos
apresentados pela canção. Não se pode deixar de fora o que o autor da canção está
sentindo. Como foi debatido nas outras dimensões também, a variação tanto na melodia
como na música é fundamental para a demonstração dos sentimentos colocados pelo
autor. A composição sempre tem uma carga emocional e também gera uma carga
emocional em quem ouve. Esses elementos devem ser identificados, favorecendo a
percepção de que esse documento foi realizado por sujeitos reais, envolvidos em
relações sociais complexas.
Para acrescentar na análise do documento nessas dimensões, Napolitano (2012,
p. 281-282) ao final do seu artigo sobre ―A História depois do papel‖, dá dicas para se
trabalhar com os documentos audiovisuais. Ela coloca a música com qualquer outro tipo
de documento histórico que evidencia e representa algo. Verificar a música com sua
estrutura interna de linguagem e de representação da realidade ou como testemunho da
experiência histórica e social. Articular a linguagem e as representações da realidade
histórica ou social nela contida. Essas observações feitas por Napolitano, estão
diretamente ligadas as dimensões colocadas anteriormente.
Quando se trata da música como fonte, é necessário, segundo Napolitano,
verificar algumas questões: 1. Escolher o suporte, fonograma ou outro como videoclipe;
2. Informações históricos do fonograma; 3. Realizar audições repetidas; Analisar letra,
estrutura musical, sonoridades vocais e instrumentais; 4. Verificar o contexto
extramusical (dados da biografia dos compositores, cantores e músicos, filha técnica do
fonograma, textos explicativos dos próprios artistas envolvidos); e 5. Contextualizar as
manifestações escritas da escuta da música (crítica, artigos de opinião) com as obras em
sua materialidade (fonogramas).
Temos que o observar como a canção pode se tornar também material didático
e que seja utilizado pelo professor em suas aulas. O próprio professor poderá utilizar
esse documento independentemente dos manuais utilizados sugerirem isso. A criação de
sequências didáticas ou de projetos pedagógicos interdisciplinares poderão fazer essa
ponte entre o Ensino de História e a canção da música urbana. Cabe ao docente procurar
a elaboração destes e agregar as demais disciplinas das ciências humanas nessa

403
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

empreitada.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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4ª ed. São Paulo: Cortez, 2011

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In: KARNAL, Leandro (Org.). História na sala de aula: conceitos, práticas e
propostas. 6ª Ed. São Paulo: Contexto, 2012. pp.185-204

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1998.

DAPIEVE, Artur. BRock (o rock brasileiro dos anos 80). 3ª ed. Rio de Janeiro: Editora
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FARIAS, Elton John da Silva. Captain Fantastic And The Brown Dirt Cowboy: Um
Capítulo de História da Fama (1975). Dissertação (mestrado em História). Universidade
Federal de Campina Grande. Campina Grande, 2011.

GÜNTHER, Wesley Rosa. Que Cidade É Esta? A Urbs brasiliense nas letras do álbum
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Literatura e Práticas sociais). Universidade de Brasília. Brasília, 2013.

HERMETO, Miriam. Canção Popular Brasileira e Ensino de História: Palavras, sons


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SCHMIDT,

NAPOLITANO, Marcos. A História depois do papel. In: PINSKY, Carla Bassanezi


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PINSKY, Carla Bassanezi (Org.) Fontes Históricas. 2ª Ed. São Paulo: Contexto, 2008

ROCHEDO, Aline do Carmo. “Os filhos da Revolução”: A Juventude Urbana e o rock


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404
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

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anos 1980. Rio de Janeiro: Multifoco, 2014.
RODRIGUES, Marly. O Brasil da Abertura: de 1974 à Constituinte. 14ª ed. São
Paulo: Saraiva, 1990. (Série: História em Documentos)

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SILVA JUNIOR, Antonio Manuel. As Temáticas da Legião Urbana: Construindo


um olhar sobre a História do Brasil de 1984-1994. Garanhuns: do Autor, 2012.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

SESSÃO COORDENADA “HISTÓRIA E POLÍTICA”


COORDENADORES:
HÉLIO ÁZARA DE OLIVEIRA & TUÍLA BOTEGA CRUZ

FAMÍLIA E PODER: A TRAJETÓRIA POLÍTICA DE JOÃO ANTÔNIO DE


MACÊDO, O JOÃO DE ZECA - AURORA-CE 1970-1982.

FRANCISCO DE ASSIS SEVERO LIMA


UFPB
[email protected]

RESUMO

O presente artigo visa compreender aspectos da política brasileira entre as décadas de


1970 a 1982, através do cotidiano da cidade de Aurora, interior cearense e da rotina de
um personagem que ficou conhecido na cidade pelo o codinome João de Zeca, um chefe
político local que iniciou sua vida pública atuando como vereador nas eleições
municipais de 1970. As técnicas de conquista do poder e seu caminhar pelo campo
político se constituem em objetivo deste trabalho, bem como a interrelação família e
poder, racionalizando aspectos culturais e econômicos da sociedade brasileira que
propiciaram a manutenção das relações de dominação que asseguraram o acesso e
permanência deste personagem no campo político.
Palavras-chave: trajetória; poder; política.

INTRODUÇÃO

As linhas que seguem pretendem analisar as práticas de poder características do


campo político, um espaço social que, na conjuntura democrática, tem seu acesso
permitido pelo voto e, é demarcado pelo ato de fazer política. No entanto a proposta
deste trabalho não é fazer uma abordagem macro estrutural deste campo, mas sim
compreender seus elementos micro estruturantes.

406
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Para tanto, buscarei racionalizar historicamente a trajetória política de um ator


social contemporâneo, o senhor João Antônio de Macêdo, popularmente conhecido
como ―João de Zeca‖, analisando os elementos da cultura polìtica brasileira que
contribuíram para chancelar a sua entrada neste espaço de poder, tendo como cenário
concreto o campo político da pequena cidade de Aurora, interior do Estado do Ceará,
entre os anos de 1970 a 1982.

Dito isto, compreendo que o campo político possui suas fronteiras delimitadas
por barreiras simbólicas que separa os profissionais dos profanos. Dentro deste
microcosmo, um capital, também simbólico, hierarquiza posições, reverencias e
simbologias. Assim, ―falar de campo polìtico é dizer que o campo polìtico (e por uma
vez citarei Raymond Barre) é um microcosmo, isto é, um pequeno mundo social
relativamente autônomo no interior do grande mundo social‖ (BORDIEU, p. 194/194).
Desta forma o funcionamento de um campo só faz sentido para aqueles que se movem
dentro dele buscando seus troféus e dispostos a agirem conforme suas regras e
paradigmas. No entanto, as regras e paradigmas de um campo não são estáticas sendo
passiveis de serem transformadas a partir de um relação de disputa e poder, onde novas
regras e paradigmas podem se tornar hegemônicos incluindo novos atores e excluir os
antigos participantes.

Diante do exposto, esta proposta visa analisar como ―João de Zeca‖, adentrou as
fronteiras do campo político em 1970 e caminhou por este espaço até a década de 1982.

Para uma melhor compreensão acerca da trajetória política deste personagem


devo evocar algumas práticas da cultura política brasileira a fim de trazer a baila os
elementos que entrelaçaram a política própria do espaço de poder estatal, neste caso o
municìpio, com a polìtica travada no seio familiar, pois a trajetória de ―João de Zeca‖
enquanto político começou a ser traçada no ciclo familiar, uma vez parte do capital
político potencializado para que ele tivesse acesso ao poder, proveio de uma herança
imaterial advinda do seu sobrenome: Macêdo, um capital construído ainda no inicio do
século XX, fruto de um poder familiar característico da era dos coroneis que conseguiu
se acomodar e adaptar-se a fase recente da história do Brasil. Assim, a partir de 1970,
ano de inicio da atuação política de João de Zeca, é possível observar que o prestígio
social desta prole não esteve mais centrado no monopólio da terra, mas sim na
monopolização do poder político e no controle da burocracia e do aparato
administrativo municipal.
407
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

INÍCIO DO JOGO: PODER ECONÔMICO CONVERTIDO EM CAPITAL


POLÍTICO

Aos 14 de agosto de 1969 o Diário Oficial da União trazia publicado na seção 1,


página 6921 o Ato Institucional número 11. Tal ato visava ―a uniformidade dos
mandatos de Prefeitos, Vice-Prefeitos e Vereadores, de modo a fixar-lhes a
coincidência, em todo território nacional.‖ 155 O artigo 2 da citada lei continha a seguinte
informação: ―Os Prefeitos, Vice-Prefeitos e Vereadores, que vierem a ser eleitos a 30
de novembro de 1969 ou a 15 de novembro de 1970, exercerão os seus respectivos
mandatos até 31 de janeiro de 1973.”

Assim, por força da legislação nacional, aos 15 de janeiro de 1970 a cidade de


Aurora realizava eleições municipais. Neste pleito a figura de João Antonio de Macedo
ingressou na vida pública ocupando uma cadeira de vereador, das nove então existentes.
Naquelas eleições houve uma total renovação da Câmara Municipal. Nas eleições de
1966 haviam sido eleitos para vereadores Francisco Pinto Ferira e Gustavo Leite
Macêdo, pela ARENA 1, José Tavares da Cruz, Possidônio Duarte Torres, José
Gonçalves Primo, José Jarim Tavares e Paulo Landim de Macedo pela ARENA 2, João
Adauto de Oliveira e Joaquim Pedro de Souza pelo MDB. Nas eleições de 1970, José
Gonçalves Primo e José Tavares da Cruz foram lançados respectivamente como
candidatos a prefeito e vice pela ARENA 01, João Alves de Souza saiu como candidato
à vice prefeito pelo MDB, ambos não lograram êxito, no entanto deixaram um vazio de
poder que possibilitou a ascensão política de novos indivíduos como João de Zeca.

João de Zeca, como ficou conhecido era filho de José Antônio de Macêdo, daí o
apelido que ganhou ainda na juventude, pois naquele espaço e contexto histórico era
costumeiro se referir aos mais jovens a partir de uma referência, no caso do vereador a
referência era o seu pai, um agricultor conhecido pela alcunha de Zeca de Vigário. Não
nos cabe neste trabalho hierarquizar tais referências, pois o que nos interessa nesse
momento é identificar os fatores que proporcionaram a ascensão de nosso personagem à
cena pública.

155
. Ato Institucional nº 11, de 14 de Agosto de 1969. http://www2.camara.leg.br/legin/fed/atoins/1960-
1969/atoinstitucional-11-14-agosto-1969-363939-publicacaooriginal-1-pe.html

408
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

A família Macêdo possuía certo prestígio na cidade, pois figurava como uma das
primeiras famílias a habitarem aquelas terras. Sua participação na política local se
iniciou em 1919 quando Antonio Landim de Macedo se tornou prefeito da cidade, em
uma época de constantes conflitos, inclusive armados, disputando o poder com outra
família importante; os Leite. Os notórios habitantes da cidade tinham em suas
assinaturas quatro importantes sobrenomes: Leite, Quezado, Gonçalves e Macêdo. Era
famosa, na época, 1970, conforme Joaryvar Macedo156, uma quadra que enfatizava a
popularidade dessas famílias.

―Nunca vi Leite Valente

Nem Gonçalves com Coragem

Nem Quezado pagar o que deve

Nem Macedo sem pabulagem‖

A família Macêdo, no imaginário popular, se apresentava como aqueles que se


vangloriam. No linguajar nordestino, ―pabos‖ são os sujeitos que ostentam suas posses
e, como um legítimo Macêdo, João de Zeca não contraditava a ordem. Aos 27 anos,
segundo seu biografo,157 detinha um patrimônio considerado elevado para os padrões
regionais da época, possuindo automóvel e uma dívida que se fosse convertida em
moeda corrente do presente, 2017, chegava aos 250 mil reais junto a particulares e ao
Banco do Brasil.

Nosso personagem se aventurava no comércio desde os idos de 1956,


inicialmente no comércio do algodão comprando os produtores primários e os revendo
para os Bezerras em Juazeiro do Norte; para Aderson Tavares; no Crato; para a
SANBRA (Sociedade Algodoeira do Nordeste Brasileiro), em Cajazeiras, e para Luiz
Oliveira, em Souza, estas duas últimas na Paraíba.

No entanto, o comércio do algodão entrou em crise na região e a década de 1970


termina com o menor volume exportado que se tinha registro até então. Enquanto isso, o
valor das exportações de manufaturados têxteis [sintéticos] apresentou o extraordinário
crescimento de 964%, entre 1970 e 1974 (BARBOSA, 1996, apud GONÇALVES,

156
. Revista do Instituto Histórico do Ceará. Fortaleza, 97: 93-111, 1983
157
. MACÊDO, Vicente Landim. João de Zeca: o vitorioso. Brasília, 2016.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

2008. p. 34). Foi após a crise do comércio de algodão que João de Zeca se aventurou
pela política.

Naquelas eleições, lançado candidato a vereador de Aurora pela ARENA, João


de Zeca teve de enfrentar uma disputa de ordem familiar, pois seu primo, também
político, galgava naquelas mesmas eleições uma cadeira na Câmara municipal.

Segundo o próprio personagem,

Macedinha não queria que eu fosse candidato, porque ia atrapalhar os votos


dele. Ai eles fizeram corpo mole no partido do seu Araripe. Eu fui até o seu
Araripe e disse a ele: ―seu Araripe se o senhor não me der a vaga de vereador
eu vou ser candidato do outro lado‖. Mas eu vou ser candidato. Aì seu
Araripe disse: ―a vaga sua tem. Pode ficar ai que a sua vaga tem‖.
(MACÊDO, J.A, 2017)

Com o aval do seu chefe local, João de Zeca se candidatou naquelas eleições
contrariando a própria família,

Fui proibido de pedir voto em três sítios. Na Várzea de Pedra, que era região
de Macedinha, aqui nas Varzantes e no São Miguel. Eu não podia pedir votos
nesses cantos. Porque disseram que eu ia derrotar Macedinha. Eu tava tirando
os votos dele. Aí tio Tonho um dia me chamou e disse: ―meu filho eu quero
que nesse três cantos você não pode pedir voto‖. Eu disse: ―tio Tonho, eu não
to tirando voto de Macedinha não, eu converso com a pessoa: ‗com que você
vai votar?‘ Ai ele diz: ‗eu vou votar com fulano e tal, se for do grupo, do
partido eu nem paro, quando é do outro lado é que eu vou atrás‘. (MACÊDO,
J.A, 2017)

A partir da na narrativa acima exposta é possível detectar que a família Macêdo


possuía naquela conjuntura um prestígio político avantajado, a ponto de dividirem
geograficamente a pequena cidade em zonas de influencias eleitorais, no entanto não foi
apenas tal prestígio que fez de João de Zeca vereador naquelas eleições, segundo o
candidato em questão, o mesmo possuìa uma ―condição financeira muito boa‖158, o que
o ajudou na aproximação com os eleitores. Naquelas eleições João passou então a

158
. MACEDO, J.A. Entrevista concedida a Francisco de Assis Severo Lima. Aurora-CE, 10 de jan. 2017.
[A entrevista encontra-se transcrita nos anexos desta dissertação]

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

usufruir do dinheiro para garantir sua vitória, ―eu botei até um café para atender o povo
e quem tomou conta desse café foi Chico ―Fele‖, botei até o nome café canta galo, lá
você tomava café, merendava era tudo de graça, ninguém pagava‖ 159.

Lançando mão de tais estratégias de poder João de Zeca empreendeu uma


campanha vitoriosa se tornando o vereador mais votado do pleito, com 638 dos votos.

A vida política de João de Zeca, da chancela da entrada no campo político a sua


atuação neste espaço será marcada por ações que aproximavam das práticas
clientelistas.

Atuando como vereador de 1970 a 1972, João de Zeca construiu um capital


político que o conduziu ao cargo de prefeito da cidade entre os anos de 1976 a 1982,
tornando-se o líder de um grupo de profissionais políticos unidos por laços familiares.

PRÁTICAS MODERNIZANTES A SERVIÇO DO JOGO POLÍTICO.

Durante sua atuação como prefeito da cidade Aurora João de Zeca desenvolveu
algumas práticas modernizantes no município. Ao longo de sua gestão o município
vivenciou um processo de desenvolvimento e modernização urbano-social a partir da
eletrificação de grande parte das zonas urbanas e parte das zonas rurais, abastecimento
de água encanada nos bairros, construção de 74 unidades escolares, oito barragens que
visavam perenizar o Rio Salgado em sua passagem pelos limites do município,
calçamentos urbanos e abertura de 476 km de estradas para passagem de automóveis
interligando a zona rural, facilitando o escoamento da produção agrícola. Num período
em que o princípio da impessoalidade não vigorava tais obras públicas foram ligadas
diretamente ao nome do gestor fazendo de João de Zeca um político prestigiado e
admirado pelos munícipes. Tais estratégias se consubstanciaram em mecanismos da
conquista do capital político e, fizeram de João de Zeca um personagem atuante deste
campo político, sabendo se portar na relação com os indivíduos que chancelaram sua
entrada.

159
. Idem.

411
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

As obras públicas construídas na gestão do então prefeito serviram aos seus


interesses políticos na medida em que se tornaram cabides de empregos. Assim o
político em questão foi sendo introjetado no imaginário popular, angariando em torno
de si um enorme contingente de indivíduos implantando em Aurora um sistema político
fundamentado em relacionamentos pessoais entre indivíduos desiguais, entre líderes (ou
padrinhos) e seus seguidores (afilhados). Onde cada parte tinha algo a oferecer à outra.
Os afilhados proporcionam apoio político aos padrinhos, bem como deferência,
expressa em várias formas simbólicas (gestos de submissão, linguagem respeitosa,
presentes, entre outras manifestações). Já os padrinhos oferecem hospitalidade,
empregos e proteção aos afilhados

Para se compreender como as práticas clientelistas foram sendo apoderadas por


João de Zeca e o grupo Macêdo na cidade Aurora - CE, é necessário remeter-se a José
Murilo de Carvalho, pois, para esse autor,

―De algum modo, como o mandonismo, o clientelismo perpassa toda a


história política do País. Sua trajetória, no entanto, é diferente da do primeiro.
Na medida em que o clientelismo pode mudar de parceiros, ele pode
aumentar e diminuir ao longo da história, em vez de percorrer uma trajetória
sistematicamente decrescente como o mandonismo. Os autores que vêem
coronelismo no meio urbano e em fases recentes da história do País, estão
falando simplesmente de clientelismo (...).‖ (CARVALHO, 1999, p.134-135)

Conforme exposto acima as relações clientelísticas, nesse caso, dispensam a


presença do coronel, pois ela se dá entre o governo ou políticos, e setores pobres da
população. Nessa premissa o clientelismo induz uma relação na qual o indivíduo recebe
favores em troca de apoio político. Por conseguinte, no sistema de troca e apoio
político, os bens públicos servem aos interesses familiares.

Enredando o cidadão em uma estrutura clientelista, as ações políticas


desenvolvidas por João de Zeca conduziram os aurorenses a uma estrutura de
dependência social, afastando-os da das lutas política, por melhores condições de
trabalho e acesso a cidadania. Pois as soluções imediatas dos problemas sócias,
motivados por questões clientelistas, serviam não para construir uma sociedade livre,
justa e igualitária, mas sim para a manutenção do poder político. Tais características
evidenciam que o governo de João de Zeca esteve imerso em sistemas pertencente às
velhas práticas da política brasileira, tanto clientelista quanto patrimonialista, uma vez
que, segundo Couto (2016)
412
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

O regime patrimonialista que perdurou na história brasileira fez com que os


candidatos ao exercício do poder vissem a política não como uma esfera em
que há a possibilidade de colocar em prática projetos de nação — no sentido
de melhorá-la, torná-la mais justa, mais culta, mais igualitária, mais soberana
— mas como uma esfera que permite, a quem dela faz parte, exercer poder
sobre o patrimônio público, geri-lo como se o mesmo fosse particular.

Conforme verificamos no texto acima exposto, e nos elementos narrados


anteriormente as práticas do regime patrimonialista estiveram constantemente presentes
na gestão política do personagem em questão. Ao longo de sua atuação na política local
tais características se adensaram, fazendo surgir diversas histórias que, adentraram o
imaginário popular e foram reproduzidas sem se aterem ao tempo ou a espaço, fazendo
de João de Zeca um personagem por vezes folclórico no imaginário social da região do
Cariri. Uma delas ilustrou as páginas da revista Gazeta de Crateús, na cessão
observatório da política, em fevereiro de 2011160.

―Certa feita João de Zeca encontrou-se com um compadre seu que


havia sido eleito Prefeito da cidade do Barro. Empolgado com a
vitória do amigo, que era um velho comerciante e estava
acompanhado do contador, disparou:

- Cumpade, agora você entrou num ramo bom. Pense num ramo bom!
Prefeitura é mil vezes melhor do que o comércio. Vou explicar: todo
dia 10, 20 e 30 cai dinheiro - num é, doutor contador? O contador
assentia e explicava que era o recurso do FPM.

João prosseguia:

- Além disso, toda quaita-feira (sic) também pinga mais dinheiro -


num é, doutor contador? Este emendava:

- é o ICMS.

E João arrematava:

- Agora, o mais importante, cumpade, é um tal de convéin (queria


dizer “convênio”). A gente manda uns papé lá prá Brasília e eles
tome mandar dinheiro. O papé vai e o dinheiro vem. Agora tem uma
ciência: se você deixar de mandar os papé, o dinheiro deixa de vir.

160
. https://issuu.com/gazetaco/docs/gazeta313/3

413
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Oh ramo bom, cumpade, é este de Prefeitura...” (Gazeta de Crateús,


2011).

Tais facécias denunciam aspectos do governo municipal e do prefeito,


elementos que evidenciam a prática de uma gestão marcada pelo patrimonialismo
característicos da política nacional, onde o político passava a utilizar-se dos bem
públicos para atender aos seus caprichos de ordem pessoal. Utilizando os bens coletivos
para construção de uma rede de sociabilidades capaz de possibilitar a sua permanência
no poder. No caso do político em questão essa rede foi construída de diversas formas;
concessão de empregos públicos, construção de obras públicas como: açudes, barragens
e poços em terrenos particulares e o estabelecimento de relações de parentesco religioso
através dos afilhados de batismo, fazendo de João de Zeca um chefe patriarcal de uma
enorme gama de indivíduos que o seguia e o respeitava a ponto de terem suas escolhas
políticas manobradas por ele.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A política desenvolvida por João de Zeca em Aurora é exemplaria das antigas


práticas clientelistas, tão vivas ainda hoje em nosso Brasil, práticas que possibilitaram
sua ascensão e permanência no poder a frete de um governo extremamente personalista.

A cultura da personalidade em política foi sentida no estudo de Sérgio Buarque


de Holanda, quando ele entendeu que o peso da herança da família tradicional
patriarcal, vai gerar vínculos pessoais de lealdade e sentimentos, acarretando a
frouxidão e a falta de organização social além da incapacidade de separar o público do
privado. Assim os homens públicos eram moldados nos círculos domésticos em que os
laços sentimentais familiares são transplantados para o Estado. (HOLANDA, 1984, p.
103-104).

Aproveitando-se do momento desenvolvimentista que o Brasil vivia, o político


em questão criou condições de dependências mais duradouras entre o político e os
eleitores, pois através das construções de obras públicas seu nome se perpetuou no
tempo. Através dos postos de trabalhos desenvolveu vínculos de dependência e gratidão
414
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

mais arraigados, fazendo com que os indivíduos recebessem favores em troca de apoio
político. Por conseguinte, neste sistema de troca e apoio político, os bens públicos
continuaram a servir aos interesses familiares.

Em Aurora, como, no Brasil daquela época, as formas de ascensão social eram


bastante limitadas. A política transformou-se num meio seguro de sobrevivência para
alguns setores da população, o que deu ao governo de João de Zeca um caráter
personalista, na medida em que as relações políticas passaram a ter natureza
eminentemente pessoal, comprometendo o interesse público e a distribuição social dos
recursos do município para atender a interesses de origem privada, privilegiando os
eleitores que vão trocar seus votos por favores pessoais.

A partir da ascensão ao cargo de prefeito em 1976, começou a hegemonia da


Família Macêdo na política aurorense, e tal hegemonia têm início na administração
pública, uma vez que, foram os indivíduos desta prole que monopolizaram os mais altos
cargos públicos da administração nesse período, criando condições para a família se
apoderassem dos bens públicos de tal forma que a sua hegemonia na política local
perdura até os dias atuais (2017).

REFERÊNCIAS

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de Janeiro, v. 2, n. 2, p. 7-20.

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Brasília, janeiro-julho de 2011, pp. 193-216.

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revista e ampliada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008 [2004].

BURKE, Peter. ―História como alegoria‖. Estudos Avançados, São Paulo, USP, vol. 9,
n. 25, 1995, p. 197-212.

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415
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

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SILVA, Eduardo Moreira. Clientelismo, cultura política e desigualdades sociais:


tópicos do caso brasileiro após a redemocratização. Belo Horizonte. Dissertação
(Mestrado em Ciência Política). Universidade Federal de Minas Gerais, 2007

416
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

A IGREJA CATÓLICA NA PARAÍBA: DOM JOSÉ MARIA PIRES E A


RESISTÊNCIA AO REGIME MILITAR BRASILEIRO (1969-1974)

JANAÍNA GOMES DA SILVA


PPGH/UFPB
[email protected]

RESUMO

Esta pesquisa foi desenvolvida durante o projeto de iniciação científica, intitulado a


Ditadura Militar na Paraíba: “Os anos de chumbo”(1969-1974), sendo produto do
desdobramento do plano A sociedade civil e a Ditadura Militar na Paraíba:
trabalhadores, estudantes e Igreja. Neste trabalho específico almejamos investigar a
atuação da Igreja Católica no Estado paraibano sob a liderança do Arcebispo Dom José
Maria Pires, em face da Ditadura instaurada no País em 1964. As principais fontes de
pesquisa para a realização deste texto são: os jornais de circulação da época, o Dossiê do
Regime Militar que se encontra no Arquivo Eclesiástico da Paraíba e ampla revisão
bibliográfica acerca do período. Nosso objetivo é analisar o comportamento da ala
progressista da Igreja Católica em relação a Ditadura no Estado paraibano.
Palavras-Chave: Igreja Católica; Ditadura Militar; ―Os anos de chumbo‖.

O Arcebispo da Paraíba na época, Dom José Maria Pires, é um personagem de


suma importância nesse contexto histórico, tendo em vista que proferiu publicamente
críticas contundentes ao Regime Militar. Filiando-se na defesa dos pobres e oprimidos.
Sendo um líder religioso ativo que se envolveu em diversos conflitos de terras que houve
no campo, sempre estando no lado dos trabalhadores rurais em detrimento aos interesses
dos latifundiários e do governo.

Dom José Maria Pires nasceu em 15 de março de 1919, em Córregos, pequeno


distrito da cidade de Conceição do Mato Dentro, Minas Gerais. Começou sua vida
eclesiástica no estado mineiro, tendo sido sagrado bispo da diocese de Araçuaí, em 22 de
setembro de 1957. Enquanto era bispo dessa diocese, Dom José, também conhecido por
Dom Pelé, participou do Concílio Vaticano II.

Esse famoso encontro ecumênico foi realizado por iniciativa do Papa João XXIII,
e, com a sua morte em 1963, coube ao seu sucessor, o Papa Paulo VI, concluir esse
concílio em 1965, o qual representou um marco na história da Igreja Católica no século
XX, haja vista as mudanças significativas que resultaram desse encontro, no tocante ao
modo de ser e fazer Igreja. De acordo com Pereira (2012, p. 48):

417
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

O concílio é chamado de ecumênico pelo fato de congregar bispos dos mais


diversos países do mundo. Durante a realização deste evento, os bispos refletem
sobre que rumos a Igreja Católica deve tomar do ponto de vista doutrinal e
pastoral. Como resultado de uma ação desta natureza há a promulgação de
alguns documentos de suma importância que refletem as decisões e prioridades
desse encontro de bispos.

O Concílio Vaticano II, na visão do Papa João XXIII, tinha por finalidade a Igreja
fazer uma autoavaliação e atualizar-se a temas inerentes da contemporaneidade, sua
proposta era a de um aggiornamento. Este evento teve uma forte influência na prática
pastoral exercida por Dom José Maria Pires no Estado paraibano. Ele buscou colocar em
prática as resoluções do Concílio, apresentando em seu ministério o modelo de uma Igreja
atenta às questões sociais e mais aberta ao povo.

―Dom Pelé‖161 chegou a Paraíba em 26 de março de 1966, para suceder a Dom


Mario de Miranda Villas Boas no cargo de Arcebispo do Estado. Segundo Pereira (2012, p.
87):

Embora apoiando o Golpe Militar de 1964, quando ainda era bispo daquela
diocese mineira [Araçuaí], Dom José mudou sua postura acerca do regime
militar já nesse mesmo ano, enfrentando o autoritarismo dos militares e
defendendo as vítimas do regime ditatorial. Chegando a Paraíba, em 1966,
permaneceu firme na luta contra as arbitrariedades dos militares e buscou
alternativas para resolução de problemas como a fome e a seca, criando duas
iniciativas relevantes: a Operação Gota D‟água e o Projeto Igreja Viva. Ambos
com preocupações maiores que o mero assistencialismo tão presente na
instituição eclesial.

Dom José manteve uma posição de radicalidade na defesa dos direitos humanos,
manifestando denúncias e sentimentos de repúdio a violação de tais direitos por meio de
sermões, cartas pastorais, declarações nos jornais, além de comparecer nas comunidades
injustiçadas. Por esse engajamento pastoral e crítico das arbitrariedades cometidas pela
classe dominante e o governo dos militares, Dom José chegou a ser intitulado por esses
setores como sendo comunista e subversivo.162

161
Dom José Maria Pires também era conhecido por Dom Pelé, apelido dado por seus amigos na época em
que era bispo da Diocese de Araçuaí (MG), em virtude da semelhança que tinha com o jogador de futebol
Edson Arantes do Nascimento, vulgo Pelé, o qual era seu conterrâneo.
162
Cf. PEREIRA, Vanderlan Paulo de Oliveira. Em nome de Deus, dos pobres e da libertação: Ação
pastoral e política em Dom José Maria Pires, de 1966 a 1980. Dissertação de Mestrado apresentada ao
PPGH/UFPB, em 2012.

418
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Vale salientar que a Igreja Católica, sendo uma grande instituição universal,
abarca em torno de si grupos heretogêneos de clérigos, que possuem divergências
metodológicas e visões distintas sobre a prática religiosa. Aqui no Brasil, por exemplo,
partindo dessa premissa, podemos delinear duas vertentes da Igreja: uma conservadora,
adepta da concepção da Neocristandade, por outro lado, temos os progressistas, do qual
Dom José fazia parte e que se caracterizava por ser um grupo que almejava se aproximar
dos pobres, sendo signatários da teologia da libertação. Para Pereira (2012, p. 67):

Existia no país a presença de duas experiências antagônicas dentro da mesma


Igreja. Os grupos religiosos de esquerda se vinculavam com facilidade aos
movimentos políticos de orientação semelhante e os grupos religiosos de direita
também possuíam suas lideranças com um bom número de seguidores. O clima
religioso era o não só de ―troca de farpas‖, mas também de anátemas.

Sobre essa cisão ideológica dentro da Igreja, é importante lembrar que os agentes
da repressão contaram com o apoio de setores expressivos da sociedade civil, inclusive de
parte da Igreja Católica, que através da Sociedade Brasileira em Defesa da Tradição, da
Família e da Propriedade (TFP), não economizou esforços para combater à oposição. De
acordo com Júnior (2008, p. 53):

A TFP também contribuiu para a tentativa de isolamento dos setores


progressistas do clero católico que se opunham à ditadura. As ligações de grupos
de religiosos com a luta armada foram tratadas de modo prioritário, no sentido de
combater e depurar esse clero e manter sobre seus integrantes um rígido controle.

No tocante ao golpe de 1964, Dom José Maria Pires foi um grande entusiasta a
princípio, assim como grande parte dos membros da Igreja Católica do período. Entretanto,
tempo depois, decepcionou-se com o regime dos militares por não terem posto em prática
o programa de governo que fora anunciado. Além de agirem com austeridade aos
opositores políticos. Em entrevista a Vanderlan Pereira, Dom José disse o seguinte:

A gente vivia numa situação de instabilidade muito grande. Veio o Golpe de 64 e


a primeira manifestação do General Castelo Branco dizendo que a Revolução
não foi feita para defender os privilégios dos ricos, mas para que todos os
brasileiros pudessem. Então uma manifestação muito de acordo com aquilo que a
gente esperava. Acontece que pouco depois a gente começa a ver que a
Revolução não era para melhorar a situação do Brasil. (Ibidem, p. 70)

419
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

A partir de então, começou o surgimento das críticas do Arcebispo paraibano a


nova ordem política, ainda em 1964, devido à violência instaurada por meio dos atos
institucionais. A ala progressista da Igreja fora acusada de defender e ajudar comunistas,
por isso, era perseguida em diversos Estados do país, inclusive na Paraíba. De acordo com
o historiador Raimundo Barros, houve abusos por parte dos oficiais militares em relação a
Igreja:

Conflitos, confirmando a expectativa, os houve; foram inúmeros; de todos os


feitios e capazes de satisfazer todos os gostos, chegando quase a esgotar a pauta
das alternativas possíveis. Abrangeram praticamente todas as regiões do País e
envolveram leigos, clérigos e bispos: manobras de intimidação. Censura ao
acesso aos meios de comunicação social; acidentes de todo o gênero; intensas
campanhas de difamação sem conceder às vítimas a mínima chance de defesa;
invasão de instituições ligadas a Igreja, de residências paroquiais e mesmo
episcopais; (...) prisões e torturas; processos esdrúxulos, que se arrastaram por
meses e as vezes anos; deportações sumárias de estrangeiros, que trabalhavam
nos quadros da Igreja; e finalmente sequestros, execuções e assassinatos
(BARROS, 2003, p. 173).

Com relação as vítimas do Regime Militar, Dom José buscava conceder proteção
dentro de suas possibilidades, em suas palavras:

A gente fazia o que era possível. Se era preciso esconder a pessoa, a gente já
sabia que devia mandar pra tal lugar, mandava muitas vezes p‘ro interior, pra
casa de um padre. É necessário? Como é que vai pra lá? Entra no meu carro aqui,
fica lá atrás, deita lá. Meu carro passava. Não tinha a Manzuá, mas tinha a
polícia na estrada... Era o arcebispo, pronto, logo conseguia. Então a gente pode
levar pessoas assim. (PIRES Apud PEREIRA, 2012, p. 95)

Portanto, Dom José Maria Pires foi um líder religioso que não se limitou a ficar
restrito ao ambiente do Palácio do Bispo, sede oficial do Arcebispo da Paraíba, como o
fizeram seus antecessores, pelo contrário, ele se envolveu nos conflitos sociais que
existiram na época da Ditadura, sempre estando ao lado dos menos favorecidos, dos
trabalhadores rurais, dos estudantes perseguidos. Em suma, manteve uma posição de
defesa dos direitos humanos, de ajuda aos mais necessitados e de crítica as arbitrariedades
cometidas pelo sistema. Não se calando diante das graves injustiças cometidas contra os
trabalhadores.

420
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Dom José estava em consonância com as diretrizes legadas do Concílio Vaticano


II, assim como as reflexões resultantes da Segunda Conferência Geral do Episcopado
Latino-americano, realizado em Medellín, na Colômbia, em 1968. Essa conferência dos
bispos foi uma tentativa de aplicar na América Latina as principais resoluções conciliares.

Essas diretrizes dizem respeito a postura de uma Igreja mais preocupada com a
situação dos menos favorecidos, a opção pelos pobres e oprimidos. Uma Igreja que
buscava ajudar na transformação da condição dessa camada da população, não se limitando
às práticas assistencialistas. Sendo, portanto, uma Igreja viva e atuante.

É importante destacar que no documento final da Conferência de Medellín, o Papa


Paulo VI, ciente dos regimes ditatoriais instalados na América Latina, orienta os bispos a
como devem abordar o contexto político vigente:

Com relação às forças armadas, a Igreja deve inculcar-lhes a ideia de que, além
de suas funções normais específicas, têm a missão de garantir as liberdades
políticas dos cidadãos, em vez de lhes obter obstáculos. Além disso, as forças
armadas têm a possibilidade de educar dentro de seus próprios quadros, os
jovens recrutas para a futura participação, livre e responsável, na vida política do
país. ((PAULO VI In: CELAM, 1998, p.37 Apud PEREIRA, p. 99).

Podemos inferir a partir desse documento de conclusão da Conferência, que a


orientação dada pelo sumo pontífice era de que os bispos, em seus pronunciamentos,
provocassem reflexões sobre a viabilidade de retorno ao regime democrático, e condenasse
a ação dos militares no tocante a violência e cerceamento da liberdade dos cidadãos.

Somado a isso, o documento enfatiza a importância da liberdade de expressão e de


Imprensa, e reafirma seu compromisso com os pobres, reconhecendo também que o povo
deve procurar os caminhos para sua libertação. Outra contribuição desse encontro
episcopal, foi a ideia de criação das CEB‘s – Comunidades Eclesiais de Base – nas quais
tinham por propósito aproximar a Igreja da sociedade, sobretudo daqueles mais carentes.
No entendimento do Teólogo Leonardo Boff:

As CEB‘s significam a ―construção de uma Igreja viva, mais do que a


multiplicação de estruturas materiais‖, participação vital e íntima dos membros
inseridos numa mesma realidade mais ou menos homogênea, vivendo a essência
da mensagem cristã que é universal paternidade de Deus, a fraternidade com

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

todos os homens, o seguimento de Jesus Cristo morto e ressuscitado, a


celebração da Ressurreição e da Eucaristia e a construção já iniciada, na história,
do reino de Deus, que é de libertação do homem e de todos os homens. (BOFF,
2008, p. 27 Apud PEREIRA, 2012, p. 100)

Essas comunidades eclesiais estavam bastante presentes no episcopado de Dom


José, que por sua vez, fomentou a criação de várias CEB‘s no Estado, as quais além de
buscar uma aproximação entre a Igreja e o povo, estes órgãos serviram também para
formar uma nova consciência política na população. Todavia, vale ressaltar que o
Arcebispo jamais incitou a luta armada contra o regime, nem mesmo o ódio entre os
latifundiários e camponeses, apesar dos vários litígios acerca da terra que houve na
Paraíba, sobretudo na década de 1970.

Sua trajetória pastoral é marcada por atritos que estabeleceu entre, por um lado,
com os agentes do governo, e por outro, com setores da classe dominante local. A título de
exemplo, temos os conflitos rurais que aconteceram nas Fazendas de Mucatu e Alagamar.
Não obstante, mesmo diante de situações politicamente delicadas, podemos perceber que o
Arcebispo da Paraíba sempre buscou o caminho do diálogo e da resolução dos conflitos
por via pacífica.

A ação pastoral de Dom José, fora materializada a partir dos projetos Igreja Viva,
CEB‟s, Operação Gota d‟água e Equipe de Promoção Humana, este último,
posteriormente deu lugar ao Centro de Defesa dos Direitos Humanos da Arquidiocese da
Paraíba, em 1976. Todos esses órgãos tinham por escopo se envolver nos problemas
vividos pelo povo paraibano. Refletiam a prática das resoluções conciliares.

O Arcebispo metropolitano através de sua ação ministerial, empenhava-se em


prestar assistência aos pobres, preocupava-se com as questões sociais inerentes ao
cotidiano do povo. Entre as diversas ações empreendidas por Dom José, está o movimento
de educação popular, com a finalidade de diminuir o índice de analfabetismo no Estado,
construções de habitações, campanha para angariar fundos ao combate da escassez de
água, dentre outros.

Diante dessa atuação eficaz nos meios populares, de engajamento político em áreas
rurais em defesa dos camponeses, denunciando a concentração de terras, o latifúndio, a
opressão dos pobres, algumas lideranças políticas do Estado e membros da classe
latifundiária se desagradaram com esse modelo da Igreja Viva, no que implicou na

422
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

perseguição de alguns agentes pastorais. 163 Por isso Dom José é considerado um desafeto
dos militares.

No Estado paraibano houve perseguição de agentes do governo a membros da


Igreja Católica, geralmente acusados de subversão e comunistas. Os alvos da repressão
eram em regra aqueles que se envolviam na assistência aos trabalhadores. Dentre os
clérigos mais visados pelos órgãos de informação estavam os missionários estrangeiros.
Sobre esse aspecto, um caso bastante emblemático foi o do Frei Hermano José Cürten, que
fora preso em meados da década de 1970, dentre as acusações, consta o de ser comunista e
subversivo. Dom José Maria Pires, na sua terceira carta pastoral, aborda os problemas do
campo, e acerca desse episódio escreveu o seguinte:

Nosso irmão Frei Hermano José foi também chamado de novo ao I Grupamento
de Engenharia por autoridades da Segurança Nacional. Acusaram-no “de estar
pregando a violência, levando o povo a fazer greve, de ser ele comunista e
subversivo como o Arcebispo da Paraíba‖. Advertiram-no de não continuar
seu trabalho junto aos camponeses. E o ameaçaram de fazer um processo contra
ele e expulsá-lo do País. (PIRES, 1975)

Nesta carta, Dom José também manifesta apoio ao Frei franciscano, tanto por
parte da Arquidiocese quanto da Ordem a qual pertence. Além de tecer críticas as
autoridades políticas e considerar injustas as acusações formuladas contra o Frei Hermano
José. O Arcebispo ressalta que é legítima a ação pastoral do Frei Hermano, no qual
aconselha os agricultores para se unirem, recorrerem ao Sindicato e a Federação, na
procura de defenderem seus direitos dentro da lei. Dom José reflete que nas circunstâncias
da época, os missionários que se comprometem a ajudar os humildes, são tachados de
comunistas, subversivos e ameaçados de expulsão. E acrescenta:

Seria tão bom que os nossos irmãos, responsáveis pela Segurança Nacional
fossem viver algum tempo no meio do povo, participando de seus sofrimentos,
trabalhando com ele e comendo do mesmo feijão com farinha. Então eles
também iriam apoiar as reclamações do povo e iriam sentir que a verdadeira
segurança não se conquista silenciando os clamores de justiça, mas
transformando metralhadoras em arados e tanques de guerra em tratores
agrícolas. (PIRES, 1975)

163
Idem, 2012.

423
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

As perseguições aos membros da Igreja não se limitaram aos missionários


estrangeiros, apesar de serem estes os principais alvos da repressão. Na Fundação
Universidade Regional do Nordeste, situada em Campina Grande, o professor de Doutrina
Social da Igreja, o Padre João Batista Filho, teve seu contrato sustado em virtude de sua
participação nos movimentos contra a Ditadura Militar. Segundo Waldir Porfírio:

João Batista Filho era padre da Paróquia de São Cristóvão, em Campina Grande.
Ao tempo em que exercia o sacerdócio e a cátedra, também atuava como
assessor espiritual dos movimentos da Juventude Estudantil Católica (JEC) e da
Juventude Universitária Católica (JUC). Em 1966, ingressou como estudante no
curso de Ciências Econômicas da Faculdade de Ciências Econômicas de
Campina Grande, o que possibilitou que fizesse movimento estudantil e fosse
eleito presidente do Centro Acadêmico daquela Faculdade. Quando do Decreto
477, de 26 de fevereiro de 1969, teve sua matrícula suspensa por dois anos, pela
Reitoria da Universidade Federal da Paraíba. Por ter sido afastado da cátedra e
dos seus estudos, e por temer pela sua vida, abandonou Campina Grande e a
batina para tentar a sobrevivência em São Paulo. Atualmente, é casado com
Raimunda de Brito Batista, e mora em Londrina, Estado do Paraná (Arquivo do
Gabinete do Deputado Zenóbio Toscano Apud SILVA, 2010, p. 30).

Outro caso de atrito entre membros da Igreja no Estado com os militares ocorreu
em 1972, quando o Bispo diocesano de Campina Grande (CG), Dom Manuel Pereira da
Costa, foi proibido de entrar no teatro municipal por ordem do Comandante da 5 a Cia. de
Infantaria de CG. Sobre esse episódio, o vereador Rildo Fernandes, da Câmara municipal
da cidade, saiu em defesa do religioso164. Dom Manuel Pereira, por sua vez, comunicou ao
General do 7° Regimento Militar de Pernambuco o acontecido:

Peço vênia a V. Excia. Para fazer-lhe uma reclamação contra o


comportamento violento e arbitrário do Comandante da 5 a Cia. De
Infantaria de Campina Grande, Major Antônio Paulo Câmara. Fui
convidado pela Universidade Regional do Nordeste Ofício 156/72 GR de 28 de
março de 1972, para uma sessão solene a se realizar, de portas abertas ao
público, que, inclusive, foi convocado pela imprensa escrita e falada. No
momento em que ia entrando no recinto do Teatro Municipal da cidade, fui
impedido de fazê-lo por um emissário do Comandante, que se declarou da
Polícia Federal, alegando, mais de uma vez que, se eu era o Bispo, estava
proibido de comparecer àquela sessão pública com que a Universidade
comemorava ―o transcurso da Revolução Democrática de março de 1974‖ (...)

164
Cf. Dossiê do regime militar, no Arquivo Eclesiástico da Paraíba. Fundo: Chancelaria, série:
documentação dos bispos, sub-série: discursos, 1972. (doc. Sem título).

424
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

venho pedir justiça e reparo de meus direitos lesados. (PEREIRA, Dom


Manuel. Carta datada em 29/03/1972) 165

A prática pastoral de Dom Manuel Pereira é semelhante à de Dom José Maria Pires.
Ambos são denominados como bispos progressistas. Por isso eram considerados desafetos
dos militares, pois suas atuações não se limitavam as questões religiosas, tendo também
preocupação com a realidade social do povo paraibano. Em contrapartida, os bispos das
dioceses sufragâneas do interior do Estado, Dom Expedito e Dom Zacarias,
respectivamente de Patos e Cajazeiras, tinham uma postura mais conservadora. Contudo,
apesar das concepções metodológicas serem distintas, segundo Dom José 166, o
relacionamento entre os quatro era de harmonia e cumplicidade.

De acordo com o depoimento de Vilma Batista de Almeida, ao projeto


―Compartilhando memórias‖, a Igreja Católica paraibana apoiava os movimentos de
esquerda. No entanto, de uma forma moderada, não se desvirtuando dos seus preceitos, e
evitando adotar um engajamento político ativo em face ao regime vigente. 167

No que concerne a Dom José Maria Pires, este recebeu várias cartas anônimas
contendo ameaças, devido ao seu trabalho pastoral. Algumas dessas cartas encontram-se
no dossiê do Regime Militar da Arquidiocese do Estado, e fazem menções as atividades
contrárias de Dom José a Revolução de 64, acusando-o de ser terrorista, pedindo o seu
afastamento do cargo de Arcebispo, chegando até a conter ameaças de morte. Como
podemos verificar neste trecho:

Das coisas que você está fazendo D. José Maria Pires, querendo levar o país a
mesma situação de 1964. Não pense que o povo está com você, o povo está com
a revolução, deixe de ser besta velho caduco, filho da puta. Você com esse
terrorista Wanderlei Caixe vai arranjar o chapeu de viagem, pode esperar. Os
proprietários também não vão ficar de braços cruzados, aguarde que verá, porque
quem procura acha. Você agora só quer é agitar o povo, mas o povo está
compreendendo tudo porque ninguém é besta e já sabe o que passou em 64. Olhe
para a Itália, França e o mundo todo, e veja o terrorismo como está, e você
também querendo fazer terrorismo velho filho da puta. Prepara-se para morrer,
porque se continuar assim o seu dia chegará, e o de Wanderlei também, bando de

165
Cf. Dossiê do regime militar, no Arquivo Eclesiástico da Paraíba. Fundo: Chancelaria, série:
documentação dos bispos, sub-série: Cartas pastorais, 29/03/1972.
166
PEREIRA, 2012.
167
Vilma Batista foi da direção da JUC (Juventude Universitária Católica). Atuou no movimento estudantil, e
por isso acabou sendo fichada pela DOPS, acusada de desenvolver atividades incompatíveis com a vida
universitária e desordem pública. Atualmente é professora emérita do Estado da Paraíba.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

filho da puta terroristas. (Carta anônima, sem data. Dossiê do regime militar.
Fundo: Chancelaria, série: doc. dos bispos, sub-série: Comunicação, AEPB).

Portanto, podemos inferir desse e de outros documentos similares, que o então


Arcebispo da Paraíba, Dom José Maria Pires foi vítima de retaliação política devido a sua
atividade pastoral e posicionamento progressista, que por sua vez, estava consonante com
as resoluções conciliares, o qual no fim das contas, resumia-se a postura de uma Igreja
mais atenta as questões sociais, que visava ajudar seu rebanho a se libertar do jugo da
opressão.

REFERÊNCIAS

1. ARQUIVOS
 Arquivo Eclesiástico da Paraíba
 Arquivo Histórico do Estado da Paraíba
 Fundação José Américo de Almeida
 Instituto Histórico e Geográfico Paraibano

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428
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

A PASSAGEM DO TREM PELA PARAÍBA: DAS TRAMAS POLÍTICAS AO


“RESGATE DE ALMAS”, FINAL DO SÉCULO XIX E INÍCIO DO XX.

JÉSSICA NAIARA SILVA


UFCG/CFP
[email protected]

ORIENTADOR: DR. RODRIGO CEBALLOS


UFCG
[email protected]

RESUMO

O trem ao percorrer o território paraibano conduziu consigo uma simbologia de


modernização, bem como, o incentivo de capital estrangeiro que foi essencial para esse
feito. Todavia, o problema dessa produção resultante de trabalho de conclusão de curso
tecido na UFCG, Cajazeiras – PB reside nos argumentos presentes na historiografia
elaborados para adquirir-se uma ferrovia no final do século XIX e início do XX.
Desenhados por uma elite parlamentar local, detentora de grandes produções agrárias, os
discursos elegeram a seca como alegoria que puxava seus interesses. Portanto, será que de
fato o problema era da falta de água? Seriam resgatadas ou usadas essas almas (sujeitos)?
José Octávio (2002) acresce que o problema decorria-se de um setor fundiário intocável e
não propriamente dito a falta de água, além de servirem de mão-de-obra: crianças, adultos
e velhos para estruturação de ferrovias e açudes no decorrer do território. Nesse sentido
nos pautaremos em obras e autores como: a ―Bagaceira‖, de José Américo (1928); Aranha
(2001); Bernan (2007), dentre tantos outros, importantes para problematizar esse cenário
emblemático.
Palavras-chaves: Trem; Paraíba; Literatura; Seca.

INTRODUÇÃO

Edificar uma estação ferroviária no território paraibano dependeu, antes de tudo, da


entonação dos discursos de políticos articulados. Estes sujeitos, para alcançarem seus
objetivos, não mediram esforços, para isso, foi-se necessário elencar algumas massas de
manobra, com o intuito de legitimar o traçado de uma ferrovia nas terras paraibanas,
sobretudo sertanejas.
Os caminhos de ferro foram marcados, paralelamente, ao discurso da seca,
usufruto de suas almas, construção de barragens, algodão, e por fim, mesclados a falsas
necessidades. Quando na verdade, vislumbraram interesses de uma elite parlamentar local.

429
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Para tanto, as aspirações almejadas pelo interesse sobre os trilhos, só foram


possíveis, em grande medida, graças ao capital das companhias estrangeiras. É nesse
sentido, que desenharemos nesse artigo como deram-se as articulações políticas, aliados
aos interesses e vantagens ingleses para os finais do século XIX e início do XX.
Nesse ínterim, personagens foram construtores de enredos. Famílias que
dependeram diretamente, ou indiretamente, da construção de uma ferrovia, principalmente
pelo sertão paraibano. Como forma de realçá-los tratamo-nos de apresentá-los sobre a ótica
da literatura, um importante meio, que sob a caneta do historiador, propicia um diálogo
bastante profícuo.
O uso da literatura nos faz tratar da produção histórica como fruto de uma dança
ritmada cotidianamente. Os espaços urbanos, de trabalho, de discursos, de máscaras e por
fim de verdades estampadas, é dado vida pelos sujeitos e suas respectivas narrativas, boas
ou trágicas.
Esse percurso, do lapidar e tratar das temáticas, só foi possível pelo trabalho de
historiadores como Chartier, o que resultou no surgimento de uma ―história cultural‖
(Navarrete, 2011, p. 24). A literatura, desse modo começou a ter holofotes sobre ela.
Acerca disso discorre Navarrete (2011):

A literatura, da perspectiva de Chartier, trava, nesse sentido, uma negociação


com o mundo social. Não se trava, como acontecia com as abordagens
reducionistas, de uma determinação causal, mas de uma troca, de um
intercâmbio entre, de um lado, criador e, de outro, instituições e práticas da
sociedade [...] E é somente através daquela troca que uma obra se torna pensável,
comunicável e compreensível (NAVARRETE, 2011, p. 33)
Ao perpassar o universo social, podemos compreender na citação, que a literatura
não tem, como antes, seu espaço reduzido, mas um lócus marcado por uma troca. Ela
fornece ao criador, podemos afirmar, o historiador, arcabouços de uma sociedade que
descortina múltiplos sentidos, que são importantíssimos para compreensão de uma época.
No nosso caso penetramos no universo da literatura para compreender o lugar
social dos flagelados da seca. O que só foi possível, através dos meios que os literatos nos
apresentaram inúmeras histórias, para que nós pudéssemos compreender o que houve e
quem, por trás da aquisição de uma ferrovia.
Destacamos uma dança de ações pelas companhias, à medida que os sujeitos eram
usados em suas terras, o estrangeiro, tomou logo de locar seu lugar. Ao longo do
prolongamento das ferrovias, não só uma companhia fez-se presente nesse arsenal

430
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

maquinário, de conquistas, vantagens e usos, de espaços e sujeitos, que foi a passagem do


trem.
De todo modo, entre ―vivos e feridos‖ o trem, principalmente para as localidades
sertanejas, teve seu mérito. Moveu-se pessoas e bagagens, economias e linguagens, isso
porque, como na cidade de Sousa, existiram três ramais, interligando a cidade ao Recife,
Mossoró e Fortaleza.

ENTRE POLÍTICAS, CAPITAIS E ALMAS: O TREM PELA PARAÍBA

As estradas de ferro em nome de um progresso serviram de frentes de trabalho


contra a seca, com aquisição de mão-de-obra em troca de cestas básicas, sinônimo de
sobrevivência de muitos sertanejos. Afinal, foi-se necessário, nas vozes dos políticos as
construções das linhas foram grandiosas, com ligações extensas entre a capital da província
e o sertão o que representou sinônimo de progresso.
Era comum um cenário penoso, relevo de grande miséria e retratado na literatura
em forma de denúncia. Em meio a personagens fictícios somos transportados a uma
realidade comum não só em nossa província. No romance A Bagaceira, de José Américo
de Almeida (2004), tomamos por nota a história de almas sem corpos, retirantes que
fugiam aflitos em busca de salvação, encontrando longe de sua terra, abrigo.
Sujeitos à autoridade do senhor de engenho foram marcados por um cotidiano de
relações humanas conflituosas, contrastes sociais, bem como abusos em todos os seus
aspectos. Estas pessoas em desalento, foram aproveitadas por senhores de engenho que
transformaram-nas em mão-de-obra, ao mesmo tempo, por meio da seca, tiveram sua safra,
valorizada. O pagamento era pouco, às vezes nada, bastava-lhes um teto e um prato de
comida, para a subsistência própria e da família (ALMEIDA, 2004).
A partir da obra destacamos até que ponto os efeitos da seca marcaram a vida
desses sujeitos, onde o próprio corpo tornava-se mercadoria. Enquanto os produtos de
consumo de subsistência eram exorbitantes, o valor do corpo era de baixo preço; meninas
sujeitavam-se a vender sua virgindade em troca de ―um bacalhau ou um brote duro‖.
Levadas a um fundo da bodega representavam a dignidade sertaneja adormecida, um
patrimônio que nas palavras de Almeida (2004), naufragava.
Esse cenário, de acontecimentos como o descrito acima, nem de longe associa-se os
discursos políticos, porém, nunca deixaram de ser usados. Todavia, visualizamos a seca,

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

presente nos discursos políticos como justificava para aquisição de uma ferrovia, como
também versaram sobre interesses próprios.
Com suas fazendas, engenhos e produção agrícola, os políticos empenhavam-se em
alcançar seus objetivos. Observamos também, o desejo dessa junta parlamentar em tornar-
se moderno. A seca era uma das vias para consolidação dos seus desejos. Neste âmbito,
Rezende (1997, p. 89) nos demonstra que os desejos decorrentes dessa modernidade não
está alheio aos homens, estes traçam seus percursos e caminham, entre verdade e
invenções.

A modernidade traça, portanto, os caminhos de seus labirintos a partir de pontos


diversos, difíceis de serem distinguidos, como paisagem na neblina. Mas a
modernidade não traça seus destinos acima das vontades dos homens, como
processo independente. Existem os que conhecem a arquitetura que definiu os
desenhos que tomam conta, como paisagem das paredes dos labirintos. A
modernidade sendo apresentada como um destino único, praticamente violento a
capacidade de reinventar trilhos e territórios tão presentes na história.

Desse caminhar, ressaltamos o espetáculo que foi a chegada do progresso por meio
do trem, na Paraíba. Em 15 de dezembro de 1871 a princesa Isabel assinou o decreto n°
4.838, disponibilizando aos conselheiros Diogo Velho, deputado Anísio Salatiel e André
Rebolças a permissão da construção da via férrea na Paraíba. Dessa autorização nasceu a
estrada de ferro do período imperial: conde D´Eu Rei que ligava a sede da província a vila
de Alagoa Grande, com ramais para Ingá e Independência, antigo nome da cidade de
Guarabira.
O mapa abaixo elaborado no século XX representa um panorama da extensão
ferroviária no Brasil em 1890 abarcando a cidade da Paraíba e as outras localidades
citadas. Ao observá-lo minuciosamente percebemos que desde essa época o trem de Natal-
RN, linha denominada The Imperial Brazilian Natal Nova Cruz passando por Sousa-PB,
era um traçado almejado vindo a ocorrer apenas na metade do século XX.

432
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Mapa 1– Ferrovia no Brasil. Plano de comissão de 1890 (autor desconhecido)

Disponível em: <http://vfco.brazilia.jor.br/ferrovias-do-brasil.shtml>. Acesso em: 05 maio 2017.

Para aquisição de uma ferrovia, tendo em vista o beneficio de elites nortistas, eram
articuladas falas no senado. O intuito era conseguir cada representante do seu estado ou
província, apoio dos deputados. Cita Camargo (2015) que em alguns casos os diretores das
companhias ferroviárias eram na verdade; fazendeiros, coronéis, senadores e deputados.
Este fator facilitou muitos empreendimentos nesse setor, sem planejamento adequado,
malha mais cara que o normal, ao mesmo tempo viáveis. Aranha (2001) descreve em suas
pesquisas que os gastos com a implantação de ferrovias eram exorbitantes, fruto das causas
acima.
Ainda na perspectiva de Aranha (2001), havia também engenheiros que não
maquiavam os números, a realidade dos fatos, mas sim, ressaltavam, sem exageros, que a
economia paraibana teria rendimentos promissores. Baseavam-se no potencial de cada
região como as vilas do sertão.
Não seria, assim, apenas um ―favor‖ vindo do então presidente Epitácio Pessoa
(1919-1922), mas de fato uma vantajosa empreitada. Existia de fato característica propícia
para o prolongamento das estradas de ferro de: Soledade, Santa Luzia, Patos, Pombal,
Sousa e Cajazeiras, vilas que se apresentavam como incluídas no crescimento econômico
por meio do algodão e da agricultura.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Como acréscimo de argumentos, elegeu-se a seca como uma grande figura a ser
combatida. Sertanejos, flagelados pela ação dela precisavam de salvação, o trem nesse
caso, era a imagem da salvação ao apontar no sertão.

(...) Fome e epidemia formavam uma dobradinha perfeita enquanto mote para
justificar a necessidade do transporte ferroviário na região. De modo que tinham
pouca importância, aqui, razões de ordem econômica, voltadas para o incremento
da atividade agrícola e/ou comercial. O que importava era a capacidade de
engatilhar um discurso que sensibilizasse que implicasse, na liberação de
recursos. (ARANHA apud SILVA, 2011, p. 46).

Observamos na citação que o discurso era o mais importante ator desse cenário,
como ele, na voz dos seus oradores, os parlamentares, ajudou-os em suas conquistas. E
mais uma vez, não importava-se a quem ou a que se referia o assunto em pauta. Com isso
tornou-se visível a construção de ferrovias, mas como observamos, o que deveria ter sido
ressaltado eram concepções econômicas, em virtude da atividade agrícola existente.
Entretanto, o que foi engatilhado, no ano de 1918 pelo presidente da República, o
paraibano Epitácio Pessoa as estradas de ferro no seu projeto de obras contras secas. De
todo modo, com esse impulso na edificação das ferrovias, a Paraíba destacou-se como a
maior produtora de algodão, exportando fardos ao mercado internacional.
Dentro desse processo de modernização, na Paraíba, as únicas cidades que
encaixavam-se nesse contexto eram: Areia e Mamanguape. Possuíam um sistema de
pavimentação, escolas, igrejas, imprensa e boticas. Em contra partida, a capital sentiu uma
queda negativa no número populacional nos períodos de 1872 e 1890.
Campina Grande nesse momento não passava de um ―desarrumado de casario‖.
Mas os papéis se inverteram com a aliança trem-telégrafo. Sem a presença deste meio de
comunicação e locomoção, Areia e Mamanguape decresceram e tornaram-se cidades
desfalecidas. (MELO, 2002).
Em grande medida a elite não mediu esforços para adquirir um transporte
ferroviário, movido pelo ideal de lucratividade. As localidades que participaram são
envolvidas em um processo de busca de mudanças em seu território. Critica Berman
(2007) que essas mudanças em outro momento darão espaço a outras, substituído-as ou
cessado-as de vez, tendo como fio condutor a busca sempre dessa lucratividade.
Acrescenta Berman (2007, p. 123):

[...] Tudo que é sólido das roupas sobre nossos corpos [...] as casas, os bairros
onde vivem os trabalhadores, as firmas e corporações que os exploram, às vilas e

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

cidades, regiões inteiras...tudo isso é feito para ser desfeito amanhã, despedaçado
ou esfarrapado, pulverizado...a fim que possa ser reciclado ou substituído na
semana seguinte, sempre adiante, talvez para sempre, sobe formas cada vez mais
lucrativas [...].

Como dito anteriormente, as obras contra as secas e a economia algodoeira na


Paraíba, serviram de entonação no discurso para obtenção de uma ferrovia. Desse contexto
emergiu em sua maioria, do sertão, uma mão-de-obra barata que sustentou os trabalhos
com os trilhos. Desse modo, estas pessoas ao labutarem de forma temporária não
ofereciam perigo de apoderassem de um pedaço de terra.
De acordo com José Octávio (2002), o problema não estava em si, na seca, mas,
atrelado a ―uma estrutura fundiária intocável‖. As mazelas do Nordeste, conforme a fala do
autor eram decorrentes da relação com a terra, visto que, suas extensões eram muitas vezes
inutilizáveis porém, não eram doadas aos flagelados.
Ferreira (1989) demonstra por meio dos relatórios da Rede Viação Cearense que ao
todo morreram 200.000 ―almas‖ para a seca no final do século XIX e inìcio do XX. Para a
solução do problema o governo buscou desenvolver medidas.
A ideia era a construção de obras públicas, destarte empregar-se-ia os flagelados,
entre eles idosos e crianças, minimizando os efeitos das secas futuras. O momento então
abordado era do prolongamento da Estrada de Baturité próximo a capital Cearense, sentido
Sul da localidade. Nessa proporção, a intenção foi a concatenação da linha com as
proximidades do rio São Francisco. Para isso, a medida que paulatinamente atravessou-se o
Ceará, adentrou também nos anos de 1920 o espaço paraibano.
Portanto, ademais dos fatores econômicos, políticos e administrativos o fator
climático teve grande peso, na perspectiva de Ferreira (1989), sobre esse contexto
ferroviário. A seca afetou diretamente esse setor, visível na mensagem encontrada nos
relatórios, intuía-se ―tirar vantagem da desgraça, empregando tantos braços ociosos‖
(FERREIRA, 1989, p. 51).
Mesmo com o problema da seca e sua inconstância, o Nordeste possui solo
cultivável, diferente por exemplo, de uma parte da África que é árida e composta por vale e
deserto, (ALMEIDA, 1981). A solução da falta de água no Nordeste ficava a mercê do
desenvolvimento econômico de uma região, ou seja, as observações só voltavam-se para a
questão se houvesse envolvido uma circulação de riqueza.
Durval Muniz (2008) explana que na Constituição de 1881, em seu artigo 5, já
constava a obrigação da União ao destinar verba para o socorro das áreas. Por outro lado,

435
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Almeida (1981) ao discorrer sobre isso, afirma que o D.N.O.C.S não detinha recursos para
concretização das obras: faltava material. Outro argumento era a dificuldade em transporte:
―em muitas obras são usados caminhões de aluguel‖, desta forma necessitava a construção
e melhoramento das ferrovias, visto que, em uma construção de açude era requerido um
transporte que aguentasse o peso das cargas.
Como medida governamental foi criado o IOCS em 1909, no decreto de número
7.619, e passando a ser intitulado IFOCS no decreto de n° 13.687, de 1919 (FERREIRA,
1989). Nesse momento a RVC passa a ser subordinada administrativamente a esse órgão
para a construção de enormes barragens, designadas ao abrigo de água para irrigação.
Fundamentava-se que, fazia-se ―necessário dar-se maior liberdade de ação a inspetoria,
quanto a providências relativas ao tráfego necessário as suas atividades na região‖
(FERREIRA,1989, p.65). Manteve-se até 1923 em virtude da finalização da ―caixa
especial das obras de irrigação de terras cultiváveis no nordeste brasileiro‖
(FERREIRA,1989, p.65).
Para o investimento nesse cenário, ingleses seduzidos pelo decreto de 1852, lei de
N° 641 contribuíram notando condições propícias na construção da segunda Estrada de
Ferro no Brasil implantada em 1858, em Pernambuco. Sendo assim, a The Great Western
of Brazil Railway Company (GWBR) realizou essa construção e, na metade do século XX
respondeu por 1,6 mil km o que correspondeu a 30% da malha Nordeste, (CAMARGO,
2015). Acerca da relação ferrovia, seca e mão-de-obra, o historiador Josemir Camilo
(2008) acrescenta:

[...] Primeiramente o estado faz aumentar o tráfego de passageiros, pagando para


que o povo atingido pela seca pudesse ser conduzido para capital ou para cidade
mais próxima, fornecendo assim, força de trabalho mais baratas para construção
das ferrovias, secundariamente, o Estado empregou estes homens em obras
públicas, que resultavam em imputs para as ferrovias, como as estradas para as
estações da linha. (MELO, 2008, p. 94).

Essa força de trabalho, descrita pelo autor, funcionava também como controle
social, visto que, acreditava-se que ao estarem trabalhando, as vítimas da seca não
representavam risco à sociedade, e ociosos envolver-se-iam com a bebida e roubo.
Chalhoub (2008, p. 70) apresenta-nos que ―o trabalho é o elemento ordenador da
sociedade, a sua lei suprema, o cidadão recebe tudo do estado, pois garante segurança, a
liberdade, o trabalho é uma forma de retribuir‖.

436
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Na construção da Estrada de Baturité, citada anteriormente, em janeiro de 1920


foram socorridos 6.200 flagelados; no mês de fevereiro foram 12.850 sujeitos. Estes
números foram revertidos em novos contratos de emprego, uma vez que o ministro
autorizou essa ação e, indicou-se que a contratação deveria atingir o máximo possível de
pessoas.

DANÇA DOS RITMOS: ALGODÃO E COMPANHIAS FERROVIÁRIAS

Em outro viés na Paraíba temos no século XIX a produção de algodão destinada ao


comércio exterior. Este fator aparece nos Relatórios dos presidentes de Província da
Parahyba no Norte. Consta neles a quantidade desse gênero e valor obtido. Em 1860 foram
colhidos 26:000 sacas com o valor de 1:191:728$615 reis, o transporte era feito por navios
em número de 72 navios em destaque, todos estrangeiros. O ―ouro branco‖ representava
uma riqueza à província com uma contribuição estimada de 50% das arrecadações da
receita.
Ao tratar do algodão, como verificamos nos Relatórios de Província, surge nele
mais uma preocupação; a questão do transporte, o trem penetrando o sertão. No tocante ao
ano de 1923 o Relatório de Província aponta essa preocupação, o destino do sucesso
agrícola dependia do trem, isso porque, nos registros o setor encontrava-se ―atrofiado‖, já
que, os preços dos fretes eram exorbitantes. Com as estradas de penetração ligar-se-ia toda
a Paraíba melhorando os serviços. No que concerne, nas terras do sertão eram produzidos o
algodão, carne, queijos, fibras têxteis, cereais e peles, dados que aparecem no relatório de
1923, (LUCENA, 1923).
Ressalta-se ainda no documento esse âmbito ser uma questão de intervenção
federal. Era importante a tomada de medidas, uma vez que no setor agrícola a província
estava em segundo lugar no cultivo extensivo, perdendo apenas para o Rio de Janeiro. O
que não se deixa expor no referido Relatório é que no mesmo ano a locomotiva entra no
sertão paraibano pelo Ceará, mas imprime o contentamento de terem-se mil quilômetros de
estrada de rodagem com obras irregulares (LUCENA, 1923).
Ao serem expostos, os elementos nos mobilizam a compreender por quais meios
discursivos as localidades ancoraram a passagem da locomotiva. O algodão é um deles,
porém um mecanismo concreto de acepção. Antes da ferrovia, a carga não chegava ao seu
destino completa e nem com uma qualidade desejada. No lombo de animais ao longo do

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

trajeto muito se perdia pelo caminho, além do custo ser caríssimo. De Campina Grande,
onde acabavam os trilhos até o sertão os valores cresciam gradativamente; saindo de Sousa
o valor do transporte era de 22$000 contos de réis, Cajazeiras, 26$000 e, variava conforme
a distância da proximidade dos trilhos. (SOUSA, 2005).
Nos postos da alfândega o recolhimento de impostos era prejudicado, e dessa forma
a província perdia em receita. No sertão comercializava-se com o posto mais próximo;
Sousa, por exemplo, negociava com Mossoró, no Rio Grande do Norte, e o Ceará. Os
lucros que arrecadavam com os produtos eram baixos, enquanto que os atravessadores,
comerciantes e exportadores possuíam mais vantagens. O trem estreitou a distância entre
as localidades, transportou mais cargas a um custo menor e em menos tempo,
consequentemente aumentou a produção tendo em vista a economia feita com o traslado.
Pautado em Melo (2002), as dormentes168 penetram pelo oeste paraibano justificado
pelas obras contra as secas, pela intervenção da Rede Viação Cearense. Iniciado na cidade
de Paiano, município, hoje, de Lavras da Mangabeira, do traçado da linha de Baturité. Os
caminhos de ferro chegaram do Ceará passando pela cidade de Baixio até adentrar, em
1923, a Antenor Navarro, denominada atualmente de São João do Rio do Peixe, sob uma
acirrada disputa política.
A linha estendia-se até Sousa em 1926, e no mesmo ano adentra também a vizinha
cidade de Cajazeiras. Esta era a localidade onde as elites locais, coronéis, não articulavam-
se para ter-se a Maria fumaça, sendo necessário, a intervenção do presidente (na época
Epitácio Pessoa) para que se abrisse um ramal. A respectiva ligação com o restante da
Paraíba até a capital ocorreu paulatinamente. Em 1932 foi para Pombal e em 1944 para a
cidade de Patos e chegou a Campina Grande em 1958. O mapa que segue abaixo, referente
ao ano de 1937 marca em linha vermelha o trecho de Pombal a Patos ainda em construção.

168
Peças de madeira ou ferro colocadas transversalmente à via férrea onde são fixados os trilhos.

438
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Mapa 2– Relatório da RVC, 1937, com destaque para o percurso de Pombal a Patos em
construção

Disponível em: <http://vfco.brazilia.jor.br/ferrovias-do-brasil.shtml>. Acesso em: 05 maio 2017.

O trecho mencionado por último teve término pela Rede Ferroviária do Nordeste
169
(RFN) , que a incorporou completando-o. É sabido que, a princípio as linhas férreas no
nosso país tiveram grande incentivo de capital inglês, todavia, as concessões foram
vencendo. Explica-se desse modo que trechos não só no Nordeste foram prolongados por
companhias diferentes, fruto de um processo de encampação até o momento que retorna a
União.
A RFN foi criada com o fim da GWBR, originada em Londres em 1872 para
sedimentar estradas de ferro no Brasil. A Nordeste, como comumente era denominada,
passou a responder pelos ramais da Paraíba, Rio Grande do Norte, Pernambuco e Alagoas.
Foi durante a jurisdição da RFN, em 1951-1958 que aconteceu o prolongamento do
sertão a Campina Grande-PB, momento também em que a companhia em 1957 foi
incorporada a Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima (RFSSA) (CAMARGO,
2015). Preliminarmente a RFN aproximou a cidade do recife ao São Francisco com parada

169
Disponível em: <http://vfco.brazilia.jor.br/mapas-ferroviarios/1954-RFN-Rede-Ferroviaria-Nordeste-2-
trechos-centrais.shtml>. Acesso em: 05 abril 2015.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

em Sousa, transportando diariamente pessoas e cargas. 170 Criada em 1957 através da lei
3.115, sancionada pelo presidente Juscelino Kubitstcheck, a RFSSA unificou a malha
Nordeste tendo uma extensão de 2.635 quilômetros.

CONCLUSÃO

Percebemos nas linhas traçadas que a aquisição da ferrovia na Paraiba, não foi por
si só, algo simples. Destacamos nisso, que os parlamentares responsáveis para esse feito,
fizeram e desfizeram de seus poderes, ou seja, uns até legitimaram o crescimento
econômico do sertão por meio do algodão, outros, simplesmente maquiaram e inventaram
traçados ―mirabolantes‖.
Para essas invenções tornarem-se reais, o que na verdade versaram, também, sobre
interesses próprios. Imaginemos, o trilho passando na porta de uma produção agrícola? O
quão vantajoso para um coronel.
A seca não representou de todo modo o problema maior como colocado, na
verdade, o latifúndio mal utilizado representou a ―chave‖ de toda a questão. Faltaram
políticas publicas a respeito, um modo de empregar mão-de-obra, bem como,
aproveitamento da terra, mesmo com suas problemáticas.
Aqui buscamos nos enveredar, não propriamente dito pelos caminhos de ferro, mas
julgamos importante compreender como se deu as articulações nesse meio político, para
obtenção de uma ferrovia.
O que observamos na verdade, foi, sobretudo, um jogo de interesses e
aproveitamento das ações momentâneas. E muitas vezes, as pessoas ficaram como
telespectadoras e massa de manobra de interesses, subvertidas ao pouco, que desse, para
sua sobrevivência. As almas, sujeitos a quem nos referimos, não foram salvos, foram
usados. Tentou-se na verdade, solucionar toda a problemática da seca, mas ao mesmo
tempo, usou desta, visto que, essas almas foram flagelados agredidos por longos períodos
de seca.

170
Disponível em: <http://estacoesferroviariaspb.blogspot.com.br/2010_08_01_archive.html>. Acesso em:
05 abril 2015.

440
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

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442
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

ENTRE O FOGO DA POLÍTICA E O ALTAR DA RELIGIÃO: INFLUENCIA DE


FREI DAMIÃO DE BOZZANO NA ELEIÇÃO DE FERNANDO COLLOR DE
MELO EM 1989.

PAULO CEZAR SARMENTO JÚNIOR


UFCG
[email protected]

ORIENTADORA: ROSILENE ALVES DE MELO


UFCG
[email protected]

RESUMO

O presente artigo tem como objeto de estudo a influência de Frei Damião de Bozanno na
candidatura de Fernando Collor de Melo a presidente da república no período de 1989,
levando consigo a ideia de união entre a religião e a política, a exemplo da missa em ação
de graça a vitória de Collor no primeiro turno das eleições de 1989, idealizada por Collor
em Maceió – AL e celebrada pelo frade, o que gerou uma série de discórdias entre o
provincial dos capuchinhos e o Collor, além do discurso em relação a colaboração de Frei
Fernando nos assuntos que envolviam Frei Damião e Collor. Utilizando de páginas dos
jornais do Brasil e Folha de São Paulo, observamos como os mesmos trataram os
acontecimentos desse período, relacionando os dois ícones relatados nesse artigo,
abordando e utilizando das ideias de LIMA (2005) e OLIVEIRA (1997) sobre a política e
religião idealizando a figura de Frei Damião e a política brasileira.
Palavras chaves: devoção, política, influencia e religiosidade.

INTRODUÇÃO

O trabalho que se desenvolve a seguir traz como tìtulo ―Entre o fogo da polìtica e o
altar da religião‖, o fato de se misturar a polìtica com a religião vem do fascìnio de muito
em sempre tentar juntar ambas já que não podem se distinguir a política que em suma e a
ciência ou arte, como alguns chama, de governar um estado ou uma nação tendo por parte
à negociação e a compatibilidade de interesses, nesse sentido a pessoa de Fernando Collor
de Mello se encaixa de forma total, a relação do altar que e a parte central da igreja
católica, ou seja, o pilar e o sentido que sustenta tudo, nessa parte se encaixa a figura do
messias do nordeste, o Frei Damião de Bozzano procurando sempre obter os sentidos que
sempre unem esses dois assuntos em especial a política de Collor e a relação com Frei
Damião de Bozzano no ano de 1989, observando toda a trajetória que Collor passou

443
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

durante toda a sua eleição a presidente da república junto com o seu maior oponente, o
Lula, e como Frei Damião junto com Frei Fernando ajudaram de forma direta e indireta a
essa eleição.
Por muitos séculos a política e a religião precisavam ser dialogadas de forma bem
distintas pelo fato de se tratarem de temas tão polêmicos mais ao mesmo tempo tão
interessantes, porém e possível se dizer que a política e a religião nunca andaram de forma
separada já que na maioria das vezes uma complementa a outra, a exemplo dos antigos
astecas que foi a primeira civilização a povoar a América Central e que tinha o seu poder
politico e religioso centralizado nas mãos de uma única pessoa, fato esse que não se
restringe somente a esse povo mais também a toda idade média que por sua vez tinha o
poder da igreja cada vez mais elevado seguindo sempre junto ao rei que tinha suas ideias
sempre apoiadas pela igreja e vice-versa, partindo para o lado mais atual do século XXI, a
igreja apresenta em sua estrutura que se equipara muito e se apropria da política seja ela
em meio a politicas públicas que favorecem a igreja ou ate mesmo a própria estrutura da
sede da igreja fixada no Vaticano na Itália, possuindo assim suas leis e seu governo próprio
unindo o político e o religioso.
O presente tema do artigo aborda um período bem mais difícil para essa associação,
nesse período mais específico na década de 80, existia uma devoção muito grande em
relação aos andarilhos e supostos messias que rodeavam durante muito tempo as terras do
Brasil, sabendo da grande influência e da capacidade de convencimento da população em
relação a esses religiosos, os políticos em alguns casos se utilizavam desse meio para
garantir o seu apoio político, porém não se pode dizer que todos os devotos do meio
político utilizavam dessas armas, nem que os religiosos concordavam com essas atitudes,
muito menos que a população em seu total apoiavam os que obtinham essas medidas. Em
específico retrataremos nesse artigo a devoção de um católico apostólico romano que ate
mesmo antes de se tronar político, já trazia de suas raízes passada por seus pais uma
devoção a esse ―santo‖ em vida, falaremos de Fernando Collor de Melo e sua devoção e
amizade com o Capuchinho Frei Damião de Bozzano e todo o seu desenrolar em relação a
sua chapa a presidente da república federativa do Brasil no ano de 1989. Más será que
Fernando Collor de Melo utilizou de sua devoção e amizade com o frade para conseguir
gerar através da mídia um sentimento de carinho para com os devotos do frade levando
assim a um favoritismo em relação aos demais candidatos? Ou o político se encontrava
com o mesmo as claras apenas por tamanha devoção herdada de seus pais sem ter em si

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

esses desejos de sobreposição em relação a fama e a devoção da população para com o


Frei?
Porém Collor não foi o único político que teve o convívio com o frade, outra grande
figura que não só conviveu com o mesmo mais acabou por escrever a sua vida em forma
de livro foi o Deputado Federal Wilson Leite Braga que já foi Vereador e Prefeito de João
Pessoa-PB, Deputado Estadual e Governador da Paraíba e no respectivo período de 1967
ate 1983 foi Deputado Federal pela Paraíba onde conviveu nesse período com o Frei
Damião e escreveu seu livro intitulado ―Frei Damião O andarilho de Deus‖ em 2002,
sendo desde muito novo devoto do frade.
A trajetória de Frei Damião de Bozzano foi sempre muito movimentada, desda suas
missões que movimentavam milhares de pessoas ate as suas influências sobre os vários
tipos de poderes sejam ele de caráter religioso ou ate mesmo politico, como assim será
citado nesse artigo

Folheto distribuído a população na eleição de Nilo Coelho.


FOGO E ALTAR UNIDOS, O ENVOLVIMENTO DE FREI DAMIÃO COM A

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

POLÍTICA DE COLLOR

Foi por meio dessas confissões e de todo o seu desenrolar pelo nordeste com suas
missões que Frei Damião de Bozzano começou a chamar atenção dos políticos das várias
regiões, esses mesmos sempre querendo se aproveitar da fama e da atenção que o frei
capuchinho tinha para se promover e promover a sua campanha, porém o frade abominava
qualquer tipo de atitude referente a essas finalidades.

Por desfrutar de imensa popularidade e pela influência que exercia junto ao


povo, viu seu nome ser usado para fins eleitorais. Expedientes dessa natureza –
com o objetivo de induzir o eleitor a votar em determinado candidato ou partido,
como se fosse a vontade de Frei Damião, - ocorreram com frequência, e sua
reação não era outra se não alertar seus seguidores: - Aproximam-se as eleições.
Em muitos lugares do Nordeste querem os políticos explorar meu nome e a
popularidade de que gozo para induzir os simples a votarem em fulano ou
sicrano. Essas pessoas não podem e não devem usar meu nome para tais fins. Eu
os desautorizo e os condeno. (OLIVEIRA, Gildson. Frei Damião o santo das
missões. São Paulo, 1997. pág:107)

Contudo a vontade do frei não foi seguida pelos políticos, um grande exemplo se
encontra na eleição de 1978 quando o candidato a senador Nilo Coelho, que em 1971
enquanto exercia seu mandato de governador concedeu a Frei Damião de Bozzano a
Medalha Pernambucana do Mérito, utilizou de um truque onde distribuiu milhares de
panfletos a população onde continha uma mensagem de apoio, supostamente escrita pelo
frei, e uma foto dos dois juntos, no panfleto tinha a seguinte frase: ―Com as graças de Deus
e a minha benção: eu recomendo o meu amigo Nilo Coelho para o Senado. Frei Damião.‖
porém o candidato cometeu um erro em colocar a assinatura do frei do mesmo jeito e com
a mesma grafia em que o texto tinha sido escrito apresentando assim a fraude, esse porém
foi um dos poucos exemplos em que os políticos se aproveitavam do frei. Outra figura que
ficou bastante marcada e popular por se utilizar de Frei Damião foi o candidato a
presidente da república no ano de 1989, Fernando Collor de Melo, que não entrou em
contato com a ordem dos frades capuchinhos e mandou celebrar uma missa em ação de
graças na cidade de Maceió e pediu que o Frei Damião fosse o presidente da celebração,
porém conforme o Jornal do Brasil, ate um dia antes da celebração o frade não tinha
confirmado a sua presença na celebração, pelo fato de que o provincial dos capuchinhos no
nordeste, Frei Francisco Barreto, teria desaconselhado o frei a participar da celebração pelo

446
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

fato de temer uma exploração política do ato canônico religioso, porém a congregação de
frades não poderia proibir a sua participação em tal evento por isso foi enviada uma carta
da ordem dos capuchinhos para o frei uma noite antes do dia marcado para a celebração
aconselhando que não fosse, a carta foi entregue pelo seu emissário Frei Valder Oliveira,
que foi ate a cidade de Monteirópolis onde acontecia uma missão de Frei Damião, contudo
só quem poderia dizer de certeza se o frade iria ou não para a celebração era o seu
secretário pessoal Frei Fernando Rossi responsável pelos comunicados e organização das
missões e encontros pessoais do frade, foi colocada todo o peso do envolvimento entre o
frei e o candidato ao seu secretário que teria articulado todo o encontro e a participação na
missa, em relatos do secretário ele afirma que o frade sequer sabia da existência dessa
missa no dia em que a carta havia chegado e que toda e qualquer questão burocrática era de
responsabilidade de seu secretário já que o frei era uma pessoa muito simples e já
carregava em si o peso dos seus 91 anos, que forma inocente foi colocado na televisão em
uma propaganda eleitoral transmitida a todo o Brasil onde Frei Damião aparecia abraçando
o candidato a presidente Fernando Collor de Mello no encontro casual que aconteceu entre
os dois em Juazeiro do Norte – CE, segundo relatos do emissário Frei Valder muitos
quiseram alegar que o capuchinho apoiava a candidatura de Collor de Mello contudo ele
diz que era notório que o abraço entre os dois era meio forçado, não se sabe ao certo se
essa declaração do emissário foi para acabar com só boatos de apoio eleitoral ou se
realmente o frade abraçou o candidato de forma forçada, a não participação de do frei na
missa de ação de graças não era apenas um desejo da ordem dos capuchinhos, mais sim de
toda o clero da arquidiocese de Maceió na pessoal do arcebispo Dom Edvaldo Amaral, a
missa se realizaria as 10 horas do dia 26 de Novembro de 1989 no Conjunto Virgem dos
Pobres que se localizava em uma favela as margens da Lagoa Mundaé, a intenção principal
da missa de ação de graças era agradecer a Deus pela vitória no primeiro turno das eleições
que se realizou no dia 15 de Novembro de 1989, que levou ao candidato a presidente a
seguir para o segundo turno concorrendo com Luiz Inácio Lula da Silva, no segundo turno
das eleições que ocorreu no dia 17 de Dezembro de 1989, Collor vence de Lula
conquistando em todo o Brasil 35.089.998 que corresponde a 53,03% dos votos, contra
31.076.364 que equivale a 46,97% dos votos dando assim a vitória a Collor que foi
vitorioso em 23 estados do Brasil.
Fernando Collor de Mello foi eleito pelo voto popular depois de 25 anos de
Ditadura Militar, sua posse foi realizada no dia 15 de Março de 1990 em uma sessão

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conjunta do Congresso Nacional, onde foi presidida pelo Senador Nelson Carneiro, sendo
assim oficializado o novo Presidente da República Federativa do Brasil, onde governaria
ate o dia 29 de Dezembro de 1992, momentos antes de ser condenado pelo Senado
respondendo ao crime de responsabilidade, perdendo os seus direitos políticos por oito
anos.
No ano da posse de Collor, no mês de Outubro, o atual presidente convidou a Frei
Damião para abençoar o seu gabinete em Brasília – DF, após a benção no gabinete, Collor
colocou em sua mesa uma imagem do frade para sempre recordar da sua força e da sua
ajuda nas eleições do ano passado.
No final do ano de 1990, de forma mais específica no dia 30 de Novembro de
1990, Collor fez um pronunciamento a publico, dizendo que presentearia a Frei Damião
com uma caminhoneta da marca Deserter XK que para a época era um dos veículos
estrelas na modalidade fora de série e que tinha um valor muito elevado, cerca de Cr$ 7,5
Milhões sendo encomendada na revendedora FORD localizada em Recife – PE, a notícia
foi oficializada pelo secretário do frei, Frei Fernando Rossi, que em um sermão celebrado
no Morro da Conceição – Recife – PE, apresentou a novidade a população, a caminhoneta
foi produzida em cor verde e possui todos os tipos de regalias que qualquer motorista
sonhava em ter, desde vidros elétricos, equipamento de som, direção hidráulica ate a sua
mala que tinha capacidade de ate 500 quilos.

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Imagem retirada do Jornal do Brasil – 30 de Novembro de 1990

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Fernando Collor de Mello recebendo Frei Damião de Bozzano, Frei Fernando e sua
secretaria particular.

Dois meses depois da visita de Frei Damião ao gabinete do presidente Collor em


Brasília, o frade e acometido por uma doença pulmonar, levando o mesmo a ser internado
no Hospital Português na cidade de Recife – PE no dia 31 de Dezembro de 1990 ficando
assim durante 4 dias desenvolvendo uma embolia pulmonar, no dia 5 de Janeiro de 1992
após observar que a doença estava evoluindo foi necessário realizar a transferencial para
um hospital mais especializado no caso, que foi o Hospital São Paulo, da Escola Paulista
de Medicina, onde foi transportado por um helicóptero provido de uma UTI móvel, ao
chegar no hospital foi novamente encaminhado para a UTI do hospital, foi emitido um
boletim onde o médico pneumologista Miguel Bolssian disse que o estado de saúde do
frade era grave porém estável, já que o mesmo estava se alimentando e respirando
normalmente sem a ajuda de aparelhos.
O Jornal do Brasil lançou uma matéria no dia 05 de Janeiro de 1991, com o título:
―Frei Damião internado em São Paulo.‖ e com um subtitulo: ―Collor retribui ajuda de
campanha e paga tratamento.‖ da mesma forma em que o jornal se utilizou da doença do

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Frei da repercutir uma notícia que levava interesse ao publico também relatou a ajuda que
o presidente da república ofereceu ao frade como uma forma de pagamento pela ajuda que
o frade realizou com ele no período da sua eleição, no decorrer da matéria e apresentado
todas as informações do frade em relação a sua doença e também diz que o mesmo não terá
custo algum em seu tratamento no hospital de São Paulo, e no final da meteria apenas no
último paragrafo vem relatando que Collor carretaria com todas as despesas hospitalares do
frade, porém essa informação não foi passada a publico pelo próprio presidente, mais sim
pelo secretário pessoal de Frei Damião, o Frei Fernando Rossi que a algum tempo antes
teria sido acusado de ser o intermediador entre o frade e o político caindo sobre si a culpa
de Frei Damião ser tão influente e presente na vida política de Collor. Em pesquisa feita
pelo jornal a empresa Líder Táxi Aéreos, que foi o responsável por todo o transporte do
frade, estimou que o contrato feito com a empresa que incluiria o transporte aéreo do
Recife – PE para São Paulo – SP, acompanhamento de médicos, transporte de ambulância e
equipamento de UTI Móvel, teria custado em total cerca de Cr$ 3.272.500,00 que segundo
a matéria teria sido paga pelo presidente da república Fernando Collor de Melo.
Conforme o tempo foi se passando as doenças que acometiam o frade foi se
desenvolvendo e piorando, o que levaria em 31 de Maio de 1997 a morte do frade, no
Hospital Português na cidade de Recife – PE, o corpo do frade parte então para ser
embalsamado e seguiria para o velório, naquela mesma noite, as 21:30 horas uma
celebração particular, apenas para os membros do clero, foi celebrada na Basílica da Penha,
em sufrágio da alma do missionário.
O Jornal Folha de São Paulo emitiu uma notícia no dia 5 de Junho de 1997, alguns
dias após o enterro do frade, relatando um problema que aconteceu no dia 1 de junho de
1997 dia do seu enterro, o fato foi que o ex presidente da república e amigo de Frei
Damião, Fernando Collor de Melo teria sido proibido de participar da cerimonia fúnebre
do frade, noticia essa que teria sido publicada e interpretada pelo jornal como negativa para
a pessoa de Collor, o que não foi, ou pelo menos acredita-se que não, a intenção dos frades
capuchinhos em proibir a presença de Collor de forma específica na cerimonia do frade. O
fato foi de o superior Provincial da Ordem dos Capuchinhos no Nordeste havia emitido
uma nota oficial delegando que só poderiam participar de forma oficial e mais precisa da
celebração do frade, já que a cerimonia foi aberta ao publico, os religiosos e autoridades
constituídas em dignidade e saber que se restringiria ao representante do presidente da
república o vice-presidente Marcos Maciel, o governador do estado do Pernambuco Miguel

451
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Arrares e o prefeito de Recife Roberto Magalhães, com isso, Collor sendo ex presidente da
república e estando assim desligados de suas atividades políticas federais não entraria
nesses critérios apresentados pelo superior, Collor foi informado dessa decisão enquanto se
encontrava no aeroporto de Guararapes onde foi informado pelo ex senador Ney
Maranhão. O decreto oficial foi revogado pelo Frei Fernando Rossi, que mais uma vez
conseguia ultrapassar uma ordem de cima para favorecer a Collor, conseguiu fazer com
que Collor fosse ao enterro onde por próprios relatos do ex presidente, lembrou de vários
momentos que viveu com o frade, ao chegar no local onde o corpo estava sendo velado,
Collor foi aclamado pelo povo que gritava incessantemente o seu nome de forma livre,
assim relata o jornal, Collor entendeu a aclamação como uma forma de incentivo e força
para continuar o seu trabalho conforme ele mesmo disse: ―Isso dai-me forças para
enfrentar os obstáculos que tenho enfrentado.‖ e disse que tudo o que ocorreu desda sua
proibição em participar do funeral e a sua autorização foi obra de Frei Damião pois o jornal
também faz outra citação que Collor fez ao chegar no aeroporto de Recife as oito da manhã
junto com a sua esposa Rosane ―O que me trouxe aqui foi Frei Damião. Não vou falar de
polìtica.‖ Marco Maciel, Airres e Magalhães não compareceram ao enterro por medo de
serem acusados de misturar política com a religião sendo assim quem ocupou a cadeira da
tribuna foi Fernando Collor de Mello que foi saldado pelos presentes em cerca de 18 vezes.

CONCLUSÃO

Fernando Collor de Mello se utilizou das duas facetas da política para conseguir
unir-se com a religião, utilizou tudo o que viveu e aprendeu durante a sua vida, aproveitou
a influência católica herdada da sua família para desde cedo conseguir se fixar com bases
políticas, desde cedo Collor queria seguir os passos do seu pai que sempre foi político, com
isso sempre foi conhecido e obteve o carisma do povo desde cedo, porém ele precisava se
garantir, precisava de um ato que trouxesse os votos do povo de uma forma para ele ser
visto e amado, com isso se utilizou da figura de Frei Damião para garantir seus votos no
território nordestino, tinha um grande aliado que ajudou a sempre convencer o frade e a
colocar a sua vontade de acordo com a vontade do Frei, o secretário pessoal do Frei, o Frei
Fernando Rossi que sempre foi próximo de Collor fazendo assim as vontades do mesmo, o
que deixa a entender que Collor se utilizou da influência do Frei junto com a sua cultura
religiosa para garantir a sua vitória em urnas nordestinas e de todo o Brasil já que o Frei

452
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

era por si influente em todo o território brasileiro.


Algumas das justificativas para o envolvimento de Frei Damião com a política
querendo assim gerar uma ideia de que a igreja não se misturava com movimentos
políticos foi empregado pelo arcebispo de Olinda e Recife, Dom José Cardoso Sobrinho
que alegou que o frade foi utilizado como instrumento político pois não gozava mais de
suas faculdades mentais ficando assim impossibilitado de tomar decisões ou de opinar
sobre participar ou não, apoiar ou não certas atitudes relacionadas a apoio político.

REFÊRENCIAS

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453
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

A CULTURA POLÍTICA BRASILEIRA E A PESQUISA SOBRE A ALIANÇA


RENAVOADORA NACIONAL (ARENA) NA PARAÍBA

DMITRI DA SILVA BICHARA SOBREIRA


UFMG
[email protected]

RESUMO

O presente trabalho tem como objetivo apresentar reflexões sobre a utilização do conceito
de cultura política, em especial a chamada cultura política brasileira, para a pesquisa sobre
a Aliança Renovadora Nacional (ARENA) na Paraíba. A ARENA foi o partido que
integrou o bipartidarismo formulado pela ditadura militar, desempenhando a função de
apoiadora do regime no parlamento. A cultura política brasileira, por sua vez, pode ser
entendida como um conjunto de valores, representações e condutas políticas,
majoritariamente conservadoras e elitistas, que caracterizaram o Estado nacional ao longo
da história. Dessa forma, este conceito serve para entender o regime militar e seus
elementos paradoxais, ajudando a elaborar questões complexas, proporcionado ao
historiador se esquivar de visões simplistas sobre o período.
Palavras-chave: ARENA; Paraíba; Cultura política brasileira.

INTRODUÇÃO

As linhas que seguem são uma tentativa de reflexão que busco desenvolver ao
longo de pesquisa acadêmica, no intuito de aperfeiçoar a utilização do conceito de cultura
política na análise do objeto de estudo selecionado, a Aliança Renovadora Nacional
(ARENA). Este foi um partido político criado pela ditadura militar instaurada após o golpe
de Estado dado no Brasil no ano de 1964. O marco inicial de sua existência foi o Ato
Institucional nº 2 (AI-2) de 1966, um decreto que extinguiu as antigas legendas partidárias
existentes no país desde 1945 e instaurou um sistema bipartidário composto pela ARENA,
encarregada de dar sustentação política ao regime autoritário e pelo Movimento
Democrático Brasileiro (MDB), que desempenharia a função de oposição consentida e
controlada pela ditadura.
Esta é uma pesquisa que vem sendo realizada desde a graduação, em projeto de
iniciação científica, o qual buscou-se analisar a atuação dos parlamentares e partidos
políticos na implementação da ditadura militar no estado da Paraíba. Sucessivamente, em
dissertação de mestrado, verticalizou-se a temática da pesquisa, dando foco à ARENA e

455
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tendo como recortes espacial e temporal a Paraíba e os anos de 1966 a 1969. No atual
estágio da pesquisa, o doutoramento, continuamos com o mesmo objeto e recorte espacial,
porém foi selecionado como recorte temporal os anos de 1970 a 1979, ano em que há a
extinção da ARENA junto ao sistema bipartidário brasileiro.
Ao longo dessa trajetória acadêmica, algumas leituras fizeram perceber que a
análise de uma organização partidária não pode se limitar à determinados aspectos ou ficar
presa ao campo disciplinar da História. Ao me inserir no campo da história política,
compartilho da constatação de Ângela de Castro Gomes (1996), de que o historiador deve
realizar uma ―dupla formação‖, ou seja, acompanhar a renovação de métodos e conceitos
de pesquisa desenvolvidos por outras disciplinas, especialmente a Ciência Política. Sobre
as organizações partidárias, o cientista político Ângelo Panebianco (2005) desenvolveu
renovadora metodologia sobre a temática. Em sua abordagem, os partidos políticos,
enquanto organizações complexas, não podem ser vistos desconectados da realidade na
qual estão inseridos. Para ele, o pesquisador deve pensa-los a partir de sua história, como
organizações em movimento, influenciados por possíveis mudanças em seu ambiente
externo, evoluindo ou modificando-se para manter sua estabilidade. Olhando nessa
direção, um conceito que pode ajudar nesta pesquisa é o de cultura política, o qual tem sido
sistematicamente discutido por disciplinas como a Antropologia, a Ciência Política e mais
recentemente pela História.
Dessa forma, esse texto se propõe a discutir o conceito de cultura política,
elencando a categoria de cultura política brasileira como diretriz para pensar a pesquisa da
ARENA na Paraíba. Num primeiro momento será trabalhado a forma como o conceito foi
apropriado pela historiografia e quais são as interpretações elaboradas para a cultura
política brasileira. Posteriormente, será abordado como e quais as interpretações dessa
categoria podem ser utilizadas na pesquisa em desenvolvimento.

OS CONCEITOS DE CULTURA POLÍTICA E CULTURA POLÍTICA


BRASILERA

Ao elencar o conceito de cultura política como importante para esta pesquisa, é


preciso contextualiza-lo dentro da historiografia na brasileira. Visto a ascensão do
paradigma culturalista e o apreço que boa parte dos pesquisadores tem pelos fatos e
fenômenos políticos, o conceito ganhou espaço nas pesquisas e notoriedade nas instituições

456
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

acadêmicas, sendo criadas linhas de pesquisa para sua abordagem. No entanto, sua
utilização é mais longeva e precisa ser apresentada. Pode nos ajudar para a realização de tal
tarefa o historiador Rodrigo Patto Sá Motta (2009), que tem desenvolvido pesquisas sobre
o tema e buscou interpretar o conceito para o campo da História. Segundo ele, o conceito
de cultura política foi primeiramente utilizado no início do século XX, pelo intelectual da
política Alexis de Tocqueville. Novas contribuições significativas só tornaram a acontecer
na década de 1960, com os cientistas políticos Grabriel Almond e Sidney Verba. De acordo
com Motta, a discussão da cultura política feita por eles era um reflexo da conjuntura
histórica em que se inseriam, utilizando o conceito para entender o surgimento de regimes
autoritários, como o soviético, e fortalecer a ideia da democracia vivida nos Estados
Unidos. Almond e Verba criaram um entendimento da cultura política de maneira simplista
e hierarquizante171. No entanto, ao longo dos anos, novas interpretações do conceito
surgiram e outras disciplinas passaram a utiliza-lo para trabalhar seus objetos de pesquisa.
Especificamente na pesquisa histórica, Motta aponta que o primeiro trabalho a
utilizar o conceito foi o do norte-americano Bernad Baylin na década de 1960, em
trabalhos que sofreram forte influência da interpretação de Almond e Verba. No entanto,
foi com o movimento de retorno da história política encabeçado pela historiografia
francesa, que o conceito ganhou novos ares dentro da disciplina 172. Liderados por René
Rémond (2003), que teve como marco o livro Por uma história política, um grupo de
historiadores da política buscaram mapear novos temas e repensar abordagens teóricas e
metodológicas para velhos objetos de estudo do político. Apesar de não ter um capítulo
específico para a cultura política nesse livro, o conceito perpassa como chave interpretativa
em toda a obra.
Posteriormente, um historiador ligado a esse grupo, Serge Berstein (1998), buscou
sistematizar o conceito para o uso por historiadores. No seu entendimento, a cultura
política deve ser vista de forma plural, afastando qualquer tentativa de hierarquização,
mesmo se alguma cultura política assumir predominância sobre as demais, e deve ser

171
Na tipologia elaborada por Almond e Verba existe três tipos de cultura política: paroquial, de sujeição e a
participativa. A última correspondia ao estágio mais avançado do conceito, meta a ser alcançada pelas
demais, representada pela democracia dos Estados Unidos.
172
A negação da política dentro da História e seu afastamento das pesquisas históricas ocorreu a partir do
movimento de historiadores franceses, os Annales. No entanto, esse ostracismo da história política é um
fenômeno da historiografia francesa e, visto que nosso país sofre significativa influencia intelectual da
França, no Brasil a política também passou um tempo afastada das pesquisas históricas. Logo, vale ressalvar
que em outros espaços, a política continuou a ter campo, bem como há reflexões sobre esse hiato dentro da
própria historiografia francesa. Nesse sentido vale a indicação dos textos de José d‘Assunção Barros (2012) e
Jacques Le Goff (1983).

457
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

levada em consideração a relação de disputa ou colaboração entre as culturas políticas,


possibilitando àquelas que estão à margem de uma sociedade ascenderem ao posto de
predominância. Para o autor, uma cultura política surge como resposta dada por uma
sociedade a uma determinada crise política, propondo resolver problemas e transformar a
sociedade, tarefa que leva tempo, duas ou três gerações. Assim, ao atravessar gerações, a
cultura política deve ser entendida na longa duração, como algo que se modifica e evolui
junto a sociedade e que, sem os meios necessários para sua propagação, pode declinar e
cair no esquecimento. Assim, para se perpetuarem no tempo, tendem a adaptar-se às
transformações sociais e, não sendo dependentes de si mesmas, devem manter relações
com as demais culturas políticas que as cercam.
Ainda segundo Berstein, para se difundirem em uma sociedade, as culturas
políticas precisam de vetores, meios pelos quais possam sair do campo ideológico para o
prático. Algumas instituições servem a tal propósito: família, escola (ou universidades),
ambientes de trabalho, Igrejas, Exército, sindicatos e partidos políticos. No entanto, ao
analisar um objeto de estudo a partir do viés da cultura política, deve-se evitar
condicionamentos simplistas, pois um indivíduo pode participar de espaços sociais com
culturas políticas contraditórias, ou participar de um em consequência da sua vivência em
outro. Assim, o estudo de uma cultura política auxilia o historiador a compreender o
porquê um indivíduo, ou um grupo de indivíduos, adota determinado comportamento
político, como também:

Permite, [...] pelo discurso, o argumentário, o gestual, descobrir as raízes


e as filiações dos indivíduos, restituí-las à coerência dos seus
comportamentos graças à descoberta das suas motivações, em resumo,
estabelecer uma lógica a partir de uma reunião de parâmetros solidários,
que respeitam ao homem por uma adesão profunda, no que a explicação
pela sociologia, pelo interesse, pela adesão racional a um programa se
revela insuficiente, porque parcial, determinista e, portanto, superficial.
Mas [...] passando da dimensão individual à dimensão coletiva da cultura
política, esta fornece uma chave que permite compreender a coesão de
grupos organizados à volta de uma cultura. Fator de comunhão dos seus
membros, ela fá-los tomar parte coletivamente numa visão comum do
mundo, numa leitura partilhada do passado, de uma perspectiva de futuro,
em normas, crenças, valores que constituem um patrimônio indiviso,
fornecendo-lhes, para exprimir tudo isto, um vocabulário, símbolos,
gestos, até canções que constituem um verdadeiro ritual. (BERSTEIN,
1998, p. 362).

458
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Apesar do trabalho de sistematização do conceito, Berstein não elabora uma


definição própria para a cultura política. No entanto, não faltam definições do conceito
elaboradas, especialmente, por autores da Antropologia e Ciência Política. Para ajudar a
seguir a linha de raciocínio elaborada para esse texto, seleciono aqui duas definições
elaboradas pelos autores com os quais abordarei a cultura política brasileira.
Primeiramente, Motta (2009, p. 21) define o conceito, de forma sucinta e consistente
como: ―Conjunto de valores, práticas e representações políticas partilhado por
determinado grupo humano, que expressa uma identidade coletiva e fornece leituras
comuns ao passado, assim como fornece inspiração para projetos direcionados ao futuro‖.
Por sua vez, o cientista político Christian Edward Lynch (2015, p. 1), a define como um:
“[...] conjunto de discursos ou práticas simbólicas por quais demandas são efetuadas,
conferindo identidades aos indivíduos e grupos, identificando-lhes os limites de suas
comunidades e definindo as posições a partir das quais possuem demandas‖.
Partindo para a análise da cultura política brasileira, o primeiro autor a organizar
sua ideia sobre o conceito foi Motta (2013a). Ele utiliza o conceito de cultura política para
compreender e explicar as peculiaridades da ditadura militar brasileira, especialmente
quando se propõe um olhar comparativo com as experiências autoritárias dos países
vizinhos173. A proposta formulada pelo autor para é que essa cultura política brasileira foi
formulada ao longo da construção do Estado nacional, que convive e interage com outras
matrizes políticas (comunismo, liberalismo, conservadorismo, fascismo, etc.) 174 e que é
composta por uma série de práticas, comportamentos, valores e representações políticas.
Contudo, vale ressalvar que muitas dessas características não são exclusivas do país. É sua
combinação, entendida junto ao processo de formação da sociedade brasileira, que faz
surgir essa cultura política nacional. Além disso, tal cultura política não seria algo
hegemônico no país, na qual todos os indivíduos se identifiquem com suas características.
Ela funciona como uma linha mestra, orbitada por outras culturas políticas que controlam
ou almejam controlar o poder.

173
Alguns pontos apontados pelo autor que distinguem o regime militar brasileiro dos demais: 1) projeto
econômico nacional-desenvolvimentista; 2) manutenção do funcionamento (embora de modo precário) das
instituições liberais; 3) menor número de mortes e desaparecimentos provocados pela repressão política; 4)
elevada taxa de absolvições nos julgamentos de crimes políticos; 4) maior tolerância com os valores culturais
da esquerda (que continuavam a circular durante a ditadura).
174
Ao descrever a cultura política comunista no Brasil, Motta (2013b) relata que esta compartilhou
caracterìsticas da ―cultura polìtica brasileira‖, como a tendência à negociação de conflitos, expressa nos
acordos feitos com partidos de ideologias distintas, e o personalismo, ilustrado nas figuras de líderes
carismáticos.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Para entendê-la, deve-se reconhecer a existência de um imaginário político


nacional, um conjunto de representações que faz as pessoas se identificarem com atores
políticos do passado, classificando-os como heróis ou vilões, e estabelecendo importância
em eventos marcantes, como batalhas ou guerras. Nessa cultura política, identifica-se a
presença de valores e comportamentos típicos de grupos políticos (principalmente entre os
que controlam ou almejam controlar instâncias estatais): coronelismo, clientelismo,
patrimonialismo, elitismo, personalismo, etc. Essas são condutas favorecedoras dos laços
de parentesco, amizade ou compadrio, que desconsideram normas oficiais em função de
projetos políticos por vezes pessoais.
Outra importante característica da ―cultura polìtica brasileira‖ descrita por Motta é
sua tendência à flexibilidade, predisposição a negociação de conflitos. No Brasil há um
longo histórico de arranjos políticos, conciliações que levam a uma saída satisfatória para
os lados envolvidos. Vale ressaltar que essa tendência prevalece nas disputas entre elites,
quando as classes subalternas estão envolvidas, o mais comum é o uso de violências contra
os desfavorecidos economicamente. Por fim, suas últimas características são a pouca
identificação da população com os partidos políticos e sua fraca participação nos espaços
públicos de poder. As constantes intervenções no sistema partidário brasileiro podem ser
encaradas como fator que pesa nesses aspectos. Do período imperial até o golpe de 1964,
ocorreram quatro mudanças, a quinta realizada durante a ditadura militar, não havendo
condições até então de haver identificação partidária mais profunda no Brasil. Não
obstante, o próprio sistema político impõe dificuldades para a participação das camadas
subalternas na política institucional.
Já Lynch busca interpretar a cultura política a partir da apropriação – podemos
assim dizer – de grandes ideologias e tradições políticas dos países europeus (ditos
cêntricos) para o Brasil (e demais países colonizados, chamados periféricos) por meio do
processo de colonização realizado pelas nações da Europa. As tradições e ideologias às
quais o autor se refere são as surgidas a partir do nascimento dos Estados europeus
modernos, a exemplo do republicanismo e liberalismo. Do intercâmbio entre o europeu
―civilizado‖ e os povos ―bárbaros‖ que habitavam as colônias antes da chegada dos
colonizadores, juntamente com o contexto colonial e pós-colonial, fez surgir essas culturas
políticas. De acordo com o autor:

As culturas políticas dos países periféricos surgiram, portanto, produzida por


uma elite colonial que se esforçava para apreender a sua realidade local a partir

460
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

do instrumental analítico fornecido pela cultura política europeia, isto é,


―cientìfica‖. (LYNCH, 2015, p. 2-3)

Na América Latina, sua histórica elite política dirigente manteve-se estritamente


ligada a cultura europeia, mesmo após a emancipação colonial e formação de seus
respectivos Estados nacionais. Esses indivíduos valiam-se dessa cultura para perceber a
realidade dos novos Estados nacionais periféricos, interpretando-os como qualitativamente
―exóticos‖ e ―atrasados‖. Tais percepções definiam a identidade nacional dessas elites,
gerando um complexo de inferioridade em relação aos Estados cêntricos175.
Inserida neste contexto continental, a cultura política brasileira, na visão de
Lynch, apresenta características específicas. A primeira delas é a preocupação com a
modernização, oriunda do juízo de valor negativo da realidade nacional. A partir dela, os
atores políticos extraem o imperativo de modernizar o país, no intuito de – na maioria das
vezes – reduzir a distância entre países cêntricos. Esta é feita por meio da importação de
instituições surgidas no Estado europeu moderno. No entanto, a regra segundo a qual as
instituições deveriam refletir e acompanhar o desenvolvimento da sociedade não é válida
para a realidade periférica. Essa inefetividade institucional é diagnosticada por Lynch
(2015, p. 6) a partir da dicotomia entre país legal e país real: ―Se as instituições cêntricas
impactava, sobre a realidade periférica, a fim de modernizá-las, elas não o faziam na
forma nem na velocidade esperada pelo público, produzindo efeitos inesperados, às vezes
negativos‖. Por exemplo, as instituições (paìs legal) estariam atrasadas em relação às
necessidades da sociedade (país real), fator que levou políticos a rejeitarem essas
instituições pelo seu caráter ―retrógrado‖. Como explicações são propostos o fator da
realidade social (o povo seria incapaz de comandar as instituições, precisando de uma elite
para guiar a nação); e a corrupção do sistema político nacional e a falta de civismo da
classe política, problemas de cunho moral. Bem como, com o adiantamento do país legal
sobre o real eram geradas demandas capazes de reduzir o idealismo das instituições e a
realidade social.
Esse fator faz surgir outro tema da cultura política brasileira: o idealismo utópico
da elite nacional, que deveria ser substituído por um idealismo orgânico, baseado na
observação e das experiências a partir da realidade. Isso gera comportamentos típicos da
cultura política brasileira, como o pedagogismo, oriundo na necessidade de se educar as
175
Lynch aponta que não eram apenas os Estados europeus que serviam como exemplo para os Estados
periféricos. A elite latino-americana buscou influencia liberal na Inglaterra, na França pelos princípios
estatizantes e nos Estados Unidos como modelo da materialização de todos esses princípios numa ex-colônia,

461
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

elites políticas ou a população para o convívio com as instituições modernas. Esse


comportamento faz surgir vanguardas modernizadoras, oriundas da descrença de que o
povo ou a sociedade civil sejam capazes de conduzir a modernização do país pelas vias da
evolução liberal democrática. Essas aparecem em momentos de crise do sistema política
constitucional, quando há um vácuo entre a classe dirigente e o poder, dando espaço para
outros atores. Tais vanguardas geralmente surgem de segmentos específicos da população,
como tecnoburocratas estatais, fazendeiros ou industriais, intelectuais orgânicos e
bacharéis (de esquerda ou direita). Como exemplo, Lynch elenca três tipos de vanguardas
modernizantes: os governantes, os militares e os magistrados.
E, por fim, o autor elenca as principais ideologias da cultura política brasileira.
Dentro do conceito proposto, a ideologia representa três características funcionais: são
mapas para que os indivíduos e grupos sociais se orientem em meio à complexidade e
capacidade do mundo onde estão inseridos, almejando justificar, explicar ou confrontar os
processos históricos, sociais e práticos; são metáforas, símbolos e temas prenhes de
significados, atravessados por narrativas do passado, presente e futuro da comunidade com
o objetivo de ordenar a realidade no espaço e no tempo; assim como são discursos políticos
que revelam a capacidade dos indivíduos de se adaptar a mudanças e reivindicam uma
tradição formulada por seus antecessores, reconhecidos como mártires ou heróis. A cultura
política brasileira, portanto, é atravessada por um leque de ideologias já existentes
(conservadorismo, liberalismo, socialismo e suas subdivisões).
No caso brasileiro, duas ideologias são apontadas pelo autor como predominantes
sobre as demais: o nacional estatismo e o liberalismo cosmopolita. A primeira é tributária
do reformismo ilustrado e pelo projeto imperial e parte do diagnóstico negativo da
formação brasileira. Nela, o Estado nacional toma para si a condição de motor do
desenvolvimento, intervindo no domínio socioeconômico. Por outro lado, o liberalismo
cosmopolita contrapõe a funcionalidade do nacional estatismo, e a centralidade do Estado
nas decisões, colocando em seu lugar a sociedade civil. Nela, nega-se a fragilidade da
sociedade civil brasileira, reinventado sua força e capacidade de autodeterminação, ou
reconhecem a sua fraqueza, imputando-a. Tal ideologia crê na capacidade do mercado e da
sociedade, que indicam que a abertura para o capital estrangeiro e redução das tarifas
alfandegárias levará a uma maior competitividade econômica. Essa é, historicamente, a
ideologia dos fazendeiros, industriais bacharéis e profissionais liberais.

462
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

De forma geral, ambas as abordagens são caracterizadas pela ideia pluralista do


conceito, pelo caráter elitista, conservador e por práticas e ideias políticas que impedem o
melhor funcionamento de instituições democráticas na realidade brasileira. A partir dessas
ideias apresentadas, passaremos a esboçar possibilidades de aplicação dessas perspectivas
do conceito de cultura política brasileira na pesquisa sobre a ARENA.

A ARENA E A CULTURA POLÍTICA BRASILEIRA

Visto que essa é a primeira reflexão elaborada sobre essa utilização do conceito de
cultura política brasileira e a pesquisa sobre a ARENA na Paraíba, além do fato de a
pesquisa nas fontes primárias ainda está em sua fase inicial, os apontamentos realizados
abaixo são baseados no projeto de doutorado produzido para a disciplina de Seminário de
Dissertação do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Minas
Gerais (PPGHIS-UFMG) do qual sou vinculado.
O objetivo principal da tese descrito no projeto é entender como as oligarquias
locais agiram politicamente na ditadura através da atuação da ARENA-PB na década de
1970, e a partir disso, compreender a associação entre poder local e regime autoritário,
pensando a relação entre os planos regional e o nacional. Vale ressaltar que no período
abordado, o país e, mais especificamente, a Paraíba passavam por um período de
modernização176 implementado pelo regime autoritário. É notório a percepção desse
projeto modernizador no estado, especialmente em obras de infraestrutura. No entanto,
esse ímpeto modernizador aparentemente limitava-se às obras de concreto armado, pois
uando olhamos para as práticas políticas nesse período, percebe-se a continuidade de uma
série de práticas e representações políticas remetentes de antes da formação do Estado
brasileiro, sobrevivente aos eventos marcantes e possíveis rupturas na história do país.
Além disso, o próprio modelo de regime autoritário, apesar de implementar uma série de
mudanças no sistema político177, deu condições para a permanência e até mesmo

176
Para Bresser-Pereira (2015), este foi um pacto desenvolvimentista semelhante ao elaborado por Getúlio
Vargas, diferenciando-se pela exclusão da classe trabalhadora do projeto político. Nele engajaram-se os
golpistas reunidos em 1964, tendo como principal força o chamado ―tripé modernizante‖: burguesia, tecno-
burocracia e interesses estrangeiros, harmonizando tendências liberais, nacionalistas e anticomunistas. Para
Motta (2014), as experiências de modernização autoritária/conservadora fazem parte da ―cultura polìtica
brasileira‖, um ato de promover o novo negociando com o velho.
177
As mudanças no sistema político implementadas pela ditadura militar tinham como objetivo aumentar o
poder do governo federal e, ao mesmo tempo, dava margem para a participação dos setores civis que
participaram da empreitada golpista junto aos militares em 1964. Dessa forma, o regime: implementou

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

fortalecimento dessas práticas políticas, características do que convimos chamar de cultura


política brasileira.
Quando analisamos os objetivos específicos, recortes no nosso objeto de pesquisa
que ajudam no desenvolvimento o objetivo principal, percebemos como cada visão da
cultura política brasileira pode contribuir. A realização dos três primeiros objetivos pode
ser direcionada a partir da interpretação do conceito feita por Motta. O primeiro deles é
entender a reorganização do Diretório Regional da ARENA paraibana após as cassações
dos arenistas ocorridas em 1969. Após o AI-5, uma das alas dessa secção regional foi
desmantelada com o expurgo de seus membros. Isso acarretou mudanças em sua estrutura
interna, aumentando a influência de outras facções mais identificadas com o regime
militar. Aspecto que pode ser analisado através das convenções partidárias que elegeram
novas lideranças para o diretório paraibano da ARENA. O segundo objetivo específico é
analisar a desenvoltura da ARENA-PB nas eleições realizadas na década de 1970. Será
analisado o desempenho do partido nos pleitos ocorridos de forma direta, destacando o
processo de escolha dos candidatos, a forma como ocorreram as campanhas eleitorais e o
resultado eleitoral. Em relação às eleições indiretas, destacam-se a influência do governo
Federal nesse processo e as disputas internas para a escolha de seus representantes. E o
terceiro objetivo específico é estudar à relação entre as oligarquias locais e o regime
militar, pensando qual a função desempenhada pelo governo estadual nesse vínculo. Será
problematizado o papel exercido por este como representante direto da ditadura no estado,
e como ficaram as alas do partido não contempladas simbólica e materialmente pelo
governo estadual. Analisar-se-á também as ações do governador e sua relação com outras
instâncias de poder, como as prefeituras e a Assembleia Legislativa.
A forma como Motta descreve as práticas que permeiam a cultura política
brasileira, como o clientelismo, mandonismo, patriarcalismo e a tendência à negociação de
conflitos, vão ajudar no desenvolvimento dos tópicos que abordam sobre a organização
interna do partido, sua atuação eleitoral e a atuação dos governadores biônicos como
mediadores entre o poder local e a ditadura militar.

eleições indiretas para os principais cargos da República (presidente, governador e prefeito das capitais e
cidades consideradas Zonas de Segurança Nacional), porém manteve eleições diretas para os demais cargos;
extinguiu as antigas legendas partidárias, mas criou um sistema bipartidário que comportava, inclusive, um
partido de oposição; manteve o Congresso Nacional e o poder Judiciário funcionando, mas com suas
prerrogativas reduzidas; bem como acabou com a Constituição em vigor e instaurou nova carta contendo
todas as mudanças implementadas desde o golpe de 1964.

464
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

O último objetivo específico é analisar a atuação do partido como mediador


político entre a sociedade civil e o regime autoritário. Apesar da década de 1970 ser
marcada por forte repressão política, a sociedade civil atuou de forma incisiva contra a
ditadura militar através de suas organizações de classes, especialmente a partir de 1974. Ao
mesmo tempo em que o regime tomava novas providencias para controlar as oposições e
fazer a distensão do regime, precisava do suporte da ARENA no Congresso para legitimá-
las. Como os membros do partido na Paraíba se posicionaram em relação a esses casos, em
função de suas experiências e ideologias políticas, é um ponto a ser visto nesta tese.
Os apontamentos feitos por Lynch e seu entendimento mais voltado para a
apropriação de ideias do conceito de cultura política brasileira ajudará a entender como as
ideologias predominantes na cultura política brasileira, nacional-estatismo e liberalismo
cosmopolita, são identificadas entre os arenistas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesse espaço, relembro que essa é uma empreitada ainda em fase inicial, com isso
esse texto tem mais características informativas e descritivas e menos reflexivas e
problematizadoras. O exercício de levar para eventos acadêmicos essas ideias da pesquisa
serve para levar aos pares nossas pesquisas no intuito de absorver todas os possíveis
apontamentos e indicações, bem como indicar aos demais pesquisadores caminhos que
podem ser seguidos a partir de nosso trabalho acadêmico.

REFERÊNCIAS

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(disponível em: http://beemote.iesp.uerj.br/wp-
content/uploads/2015/05/ARTIGO_Cultura_política_brasileira_II.pdf, acesso em
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466
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

SECA: UMA CONSTRUÇÃO E UMA PERSPECTIVA

RONALD DE FIGUEIREDO E ALBUQUERQUE FILHO


FACHUSC
[email protected]
RESUMO
O presente artigo tem por objetivo mostrar as várias faces em torno do discurso sobre a
seca, tendo aqui a percepção de que este é inserido dentro de um processo histórico, do
qual é modificado de acordo com as necessidades presentes em cada momento que o
discurso se enrijece. Dentro desse viés, procuramos estabelecer uma relação entre a prática
discursiva, política e social, em que se estabelece uma determinada sociedade, com toda
sua complexidade envolvida. Utilizamos para tanto, dentre outras fontes, a leitura de
alguns autores que trabalharam essa temática como Neves, Albuquerque Jr., Olivenor,
Rios, enfim, onde podemos perceber tais ligações.
Palavras-chave: seca; discurso; controle social; poder.

Quando falamos em seca já se tem todo um imaginário preestabelecido, produzido


e disseminado em torno desse tema que é a concepção de seca como problema seja ele
climático, social, econômico, político e até mesmo cultural. A seca, em diversos meios de
disseminação de informação e conhecimento, é percebida como a grande causadora do
atraso e subdesenvolvimento do Nordeste brasileiro, um problema natural, que traz consigo
vários outros e desse modo vai se construindo essa ideia e cada vez mais se propagando
como verdade.
É necessário historicizar esta concepção, não coincidentemente datada a partir da
grande estiagem de 1877/79178, período este que percebemos a desnaturalização da seca e
que verificamos as multifaces que se pode chegar a partir da percepção de seca como
problema, inclusive tornando-se aspecto fundamental para a formação e desenvolvimento
de algumas cidades.
Temos registros sobre estiagens que datam os primórdios da colonização nesta
região que hoje chamamos Nordeste brasileiro. Dificuldades de se estabelecer nessas terras
devido à irregularidade das chuvas ocorrem desde as primeiras tribos aqui existentes, as
quais migravam para terras mais úmidas em tempos de escassez. Mesmo com essa
vulnerabilidade climática esse território foi ocupado e fixado por colonizadores ―com base

178
Ver ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz. Palavras que calcinam, palavras que dominam: A invenção da
seca no Nordeste. Revista Brasileira de História. São Paulo: Marco Zero, vol. 14, nº28, 1994.

467
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

na pecuária, o que permitia uma certa mobilidade da produção durante as secas‖ (NEVES,
2004).
Nos primórdios da colonização, apesar das dificuldades, a irregularidade de chuvas
não era usada para justificar as mazelas dessa região. Os colonizadores, mesmo assim,
buscaram se adaptar a esse território.
Com a exploração da terra, desmatada para obter maior produção, sobretudo da
cana-de-açúcar, começavam as acusações destinadas ao clima semiárido devido as perdas
da produção. Ainda sem muito impacto, essas reclamações não eram levadas ao governo
provinciano, muito menos ao império, eram reclamações de âmbito local, não havendo
ainda tanto alarde. Era comum nesse período a migração temporária dos pequenos
agricultores para terras mais férteis de seus patrões, mantendo relações paternalistas com
os mesmos. Estas relações acabavam por sustentar cada vez mais aspectos de subserviência
dos trabalhadores em relação aos proprietários das terras. De acordo com Frederico de
Castro Neves

Até meados do século XIX, contudo, a irregularidade de chuvas que caracteriza o


sertão não havia significado um problema tão grande para os setores dominantes.
Pelo menos, as cidades e as instituições modernas do poder, estruturadas neste
mesmo período, estavam a salvo das agruras da seca. As terras úmidas da
periferia do semiárido, abundantes e pouco povoadas, podiam ser ocupadas pelos
grupos de sertanejos que perdiam as suas colheitas de subsistência e também
pelo gado dos grandes proprietários. O Piauí e o Cariri eram as áreas mais
procuradas por estas migrações periódicas. Muitos grandes proprietários
possuíam terras nestas áreas como ―reserva‖ para os tempos de escassez, quando
o gado – bem mais valioso – poderia estar protegido (NEVES, 2004. p. 77).

As terras localizadas no interior cearense eram ocupadas pela criação de gado e


pela produção tradicional baseada na agricultura de subsistência. A permanência dos
trabalhadores nessas propriedades, lidando com a terra e com o gado de grandes
proprietários rurais, favorecia o enrijecimento da relação de apadrinhamento, ou seja, a
utilização da mão-de-obra escrava não era inexistente, porém, não era a mais utilizada
nessa região do semiárido. Os trabalhadores mantinham uma relação baseada na lealdade,
na submissão e proteção com seus patrões, que em troca lhes davam moradia e uma
pequena parte da terra para a produção de subsistência do trabalhador e de sua família.
A prática que leva às relações paternalistas remete ao período colonial ainda
durante a conquista das terras colonizadas. Os arrendatários pagavam pelas terras que
trabalhavam para sua subsistência e de sua família, o que não possibilitava um excedente

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

que favorecesse a comercialização da produção, fazendo com que os trabalhadores dessas


terras ficassem submissos e sob o controle do proprietário da terra.
Essa estrutura arraigada ainda no período colonial, favorecendo sesmeiros,
aprofundando laços de submissão por parte dos moradores e trabalhadores das
propriedades aos donos da mesma, se efetivava cada vez mais quando a escassez de chuvas
prevalecia no sertão, não possibilitando nem mesmo a segurança alimentar da família dos
trabalhadores, que eram obrigados a se submeter mais ainda ao proprietário da terra.
O poder político e econômico ainda estava localizado na estrutura fundiária de
monopólio sobre a terra, isentando o Estado de qualquer responsabilidade para com
aqueles que sofriam com o período de estiagem, o que favorecia as relações paternalistas.
Segundo Frederico de Castro Neves
Essa situação mudou na metade do século XIX. Neste momento, uma série de
fatores concorreu para o ―fechamento‖ das terras disponìveis para a ―retirada‖
dos homens e do gado. (...) A ocupação das terras próximas ao semiárido por
uma agricultura comercial tem dois momentos de intensificação: 1) a valorização
das terras como bem econômico, provocada pela Lei das Terras de 1850, que, ao
mesmo tempo, retirou das tribos indígenas remanescentes o controle de algumas
áreas por aldeamentos; 2) o impressionante avanço da cultura algodoeira por
toda a província do Ceará, motivado pelo súbito aumento de preços no mercado
internacional em função da Guerra de Secessão nos EUA (NEVES, 2004. p. 79).

Em meados do século XIX, não tendo mais a possibilidade de migração para terras
mais férteis, outrora morada temporária dos trabalhadores rurais que mantinham relações
de apadrinhamento com os proprietários das terras, em períodos de estiagem, devido a
produção em alta escala do algodão, impossibilitando a cultura de subsistência e
manutenção dessas famílias em tais propriedades, os camponeses, agora retirantes,
buscavam alternativas nas cidades.
Essa efervescência do desenvolvimento urbano nas cidades brasileiras, aqui
especificamente, na capital do Estado do Ceará, Fortaleza, se deu principalmente na virada
do século XIX para o XX. O desenvolvimento moderno em Fortaleza tem íntima ligação
com o período de regulares chuvas entre os anos de 1845 e 1877, até então, a seca de
1877/1879, vem sendo colocada como marco na construção desse imaginário da seca como
problema e principal fator de atraso e subdesenvolvimento desta região. No entender do
historiador Durval Muniz de Albuquerque Júnior, a vasta literatura que trata sobre a
temática da seca, percebe esta como um fenômeno natural, ainda que possua repercussões
sociais, políticas e econômicas. O autor atenta para o fato de que a seca é um produto
histórico de práticas e discursos, ―um objeto ‗imagético-discursivo‘, cujas imagens e

469
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

significações variam ao longo do tempo e conforme o embate de forças que a toma como
objeto de saber‖ (ALBUQUERQUE Júnior, 1994).
Tendo essa percepção da seca como problema de repercussão nacional a partir de
1877, faz-se necessário desnaturalizar este fenômeno, colocando-o como estratégia política
na tentativa de sensibilizar o Estado e a nação em relação aos males causados pela
estiagem. Esse objeto de discurso viabiliza e legitima um determinado saber que leva a
aceitação atravessando todo corpo social. Produz verdade. De acordo com Michel Foucault
A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele
produz efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu regime de
verdade, sua ―polìtica geral‖ de verdade: isto é os tipos de discurso que ela
acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que
permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como
sanciona uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a
obtenção da verdade; o estatuto daqueles que tem o encargo de dizer o que
funciona como verdadeiro (FOUCAULT, 2007. p. 12).

É importante identificarmos esse produto discursivo que rege proporções aceitáveis


cientificamente em um determinado tempo e espaço. O que legitima a seca de 1877 como
marco para a compreensão de seca que temos hoje? Segundo Albuquerque Júnior
A transformação da seca em problema nos apareceu, então, como um processo
conflituoso, em que diferentes práticas e discursos se defrontaram, fazendo
emergir este novo objeto de saber e poder: ―a seca do Norte‖, cuja invenção deve
ser apagada, remetendo-o para o reino da natureza, ocorrendo, portanto, no final
do século XIX, uma mudança na imagem e no uso do fenômeno da seca. Para
compreender tal mudança, procuramos analisar os principais discursos em torno
desse fenômeno e as práticas que enformaram. Discursos e práticas que
transformaram a seca em problema regional e nacional e na principal causa de
todas as demais dificuldades vividas por esta parte do território nacional.
Perguntando-nos, portanto, quais as séries de acontecimentos e de discursos que
transformaram a seca de 1877/79 em algo excepcional, dentro da secular história
das secas, já que, enquanto acontecimento da natureza, nenhum aspecto a
credencia a ser tomada como marco? Sua duração foi inferior a muitas outras,
atingiu uma área menor, não foi tão intensa, porque ocorreram chuvas esparsas
durante o período e mesmo a população por ela dizimada é proporcionalmente
inferior a da seca de 1825, por exemplo. Enquanto a seca de 1877 matou cerca de
13,9% da população do Ceará, a seca de 1825 dizimou 14,4% da população desta
província (ALBUQUERQUE JR, 1994. p. 112).

A ―grande‖ seca de 1877, como ficou conhecida, é posta como marco na história do
Ceará. A migração de inúmeros camponeses para a capital do Estado, caminhando longas
léguas, com a esperança de encontrar a caridade que antes era ―função‖ das relações
paternalistas, mas que agora, nem mesmo os antigos ou ainda proprietários de terras
possuem recursos suficientes para manter aquele tipo de relação, ao contrário, alguns
fazendeiros estavam endividados, devendo aos comerciantes, principalmente da capital.
Neves afirma que

470
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Segundo contemporâneos bem-informados, em um ano mais de 100 mil desses


―invasores‖ esfarrapados ocuparam as praças, as ruas, as calçadas e o Passeio
Público de uma cidade que procurava adaptar-se aos padrões civilizados dos
grandes centros e que não contava com mais do que 27 mil habitantes. Notícias
diárias de cenas impactantes aterrorizaram os provincianos cidadãos da capital:
roubos, prostituição, suicídios, assassinados, antropofagia, mendicância...
(NEVES, 2004. p. 82).

Todos os dias, como coloca Neves, eram noticiados nos jornais locais a chegada de
milhares de retirantes à capital do Estado cearense. O jornal O Cearense, na edição de 29
de abril de 1877 noticia
Não há dia no qual as portas das Igrejas e edifícios públicos não estejam
etopetados por mendigos de todas as idades. Esse espetáculo é deponente contra
os nossos costumes, além de ser, a maior parte das vezes, imoral e repugnante.
(O Cearense apud OLIVENOR, 66. p. 2002).

Além das páginas de jornais, a seca de 1877 também foi temática de romances
como por exemplo A Fome de Rodolfo Teófilo, no qual o autor inicia sua obra dizendo
O mês de dezembro é sempre quente nas províncias do Brasil mais próximas do
equador. Mesmo no litoral, que é bafejado pelas brisas do mar, os dias são
calmosos, a temperatura, à sombra, chega às vezes, a 33º centígrados. Foi na
tarde de um desses dias, no ano de 1877, o ano da fome, que na Jacarencanga,
um dos arrabaldes de Fortaleza, arranchava-se à sombra de um cajueiro uma
família de retirantes, que, depois, das torturas de uma viagem de cem léguas,
vinham aumentar a onda de famintos (TEÓFILO, 1979. p. 4).

Na obra citada, o autor expõe cenas que eram costumeiramente visíveis e


noticiadas, levando alguns comentaristas de seu romance escreverem que a sua obra
―reflete‖ a vida cearense, A fome, nas palavras de Dolor Barreira é ―um quadro forte e fiel
do nosso flagelo familiar‖. Assim sendo, a imagem que se tem sobre o Nordeste é de um
espaço que sofre as agruras da seca e que dessa forma se torna uma região pobre, de
pessoas frágeis e que necessitam de assistência, criando assim, características da identidade
local. Para Albuquerque Júnior ―a região Nordeste, que surge na ‗paisagem imaginária‘ do
país no final da primeira década deste século, substituindo a antiga divisão do país entre
Norte e Sul, foi fundada na saudade e na tradição‖ (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2011). Na
composição de Belchior intitulada ―Conheço meu Lugar‖ ele atenta para essa imagem
discursiva produtora de uma determinada noção de ―nordestinidade‖

Não! Você não me impediu de ser feliz! Nunca, jamais bateu a porta em meu nariz!
Ninguém é gente!
Nordeste é uma ficção!
Nordeste nunca houve!
Não! Eu não sou do lugar dos esquecidos!
Não sou da nação dos condenados!
Não sou do sertão dos ofendidos!
Você sabe bem: conheço o meu lugar!

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Há vários Nordestes, mas àquele que é normalmente posto e encontrado na mídia,


nas músicas, nos filmes, em romances, no diálogo das pessoas, inclusive do próprio
Nordeste, o torna único, homogêneo, sofredor, miserável, subdesenvolvido, atrasado e
estático. O lugar do passado. Segundo Kathryn WoodWard
A representação inclui as práticas de significação e os sistemas simbólicos por
meio dos quais os significados são produzidos, posicionando-nos como sujeito. É
por meio dos significados produzidos pelas representações que damos sentido à
nossa experiência e àquilo que somos. Podemos inclusive sugerir que esses
sistemas simbólicos tornam possível aquilo que somos e aquilo no qual podemos
nos tornar (WOODWARD, 2007. p. 17).

Na composição acima, Belchior, músico cearense, afirma conhecer o seu lugar e


que não é esse espaço tão disseminado que contam por ai – e por aqui também. Não é,
como ele mesmo aponta, o lugar dos esquecidos, dos condenados e dos ofendidos. Por
outro lado, ele percebe as modificações do tempo presente, as ideias liberais e seu triunfo.
Coloca o homem comum não como mero espectador da vida e que tem que se adequar a
sociedade que querem frutificar e fortalecer, ao contrário, ele sugere que o homem comum
tenha ―voz ativa‖, ou seja, se torne protagonista de sua própria história.
A saudade explicitada nas literaturas, nas músicas ou em outras artes, estereótipos
que caracterizam ou a forma como são caracterizados os povos e as cidades nordestinas,
cria uma espécie diferenciada, imodificável, como se nada mudasse nesse espaço, como se
viajássemos e voltássemos trinta anos depois, encontraríamos tudo exatamente igual, assim
nos tornamos sujeitos atrasados, vinculados a um tempo estático, imutável, com
características bem enrijecidas. Como Albuquerque Júnior afirma
Este Nordeste é uma máquina imagético-discursiva que combate a autonomia, a
inventividade e apoia a rotina e a submissão, mesmo que esta rotina não seja o
objetivo explícito, consciente de seus autores, ela é uma maquinaria discursiva
que tenta evitar que os homens se apropriem de sua história, que a façam, mas
sim que vivam uma história pronta, já feita pelos outros, pelos antigos; que se
ache ―natural‖ viver sempre da mesma forma as mesmas injustiças, misérias e
discriminações (ALBUQUERQUE Júnior. 2011. p. 100).

Ao tratar sobre as canções sertanejas do Nordeste, leva-nos a pensar, assim como


Albuquerque Jr., que essas produções remetem ao Nordeste como se este fosse estático,
atemporal: ―a ênfase na memória por parte dos tradicionalistas nasce dessa vontade de
prolongar o passado para o presente e, quem sabe, fazer dele também o futuro. Eles
abominam a história, por ela estabelecer uma cisão entre as temporalidades‖
(ALBUQUERQUE JR. 2011).
De forma que a mudança chega, mesmo que a contragosto. Mais explicitamente na
segunda metade do século XIX, temos no Brasil uma onda de novas ideias, pensamentos

472
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

modernos, associados ao liberalismo político e econômico, fazendo romper com as ideias


tradicionais de outrora, possibilitando novas formas de relações sociais, ambientais,
políticas e culturais, trazendo à tona discursos e interesses, que manipulam e regem novas
práticas.
Como tìnhamos falado anteriormente, o perìodo entre 1845 e 1877 é de ―esplendor‖
no Estado do Ceará: um reconhecido desenvolvimento econômico derivado da produção
do algodão. Durante esses anos, a cidade de Fortaleza se desenvolve tendo como modelo as
sociedades capitalistas da Europa. Uma elite burguesa começou, nesse momento,
juntamente com alguns intelectuais e políticos, a elaborar projetos e mecanismos urbanos
que dessem à capital do Estado uma nova roupagem, de caráter moderno, com
equipamentos urbanos que estabelecessem a ideia do novo, se contrapondo ao antigo, que
agora era visto como atrasado e sinal de subdesenvolvimento. De acordo com Celeste
Cordeiro
Nosso Estado, ao seu jeito, viveu intensamente todo esse processo: políticos e
partidos, tribuna, imprensa, crescente circulação de ideias, agrupamentos
intelectuais, preocupação com a educação... Todo o burburinho transformador
não só ecoou aqui, como teve daqui uma contribuição importante, a qual pode
ser avaliada por uma série de variáveis: a quantidade de jornais circulando em
Fortaleza e no Ceará como um todo, bastante representativos das diversas
tendências ideológicas (liberais, católicos, maçons, republicanos etc), políticos
de estatura nacional como o senador Martiniano de Alencar, José de Alencar e o
senador Pompeu, intelectuais engajados do porte de Silva Bezerra, Rocha Lima e
Capistrano de Abreu, movimentos intelectuais atualizados com o pensamento
europeu como a academia Francesa... (CORDEIRO, 2004. p. 135).

Percebe-se, com a citação acima, que durante a segunda metade do século XIX, as
novas ideias advindas da Europa, tem um amplo apoio de intelectuais, escritores, políticos,
enfim, que fazem disseminar todo esse discurso da modernidade em meios diversos para
obter aceitação coletiva da sociedade. Todo esse discurso em torno do novo e do moderno,
traz consigo um aparato de saber científico que cria verdades e exerce poder sobre os
demais, ―uma espécie de pressão e poder de coerção sobre outros discursos‖
(FOUCAULT, 2012. p. 17). Essa produção imagética que buscou fabricar uma nova
sociedade e uma nova mentalidade, encontrou no final do século XIX o período mais
propício para as transformações que se queria efetivar.
Desse modo, as mudanças acontecem. O novo substitui o velho. As ruas tornam- se
mais largas, há passeios públicos, edifícios, praças arborizadas, enfim, equipamentos
modernos moldam uma nova cidade e pensamentos modernos criam uma nova civilização.
O discurso modelador, disciplinar, fabricador de boas condutas e de uma civilização

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

desejada, está sendo disseminado em diversas instituições. Os efeitos do poder se


estabelecem em torno da escola, do exército, da Igreja, da família, etc., meios de fácil
acesso no cotidiano da população.
Durante o período da estiagem de 1877, com todas as repercussões implicadas, o
que não se podia era desconstruir essa modernização que estava em processo na cidade de
Fortaleza.
Os milhares de migrantes que chegavam todos os dias, ocupando os espaços
citadinos, doentes, frágeis e sujos, eram motivo de preocupação por parte da elite e do
governo local. Os vícios dessa população pobre e preguiçosa – no olhar da elite – deviam
ser rapidamente reprimidos. Alguns comentários do Presidente Pedro Leão Veloso vão
nessa direção, nos cuidados que a população deve ter: ―É rápida a transição do pauperismo
à mendicidade, tanto mais fatal, quanto à sombra da miséria se oculta o vício proveniente
da indolência e preguiça, contra que se deve armar a sociedade‖ (VELOSO, 1881 apud
VIEIRA, 2002. p. 22).
As experiências dos retirantes levaram a perceber que a dor e o sofrimento destes
eram utilizados para fins de conseguir, por parte do Estado, assistência do governo central.
Diariamente os jornais locais e cartas do parlamento enviados para a capital do país,
denunciavam a calamidade ocasionada por tal fenômeno natural e pediam que o governo
assistisse essa população sofrida. Neves afirma
A transferência parcial da assistência paternalista exercida pelos coronéis para
uma assistência contraditoriamente paternalista exercida pelo Estado exigiu a
incorporação das áreas urbanas ao fenômeno da seca, colocando a população de
Fortaleza no ―olho do furacão‖. De fato, mesmo se uma ruptura do pacto
paternalista tenha acontecido já em 1877, pois que ―os homens pobres e os
escravos foram abandonados pelos coronéis-pais-patrões, rompendo o pacto
tradicional da lealdade e apadrinhamento‖, o Estado assume esta dívida com
todas as suas obrigações costumeiras [...] A ruptura do pacto, assim, não
representa uma ruptura do tecido social e a ordem baseada nos termos de
reciprocidade ainda permanece forte, exercendo pressões e estimulando atitudes
[...] O sertanejo percebe, ao mesmo tempo, que não é necessário chegar a um
estado profundo de miséria e inanição para procurar auxílio, inclusive porque
este estado o torna excessivamente fraco para organizar-se coletivamente ou
tomar qualquer atitude mais ousada; e o espaço privilegiado para este auxílio é a
cidade (NEVES, 2002. p. 101).

Sim, havia fome, doenças e muitas mortes, porém, esse saber era utilizado como
estratégia por parte dos representantes governamentais, da elite burguesa e intelectuais,
para adquirir verba e assistência, justificada a partir das agruras ocasionadas pela seca. No
entanto, esses recursos eram empregados no aformoseamento da capital cearense e

474
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

favorecimento de alguns fazendeiros – só com o passar de anos e ganhos de experiência, é


que os retirantes vão tirar isso ao seu favor. De acordo com José Olivenor
Ademais, é com base na miséria que se conserva o domínio desses políticos,
obedecendo sempre a um processo de recriação de novas formas de poder de
acordo com o fazer histórico. A polìtica de ―combate‖ à seca, termina reforçando
a própria estrutura política e econômica, cumprindo, dessa forma, o papel de
manter a dependência do povo à estrutura de poder local. (OLIVENOR, 2002. p.
62-63).

As cobranças feitas pela elite local, governantes e alguns intelectuais, tinham como
propósito manter a estrutura econômica e política. Os usos sobre os recursos que eram
destinados para resolver, ou mesmo diminuir, o sofrimento daqueles que de fato foram
prejudicados com danos e perdas de suas terras e foram obrigados a migrar, tiveram outra
função.
O Estado tinha a responsabilidade de socorrer a população emergente. O Império
destinava recursos para as províncias e estas, por sua vez, repassavam para os municípios.
No entanto, os fins para que foram estabelecidos tais recursos foram outros. A elite local,
justificando que era um erro dar esmolas, pois esta prática levava a ociosidade e
improdutividade daqueles, defendiam outras práticas e destino diferente aos recursos
imperiais, algo que desse retorno à sociedade.
Ora, a elite local não queria perder as relações de dependência arraigadas ainda na
estrutura clientelista, por outro lado, se queria disciplinar e controlar estes que
atormentavam a ordem pública, além do que, não poderia perder a oportunidade de
desenvolver a cidade, já que em períodos normais seria difícil arrecadar verbas para o
progresso desta região. O jornal O Retirante de 28 de outubro de 1877, citado em José
Olivenor, nos traz referências a como os periódicos da época apoiavam estas práticas de
benevolência dos estadistas, que utilizavam os recursos destinados aos ―flagelados da
seca‖, de forma produtiva para a sociedade, dando empregos sistemáticos e temporários
aos retirantes que se encontravam em frentes de trabalho
Com efeito, S. Excelência deixa a presidência depois de ter esbanjado mais de
setecentos contos de réis da verba de socorros públicos, sem ter conseguido
socorrer senão as comissões, os comissionados, as subcomissionadas e
protegidas. Em toda a Província não existe um só celeiro onde a indigência
mitigue a fome um dia se quer. Em compensação fica muita casa-farta, muita
grimpa erguida, com os despojos da miséria! (...) As obras públicas iniciadas
para dar trabalho a indigência foi, sem dúvida, uma ideia de S. Excelência capaz
de resultados fecundos: mas S. Excelência viu de braços cruzados, os
especuladores retalharem essa ideia generosa em seu proveito, se assim
podemos nos exprimir, sem ter a energia de embargar-lhes os passos. (O
RETIRANTE apud OLIVENOR, 2002. p. 62).

475
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Diante do exposto, podemos dizer também que a seca ajudou, a partir do discurso
que imprimiram sobre ela e das práticas que puseram a cabo com a verba destinada para
diminuir seu impacto, o desenvolvimento da cidade de Fortaleza, tornando-a uma cidade
modernizada.
Outro aspecto que aqui deve ser explorado, é o lado pedagógico das frentes de
trabalho. Controle social, disciplina, romper com a ociosidade e vícios da população
emergente e desenvolver o progresso, enfim, o ―trabalho dignifica o homem‖, dá-lhe
utilidade. Assim, ao invés de esmolar, a elite local manipula os recursos repassados pelo
Império, dando-lhes outro destino, ao mesmo tempo que mantém as antigas relações
patronais. Desse modo, Olivenor afirma
Portanto, fosse como medida de mero combate à seca, como necessidade de
disciplina social, ou mesmo como ideal de progresso material para a província,
pode-se dizer que a política assistencialista do Estado imperial, que assegurava a
todo brasileiro o direito de receber socorro em caso de calamidade pública, foi
rapidamente transformada pelas elites locais num instrumento de coerção ao
trabalho (Ibid. p. 64).

Tendo o apoio de boa parte dos citadinos e dos meios de comunicação da época –
todos temendo a mendicidade e com o pensamento no progresso –, esse propósito de retirar
das ruas de Fortaleza, corpos inúteis e improdutivos para o trabalho em prol do
desenvolvimento da cidade, deu um caráter de utilidade aos recursos adquiridos pelo
governo imperial, que ao invés de simplesmente esmolar os retirantes, incentivando a
ociosidade, preguiça e vadiagem, unia o útil ao agradável, trabalho e progresso, o que
poderia ser, também, ordem e progresso.
Os trabalhos eram diversos, desde que colaborassem em dois sentidos: 1) diminuir
o fluxo de pessoas ociosas em Fortaleza; 2) modernizar e civilizar a capital. Nesse sentido,
alguns dos trabalhos, como por exemplo, o aumento da estrada de ferro de Baturité,
englobava esses dois aspectos mais gerais. Ao mesmo tempo que levava à estrada de ferro
para novos caminhos, facilitando o transporte de pessoas e mercadorias, desse modo,
dando maior dinamicidade ao comércio, ao mesmo tempo que poderia levar o progresso
para outras cidades do interior do Estado, além, de fazer com que alguns desses
trabalhadores ficassem fora da capital, uma vez que esse tipo de trabalho lhes enviava para
outras localidades.
Outros trabalhos objetivavam manter a população nos seus próprios municípios,
fazendo com que o governo provincial criasse comissões de socorros, assim, boa parte da
população que migraria, trabalhavam em obras públicas de embelezamento, reformas,

476
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

estradas, açudes, enfim, evitando que mais retirantes chegassem à Fortaleza. De acordo
com Foucault
O momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma arte do
corpo humano, que visa não unicamente o aumento de suas habilidades, nem
tampouco aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que no
mesmo mecanismo o torna tanto mais obediente quanto é mais útil, e
inversamente. Forma-se então uma política das coerções que são um trabalho
sobre o corpo, uma manipulação calculada de seus elementos, de seus gestos, de
seus comportamentos. O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o
esquadrinha, o desarticula e o recompõe. Uma ―anatomia polìtica‖, que é
também igualmente uma ―mecânica do poder‖, está nascendo; ela define como
se pode ter domínio sobre o corpo dos outros, não simplesmente para que façam
o que se quer, mas para que operem como se quer, com as técnicas, segundo a
rapidez e a eficácia que se determina. A disciplina fabrica assim corpos
submissos e exercitados, corpos ―dóceis‖ (FOUCAULT, 2013. p. 133).

Tendo em vista essa perspectiva foucaultiana, o trabalho, as escolas, a Igreja, bem


como a família e outras instituições, estão alojados os discursos sobre como se deve agir na
e para a sociedade, sobretudo, buscando tornar o corpo dos outros úteis conforme o que se
planeja. Disciplinar e remodelar as ações e práticas cotidianas a partir de um modelo de
como se viver em sociedade, ganha ênfase nos meios de disseminação desses discursos e
na vigilância sobre os corpos. Como Foucault, entendemos que o poder está
descentralizado, inserido, permeado e fragmentado na sociedade e em instituições que dela
fazem parte.
Cada vez mais se fazia necessário controlar a multidão que chegava em Fortaleza.
Diminuir o fluxo de retirantes na cidade entra, também, como objetivo das obras
elaboradas pelo governo. Assim, alguns programas de combate à seca, visavam manter o
retirante no seu local de origem, impedindo-os que chegassem à Fortaleza.
Com a seca de 1915, uma nova prática de controle e disciplina sobre a população
que migrava para Fortaleza foi criada: o Campo de Concentração do Alagadiço, localizada
nas proximidades de Fortaleza. O termo Campo de Concentração tão conhecido durante e
após a segunda Guerra Mundial (1939 - 45) tem como característica a segregação, o
afastamento da sociedade de um determinado povo por outro, utilizando-se de um discurso
científico para justificar tal projeto de exclusão. O campo de concentração do Alagadiço
funcionou como um ambiente para aglomerar a população que chegava à Fortaleza por
conta da estiagem e que ocupavam os espaços públicos, tornando-se cada vez mais
indesejáveis para a população local. De acordo com Kênia Rios
Em 1932, a prática de manter a cidade dos ricos de Fortaleza afastada (ou
parcialmente afastada) da miséria concretizou-se em frentes de trabalho, em
políticas de emigração para outros Estados e na construção de locais para o
aprisionamento dos flagelados. Nessa seca, o poder público isolou parte dos

477
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

sertanejos em sete campos de concentração, distribuídos em lugares estratégicos


para garantir o encurralamento de um maior número de retirantes (RIOS, 2006,
p. 8).

A referida autora argumenta que as classes dominantes queriam impedir a invasão


dos retirantes na capital, e começava-se a pensar em repetir o feito de 1915, sendo que
agora fixando os retirantes no próprio sertão, dificultando cada vez mais a aproximação
destes à cidade de Fortaleza. Com isso houve a necessidade de fazê-los concentrados nos
espaços de mais tensão, ou seja, nas proximidades das estações de trem. O aprisionamento
dos retirantes é utilizado como estratégia para mantê-los afastados da cidade que se queria
bela e moderna, além de assegurar a mão-de-obra próxima ao latifúndio, para uma possível
retomada da produção de algodão, principal produto da pauta de exportação do Ceará.
Na seca de 1932, mais seis campos de concentração179 foram criados
estrategicamente nas proximidades das estações de trem onde haviam mais tensões devido
a grande aglomeração de pessoas que queriam migrar para a cidade rica. Esses campos
foram instituídos nas cidades de Crato, Quixeramobim, Cariús, Senador Pompeu, Ipú, além
de mais um em Fortaleza. Segundo Rios, os dois campos encontrados na capital eram
―expressivamente menores‖ que os demais, assim, a vigilância e outros tipos de exercìcios
de poder disciplinar se tornaram mais eficientes na capital. Sobre os campos de
concentração a historiadora explana
Os Campos de Concentração funcionavam como uma prisão. Os que lá
chegavam não podiam mais sair, ou melhor, só tinham permissão para se
deslocar quando eram convocados para o trabalho, como a construção de
estradas de ferro e açudes ou obras de ―melhoramento urbano‖ de Fortaleza ou
quando eram transferidos para outro campo. (RIOS, 2006, p. 55).

Desse modo, vemos que diversas estratégias foram criadas para garantir a
modernização da cidade, assegurar o projeto civilizador sobre a população, controlando,
disciplinando e remodelando a mesma. Era necessário manter a cidade limpa, diminuir o
fluxo de pessoas indesejáveis, tentando remodelá-las, reprimindo aspectos transgressores,
utilizando sempre o saber científico, evolucionista, dando credibilidade ao discurso
eugenista e criando vários meios de disseminação desse discurso.

REFERÊNCIAS

179
Ver ALBUQUERQUE FILHO, Ronald de Figueiredo e. Cidade, seca e campo de concentração: o início
da modernização em Crato, Ceará (1900 - 1933). 2015. 132 f. Dissertação (mestrado em história) –
Universidade Federal de Campina Grande. Campina Grande, Abril, 2015.

478
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. 5ª ed.,
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MENEZES, Edith Oliveira de; MORAIS, José Micaelson Lacerda. Seca no nordeste:
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. A seca e a cidade: a formação da pobreza urbana em Fortaleza (1880-
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OLIVENOR, José. “Metrópole da fome”: a cidade de Fortaleza na seca de 1877- 1879.


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1932. 2ª. ed, Fortaleza: Museu do Ceará/Secretaria da cultura e desporto do estado do
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SOUZA, Simone. Da “Revolução de 30” ao Estado Novo. SOUZA, Simone de (Orgs.).


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479
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Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais Tomaz Tadeu da Silva (Org.).
Stuart Hall; Kathryn Woodward. 7 ed. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.

480
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

SESSÃO COORDENADA “HISTÓRIA E QUESTÕES


ÉTNICO-RACIAIS”
COORDENADORES:
LEANDRO S. BULHÕES DE JESUS & FELIPE S. MAIOR CRUZ

A COR DA DEVOÇÃO: AFRICANIDADE E RELIGIOSIDADE NA CULTURA


ROMEIRA NO CARIRI CONTEMPORÂNEO - DA AUTOIDENTIFICAÇÃO
RACIAL AOS TRÂNSITOS DEVOCIONAIS

MARIA TELVIRA DA CONCEIÇÃO


URCA
professoratelvira @gmail.com

JADE LUIZA ANDRADE FERRAZ


URCA
[email protected]

RESUMO

O objetivo deste trabalho está pautado na busca para compreender em que medida os
elementos étnico-raciais, sobretudo no tocante à identidade e as africanidades, marcam
as práticas que constituem as singularidades da cultura romeira no Cariri cearense. A
metodologia de levantamento de dados tomou como base a aplicação de questionários
semiestruturados e entrevistas resultantes da pesquisa homônima, em andamento desde
maio de 2016. Trata-se de uma pesquisa ancorada teoricamente em referências dos
estudos pós-coloniais, cuja metodologia transita entre a pesquisa social e histórica, com
enfoques e acento no aspecto cultural e étnico.
Palavras-chave: Religiosidade; Identidade étnico-racial; Africanidade.

481
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

INTRODUÇÃO

A região do Cariri cearense é marcada profundamente pela dimensão religiosa


composta por uma série de expressões e práticas, sobretudo no tocante ao catolicismo
popular; entre as quais, asa renovações (Souza, 2000), as irmandades de penitentes
(Carvalho, 2011), as festas e procissões e homenagem aos santos católicos, as
peregrinações e devoção ao Pe. Cícero Romão (Ramos, 1996, 2012), sob as quais a
cidade de Juazeiro do Norte edificou-se desde o século XIX até os dias atuais.
Juazeiro do Norte, centro do polo religioso caririense, recebe, por ano, cerca de
dois milhões de peregrinos. As grandes romarias de Juazeiro estendem-se por todo o
ano e são compostas pela Romaria de Nossa Senhora das Dores, a padroeira da cidade,
entre os dias 12 e 15 de Setembro; Romaria de Finados, ou da Esperança, nos dias 1 e 2
de Novembro; e o ciclo se fecha no início do ano seguinte, nos dias 1 e 2 de Fevereiro,
com a romaria de Nossa Senhora das Candeias. Também é possível destacar outras
peregrinações e festejos, como Natal e Festa de Reis (24 de dezembro a 06 de janeiro);
São Sebastião (20de janeiro); Nascimento do Padre Cícero (24 de março); Morte /
Passagem do Padre Cícero (20 de julho) e São Francisco (04 de outubro).
As confluências neste cenário religioso, constituíram-se num primeiro momento
nas relações históricas do processo colonizatório do Cariri no século XVIII, onde
conviveram (não sem exercício de dominação colonizador) os kariris, nativos da região;
os colonizadores, vindos principalmente da Bahia, Pernambuco e Sergipe; e africanos
escravizados (Girão, 1989) 180. Assim, indígenas e africanos, a partir de suas respectivas
formações culturais, tiveram papel fundamental na formação da cultura religiosa
caririense.
Mais tarde, no século XIX após o processo de aldeamento e da formação de Vilas
no Cariri, adentra no cenário político e religioso de Tabuleiro Grande (hoje, Juazeiro do
Norte), o Padre Cícero Romão Batista, considerado atencioso, conselheiro e dedicado
aos mais pobres, atraiu a simpatia de muitos fiéis, fator fundamental para o crescimento
e desenvolvimento da Vila de Joaseiro.

180
Sobre o processo de colonização do Cariri ver: ARAÚJO, (Pe.) Antônio Gomes de. O povoamento do
Cariri. Crato (CE), Faculdade de Filosofia do Crato, 1973. (Estudos e Pesquisas, VI). MACEDO,
Joaryvar. Povoamento e povoadores do Cariri Cearense. Fortaleza, SECULT, 1985. PINHEIRO, Irineu.
Efemérides do Cariri. Fortaleza, 1963. O Cariri: seu descobrimento, povoamento, costumes. Fortaleza,
1950. O Cariri: seu descobrimento, povoamento, costumes. Fortaleza, 1950.

482
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

O ―Padrinho Ciço‖ atraiu ainda mais a atenção de fiéis e peregrinos após o


conhecimento público do fenômeno chamado de ―Milagre da hóstia‖, quando em 1889,
enquanto o Padre Cícero comungava para a população local, na Capela de Nossa
Senhora das Dores (hoje, igreja matriz de Juazeiro), a hóstia consagrada pelo Padre
Cícero transformou-se em sangue na boca da Beata Maria de Araújo, fenômeno este que
voltou a se repetir em consagrações posteriores. Este fenômeno marcou
imprescindivelmente a religiosidade em Joaseiro, e atraiu fiéis de todo o Nordeste. O
Padre Cícero e a beata Maria de Araújo sofreram diversas formas de perseguição da
autoridade maior da Igreja Católica no Ceará, o bispo Dom Joaquim José Viana181,
porém, a fé do povo no ―milagre da hóstia‖ resistiu às condenações da Igreja e Juazeiro
permanece como um dos principais centros de romaria do Brasil, onde transitam
romeiros de todo o Brasil, e principalmente da região Nordeste. Assim, como indica
Oliveira (1985), a religiosidade popular de matriz católica constitui-se numa produção
religiosa dos leigos, sobretudo das classes populares, em oposição ―à produção religiosa
de especialistas que sistematizam as representações e práticas religiosas, produzindo
doutrinas e rituais explicitamente formulados‖.
Além da forte presença do catolicismo, atualmente, Juazeiro também conta com a
presença dos terreiros praticantes do candomblé (Domingos, 2011) e umbanda.
Anualmente acontece a Caminhada Pela Liberdade Religiosa, organizada pelo Ilê Axé
Omindandereci e Mutalegi, que cruza a rua central da cidade pelo direito à liberdade de
expressão religiosa, e já se encontra em sua VIII edição este ano182. Porém, é com muito
pesar e preocupação que registramos, em Setembro deste ano, a invasão e ameaças a um
terreiro de religiosidade de matriz africana da cidade por um grupo religioso cristão 183.
Decerto, a religiosidade popular em Juazeiro do Norte reúne uma série de
confluências históricas, étnicas e culturais de camadas tão diversificadas e se mostra
como um campo privilegiado para reflexões acerca das problemáticas étnico-raciais
contemporâneas. É neste sentido que, objetivando compreender como se configura a
dimensão da presença dos afro-brasileiros e de seus universos simbólicos na cultura
romeira contemporânea no Cariri (sobretudo na devoção ao Pe. Cícero em Juazeiro do
181
Autores consultados: Ralph Della Cava. Milagre em Joaseiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.
Daniel
Walker. Padre Cícero e Juazeiro do Norte. Juazeiro do Norte: PMJN, 2009.
182
Ler mais sobre a Caminhada Pela Liberdade Religiosa através do link:
http://blogs.diariodonordeste.com.br/cariri/cidades/viii-caminhada-pela-liberdade-religiosa-acontece-a-
partir-das-15-horas-em-juazeiro-do-norte/
183
Ler mais em https://www.opovo.com.br/jornal/opiniao/2017/09/hilario-ferreira-sobre-racismo-
religioso.html

483
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Norte). Neste cenário e contexto é que nasceu a proposta da pesquisa ―A COR DA


DEVOÇÃO: africanidade e religiosidade na cultura romeira no Cariri
Contemporâneo‖184, de autoria de Dra. Maria Telvira da Conceição, da qual os dados
parciais deste trabalho foram extraídos.
Para este trabalho, partimos das seguintes inquietações: Qual a dimensão da
presença física e simbólica da cultura afro-brasileira nas romarias de Juazeiro do Norte?
Em que medida esses elementos permeiam a tradição religiosa do Cariri? É possível
reunir e conciliar no neste mesmo território a tradição religiosa de matriz católica e, em
seus roteiros e artefatos, as percepções e práticas das religiões de matriz africana?

COR, IDENTIDADE RACIAL E TRADIÇÃO ROMEIRA EM JUAZEIRO DO


NORTE

As atividades da pesquisa que fundamenta este trabalho tiveram início no mês de


maio de 2016. Em setembro do mesmo ano - após as etapas iniciais de seleção e
formação teórica de bolsistas da pesquisa - bem como a orientação de seus professores
colaboradores185, tiveram início as atividades de campo durante a Romaria de Nossa
Senhora das Dores ( também chamada de ―Romaria de Mãe das Dores) em Juazeiro do
Norte, cuja principal concentração de romeiros acontece na Basílica Santuário de Nossa
Senhora das Dores. Cerca de 400 mil peregrinos visitam Juazeiro do Norte durante esta
romaria186.
Cientes do universo e objetivo da pesquisa, consideramos a relevância de uma
abordagem que transita entre a pesquisa social e histórica, voltada para questões
culturais, indenitárias e étnico-raciais. Ao pensar nestas questões inseridas no território
marcado pela religiosidade, que é Juazeiro do Norte, lembramos a crítica de Laura de
Mello e Souza a uma ideia de religiosidade que se desvincula de aspectos étnico:
Ora, o que parece despercebida é a característica básica da nossa
religiosidade de então: justamente o seu caráter especificamente
colonial. Branca, negra, indígena, refundiu espiritualidades diversas
num todo absolutamente específico e simultaneamente multifacetado
(Sousa, 1986, p. 115).

184
Aprovada no Edital FUNCAP N° 09/2015-BPI.
185
Os colaboradores dessa pesquisa, são os professores doutores: Cícera Nunes/DE Urca, Darlan Reis
Junior/DH Urca e Nirlene Nepomuceno/CECAFRO/Puc SP.
186
Dados extraídos dos registros oficiais da Basílica Santuário Nossa Senhora das Dores, que podem ser
encontrados, também, através do link: http://maedasdoresjuazeiro.com/basilica/romarias

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Nosso estudo também está situado na perspectiva da oralidade, pois os seus


principais interlocutores são os romeiros (ou que nesta condição de identificam) do
Padre Cícero e de Nossa Senhora das Dores. Que falam sobre suas próprias vivências e
percepções tanto da perspectiva da devoção quanto do pertencimento étnico. Assim, a
metodologia da pesquisa de campo consiste na aplicação de questionários aos devotos
em atividades de romaria e a coleta de dados audiovisuais através de entrevistas
autorizadas pelos romeiros, além dos espaços de grande fluxo de devotos: os roteiros de
fé. Estes dados estão, no presente momento, sendo analisados e catalogados com a
finalidade de compor o acervo audiovisual e imagético da pesquisa, que em sua última
etapa farão parte do acervo digital da pesquisa (disponível em site) e a exposição
itinerária A Cor da Devoção, idealizada durante a elaboração do projeto desta pesquisa.
O questionário aplicado durante as romarias é subdividido em três eixos:
identificação do interlocutor (nome, gênero, procedência geográfica, escolaridade,
profissão e renda familiar); reconhecimento da devoção (desde quando o interlocutor
participa das romarias, quais os lugares que visita, quais artefatos e objetos adquiridos
por eles que lembram sua fé, se o interlocutor e/ou sua família já recorreram a outra
religião fora da matriz católica); e o eixo central: a identificação étnico-racial do
romeiros, no qual buscamos compreender as percepções dos interlocutores acerca de:
sua cor e identidade étnico-racial; da presença de pessoas negras nos lugares onde
vivem os interlocutores; das relações familiares dos interlocutores com pessoas negras;
da percepção de situações em que o racismo se faça presente durante as romarias.
Dentre os 475 entrevistas através da aplicação de questionários realizadas durante
a Romaria de Nossa Senhora das Dores de 2016 187, 441 conseguem perceber as pessoas
negras no grupo social do lugar onde vivem; e deste contingente, 346 pessoas
afirmaram ter algum grau de parentesco com pessoas negras. Do total de entrevistados,
73% se consideram negros ou morenos, conforme ilustração no gráfico subsequente:

Gráfico 02 – Identificação racial dos romeiros – Romaria de N.S das Dores

187
Em relação ao cálculo da amostra estamos utilizando os dados do contingente das pessoas que
frequentam as romarias, coletados pela Sala de informação do romeiro, juazeiro do Norte. E como
referência, os dados mais recentes que são os de 2015. Segundo os referidos dados, na romaria de
setembro de 2015, solicitaram registro 39.487 (trinta e nove mil, quatrocentos e oitenta e sete)
romeiros. Os dados contam com margem de 90% de confiança.

485
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Identificação Racial dos Romeiros

TOTAL 475 100%


4 1%
OUTRAS RESPOSTAS 20 4%
16 3%
MORENO / PARDO 261 55%
97 20%
BRANCO 77 16%

100% 100% 100%


Série1 Série2

Fonte: Dados da Pesquisa ―A cor da Devoção‖ - Setembro de 2016.


No contexto brasileiro, na qual a mestiçagem consiste num processo ideológico de
branqueamento e marginalização da identidade afro-braiseira, considerarmos a
ambiguidade da ―fronteira‖ entre a autoidenticação dos romeiros enquanto negros e/ou
pardos/morenos, conforme defende Munanga:
A mestiçagem tanto biológica quanto cultural teria entre outras
consequências a destruição da identidade racial étnica dos grupos
dominados, ou seja, o etnocídio. Por isso, a mestiçagem como etapa
transitória do processo de branqueamento, constitui peça central da
ideologia racial brasileira. (Munanga, 1999, 110)

Neste sentido, podemos dizer que a maioria dos interlocutores estão inseridos num
mesmo grande grupo étnico.
Em julho da ano de 2017, durante a Romaria de Morte/‖Passagem‖ do Padre
Cícero, 221 romeiros foram entrevistados. Dentre estes, 185 afirmam perceber a
presença de pessoas negras na sociedade ao seu entorno; 147 responderam ―sim‖
quando indagados sobre a presença de pessoas negras na família; 30 pessoas se
autodeclaram negras e 114 pardas. Nos chama a atenção o fato de que 11 pessoas
relataram que já se sentiram incomodados pela sua cor (autodeclarados pretos e pardos).
Do total de entrevistados nesta romaria, 38 pessoas perceberam ou vivenciaram
situações discriminatórias em relação à cor da pele (negra) em Juazeiro do Norte,
durante as romarias. Um dos interlocutores nos conta: ―Um dia fui comprar um relógio
para minha esposa no centro de Juazeiro. Olhei na vitrine, namorei com ele, mas não
me atenderam. Eu reclamei com gerente, disse com minha língua grande: Essa loja não
atende negro!”188. Entre os 221 interlocutores, 17 afirmaram já terem vivenciado

188
Trecho da entrevista cedido por interlocutor durante a aplicação de questionários realizada na Romaria
de Morte do Pe. Cícero de 2017, em Juazeiro do Norte. A entrevista integra o banco de dados da pesquisa
―A COR DA DEVOÇÃO: Africanidade e Religiosidade na cultura romeira no Cariri contemporâneo‖. O
nome do interlocutor foi preservado, como acordado durante o momento da entrevista.

486
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

pessoalmente situações de preconceito racial no lugar onde vivem. Uma interlocutora


nos relatou: ―O povo sempre chama de cabelo de bruxa, negra...”189.
Observando os dados apresentados acima, podemos aferir que, a maioria (ou parte
numericamente significativa) dos romeiros que atualmente frequentam as atividades de
romaria de Juazeiro do Norte se identificam ou expressamente se declaram negros e/ou
morenos/pardos e compartilham de experiências e vivências que semelhantes. Nesta
perspectiva, somos levados a travar um diálogo direto com os conceitos de cor e
identidade racial, expressos aqui em sua presença física através do quantitativo de
interlocutores romeiros e seus relatos.
É a partir da dimensão física da presença de afro-brasileiros nas romarias que
consideramos adentrar nos universos simbólicos das africanidades que perpassam a
cultura romeira no Cariri contemporâneo.

AFRICANIDADES, RELIGIOSIDADE E RESISTÊNCIA NA CONSTRUÇÃO


DO “TERRITÓRIO SAGRADO” DE JUAZEIRO DO NORTE

Pensar em africanidades é o ponto de partida para transitar pelo ―território


sagrado‖ (Ramos, 2012) de Juazeiro do Norte na busca de compreender a dimensão
simbólica da presença de afro-brasileiros nas romarias. Assim, entendemos o termo de
acordo com a definição de Petronilha Gonçalves (2011), que consiste na qual
a expressão africanidades brasileiras refere-se às raízes da cultura
brasileira que têm origem africana. Dizendo de outra forma, queremos
nos reportar ao modo de ser, de viver, de organizar suas lutas, próprio
dos negros brasileiros e, de outro lado, às marcas da cultura africana
que, independetemente da origem étnica de cada brasileiro, fazem
parte do seu dia-a-dia (Gonçalves, 2011).

Em Setembro de 2017, durante a romaria de Nossa Senhora das Dores, nosso foco
metodológico diferenciou-se da proposta de aplicação de questionários do ano anterior:
nos interessou, no momento, a busca de registrar relatos audiovisuais dos devotos a
partir de questões voltadas para as percepções e experiências do racismo e o trânsito e
configurações da religiosidade partindo das romarias para a experiência pessoal dos

189
Trecho da entrevista cedido por interlocutora durante a aplicação de questionários realizada na
Romaria de Morte do Pe. Cícero de 2017, em Juazeiro do Norte. A entrevista integra o banco de dados da
pesquisa ―A COR DA DEVOÇÃO: Africanidade e Religiosidade na cultura romeira no Cariri
contemporâneo‖. O nome da interlocutora foi preservado, como acordado durante o momento da
entrevista.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

interlocutores. Para tanto, elaboramos um roteiro de entrevista que parte das seguintes
indagações:

I-Racismo: percepção e experiência do racismo:


1) Como se considera racialmente: acha que pertence algum grupo racial? Qual?
E por quê?
2) Considera que há racismo no Brasil, no seu local de convivência, na sua
família? Por quê?
3) Se presenciou algum fato, situação, episodio, xingamento racista até o
presente?
4) Alguma vez já se viu praticando algum tipo de racismo (traduzir essa pergunta
dependendo do entrevistado?)
5) O racismo contra as pessoas negras lhe incomoda? Por quê?
6) O que o Sr./Sra. pensa sobre a situação, a vida do povo negro no Estado, no
lugar onde mora?
II – Religiosidades: trânsitos e configurações
1) O que motivou o Sr./Sra. ter fé no Pe. Cícero?
2) Conte como é que você vive sua fé no Pe. Cícero no seu dia-a-dia?
3) Se quando vem a juazeiro percebe muitas pessoas negras como devotas do Pe.
Cícero
4) Tem conhecimento, lá onde o Sr./Sra. mora ou mesmo aqui em Juazeiro, de
outras religiões? Quais?
5) Conhece no presente ou no passado alguém que pratica candomblé, umbanda?
Considera que essas crenças também são religiões? Por quê?
6) O Sr./Sra. senhora conviveria sem problema se tivesse alguém da família,
amigos ou vizinhos que praticam candomblé ou umbanda? Por quê?
7) O Sr./Sra. considera possível ser devoto do Pe. Cícero e também de outras
religiões como, por exemplo, do candomblé e da umbanda? Sim ( ) Não ( ) Por que em
qualquer uma das respostas.
8) Sabe cantar algum bendito ou alguma reza que o Sr./Sra. costuma recitar no
seu dia a dia? Poderia cantar ou recitar para ouvirmos?
9) Costuma usar o terço ou outro assessório religioso. Qual? Por que costuma
usar este assessório?

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Dialogar sobre tais questões não foi uma tarefa fácil, da primeira à última
entrevista, pois é preciso pensar na delicadeza que envolve abordar questões que
permeiam o pertencimento étnico-racial e a religiosidade de matriz africana cientes de
todos os estigmas e processos de despistes que esta carrega em sua formação histórica
na sociedade brasileira; como nos indica Sodré,
a formação da sociedade brasileira, iniciada no século XVI, foi um
processo de agrupamento, num vasto território a se conquistar, de
elementos americanos (indígenas), europeus (os colonizadores
portugueses) e africanos (escravos negros, trazidos principalmente da
Costa Ocidental da África. No mesmo campo ideológico cristão do
colonizador, fixaram-se as organizações hierárquicas, formas
religiosas, concepções estéticas, relações míticas, música, costumes,
ritos, característicos dos diversos grupos negros. (Sodré, 2005, p. 90)
Depois de cinco dias de intenso fluxo e ritmo de romaria e de pouco mais de vinte
entrevistas, já quase vencidas pelo cansaço, entrevistamos uma interlocutora em
atividade, que para nós, sintetiza em seus relatos o objetivo central da pesquisa em
relação à busca de perceber as africanidades que presentes na romaria. Dona Ana, ou
Noca como prefere, é uma mulher de 89 anos que se autodeclara negra, nordestina,
integrante de uma roda de capoeira, devota do Padre Cícero e, depois de um alguns
minutos de entrevista, nos relatou abertamente: é mãe de santo e pratica o candomblé
desde a adolescência190.
Só soubemos que Ana é mãe de santo durante a realização da entrevista, pois
durante a abordagem para a gravação usamos o mesmo critério para a seleção de
possíveis interlocutores: pessoas em atividade de romaria que estivessem disponíveis
para dar o seu relato pessoa e autorizassem o uso do material coletado durante a
entrevista (vídeo, áudio e fotografia) para os fins acadêmicos da pesquisa. No momento
de abordagem, a interlocutora estava presente na reunião das três, idealizada pela Irmã
Anete, um momento que durante os dias de romaria, às 15 hs da tarde. A reunião das
Três é um momento da programação das romarias no qual os romeiros pedem orações,
cantam benditos e fazem o registro de suas romarias no microfone aberto ao público.
Durante a entrevista, quando indagada sobre como era possível conciliar as
obrigações do candomblé à fé no Padre Cícero e às atividades de romaria, Ana nos
respondeu: ―Não me atrapalhou, nem me atrapalha. Ao contrário, na minha fé no meu
Padim, Padim Ciço eu me sinto com força e realizada em todas as minhas dificuldades.

190
A entrevista realizada com Ana, com sua autorização para divulgação e menção ao seu nome, através
da assinatura do termo de autorização do uso de imagem, compõe o acervo audiovisual da pesquisa ―A
COR DA DEVOÇÃO: Africanidade e religiosidade na cultura romeira no Cariri contemporâneo‖,
aprovada no Edital FUNCAP N° 09/2015-BPI.

489
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Agora mesmo eu tô passando grandississíssima, mas a fé tá tão grande, tá tão grande


que eu sei que vou superar os contratempos”. A interlocutora nos disse rezar o terço
(expressão da religiosidade católica) e fazer as obrigações do candomblé.
Perguntamos para a interlocutora, também, quais os elementos e santos da religião
católica presentes no seu local de ritual, de expressividade de sua fé; Ana nos responde:
―No meu peji tem Santa Bárbara... primeiro tem o meu Padrinho Ciço, tenho Santa
Bárbara, tenho São Francisco. Olhe, é... São Gerônimo que o protetor do Pai Xangô;
São Jorge, que é o protetor de Ogum; Santa Bárbara, que é protetora de Minha Mãe
Iansã; Nossa Senhora da Conceição é protetora de Iemanjá; [...] Pai Joaquim que é o
protetor dos Preto Velhos. Tudo isso tem dentro do meu peji.”
Dentro do processo histórico e cultural de tangenciamento do que Munanga
(1999) chama de ―signos culturais da diáspora‖, que se expressam também no campo da
religiosidade através de tais associações presentes nos relatos da interlocutora, a
resistência das africanidades na cultura afro-brasileira se dá através do que Glissant
(2005) entende como ―rastros, resìduos‖ da cultura de origem africana no Brasil.
Conforme afirma o autor,
Os africanos, vítimas do tráfico para as Américas, transportam
consigo para além da dimensão das Águas o rastro/resíduo de seus
deuses, de seus costumes, de suas linguagens. Confrontados
implacável desordem do colono, eles conheceram essa genialidade,
atada aos sofrimentos que suportam, de fertilizar esses
rastros/resíduos, criando, melhor do que sínteses, resultante das quais
adquiriram os segredos. (Glissant, 2005, p. 83-84)

Quando indagada sobre a percepção e experiência pessoal do racismo na


sociedade brasileira, a interlocutora responde: “Na religião [...] no candomblé, pra ter
mais expressão, tanto tem branco como tem negro. Tanto tem branco como tem negro.
E tem brancos que também aceitam e tem negros que também que não querem aceitar.
Fica a cargo [...] de quem vela.”
A partir do relatos de Ana, nos quais nos centramos neste trabalho, e de outros
interlocutores durante a Romaria de Nossa Senhora das Dores de 2017 é possível
afirmar que as africanidades e as expressões das religiões de matriz africana estão
também presentes na cultura romeira do sul cearense - território de tradição religiosa de
matriz católica. Estas práticas e percepções não ―só‖ constituem parte significativa deste
―território sagrado‖ como também, originárias de camadas populares, numa produção
religiosa dos leigos, se opõem ―à produção religiosa de especialistas que sistematizam

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

as representações e práticas religiosas‖ (Oliveira, 1985), constituindo, assim, uma frente


de resistência das africanidades dentro do campo da religiosidade vigente na cultura
romeira em Juazeiro do Norte.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A relevância de pautarmos o âmbito da presença de romeiros que se declaram


inseridos no grupo étnico de afro-brasileiros e a preocupação de identificar e valorizar
tal presença num campo quanto as romarias, está ancorada nas reinvindicações
históricas dos afro-brasileiros construída ao longo das décadas no Brasil, sobretudo nos
movimentos negros brasileiros existentes desde o século XIX.
No Ceará como um todo, somando uma população de 61,88% que se
autodeclaram pardos, e 4,64% de pretos. Desta forma, trata-se de uma região bastante
expressiva em relação ao contingente de afro-brasileiros, e que dessa forma se
identificam. Além disso, conforme os dados do último senso do IBGE em 2010, a
região do Cariri cearense é ―a Região que mais concentra a população negra‖, o que nos
dá margem para pensarmos, também, nos seus universos simbólicos e como estes se
expressão no âmbito da religiosidade no Cariri.
Conforme foi apresentado neste trabalho, 73% dos romeiros que foram abordados
por ocasião da Romaria de Mãe das Dores que se enquadraram no grupo étnico-racial de
negros e morenos/pardos, levando em consideração a margem de acerto de 90% da
pesquisa e as devidas proporções de cada contingente, os dados aqui apresentados
ultrapassam os dados do último censo do IBGE de 2010, em que 7,6% se
autodeclararam preto e 43,1%, moreno, totalizando 50,7% da população brasileira.
A pesquisa no qual este trabalho esta ancorado ainda está em processo de
realização, tornando impossível tratar os dados aqui apresentados como definitivamente
concluídos. A finalização da pesquisa - incluindo tabulação de dados, apresentação de
gráficos, transcrição de depoimentos dos interlocutores, apresentação de trabalhos,
divulgação dos dados em acervo digital e a exposição itinerante – está prevista para
maio de 2018.

491
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

REFERÊNCIAS

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QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: A


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492
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

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SODRÉ, Muniz. A verdade seduzida – por um conceito de cultura no Brasil. Francisco


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493
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

“O LADO DE CIMA DA CABEÇA”:


IDENTIDADE NEGRA E CINEMA NA SALA DE AULA

AMANAYARA RAQUEL DE SOUSA FERREIRA


UFCG/CFP
[email protected]

ORIENTADORA: PROFA. DRA. ANA RITA UHLE


UFCG/CFP
E-mail: [email protected]

RESUMO

O presente trabalho tem como objetivo problematizar a questão da identidade negra no


espaço escolar, tendo em vista o contexto contemporâneo em que se tem uma
legislação, a Lei 10.639/03, que teoricamente assegura o tratamento nas escolas de
educação básica dos temas relacionados às questões sobre a História e Cultura africana
e afro-brasileira. Nessa perspectiva, também pretendemos realizar uma análise crítica do
vídeo-documentário ―O lado de cima da cabeça‖ de Naira Évine Soares (2014) e
discutir a partir do mesmo a inserção do cinema em sala de aula e a abordagem desse
tipo de tema (a identidade negra) com esse recurso. Para tanto, dispomos da análise de
fontes bibliográficas e da fonte audiovisual que é o referido documentário. Apoiamo-
nos nas discussões de Kabengele Munanga (2005) e Marcos Napolitano (2013).
Palavras-chave: Identidade negra; Educação; Cinema.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho foi inspirado nas discussões desenvolvidas na disciplina


―Fundamentos e Questões em Educação‖ ministrada pela professora Ana Rita Uhle no
Curso de Licenciatura em História do Centro de Formação de Professores da
Universidade Federal de Campina Grande. Durante o curso da referida disciplina um
dos temas discutidos foi o ensino de história e cultura afro-brasileiras o qual foi
escolhido por alguns discentes para a produção de uma proposta de plano de aula ou de
oficina, tendo como foco a aplicação em turmas de educação básica, além do plano
também foram produzidos ensaios que poderiam ter a mesma temática. Considerando
essa trajetória, nosso artigo parte das reflexões iniciais desenvolvidas no ensaio
intitulado ―Olha o cabelo dela/dele: identidade negra, preconceito e recurso audiovisual
em sala de aula‖ por mim produzido na mencionada disciplina.

494
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Assim, metodologicamente o trabalho dispõe primeiramente de análises


bibliográficas no sentido de perceber através de determinadas produções acadêmicas
sobre a identidade negra, a escola e a lei 10.639/03 como estas trazem esses temas e
como os relacionam, tendo em vista os conceitos utilizados e a possibilidade de diálogo
com as nossas ideias, entre esses textos estão principalmente ―Educação e identidade
negra‖ de Nilma Lino Gomes (2012) e ―Superando o racismo na escola‖ de Kabengele
Munanga (2005).
Em um segundo momento, realizamos uma análise crítica interpretativa do
documentário ―O lado de cima da cabeça‖ (2014) considerando seus elementos técnicos
como cinema, seu lugar de produção e seus aspectos temáticos e discursivos. E a partir
das questões colocadas por Marcos Napolitano (2013) tentamos refletir e dar sugestões
quanto à utilização do cinema como estratégia para o ensino dos temas referentes à
história e cultura afro-brasileira em sala de aula através do documentário analisado.
Em síntese, as discussões que aqui propomos giram em torno de três pontos
principais: as relações entre identidade negra e o espaço escolar, tendo em vista a
realidade existente a partir da lei 10.639/03; a análise do documentário ―O lado de cima
da cabeça‖, percebendo como os aspectos da identidade negra são apresentados e
discutidos na produção; e o desenvolvimento da sugestão do trabalho em sala de aula
com o já mencionado documentário.

PROBLEMATIZANDO A IDENTIDADE NEGRA NO ESPAÇO ESCOLAR À


LUZ DO CONTEXTO DA LEI 10.639/03

Entendemos que a formação da identidade negra, como também outros tipos de


identidade, não se dão apenas no universo da educação instituída no espaço escolar,
entretanto, pretendemos pensar aqui sobre as relações entre essa identidade
especificamente no meio escolar, considerando as implicações que se constituem neste
próprio espaço quanto à identidade negra, bem como o significado da existência da lei
10.639/03 a qual assegura a obrigatoriedade do ensino dos temas de História e Cultura
Africana e Afro-brasileira em todos os níveis da educação básica no Brasil.
Nessa perspectiva, devemos considerar a escola como um espaço que pode com
diversas posturas exercer influências sobre a identidade negra de acordo com as

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

questões ideológicas educacionais adotadas e também com as questões sociais e


culturais embebem a própria escola e os constituintes da mesma. Sobre este assunto
dialogamos com Nilma Lino Gomes (2012) no sentido de que:
A escola pode ser considerada (...) como um dos espaços que
interferem na construção da identidade negra. O olhar lançado sobre o
negro e sua cultura, no interior da escola, tanto pode valorizar
identidades e diferenças quanto pode estigmatizá-las, discriminá-las,
segregá-las e até mesmo negá-las (GOMES, N.L., 2012, p. 03).

Dessa forma, tendo consciência do eurocentrismo arraigado na nossa cultura


educacional, do racismo e de estereótipos alimentados pela nossa sociedade, podemos
considerar que o espaço escolar em seus múltiplos elementos muito mais promove a
estigmatização e a discriminação do negro e de sua identidade, do que os valoriza.
Alguns desses elementos que se inserem na escola e que demonstram de forma
gritante essa estigmatização são os livros didáticos e a própria literatura infantil (como
as ―cantigas de niná‖, por exemplo), os quais Ana Célia da Silva discute em seu texto
―A desconstrução da discriminação no livro didático‖ presente no livro ―Superando o
racismo na Escola‖ (2005) organizado por Kabengele Munanga, que aliás é uma
produção toda voltada para os debates mais incisivos sobre esses temas e para sugestões
teóricas e práticas de como o docente principalmente, pode agir de forma diferente
frente ao racismo e a discriminação no ensino e na escola como um todo. A autora
mostra em seu texto como a discriminação está presente nesses materiais veiculados nas
escolas, estereótipos como o de incompetência, feio, sujo e mau atribuídos ao negro são
criticados e discutidos, assim como sugere alternativas para a ação de romper com essa
realidade.
Essas questões não estão restritas apenas aos materiais didáticos utilizados nas
escolas, mas também nas relações estabelecidas entre os membros que compõem esse
espaço e as formas de tratamento existentes da história, da cultura e do negro em si, que
por sua vez estão relacionadas essencialmente à ausência de discussão desses temas na
escola, o negro aparecendo na História do Brasil e em outras matérias apenas como
escravo, tendo suas contribuições para os aspectos históricos e culturais brasileiros
relegadas.
Contudo, é importante ressaltar que houve e há uma ativa e incisiva luta negra
contra os preconceitos de um modo geral sofridos por seu grupo social, como também
no âmbito da educação. Já no período colonial brasileiro existiram formas de resistência

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

negra que atuaram e atuam desde as esferas políticas e sociais até mesmo as culturais e
simbólicas, a exemplos contemporâneos dessa resistência temos a organização de
comunidades quilombolas remanescentes e a valorização e afirmação da identidade
negra.
Em parte, como resultado dessa luta podemos considerar a tramitação e a
aprovação da lei 10.639/03 que como já mencionado, obriga o ensino das temáticas
referentes à História e Cultura Africanas e Afro-brasileiras em escolas públicas e
privadas. De acordo com Gisele Karin de Moraes (2009), o chamado Movimento Negro
Unificado, que se firmou na década de 1970, desde essa época realizando importantes
ações quanto à luta contra o racismo e a favor de direitos iguais para os negros, interviu
significativamente para reunir, debater e levar propostas ao Senado Federal por meio de
seus representantes para conseguir incluir de alguma forma esses temas nas escolas,
considerando essa ação como um primeiro e imprescindível passo para uma educação
resistente ao racismo.
Não há como negar o sentido e a importância da sanção da referida lei, tendo em
vista que significa não é só a efetivação de objetivos de luta de movimentos sociais
negros, mas também interferências estatais na educação em favor de no mínimo na
oficialidade se pretender uma educação contra os preconceitos e o racismo. Porém,
sabemos que apenas a obrigatoriedade desse ensino não o faz se realizar
verdadeiramente na prática, as realidades escolares são especificas e além do currículo
oficial há um currículo oculto que se traduz no que ocorre cotidianamente na escola, na
sala de aula. Dessa forma, é necessário que observemos e reflitamos sobre a real
possibilidade dessas temáticas serem colocadas em prática no ensino e se os
professores, talvez nesse momento sendo os atores principais, são formados, se
interessam e tem subsídio para fazer acontecer essa prática.
Diante das questões apresentadas, partindo dessas discussões das relações entre
identidade negra e o espaço escolar no contexto contemporâneo, a seguir iremos
analisar uma produção audiovisual (―O lado de cima da cabeça‖) que trata da temática
da identidade negra e logo depois discutiremos a partir do documentário as
possibilidades e estratégias que o cinema pode proporcionar para o tratamento desse
tipo de debate na sala de aula.

UMA ANÁLISE INTERPRETATIVA SOBRE “O LADO DE CIMA DA


CABEÇA”

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

A produção audiovisual da qual trataremos, o documentário ―O lado de cima da


cabeça‖, dirigido e roteirizado pela baiana Naira Évine Pereira Soares (graduada em
Rádio, TV e Vídeo pela Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), pós-graduada
em Cinema e Linguagem Audiovisual pela Universidade Estácio de Sá e atualmente é
comunicóloga191), dispõe de 14 minutos de duração e se encontra publicado desde 2014
na página YouTube, canal da própria diretora (link de acesso:
<https://www.youtube.com/user/naievine1>), estando com mais de 30 mil visualizações
atualmente.
De acordo com uma entrevista cedida à ―RUA‖ (Revista Universitária do
Audiovisual)192 por Chris Ribeiro, graduanda da Ufscar, e com um texto elaborado pela
própria Naira Soares disponìvel em um blog chamado ―Blogueiras Negras‖, ―O lado de
cima da cabeça‖ foi produzido de forma experimental por um grupo de universitário
como um elemento integrante da disciplina ―Oficina de Vìdeo Educativo‖ do curso de
Comunicação Social com habilitação em Rádio e TV da universidade já mencionada,
mas também foi um desejo até mesmo pessoal da diretora quando nos conta que fazer
uma produção do tipo era um sonho de muito tempo e que o tema (a identidade negra) e
os atores (em sua maioria negros e negras) são partes de suas próprias experiências.

FIGURA I: Entrevistada X. Fonte: ÉVINE, Naiara. O LADO DE CIMA DA CABEÇA (Direção: Naira
Évine Soares, 2014). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=1RFvuA0cu60>. Acessado
em: 24/03/2017.

191
Essas informações podem ser conferidas na página da rede social (Facebook) da própria Naira Soares
Disponível em: < https://www.facebook.com/naira.evine >. Acessado em: 24/03/2017.
192
Ver site: < http://www.rua.ufscar.br/o-lado-de-cima-da-cabeca-naira-soares-2014/ >

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

A produção ―O lado de cima da cabeça‖ contou com cerca de 23 entrevistados,


apesar de não aparecerem as falas de todos. A grande maioria dos depoimentos são de
mulheres e homens negros (as) jovens adultos com diversos tipos de cabelos, como
naturais, dreads, trançados, aparecendo também algumas pessoas que não apresentam
cabelo crespo ou cacheado, mas que possuem um cabelo diferente do aceito como
―normal‖ socialmente, seja pela cor ou pelo estilo. É importante ressaltar que o interesse
pela temática da aceitação/negação e da identidade negra associada à estética capilar,
bem como os preconceitos estabelecidos socialmente quanto a esse tipo de cabelos foi
inspirada em experiências vivenciadas por integrantes do próprio grupo universitário
produtor do vídeo, tendo em vista que como a maiorias dos entrevistados (as) a diretora
Naira Soares também é negra, tem cabelo crespo e usa-o natural.
A trilha sonora da produção também indica o que se interessa em representar nas
mensagens transmitidas, sendo a música ―Rio de Fios‖ (de Ize Duque Magno e Jonnie
Walquer) o áudio de fundo do vídeo composto especificamente para o documentário, na
qual percebemos a exaltação em sua letra da diversidade de estéticas capilares.
A lógica de organização das falas dos entrevistados (as) obedecem à uma
dinâmica de complementação de temáticas e/ou questões, isso quer dizer que ocorre um
jogo de alternância entre os depoimentos, alguns iniciando determinado assunto e
depois voltando para complementar outro, esse tipo de organização do enredo do vídeo
acaba nos causando um envolvimento com a dinamização dos diferentes relatos.
Analisando as falas expressadas pelos entrevistados (as) no documentário,
percebemos como os preconceitos com o cabelo crespo, que é uma questão totalmente
ligada ao racismo, trazem implicações para as vidas daquelas pessoas, que em grande
maioria declaram sua relação difícil com os cabelos antes de aceita-los como parte de
sua própria identidade e como forma de resistência aos padrões sociais impostos, tais
padrões sendo ―definidores‖ forçosos do que é permitido ou não socialmente.
Podemos também compreender nas entrevistas a longa luta dos negros e negras
entrevistados (as) para chegarem à aceitação dos símbolos de sua negritude,
principalmente o cabelo, muitos tendo trajetórias de conflitos modificando sua estética
capilar, seja por meio de alisamentos, raspagem e outros mecanismos. Essas trajetórias
são contadas e evidenciadas através dos preconceitos sofridos desde criança, passando
pela adolescência nos momentos em que tinham contato com pessoas diferentes e que se
deparavam com a sociedade (seja na escola ou em outros lugares) e os cabelos eram
alvo de palavras pejorativas, como cabelo ―pixaim‖, cabelo ―duro‖ e em geral, a

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

expressão cabelo ―ruim‖, expressão essa que foi naturalizada e associada socialmente
aos cabelos crespos em contraposição aos cabelos lisos que seriam os cabelo ―bons‖, os
cabelos dos brancos.
Muitas das mulheres negras entrevistadas tocam na questão do querer a todo
custo seus cabelos alisados, pois seriam dessa forma aceitas e entrariam no padrão
social do cabelo ―bonito‖, pelo fato de não se sentirem bem com os seus cabelos
naturais considerando-os naquele momento como ―feios‖ ou não adequados. Porém, o
mais contundente é que essas pessoas no momento em que falam já adquiriram a
consciência das questões sociais dos padrões impostos e enxergam seus cabelos de
forma diferente, como luta de resistência aos preconceitos e como símbolo da
identidade negra.
Assim, podemos considerar como tema central do documentário o
empoderamento de um grupo de pessoas, principalmente negras, que construíam uma
imagem anterior de inferioridade de seus atributos, mas que superaram essa
complicação e agora promovem um poder, uma afirmação de sua personalidade, de suas
características, de sua identidade.
Em geral, as falas dos entrevistados (as) giram em torno de exteriorizar os
preconceitos sofridos e os estereótipos que são reproduzidos na sociedade relacionados
ao cabelo crespo e ao negro como um todo, e a partir dessas questões mostrarem suas
fases de transição até chegarem à aceitação de suas características e terem outra
concepção sobre elas, vendo-as como constituição de identidade e de resistência.
Portanto, ―O lado de cima da cabeça‖ pode ser interpretado como um vídeo
educativo e reflexivo, que por meio das falas e de uma contextualização que parte de um
lugar específico, o lugar do negro nessa conjuntura, nos faz enxergar por um viés crítico
a maneira como o negro e suas características são idealizadas socialmente.

O CINEMA COMO ESTRATÉGIA: “O LADO DE CIMA DA CABEÇA” EM


SALA DE AULA

Sabemos que nem todo tipo de cinema ou de produções audiovisuais foram


pensadas ou elaboradas diretamente para o uso em sala de aula, o que de forma alguma
impede essa utilização (NAPOLITANO, 2013, p.11), esse é o caso de ―O lado de cima
da cabeça‖ o qual já apresentamos nossas análises, e de acordo com estas pudemos

500
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

perceber o seu caráter e a sua intencionalidade. Nesse momento, pretendemos propor a


utilização em sala de aula do mencionado documentário e os direcionamentos para tal.
Mas antes de tudo isso, podemos nos perguntar de forma mais geral por quais
motivos a presença do cinema em sala de aula se torna importante e por que o mesmo
pode ser considerado uma estratégia para o ensino-aprendizagem e para o
desenvolvimento de reflexões e da criticidade no espaço escolar. Diríamos que as
possibilidades de respostas a essas inquietações estão entre outras questões: na relação
com uma ―cultura cotidiana mais ampla‖ (NAPOLITANO, p.15) que o cinema pode
proporcionar à escola e no movimento de ir além desta; na presença de um professor
que com a postura de mediador faça o diálogo entre linguagem e o conteúdo escolar
com esses mesmos elementos do cinema e partir dessas ações o desenvolvimento de
leituras críticas por parte dos discentes (Idem, p.15).
Nessa perspectiva, estabelecendo um diálogo com as reflexões e as dicas
propostas acerca da utilização do cinema como recurso didático em sala de aula por
Marcos Napolitano em seu livro ―Como usar o cinema na sala de aula‖ (2013),
elaboramos uma ficha de orientação para auxìlio do uso docente (em anexo) do ―O lado
de cima da cabeça‖ e também discutimos a seguir algumas questões que devem ser
imprescindivelmente levadas em conta na ação dessa utilização em sala de aula.
Toda produção audiovisual ou cinematográfica requer vários cuidados e
procedimentos de análise, principalmente quando essas produções são levadas para a
sala de aula. O professor antes de apresentar aos alunos esse tipo de recurso didático
deve se ater às diversas questões quanto à produção, analisar qual a faixa de idade dos
alunos e a turma que seria adequada para assistir a tal exibição, fazer uma própria
análise prévia do produto e evidentemente planejar uma discussão crítica com os alunos
dos temas suscitados pelo filme/vídeo, de forma que não se discuta apenas o conteúdo
do material, mas que também possa existir uma leitura interna e externa, percebendo os
interesses e os lugares de produção, assim refletindo sobre os elementos que o compõe,
como personagens, cenário, diretor, produtores, músicas e todos os aspectos técnicos e
discursivos que podem ser percebidos (BITTENCOURT, 2004, p.376).
De forma mais geral, ―O lado de cima da cabeça‖ enquanto uma produção
necessita ser pensada com os devidos cuidados sobre a utilização didática do mesmo em
sala de aula, tendo em vista não só as análises que precisam ser feitas, mas também a
consideração da delicadeza dos temas do qual trata, que como vemos se refere ao
racismo, aos preconceitos contra o negro, a identidade e ao empoderamento negros. A

501
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

principal ressalva é que a discussão acerca do vídeo do professor com os alunos se paute
em uma abordagem crítica dos preconceitos que são expostos com por exemplo, o
cabelo crespo, atentando para o cuidado de não acabar reforçando estereótipos, mas sim
de tentar percebe-los de outra maneira através de um olhar reflexivo.
O documentário traz de forma descontraída e simples os preconceitos no
formato de palavras pejorativas, porém é de suma importância que o professor
problematize essas palavras e tente envolver os seus alunos na complexidade destas,
enfocando que apesar dos entrevistados mostrarem o empoderamento e de certa forma a
recuperação daquelas pessoas quanto àqueles preconceitos, deve-se estar atento para
não passar uma mensagem de que estes não existem mais ou de que nada mais
interferem na vida do (a) negro (a), muito ao contrário, o ideal é que se mostre o quanto
é pertinente o racismo e os preconceitos dessa natureza e em vários formatos e que
devemos sempre tomar uma posição de combate contra estes.
Outra questão não menos importante gira em torno do conhecimento que o
professor tem que estabelecer quanto às suas turmas e aos seus alunos, sendo atento
para as características de tais e a conjuntura em que propõe certas discussões. No caso
da temática dos preconceitos contra os símbolos voltados para a identidade negra, é
importante que se tenha a consciência se há ou não alunos (as) com essas características,
e se existirem, pensar quais as consequências e os impactos que esse assunto pode trazer
para estes.
De forma mais especìfica, o uso de ―O lado de cima da cabeça‖ no Ensino
Fundamental II se torna mais interessante a partir do 7º ano no sentido de que
geralmente nessa fase do ensino na disciplina de História é estudado o conteúdo de
História do Brasil Colonial e, como sabemos, os livros didáticos e a forma como é
ministrado esse conteúdo como também outros afins acabam passando a mensagem do
negro no contexto da história brasileira apenas como escravo, desconsiderando sua
própria história, cultura e questões sociais como africano e também como afro-
brasileiro.
Nesse contexto, o documentário traria toda uma discussão sobre as questões que
estão enraizadas desde esse período da nossa história e suas consequências, também
fazendo ponte para discutir sobre as formas de resistências negras do passado e da
contemporaneidade, trata-se de uma oportunidade de diálogo entre passado e presente
muito contundente e que talvez chame bastante a atenção dos discentes, principalmente

502
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

na presença de alunos (as) negros (as) ao verem sua história colocada de maneira
diferente e não negativa.
No Ensino Médio também temos uma fase específica que geralmente a História
Colonial brasileira é tratada, que é o 2º ano médio, porém, se trata de uma sugestão o
aproveitamento desses temas para fazer essas relações, pois as discussões sobre os
temas suscitados se fazem importantes em todas essas fases escolares, ou melhor, em
todos os espaços educativos. Mas voltando ao Ensino Médio, tendo em vista a faixa
etária dos discentes que estão nessa fase, é imprescindível que o senso crítico seja mais
do que nunca aguçado, e para isso é contundente que o professor proporcione aos alunos
(as) não só o documentário, mas também o contato com textos e outras fontes que
possam analisar e complementar a discussão. Muitas vezes, devido à ausência desse tipo
de debate no Ensino Fundamental ou em outros meios educativos, os jovens chegam ao
Ensino Médio compartilhando muitos dos estereótipos e preconceitos absorvidos da
sociedade, assim sendo mais necessário ainda tornar presente esses temas no ensino.
Destarte, ―O lado de cima da cabeça‖ não está restrito à estas fases, não só
apenas a disciplina História em geral, mas considerando a possibilidade e a importância
da interdisciplinaridade, outras disciplinas podem adaptar ou mesmo expandir suas
discussões com os temas e com a utilização do documentário. É relevante ressaltar que,
como já mencionamos nesse texto, com a lei 10.639/03 se torna obrigatório a inserção
no ensino da temática História e Cultura afro-brasileiras e enfoca essa inserção nas
disciplinas de História, Educação Artística e Literatura. Sabendo da relevância dessa lei
e claro, da prática da mesma, o cinema se mostra uma como uma ferramenta que muito
pode ajudar a inserir realmente na escola, na sala de aula, essas temáticas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir dos pontos discutidos neste artigo podemos compreender a temática


étnico-racial ligada à necessidade de ser tratada efetivamente no espaço escolar em
sentido amplo e na sala de aula de forma específica, tendo em vista que como já
debatemos, estes lugares exercem influências essenciais para a constituição das
identidades, e principalmente da identidade negra de acordo com o que aqui refletimos.
Também percebemos que a sansão da lei 10.639/03 foi um passo relevante para
a efetivação da qual falamos, porém, necessitando de uma maior atenção para as
condições de seu funcionamento para que realmente se torne uma prática nas escolas e
para que a partir desta, possamos elaborar e compreender uma educação e um ensino

503
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

que questione e ultrapasse os estereótipos construídos socialmente e que com isso, seja
um espaço de discussão da História e da Cultura negra e do rompimento com o racismo
e com todas as formas de discriminação racial.
Além dessas propostas de discussões teóricas, também pretendeu-se contribuir
de certa forma para a prática desse ensino sugerindo e compreendendo a produção
audiovisual como recurso didático para o tratamento desses temas, levando em conta o
documentário ―O lado de cima da cabeça‖ e as questões levantadas aqui sobre o mesmo
como adaptações para a sala de aula, e com a produção de uma ficha técnica acerca do
material para ajudar no planejamento das aulas dos docentes que tencionar utilizá-lo.
Assim concluímos que, antes de tudo, necessita-se de um investimento na
formação dos professores quanto a temática da identidade negra e conceitos
interligados, no espaço escolar com a tomada de consciência sobre a importância dessa
discussão e no cuidado com os materiais utilizados nesse espaço para evitar a
propagação de preconceitos e estereótipos, bem como o cinema como uma das
estratégias para a inserção dessas questões em sala de aula.

REFERÊNCIAS

BITTENCOURT, Circe M. F. Ensino de História: fundamentos e métodos. São Paulo:


Cortez, 2004.

BLOGUEIRAS NEGRAS. Disponível em: <http://www.blogueirasnegras.org. >.


Acessado em: 24/08/2017.

BRASIL. Lei nº 10.639/03 (Obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Africana e


Afro-brasileira) Casa Civil. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/L10.639.htm>. Acessada em:
24/08/2017.

ÉVINE, Naiara. O LADO DE CIMA DA CABEÇA (Vídeo). Disponível em:


<https://www.youtube.com/watch?v=1RFvuA0cu60>. Acessado em: 15/03/2017.

GOMES, Nilma Lino. Educação e identidade negra. In: Aletria: alteridades em questão,
Belo Horizonte, 2012, s/p.

MORAES, Gisele Karin de. História da cultura afro-brasileira e africana nas


escolas de educação básica: igualdade ou reparação? Dissertação (Mestrado em
Educação), Universidade de Sorocaba. Sorocaba/ SP, 2009.

MUNANGA, Kabengele. Superando o Racismo na escola. MEC: Brasília, 2005.

504
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

NAPOLITANO, Marcos. Como usar o cinema na sala de aula. São Paulo: Contexto,
2013.

RUA: Revista universitária do audiovisual. Disponível em: <


http://www.rua.ufscar.br/o-lado-de-cima-da-cabeca-naira-soares-2014 >. Acessado em:
28/04/2017.

SILVA, Ana Célia da. A desconstrução da discriminação no livro didático. In:


MUNANGA, Kabengele. Superando o Racismo na escola. MEC: Brasília, 2005, 21-
38.

ANEXO I:

FICHA DE ORIENTAÇÃO PARA TRABALHO COM O DOCUMENTÁRIO 193

O lado de cima da cabeça

Público-alvo: ensino fundamental (7º ao 9º ano) e ensino médio.

Área Principal: história e cultura afro-brasileira/identidade e empoderamento


negros/questões sobre racismo.

Cuidados: nenhum.

Roteiro de análise: ―O lado de cima da cabeça‖ é um pequeno documentário produzido


pela comunicóloga Naira Évine Pereira Soares, que apresenta depoimentos sobre a
relação principalmente de pessoas negras, com suas características identitárias e com o
empoderamento. Tal produção audiovisual se torna um elemento muito importante à
medida que nos propõe discutir acerca da discriminação racial contemporânea e a
resposta à esta, tendo em vista a resistência negra demonstrada pelo seu empoderamento
e pela valorização de sua identidade.

o É importante que se faça uma contextualização inicial acerca do racismo na


nossa sociedade contemporânea em geral e depois trazer o tema para mais
próximo do discente fazendo-o refletir sobre situações racistas e preconceituosas
que já deve ter presenciado (em casa, na escola, na rua);

193
O referido modelo de ficha de análise foi inspirado nas fichas elaboradas acerca de diversos filmes
pelo autor Marcos Napolitano em seu livro ―Como usar o cinema em sala de aula‖ (2013).

505
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

o Identifique se há alunos (as) negros (as) na sala de aula e os insira nas


discussões, tendo a sensibilidade perceptiva se se sentem à vontade ou não em
falar sobre o tema;
o Discuta com muito cuidado os conceitos chaves que se apresentam no vídeo,
como por exemplo identidade negra, empoderamento e as palavras pejorativas
utilizadas para fazer referência ao cabelo crespo.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

OS XUKURU-KARIRI NA MATA DA CAFURNA EM PALMEIRA DOS


ÍNDIOS-AL: TERRITÓRIO EM CONFLITO NO SEMIÁRIDO ALAGOANO

194
MARY HELLEN LIMA DAS NEVES
UFAL
[email protected]

RESUMO

Este artigo tem como proposta descrever vários momentos da história dos indígenas
Xukuru-Kariri que habitam a Aldeia Indígena Mata da Cafurna em Palmeira dos Índios
e a partir de então compreender os conflitos durante os processos de posse e retomada
de suas terras tradicionais. Como metodologia foram utilizados materiais bibliográficos
de pesquisadores locais a intelectuais reconhecidos nacionalmente, tais como: Luiz B.
Torres, Aldemir Barros, Júlio Cezar Melatti entre outros. Foi feito, também um estudo
etnográfico com o intuito de retratar aspectos da estrutura física da aldeia que culminem
com uma discussão sobre o processo de demarcação territorial no município de
Palmeira dos Índios que perdura até os dias atuais.
Palavras-Chave: Cotidiano. Etnografia. Indígenas. Propriedade.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O processo de conquista no território nacional ocorreu de maneira muito


perversa, os índios que tanto contribuíram para a ascensão da colônia, foram colocados
a margem, como secundários e passivos, na condição de escravos que se aculturavam e
deixavam de ser índios e consequentemente desapareceriam da história.
O objetivo principal dos europeus era tornar os índios em trabalhadores
nacionais integrados a colonização que fossem sendo assimilados e logo perdessem sua
identidade étnica. ―Na prática os indìgenas podem até ter sumido da história escrita, mas
não do mundo colonial, eles continuavam presentes nos sertões, vilas e aldeias‖
(ALMEIDA, 2010, p. 14).
Como estratégia de sobrevivência, alguns grupos indígenas casaram entre si,
fingiram seguir as regras impostas pelos conquistadores, silenciaram suas expressões
culturais, sua identidade e aguardaram o momento oportuno de reagir. Os que não
aceitaram essa imposição fugiram em massa adentrando os sertões, até que alguns deles

194
Licenciada em História pela Universidade Estadual de Alagoas (UNEAL), Especialista em Ensino de
História Novas Abordagens pela Faculdade São Luís de França (FSLF). Mestranda em História Social
pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Bolsista CAPES.

507
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

chegaram à região da Serra da Palmeira, localidade posteriormente denominada como


Palmeira dos Índios-Alagoas.
O território onde atualmente localiza-se Palmeira dos Índios é o território que
dará berço aos Xukuru-Kariri, antes duas etnias, os Xukuru que habitavam Pesqueira e
Pernambuco e os Kariri que habitavam em Alagoas, formando um novo povo, os
Xukuru-Kariri.
Após a chegada do europeu, evento que se iniciou com os invasores e em
seguida com 195Frei Domingos de São José, ainda em 1770, e posteriormente continuou
com os fazendeiros e com os outros que viram nas terras indígenas, lucro e formas de
exploração, situação que dura até os dias atuais.
Para buscar compreender como se deram e como se dão atualmente estes
conflitos, é importante investigar como se deu esse processo de aproximação cultural
entre indígenas e não indígenas, observando as diversas formas usadas pela sociedade
envolvente para atingir seu principal objetivo, que era apropriar-se das terras indígenas
que compõem o município. Os indígenas foram perseguidos e tiveram que aceitar a
imposição do homem branco que trazia também uma nova religião, novos hábitos e
novos costumes incompatíveis com as suas tradições.
Palmeira dos Índios vivencia até hoje, fortes conflitos com os índios, que não
aceitam ver os fazendeiros ocupando suas terras; uma característica que fortalece esse
conflito é a omissão de órgãos indigenistas como a FUNAI, que pouco faz para efetivar
a demarcação das suas terras tradicionais. Observa-se, nesse contexto, que parece haver
uma ação conjunta dos órgãos de tutela e dos poderes públicos municipais, estaduais e
federais, que parecem mais dificultar do que contribuir.
Ainda na metade do século XIX196 o Semiárido alagoano foi palco de um
processo político onde os índios sofreram novas perseguições, desta vez os conflitos se
deram com fazendeiros e políticos locais que criaram inúmeras estratégias com a
intenção de expulsar o povo Xukuru-Kariri de suas terras, os índios que por sua vez
queriam fugir da imposição e da exploração dos colonizadores se camuflaram entre a
sociedade palmeirense e passaram a viver principalmente nas áreas de subúrbio e
periferias da cidade.
195
Sua origem antes de chegar a Palmeira dos Índios é desconhecida bem como a sua ordem religiosa,
apesar de ser recorrente fazer referências a sua vida religiosa como franciscano ou capuchinho devido a
relatos de que o mesmo vestia-se de marrom. (TORRES, 1984)
196
Nesse período os aldeamentos foram extintos, em Alagoas, tal ação aconteceu via decreto provincial
em 1872, assim era como se não mais existisse índios na região, e quem se declarasse índio corria risco de
morrer.

508
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Era oportuno para o Estado, naquele momento, o entendimento de que não


havia mais índios a assistir, por isso iniciou-se um silêncio oficial. A extinção
dos aldeamentos representa uma tentativa de acelerar o processo de
integração dos índios, mas principalmente de seus territórios, à sociedade
nacional. (SILVA JÚNIOR 2013, p 18)
Através deste anonimato e sem perseguições eles silenciosamente aguardaram o
momento oportuno de ressurgirem, situação comum aos demais grupos indígenas de
Alagoas e do Nordeste.
Não se pode negar que esta estratégia gerou consequências irreversíveis
principalmente à sua cultura, a não oficialização dos grupos indígenas na região e
consequentemente a conquista de seus territórios tradicionais, como trata o texto a
seguir:
Obviamente, essas etnias não são exatamente as mesmas que, nos períodos
colonial e imperial foram transferidas, misturadas e esmaecidas, e nem têm
os mesmos nomes, mas mantiveram aspirações que a memória não apagou.
(MELATTI, 2007, p.42)

Com a chegada do Serviço de Proteção do Índio - SPI197 a Palmeira dos Índios,


no século XX, mais precisamente em 1952, com a proposta de organizar os índios,
através da compra da Fazenda Canto, a história do povo indígena no município viveu
um marco, um momento de ressurgimento e possível reorganização.

197
Organização esta, que por volta do ano de 1967 foi substituída pela Fundação Nacional do Índio –
FUNAI.

509
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Fonte: Acervo Museu do Estado de Pernambuco – MEPE: Os Xukuru-Kariri no Posto Indígena Irineu dos
Santos, Palmeira dos Índios, Alagoas. Provável autoria de Carlos Estevão de Oliveira quando empreendeu
visitas para estudos de grupos indígenas no Nordeste (Bahia, Ceará, Paraíba, Pernambuco e Alagoas).

A imagem acima nos permite imaginar como se tomava corpo à ideia de viver
novamente aldeado, só que desta vez esta iniciativa vinha acompanhada do aparato
público através do SPI, que pretendia controlar o cotidiano dos indígenas, e claro que
interferir diariamente em seu modo de vida. Aldeá-los significava assegurar o controle
sobre o povo, suas atividades e suas organizações e tornava-se mais fácil colocá-los
sobre o controle do Estado.
Os índios adquiriram a primeira propriedade para usufruto perpétuo, a Fazenda
Canto, antes pertencente ao então prefeito do município de Palmeira dos Índios Manoel
Sampaio Luz, mais conhecido como Sr. Juca Sampaio, por Cr$ 500.000,00 (quinhentos
mil cruzeiros), e lá construíram o Posto de Saúde Irineu dos Santos, no entanto a terra
não estava em boas condições e não valia o valor pelo qual foi comprado, como cita o
antropólogo em seu relatório produzido para compor o processo de demarcação das
terras afirma que:

As novas terras adquiridas para os índios estavam, entretanto em péssimo


estado e que, segundo o próprio inspetor, teria sido um excelente negócio
para o vendedor, Sr. Juca Sampaio, já que as terras estavam estragadas pelos

510
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

sucessivos plantios, sem o necessário descanso, e que, além disso, não


possuía "nenhum capão de mato onde se pudesse cortar uma varinha",
faltando, portanto lenha para o consumo futuro dos índios. As construções
existentes já estavam semidestruídas, em péssimo estado de conservação, já
que, segundo o capataz da fazenda, as benfeitorias tinham sido construídas há
26 anos. Segundo o referido inspetor, a fazenda teria sido colocada à venda
anteriormente por Cr$ 372.000,00, e que a teria vendido por esse preço,
portanto bastante inferior ao que foi realmente pago com recursos do
Patrimônio Indígena. (CARRARA, 2011)

Há, também, outro fator que não favoreceu ao povo indígena que pretendia lá
viver, pois os Cr$ 500.000,00 pagos pela fazenda correspondiam a 372 ha, mas quando
lhes foi entregue a terra, registrada, a área reduziu para 272 ha. Este equívoco ou ato de
má fé não foi revertido até os dias atuais. Com isso, o sonho da aldeia se concretizou,
mas teve suas proporções reduzidas e se formou com um problema agravado, a
insuficiência territorial para o atendimento das necessidades básicas do grupo. Ora, se já
era insuficiente abrigá-los com a quantidade de terras anteriormente acordada,
imaginemos com 100 ha a menos?
Viver na Aldeia Fazenda Canto não serviu para solucionar, nem tão pouco para
saldar a dívida histórica com os índios, mas lhes possibilitou o direito de voltar a viver
juntos, a possibilidade de resgatar sua cultura e a liberdade de assumirem-se como
índios.
A vida no aldeamento ficou sendo marcado por um novo desafio, o da
reafirmação étnica, que faz a Aldeia Fazenda Canto e seus moradores destacarem-se
como pioneiros na luta pela retomada de suas áreas e também por ser considerada o
berço da cultura indígena neste processo de retomada no município. Esse processo de
visibilidade da aldeia fortaleceu também o papel do líder, destacando a figura do Sr:
Alfredo Celestino, pertencente a uma das mais tradicionais famílias Xukuru-Kariri.
A vida na aldeia recriou um sentimento de liberdade e de pertença cultural e
isto, de certa forma, contrariava o desejo do SPI que tinha como política primordial
controlar e limitar os possíveis avanços dos movimentos indígenas na região. A partir
de então, a história local vai registrar, mesmo que timidamente, uma ascensão étnica
que muda o panorama do município.
A compra da Fazenda Canto não resolveu os problemas dos Xukuru-Kariri,
pois a área da propriedade não atendia às necessidades da comunidade. A limitada
extensão territorial, o crescimento populacional e o surgimento de conflitos internos
fizeram com que surgisse e se solidificasse a urgência em conseguir mais terras. Dessa

511
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

forma, os Xukuru-Kariri se mobilizaram para retomar e pedir a demarcação de mais


áreas na região.
Parte da etnia Xukuru-Kariri vive na Mata da Cafurna desde 1979. O território
que compõe este território indígena era um conjunto de terras pertencentes a três
posseiros, Leopoldo Torres, Everaldo Garrote e Pedro Benoni, o que dificultava a
retomada integral daquele lugar, até que veio a público a notícia de negociações para
implantação de uma Universidade Japonesa naquela área. Tal notícia preocupou os
índios que solicitaram da Prefeitura Municipal de Palmeira a doação desse território.
Com a alegação de que necessitavam das terras para viverem com um pouco
mais de conforto e autonomia pela possibilidade de assegurar a subsistência do grupo, o
pedido ainda ganhou reforço na justificativa da importância ritualística, uma vez que a
mata ali existente se configura como local ideal para a prática religiosa do Ouricuri,
momento sagrado de ligação do índio com suas divindades. Assim, um grupo de
Xukuru-Kariri estabeleceu-se na Mata enquanto aguardava o desenrolar das
negociações com a prefeitura.
Esta primeira retomada foi pacífica, praticamente não houve luta, apesar dos
índios terem se preparado para isso e até terem se articulado com povos de outras etnias
e estados (Sergipe e Pernambuco) a prefeitura municipal de Palmeira dos Índios ―doou‖
as terras para os índios numa quantidade inicial de 117,6 ha e recebeu em troca Cr$
3.000,000,00 (Três mil cruzeiros) para depois ressarcir aos índios com atendimentos
médicos, o que não ocorreu, pois a prefeitura não reverteu este recurso em ações
médicas para a aldeia, situação até hoje não esclarecida, nem resolvida. O processo da
retomada à posse se deu de forma muito lenta e dificultosa e durou cerca de 9 anos.
Cerca de um ano após a formação da primeira parte da aldeia, os indígenas
reuniram-se para lutar por mais terras, luta esta que se prolongou por mais de três anos
em trâmites judiciais até que lhes foi negada a ampliação da área, então a eles restou à
opção de pressionar o poder público através de retomadas. A princípio, era uma
extensão de 136 ha, seguida por outra com 22 ha, ambas localizadas no entorno da Mata
da Cafurna.
Finalmente, em meados de 1988 esse processo foi resolvido e a Mata da
Cafurna foi então retomada por inteiro. Atualmente a área abrange 275, 6 ha e comporta
cerca de 120 famílias, com média de aproximadamente 812 pessoas, que têm como
renda familiar o trabalho agrícola, a venda de seus artesanatos, além de benefícios da

512
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Previdência Social e a ajuda do órgão federal que lhe dá assistência, como a FUNAI,
que pouco influencia nesta renda.
Há também índios que são funcionários públicos e outros que desempenham
variadas funções, como mão de obra no comércio, agricultura, pecuária e prestação de
serviços na cidade. O território é composto por uma Escola Estadual Indígena, um Posto
de Saúde/farmácia, uma Biblioteca, uma Lagoa, uma Barragem, várias casas e as roças.
Palmeira dos Índios é a terceira maior cidade do estado, está situada a cerca de
134 km da capital, Maceió. Localiza-se no agreste alagoano, uma região inserida em um
brejo de altitude no Semiárido alagoano, com um clima tropical semiárido e
mesmo subtropical.
Devido à elevada altitude cria condições necessárias para uma flora que reúne
tanto características da Mata Atlântica, quanto da Caatinga, contrastando
assim com as áreas circundantes que possuem condições climáticas mais
secas e estações do ano não muito bem definidas.(PORTO; CABRAL;
TABARELLI, 2004, p. 16).
Faz divisa com o estado de Pernambuco. Conta com aproximadamente 70.434
habitantes (IBGE/2010) entre os quais, convém destacar uma parcela considerável de
índios Xukuru-Kariri aldeados em oito aldeias na Fazenda Canto, Mata da Cafurna,
Serra do Amaro, Boqueirão, Coité, Cafurna de Baixo, Serra do Capela e Riacho Fundo,
além da não reconhecida Xukuru-Palmeira na Fazenda Vista Alegre e Fazenda Jarra.
Segundo o IBGE /2010 em Alagoas 16.291 pessoas se declararam indígenas,
mas apenas 6.268 habitam terras demarcadas, e os 10.023 vivem fora das aldeias,
resultando em um percentual de que apenas 38,5% estão em terras indígenas. O que se
configura como um grande contingente de pessoas que atribui a identidade indígena em
Alagoas, e consequentemente no município de Palmeira dos Índios-AL, considerada a
quarta cidade que mais concentra população indígena em Alagoas, além dos índios que
vivem nas periferias da cidade, pois as aldeias não comportam esse contigente.
Atualmente os indígenas Xukuru-Kariri ocupam uma área de 1.720.04 ha, onde
a princípio, por meio da doação de Dona Maria Pereira Gonçalves, herdeira da Sesmaria
de Burgos, tinham direito a uma área de meia légua em quadra, que corresponderia a
3.000 braças ou 12.320,00 hectáres, mas eles abriram mão dessa quantidade na intenção
de não comprometer o crescimento e/ou desenvolvimento do município e com isso a
extensão territorial foi se tornando cada vez menor, e mesmo assim o que já foi
determinado pela Justiça federal não teve andamento.

513
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Abaixo, um quadro com a elucidação do processo demarcatório das terras


indígenas do Povo Xukuru-Kariri:

Propostas Laudos Ano Antropólogo


oficiais de Antropológicos Responsável
demarcação da FUNAI
1ª 36.000 ha 1990 Sívia Aguiar C. Martins
2ª 15.000ha 2002 Douglas Carrara
3ª 7.073 ha 2008 Siglia Zambrotti Dória

No ano de 1990 a antropóloga Sívia Aguiar C. Martins e sua equipe fez o grupo
de trabalho (GT), nesse primeiro laudo antropológico foi identificado um área de 36 mil
ha, envolvendo desde as áreas já retomadas e área urbana, como justificativa a
antropóloga disse ter tomado como base um documento de doação198 de terras no ano
de 1773 que doava meia légua em quadro de terras a partir do pião da Igreja Matriz para
os índios Xukuru-Kariri.
No entanto a demarcação foi vista como inviável por envolver desapropriações
de parte da população do município. Relatos davam conta que nessa mesma época a
antropológa recebeu ameaças por ter concluído seu trabalho e a mesma ter entregado
um laudo que fosse a favor dos índios em questão, situação esta não confirmada, nem
negada por ela, uma vez que a mesma não mais retornou ao município após conclluir
seu trabalho.
Nove anos mais tarde, outro GT foi criado para mais uma vez fazer o estudo de
identificação e delimitação das terras indigenas, desta vez liderado pela antropológa
Sheila dos Santos Brasileiro, sendo interrompido pouco tempo depois de iniciado, sem
formular nehuma proposta.
Em 2003 mais um GT foi constituído, através de muita mobilização por parte
dos índios que pediram a intervenção da OAB/AL para pressionar a FUNAI a avançar
no processo de demarcação das terras, desta vez o antropológo foi Douglas Carrara 199,
que concluiu o trabalho e entregou um laudo que identificou 15 mil ha pertencentes ao

198
Frei Domingos solicitou aos herdeiros do Cel. Manoel e deles recebeu meia légua de terras em quadra
para a construção de uma Capela em homenagem a Bom Jesus da Boa Morte. A doação foi registrada em
cartório na cidade de Garanhuns – PE em 27 de Julho de 1773.
199
Laudo este, tido até hoje como um dos mais completos por pesquisadores da área.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

povo Xukuru-Kariri, no entanto os posseiros entraram com recursos solicitando a


anulação também deste laudo, justificando que não existem índios suficientes para
ocupar esta quantidade de terras. Os índios então se reuniram e optaram por abrir mão
dessa quantidade de terras na intenção de não comprometer o crescimento e/ou
desenvolvimento do município.
Por conta disso, no ano de 2008, a FUNAI contratou um novo GT, tendo como
antropológa Siglia Zambrotti Dória que junto a sua equipe também concluiu o trabalho
com um laudo que identificou e delimitou as terras em 7.073 ha, quantidade esta que
trouxe muita insatisfação, pois os índios sabiam que iriam perder território, mas não
calculavam que esta diminuição acarretaria em mais de 50% do território, se comparado
ao laudo anterior a este.
Com o passar dos anos, a extensão territorial foi se tornando cada vez menor,
e mesmo assim a demarcação não acontece. Existe, em andamento, um processo de
demarcação territorial aguardando homologação e execução favorável aos índios, uma
vez que os estudos antropológicos necessários para dar andamento as demarcações
físicas já foram finalizados com a entrega do laudo. O território em questão tem um
total de 6.927 ha, que se somados ao território já retomado pelo povo Xukuru-Kariri
correspondará aos 7.033 ha, como indicou o laudo soliticidado pela FUNAI, ilustrado a
seguir, onde situa a localização das aldeias existentes autalmente.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Fonte: Relatório Preliminar Circunstanciado de Identificação e Delimitação. Terra Indígena Xucuru-


Kariri/AL. Disponível em www.bchicomendes.com/cesamep/relatorio.htm com alteração do Pesquisador
Adelson Lopes Peixoto em 2013 para acrescentar as localizações das aldeias no município.

Apesar dos relatórios e de alguns parcos avanços judiciais nem a FUNAI, nem
a União avançou com as demarcações e respondem judicialmente por isso, como
200
determinou o Juiz Antônio José de Carvalho Araújo, que concedeu liminar a pedido
do Ministério Público Federal, em Ação Civil Pública, determinando à União Federal e
à FUNAI a conclusão imediata da demarcação física da Terra Indígena Xukuru-Kariri,
nos termos da Portaria do Ministro da Justiça nº 4.033, de 15/12/2010 e em caso de

200
Matéria disponível no site: www.tjal.al.gov.br no dia 18/10/2013 tratando da liminar determinada pelo
Juiz Federal da 8º Vara Federal de Arapiraca a FUNAI e a União.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

eventual descumprimento da obrigação de fazer, foi fixada multa diária de R$ 5.000,00


(cinco mil reais) para o descumprimento dos prazos acima, valor a ser revertido em
favor do grupo indígena Xukuru-Kariri. No entanto o processo permanece em estado de
estagnação e nada até então foi cumprido.
Diante dessa situação os Xukuru-Kariri estão se mobilizando na intenção de
pressionar os órgãos competentes para que se dê continuidade ao processo de
demarcação, organizando, inclusive, campanhas que desmitifiquem boatos criados por
aqueles que serão diretamente afetados quando a demarcação ocorrer, relatando a real
situação do povo indígena Xukuru-Kariri no município, e de forma interna criando
estratégias para defender-se das inúmeras situações de risco que se sujeitam os
envolvidos nesta causa, como por exemplo, a Campanha do Povo Xukuru-Kariri
nomeada ―Xukuru-Kariri: Vida Luta e Resistência de um Povo‖ que tem como objetivo
publicizar à sociedade local como andam os procedimentos de regularização dos
territórios indígenas e, do mesmo modo, justificando suas reivindicações. Apesar do
aparato legal que ampara os dois lados no litígio, parte da população não índia é
estimulada pelos posseiros a não aceitar que de fato aconteça a homologação das terras
e a não conviver bem com a população indígena, hoje oficialmente reconhecida como
primeiros habitantes do terrítório onde se localiza o município.
No dia 12 de março de 2015 mais uma vez o Juiz da 8ª Vara Federal de
Arapiraca, Antônio José de Carvalho Araújo, determinou que no prazo de seis meses a
União e a FUNAI concedam, de forma definitiva, a posse e a dermarcação física das
terras indígenas Xukuru-Kariri com uma área de 6.927 ha inclusive com a desintrução
dos posseiros daquele território e com suas ações burocráticas concretizadas. Segundo o
Juiz, o não cumprimento dessas medidas implicará em multa diária de R$ 2.000.00
(dois mil reais), situação esta que não causa muito impacto, uma vez que já existiram
sentenças semelhantes e o processo mesmo assim não teve avanços, o que é lamentavel.
A ausência de cumprimento da lei prejudica o povo indígena em diversos
aspectos, podendo os prejuízos serem irreparáveis a sua cultura, segurança, produção de
alimentos, organização social, além, claro, do histórico conflito com a sociedade
envolvente em consequência da demora jurídica que ora favorece, ora desfavorece a
população indígena, resultando em desgaste físico, violência, preconceito e tantas outras
situações.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Acompanhamos, até aqui, como se deram os processos de origem, invisibilidade,


ressurgimento, retomadas territoriais e conflitos, vivenciados pelos indígenas Xukuru-
Kariri em Palmeira dos Índios - AL. As discussões aqui apresentadas dividem-se entre
os processos de retomada, seguidos dos conflitos territoriais entre os índios e os não
índios. Contendas que aconteceram (e acontecem) não só fisicamente, mas tacitamente
pela negação, estereotipagem e perseguição.
Foram unidos elementos imagéticos ao texto, com a intenção de, a partir deles,
criar um diálogo que possibilite ao leitor uma melhor compreensão da pesquisa.
Subentende-se que aas imagens são reflexos dessa realidade; seus traços perpetuados no
tempo congelado do ícone simbolizarão, em algum tempo, o contexto social do qual
emergiram.
A história indígena é repleta de continuidades e descontinuidades, diante disto é
importante evidenciar que mesmo diante de todo um conjunto de forças que buscou
apagar a existência do índio, este conseguiu e ainda consegue sobressair de inúmeras
circunstâncias fazendo uso de estratégias e táticas que mais na frente os transformará,
possibilitando visibilidade e reconhecimento de sua resistência, frente a tantas
imposições. Colocando-os como protagonistas de sua própria história.

REFERÊNCIAS

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Janeiro: Editora FGV, 2010(Coleção FGV de Bolso).
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Gráfica do Senado, 1988.

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identificação e delimitação da terra indígena Xucuru-Kariri. 2011. Disponível em
http://www.bchicomendes.com/cesamep/relatorio.htm. Acesso em 13 de agosto de
2017.

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MELATTI, Julio Cezar. Índios do Brasil. São Paulo, Editora EDUSP, 2007.

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Barbosa da.Mata da Cafurna. Tradição e cultura do povo Xucuru-Kariri. Maceió:
Catavento, 2008.4

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

PARAÍSO, Maria Hilda Barqueiro: Aldeando Sentidos apud BARROS JÚNIOR.


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PEIXOTO, José Adelson Lopes; Memórias e imagens em confronto: Os Xucuru-


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SANTOS, Márcia Daniela dos. Levantamento de moscas-das-frutas (Diptera:


Tephritidae), e seus possíveis agentes Biológicos de controle na região serrana de
Alagoas. Rio Largo, AL, UFAL, 2014. (Dissertação Mestrado em Ciências Agrárias).

SILVA JÚNIOR, Aldemir Barros da. Aldeando sentidos: Os Xucuru-Kariri e o


serviço de proteção aos índios no Agreste Alagoano. Maceió, EDUFAL, 2013.

TORRES, Luiz Barros. Os Índios Xucuru e Kariri em Palmeira dos Índios. 4ª ed.
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In: Mnemosine Revista, 2010, p. 64-83.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

OS NEGROS E A HISTÓRIA: UM BALANÇO HISTORIOGRÁFICO


MARXISTA

MODESTO CORNÉLIO BATISTA NETO


GEDEN/UFERSA
[email protected]

RESUMO

O presente trabalho, dividido em três partes, busca, em um primeiro momento, estabelecer e


esclarecer a relação entre capitalismo, escravidão e história para fazer um balanço
historiográfico dos negros na história da cidade de Angicos, Região Central do Rio Grande do
Norte, Brasil, colocando em relevo a falsificação histórica e os processos de silenciamento do
povo negro, empreendidos por memorialistas como Aluízio Alves. Amparado na obra do
sociólogo brasileiro Florestan Fernandes, buscamos, por fim tecer uma breve crítica à ideologia
da democracia racial e mostrar a letargia do processo de integração da população negra na
sociedade de classes contemporânea.
Palavras-chave: Povo negro; história; Angicos.

HISTÓRIA, CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO

A sociedade e a história são atravessadas por projetos que disputam um lugar no


espaço político, uma menção honrosa no desenvolvimento da marcha humana. Os
projetos que têm prevalecido nesta disputa têm sido obviamente o empreendimento dos
vencedores. A história burguesa e positivista, que narram o percurso de vida de reis,
nobres e líderes (religiosos e políticos) só tem reservado às massas notas de rodapé
insignificantes. Este trabalho contraria a corrente que faz da história, apenas o reflexo
da biografia de alguns poucos notáveis.
Do berço da civilização grega à história contemporânea, apenas os eleitos tem
permanecido nas citações perduráveis. A história das guerras tem sido a narrativa de
generais e estrategistas, não a dos soldados no front de batalha. A história das eleições
sem sido o percurso dos vencedores, não das forças populares e movimentos de massa.
A história das grandes construções humanas é atribuída aos grandes pensadores,
não às forças que empreenderam imenso trabalho para realizá-la. O colonizador tem
vencido e imprimido sua versão da história no tempo. Os povos, permanentemente, têm
sido invisíveis.
Na perspectiva do marxismo, os povos são a força máxima do desenvolvimento
social e histórico. Na concepção cientifica do materialismo histórico e dialético, ―las

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

masas son los principales artìfices de la historia‖ como define George Novack (1975, p.
11), teórico marxista da Harvard University. Esta concepção de ciência que adotamos
não apenas supera, como é a antítese das noções gêmeas do idealismo e do elitismo que
aponta grandes homens, deuses e pensadores como os feitores da história.
No Brasil, os negros foram utilizados à exaustão como força de trabalho escravo.
Foram os responsáveis pela constituição de imensas fortunas no triângulo comercial que
envolvia a África de onde os escravos eram arrancados. Assim, era o Brasil a colônia
produtora de gêneros agrários e Portugal e a Europa, o centro exportador e consumidor
de manufaturas. Entretanto, além da força de trabalho, a contribuição do povo negro
para a formação do Brasil teve marcas importantes nas dimensões da cultura e da
sociabilidade, embora ofuscadas pelos aparatos culturais hegemônicos.
As tradições negras como a religiosidade, a música e a dança sobreviveram à
escravidão, que teve início na primeira metade do século XVI, com a produção do
açúcar no Brasil. Ao longo dos séculos, essas tradições intercambiaram-se com as
matizes culturais indígenas e europeias, constituindo o arcabouço sociocultural
brasileiro. Contudo, os elementos étnicos indígena e africano foram expurgados pelo
projeto social do colonizador europeu. O processo colonizador dirigido pelo europeu,
branco e católico negou ao índio a sua identidade e civilização, enquanto que ao negro
foi negada a existência da própria alma. A violência desumana legitimada pelo Estado
português foi usada sem limites racionais como o principal instrumento ―pacificador‖
no sentido de debelar qualquer tipo de desobediência aos usurpadores da terra recém-
conquistada, qualquer rebeldia contra os colonizadores poderia ser paga com a vida.
As violações aos povos oprimidos como os negros não se restringiram nem se
restringem aos castigos físicos e morais marcados pela escravidão do passado e pelo
genocídio patrocinado pelo Estado policial na atualidade. O terrorismo psicológico e
simbólico contra a população negra atravessaram os séculos e continuam presentes
como sequelas do processo histórico da escravidão que no Brasil só teve seu fim formal
em 1888. As violações em curso contra o povo negro são muitas, embora muitas sejam
difíceis de caracterizar. O certo é que além da escravidão e do genocídio do povo negro,
a história de resistência e luta negra tem sido apagada.
A história enquanto narrativa, como define o historiador inglês Keith Jenkins
(2004), constrói um discurso científico que, embora não crie o mundo, lhe atribui
significados e sucessivamente consequências. Há pouco tempo, a narrativa histórica
passou a pautar o percurso do povo negro, embora ainda existam enorme ignorância e

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

desinformação, que legitimam patologias sociais e aberrações como o racismo. Neste


sentido, se ―a incompreensão do presente nasce fatalmente da ignorância do passado‖
como afirma Bloch (2001, p. 65), acertadamente essa ignorância motiva todos os tipos
de preconceitos. Alicerçado nos preceitos da democracia racial e da meritocracia,
desconhecendo por completo as condições materiais em que vivem os povos que tem
oportunidades sistematicamente negadas, surgem articulados discursos segregacionistas
que naturalizam a situação dos negros e perpetuam a lógica da negação de direitos
básicos.

UM BALANÇO HISTORIOGRÁFICO: A FALSIFICAÇÃO DA HISTÓRIA

No Brasil e no Nordeste, alguns valiosos trabalhos acadêmicos têm versado a


problemática social do negro. Dentre as mais extraordinárias obras das ciências sociais,
para nós a referência máxima e fonte inesgotável de inspiração sobe a questão do negro
tem sido o livro intitulado A integração do negro na sociedade de classes: no limiar de
uma nova era, do sociólogo brasileiro Florestan Fernandes (1978). O livro é essencial
para entender as dinâmicas e o funcionamento do preconceito de cor na sociedade
moderna do capitalismo-competitivo entre meados do século XX e a atualidade,
fornecendo-nos instrumentos metodológicos e interpretativos da realidade, assentado
em um inequívoco rigor científico que não perde de vista o horizonte político prático da
luta pela emancipação humana.
É valendo-se da contribuição de Florestan Fernandes como um diapasão que este
trabalho afina-se à ótica do materialismo histórico, na busca central de entender o
funcionamento das relações entre as instituições das estruturas sociais com o povo
negro, suas dinâmicas e negações, no processo de integração do negro na sociedade
contemporânea, fazendo assim um balanço critico da historiografia sobre o lugar do
negro na história. O lugar onde desenvolvemos esse trabalho é o município de Angicos,
região Central do Rio Grande do Norte, Brasil. Uma das principais justificativas dessa
escolha é o fato da cidade ser proporcionalmente a que apresenta a maior população
negra do Estado potiguar. Segundo os dados do último censo do IBGE de 2010, 15,03%
da população é negra.
Entre o fim da escravidão formal e a atualidade, passaram-se quase 130 anos.
Neste espaço de tempo, o Brasil e o mundo atravessaram grandes mudanças que
transformaram todas as relações humanas. A globalização capitalista mudou o formato

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da comunicação entre os homens, sua relação com o consumo e o mundo do trabalho,


modernizou a exploração dos trabalhadores e o domínio das elites. Entre a escravidão e
a contemporaneidade, o capitalismo aperfeiçoou seus instrumentos de dominação e se
tornou incapaz de atender aos anseios humanos. ―Num sistema econômico baseado na
exploração do homem pelo homem, não há como conciliar o atendimento das
necessidades das pessoas com a lógica do mercado‖, é como define em sìntese Gennari
(2008, p. 14), o que também é o nosso entendimento.
Antes de buscar caracterizar o lugar das violações aos negros na historiografia
de Angicos, é preciso ter em vista dois elementos. Primeiro, é preciso entender que a
temática do povo negro nunca foi objeto de uma pesquisa historiográfica ou sociológica
publicada e que mesmo as narrativas historiográficas sobre a cidade contam com um
número muito limitado de publicações. São poucos os autores que se dedicaram a
estudar a história do município, embora alguns trabalhos recentes sejam apontamentos
de estudos que podem contribuir para compreender a história do município.
O projeto de pesquisa e extensão intitulado ―Angicos: suas famílias, seus mitos,
sua história” teve início em 2011 e é sediado na Escola de Serviço Social da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A pesquisa, coordenada pelo filósofo
Francisco Ary Fernandes de Medeiros201 e pela historiadora Cacilda Machado202,
apresenta as limitações e não ambiciona a constituição de uma História Geral da cidade,
abarcando os vários aspectos e dimensões da sociedade. Contudo, ainda é o que existe
de mais rigoroso sobre a historiografia local.
A metodologia da história oral constitui uma das ferramentas do projeto
―Angicos: suas famílias, seus mitos, sua história‖ e cumpre um papel fundamental de
assegurar a preservação da memória dos homens e mulheres sobre suas famílias e sobre
a cidade, no arquivamento de entrevistas realizadas por Ary Medeiros. Esse trabalho
garante a preservação da história oral e possibilita uma valiosa fonte de dados para
pesquisadores interessados na história da cidade e fornece uma ferramenta para
construção de uma historiografia contra-hegemônica e antirracista, diferenciando-se da

201 Francisco Ary Fernandes de Medeiros é doutor em Filosofia pela Universidade Gama Filho e
professor da UFRJ. Dentre os vários empreendimentos acadêmicos, Ary Medeiros coordenou uma série
de atividades e projetos de pesquisa e extensão em comunidades pobres com ênfase na questão da
cidadania.
202 Cacilda da Silva Machado é doutora História Social pela UFRJ, onde também atua como
professora. Entre 2008 à 2010 foi a Coordenadora do Grupo de Trabalho História e População da
Associação Brasileira de Estudos Populacionais (ABEP). É uma das estudiosas brasileiras sobre a questão
da escravidão, o tìtulo de sua tese é ―A Trama das Vontades: Negros, pardos e brancos na produção da
hierarquia social‖.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

que é praticada pelos principais autores da cidade. Note que o próprio Florestan
Fernandes recorreu a coligir entrevistas de líderes do movimentos negro e trabalhadores,
proporcionando que essas vozes atravessassem o silêncio de uma historiografia branca e
hegemônica.
Alguns trabalhos acadêmicos relevantes e recentes, que versam sobre a cidade,
merecem ser citados. Em sua grande maioria, essas pesquisas tratam da experiência
pedagógica liderada pelo educador Paulo Freire através do projeto de alfabetização de
adultos que ficou conhecido como ―As 40 horas de Angicos‖, que teve inìcio em 1963.
Vale destacar que em 1963, Angicos tinha pouco mais de 9 mil habitantes, dos quais
75% eram analfabetos203. É natural e justo que um experimento apontado como
revolucionário e coordenado por uma das principais figuras da educação e da
intelectualidade brasileira resulte em numerosos estudos. Seria inviável citar todos esses
estudos, mas é absolutamente certo afirmar que Paulo Freire e a história produzida sobre
seu método ocupam uma página inapagável na história do desenvolvimento da
educação, especialmente em Angicos.
Aqui, citamos rapidamente a historiografia produzida sobre a experiência do
método Paulo Freire, com a clareza que é impossível falar da história local de Angicos
sem mencioná-lo. O diretor do Instituto Paulo Freire, o educador Moacir Gadotti
(2013), em artigo intitulado ―Alfabetizar e politizar: Angicos, 50 anos depois‖,
apresenta o experimento inovador em Angicos e seus frutos, mas ressalta a necessidade
de eliminar o analfabetismo neste começo de século XXI no Brasil. Apesar dos vários
trabalhos que versam sobre a questão da educação em Angicos, estes não tiveram uma
preocupação especial com o drama da questão étnica.
Temos a certeza que a concepção de educação libertadora, cunhada por Paulo
Freire, deve ser examinada sistematicamente como uma ferramenta transformadora da
sociedade, inclusive, para superar os dilemas do analfabetismo em Angicos na
atualidade. O debate sobre o analfabetismo deve estar associado a questão étnica,
especialmente em Angicos, onde os dados mais atuais apontam que 76,8% da população
negra é analfabeta e apenas 0,64% concluíram o ensino superior204. Enfrentar o
analfabetismo é parte da pauta do dia, especialmente para construir um projeto político e

203 Angicos virou exemplo mundial. Publicado no Jornal Tribuna do Norte, em 31 de março de
2013. Disponível em: < http://migre.me/t53FA>. Acessado em 20 de janeiro de 2016.
204 Os dados são do Censo do IBGE de 2010, que apresenta que 76,8% da população negra em
Angicos (1.183 pessoas) classificam-se como ―sem instrução e com o fundamental incompleto‖, enquanto
que apenas 0,64% da população negra local (10 pessoas) concluíram o ensino superior. Dados disponíveis
em: http://www.ibge.gov.br.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

social que propicie ao próprio povo negro retificar o papel a eles atribuídos na história
local.
Afora as pesquisas sobre o método Paulo Freire, que resultaram e resultam em
uma extensa bibliografia e o projeto ―Angicos: suas famílias, seus mitos, sua história‖,
apenas dois livros versam, de forma geral, sobre a história da cidade: ―Angicos‖, uma
reedição recente de autoria de Aluìzio Alves (1997) e ―Angicos ontem e hoje‖, de Maria
Zélia Moreira Alves da Cunha (1992). Questões como a geografia, a economia, a
pecuária, o desenvolvimento social e a vida e formação religiosa essencialmente
católica da cidade são temáticas tratadas nos dois livros, que tem como característica
maior de semelhança à abordagem histórico-memorialista igualmente positivista e
linear205.
Aluízio Alves, que era jornalista e Zélia Alves, que era professora de história,
foram contemporâneos, ambos nasceram em Angicos e faleceram na primeira década do
século, na capital potiguar, Natal. O gosto pela atividade política é umas das
semelhanças que podem ser apontadas: Zélia foi eleita prefeita da cidade e Aluízio
ocupou vários cargos públicos e eletivos como Governador e Ministro de Estado na
gestão dos ex-presidentes José Sarney e Itamar Franco. Ambos escreveram sobre
Angicos.
O livro Angicos206, de Aluízio Alves (1997), inspirou e lançou as bases para
que Zélia Alves (1992) escrevesse Angicos, ontem e hoje. Aluízio foi membro da
Tribuna da Imprensa no Rio de Janeiro e, em 1950, fundou a Tribuna do Norte, em
Natal; no livro Angicos, utilizou como fontes documentos oficiais. O livro não possui
explicações adensadas e profundas sobre o desenvolvimento histórico da cidade, não
levanta problematizações sobre a formação social e se resume a apresentar ao leitor uma
visão panorâmica. O seu mérito é o ineditismo. Nenhuma obra anterior tratou da história
da cidade. O livro de Zélia (1992) apresenta imagens e algumas atualizações em relação
ao livro de Alves (1997), mas é justamente o autor que trata, mesmo que
superficialmente, da questão da escravidão e da legislação escravista relativas à cidade.

205 Linear no sentido que essas narrativas historiográficas não apresentam as contradições do
processo de desenvolvimento histórico, não demonstra a complexidade intrínseca das transformações
sociais locais, não problematiza as disputas ideológicas, e apresentam o mundo local naturalizado e
estático.
206 A primeira edição foi publicada em 1940 pelos Irmãos Pongetti Editores no Rio de Janeiro, a
segunda edição saiu em 1997 pela Fundação José Augusto como parte da Coleção Biblioteca Potiguar.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

A narrativa de Aluízio Alves colocou metodicamente em evidência os principais


personagens do poder local, representantes políticos e religiosos. A diversidade e as
minorias sociais somem ou se diluem em raras passagens narrativas. Entretanto, injusto
seria afirmar que a população negra não aparece citada na obra de Aluísio (1997).
Quando o autor narra os acontecimentos locais frente ao avanço da legislação escravista
até a abolição, o que aparece é o escravo beneficiado pela piedade cristã de seus
respectivos donos. Os negros foram escondidos e quando foram citados, sempre
ocuparam um lugar secundário, subalterno, silenciado e passivo. Para Aluízio Alves, a
abolição foi a panaceia do povo negro e é evidente que a narrativa completamente
falaciosa. Sobre o processo de libertação dos negros, marcado posteriormente pela
negação de direitos e pela aprendizagem pela exclusão, esclarece Florestan Fernandes:

A liberdade funcionou como uma armadilha, que o negro só logrou perceber


e enfrentar, completamente, quase meio século depois da Abolição. Nesse
interregno, a sua aprendizagem raramente se deu através da participação e da
ação. Ela aprendeu graças à exclusão, à provação e à frustração.
Comparando-se com os outros e aferindo. Constantemente, o que lhe faltava
e o que lhe negavam. Por isso, ele não surge de imediato, com a capacidade
de conduzir o seu destino. Foi erguendo-se aos poucos que, tateando e
errando, que colocou sobre seus ombros a tarefa gigantesca de reagir
ativamente contra males perniciosos, a que a sociedade inclusive se mantinha
indiferente (FERNANDES, 1978, p. 28).

O mesmo boicote que os negros sofrem na historiografia local as mulheres


sofreram/sofrem, como cita Jenkins (2004, p. 26): ―embora milhões de mulheres tenham
vivido no passado, poucas aparecem na história‖. As mulheres, para citarmos uma frase,
‗foram escondidas da história‘, ou seja, sistematicamente excluìdas da maioria dos
relatos dos historiadores.
O que Aluízio Alves (1997) faz em Angicos é assumir uma postura fetichista
frente aos donos de escravos, tributando elogiáveis adjetivos como bondade e piedade à
moral cristã. O autor reproduz ideologicamente a versão histórica da Casa Grande sobre
a escravatura, reproduz o discurso teórico da ―democracia racial207‖, de Gilberto

207 O termo denota a crença que o Brasil escapou do racismo e da discriminação racial. A ideia é
que os brasileiros não enxergam uns aos outros através da lente da raça e não abrigam o preconceito racial
em relação um ao outro. Por isso, enquanto a mobilidade social dos brasileiros pode ser limitada por

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Freyre. Nestes termos, ressaltamos ideologia no sentido definido por Marx (2009, p.
10), como o ―modo de pensar que falseia embora não de modo não intencional o
conhecimento da realidade social, contribuindo, assim, para reproduzi-la segundo os
interesses das classes dominantes‖. Não é exagero: cientificamente, Alves falsifica a
história.
Aluìzio Alves (1997, p. 139) esclarece que ―Angicos nunca acolheu grande
massa de escravos‖, o que revela-nos que segundo os dados coligidos pelo autor havia
―pequeno número de escravos na cidade‖. Esse apontamento da proporcionalidade é um
elemento importante para mensurar com maior precisão a estrutura escravista local e
deve ser estudado mais minuciosamente, contudo, faltam fontes confiáveis para emitir
um veredicto. O apontamento de Aluízio sobre a proporção de escravos parece razoável,
numa população onde os negros representavam apenas 5,89% na Província do Rio
Grande do Norte, na segunda metade do século XIX. O censo demográfico de 1872
estimava uma população de 13.020 escravos frente pouco mais de 220 mil homens
livres. Relatam os números oficiais:

FIGURA 01 – Dados do censo demográfico de 1872

Fonte: IBGE, 1872

Através deste censo, duas conclusões sobre a escravidão em Angicos são nítidas.
O número de cativos era de pouco mais de quinhentos, entre homens e mulheres. O
número parece pequeno, mas não deve ser desprezado, é uma estatística significativa,

vários fatores, gênero e classe incluído, a discriminação racial é considerada irrelevante dentro dos limites
do conceito da democracia racial. Ver mais em: http://www.infoescola.com/sociologia/democracia-racial.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

tendo em vista que falamos do final do século XIX. Também segundo o censo, todos os
escravos eram analfabetos: não sabiam ler nem escrever.
O antropólogo e historiador Richard Price208 (2014) precisa com exatidão que
―o Brasil recebeu cerca de 45% de todos os africanos trazidos como escravos para as
Américas – mais do que qualquer outra nação‖.
O povo negro foi completamente desumanizado no Brasil e reduzido à condição
de mercadoria; humanos foram comercializados nos mais diferentes lugares em uma
terra estranha e hostil. Um destes lugares onde os escravos foram vendidos e comprados
foi na freguesia de São José dos Angicos, constituindo a pequena população de cativos
da cidade com pouco mais de quinhentas pessoas, nos idos de 1870.
A historiografia sobre Angicos fracassou em mensurar minimamente com o
mínimo de rigor o que significou a vida dos escravos na cidade. O espaço reservado
para os negros na história local é ínfimo. O espaço nas esferas de poder da sociedade
contemporânea é igualmente insignificante, o que implica dizer que a integração do
negro na sociedade de classes, mesmo com a abolição da escravatura, avanços sociais e
as cotas étnicas nas universidades, continua incompleta.
A escravidão não é uma invenção africana, embora a exploração da mão de obra
escrava tenha ocorrido em grandes proporções. A venda de escravos é um antigo
comércio que remonta a sociedade babilônica, de forma que, nos anos 1750 a. C., as
civilizações gregas e romanas, como retrata Cristiane Nascimento209 (2014, p.19), ao
frisar que ―a escravidão representava a mais radical degradação do homem, convertido
em meio de produção e privado de seus direitos sociais‖.
A escravidão tem uma história social que não foi retratada na historiografia
sobre Angicos e, além do lugar subalterno que é reservado ao negro na obra de Aluízio
Alves (1997), prevalece uma narrativa, que de forma subliminar atesta uma ―escravidão
mansa‖ e tributa aos humanistas católicos toda bondade e piedade humana possível. Os
escravos que chegaram a Angicos foram caçados na África e arrancados de suas
famílias; estes tinham histórias que se perderam no tempo e que não serão contadas
pelos livros de história.

208 É professor emérito de Estudos Americanos, Antropologia e História do College Of William &
Mary nos EUA.
209 Cristiane Nascimento é pesquisadora da Revista de História da Biblioteca Nacional (RHBN) e
autora da dissertação intitulada ―A relação entre os portugueses e muçulmanos (1930-1974)‖.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Uma história de vida repleta de reais aventuras, como a de Osifekunde, que foi
nobre na África, escravo no Brasil e informante na Europa foi retratada por Aderivaldo
Santana210 (2015), mas quantas histórias de vida dos escravos em Angicos ganharam
páginas de livros ou ocuparam artigos em jornais? O silêncio histórico permite que
novas estratégias de desumanização e domínio tomem corpo e esconde um passado de
violações que não pode ser silenciado. É neste sentido que concordamos com o filósofo
Walter Benjamin211 (1987, p. 3) quando diz que ―somente a humanidade redimida
poderá apropriar-se totalmente do seu passado‖.
A cidade que Aluízio apresenta em seu livro tem um percurso histórico simples,
linear e sem contradições. Oculta-se a complexidade e as contradições do processo de
desenvolvimento histórico, silencia-se sobre o domínio e o julgo dos proprietários de
escravos sob suas mercadorias humanas. Aluízio induz o leitor desavisado a acreditar
que todos os proprietários de escravos eram abolicionistas, sendo tal romantismo é
pobre e falso.
Ao discutir o reflexo da promulgação da Lei dos Sexagenários212 em Angicos,
o autor se refere a personagens locais que lutaram contra a escravidão, mas não
aparecem os negros. Segundo ele:

O africano era mais empregado nos trabalhos agrícolas, que, entre nós,
despertaram muito tarde. Mesmo assim, praticipamos da campanha
abolicionista, mercê do pequeno número de cativos. (...) Podemos considerar
percursos do movimento, aqui, o célebre missionário padre dr. José Maria
Pereira Ibiapina, em cujas missões, realizadas desde 1862, pregava
insistentemente piedade para os infelizes negros vindos d‘alem mar nas
torturas da escravidão. (...) E há uma nota lisonjeira para nós: quando foi
decretada a Lei de 28 de setembro de 1855, muitos negros, por ela
beneficiados, preferiram continuar prestando seus serviços, como se escravos
ainda fossem (ALVES, 1997. p.139-140).

Os acontecimentos decorrentes da escravidão não tiveram episódios românticos


como os que são ditados por Aluízio, onde apenas o homem, branco, cristão,

210 Aderivaldo Ramos de Santana é doutorando em História Contemporânea pela Universidade


Paris IV – Sorbone.
211 Walter Benjamin foi ensaísta, crítico literário, tradutor e filósofo judeu.
212 A Lei dos Sexagenários foi promulgada em 28 de setembro de 1885 e concedia liberdade apenas
aos escravos com mais de 65 anos. Poucos cativos viviam até os 60 anos, e por vezes os que alcançavam
essa idade ficavam aleijados, cegos ou tinham sérias complicações de saúde, devido á intensa carga de
trabalho e as condições desumanas de alojamento e alimentação.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

protagoniza pioneiramente a luta celebre contra os males da escravidão. A visão que o


autor apresenta desses desdobramentos é lançado somente sobre o homem branco. O
certo é que se os escravos que foram libertos, ao alcançarem os 65 anos, ―preferiram
continuar prestando seus serviços, como se escravos ainda fossem‖, em virtude da
mendicância e da total ausência de oportunidades alternativas de sobrevivência não lhe
deixarem escolhas.
O fato de alguns personagens da Igreja terem ingressado na luta abolicionista
não deve apagar os graves equívocos que foram cometidos e que devêm ser analisados.
A Igreja foi durante séculos proprietária de escravos, justificando-a no século XV no
período das expansões marítimas e que também significaram a expansão da fé católica.
―Os primeiros argumentos para a submissão de outros povos vieram sob a forma de
aprovação da Igreja Católica. Através das bulas Dum Diversas (1452), Romanus
Pontifex (1455) e Inter Coetera (1452), Roma legitimava a escravidão dos infiéis‖,
como relata Joice Santos213 (2014).
A lógica do sistema escravista não se guia por valores morais ou éticos214, mas
se move pela obtenção sem pudores do lucro. Isso significa dizer que mesmo com a
concessão de alforrias por motivos vários, o prejuízo para o senhor de escravos foi
sempre zero. Refutamos a perspectiva de Aluízio sobre as dinâmicas sociais que se
operaram em torno dos efeitos jurídicos da Lei dos Sexagenários. As alforrias
concedidas pelo sistema escravista eram resultados de determinações socioeconômicas,
as quais descartavam homens e mulheres que se tornavam obsoletos para o mundo do
trabalho, como afirma Gennari:

À medida que não consegue dar conta da carga imposta pelos feitores e passa
a ser considerado um peso morto no orçamento do proprietário, o negro
escravo pode vir a ser alforriado, ganhando com essa suposta liberdade a
igualmente dura tarefa de mendigar os meios de subsistência. Essa situação
mais corriqueira é acompanhada de duas variantes: de um lado, encontramos
senhores que confiam tarefas (como a criação de aves) aos cativos tornados
inválidos para o trabalho e, de outro, não são poucos os que resolvem essa
questão assassinando pura e simplesmente aqueles que já não rendem o
esperado (GENNARI, 2008, p.17-18).

213 Joice Santos é pesquisadora da Revista de História da Biblioteca Nacional (RHBN) e autora da
dissertação intitulada "As Embaixadas dos Reinos da Costa Africana como mediadores culturais: missões
diplomáticas em Salvador, Rio de Janeiro e Lisboa (1750-1823)".
214 Embora, possa utilizar-se dos valores morais e éticos de uma época como ideologia e fulcro
justificativo.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

A relação umbilical entre escravismo e Igreja não é mencionada por Aluízio


Alves, o romantismo encobre a crueldade do genocìdio. A ―historiografia divulgada
elimina ou escamoteia os processos mais agressivos de conquista e de dominação‖, já
alertara Ary Medeiros e Cacilda Machado (2011, p.12) que buscam desnudar essa
historiografia, que caracterizamos como um simplismo romântico e medíocre. O abismo
entre a realidade e a história retratada por Alves é abissal.

REFERÊNCIAS

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AZEVEDO, Thales de. Democracia racial: ideologia e realidade. Petrópolis: Vozes,


1975.

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BLOCH, Marc. Apologia da história ou o ofício do historiador. Rio de janeiro: Zahar,


2001.

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Gráfica e Editora LTDA, 1992.

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de uma nova era. Vol. 2. São Paulo: Ática, 1978.

GADOTTI, Moacir. Alfabetizar e politizar: Angicos, 50 anos depois. Revista de


Informações do Seminárido – RISA, Angicos/RN, v. 1, n1, p.47-67, janeiro/junho.
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Revista de História da Biblioteca Nacional. Ano 10. Nº. 108. Novembro/2014. Rio de
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LEFEBVRE, Henri. Marxismo. Tradução de William Lagos. Porto Alegre: L&PM,


2013.

MARX, Karl. A ideologia alemã. Tradução de Álvaro Pina. 1ª Ed. São Paulo:
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531
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

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suas famílias, seus mitos, sua história. Projeto de Pesquisa da Escola de Serviço
Social da UFRN. Rio de Janeiro: UFRJ, 2001.

MOTA, Carlos Guilherme. História e contra-história: perfis e contrapontos. São


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História da Biblioteca Nacional. Ano 10. Nº. 108. Novembro/2014. Rio de Janeiro:
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Buenos Aires: Ediciones Pluma, 1975.

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Dossiê Tráfico de Escravos. Revista de História da Biblioteca Nacional. Ano 10. Nº.
108. Novembro/2014. Rio de Janeiro: Revista de História, 2014.

SANTANA, Aderivaldo Ramos de. Destinos de Osifekunde. Revista de História da


Biblioteca Nacional. Ano 10. Nº. 118. Rio de Janeiro: Revista de História, 2015.

SANTOS, Joice. Em nome do pai, do filho e da Real Fazenda. Dossiê Tráfico de


Escravos. Revista de História da Biblioteca Nacional. Ano 10. Nº. 108.
Novembro/2014. Rio de Janeiro: Revista de História, 2014.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

“GLORIAS, LUTAS, VITORIAS ESSA É MINHA HISTÓRIA”: VASCO DA


GAMA E A LUTA CONTRA O RACISMO

JOÃO KAIO MIGUEL ARRUDA


UFCG/CFP
[email protected]

ORIENTADOR: ISRAEL SOARES DE SOUSA


UFCG/CFP
[email protected]

RESUMO

Esse trabalho tem a intenção de refletir sobre as consequências sofridas pelo Clube de
Regatas Vasco da Gama por lutar contra o racismo no futebol brasileiro. Em 1923 ano
que o Vasco foi campeão carioca, 34 anos após a abolição da escravidão, o preconceito
com os negros e as camadas mais populares da sociedade ainda era muito forte. A
equipe cruzmaltina, por agregar atletas negros, logo recebeu da imprensa da época, o
apelido de camisas negras. E isso em um esporte racista e classista com certeza teria um
preço a ser pago. Com a saídas dos times da Zona Sul da Liga Metropolitana e a criação
da AMEA foram criadas cláusulas absurdas, no tocante à participação dos clubes, tendo
como alvo a equipe do Vasco, que reunia negros e pobres. A partir desse momento, em
que o clube se ver prejudicado e mergulhado em meio a tanto preconceito, passa a
militar pela participação dos negros e das camadas populares no futebol brasileiro.
Palavras-chaves: Vasco da Gama; Racismo; Resistencia.

INTRODUÇÃO

―Glorias, Lutas, Vitorias Essa é Minha História‖¹ esse trecho presento no tìtulo faz
referência a uma música criada pela torcida do Vasco, chamada de Camisas Negras. ―Camisas
Negras‖ foi o apelido que a equipe recebeu da imprensa carioca em 1923, quando venceu seu
primeiro campeonato, sendo composta por negros, operários e brancos pobres. A música faz
referências às lutas travadas pelo Vasco em favor dos menos favorecidos e, principalmente,
contra o racismo; como podemos perceber em outro trecho: ―(...) Jamais terás a cruz, esse é meu
batismo, eu tive que lutar contra o teu racismo (...) ‖, e feito referência a construção do estádio
que tem todo um contexto de luta por trás ―(...). Eu vou torcer, aqui eu ergui meu templo para
vencer (...)‖.

O futebol chegou ao Brasil no final do século XIX vindo da Inglaterra, como a


maioria das coisas da época, era um esporte elitizado e praticado apenas por brancos de
classe média alta, prova disso é que era um esporte praticado em clubes de associação, e
nem todo mundo tinha condição de ser sócio de um clube. O Rio de Janeiro, na

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

condição de capital federal era a principal cidade do país naquele momento e tinha
quase que a obrigação de incorporar as práticas do chamado ―mundo civilizado‖.
Grupos urbanos procuravam aproximar-se o máximo possível dos exemplos europeus
de organização econômica e de sua estrutura social, atitudes e modo de viver
(GRAHAM, Richard, 1973). Nesse contexto, ―o futebol tornara-se um novo item da
modernidade europeia que não podia faltar aos anseios e atualização da elite brasileira‖
(FRANCO JUNIOR, Hilário, 2007, p. 63).

Com isso, esse trabalho tem o intuito de mostrar como foram dados os pontapés
iniciais para a democratização desse esporte, que deixou de ser apenas de uma elite para
se tornar o mais popular do país, chegando ao ponto de se confundir o país com o
esporte. Esse processo de democratização se dá a partir do Clube de Regatas Vasco da
Gama, clube formado por portugueses da Zona Norte. O Vasco não foi o primeiro clube
a inserir negros, operários e analfabetos no futebol, mas foi o primeiro a lutar por eles, e
isso, acarretou consequências e são essas consequências que serão discutidas ao longo
do texto.

Serão apresentadas também as diferentes narrativas que perpassam esse assunto


da democratização do futebol brasileiro. Debate travado entre Antônio Jorge G Soares e
a obra de Mario Rodrigues Filho O Negro no Futebol Brasileiro. Nela, Mario Filho vai
dizer que depois de 1923, quando o Vasco venceu seu primeiro campeonato carioca
com a participação de negro, operários e analfabetos no seu plantel, isso abalou as
estruturas da soberania das elites cariocas causando consequências para o time
cruzmaltino e abrindo de vez o espaço para os excluídos no esporte. Já Soares discorda
principalmente do fato de que o livro de Mario filho é usado quase como unanimidade
de fonte histórica. Ele aponta também que a elite carioca não tinha tanta resistência
assim com esses excluídos, e o que aconteceu depois de 1923 com o Vasco da Gama
não foi por uma questão racista e sim por uma discussão da profissionalização ou não
do futebol, isso vai ser melhor discutido na frente.

E por fim será mostrado como aconteceu a construção de um dos maiores


símbolos contra o racismo e a favor dos trabalhadores, o estádio do Vasco da Gama,
São Januário, construído em 1927, na época, o maior estádio da América latina, estádio
esse que foi construído com a ajuda dos torcedores e foi lá que anos depois o presidente
da época Getúlio Vargas leu as primeiras leis trabalhistas do Brasil.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

VASCO DA GAMA, OS NEGROS, OS OPERÁRIOS E OS ANALFABETOS, E O


TÍTULO DE 1923

É sabido que o primeiro time a ter um negro jogando foi o Bangu, mas por medo
de represálias, logo voltou atrás na sua atitude. O primeiro caso que teve repercussão
envolvendo um negro jogando futebol foi o do jogador Carlos Alberto, em 1914, a
repercussão não foi por um motivo positivo.

Carlos Alberto entrou em campo defendendo o Fluminense Futebol Club, e por


medo de rejeição da aristocracia da torcida do Fluminense pela cor da sua pele o
jogador entrou em campo coberto de pó de arroz; mas, com o passar do jogo, o suor foi
tirando a maquiagem do jogado. Depois desse episódio, os outros times cariocas
começaram a chamar o Fluminense de pó de arroz, com um intuito pejorativo por ter
colocado um negro em campo e esse apelido perdura até hoje no time tricolor.

O Vasco da Gama foi fundado no dia 21 de agosto de 1898, um grupo de mais


ou menos sessenta e dois homens, entre eles alguns brasileiros, mas a maioria era de
portugueses ligados à colônia portuguesa radicada na cidade do Rio de Janeiro. A
reunião foi feita no salão do sobrado na Rua da Saúde. O clube, inicialmente, foi
fundado com intuito de se praticar somente o remo. A fundação teve inspiração nas
celebrações do IV Centenário da Descoberta do Caminho para as Índias, como a
maioria era de portugueses, os fundadores batizaram a nova agremiação com o nome de
um personagem heroico para eles, com isso nascia o Club de Regatas Vasco da Gama.

Em 1922, o Vasco venceu a segunda divisão do campeonato carioca, obtendo


assim o acesso à elite do futebol carioca, e já era um time compostos por negros,
operários e homens pobres. Isso não chamou muita atenção dos times da elite do Rio de
Janeiro, mas quando em 1923 o Vasco venceu a primeira divisão, desbancando o
Flamengo, Fluminense e Botafogo com o mesmo time de negros e excluídos; isso sim
chamou a atenção e criou incômodo nos times da Zona Norte, incomodo esse causado
não somente pela derrota, e sim por ser derrotados por um time de negros, pobres e
analfabetos

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Como Mario Filho diz no livro O negro no Futebol Brasileiro, os times da elite
carioca não se importavam com os negros jogando futebol, desde que eles estivessem
jogando em times pequenos e em divisões inferiores, que seriam de fato, o lugar deles.

O time ficou conhecido como Camisas Negras, com uma campanha arrasadora
no campeonato de 1923, sagrou-se campeão com onze vitorias, dois empates e apenas
uma derrota. Quebrando a hegemonia do Flamengo, Fluminense, Botafogo e América,
times que eram exclusivamente compostos por brancos. Muito se diz que esse sucesso
avassalador do Vasco de sair de divisões inferiores para conquistar a elite do futebol
carioca estava nos negros, mulatos e brancos, pobres e bons de bola, que o Vasco havia
recrutado nos campos de subúrbio.

Com isso, entendemos que o Vasco da Gama não tinha pretensões explícitas de
inclusão social e não era todo negro ou todo pobre que iria jogar no Vasco, tinha que ser
bom de bola. A diferença do Vasco para os outros times que tinham negros e pobres no
plantel é que, quando foi preciso, o Vasco lutou por eles e não se acovardou e por isso
teve sofrer as consequências.

VASCO DA GAMA E O PÓS 1923

Como já era de se esperar, a vitória do Vasco causou estranhamento na elite


carioca, e isso teve consequências para o time cruzmaltino, mas analisando hoje, a luz
do nosso tempo, dopemos dizer que o que aconteceu pós 1923 acabou sendo benéfico
para o Vasco e para o futebol brasileiro, pois o mesmo passou por um processo de
democratização.

O medo dos times da elite carioca era que, em 1924, se repetisse a cena e um
time de negros, pobres e analfabetos fosse novamente campeão do Rio. Com isso, no
ano seguinte à conquista vascaína, um movimento liderado por Fluminense, Botafogo e
Flamengo, com apoio do Bangu e do São Cristóvão começou a tecer críticas à Liga
Metropolitana. A alegação era de que a Liga Metropolitana não estava supervisionando
corretamente o campeonato para mantê-lo em condições de amadorismo.

Com isso, os times deixam a Liga Metropolitana e criam a AMEA (Associação


Metropolitana de Esportes Atléticos). Na criação dessa nova associação foi elaborado
também um novo estatuto e nele foram colocadas cláusulas que evidentemente eram
para atingir o time do Vasco que tinha sido campeão no ano anterior.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Entre as cláusulas supracitadas estão: a não permissão de inscrições de jogadores


que não tivessem uma profissão definida, jogadores analfabetos; o discurso usado era de
que se queria a manutenção do campeonato, para que não tivesse a natureza amadora.
Dessa forma, além de atingir o Vasco, o estatuto apresentava caráter preconceituoso ao
negar a participação de negros, pobres e analfabetos.

Essas cláusulas atingiam principalmente os negros, pois em uma sociedade que


há pouco tempo havia saído de um sistema escravocrata e não tinha dado suporte algum
aos negros libertos, o que restou para eles foi viver a margem da sociedade e a partir de
trabalhos informais, ou seja, não tinha nenhuma profissão definida. Nesse contexto,
educação era coisa da elite, a taxa de analfabetismo nessa época era enorme, então não
havia possibilidade de um operário, ou mesmo um branco sendo ele pobre de participar
dessa nova associação.

A organização da AMEA mandou um ultimato para o time do Vasco, afirmando


que para o time participar do campeonato teria que se desfazer de doze jogadores,
coincidentemente todos negros, mulatos e pobres, foi aí que o então presidente do
Vasco, José Augusto Prestes, no dia sete de abril de 1924, mandou uma carta aberta em
resposta a AMEA, que ficou conhecida como Resposta Histórica. Nessa carta, o Vasco
reclamava do modo que a associação estava tratando o clube, já que aquelas cláusulas
estavam ali para atingir diretamente o clube cruzmaltino, a carta reclama também dos
privilégios que os times fundadores possuem.

As resoluções divulgadas hoje pela imprensa, tomadas em reunião de


hontem pelos altos poderes da Associação a que V. Exa. Tão
dignamente preside, collocam o Club de Regatas Vasco da Gama
numa tal situação de inferioridade, que absolutamente não pode ser
justificada, nem pelas defficiencias do campo, nem pela simplicidade
da nossa sede, nem pela condição modesta de grande número dos
nossos associados.
Os privilégios concedidos aos cincos fundadores da A.M.E.A., e a
forma porque será exercido o direito de discussão a voto, e feitas as
futuras classificações, obrigam-nos a lavrar o nosso protesto contra as
citadas resoluções. (CARTA ABERTA DO VASCO DA GAMA,
1924, P.1).

Em relação à eliminação dos jogadores do elenco, foi decidido entre os


jogadores e a diretoria que não sairia ninguém do time. Havia indignação no clube
porque a investigação feita para a exclusão dos jogadores foi de natureza

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

exclusivamente étnica e de classe social, ―(...) investigação levada a um tribunal onde


não tiveram nem representação nem defesa‖. (CARTA ABERTA DO VASCO DA
GAMA, 1924, P.1). O Vasco termina a carta explicando que não vai excluir seus
jogadores e que estaria desistindo de participar da AMEA.

Estamos certos que V. Exa. (Presidente da associação) será o


primeiro a reconhecer que seria um acto pouco digno da nossa parte,
sacrificar ao desejo de fazer parte da A.M.E.A., alguns dos que
luctaram para que tivéssemos entre outras victorias, a do Campeonato
de FootBall da Cidade do Rio de Janeiro de 1923.
São esses doze jogadores jovens, quasi todos brasileiros, no começo
de sua carreira, e o acto público que os pode macular, nunca será
praticado com a solidariedade dos que dirigem a casa que os acolheu,
nem sob o pavilhão que elles com tanta galhardia cobriram de glorias.
Nestes termos, sentimos ter que comunicar a V. Exa. que desistimos
de fazer parte da A.M.E.A.
Queira V. Exa. acceitaros protestos de maior consideração estima de
quem tem a honra de subscrever.
De V. Exa. AttVnr., Obrigado.
(a) José Augusto Prestes, Presidente. (CARTA ABERTA DO
VASCO DA GAMA, 1924, P.1).

Foi assim que o Vasco lidou com a situação, se opondo a pressão da elite carioca. A
partir do momento em que o Vasco foi campeão, começou a surgir esses movimentos entre os
grandes clubes para frear esse processo vascaíno. América, Botafogo, Flamengo e Fluminense
não suportaram a vitória de um clube de portugueses e de um time de gente negra e humilde. E
isso começou a ser percebido pela imprensa, o incômodo dos dirigentes dos clubes grandes com
o título do Vasco. Isso pode ser visto na última rodada do campeonato, quando o Vasco já tinha
se consagrado campeão e pediu para o Bangu, que não tinha mais nenhuma pretensão naquele
campeonato, para que o jogo fosse adiantado em virtude do campeonato de regatas. Nessa
época, se o Vasco conseguisse o campeonato de remo se igualaria ao Flamengo, que em 1920
sagrou-se Campeão de terra e mar. O Bangu não apresentou problema algum em adiantar o
jogo e aceitou o pedido do Vasco, mas a diretoria da LMDT não aceitou. E entre os principais
periódicos da cidade, o Correio da Manhã destacava:

O VASCO, DESTA VEZ, FOI A VICTMA


Essa diretoria da Metropolitana sempre saiu melhor que a
encomenda... Desastrada em sem tecto desde o início de sua
administração, ella continua no terreiro das ―gaffes‖, cega, coitadinha,
a dar por paus e por pedras. Há um caso recente que define
administrativamente, o tino dessa meia dúzia de esbirros sportivos. O
Vasco da Gama – é preciso esclarecer que o Vasco nunca esteve muito
nas boas graças daquella gente – tinha a sua colaboração na tabela

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

perfeitamente definida, desde o match com o S. Cristóvão. O jogo


com o Bangu era uma simples formalidade [...] Pois bem, o Vasco, de
comum acordo com o Bangu solicitou a transferência do match,
allegando o motivo justíssimo de ter, no mesmo dia, na cidade, a
disputa do campeonato de remo, coisa que o interessava immenso.
Não havia nada que obstasse. Nenhuma razão de ordem moral ou de
qualquer outra espécie existia para se negar só Vasco essa
transferência pedida. A directoria da Liga, do alto das suas
tamanquinhas, para fazer uma careta ao club campeão, não havia
explicações possíveis. (CORREIO DA MANHÃ, 23 de agosto de
1923).

Como podemos perceber na matéria do Correio da Manhã, principalmente na


frase ―(...) é preciso esclarecer que o Vasco nunca esteve muito nas boas graças daquella
gente (...)‖, o Vasco não tinha a mesma força na Liga que tinham os outros times,
principalmente os da Zona Norte e esse incômodo que o Vasco causava foi o que fez
esses times se reunirem e excluírem o Vasco da AMEA.

O Vasco ficou disputando a Liga Metropolitana no ano de 1924 e os seus jogos


chamavam a atenção por serem sempre lotados. O time tinha a maior torcida do Rio na
época e seus torcedores adoravam assistir aos jogos do time, onde quer que fosse. Isso
rendia muita receita para os times menores. Já na AMEA, era um pouco diferente, pois
sem o Vasco os públicos não eram muito grandes, o Fluminense muito reclamou
alegando que suas receitas vinham das piscinas e do bilhar, o esporte só estava dando
prejuízo e isso por que o clube foi campeão em 1924.

Com isso, a AMEA teve que rever a situação e aceitar o Vasco. O time, que já
havia sido campeão da Liga Metropolitana em 1924, mas era grande demais para jogar
só com os pequenos, mesmo ferindo o sentimento da aristocracia carioca, entrava na
liga.

UM SÍMBOLO CHAMADO SÃO JANUÁRIO

Umas das dificuldades que o Vasco enfrentou na época o fato de não ter um
estádio próprio. Quando ele chega na primeira divisão, foi obrigado a jogar em estádios
maiores e mais seguros do que ele estava acostumado, com isso pagava alugueis
caríssimos. Umas das cláusulas que tinha no regulamento da AMEA e que também
dificultou a entrada do Vasco na associação foi o fato do time não ter um estádio
próprio e seguro. João Manuel Casquinha Malaia Santas trata disso em sua defesa de

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

doutorado na Universidade de São Paulo, intitulada de Revolução Vascaína: a


profissionalização do futebol e a inserção sócio-econômica de negros e portugueses na
cidade do Rio de Janeiro (1915-1934), ele fala que

Com a chegada do clube à primeira divisão, as acanhadas


acomodações da Rua Morais e Silva, com as arquibancadas e a torcida
colados no campo de jogo, assustavam m as grandes equipes, que
exigiam que o Vasco jogasse em praças maiores e mais seguras. Dessa
maneira, a equipe pagava altos alugueis ao Botafogo, ao América, ao
Fluminense e até mesmo ao Andarahypara jogar nas casas alheias.
Esse teria sido um dos argumentos para a não aceitação do Vasco na
AMEA. Dizia-se que o clube não tinha estádio, que não tinha praça
esportiva própria. Frente aos obstáculos criados pela AMEA, os
portugueses se uniram para construir seu próprio estádio. (SANTOS,
2010, P. 348).

Como já foi dito, de tantos pontos para o Vasco não entrar na AMEA, um deles
era não ter estádio. Esse ponto foi resolvido pelo time cruzmaltino no ano de 1926,
quando os portugueses decidiram se unir e construir o seu próprio estádio, não um
estádio qualquer, mas o maior e o mais bonito estádio da América do Sul, e isso tudo
apenas com o dinheiro dos sócios. De fato, o estádio do Vasco foi construído com o
dinheiro dos torcedores, as obras começaram dia 6 de junho de 1926 e a obra foi
entregue em 21 de abril de 1927. Com certeza, era mais que um estádio.

―Um estádio de futebol é mais do que apenas uma praça esportiva. É um


verdadeiro santuário religioso‖. (SANTOS, 2010, p.348). De fato, um estádio é muito
mais do que uma praça esportiva, é um ponto turístico de uma cidade, hoje em dia,
dificilmente um turista vai ao Rio de Janeiro e não visita o Maracanã, ou em Barcelona
e não visita o CanpNou. São Januário era mais que um estádio, era e é um santuário
para os torcedores e um ponto turístico para quem visita o Rio.

O estádio é um símbolo de conquista para os vascaínos, construído com a ajuda


dos seus torcedores ele foi usado para além do esporte, como mostra Santos:

Aquele estádio, construído à base do esforço da colônia portuguesa, era a


grande conquista do Vasco. Palco de muitas manifestações, não só
esportivas, mas também políticas, sendo o local preferido para as
manifestações do 1ª de Maio organizadas sob a égide do governo Vargas
durante a década de 1930 e início de 1940. O estádio foi palco da maior
renda conseguida na história do futebol conhecido como amador no Rio de
Janeiro. (SANTOS, 2010, P. 357).

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

O estádio virou símbolo dos direitos trabalhistas, foi o espaço que Getúlio
Vargas usou para realizar uma enorme cerimônia para anunciar, em 1940, para todo o
país, a criação do salário mínimo, e em 1943 a promulgação da Consolidação das Leis
do Trabalho, a famosa CLT. Todos esses movimentos sociais e políticos que
aconteceram em São Januário, só mostram como o estádio virou referência nesse
quesito, alterando toda a lógica geográfica, econômica e social do Bairro São Cristóvão.

Com o tempo, São Januário adotou todos esses símbolos de lutas, contra o
racismo, a discriminação social, a favor dos trabalhadores e dos menos afortunados. E
das consequências que o Vasco teve que arcar em fazer a manutenção dos Camisas
Negras, a obrigação de construir um estádio foi uma das melhores coisas que aconteceu
com o time.

AS DISSONÂNCIAS DAS NARRATIVAS, MÁRIO FILHO VERSUS JORGE


SOARES

Mario filho era um dos mais importantes cronistas esportivos brasileiros do


Século XX, além de jornalista, era proprietário do Jornal dos Sports, ele escreveu uma
das obras mais importantes da literatura esportiva brasileira, o livro chamado O negro
no futebol brasileiro. O livro apresenta toda a dificuldade que teve o negro dentro do
futebol e como ele lutava contra uma elite que não o queria ali. O texto colocou o Vasco
da Gama como um dos principais agentes dessa luta. Depois da vitória vascaína em
1923, Mario filho diz:

Desaparecera a vantagem de ser de boa família, de ser estudante, de


ser branco. O rapaz de boa família, o estudante, o branco, tinha de
competir, em igualdade de condições, com o pé-rapado, quase
analfabeto, o mulato e o preto para ver quem jogava melhor. Era uma
verdadeira revolução que se operava no futebol brasileiro.
(RODRIGUES FILHO, 2003, P. 126).

Como foi visto, a vitória do Vasco na segunda divisão não chamou muita
atenção, mas quando o time venceu a elite dos times cariocas, aí sim despertou a ira dos
rivais, Mario filho fala que para os times da elite do Rio enquanto os negros estivessem
em times menores, onde seria seu lugar, estava tudo bem.

Ninguém ligou para a importância à ida do Vasco para a primeira


divisão. Que é que podia fazer um clube da segunda divisão (...) O
Vasco que botasse quantos mulatos, quantos pretos quisesse no time.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Tudo continuaria como dantes, os mulatos e os pretos nos seus lugares,


nos clubes pequenos. (RODRIGUES FILHO, 2003, p. 121).

A primeira vitória de um time formado por negros com certeza teria abalado a
estrutura hierárquica de uma sociedade onde havia discriminação racial e social. Mas,
Soares discorda da forma que Mario filho conta os fatos; para ele a vitória do Vasco não
teria toda essa carga dramática, e, além disso, estaria recheada de incoerências, como as
que ele cita a seguir:

A vitória inquestionável do Vasco em 1923 não teria esse tom


dramático se simplesmente pensássemos que aquela equipe foi
montada com excelentes jogadores dedicados quase exclusivamente
ao futebol, isto é, que viviam sob uma estrutura semiprofissional bem-
sucedida em relação aos demais. Não teria o charme que tem caso
aqueles que se nutrem de Mario Filho estivessem atentos à própria
narrativa de seu inspirador, quando descreve que a equipe do Vasco
era treinada exaustivamente por Platero e os jogadores eram
superiores em termos de preparação física porque viviam como
―meninos de colégio interno‖. Argumentos dessa natureza não
serviriam para realizar um discurso épico do negro ou da mistura
racial, com a roupagem do politicamente correto, como o que é
apresentado nos artigos acadêmicos sobre o futebol. (SOARES,
2001b, p. 118-119).

Jorge Soares defendeu sua tese de doutorado, intitulada Futebol raça e


nacionalidade no Brasil – releitura da história oficial, em Educação Física, na
Universidade Gama Filho. Ele critica veementemente o fato do livro de Mario filho ser
usado como única e exclusiva fonte histórica sobre o futebol brasileiro. Ele afirma que
os pesquisadores não se dão ao trabalho de procurar novas fontes de pesquisa e quando
se dispões a fazer um trabalho sobre futebol apenas reproduzem o que foi dito por
Mario Filho, ele chama esses pesquisadores de ―Novos Narradores‖ pelo fato de apenas
narrar o livro de Mario Filho.

(...). De fato, não haveria problema algum se a obra fosse tomada


como mais uma fonte de informação e contrastada ou cruzada com
outras. O problema é que a obra em questão tem sido utilizada, no
interior das ciências sócias, como prova para as interpretações,
estabelecidas a priori, sobre as relações raciais no futebol e sobre o
singular estilo de futebol nacional. A carência de historiografia sobre
futebol converteu O Negro no Futebol Brasileiro em laboratório de
provas, sem passar pelo rigor crítico. Um dos sintomas da carência, ou
mesmo da ausência de fontes é o fato de os consumidores do Negro no
Futebol brasileiro, que chamo de ―novos narradores‖, construìrem
legitimações acadêmicas da obra e de seu autor. (SOARES, 2001ª, p.
14).

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Soares pauta sua pesquisa em jornais do ano de 1924 para apontar erros e
incoerências na obra de Mario Filho. Para ele a questão central de toda a discussão não
era o racismo da elite carioca e sim a questão do amadorismo, ele diz que os clubes
cariocas até aceitariam negros jogando futebol, mas queria a garantia que fosse em
condição de amadorismo. Os negros não tinham um nome familiar ou uma profissão de
prestigio, e por isso quando se apresentava para jogar em um time de primeira divisão
sua condição de amador era logo colocada sob suspeita.

Soares lembra que a maioria dos negros e mestiços do Rio não tinha bons
empregos nem uma boa condição social, a lógica era ―quanto melhor condição social e
econômica, maior a probabilidade do jogador ser amador‖ (SOARES, 2001b, p. 117).
Para Soares essa ideia pairava sobre as cabeças dos dirigentes dos times, assim é
provável que a desconfiança fosse maior em relação aos negros sem sobrenome de
prestígio.

Soares faz uma conclusão a respeito do assunto, e ele diz que apontar as
incoerências nessa história não é bem visto, por que seria politicamente incorreto tentar
desmitificá-la.

A ―história‖ de racismo e perseguição da AMEA aos negros e


mestiços do Vasco em 1924 tem, no máximo, servido à construção de
um discurso acadêmico politicamente correto, cuja eficácia é apenas
de reforço da identidade positiva dos vascaínos. Para concluir,
reforçamos que a crise vivida no futebol carioca nos anos 20 fazia
parte de uma configuração mais ampla do esporte; e que não se
limitava ao Brasil. A popularização do futebol, seu processo de
transformação em negócio e em profissão estava tensionado pelos
valores amadorísticos ou aristocráticos do esporte. (SOARES, 2001b,
p. 119).

Dois autores chamados de ―novos narradores‖ por Soares se dedicaram a


responder partes das críticas de Soares sobre o Negro no Futebol Brasileiro, César
Gordon Júnior e Ronaldo Helal eles respondem partes das críticas e apresentam novos
argumentos, eles dizem que mesmo que a obra de Mario Filho não possa ser usada
como prova do que de fato aconteceu, ela pode muito bem ser usada como uma
literatura que reflete bem o preconceito que existia na época. Para eles, os casos
descritos no livro sejam ―verdadeiros‖ ou ―falsos‖, expressariam justamente sua força
histórica quando nos permite vislumbrar esse ―clima da época‖.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Os autores dizem que é louvável o trabalho de Soares em apontar os erros


metodológicos dos ―novos narradores‖, mas questionam sua posição radical em negar
qualquer possibilidade de utilização histórica do texto de Mario Filho.

Outra crìtica que os autores fazem ao trabalho de Soares é que ―(...) onde se lia
‗racismo‘, propõe que se leia ‗amadorismo x profissionalismo‘. E essa redução não nos
parece nem profícua do ponto de vista metodológico, nem justa do ponto de vista
histórico‖. (HELAL e GORDON JÚNIOR, 2001, p. 57). Os apontamentos feitos as
críticas de Soares podem ser resumidas da seguinte maneira:

Mesmo considerando que os argumentos de Soares merecem uma


análise mais detida e aprofundada, iremos nos limitar, por motivos de
espaço, a discutir quatro pontos de seu argumento, que na verdade estão
interligados ao longo do texto, ainda que nem sempre formulados de
modo explícito: 1) a crítica à utilização do NFB como fonte histórica; 2)
a recusa em considerar a pregnância do idioma simbólico do racismo na
história do futebol brasileiro; 3) a negação de um processo de
relaxamento das tensões raciais no universo do futebol; 4) a
desconsideração da ideologia da identidade nacional como instrumento
heurístico relevante para a compreensão dessa história (HELAL e
GORDON JÚNIOR, 2001, p. 52).

Nessa disputa esse trabalho vai pender mais para o lado dos ―novos narradores‖,
como foi dito o trabalho de Soares é louvável, a iniciativa que ele teve também em
cobrar um maior rigor de pesquisa nos trabalhos, mas o problema é que aparentemente
ele não dá muita atenção ao contexto histórico que esses personagens estão inseridos. O
futebol foi implantado no Brasil pouco tempo depois do fim da escravidão então o
sentimento de superioridade de raça ainda estava muito arraigado naquela sociedade.

E o futebol como um esporte vindo da Inglaterra, um esporte de elite, essa


discursão não iria se pautar apenas entre amadorismo e profissionalismo como aponta
Soares, isso é desconsiderar toda historicidade da época, é querer tirar a atenção do
racismo que com certeza existia e existi. É a mesma coisa de quando discutimos cotas
raciais hoje, muito se fala que uma considerável negação que se tem a esse modelo não
é por que ainda exista racismo no Brasil, a discursão é outra, é a meritocracia coisa que
em um país tão desigual como o Brasil, não existe, ou seja, desculpa para encobrir o
racismo institucionalizado que temos em nosso país. Helal e Gordon finaliza dizendo:

Enfim, por que o futebol estaria imune às representações sociais do


negro e da mestiçagem que se constituíam num discurso ou num
idioma que imperava em todas as outras instâncias da vida social,

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incluindo as políticas públicas (discussões sobre legislação


imigratória, reformas penais etc.)? Parece no mínimo um contra-
sensoimaginar que o futebol, desde o período de sua implantação
como fenômeno cultural de massa, pudesse ficar imune à penetração
das representações sociais do negro e da mestiçagem (HELAL e
GORDON JÚNIOR, 2001, p. 62-63).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao final desse trabalho percebemos a importância da atitude do Vasco em não


ceder às vontades da AMEA, isso fez com que a associação percebesse a força que tinha
o Vasco, tanto que dois anos depois foi quase obrigada a inserir o Vasco tendo que
reconsiderar seu orgulho e seu preconceito.

Apesar de não ser o primeiro time a ter negros integrando o plantel, foi o que
ficou com a imagem mais fixada nesse tema, quando se fala em inserção racial no
futebol se lembra quase que involuntariamente do Vasco da Gama. E isso se dá muito
pelo que vimos nesse trabalho, a resistência do Vasco em ceder às pressões da elite
carioca e da AMEA, em fazer uma carta aberta se negando excluir doze jogadores
negros e pobres para fazer parte da nova associação dos times da Zona Sul, e nessa
mesma carta demonstrou a importância desses mesmo jogadores para o time.

Podemos observar também que mesmo com as tentativas de boicote que o Vasco
foi sofrendo, simples pedidos sendo negados como o caso do adiantamento do jogo
contra o Bangu com o campeonato praticamente acabado e com acordo já feito entre o
Bangu e o Vasco a Liga Metropolitana negou pedido, simplesmente por ser o Vasco.

Temos que entender que essa relação que é feito entre o Vasco é causas sócias,
se dá em partes por uma negação que os times grandes do Rio em querer incorporar
pessoas de classes tidas como inferiores. Por que permitir que negros joguem futebol,
mas só que em classes inferiores é sim racismo, e diferente de Soares que pauta toda
discussão negando o racismo e substituindo por amadorismo versus profissionalismo, se
ele desse mais atenção ao contexto social da época iria ver que uma coisa não anula a
outra, discutir se o futebol deve ser amador ou profissional em nenhum momento nega o
racismo existente.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

São histórias como essas que vão fixando em nossa memória essa relação do
Vasco da Gama com causas sócias. E depois da construção de São Januário só fez
reforçar essa imagem, por que além da imagem da luta contra o racismo e a inserção de
camadas baixas no futebol estar ligada diretamente ao Vasco, depois de São Januário as
lutas trabalhistas começaram a ser relacionadas ao estádio, pelo fato de Getúlio Vargas
fazer cerimônias para apresentações dos direitos no estádio, e se estar relacionado ao
estádio inevitavelmente vai ser relacionado ao clube também. As memórias vão se
fixando a partir de pequenos momentos que juntos criam uma forte memória coletiva.

São por esses pontos apresentados no trabalho que discordamos da tese de


Soares, quando ele diz que o Vasco sofreu as sanções não pelo racismo e sim pela
manutenção do amadorismo no futebol, como já dissemos isso é negar todo o contexto
histórico e simplificar muito as relações sócias da época, entendemos que não se pode
usar a obra de Mario Filho como única fonte histórica, mas também não podemos negá-
la totalmente, é uma obra literário que de alguma forma representava aquela época.

REFERENCIAS.
HELAL, Ronaldo e GORDON JÚNIOR, César. ―Sociologia, história e romance na
construção da identidade nacional através do futebol‖. In: HELAL, Ronaldo. A
invenção do país do futebol: mídia, raça e idolatria, Rio de Janeiro: Mauad, 2001: p.
51-76.

HELAL, Ronaldo e TEIXAIRA, João Paulo Vieira. O Racismo no Futebol Carioca na


Década de 1920: Imprensa e Invenção das Tradições. Revista de Ciências Sociais,
Fortaleza, v. 42, n. 1, jan/jun, 2011, p. 77-88

MATOS, Marcelo da Cunha. O contexto da produção de um objeto geográfico na


cidade do Rio de Janeiro e sua centralidade: o estádio de São Januário. Rio de
Janeiro: UERJ, 2004. P. 38-45.

RODRIGUES FILHO, Mario. O negro no futebol brasileiro. 4ª edição. Rio de


Janeiro: Mauad, 2003.

SANTOS, João Manoel Casquinha Malaia. Revolução Vascaína: a profissionalização


do futebol e a inserção sócio-econômica de negros e portugueses na cidade do Rio de

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Janeiro (1915-1934). Tese (Doutorado em História Econômica) - Faculdade de


Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. 2010.

SOARES, Antônio Jorge G. Futebol raça e nacionalidade no Brasil – releitura da


história oficial. Tese (Doutorado em Educação Física) - Universidade Gama Filho.
1998.

TEIXAIRA, João Paulo Vieira. 1923: investigação sobre a existência de racismo no


noticiário esportivo carioca. 2010. P. 29-42.

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PROTAGONISMO INDÍGENA: PRÁTICAS COTIDIANAS DA RESISTÊNCIA


XUKURU-KARIRI EM PALMEIRA DOS ÍNDIOS/AL

AMANDA MARIA ANTERO DA SILVA


UFCG
[email protected]

EDSON SILVA
UFCG
[email protected]

RESUMO

Esse texto busca refletir sobre as formas de resistências que vem sendo adotadas pelos
indígenas Xukuru-Kariri, habitantes no Município de Palmeira dos Índios no estado de
Alagoas, mas especificamente focalizar as práticas cotidianas de reelaborações,
apropriações e adaptações que foram empregadas ao longo da História. Tomando como
fundamentação teórica as abordagens sobre o conceito de resistência expresso por
Certeau (1998) e James Scott (2002) que afirmaram a resistência como algo construído
cotidianamente diferindo de uma resistência armada e direta ou confronto aberto. As
reflexões também foram alicerçadas nas contribuições de alguns pesquisadores
vinculados a chamada história indígena como John Monteiro (1999), Maria Regina
Celestino de Almeida (2010), Silva Junior (2013), dentre outros.
Palavras-chaves: História Cultural; Indígenas; Invisibilidade; Resistência.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A história dos povos indígenas foi marcada por um grande impacto cultural no
processo de colonização. O contato com o europeu desestabilizou o sistema cultural
indígena, com a introdução de novos costumes, língua e o propósito de integração
forçada tornou-se necessário resistir para manter a cultura indígena.
Durante muitos séculos esses grupos indígenas foram vítimas de inúmeros atos
de violência, desde as físicas às psicologias, no entanto não podemos reduzi-los apenas
a seres vitimados. Os índios a partir de sua própria percepção de mundo estiveram
mobilizados e resistiram por meio de práticas cotidianas de invisibilidade, reelaborações
e adaptações às investidas dos não índios em torná-los assimilados.
Desse modo, fez-se necessário uma revisão bibliográfica sobre como esses
grupos eram referenciados nos escritos de historiadores e romancistas, bem como a
introdução dos indígenas como sujeitos na história. Durante séculos os índios estiveram

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

à margem da História Oficial por serem considerados povos sem história, uma vez que
viviam ainda na ―selvageria‖ e não havia indìcios de grandes feitos que os levassem ao
patamar da civilização e assim negaram a sua participação na escrita da História.
A outra justificativa para a exclusão do índio da História era a falta de fontes
escritas que permitissem retomar com veridicidade o passado. O constante diálogo com
a antropologia permitiu que a História se abrisse e compartilhasse a oralidade e a
memória como fonte para a investigação histórica.
A História Cultural vem contribuir para que novos paradigmas e abordagens
sejam repensados e imbricados na pesquisa. O diálogo com outras disciplinas como a
psicologia, a linguística e principalmente com a antropologia a partir da década de 1970
possibilitou uma amplitude nos temas, nas fontes e nas metodologias aplicadas,
representando ―a constituição de novos territórios do historiador através da anexação do
território de outros‖ (CHARTIER, 1990, p. 14).
A escola dos Annales francesa através de Marc Bloch e Lucien Febvre
proporcionou essa interdisciplinaridade e abriu espaços para novas conjecturas
contribuindo para a renovação da historiografia e criando a denominada ―Nova
História‖ que vai se debruçar em todas as atividades humanas e sujeitos sociais, indo
além da política e da narrativa dos fatos heroicos e da elite.
Os historiadores abandonaram os tradicionais relatos históricos de líderes e
instituições políticas direcionando a atenção para as investigações de toda composição
social e da vida cotidiana de operários, criados, mulheres e grupos étnicos (HUNT,
1992). Segue-se a proposta de uma História Total voltada para todos os campos
historiográficos, distanciando-se da ideia de totalidade defendida pelos positivistas.
Roger Chartier fazendo parte da quarta geração dos Annales defende que ―a
história cultural, tal como a entendemos, tem por principal objecto identificar o modo
como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é construída,
pensada, dada a ler‖ (1990, p. 17).
A partir das conjunturas da História Cultural poderemos compreender como as
comunidades indígenas se organizam e se percebem como grupos coletivos que além de
culturais, são sociais e políticos, bem como refletir quão esses indivíduos são notados e
representados pela sociedade que os cerca.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

AS MÚLTIPLAS FACES DO CONCEITO DE RESISTÊNCIA INDÍGENA

Os indígenas tem sua história caracterizada por estereótipos que os


desqualificava, passando a serem vistos como seres inferiores, idílicos e incapazes de
atuarem autonomamente pelos seus direitos precisando da tutela de um órgão superior
para falar por eles. As narrativas sobre os indígenas eram produzidas a partir da visão
europeia que exaltava o papel do europeu através do projeto de assimilação que traria a
civilização aos nativos. Para Varnhagem apud Monteiro (2003, p. 126), por exemplo, ―o
ìndio não teria história: apenas etnografia‖, por não conhecer a escrita, era considerado
sem História. Von Martiuns (1956, p. 144) também compartilhou desse olhar pessimista
sobre as populações indìgenas afirmando que ―o atual indìgena brasileiro, não é senão
um resíduo de uma muito antiga, posto que perdida história‖.
Essas concepções excluem e anulam a participação do índio na história
brasileira, no entanto após o debate dos Annales a cerca da produção historiográfica,
como citado anteriormente, a nova face da História vinculada aos que foram dominados
e que reivindicavam seu lugar social passam a tomar força e espaço nos debates
acadêmicos, como afirma Henri Moniot em um artigo denominado A história dos povos
sem história, publicado no livro organizado por Jacques Le Goff e Pierre Nora (1995)
intitulado História: novos problemas.

A tentativa feita pelas sociedades dominadas de voltarem a ter posse sobre si


mesmas atrai o reconhecimento das heranças que as definem, reconhecimento
não apenas sentimental mas realista e preocupado com uma inteligibilidade,
ao passo que no Ocidente, de repente, as iniciativas do terceiro mundo e sua
importância fazem sentir a necessidade de aumentar seu conhecimento e
compreensão. Mesmo que os antigos preconceitos não morram em todos os
lugares e imediatamente, o importante é que a curiosidade histórica teve
lugar, de forma suficientemente ampla para que então uma história crítica
forjasse os meios dos quais fora privada (1995, p. 100).

Esse intenso debate possibilitou uma desconstrução nas imagens estereotipadas


e preconceituosas. Após a década de 1980, consolidou-se a denominada ―Nova história
indìgena‖ com novas concepções sobre os povos indìgenas, principalmente com as
pesquisas de John Monteiro (1999; 2003), João Pacheco de Oliveira (2006), Maria
Regina Celestino de Almeida (2010), Edson Silva (2003), dentre outros pesquisadores.
John Monteiro em suas pesquisas busca evidenciar os índios como agentes
históricos tirando-os da condição de expectadores para o de protagonistas da história.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Não basta mais caracterizar o índio histórico simplesmente como vítima que
assistiu passivamente à sua destruição ou, numa vertente mais militante,
como valente guerreiro que reagiu brava, porém irracionalmente à invasão
europeia. Importa recuperar o sujeito histórico que agia de acordo com a sua
leitura do mundo ao seu redor, leitura esta informada tanto pelos códigos
culturais da sua sociedade como pela percepção e interpretação dos eventos
que se desenrolavam (MONTEIRO, 1999, p. 248).

Percebe-se que através de práticas diárias os indígenas por meio de sua própria
interpretação de mundo conseguiram resistir e driblar as investidas dos colonizadores
em relação aos costumes, religião e trabalho forçado que lhes eram impostos ao longo
dos séculos.
Certeau (1998) representou bem essas concepções quando trabalhou em sua
obra A Invenção do Cotidiano as formas como as pessoas que estiveram anônimas na
História construíram, através da arte do fazer, mecanismo de ressignificação e
acomodação de objetos que constituíam novos interesses. Pensando como o ler,
cozinhar, fazer compras, assistir davam suporte para entender a sociedade a sua volta
proporcionando formas de resistir à imposição de uma cultura ambivalente.
Seguindo a análise de Certeau, o conceito de bricolagem ―supõe que à maneira
dos povos indígenas, os usuários ‗façam uma bricolagem‘ com e na economia cultural
dominante, usando inúmeras e infinitesimais metamorfoses da lei, segundo seus
interesses próprios e suas próprias regras‖ (1998, p. 40).
O autor difere e analisa o conceito de estratégias e táticas ―a estratégia é o
cálculo das relações de forças que se torna possível a partir do momento em que um
sujeito de querer e poder é isolável de um ambiente‖ (CERTEAU, 1998, p. 46).

A tática depende do tempo, vigiando para ‗captar no vôo‘ possibilidades de


ganho. O que ela ganha, não o guarda. Tem constantemente que jogar com os
acontecimentos para os transformar em ‗ocasiões‘. Sem cessar, o fraco deve
tirar partido de forças que lhes são estranha. Ele o consegue em momentos
oportunos onde combina elementos heterogêneos (...) mas a sua síntese
intelectual tem por forma não um discurso, mas a própria decisão, ato e
maneira de aproveitar a ocasião (CERTEAU, 1998, p. 47)

A tática era uma das principais formas de resistência aplicada pelos indígenas
que aguardavam o momento mais propício para as ações, nesse caso alguns indígenas
que fugiam dos colonos ―adotavam táticas de emboscada para atacar as tropas
governamentais e bandeiras de preamento‖ (OLIVEIRA; FREIRE, 2006, p. 84).
Construíam um cotidiano a partir do que absorvia do europeu, reelaborando e adaptando

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

a sua cultura, muitos fingiam ter se tornados cristãos, mas ao mesmo tempo praticavam
seus rituais.
Em outros momentos negavam-se trabalhar para assim desestabilizar os
colonos que não conheciam o território. Maria Regina Celestino de Almeida (2017) com
base em John Monteiro afirma que somente as Capitanias de Pernambuco e São Vicente
tiveram êxito, porque os portugueses tiveram os índios como aliados, deve-se lembrar
que essas alianças eram feitas com objetivo próprio, poderia ser um emprego, proteção,
melhorias na condição de sua vida e de seus familiares entre outros privilégios,
entretanto nem sempre esses acordos eram consolidados.
É uma resistência que se refere a uma adaptação e a uma reelaboração
diferindo de uma resistência armada como citou, apropriando-se da concepção de Steve
Stern, Maria Regina Celestino de Almeida.

[...] as atitudes dos índios em relação aos colonizadores não se reduziram,


absolutamente, à resistência armada, à fuga e à submissão passiva. Houve
diversas formas do que Steve Stern chamou de resistência adaptativa, através
das quais os índios encontravam formas de sobreviver e garantir melhores
condições de vida na nova situação em que se encontravam. Colaboraram
com os europeus, integraram-se à colonização, aprenderam novas práticas
culturais e políticas e souberam utilizá-las para a obtenção das possíveis
vantagens que a nova condição permitia. Perderam muito, não resta dúvida,
mas nem por isso deixaram de agir (2010, p. 23).

Os índios sofreram muito, perderam familiares, territórios, liberdade e após


serem levados para os aldeamentos missionários buscavam tirar proveito do novo
espaço de vivência, ―as aldeias, por sua vez, serão vistas aqui como espaços de
sobrevivência dos índios aldeados na colônia, onde eles tiveram a possibilidade de
reelaborar suas culturas e identidades‖ (ALMEIDA, 2010, p. 73). Os ìndios buscavam o
mal menor, principalmente com o aumento dos conflitos e o avanço dos colonos que
tiravam seus territórios e dessa maneira a aldeia era uma das formas de sobrevivência,
local onde poderiam ter proteção e alguns privilégios relacionados à terra.
Sobre essa resistência cotidiana nos remetemos à discussão de James Scott
(2002) sobre a resistência camponesa, a qual ele analisa formas de oposição de uma vila
camponesa na Malásia produtora de arroz, os exemplos citados são os furtos anônimos
dos estoques de grãos de arroz que pareciam crescer em frequência e os boicotes que as
mulheres realizavam com as máquinas que eram introduzidas no trabalho agrícola.
As realidades em debate – indígenas e camponesas – são distantes em relação
ao espaço, a cultura e ao tempo, mas a associação é possível uma vez que são mundos

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

onde a exploração, a exclusão e o preconceito se faz presente. Ao definir essas


resistências James Scott declara que

A maioria das formas que essa luta toma cessa ao ser coletivamente
desafiada. Aqui tenho em mente as armas comuns dos grupos relativamente
sem poder: fazer ‗corpo mole‘, a dissimulação, a submissão falsa, os saques,
os incêndios premeditados, a ignorância fingida, a fofoca, a sabotagem e
outras armas dessa natureza (2002, p. 11-12).

Percebe-se na citação acima que essas formas de resistência cotidiana não


necessitam de grandes planejamentos e organizações, é algo que vai se construindo ao
longo da vivência e das experiências diárias e nem sempre se elaboram na coletividade.
É um trabalho minucioso que vai tomando corpo e atingindo um auto grau de
conquistas.
Essa mudança na percepção sobre a resistência indígena, enquanto estratégia
para além do confronto armado tem um importante espaço nos estudos de Edson Silva,
quando analisou a razão dessa nova abordagem.

Nesse sentido, foi ampliada a concepção do próprio conceito de resistência,


até então vigente, enquanto confronto conflitos bélicos, guerras com fins
trágicos a morte de milhares de indígenas, para uma concepção mais ampla
de relações culturais diferenciadas em um contexto de dominação e
violências culturais: a resistência cultural do cotidiano, através de gestos,
práticas, atitudes que quebraram uma suposta totalidade, hegemonia da
dominação colonial (2003, p. 40).

A resistência, portanto, pode ser entendida como um ato diário, realizado a


partir de mecanismos elaborados em meio à sociedade envolvente, em vista de uma
situação de exploração e imposição cultural. Para tornar a discussão mais clara baseia-se
nas as experiências dos Xukuru-Kariri para exemplificar como esses grupos atuaram e
modificaram a sua realidade através de atos simples e cotidianos que desestruturavam a
ordem vigente e possibilitavam a sua reafirmação étnica nos anos posteriores.

OS XUKURU-KARIRI: CONSTRUINDO UM COTIDIANO DE RESISTÊNCIA

A presença dos Xukuru-Kariri no município de Palmeira dos Índios no estado


de Alagoas é alvo de inúmeros embates, visto que a elite oligárquica é permanentemente
contra os índios, principalmente quando envolve as discussões sobre a demarcação de
terras. Os Xukuru-Kariri diante do processo de expropriação e de conflito territorial

553
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

passaram a ser representados pela elite oligárquica por meio de uma imagem deturpada
e excludente.
Segundo Roger Chartier em seu livro A história Cultural: entre práticas e
representações, ―as representações do mundo social assim construìdas, embora aspirem
a universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas pelos
interesses de grupos que as forjam‖ (1990, p. 17) e ele continua,

as lutas de representações tem tanta importância como as lutas econômicas


para compreender os mecanismos pelos quais um grupo impõe, ou tenta
impor, a sua concepção do mundo social, os valores que são os seus, e o seu
domínio (1990, p. 17).

A elite local passou a representar os indígenas através dos meios midiáticos


como seres preguiçosos, sinônimo de atraso para a economia do município e até como
inexistentes, desconsiderando a importância exercida pelo povo Xucuru-Kariri no
âmbito social, cultural e econômico e até mesmo no contexto histórico da ocupação
territorial do município.
Para melhor compreender os embates que se desenrolam no município
partiremos do contexto histórico em que foi se edificando os problemas territoriais.
Iniciaremos com o estabelecimento dos indígenas na região que posteriormente foram
desapropriados de seu território.
O povo Xukuru-Kariri é resultado da junção de dois povos, os Xukuru e os
Kariri, frente o avanço da expansão colonial para o interior do Nordeste. A resistência
dos indígenas pode ser compreendida a partir da forma como esses povos se
organizaram no passado e iniciaram o processo de fixação na região. Oriundos de
regiões diferentes, os Kariri, são descendentes dos Cariri habitantes na região da atual
Aldeia de Porto Real do Colégio, nas margens do rio São Francisco na divisa entre
Alagoas e Sergipe. Os Xukuru vindos do Agreste de Pernambuco, região dos atuais
municípios de Pesqueira e Poção, chegaram a Palmeira dos Índios posteriormente,
formando um só grupo, os Xukuru-Kariri. Essa unificação pode ser assinalada como
uma das estratégias de resistência, mesmo que a história tenha silenciado quanto a isso.
Registros históricos informam que com a vinda do Frei Domingues de São José
para a atual região de Palmeira dos Índios, objetivando a catequização dos indígenas,
novas famílias não indígenas passaram a migrar para esse território, iniciando assim um
processo de ocupação das melhores terras, que resultava na desapropriação dos Xukuru-

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Kariri que eram marginalizados e ―empurrados‖ cada vez mais para a região serrana da
cidade.
Com a promulgação da Lei de terras em 1850 definindo que a terra só poderia
ser adquirida por meio da compra e venda, com a extinção oficial dos aldeamentos
indígenas em Alagoas no ano de 1872 tornando as terras devolutas e a entrega desses
territórios aos municípios com a Lei de 1887, os índios se dispersaram buscando novas
formas de resistências que lhes assegurassem a sobrevivência em meio à sociedade
envolvente. O processo de extinção dos aldeamentos, iniciado com a Lei de Terras de
1850, teve como resultado mais imediato a proletarização dos índios, pois, uma vez
desprovido da propriedade da terra, foram forçados a migrar para as cidades a fim de
vender sua força de trabalho, engrossando o contingente de mão de obra urbana
disponìvel, tal processo foi analisado por Silva Júnior (2013) como a ―proletarização
étnica‖.
Nesse período, o índio passou a silenciar a sua história e a negar sua identidade
étnica, pois quem se afirmasse como indígena estava fadado a enfrentar represálias,
desse modo, os indígenas passam a se camuflar ao se dispersar na sociedade, adaptando-
se ao meio urbano em que estavam inseridos, atribuindo-lhe seus próprios significados.
E precisaram emudecer; calaram-se para evitar que suas expressões
socioculturais fossem denunciadas, perseguidas por meio das imposições e com o
processo de integração forçada. Assim, os indígenas tiveram que ressignificar suas
expressões socioculturais, a exemplo da ‗Dança do Toré‘ que foi reelaborada para ser
realizada no novo ambiente em que os indígenas habitavam.

Alta madrugada. O toré, ritmo marcado em caixas de fósforos, à meia luz,


nos fundos de uma casa na periferia da cidade de Palmeira dos Índios, agreste
alagoano, varava a noite, despercebidos pela sociedade palmeirense. A
vizinhança não desconfiava, mas ali estava sendo escrita parte da história dos
Xukuru-Kariri (SILVA JÚNIOR, 2013, p. 55).

O Toré foi mantido em silêncio o que possibilitou na posterioridade a sua


afirmação e o seu reconhecimento por seus pares para assim buscar perante o governo
os seus direitos a terra, educação e saúde de qualidade, declarados na Constituição
Federal do Brasil de 1988215.

215
Artigo 231 da Constituição Federal de 1988 afirma que devem ser ―reconhecidos aos ìndios sua
organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que
tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus
bens‖.

555
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Os Xukuru-Kariri ficaram invisíveis, contudo devemos destacar que essa


invisibilidade foi produzida de duas maneiras. A primeira estava relacionada a uma
invisibilidade imposta pelo outro, a partir da negação e da afirmação da extinção dos
povos indígenas, nesse caso, até pela Historiografia, denominada por Cristiane Portela
de ―invisibilização social e marginalização historiográfica dos indìgenas‖, ou seja, a
invisibilidade social se refere a negação de que existem índios de verdade, motivado
pela não permanecia das características que eles possuíam no período da colonização. A
marginalização historiográfica é a desconsideração da existência de indígenas como
agentes históricos (PORTELA, 2009). A segunda, uma invisibilidade produzida pelos
próprios índios como forma de resistência. Ou seja, tornaram sua cultura invisível para
poder sobreviver em meio a um ambiente hostil, a partir disso, socializaram suas
memórias e ressignificaram práticas e costumes.
Dessa forma, a partir de sua própria percepção de mundo, os Xukuru-Kariri
passaram a se articular para reivindicar por direitos que lhes eram negados, rompendo
com a supremacia política e social da oligarquia palmeirense invasora de terras
indígenas, que realizava ações contra a efetivação de direitos dos índios na região.
Essa invisibilidade, juntamente com o período de dispersão, favoreceu o
prevalecimento da identidade desse povo e contribuiu para a sua emergência étnica a
partir da segunda metade do século XX, período no qual os Xukuru-Kariri passam a se
organizar politicamente e a reivindicar seus direitos. O que acentuou os conflitos
existentes com a oligarquia palmeirense, detentora dos grandes latifúndios, e os
indígenas, que se viram diante de uma situação de risco, promovendo assim, a retirada
do Toré das praças da cidade e a negação da sua identidade (PEIXOTO, 2013).
Os Xukuru-Kariri, após esse período de silenciamento e invisibilidade
iniciaram um processo de retomadas territoriais216 expondo o seu protagonismo217 no
modo de mobilizar-se na busca pelo seu território histórico. Através de mobilizações, os
indígenas retomaram alguns espaços que contribuíram para a sua continuidade étnica,
entretanto é algo distante no que se refere a sua necessidade que apenas suprirá com a
demarcação.
216
Retomadas territoriais são as ações por recuperação de territórios que foram tradicionalmente ocupados
por indígenas e que na atualidade estão sob a posse de não índios. Ver ALARCON, Daniela Fernandes. A
Forma Retomada: contribuições para o estudo das retomadas de terras, a partir do caso tupinambá da
Serra do Padeiro. RURIS. v. 7, n.°1, p. 99-126, mar. 2013.
217
O termo protagonismo refere-se aos atores sociais e políticos que buscam através de movimentos,
organizações e mobilizações evidenciar setores marginalizados por sua condição econômica, social,
politica, cultural e étnica. Ver BICALHO, Poliene Soares dos Santos. Protagonismo Indígena no Brasil:
Movimento, Cidadania e Direitos (1970-2009). 2010. 468f. Tese – Universidade de Brasília. Brasília.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Em 2013, os índios da região organizaram-se em uma Campanha de


Regularização do seu Território Indígena Xukuru-Kariri que ficou denominada
―Xukuru-Kariri: Vida, Luta e Resistência de um Povo‖ com o objetivo de levar até a
população local as suas reinvindicações, ao mesmo tempo em que distribuíram folhetos,
confeccionaram camisetas e livros para serem comercializados. A renda era utilizada
para custear os processos jurídicos a fim de regulamentar a posse de suas terras
tradicionais.
Nota-se que os Xukuru-Kariri ao longo de sua história presente no Município
aplicaram diversos modos de oposição à oligarquia da região, fugiam, dispersaram-se,
silenciaram-se, negaram-se e foi nesse contexto que permaneceram ativos nas
reinvindicações pelos seus direitos, influenciando aos seus descendentes a se
mobilizarem e a estarem à frente de seus objetivos.
Nos últimos anos é grande o número de movimentos que são elaborados pelas
organizações e grupos indígenas que reivindicam seu lugar na sociedade. O índio vai
ocupando os vários espaços, tanto universitários quanto relacionados ao trabalho,
reafirmando sua capacidade de auto gerir-se e mostrando o seu protagonismo na
História.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nessa perspectiva de análise, percebemos que a Nova História em diálogo com


a antropologia proporcionou uma releitura da história cultural, do cotidiano e se voltou
para os diversos atores sociais trazendo para as pesquisas sobre os grupos indígenas
uma imensa contribuição, pois foi capaz de desconstruir algumas imagens e a tornar
visível a História de resistência que estava isolada dos campos historiográficos.
Pensar os índios como seres resistentes não é negar toda violência sofrida por
eles, mas apresentar que mesmo estando em um lugar social que os descrimina e exclui,
não ficaram omissos, agiram com bravura e sutileza os embates ideológicos que se
travavam ao longo dos tempos.
Essas resistências, entre os Xukuru-Kariri, produz uma memória que servirá de
exemplo para o futuro, são experiências que colaboram para uma reafirmação étnica e
para a ampliação dos movimentos e reinvindicações na busca pela firmação de seus
direitos, negados até hoje pelo Estado.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Com essas afirmativas, a historiografia passa a representar os índios com uma


ótica mais positiva, colocando-os como protagonistas, apresentando-os em novos papeis
e novos lugares sociais expandindo seus horizontes e posições perante a sociedade em
que estão inseridos, enfatizando a fala dos próprios indígenas a partir dos movimentos
de etnogênese que quebram com as concepções que consideravam os indígenas como
passivos e que desapareceriam com o processo de integração, pois o que se ver hoje é o
aumento da população indígena e de grupos ressurgentes que reivindicam seus direitos.
Os Xukuru-Kariri são um dos exemplos que conseguiram sair da invisibilidade
e buscar através de incansáveis movimentos seu espaço, desconstruindo, aos poucos, as
imagens estereotipadas que se estabeleceram no contato com o não índio. Contudo,
muito ainda continua cristalizado no município de Palmeira dos Índios impedindo a
convivência pacífica entre latifundiários e indígenas.

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FRONTEIRAS EFÊMERAS NA CAPITANIA DE ANGOLA, SÉCULOS XVI E


XVII

LEANDRO NASCIMENTO DE SOUZA


UFF
[email protected]

RESUMO

No século XV e XVI, após sofrer várias derrotas militares, a estratégia portuguesa na


África Central foi usar o máximo de exploração econômica com o mínimo de ocupação
territorial, com feitorias e fortalezas localizadas em pontos importantes na costa
africana, manteve seu comércio negreiro negociando com os reinos e chefes locais
africanos, através dos pumbeiros, realizando várias alianças políticas e comerciais com
diversos grupos, tentando criar uma rede de subordinação. A partir do fim dos
quinhentos e durante o seiscentos, quando não havia negociações havia a imposição
militar por parte dos portugueses e seus aliados, numa sequencia de perdas e ganhos
territoriais ao longo de todo o século XVII.
Palavras-chave: Capitania de Angola; Escravidão Atlântica; Fronteiras.

INTRODUÇÃO: PRIMEIRAS FRONTEIRAS

No século XV, após ter sofrido várias derrotas militares, a estratégia portuguesa
na África Central foi usar o máximo de exploração econômica com o mínimo de
ocupação territorial, com feitorias e fortalezas localizadas em pontos importantes na
costa africana. No século XVI, Portugal manteve seu comércio negreiro negociando
com os reinos e chefes locais africanos, através dos lançados 218, e realizando várias
alianças políticas e comerciais com diversos grupos, tentando criar uma rede de
subordinação, pois onde não houve negociações havia a imposição militar por parte dos
portugueses e seus aliados. Essa situação se modificou com as invasões holandesas no
Norte do Brasil em 1630, controlando a produção açucareira, e posteriormente a invasão
na costa africana, em que conquistaram Angola em 1641, controlando o fornecimento
de escravos da África atlântica para o Novo Mundo.

218
Agentes na sua maioria formados por mestiços. Os lançados ou pumbeiros trabalhavam negociando
com os grandes chefes tribais ou reis africanos. Durante um tempo, internavam-se no interior da África-
central, trocavam os escravos por tecidos, vinho e objetos de quinquilharias, voltando com uma centena
de escravos para serem negociados com os agentes no litoral africano.

560
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Com a retomada de Angola em 1648, Portugal teve outro desafio, recuperar o


trato negreiro. Com poucos territórios e pequenas alianças realizadas, Portugal
enfrentou uma grande concorrência mercantil, o Reino do Congo com o rei Quimpaco, e
o Reino de Matamba com a rainha Nzinga. Aliados dos holandeses, Quimpaco e Nzinga
haviam feito alianças políticas e comerciais com uma grande parte de chefes locais,
muitas vezes pela força, invadindo territórios, aprisionando escravos e influenciando a
África Central com um sentimento antilusitano, para manter suas autonomias políticas e
econômicas, pois não aceitavam a vassalagem ao Reino de Portugal. A posição de
Portugal com relação a essa situação foi de extrema cautela, pois havia um alto risco de
outras invasões na costa africana e no Brasil, além de que, o Reino ainda estava em
conflito com a Espanha e a Holanda, logo não poderia realizar investidas no interior
africano e enfraquecer as defesas das outras regiões. Mas a importância do trato
negreiro para a produção açucareira, e os negócios da prata em Potosí, na América,
fizeram com que os governadores luso-brasileiros em Angola investissem na expansão
territorial no sertão africano. Esses governadores ―brasìlicos‖ colocaram em prática
ações que ampliaram o tráfico de escravos no Atlântico português, aumentaram a
influência de suas regiões de origem no negócio negreiro na África central. Essa
situação causou vários conflitos entre os poderes do Império luso e dos grupos
africanos, pois houve vários interesses envolvidos que vão colidir. Os governadores de
Angola que saíram da América Portuguesa levaram consigo gente de sua confiança para
cargos administrativos e militares, o que deixou insatisfeitos os colonos que já estavam
na África, causando um jogo político entre colonos do Brasil, de Angola e do Reino.
Além disso, o Reino de Portugal teve outro problema para administrar, o conflito entre
as Ordens religiosas, a qual os governadores também vão tentar tirar proveito para seus
interesses.

A FORMAÇÃO E O DESENVOLVIMENTO DA CAPITANIA DE ANGOLA

D. Sebastião cria em 1571 a capitania de Angola, além de não ter nenhum custo
para portugal, pois os moldes da capitania era de acordo com o modelo dos
exclusivismo privado das primeiras capitanias no Brasil, D. Sebastião deu consessão
de terras que não pertenciam a Coroa portuguesa, e sim aos reis africanos. A capitania
foi estabelecida do Rio Dande ao Rio Cuanza, e se estendia trinta e cinco leguas da
costa (COSTA E SILVA, 2011, p. 662). Chegando em Luanda em 1575 com um grande

561
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

numero de soldados, marinheiros, artíficis, além de alguns jesuitas, Dias Novaes tentou
estabelecer a colonização portuguesa na África. De início ele teve dois problemas, o
primeiro é que já havia comunidades portuguesas em Luanda, advindas de São Tomé,
grupos de comerciantes que não gostaram da idéia do donatário ser o senhor econômico
de terras que já eram influenciadas por eles. Esses grupos se espalharam pela África
Central, muitos deles indo para a corte de Ndongo, onde venderam informações valiosas
sobre os portugueses recém chegados. O segundo foi justamente o reino de Ndongo e
seus vassalos que não permitiram essa tomada territorial facilmente. Em 1579, Dias
Novaes e o rei de Ndongo entram em conflito, alguns dos vassalos do Ngola se aliaram
aos Portugueses como Muxima, Cambanbe, Quincunguela e Massangano (COSTA E
SILVA, 2011, p. 663). Dias Novaes assim que saiu da Ilha de Luanda e foi para o
continente, investiu na construção de igrejas, casas, e fortificações, evidenciando que
tinha vindo para ficar e não apenas adquirir escravos, como acontecia na região desde
1526. Na política expansionista, Dias Novaes usou de grande violência, espalhando
pânico entre as populações, decapitou os chefes tribais que capturou, saquiou as vilas e
às queimou. O Rei do Ndongo possuia um grande execito, e mesmo com o caos
estabelecido por Novaes, o conflito teve perdas e ganhos para os dois lados. Com a
União Iberica em 1580, Felipe I de Portugal, retira o privilégio de Dias Novaes,
extinguindo a capitania hereditária, a qual Dias Novaes deixa de ser um donatario e
passa a ser um funcionario real, ou seja, o governador, isso fez com que as ações de
Novais sejam submetidas a autorização de Felipe I (SERRÃO, 1996, p. 144-145),
mesmo assim Novaes não desistiu da expansão até a sua morte em 1589, Sendo
substituído por Luis Serrão. No período filipino, a colonia de Angola obteve um modelo
administrativo semelhante ao da América, era administrado por um governador
substituído a cada três anos, centrado na cidade de São Paulo de Luanda 219, havia o
conselho municipal, a câmara, e capitães militares que administravam as fortalezas e
suas redondesas, houve uma relação de vassalagem entre os sobas 220 e os governadores,
e o tributo dessa relação era pago com escravos. O interesse filipino em manter a
colonia vinha de noticias sobre grandes minas de ouro na Áfriaca Central, depois de
muitas investidas a Coroa Ibérica certificou-se da falsidade das informações,
diminuindo a expansão e se preocupando em investir no tráfico de escravos (SERRÃO,
1996, p. 146). No início do século XVII, a capitania de Angola passou por uma série de

219
Fundada em 25 de janeiro de 1576.
220
Chefes tribais na África central.

562
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

administradores interessados especificamente no tráfico de escravos, os chamados


governadores asientistas221.
Em 1611, o governador de Angola, Bento Banha Cardoso, através de um alto
investimento da Coroa Ibérica, consegue estabelecer uma série de conquistas,
submetendo 78 sobas, entre eles Anbundos e Inbangalas, alianças que vez por outra
mudava de lado, pois o reino de Ndongo continuava resistindo. Um grande desafio teve
o governador Luiz Mendes de Vasconcelos em 1617, estabelecer e manter a paz na
região, combater o tráfico ilegal e a corrupção na própria administração regia. O mesmo
chegou com pretenções de ser o vice-rei da África, mas acabou se utilizando das
práticas dos antecessores, práticas comerciais ilícitas. Conseguiu estabelecer a paz
atravez de tratados comerciais com Rei de Ndongo, Ngola Mbande222. Essa paz não
durou muito tempo, pois Mbande queria controlar o comercio favorencendo-se com os
tipos de produtos e tributos negociados com os lusos. Esse desentendimento retomou a
guerra, Mbande possuia um grande exercito, mas Vasconcelos conseguiu estabelecer
uma série de alianças militares e conseguiu chegar em Cabaça, o centro do reino. O rei
Mbande foge, e o seu palácio foi incêndiado, por conta das chuvas e doenças que
assolaram as tropas, Vasconcelos foi obrigado a retornar para Luanda, e retomar as
negociações de paz, mas uma vez fracassadas, retornando a guerra em 1620. A guerra
gerou uma grande crise no tráfico de escravos, sendo um desáfio para o próximo
governador (COSTA E SILVA, 2011, p. 420-426).
Em 1621, o governador João Correia de Souza, tentou estabelecer a paz com
Mbande, que mandou sua irmã Nzinga 223 como embaixadora nas negociações. Desde o
início Nzinga própos tratamento de igual para igual, sem relação de vassalagem,
estabelecendo uma certa paz entre Ndongo e a capitania de Angola. O governador
enfrentou outros problemas como o tráfico ilegal, e também as várias resistências dos
outros reinos nas regiões próximas, a qual saqueavam colonos nas regiões fronterissas.
Nzinga em 1624 executou um golpe e assumiu o reinado de Ndongo. Acusada de
invenenar Mbande, e de eliminar os outros pretendentes, se aliou aos Jagas e assumiu a
política antilusitana. Através de sua rede de comunicação, incentivou os negros em
Luanda e as várias tribos vizinhas a se rebelarem contra os portugues e se aliarem a ela.

221
Asiento foram licenças ou concessões vendidas pela Espanha a negociantes de escravos na África
Central, na sua maioria de famílias portuguesas.
222
Chega ao poder eliminando os outros pretendentes a Coroa, sobretudo um filho de sua irmã Nzinga.
223
Ginga, Njinga ou Jinga, foi convertida ao catolicismo, sendo batizada e ganhando o nome cristão de
Ana de Souza.

563
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Neste mesmo ano o governador Fernão de Souza declara guerra contra Nzinga que
durou todo o seu mandato. A guerra se estabeleceu entre perdas e ganhos, alianças e
rompimentos, até 1629, onde as tropas lusas encurralaram Nzinga, onde ela foi vencida
mas não capiturada. Nesse momento assumiu em Ndongo o Ngola Ari, batizado de
Felipe, declarado rei do Ndongo, onde governou de acordo com os interesses lusos. No
início de 1630 Nzinga se aproveitou de uma crise dinástica no reino de Matamba e com
seu exército invadiu o reino e se proclama soberana, tornando o reino de Matamba um
reino poderoso e antilusitano. Esse reino se tornou um grande incomodo para a
capitania de Angola, sendo um concorrente no tráfico de escravos, e influenciando os
outros reinos contra Portugal. Com a restauração portuguesa em 1640, a ordem de
Portugal foi de negociar, por tanto D. João VI em 1641, ordenou a devolução do reino
Ndogo a Nzinga. Mas Já tinha sido tarde, pois os holandeses invadiram Angola no
mesmo ano (VANSINA, 2010, p. 663-664).
Os conflitos entre a capitania de Angola com o reino do Ndongo e seus vizinhos,
como também com Nzinga, permitiram que o reino do Congo se reestruturasse, se
tornando um concorrente dos portugueses no tráfico de escravos, negociando no porto
de Pinda com franceses, ingleses e sobretudo holandeses. Essa concorrência e a
influência dos outros Estados europeus, fez com que a política do Congo fosse de
monopolizar o tráfico de escravos na África Central, fazendo com que a capitania de
Angola fosse um inimigo a ser eliminado. Em 1641 assumiu no Congo o rei Garcia II,
que investiu no enfraquecimento da influencia de Portugal na região. Com a chegada
dos holandeses na África central todos os problemas dos portugueses serão
potencializados (VANSINA, 2010, p. 664).

HOLANDESES EM ANGOLA E A RESTAURAÇÃO DE SALVADOR DE SÁ

No dia 22 de Agosto de 1641, o Governador, Pedro César de Menezes recebeu a


noticia que haviam aparecido 22 naus flamengas na baía de Luanda. A esquadra do
holandês Houtbeen contou com dois mil soldados e novecentos marinheiros vindos do
porto do Recife. E Luanda, nessa época, não tinha forças que pudessem oferecer
resistência a tal exército. Ainda tentaram resistir no forte do Penedo, mas sem sucesso.
A política implantada pelos holandeses em Angola foi de caráter indireto,
estabelecendo acordos que visavam à cooperação, evitando ao máximo as guerras, vista
como revez ao bom andamento dos negócios negreiros na região. Muitos Sobas de

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

territórios adjacentes aos territórios de Luanda consideravam a presença holandesa


como uma alternativa em contraponto a presença portuguesa. Nesse mesmo momento o
então rei do Congo, Garcia II, escreveu para Maurício de Nassau no Recife,
disponibilizando fortalezas e outras facilidades comerciais, ao mesmo tempo em que
anexava aos seus domínios vários territórios ao Sul do Congo. Apesar das críticas aos
portugueses, Garcia deixou claro que permaneceria católico e que não aceitaria
missionários, embaixadores ou colonos em seu reino. A força do catolicismo congolês
superava as alterações políticas nos territórios da África-central, sobretudo para manter
o prestígio e o apoio do bispado de Madrid e de Roma. Outro ponto desfavorável para
os lusitanos foi a aliança entre os holandeses e a rainha Nzinga, que viu nessa conquista
a possibilidade de obter vantagens comerciais e principalmente para enfraquecer o rei
do Ndongo, Ngola Ari, vassalo dos portugueses (ALENCASTRO, 2000, p. 212).
Nesse momento houve as várias negociações portuguesas para a retomada dos
territórios que foram perdidos para os Países Baixos. Paralelamente, os colonos da
América portuguesa agiram, pois o Sul do Brasil, sobretudo o Rio de Janeiro, ficou sem
abastecimento de mão de obra escrava vinda da África-central, a qual o tráfico era
monopolizado pelos holandeses através do comércio bipolar entre o portos de Luanda e
Recife.
Por volta de 1646 o foco de resistência estava concentrado nos arredores de
Massangano, que ganhou uma sobrevida com a chegada de Francisco de Souto Maior
em 1645224. Pressionados tanto pelo rei do Congo, Garcia II, quanto pela rainha de
Matamba, Nzinga, os holandeses evitaram ao máximo o conflito aberto com os lusos,
justamente pelo tratado de paz de dez anos assinado em 1641. Esse receio flamengo
causou frustrações com os reinos locais que queriam expulsar de uma vez por todas os
lusos da África. Quando Nzinga e Garcia II conseguiram planejar um ataque de grandes
proporções a Massangano, a situação dos portugueses em Angola foi revertida com a
reconquista de Luanda por Salvador Correia de Sá em 1648.
A colônia portuguesa na América era a maior beneficiária do comércio de
escravos vindo da África, essencial para manter em funcionamento os engenhos de
açúcar no litoral. Com o monopólio comercial holandês no tráfico de escravos na África
Central para o Novo Mundo, a partir de 1641, outras regiões do Brasil que não estavam
integradas a ocupação holandesa ficaram prejudicadas, sobretudo a Bahia e o Rio de

224
Em uma das lutas de resistência Souto Maior fez prisioneira a irmã da rainha Nzinga, D. Barbara, que
já tinha sido prisioneira anteriormente.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Janeiro, a primeira pela produção açucareira e a segunda pelo comercio de escravos para
as minas de Prata na América espanhola, através do porto de Buenos Aires. Para
contrariar essas adversidades e com o objetivo de reconquistar Angola e expulsar os
holandeses, foi preparada uma expedição para reconquistar Angola. Para comandá-la foi
nomeado Salvador Correia de Sá e Benevides 225, que se tornou governador de Angola,
de 1648 a 1651.
A reconquista era dificultada não apenas pela peculiar situação diplomática em
que se achava Portugal ante os Países Baixos, em guerra no Nordeste do Brasil, como
pelas dificuldades econômicas em que o Reino se encontrava, na iminência da Guerra
da Restauração, e pela logística envolvida. Nesse contexto, um dos principais
interessados, foi Salvador Correia de Sá, que tive vários agentes comerciais envolvidos
com o tráfico de escravos entre a África, o Rio de Janeiro e Buenos Aires. Estava
disposto a romper com o comercio bipolar holandês entre Luanda e Recife.
A reconquista de Angola resultou na rearticulação do abastecimento de escravos
para a Bahia, e principalmente o Rio de Janeiro, servindo como conexão para Buenos
Aires e as minas de prata em Potosí. Salvador de Sá deu impulso a diversas medidas
administrativas, favorecendo o desenvolvimento de Luanda. A expulsão dos holandeses
na África Central inaugura uma nova fase na administração de Angola, marcada pela
governança de homens extremamente vinculados aos seus interesses particulares
enraizados principalmente na América portuguesa.
Conquistada a vitoria perante os holandeses, o desafio foi retomar o tráfico de
escravos, para tal, Portugal teria que recuperar o seu prestígio e as alianças com os
reinos da África central, principalmente o reino de Matamba da Rainha Nzinga, e o
reino do Congo com o rei Garcia II, e os sobas de várias tribos que foram submetidos
pela força ou por alianças políticas com relação de vassalagem. O período de quase oito
anos de ocupação holandesa em Angola favoreceu a política antilusitana, a qual os
reinos dessas regiões se aliaram aos holandeses, e tinham como intenção expulsar os
portugueses da África Central com intuito principal de serem os senhores no
fornecimento de escravos diretamente com o Novo Mundo. Esse foi o desafio
enfrentado pelos lusos nessa nova fase de ocupação em Angola, implantar uma
superioridade política para eliminar os concorrentes no negócio negreiro.

225
Antes de restauração de Angola, Salvador de Sá foi Governador da Capitania do Rio de Janeiro de
1637 a 1642.

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Salvador de Sá tenta reverter os danos que os holandeses trouxeram para o Rio


de Janeiro, logo tentou criar uma carreira de fornecimento de escravos Luanda-Rio-
Buenos Aires, Salvador de Sá quis expandir o território para que através da guerra
adquirisse o respeito e as alianças necessárias para recuperar o tráfico. Depois de
expulsar os holandeses, as tropas de Salvador de Sá se voltaram para o continente, para
retomar o trato terrestre, combateu e degolou vários sobas, o que facilitou a entrada para
o interior. Com o reino do Congo, Salvador de Sá conseguiu um tratado em que Garcia
II teria que se retirar de alguns territórios, que foram dos portugueses antes da ocupação
holandeses. Com o passar do tempo esse tradado foi desrespeitado, o que trouxe vários
problemas para os sucessores de Salvador de Sá em Angola. Nos primeiros meses de
Salvador de Sá como governador de Angola, ele enfrentou a força militar de Nzinga,
derrotada, a mesma foi obrigada a assinar uma trégua, a qual repassou vários escravos
em troca da sua irmã Cambo, que teve como nome cristão D. Barbara. Salvador de Sá
não entrega a irmã de Nzinga, como também manteve as hostilidades ao reino de
Matamba. A Coroa Portuguesa não autorizou essa empreitada pelo fato que tinha um
custo muito alto, além de que, poderia ter desprotegido a costa, onde haviam varias
ameaças do retorno de holandeses e invasões de outros estados marítimos europeus,
esse propósito também foi apoiado pelos colonos remanescentes de Massângano que
foram contrários aos interesses dos grupos vindo do Brasil. No último ano de seu
governo, Salvador de Sá se alinhou as ordens régias e tentou estabelecer uma
diplomacia de não agressão, negociando as questões comerciais, sobretudo no
fornecimento de escravos (ALENCASTRO, 2000, p. 262-264).
Salvador de Sá deixou o governo de Angola em 1651, mas o seu sucessor,
Rodrigo de Miranda Henriques, a qual foi muito próximo, teve o mesmo interesse na
governança de Angola, ou seja, continuou as operações da reabertura da carreira
Luanda-Rio-Buenos Aires, o governador conhecia bem as rotas da prata peruana, e as
negociações comerciais do Atlântico Sul, pois o mesmo já tinha sido governador da
capitania do Rio de Janeiro de 1633 a 1637, segundo Luis Felipe de Alencastro ―esse
movimento desemboca no avanço pelo litoral sul e na fundação da colônia de
Sacramento‖ (ALENCASTRO, 2000, p. 271). Miranda Henriques apesar de ter enviado
alguns militares para castigar sobas inimigos nas regiões mais próximas de Luanda,
manteve suas forças concentradas na costa de Angola. Reparou fortes danificados em
Luanda, e mandou uma esquadra à Pinda e à Loango, para combater um corsário
holandês, melhorando as relações comerciais na região. Morreu aos dois anos de

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governo sendo substituído por Bartolomeu de Vasconcelos da Cunha que manteve a


mesma política anterior (CADORNEGA, 1940, p. 72-77).
Em 1655 assumiu o governo de Angola Luiz Martins de Souza Chichorro, o
mesmo que como capitão-mor de Malaca foi conquistado pelos holandeses da
Companhia das Índias Orientais em 1641(ALENCASTRO, 2000, p. 272). Inteirou-se do
negócio negreiro em quanto esteve na sede do governo geral do Brasil, em Salvador. No
seu governo retomou os conflitos com o reino do Congo, pois Garcia II não manteve os
tratados da época de Salvador de Sá, criou grupamentos militares para ir combater os
sobas aliados do Congo, mas recebeu ordem da Coroa para interromper a empreitada e
continuar com as negociações fazendo uso de embaixadores para reafirmar o tratado de
paz com o Garcia II. É nesse momento que começou as divergências com relação ao
reino do Congo, entre a Coroa lusa e os governadores de Angola. Outra ação militar de
Chichorro foi combater os piratas holandeses na costa da África Central, diminuindo
suas ações (CADORNEGA, 1940, p. 113-114).
O acontecimento de grande relevância e que trousse consequências positivas
para a influência portuguesa na região, foi a nova conversão ao catolicismo da rainha
Nzinga em 1656, pelos capuchinos italianos, sobretudo o Frei Gaeta226. Essa nova
conversão possibilitou alianças entre Nzinga e Portugal, onde no tratado de paz e
cooperação, Nzinga teve a sua Irmã, que era prisioneira dos portugueses, D. Barbara,
devolvida. Essa aliança foi fundamental para as ações militares dos portugueses na
região, sobretudo contra o reino do Congo. Na sua saída no governo de Angola em
1658, Chichorro foi atacado por piratas holandeses na costa da Paraíba e acabou
falecendo (CADORNEGA, 1940, p. 137).

PERNAMBUCO EM ANGOLA: OS MESTRES-DE-CAMPO227


GOVERNADORES

Pernambuco restaurado pelos colonos lusos em 1654 teve um problema


agravante na questão econômica. A produção açucareira passou a sofrer a concorrência

226
O capuchinho italiano João António Cavazzi de Montecúccolo esteve em Angola, no Ndongo e em
Matamba de 1654 a 1667, com a morte de Gaeta, foi confidente da rainha Nzinga, sua obra “Descrição
história dos três reinos do Congo, Matamba e Angola”, apesar do profundo etnocentrismo do autor,
para Cavazzi o reinado de Nzinga antes da nova conversão era um “verdadeiro” inferno, com
transexualismo, haréns de rapazes, infanticídio, antropofagia, feitiçaria e luxuria.
227
Mestre-de-campo é equivalente a coronel de infantaria, tem a jurisdição civil e criminal do seu terço
com apelação ao general (BLUTEAU, 2000, p. 457).

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do mercado internacional, do açúcar produzido pelos holandeses na Guiana e nas


Antilhas, fazendo com que para manter um preço competitivo no mercado, tinha-se que
diminuir os custos de produção, sobretudo nos gastos com a mão de obra escrava
africana, que tinha aumentado consideravelmente com as guerras atlânticas. Para tanto,
em 1654, o negocio negreiro em Angola abastecia o comercio carioca, e era de
fundamental importância para a produção açucareira em Pernambuco resgatar o
comercio bipolar entre Luanda-Recife, como também utilizar ações que
proporcionassem um aumento nos números e baixa nos preços no mercado escravista.
Desde 1646 houve uma preocupação em Pernambuco com relação ao que
acontecia em Angola, Martin Soares Moreno, Vidal de Negreiros e João Fernandes
Vieira enviaram à Corte relatórios sobre os acontecimentos do Congo e de Angola,
informações de luandenses no Recife que tinham vindo como prisioneiros. Nesses
relatórios, João Fernandes Vieira alerta a Coroa sobre as manobras de Salvador de Sá,
que seu interesse em Angola esteve restrito aos negócios peruleiros da prata, segundo
Vieira isso poderia provocar uma investida Espanhola contra Luanda, já que por conta
dos conflitos atlânticos houve uma grande crise internacional no mercado de escravos
(ALENCASTRO, 2000, p. 259).
Em 1654, o almirante Brito Freyre, que foi governador de Pernambuco de 1661
a 1664, tentou convencer a Coroa lusa do projeto de reconquista de São Jorge da Mina,
e propôs o ataque logo depois da rendição holandesa, tendo como o Recife a base da
saída da expedição (ALENCASTRO, 2000, p. 270-271). Apesar da Coroa não aprovar o
projeto, por questões de custo-beneficio, ficou evidente a preocupação de Pernambuco
com os acontecimentos na África central e a necessidade de estar no controle do
negocio negreiro.
Dois líderes do movimento de libertação, que tiveram prestígios perante a Coroa
pelas ações militares na expulsão dos holandeses, João Fernandes Vieira e André Vidal
de Negreiros, arquitetaram a resolução desse problema comercial, usaram a política de
favorecimentos em favor do comercio Recife-Luanda, pois eram os maiores senhores de
engenho de Pernambuco e Paraíba, e nada melhor para reverter o trato negreiro em seus
benefícios do que sendo governadores de Angola.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Foi muito conveniente que enquanto João Fernandes Vieira governasse Angola,
André Vidal de Negreiros governasse Pernambuco228, as duas costas atlânticas com o
mesmo objetivo, aumentar a produção açucareira através de uma bem sucedida forma
de governar Angola baseado no trato negreiro.
Querendo controlar o mercado de escravos, João Fernandes Vieira realizou
várias medidas para fortalecer militarmente a sua administração, logo de inicio ele
colocou gente sua para os cargos administrativos e militares, ocasionando assim uma
demanda de colonos pernambucanos para gerir seu governo, principalmente os militares
que lutaram na expulsão holandesa (MELLO, 2000, p. 330-331), pois o interesse de
Vieira foi de expandir o território português no interior da África central, recuperar as
alianças e submeter à maior ameaça que foi o Reino do Congo, além de tentar eliminar
os intermediários no trato negreiro, pois na sua perspectiva não se negociava com
nativos e sim os conquistava. Para tanto, os militares pernambucanos foram muito úteis,
pois já tinham experiência em batalhas no ultramar. Vieira pede autorização a Coroa
para transferir grande parte da artilharia tomada dos holandeses para Angola.
Entre suas medidas, estavam o fortalecimento da região já controlada, como
obras nos portos, ampliando seus cais, restauração e construção de fortalezas e
ampliação do poderio militar. Após esse controle teve inicio a expansão territorial,
várias regiões foram reconquistadas e outras submetidas pela primeira vez. Conquistou
a região de Ambarca, conseguiu a vassalagem das terras de Libolo e Quissama,
recuperou o porto de Benguela, criou rotas terrestres seguras, recuperou o rio Cuanza e
o trato salineiro, além de iniciar negociações para aliança política com os guerreiros
Jagas do reino de Matamba que foram governados pela rainha Nzinga. Essas conquistas
arrecadaram um grande número de escravos para o Brasil, principalmente Pernambuco.
Suas medidas restauraram parte do prestigio português que havia sido perdida no
período holandês e pela influência do Reino do Congo (SOUZA, 2013, p. 76-78).
Com o Reino do Congo Vieira foi mais cauteloso, usou de muita negociação,
pois este Reino era reconhecido pela Santa Igreja Católica, tinha seu bispado próprio e
muita influência com Roma e Madri. Nas negociações Vieira exigiu o cumprimento dos
tratados anteriores, e enquanto a resposta não vinha, atacou os vassalos fieis ao Congo.
Depois de muitas ameaças de invasão ao território congolês, em 1659, Vieira conseguiu

228
Inicialmente seu mandato seria de 1657 a 1660, mas em 1660, Negreiros requer a Coroa que lhe
mantenha no cargo até o fim do mandado do governador de Angola, João Fernandes Vieira, em 1661.
(AHU-ACL-CU-015, Cx. 7, D. 620).

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

que o Congo cumprisse parte de acordos anteriores, principalmente na liberação de um


grande número de escravos para Luanda. Medida que o fez perder parte do apoio que
tinha para uma invasão (SOUZA, 2013, p. 79-86). Outra medida importante de Vieira
foi a denuncia do envolvimento dos jesuítas no tráfico negreiro, que tinham tornado-se
menos missionários e mais materialistas. Aliou-se aos capuchinhos e acusou os jesuítas
de várias irregularidades, ocasionando na sua excomunhão pela ordem da Companhia de
Jesus (SOUZA, 2013, p. 88-95).

O reino de Angola em 1658 (MELLO, 2000, p. 449)

Com o fim do seu governo e sem seu principal objetivo conquistado, submeter o
reino do Congo aos portugueses, Vieira teve a oportunidade de ter continuidade na sua
política expansionista através do seu sucessor, André Vidal de Negreiros. Na sua
chegada, em 1661, Negreiros passou alguns meses com a companhia de Vieira, onde o
mesmo fez questão de lhe passar todo o planejamento expansionista.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Para Negreiros também foi interessante a expansão para o interior africano, pois
tinha feito vários acordos com Vieira, que tinha vários agentes envolvidos no tráfico.
Além de que, tambem era um senhor de terras na América portuguesa, onde o sistema
escravista foi muito forte. Com isso a política implantada por Vieira teve continuidade,
só que desta vez o intuito maior foi a invasão ao Reino do Congo, submetendo-o a
Portugal, aumentando ainda mais o controle sobre a região e o tráfico de escravos. Mas
essa medida não foi fácil, pois a invasão tinha que ser justificada, principalmente em
Roma. Para a igreja católica, o Congo era uma porta aberta para uma melhor entrada do
cristianismo nessa região africana, uma vez que os próprios africanos a pregavam. Outro
problema enfrentado por Negreiros foi a determinação de Portugal, de 1664, que
cancelava as investidas militares no interior africano, dando prioridade a proteção da
costa atlântica, sobretudo Luanda, pois havia muita ameaça de invasões por parte de
outros países interessados no comercio escravista.
O governo de Negreiros teve vários momentos de desentendimento com a Coroa
portuguesa, principalmente pela sua insistência na invasão ao Congo. Utilizando o seu
prestigio ele seguiu em frente e usou de várias estratégias para criar justificativas de
avanço militar no território congolês. Denunciou o Rei do Congo, Mulanza, de subtrair
terras e metais preciosos de Portugal, e declarou refutação ao caráter cristão do Congo,
relatando que o cristianismo era apenas uma fachada para agradar Roma, e os cultos
pagãos sempre estavam presentes nos rituais cristãos. Essas denúncias foram chamadas
de cisma dos cônegos congoleses o que causou um grande descontentamento ao Rei
Mulanza, a qual declara guerra a Angola portuguesa (ALENCASTRO, 2000, p. 291-
292).
Com a guerra declarada por Mulanza, foi mais fácil para Negreiros ter o apoio
que precisava, logo tratou de montar a estratégia para vencer a guerra contra o Congo.
Uma grande vantagem para Negreiros foi a aliança com o Reino de Matamba,
governado pela rainha Nzinga e os guerreiros Jagas. Vários conflitos se estenderam no
interior africano, mas a guerra só teve seu desfecho com a batalha de Ambuíla em 1665.
O exercito de Negreiro foi composto por tropas luso-afro-brasílicas. Adquiridas nos
conflitos contra os holandeses em Pernambuco, na luta contra quilombos e até mesmo
nos conflitos com indígenas, as tática de guerrilhas brasílicas foram de fundamental
importância para a vitória nesse conflito (CADORNEGA, 1940, p. 219-222).

CONCLUSÃO: FRONTEIRAS, UMA DISCUSSÃO

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O pesquisador Richard White fez uma análise sobre os espaços intermediários de


negociação de grupos com valores sociais distintos, e de como esses espaços de
acomodação apresentaram uma ausência de estruturas de dominação, o que vai resultar
em diferenças e ajustes nos significados das categorias sociais. Esses espaços de
negociação também se apresentam no contexto da África-central, principalmente entre
portugueses e os grupos mais próximos a capitania de Angola, gerando grupos sociais
com interesses diversos. Segundo White as categorias modernas e identidades variam de
acordo com as conjunturas e jogos sociais, gerando significados múltiplos, de acordo
com a mobilidade dos sujeitos (WHITE, 2011). As autoras Hal Langfur (LANGFUR,
2006), e Sara Ortelli (ORTELLI, 2007), usam questões como múltiplos usos das fontes,
a contextualização dos documentos de acordo com o contexto das ―fronteiras‖,
principalmente quando se usa o conceito de ―gestão‖ ou ―Estado‖, pois eles são um
conjunto de poderes, influências, grupos, vontades e interesses. Criando e recriando os
significados de acordo com as diferentes esferas de poder. Nesse aspecto muitas das
fontes são produzidas dentro desses interesses, gerando boatos para atingir fins,
contribuindo para inclusão dos sujeitos históricos dentro de classificações
comportamentais abaixo de uma certa ―cidadania‖ ou ―civilidade social‖, contribuindo
para criminalizar grupos excluídos. A autora Nancy (NANCY, 2014) trabalha as
construções sociais dentro dessas diversas relações de poder, a qual as vezes há um
reconhecimento das atribuições identidárias, mas as vezes não, sendo relativo a
qualidade e características nas mobilidades e dinâmicas sociais. Cria-se assim um
sistema de valores a qual surgem certas orientações.
Dialogando com a antropologia, podemos usar o autor Fredrik Barth, a qual
utiliza as fronteiras para compreender as dinâmicas do grupo. Ele dinamiza a identidade
étnica afirmando que ela não é estática, se transforma a partir das relações e como
qualquer outra identidade, coletiva ou individual dependendo do interesse, ou contexto.
A interação entre os sujeitos e grupos, permitem transformações continuas que modela a
identidade, em processo de exclusão ou inclusão, determinando quem esta inserido no
grupo e quem não está. Compartilham diversas características más principalmente esses
grupos se organizam a fim de definir o ―eu‖ e o ―outro‖. Se manifestam de maneira à
categorizar e interagir com os outros. Exteriormente atribuem aos grupos étnicos uma
identidade baseada em fatores objetivos e que muitas vezes não correspondem as suas
características reais. O autor recomenda que para entender as dinâmicas desses grupos é

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

necessário levar em consideração as características que são significantes para os


próprios atores. Os grupos étnicos possuem padrões valorativos que os definem em
quanto tal, e a forma como cada grupo ou cada um irá se portar em contato com outros
grupos, com o intuito de adquirir visibilidade e dialogar com outro. No entanto esses
padrões não são fixos, podem mudar e ressignificar-se em outro momento, conforme o
contexto social. Essas análises são de fundamental importância para compreender os
vários contextos que envolvem as categorias sociais e seus membros na Capitania de
Angola na segunda metade do século XVII.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes: Formação do Brasil no


Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das letras, 2000.

BARTH, Fredrik. O guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Rio de


Janeiro, Contra-Capa, 2000.

BLUTEAU, Pe. Raphael. Vocabulário português e latino. Coimbra: Collegio das


Artes da Companhia de Jesus, 1712. Edição fac-símile, CD-ROM, Rio de Janeiro:
UERJ, 2000.

CADORNEGA, Antonio de Oliveira de. História geral das guerras angolanas, Tomo
II. Lisboa: Agência geral das colônias, 1940.

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1700. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 2011.

MELLO, José Antônio Gonsalves de. João Fernandes Vieira: Mestre-de-campo do


Terço de Infantaria de Pernambuco. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações
dos Descobrimentos Portugueses, 2000.

MONTECÚCCOLO, Pe. João António Cavazzi de. Descrição histórica dos três reinos
do Congo, Matamba e Angola. Volume 2. Lisboa: Junta de Investigações do Ultramar,
1965.

NANCY E. Global Indios: the indigenous struggle for justice in sixteenth-century


spain.Durham, NC: Duke University Press, 2014.

LANGFUR, Hal. The forbidden Lands. Stanford: Stanford University Press, 2006.

ORTELLI, Sara. Trama de una Guerra conveniente: nueva vizcaya y la sombra de


los apaches (1748-1790). México, D.F: El Colegio de México, centro de estúdios
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SERRÃO, Joaquim Veríssimo. História de Portugal. Volumes 2, 3 e 5. Lisboa:
Editorial Verbo, 1996.

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governo de João Fernandes Vieira, 1658 a 1661. Recife: Universidade Federal de
Pernambuco, dissertação de mestrado, 2013.

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História Geral da África Volume V. Brasília: UNESCO. 2010.

WHITE, Richard. The Middle ground. Cambridge University Press, 2011.

“PACATOS, BIZARROS E A CAMINHO DA EXTINÇÃO”: OS ÍNDIOS


XUKURU-KARIRI (PALMEIRA DOS ÍNDIOS/AL) DESCRITOS POR IVAN
BARROS E LUIZ B. TORRES

BRUNEMBERG DA SILVA SOARES


UFCG
[email protected]

EDSON SILVA
UFCG
[email protected]

RESUMO

Este texto tem como objetivo problematizar a forma como os índios Xukuru-Kariri são
representados no município de Palmeira dos Índios-AL, considerando a romantização e
mitificação nos escritos, imagens e símbolos oficiais, vistos como formas de manipulação por
parte das oligarquias locais, que exaltam e defendem utilizações de imagens do índio, frente aos
conflitos fundiários que ocorrem na região. Realizamos a pesquisa a partir da análise dos
escritos de Luiz Barros Torres e Ivan Barros, principais memorialistas de Palmeira dos Índios;
cujas produções compõem a ―história oficial‖ e influenciaram na criação de aspectos
importantes, a exemplo da bandeira e do hino municipal. Nossas reflexões baseiam-se em
estudos de autores como João Pacheco de Oliveira (1994), Adelson Lopes Peixoto (2013), Eric
Hobsbawn (1997), Roger Chartier (1990), Stuart Hall (2015), dentre outros.
Palavras-chave: Imagens; Índios; Representação.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Durante muito tempo, a participação dos povos indígenas na História foi


negada pela historiografia brasileira, assim, grande parte dos estudos históricos e
antropológicos referentes aos povos indígenas, principalmente no Nordeste, destacava-

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

os apenas como seres idílicos e exóticos, sobreviventes de um passado colonial de


opressão e que inevitavelmente caminhavam para o desaparecimento. Dessa forma, essa
negação do protagonismo indígena contribuiu para a criação de estereótipos e
preconceitos que justificaram e perpetuaram a exclusão histórica desses povos.
Nesse sentido, o município de Palmeira dos Índios configura-se como um local
em que o processo de apropriação de terras, de expulsão e de negação histórica e social
dos povos indígenas, procedimento observado na História do Brasil, pode ser estudado
em suas mais diversas etapas. Erigida em território tradicional indígena, a cidade tem
sua história marcada por conflitos territoriais e ideológicos, onde as disputas inicias
fizeram com que a imagem dos índios, habitantes do referido município, fosse
distorcida, contribuindo para a disseminação de estereótipos e preconceitos, frutos não
somente da desinformação, mas também da interferência das oligarquias na construção
das imagens e discursos oficiais no município.
A utilização da imagem dos Xukuru-Kariri em Palmeira dos Índios tem como
resultado a legitimação da distinção não apenas entre os índios que atualmente vivem no
entorno da cidade e a população não indígena, mas entre os índios da atualidade e
aquele supostamente corresponde ao ideal de índio (o que está desenhado na bandeira,
exposto em público, na forma de estátua, e descrito na história oficial do município). A
ideologia dominante marginaliza esse grupo, ao mesmo tempo em que se utiliza da do
seu ―poder simbólico‖ (BOURDIEU, 1998) para reproduzir sua ideologia e garantir a
manutenção da realidade por ela construída.
A história na sua versão oficial, escrita pelas elites, tem o poder de privilegiar
determinado acontecimento, ao passo em que pode silenciar, ou mesmo marginalizar
grupos ou personagens, afastando-os ao máximo da cultura dominante. Em Palmeira
dos Índios, a camada mais próspera da sociedade, consequentemente os detentores do
poder, sempre fez parte dos invasores e posseiros das disputadas terras indígenas, assim
a história oficial foi construída pelos adversários dos índios, que trataram de os retratar
como seres místicos do passado, ocultando sua presença no período posterior a essa fase
inicial, a fim de silenciá-los, provocar um esquecimento na história local.
A função seletiva da narrativa proporciona a manipulação ideológica tanto do
esquecimento quanto da rememoração, de modo a justificar a dominação de grupos que
detêm o controle da construção dessa narrativa oficial. Do mesmo modo, a discussão
sobre a dinâmica da lembrança e do esquecimento, em relação à construção de uma
memória sobre determinado fato ou povo, promovida por Jeanne Marie Gagnebin

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

(2006), demonstra como a memória de um dado povo, em uma dada época, está sujeita
à eventuais disputas; visto que a produção das narrativas históricas ou versões oficiais
envolvem essa dinâmica seletiva, onde o esquecimento é realizado por grupos
dominantes que manipulam tal produção.
Em vista disso, e considerando que o historiador possui como sua função dar
voz ao não-dito (CERTEAU, 1982), este trabalho se propõe a descrever como essa
imagem é construída e utilizada. Para tanto, será necessário analisar a construção da
―identidade palmeirense‖, entendida como resultado de tradições inventadas
(HOSBSBAW e RANGER, 1997) que moldam a identidade regional (HALL, 2015) e
possibilitam a imaginação dessa comunidade (ANDERSON, 2008).

O LÓCUS DA PESQUISA

A história de Palmeira dos Índios, município do Agreste alagoano, é marcada


por conflitos territoriais e ideológicos entre o povo Xukuru-Kariri, primeiros habitantes
da região, e a elite econômica não indígena, local, que migrou para esse território em
fins do século XVIII e passou a ocupar as melhores terras e a expulsar os índios da
planície, onde posteriormente fundou-se uma cidade cuja organização social foi
influenciada por disputas territoriais entre posseiros (invasores e ocupantes de terras
indígenas) e índios que foram gradativamente expulsos de suas terras e forçados a
fugirem para as intermediações do município, principalmente as serras, ou a negar sua
identidade e a viver em meio a uma sociedade opressora (MOREIRA, PEIXOTO E
SILVA, 2008).
Mesmo estando, desde o início da formação da vila de Palmeira dos Índios,
envolvidos em conflitos fundiários com a elite local, os índios Xukuru-Kariri foram
adotados como símbolo do município; passando a fazer parte do patrimônio histórico e
memorial da cidade, têm sua imagem estampada nos símbolos oficiais do município,
nomeiam vários estabelecimentos comercias e locais públicos; são descritos na ―história
oficial‖ do municìpio como seres mitológicos, de modo a proporciona-lhe uma certa
singularidade, servindo como testemunho de que a história de Palmeira dos Índios é
peculiar, em relação aos municípios vizinhos.
Essa referência a esse povo foi feita por memorialistas locais, que se
propuseram (na segunda metade do século XX) a escrever sobre a formação do
município e, consequentemente, a determinar o lugar do índio nesse desenrolar

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

histórico. Para esses escritores, sendo Luiz B. Torre e Ivan Barros os mais importantes,
a participação dos Xukuru-Kariri na formação do município se restringe unicamente ao
momento de fundação, quando se ergueu um povoamento em suas terras; os índios são
descritos a partir de uma visão mítica, que os representa como seres idílicos, como
personagens deveras importantes, porém que ficaram no passado.
A elaboração do passado palmeirense é feita a partir da concepção dos grupos
dominantes; predomina a sua narrativa, criando uma identidade coletiva que tende a
privilegiar acontecimentos ligados à elite, ao passo que silencia a resistência indígena e,
portanto, tende a fixar no imaginário local a imagem de um índio mitológico e
romantizado, em detrimento dos índios históricos, que passaram por um agressivo
processo de expulsão e negação cultural e social.
Em face da disseminação de estereótipos e imagens deturpadas dos Xukuru-
Kariri, os índios da atualidade, a partir de comparações com os descritos pela história
oficial do município, passam a serem vistos, por grande parte da população, como
empecilhos ao crescimento local e como causadores dos conflitos fundiários existentes
no município.

AS CONTRIBUIÇÕES DE LUIZ BARROS TORRES E IVAN BARROS PARA A


“HISTORIOGRAFIA” PALMEIRENSE

Os primeiros a escrever sobre a formação do município de Palmeira dos Índios


e sobre o povo indígena que nele reside foram Luiz Barros Torres e Ivan Barros, tendo
ambos produzido textos, publicado livros e artigos em jornais. Dentre as obras desses
autores, as mais relevantes para a discussão proposta certamente são: ―A terra de Tilixi
e Tixiliá: Palmeira dos Índios dos séculos XVIII e XIX‖ (publicada em 1975) e ―Os
Índios Xukuru e Kariri em Palmeira dos Índios‖ (publicada em 1974), de Luiz B.
Torres; e ―Palmeira dos Índios: terra e gente‖ (publicada em 1969), de Ivan Barros, nas
quais os autores contam a história da cidade, descrevem seus sujeitos e tratam da
questão indígena, traçando a história dos Xukuru-Kariri desde antes da fixação no
território que mais tarde viria a pertencer a Palmeira dos Índios.
Embora essas obras não sejam fruto de estudos aprofundados da temática
indígena, nem disponham de amplos resultados, são de fundamental importância para o
entendimento do lugar do povo Xukuru-Kariri na história do município, bem como da
forma como ele é visto e representando pela ―história oficial‖, que os reconhece como
578
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

povo verdadeiramente indígena apenas no momento de formação da cidade, depois os


utiliza como ìcone folclórico. Para o antropólogo José Adelson Lopes Peixoto: ―Com a
ausência de referência a qualquer reação, começa, nessas obras, a criação da imagem do
ìndio ingênuo, talvez aos moldes do nativo descrito na Carta de Caminha‖. (PEIXOTO,
2013, p.48)
As observação de Peixoto partem da constatação de que a partir desses relatos
iniciais sobre a fixação de colonos nessa região, os índios são deixados de lado nas
narrativas, fato que transmite a ideia de que estes foram ―superados‖ pelo progresso
iniciado com a chegada do branco, sendo convertidos ao catolicismo e submetidos ao
julgo dos não indígenas, passando assim da condição de primeiros donos dessas terras
para a de derrotados que se tornaram observadores passivos das mudanças que estavam
acontecendo ao seu entorno. Nas palavras de Ivan Barros:

A obra catequética do Frade, foi empolgante. Dezenas de núcleos onde


reuniam a indiada, pacificando-a, incorporando-a a um novo sistema de vida,
surgiram por diligências do intrépido missionário. A dinâmica da conquista
se fazia sentir por todos. [...]. E felizes, os nativos passaram a dominar a caça,
a pesca nos riachos. Rasgaram o ventre da terra e fecundaram-na com
sementes de algodão, feijão e mandioca. Faziam a colheita de poucos
vegetais. E muitas vezes tomavam o ―grulijó‖ (bebida de mandioca) e
baforando ―canabis-sative‖ em quakis, enebriados, dançavam o tore,
invocando, em trajes bizarros, altas horas da noite, o Rikukilhiá (deus da
floresta), num estranho culto. (BARROS, 1969, p. 22)

Os índios descritos por Ivan Barros são seres ingênuos e passivos que aderiram
prontamente ao plano catequético de Frei Domingos de São José229, fazendo da ―santa
obra‖ uma empreitada ―empolgante‖, a partir da qual foram ―conquistados‖ e
―pacificados‖. É notável a presença da influência do mito do ―bom selvagem‖ no seu
relato, o qual descreve ìndios ―felizes‖ que aprendem a praticar a agricultura;
Está presente também, em seus escritos, a ideia de inferioridade cultural dos
índios diante da civilidade do não indígena. Não esqueçamos de destacar o exotismo e o
estranhamento presentes nos escritos do autor, que insiste em evidenciar os estranhos
costumes indìgenas, como o toré, que é realizado em ―trajes bizarros‖ e num ―estranho
culto‖. Segundo o autor, ―a indiada não resistiu à evolução voraz da civilização branca‖;

229
Ambos os autores consideram como marco da formação de Palmeira dos Índios o ano de 1770, data na
qual Frei Domingos de São José chega ao território dos Xukuru-Kariri, com o objetivo catequizá-los,
funda o aldeamento e uma igreja, na planície da região, propiciando o início do processo de migração
para a área.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

foram esquecidos depois da extinção de sua aldeia, onde antes ―viviam afastados, numa
promiscuidade desumana, num canto de terras, e assistiam o próprio ocaso da raça‖
(BARROS, 1969, p. 25).
Em se tratando de comparações e da definição dos índios como seres
decadentes, cabe citar o próprio Luiz B. Torres, que partilhava de tal ideia e inclusive a
expos em alguns artigos publicados em jornais, como o texto intitulado ―Índios Xucuru
Kariri, uma raça em extinção‖ publicado em 31 de março de 1977 no Jornal de Alagoas,
no qual apresentou os Xukuru-Kariri como um povo que não mais falava sua língua
original, não dispunha da posse de terras suficiente para sua sobrevivência e que possuía
―pouca tradição‖. Descreve-os como decadentes, que ―conservam‖ um pouco do ritual
religioso tradicional, mas que estavam numa situação denominada como ―crepúsculo de
uma raça‖.

É esta a dolorosa realidade a que deverão chegar os xucuru-kariri e outras


muitas tribos por este Brasil afora. Aculturados sem apelação, vão
assimilando costumes incompatíveis com a índole indígena. A luta pela vida,
a submissão às exigências da sociedade dominante e as investidas de várias
seitas religiosas terminarão por despersonalizá-los totalmente. Daqui a 50 ou
menos anos, os filhos e netos dos atuais remanescentes serão triturados pela
sociedade de consumo [...]. As vantagens do mundo moderno terminarão por
fazê-los esquecer as tradições de sua raça. (TORRES, 1977, p. 2)

Torres acreditava na tese de que os povos indígenas caminhavam para uma


inevitável assimilação cultural, seus escritos deixam clara a sua posição quanto a esse
fato, ao esboçar uma imagem do povo Xukuru-Kariri como uma ―raça em extinção‖,
isto é, um grupo que perdeu a ―pureza cultural‖ e a glória dos tempos por ele descritos e
que agora encontra-se num estado de decadência cultural, no qual seus costumes
tradicionais vão sendo substituídos por práticas dos não índios.
O autor destaca que as mudanças nas sociedades indígenas são frutos de
imposição de uma cultura dita superior, que cerca as comunidades indígenas, e por
religiões que insistem na investida de catequizar o índio. Não apenas enfatiza o fato
dessa tentativa de assimilação existir, mas a descreve como triunfal, negando a
resistência indígena e as dinâmicas internas da comunidade. Uma visão sobre os povos
indígenas que os percebe ―[...] caminhando sempre sobre a linha reta que leva da fase
áurea, anterior ao contato, para a de decadência, durante o contato e, finalmente para o
indefectìvel desfecho é a extinção‖ (ARRUTI, 1995, p. 59).

580
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

As referências aos Xukuru-Kariri nos escritos de Ivan Barros e Luiz B. Torres


seguem essa linha de pensamento em relação aos povos indígenas; ambos tiveram
grande influência na construção do que podemos chamar de versão oficial da história do
município, que ainda é referenciada.

A INVENÇÃO DE UMA PALMEIRA DOS ÍNDIOS IMAGINÁRIA

É destacado por autores que estudam a formação das nações modernas e da


identidade nacional, tais como Benedict Anderson (2008), Eric Hobsbawm (1997) e
Stuart Hall (2015), que as narrativas dos estados-nações são forjadas por um
determinado grupo ou parcela da sociedade que visa justificar a existência e
fundamentar suas respectivas comunidades. As tais narrativas ―justificadoras‖ das
nações são alicerçadas na construção de uma ―história oficia‖, que fornece ―uma série
de histórias, imagens, panoramas, cenários, eventos históricos, símbolos e rituais
nacionais [...], as perdas, os triunfos e os desastres que dão sentido à nação‖ (HALL,
2015, p.31).
Em se tratando da construção histórica e mnêmica da identidade local o
empreendimento não é diferente. Ao analisarmos de forma cuidadosa a história de
Palmeira dos Índios, percebemos que essa construção de uma narrativa oficial que dá
sentido à localidade foi também realizada nesse município. O apego às origens, a
invenção de tradições que permitem a identificação mútua entre os palmeirenses, e a
ênfase no mito de fundação, são as características que sustentam a produção de uma
Palmeira dos Índios imaginaria, isto é, fundamentada nos devaneios literários de Luiz
Barros Torres, porém que não ficou restrita ao campo da literatura.
Como dito acima, B. Torres foi um memorialista do século XX que escreveu
sobre Palmeira dos Índios; sua formação, seu povo e sua formação história. Dentre os
textos por ele escritos, destaca-se o livro A terra de Tilixi e Txiliá: Palmeira dos Índios
Séculos XVIII e XIX, publicado em 1973. Nesse livro, que se tornou uma das principais
referências sobre a história local, onde Torres tece uma narrativa que une ficção à fatos
documentados, é contada a história de fundação de Palmeira dos Índios a partir de uma
lenda por ele produzida, que foi tomada por muitos como verdade.
A lenda conta que os Xukuru-Kariri habitavam as matas de Palmeira dos Índios
e tinham como chefe o cacique Etafé, que aguardava a puberdade da formosa índia
Txiliá (filha de Taci) para poder com ela casar-se. Porém, a jovem índia estava

581
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

apaixonada por seu primo Tilixi; a proximidade entre os dois primos fazia com que o
cacique, com ciúmes, os vigiasse constantemente. Certo dia, durante uma festa tribal,
Tilixi, ao receber de sua prima um pouco de bebida fermentada, beijou Txiliá; ao ver tal
cena, o cacique, enfurecido, condenou Tilixi a morrer por inanição, preso ao solo, longe
do acampamento, e exposto ao sol.
Ao ouvir os gritos de socorro, proferidos por seu amado, Txiliá pede a Frei
Domingos de São José que lhe de a cruz que ele carregava no pescoço, para que pudesse
―plantá-la ao lado do moribundo, para que dela nascesse uma palmeira, debaixo da qual
ele pudesse sofre menos‖ (TORRES, 1973, p. 54). Não conseguindo convencer a jovem
índia a desistir, o padre entregou-lhe a pequena cruz. Contrariando a proibição do
cacique, Txiliá vai ao encontro de seu amado, vai ao encontro de Tilixi, nesse momento,
é atingida por uma flecha, atirada pelo ciumento cacique.
Ainda segundo a lenda, no local em que o casal morreu nasceu uma ―frondosa
palmeira‖, tomada por Frei Domingos como um milagre, o sìmbolo do mais puro gesto
de fé. A ―confiança no onipotente poder de Deus‖, demonstrada por Txiliá, fez com que
o padre reunisse as forças necessárias para a edificação do município. Segundo Torres;

O milagre produziu no frade um êxtase místico, durante o qual teve uma


visão profética do que seriam o povo e a cidade nascidos do heroísmo do
amor. Só poderiam gozar de grandeza tal povo e tal lugar batizados pelo
gesto maior que homens podem praticar: a vida em troca do elo perfeito que
une a humanidade – o amor. (TORRES, 1973, p. 56)

Torres reproduziu a lenda em vários de seus escritos e publicou inclusive uma


revista em quadrinhos retratando a história de amor do casal Tilixi e Txiliá, com falas e
desenhos seus; a partir disso, a estória passou a ser contada e recontada, até hoje. Ao
utilizar informações históricas na sua narrativa ficcional, como a presença de Frei
Domingos de São José, Torres fez com sua estória fosse citada e aceita localmente
como o mito fundacional da cidade.
Se considerarmos que ‖toda tradição inventada, na medida do possìvel, utiliza
a história como legitimadora das ações e como cimento da coesão grupal‖
(HOBSBAWM e RANGER, 1997, p.21), perceberemos que os mártires da lenda de
torres possibilitaram a fundação da cidade, inspirando seu nome e representando a
amistosa relação entre o povo Xukuru-Kariri e Frei Domingos. A respeito da invenção
do mito fundacional de nações, Stuart Hall afirma que se trata de:

582
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Uma história que localiza a origem da nação, do povo e de seu caráter


nacional num passado tão distante que eles se perdem nas brumas do tempo,
não do tempo ―real‖, mas de um tempo ―mìtico‖. Tradições inventadas
tornam as confusões e os desastres da história inteligíveis, transformando a
desordem em ―comunidade‖. [...]. Eles fornecem uma narrativa através da
qual uma história alternativa ou uma contranarrativa, [...], pode ser construída
[...]. Novas nações são, então, fundadas sobre esses mitos. (Hall, 2015, p. 33)

A influência da lenda fundacional criada por Torres, vai além da leitura nas
escolas do município na semana do dia do índio. Essa estória inspirou a produção da
bandeira do município230, tendo o casal protagonista da lenda desenhado em seu brasão,
sendo a lenda ratificada nesse ícone oficial e no próprio hino231 do município, que foi
composto sob influência da lenda; os símbolos máximos da identidade de Palmeira dos
índios são inspirados numa ficção. Como afirma Hobsbawm (1997), as tradições são
impostas através da repetição e da perpetuação de determinado discurso por parte da
camada socialmente superior, em uma sociedade organizada e hierárquica.
A visão sobre os índios Xukuru-Kariri, lendários e idílicos, concebida por Luiz
B. Torres não se restringiu a seus escritos. A repercussão de sua lenda fez com que fosse
projetada uma imagem do índio como ser idealizado, lendário e puro; possuidor de
certas características físicas e culturais que não mais são encontradas nos que
atualmente vivem na região, tendo em vista o processo histórico de opressão pelo qual
passaram. Dessa forma, essa representação deturpada é muitas vezes tomada como
verdade, criando assim um modelo de índio deslocado da realidade sócio-histórica,
substituindo a realidade pela imaginação, o que corresponde a tomar ―os signos visìveis
como provas de uma realidade que não o é.‖ (CHARTIER, 1990, p.22).
Nessa relação de símbolos oficiais tomados como referência, o que prevalece
sobre o povo Xukuru-Kariri em Palmeira dos Índios não é a opinião ou a memória
construída historicamente a partir do contato social entre a população indígena e não
indígena, mas sim a imagem construída por um grupo isolado, representado um
intelectual que a moldou segundo sua visão e interesse próprio.

230
No dia 10 de dezembro de 1968 entrou em vigor a Lei Municipal Nº 691 que instituiu o hino oficial e
os símbolos do município de Palmeira dos Índios. Fonte: Acervo pessoal de Luiz B. Torres – Núcleo de
Estudos Políticos, Estratégicos e Filosóficos (NEPEF) – Universidade Estadual de Alagoas, Campus III –
Palmeira dos Índios/AL.
231
O hino de Palmeira dos Índios, escrito por Luiz B. Torres e José Gonçalves, canta acidade como
―nascida de uma cruz‖ e como possuidora de uma ―origem secular nos heroicos Xucurús de bravura e fé
sem par‖; referências à lenda criada por Torres. Fonte do hino: http://apalca.com.br/hino-de-palmeira-
dos-indios/

583
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Considerando que ―as lutas de representações têm tanta importância como as


lutas econômicas para compreender os mecanismos pelos quais um grupo impõe, ou
tenta impor a sua concepção de mundo social, os valores que são seus, e o seu domìnio‖
(CHARTIER, 1990, p. 17), podemos perceber que as representações sociais possuem
posição política; a necessidade de relacionar o índio a um padrão que remete a um
passado distante é resultado da tentativa de descaracterizá-lo.
Esse tipo de descrição histórica, parte do modelo historiográfico adotado pelo
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), fundado em 1838 para que fosse
escrita a história oficial do Brasil, o qual escolheu os índios como componentes dessa
história da gênese nacional, usando-os como elemento ―crucial na elaboração de uma
mitografia fundacional do paìs‖ (MONTEIRO, 1999, p.238).
O índio idealizado por Luís B. Torres é uma continuação da concepção do
ìndio romântico, um ser ―idealizado do passado‖, um dos modelos232 de índios presentes
no discurso histórico desse período. Essa idealização fez com que os índios fossem, por
determinado momento, enaltecidos pelos escritores, artistas, músicos e até pela
historiografia nacional, numa tentativa de exaltar uma das raças fundadoras da nação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Discutir a imagem do Xukuru-Kariri nas narrativas e símbolos oficiais do


município de Palmeira dos Índios é uma tarefa muito instigante e desafiadora, pois a
partir do entendimento da construção dessas representações podemos entender aspectos
que estão ligados à história local. Questões econômicas, sociais e históricas estão
ligadas a criação e manutenção dessas representações que sustentam a ―identidade‖
palmeirense, forjada a partir de uma construção lendária e imagética que representa os
índios como seres folclóricos, como ícones da singularidade histórica e cultural do
município, idealizados e representados nos símbolos oficiais, seu nome é estampado em
fachadas de pontos comerciais, ou palavras que lhes fazem referência são usadas para
alcunhar locais públicos.
Com isso, se fixa no imaginário local a imagem de um índio mitológico,
possuidor de padrões físicos e características exóticas, em uma localidade em que

232
Segundo Maria Regina Celestino de Almeida (2010), são três as imagens dos índios no século XIX: a
de ìndios ―idealizados do passado‖, a dos ìndios como ―Bárbaros do sertão‖ e a dos ìndios como
―degradados‖ das antigas aldeias.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

conflitos fundiários fazem parte de sua história (desde sua fundação), influenciando na
forma como eles são vistos e representados. Tal imagem fortifica o discurso dos
posseiros, que aproveitam a comparação entre os índios atuais e os idealizados para
evocar estereótipos e preconceitos que sirvam para negar-lhes a identidade e assim o
direito à posse das poucas terras que ocupam. A presença indígena só é reconhecida
quando tal fato é conveniente à composição de uma imagem particular do município.
A história possui um alto valor, o passado é uma construção em disputa, cujo
monopólio permite que determinado grupo se mantenha na posição de domínio,
justificando suas ações a partir da negação e do silenciamento de sujeitos, de
acontecimentos ou mesmo de grupos. As narrativas históricas dominantes ou as versões
oficiais tendem a ser tecidas em meio a disputas de memórias e de discursos, por isso, o
passado deve ser constantemente retomado e analisado, visto que é fruto de seleções de
acontecimentos e versões moldadas a partir de interesses de determinado grupo em
detrimento do esquecimento de outro.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Os índios na história do Brasil. Rio de


Janeiro: Editora FGV, 2010.

ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas. São Paulo: Companhia das Letras.


2008.

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.

CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense-Universitária,


1982.

CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro:


Bertrand Brasil, 1990. (Memória e Sociedade).

GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar, escrever, esquecer. São Paulo: Editora 34,
2006.

HALL, Stuart, A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro:


Lamparina, 2015.

HOBSBAWN, Eric; RANGER, Terence. A Invenção das tradições. 2. ed. São Paulo:
Paz e Terra, 1997.

585
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

MONTEIRO, John Manoel. Armas e Armadilhas: história e resistência dos índios. In


NOVAES, Adauto (org). A outra margem do ocidente. São Paulo, Companhia da
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SILVA, Edson Hely. Povos indígenas no Nordeste: contribuição a reflexão histórica


sobre o processo de emergência étnica. Disponível
em:<http://www.cerescaico.ufrn.br/mneme>
Acesso em 22/11/2015.

OLIVEIRA FILHO, João Pacheco de. Uma etnologia dos "índios misturados"? Situação
colonial, territorialização e fluxos culturais. In: Mana, vol.4, n°.1, p.47-77, Abr. 1998.

PEIXOTO, José Adelson Lopes. Memórias e imagens em confronto: os Xucuru-Kariri


nos acervos de Luiz Torres e Lenoir Tibiriçá. Dissertação (Mestrado em Antropologia)
– Universidade Estadual da Paraíba. João Pessoa, 2013.

TORRES, Luiz B. Índios Xucuru Kariri, uma raça em extinção. Jornal de Alagoas.
Alagoas, p.11, 31 de Mar. De 1977.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

SESSÃO COORDENADA “HISTÓRIA SOCIAL”

COORDENADORES:
MARIA DO SOCORRO RANGEL & RODRIGO CEBALLOS

UM OLHAR MARXISTA SOBRE AS RELAÇÕES DE TRABALHO DOS


OPERÁRIOS DA TRANSPOSIÇÃO DO RIO SÃO FRANCISCO EM
SALGUEIRO/PE

MARÍLIA CRISTIANE PEREIRA DA SILVA


FACHUSC
[email protected]
RESUMO

A presente pesquisa busca verificar as relações trabalhistas dos operários da obra da


Transposição do Rio São Francisco no trecho Norte, localizada no município de
Salgueiro, Sertão Central de Pernambuco, percebendo as possíveis dificuldades
observadas nestas relações. Dessa forma, utilizando-se da teoria do Materialismo
Histórico que se trata da História Social, que segundo esta teoria marxista, se constrói a
partir da luta entre duas classes. Sendo, então, esta análise importante para a História
Social, nacional e local. Para a compreensão do tema foram realizadas consultas
bibliográficas e foram realizadas e analisadas entrevistas com trabalhadores da obra. Por
fim, foi concluído, que mesmo com direitos garantidos por lei, os operários da obra já
citada, enfrentam muitas dificuldades na realização da prática de seus direitos.
Palavras-chave: Materialismo Histórico; Trabalhadores; História Oral.

INTRODUÇÃO

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

A partir das transformações econômicas e sociais provocadas pelos processos


históricos, o significado do trabalho, assim como, as formas de praticá-lo também
sofreram mudanças. Tais transformações foram acompanhadas e estudadas por Karl
Marx que, então, fazendo análises do modo produção capitalista percebeu que a
sociedade se divide em duas classes, a burguesa e a proletária, a relação entre as duas,
envolve subordinação da última à primeira.
Compreendendo a História Social e tomando conhecimento da realização da obra
da Transposição do Rio São Francisco que mobilizou um grande número de
trabalhadores, surgiu o interesse de verificar as maneiras como se apresentam as
relações trabalhistas do operariado de Salgueiro - PE na obra, tendo em vista as suas
percepções sobre estas relações, entendendo que possam existir dificuldades nelas.
Dessa forma, este trabalho é relevante para a História Social nacional e regional,
pois se trata do estudo das relações de trabalho de umas das categorias mais importantes
entre aspectos de desenvolvimento econômico e estrutura social, o operariado.
Para a compreensão teórica do tema e, assim, o desenvolvimento deste trabalho, foi
necessário realizar pesquisas de aprofundamento no mesmo. Então, como se trata de
uma análise do trabalho a partir da vertente marxista foram consultadas obras de autores
com grande relevância nessa área como o próprio Karl Marx, Eric J. Hobsbawm,
Michelle Perrot, Jaques Lê Goff, E. P. Thompson, René Remond, Suzana Albornoz,
Cláudio H. M. Batalha e Veronique Sales , assim como, consultas em sites.
História Oral como metodologia principal de trabalho, tomando a produção
de entrevistas e sua análise como investimento privilegiado. Nesses casos, o
que interessa é justamente a possibilidade de comparar as diferentes versões
dos entrevistados sobre o passado, tendo como ponto de partida o
contraponto permanente o que as fontes já existentes dizem sobre o assunto.
(ALBERTI, 2005,p.174)
Sabendo que a História Oral também é uma importante fonte de pesquisa e que a
análise das relações trabalhistas, na obra de construção civil já citada, é feita com base
nas percepções dos próprios trabalhadores, foi fundamental a realização de entrevistas
com os mesmos, com base nas ideias de Michael Pollak e Alberti Verena.
Dessa forma, busca-se especificamente, apresentar a visão historiográfica utilizada
para análise e desenvolvimento deste trabalho; compreender o conceito de trabalho e
mostrar as transformações que ocorreram nas práticas do trabalho até chegar ao modelo
do operariado; Analisar as percepções do operariado de Salgueiro - PE sobre suas
relações trabalhistas na obra da Transposição do Rio São Francisco.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

TRABALHO E MATERIALISMO HIST´ÓRICO

Durante a época primitiva o trabalho era exercido apenas como meio de


subsistência, chegando ao feudalismo existia já a noção de propriedade privada e lucro,
estes estavam ligados a práticas lucrativas através da lida com a terra. Mais tarde, surge
na Inglaterra no século XVIII, a Revolução Industrial, esta dá início a relações
capitalistas de trabalho. Com o surgimento das fábricas, os trabalhadores que antes
produziam de forma independente, tornam-se assalariados, foram substituídos por
máquinas mais eficientes e transformados em operários tendo suas tarefas reduzidas.
Com as riquezas adquiridas com o mercantilismo, o comércio se desenvolve ainda
mais e o sistema feudal se mostra insuficiente para suprir as necessidades da sociedade
que dentro desse sistema econômico passava, constantemente, pelo medo da fome.
Assim, com a evolução das atividades mercantis a economia comercial se expande, o
que leva ao avanço dos centros urbanos e do trabalho nestas áreas que era feito
principalmente por artesãos. Aqui já se inicia o trabalho assalariado, pois estes artesãos
tinham a matéria-prima e eram pagos por comerciantes, que constituíam a classe
burguesa, para criarem o produto a ser vendido no mercado, antes os artesãos
trabalhavam em seu próprio tempo e com seu próprio material, os meios de produção
aqui ainda continuam sendo do artesão. Com a chegada da Revolução Industrial em
meados do século XVIII, surgiram as fábricas mecanizadas e o avanço da indústria
têxtil e férreo. Para suprir as necessidades das indústrias que se desenvolviam na
Inglaterra e depois se espalhariam para a França e outros países da Europa, chegando
aos Estados Unidos, foram contratados uma demanda muito grande de trabalhadores,
onde a maioria destes era oriunda do trabalho campal e tiveram que se adaptar ao novo
comportamento fabril, como explana Hobsbawm:
Já no tempo do cartismo, termos como ―artesão‖, ―oficial‖, ―artìfice‖ ou,
quanto a isso, praticamente todos os termos associados com a antiga
realidade de pequenos produtores independentes e suas organizações,
denotam algo que se poderia chamar de assalariado especializado, em vez de
produtor independente, embora, por outro lado, o termo ―fabricante‖, que
anteriormente se referia de forma vaga a força trabalhadora, acabou sendo
monopolizado pelo empregador industrial. (HOBSBAWM, 2005, P. 280)
Nas fábricas os operários perderam a independência na produção, assim como
também não tinham mais um termo específico para a atividade que desenvolviam e para
denominar sua profissão, tornaram-se assalariados. O fabricante não era mais o artesão,
o oficial, artífice ou aqueles que usavam sua força para produzir, passou a ser o dono da

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indústria. Isso acontece porque o produto final, agora, durante sua produção passa,
através de etapas, pelas mãos de todos os trabalhadores da fábrica.
Para que as atividades na indústria fossem realizadas a vigor e de acordo com o
desejo do patronato foram criados os regulamentos, as regras da empresa a serem
seguidas pelos operários. As exigências contidas neles era uma forma de controle e
repressão, onde aos próprios operários não era permitido opinar sobre tais regras. ―O
regulamento, portanto, é a expressão da vontade patronal, e os operários não têm
nenhuma participação nele‖ (PERROT, 2008). Neles havia multas por falta, por causar
danos nas máquinas, por brigas e falatórios.
A carga horária de trabalho era extensa e exaustiva, segundo René Remond (1974)
―As condições de trabalho são as mais duras possíveis, não existe qualquer limitação de
tempo‖. Chegava-se a trabalhar dezesseis horas diárias, sem tempo para descanso, até
mesmo no sábado e no domingo. As condições de higiene e segurança também eram
precárias, não havia nada, nem lei e nem equipamentos que assegurassem direitos e
prevenissem acidentes. As empresas não assumiam responsabilidade diante de seus
funcionários. Além disso, os salários eram baixos e não fixos, o proletariado recebia a
remuneração que o dono da fábrica acreditava ser necessário. Assim, com a inclusão das
máquinas que substituem as tarefas manuais e em tempos de crise econômica, a situação
piora ainda mais para a classe trabalhadora. Isso porque as máquinas fazem a maior
parte do trabalho, substituindo a mão de obra humana, as crises econômicas causadas
pela busca exagerada de capital através do mercado consumidor, que em determinados
períodos gera superprodução, fazem o valor das mercadorias caírem devido a pouca
procura destas e provocam a demissão dos trabalhadores em grande escala, formando
uma massa desempregada que, assim, com a grande oferta de mão de obra tem o salário
diminuído.
A Historiografia estuda a escrita da história em diferentes visões, todo trabalho que
aborda um fato dentro da história, ao ser analisado, sempre será percebido nele a
prevalência de uma visão historiográfica. O Materialismo Histórico, fundado por Karl
Marx, surge no século XIX, muda a forma como se percebe a história, agora ela passa a
ser vista a partir de influências sociais, políticas e econômicas. Karl Marx (1818, Trier,
Prússia) viveu neste período e dedicou seus estudos a compreender a História Social a
partir dessas estruturas. E assim, sempre observando as sociedades, suas políticas e
modelos socioeconômicos, pode deixar vários escritos sobre as sociedades e suas
estruturas. Partes dos estudos marxistas foram desenvolvidas em sua parceria com

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Frederich Engels, seu compatriota, o Manifesto Comunista (1848) foi uma das obras
dessa parceria. É a partir dessas análises e da observação das revoluções que aconteciam
na Europa que Marx desenvolve ideias em que a classe operária, recém-formada a partir
do aparecimento do capitalismo industrial, se apoia.
Marx juntamente com Engels produziu textos de convocação da classe trabalhadora
à luta. O Manifesto Comunista sendo um deles expõe as características burguesas de
opressão que leva a subordinação do trabalhador que é tratado como mercadoria e
depende do bom desenvolvimento do capital burguês para se manter trabalhando. O
trecho abaixo desta obra aborda essa questão de subordinação da força de trabalho aos
que detém os meios de produção.
Na mesma proporção em que a burguesia, ou seja, o capital, se desenvolve,
desenvolve-se também o proletariado, a classe dos trabalhadores modernos,
que só podem viver se encontrarem trabalho, e só encontram trabalho na
medida em que este aumenta o capital. Esses trabalhadores que são obrigados
a vender-se diariamente são uma mercadoria, um artigo de comércio,
sujeitos, portanto, às vicissitudes da concorrência, às flutuações do mercado.
(MARX e ENGELS, 2003, P.32)
Essa observação a respeito do proletário relacionado ao capital burguês faz-se
entender que para quem possui os meios de produção, esse trabalhador é apenas uma
mercadoria do qual sua força de trabalho precisa se adequar ao sistema capitalista para
se manter no mercado, assim, sendo sujeito a vender esta força por salários mínimos
que permitem apenas ao trabalhador ter sua sobrevivência garantida, mas sem uma boa
qualidade de vida. Diante da economia burguesa o proletário perde seu lado humano
para tornar-se máquina de produção.
As resistências operárias às imposições burguesas são necessárias para que eles não
percam direitos e continuem lutando por condições justas de trabalho que os tornem
menos subordinados ao patrão, conquistando assim maior autonomia no modo de
produção, nos processos sociais e econômicos. Marx tornou possível a visão da história
por um outro ângulo, que permite que o proletariado note que é explorado, mas que
possui força para mudar isso, e mostrar que a história é feita pelas ações de todos os
homens.

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CONHECENDO AS CONDIÇÕES DE TRABALHO NA OBRA DE


TRANSPOSIÇÃO DO RIO SÃO FRANCISCO

Compreendendo a obra.

A ideia do Projeto de Transposição do Rio São Francisco é secular, o Imperador


Dom Pedro II foi o seu primeiro idealizador, em 1847. Por todo o século XX o projeto
esteve presente nas pautas governamentais, mas só agora no século XXI o projeto foi
debatido, levando a decisão do inicio das obras, que foi efetuado em 2007.
O Rio São Francisco tem sua nascente no sudeste, na Serra da Canastra, Minas
Gerais, percorrendo os estados da Bahia e Pernambuco, chegando à divisa entre Alagoas
e Sergipe onde deságua no Oceano atlântico.
Segundo o Ministério da Integração o projeto abrange os estados de Pernambuco,
Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte, segundo o Ministério da Integração Nacional
levará água a 390 municípios, beneficiando aproximadamente 12 milhões de habitantes.
O objetivo é levar as águas do rio às regiões secas do Semiárido nordestino,
beneficiando as populações urbanas e rurais, setores industriais, grandes e pequenos
agricultores.
A obra é dividida em dois eixos.
 Eixo Norte composto por:
 Meta 1N que passa pelos municípios de Cabrobó (PE), Terra Nova (PE),
Salgueiro (PE), Verdejante, Penaforte (CE) e Jati (CE);
 Meta 2N que abrange os municípios cearenses de Jati, Brejo santo e
Mauriti;
 Meta 3N que atinge os municípios de Brejo Santo (CE), Mauriti (CE),
Barro (CE), Monte Horebe (PB), São José de Piranhas (PB) e Cajazeiras
(PB).
 Eixo Leste composto por:
 Meta 1L localizada na cidade de Floresta (PE);
 Meta 2L onde as obras atravessam os municípios de Floresta (PE), Custódia
(PE) e Betânia (PE);
 Meta 3L que passar pelas cidades de Custódia (PE), Sertânia (PE) e
Monteiro (PB).
Por se tratar de uma obra de construção civil, entre os trabalhadores contratados

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estão engenheiros, técnicos e operários; como pedreiros, carpinteiros, armadores,


operadores de máquinas e ajudantes.
Os trechos em obra do Projeto de Integração do Rio São Francisco
empregam, atualmente, 10.394 trabalhadores. Ao longo de todo o
empreendimento existem aproximadamente 3.221 máquinas em operação.
(Ministério da Integração Nacional, Acessoria de Comunicação Social).
Esses dados relacionados à quantidade de trabalhadores empregados e máquinas
são relativos ao ano de 2014. A obra tinha prazo para ser finalizada em 2012, porém,
devido a paradas nos trabalhos, atrasou. Aumentando o prazo para ser entregue em
2015, o que não aconteceu, e hoje o novo prazo para a entrega é para os primeiros
meses de 2017. Segundo o Ministério da Integração em 2014 o orçamento da obra era
de R$ 8,2 bilhões.
Dezenas de empresas construtoras foram contratadas para a construção da obra.
Em 2014 entre as empresas que estavam trabalhando havia a S.A. Paulista, Somague,
FBS Construtora, EMSA e Mendes Júnior. No decorrer do processo de construção
houve empresas que deixaram a obra e foram substituídas por outras, isso devido a
escândalos de corrupção e a incapacidade de algumas de concluir as suas metas.
Em setembro deste corrente ano o Ministério da Integração (MI) divulgou dados
que mostram que a obra possui 90,5% de execução física, sendo 91% pronto no Eixo
Norte e 89,6% pronto no Eixo Leste.

Concepções do Operariado Salgueirense: Relações Trabalhistas.

Este trabalho foi desenvolvido a partir da análise das visões de operários de


Salgueiro - PE que prestaram serviço a uma das empresas contratadas para realizar a
obra da Transposição do Rio São Francisco no Eixo Norte, o qual a cidade de Salgueiro
faz parte. Atualmente, a empresa está deixando a obra e os entrevistados já não prestam
mais serviços a ela. Eles foram indagados a respeito de questões trabalhistas e como se
sentem diante delas.
Segundo os próprios trabalhadores, a época em que a empresa, pela qual prestaram
serviço, possuiu mais trabalhadores contratados foi entre 2013 e 2014, período em que
ela tinha mais de 3 mil contratados. O operariado da obra é formado basicamente por
pedreiros, carpinteiros, armadores, operadores de máquinas, motoristas e ajudantes.
Estes se dividem em duas grandes equipes, os primeiros são os que fazem a parte da
terraplanagem e vão abrindo o território para os que constituem a construção civil da

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obra. Como afirma Francisco de Oliveira Silva, 47 anos.


Quem é da civil sempre é nessa área de canal, mas o canal não só é a civil,
porque o canal faz parte da terraplanagem que terraplanagem é o pessoal
dos caminhão, de máquina... Só que eles fazem a escavação e a civil faz a
outra etapa de concreto, né, de concretagem. Quem faz parte da civil é
pedreiro, carpinteiro, armador... Agora a parte da terraplanagem é o pessoal
que trabalha com máquina, carro né, caminhão, caçamba. (24/09/2016)
O trabalho realizado por eles mostra-os a dimensão da obra e de seu custo. A visão
de Francisco Lucier Ferreira Leite – 42 anos, citada a seguir a respeito da obra foi
unânime entre os entrevistados. “Olha, em relação ao que ela é, é que é uma obra que é
beneficente a todo o sertão, que é trazer água do São Francisco até a região que não
tem. E é uma obra de um custo muito grande.” (25/09/2016) Assim, nota-se que esta
visão mostra a aceitação da obra como algo que trará benefícios a toda população a qual
irá atingir. Ao mesmo tempo sabem da grandiosidade e do alto custo de capital
empregado aos devidos fins.
A fiscalização do trabalho é feita da seguinte forma:
É complicado porque ás vezes eles cobram um pouco... Ai a monitoração
deles é essa, porque eles podem falar pra gente “vocês não tão trabalhando
de graça, vocês estão ganhando pra fazer o serviço” e quer o serviço bem
feito, porque não pode ser mal feito. E tem uma pessoa que é o encarregado,
fica acompanhando a gente o dia todo. Se tiver alguma coisa errada ele pode
reclamar e pode pedir pra desmanchar, fazer de novo. Mas isso ai é, é norma
da empresa e todo mundo acompanha. Mas tem encarregado meio ruim, que
cobra, reclama sem... reclama demais sem nem, não sabe falar com o povo,
na verdade não sabe nem falar com a pessoa. Já teve dia de chamar, eu não,
mas o outro lá de burro de jumento. (Francisco de Oliveira Silva,
24/09/2016)
O monitoramento do serviço é comum em qualquer área de trabalho, nesta obra os
operários não se incomodam com a vigilância em cima deles. Porém, o que os
incomoda é o fato de muitos dos encarregados da fiscalização exigir trabalho exagerado
para a maior produção, abusando da autoridade, de modo que chegam a usarem palavras
que humilham e desrespeitam os operários. Estes para permanecerem no emprego, não
enfrentam os fiscais, pois quando isso ocorre, segundo eles, o trabalhador é mandado
embora do serviço.
Na empresa à qual estavam contratados a jornada diária de trabalho normalmente se
estendia às 9 horas trabalhadas, mesmo que na lei seja assegurado somente 8 horas
diárias de serviço, a empresa orientava seus funcionários a ter a jornada diária de 9
horas de segunda à quinta, sendo que esta hora a mais é relativa as horas do sábado,


Todas as transcrições das entrevistas estão ipsis litteris, respeitando a identidade e os falares locais do

povo.

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dessa forma, trabalhar no sábado era opcional para os operários. Segundo Laércio
Ivanildo Barros dos Santos, 23 anos: "É 9 horas porque a gente tem 1 hora de almoço
porque a gente, essa 1 (hora) que a gente trabalha é já pro sábado, é a gente trabalha
sempre 1 (hora) pro sábado." (11/09/20016). Assim, como na lei garante 8 horas de
trabalho por dia, essa hora a mais se coloca como hora extra, por lei durante o dia só
podem ser adicionadas 2 horas a mais. Mesmo assim, outros operários afirmaram que
por muitas vezes trabalharam além das horas permitidas na lei, como pode ser visto nos
trechos a seguir.
O normal é pra ser 8 horas, mas nessa área da civil sempre trabalha mais.
Mas ai qualquer hora que passa e sempre passa, ai é hora extra. A gente não
gosta tanto porque tem que a gente ir pra 6 hora né (até as 6 da noite),
cansa, mas no mesmo instante a gente acha bom porque a gente ganha mais.
Mas não é de dizer que é muito bom não que a gente quer, é cansativo, né.
(Francisco de Oliveira da Silva, 24/09/2016)

Muitas vezes o trabalhador trabalha, já aconteceu comigo, você trabalhar,


vamos dizer, se você botar de 6 horas da manhã até as 23 (Horas), E se você
analisar, muitas vezes você não recebe, porque diz que não pode colocar lá,
porque se colocar vai dá um problema, aquela coisa, paga uma multa. E
quem perde é o trabalhador, isso já aconteceu comigo. Você só vai ganhar o
que tá registrado entendeu? Ali não adianta, já conheci colega meu que
trabalhou 24 horas, vamos dizer; pegar 7 da manhã e quando dava as 5 da
tarde que é pra parar, chegar um encarregado e pedir pra ele virar o turno...
E ele parar no outro dia 7 horas. E quando chegar o dia de receber, como
não pode colocar que você trabalhou 24, o trabalhador perde, porque ai diz
que vai pagar por fora e nunca paga. (Francisco Lucier Ferreira Leite,
25/09/2016)
Estes relatos mostram o descontentamento dos trabalhadores quando são
obrigados a realizar tarefas fora do devido horário. Além disso, demonstram
descumprimento, por parte da empresa, da lei que os defende, ao perceber que existe
fraude no registro do total de horas executadas, fazendo o operário passar mais tempo
trabalhando do que o permitido e, como não há registro das horas a mais, estas acabam
não sendo pagas, pois não há nenhum documento que comprove que elas foram
executadas. Ainda sobre o salário pago aos trabalhadores foi afirmado:
A gente não sabe se é muito justo porque tem horas que a gente acha pouco
por causa que aquela obra, a gente sabe que a empresa ta com o pessoal
mesmo pagando tudo certim, mas a gente ainda, tem vez que a gente acha
pouco porque a trabalhada é muito... Pelo que ela ganha, eu acho que a
gente ainda ganha pouco. Mas aqui não tem outra opção, esse ai a gente já
acha bom, mesmo que sendo pouco. Eu mesmo fico agradecido. (Francisco
de Oliveira da Silva, 24/09/2016)
A classe trabalhadora tem consciência de merecimento de uma remuneração maior,
porém sente que é subordinada a empresa e que seu salário depende dela, deixando essa
classe numa situação de conformismo, ainda mais quando o trabalho é tido como um
presente divino, pois, quando no final da fala o trabalhador diz "Eu mesmo fico

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

agradecido", essa gratidão dele não se refere unicamente a empresa, mas também a um
ser divino, o qual lhe concedeu a graça de trabalhar. O sentimento de subordinação
operária se apresenta em outras falas também, nas quais o trabalhador demonstra sentir-
se oprimido e sem direito a voz.
Na verdade a pessoa se sente bem pequeno porque você não tem voz. O
regulamento não deixa, você tá pra trabalhar e acatar ordem e pronto.
Mesmo tando errado, não importa. Então você se sente o seguinte: to aqui
porque preciso, vou ganhar o meu, defender a minha feira, da minha família,
mas sabeno que você ali, dentro da empresa, você é nada. Mas trabalhador
você pode fazer o que? Ficar calado porque você precisa ganhar, e se você
abrir a boca você vai mandado embora. (Francisco Lucier Ferreira Leite,
25/09/2016)
Eu ganhava em torno de, na base 1.600,00, quase 200,00 reais descontado
do INSS. O tanto de coisa que é tirado do suor do peão, é muita coisa
descontado. Nós trabalha não é só pra gente não, um trabalhador é, é muito
patrão que ele tem, é muita gente pra comer do suor... Um tiquim dali e um
tiquim dali.(Gilberto Unias Pereira, 23/09/2016)
Para a empresa o que importa é a força de trabalho comprada ao operário, a ele
cabe cumprir com sua tarefa de produção, sem poder opinar acerca das decisões
relativas ao seu trabalho, assim, sendo obrigado a acatar as ordens, pois caso o
contrário, ele perde o emprego que é a única fonte de renda. O salário que o trabalhador
recebe vai para gastos com utensílios fundamentais à sobrevivência. Além disso, do
salário que é considerado baixo, ainda há grandes porcentagens de descontos relativos a
seguros sociais, como o INSS, FGTS entre outros, que minimizam ainda mais a
remuneração. Outra reclamação da classe trabalhadora diz respeito ao não depósito do
dinheiro relativo a esses benefícios em suas contas.
Fizemos duas greves, paramos as BRs, sem sucesso, pra pressionar. A gente
fechou a BR 116 duas vezes por conta de que a... Foi mandado embora mil
homens, a firma não quer pagar a esses homens a rescisão de contrato,
pagando apenas o FGTS e liberando os papel pra entrada de seguro
desemprego. FGTS de pessoas que tem 4 anos(De trabalho) que a empresa
depositou mil e poucos reais. (Francisco Lucier Ferreira Leite, 25/09/2016))
Os atrasos de salários e o não pagamento de quantias garantidas aos trabalhadores
por direito, foram os principais motivos de organizações de greves, houve greve
também relacionada a falta de equipamentos de segurança no trabalho, mesmo com a
existência dos técnicos responsáveis pela área. As greves sempre eram acionadas devido
a falta de comunicação da empresa com os funcionários, dessa forma, exigiam
explicações sobre os problemas e o cumprimento do exercício do que é dever da
empresa para com seus funcionários.
A empresa só coloca um engenheiro de segurança e os técnicos de
segurança porque é obrigatório, uma obra não funciona se não tiver a
segurança porque o MI não aceita, né, os órgãos governamentais não
aceitam. Mas é assim, a segurança dentro da empresa, se ela funcionasse era
ótimo, mas o que acontece? A segurança é mandada pelo engenheiro, os

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

técnicos de segurança e o engenheiro é mandado pelos donos da empresa, os


grandes, vamos dizer, encarregado geral, então é assim, muitas vezes, você
vai trabalhar em área de risco e que a segurança muitas vezes fecha os
olhos, porque ela é, são trabalhadores iguais a mim, se ela for pressionar o
engenheiro de segurança e o engenheiro for pressionar a empresa, então,
eles vão mandado embora. Tá ali por obrigação, pra se qualquer coisa
acontecer um acidente, qualquer coisa mais grave... Tem a segurança? Tem.
Pronto, quer dizer, a empresa já tá acobertada porque tem um técnico de
segurança na frente de trabalho. Mesmo que aconteça um acidente grave por
irresponsabilidade da segurança, que às vezes não é irresponsabilidade da
segurança, ela não pode fazer nada, irresponsabilidade da empresa.
(Francisco Lucier Ferreira Leite, 25/09/2016)
Até 2013 a empresa não possuía os equipamentos de segurança, e foi só devido a
um acidente grave ocorrido como um dos operários, que os demais se uniram e fizeram
a greve, só depois disso eles conseguiram adquirir os equipamentos de segurança
necessários. Ainda assim, percebe-se que a presença da segurança do trabalho na
empresa se mantém apenas pela obrigação legal, e que na ocorrência de acidentes
causados por irresponsabilidade da empresa, esta não sofre penalidades, pois os próprios
técnicos de segurança são subordinados a ela e sendo assim, costumam se posicionar na
defesa da empresa.
Mesmo com as organizações de greves existindo, o número de operários presentes
nelas é pequeno. Isso acontece devido a necessidade de garantir o emprego, que para
eles é o fundamental diante de qualquer outro direito, pois precisam dele para o sustento
familiar, principalmente. Como assim afirma Francisco de Oliveiria Silva, "eu não
participei disso não, porque quando participa de greve, geralmente os grevistas é difícil
ficar no trabalho. O caba fazer frente de greve, organizar greve, geralmente eles
mandam embora." (24/09/2016)
O sindicato que é responsável por estes operários não é bem visto por eles.
Segundo Francisco Lucier Ferreira Leite, "Hoje o sindicato é visto pela maioria dos
trabalhador, por 90% dos trabalhador como uma pedra no meio do caminho do
trabalhador." Ele ainda acrescenta:
A gente sabe de trabalhador que foi denunciar a empresa ao sindicato,
sindicato pegou o nome do trabalhador passou pra empresa e na semana
seguinte trabalhador foi mandado embora sem justificativa. Hoje a gente tem
que entender o seguinte, os órgãos que é pra defender o trabalhador, na
verdade ele não tá pra defender o trabalhador, ele faz toda aquela, aquela
"bang bang" dentro duma obra dizendo que tá pra lhe defender, mas uma
empresa grande chega e compra ele, ele faz vista grossa e "tchau". Ele vai lá
mais você, lá na empresa, diz meio mundo de coisa, faz a pressão, só que é
uma pressão combinada. Se você não tiver por dentro do que ta acontecendo,
você pensa que o sindicato ta lhe defendendo, agora não vá na onda não e
procure seus direitos por outro lado que se você depende do sindicato você ta
perdido. (25/09/2016)

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Sendo um órgão de representação e luta das causas trabalhadoras, o dever do


sindicato é defendê-las, lutar contra as injustiças impostas pela empresa. Porém, o
comportamento desse órgão diante das dificuldades encontradas pelos operários da obra
da Transposição do Rio São Francisco, mostra o contrário. O sindicato age de acordo
com a vontade da empresa, demonstra apoio ao operariado, mas ao final toma decisões
contrárias as necessidades dos trabalhadores. Gilberto Unias Pereira ainda afirma:
"Porque o sindicato, ele não dá de conta, ele não honra o papel de sindicato que deve
fazer. Então a gente se sente atingido nesses aspectos, porque a gente vê um lado, como
pode dizer? Olhando pra quem dá mais." (23/09/2016).
Aqui fica claro o porquê de o sindicato tomar partido contrário ao que devia, os
operários afirmam que ele recebe dinheiro da empresa para não prejudicá-la, há então
um acordo entre sindicato e empresa, deixando os operários desamparados. Além disso,
o sindicato não é formado por trabalhadores, as pessoas que o constituem, dizem os
operários, que elas não os representam, pois não compreendem o trabalho duro e sofrido
na obra, ocupam os cargos sindicais como uma maneira de benefício próprio. Esta é a
visão que os operários têm do sindicato que os representa em Salgueiro.
No entanto, diante das dificuldades enfrentadas pelos operários as visões deles a
respeito da empresa divergem como pode ser visto a seguir. "Pelo menos no meu ponto
de vista eu não tenho o que cobrar da empresa, porque foram 3 anos, eu entrei como
ajudante e sai como auxiliar de segurança." (Laérico Ivanildo Barros dos Santos,
11/09/2016)
Olha, a empresa em relação aos trabalhador, a empresa é o seguinte, ela
quer produção e ela pra o trabalhador ela num ta nem ai, a maior prova é
essa daí, a gente trabalhou duro, ela ganhou milhões, ganhou milhões,
ninguém sabe onde ela botou o dinheiro. E na hora H, o que que ela faz? Ela
abandonou nós, simplesmente se dependesse só dela, ela tinha ido embora
sem a gente saber como, e sem ela dá satisfação, se a gente não precisasse
dá baixa numa carteira, assinar um documento, ela tinha ido embora sem dá
satisfação a nós, a empresa é irresponsável. Muito depois, quando já tava
quase uns mil homens demitidos, foi que a gente ficou sabendo que ela não ia
pagar, não tinha dinheiro pra pagar. (Francisco Lucier Ferreira Leite,
25/09/2016)
O sentimento de gratidão pelo crescimento profissional dentro da empresa, impede
que eles percebam, ou pelo menos, queiram evidenciar outras dificuldades sofridas,
sentem como sendo injustiça de sua parte criticar negativamente a empresa que o
permitiu tal crescimento. Algo que pode também influenciar na demonstração de
gratidão é fato de que o trabalhador precisa continuar sendo bem visto por seus patrões,
para que assim, possa permanecer no cargo que foi desejado ou até chegar a outro
melhor.
598
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Para outros o descaso da firma em deixá-los sem informação e satisfação acerca de


problemas internos, que interferem nas condições de trabalho e na vida dos operários, os
deixam insatisfeitos. A empresa deixou a obra sem comunicar aos operários e sem fazer
as devidas prestações de contas. Esse fato causou a revolta deles.
A partir dessa análise e do significado de trabalho para o operariado é possível
compreender as contradições existentes entre eles em relação as condições de trabalho.
Gilberto Unias Pereira dá o seguinte significado ao trabalho:
É, pra mim mesmo, é minha fonte de renda. É onde eu ganho o meu pão pra
dá de comer a minha família. O trabalho é uma das coisas mais importantes,
diante de Deus, que a gente tem, o trabalho faz parte da vida de cada um ser
humano. (23/09/2016)
Este significado do trabalho para o entrevistado não é especifico dele, para a maior
parte dos operários o sentido do trabalho é a geração de renda para o sustento familiar.
Além disso, grande parte da classe dos operários de Salgueiro que trabalhou - outros
ainda trabalham - na obra de Transposição do Rio São Francisco são oriundos de
famílias pobres, possuem no máximo segundo grau escolar, muitos são filhos de
pequenos agricultores, que plantam para o consumo próprio. Assim, compreende-se que
mesmo diante das injustiças sofridas dentro do ambiente de trabalho, esses
trabalhadores sejam gratos ao prestarem serviço à empresa e ao salário que ganham, se
subordinando a ela, devido a dependência financeira da classe que precisa vender sua
força de trabalho para sobreviver. Daí entende-se o porquê da maior parte das greves
ocorridas terem como motivo o atraso de salário. A principal reivindicação é a garantia
do emprego e do salário, o medo de perdê-los, os impedem de perceber que unidos
constituem uma força capaz de lutar e conquistar melhores condições de trabalho.

CONCLUSÃO

A análise feita com as entrevistas confirmou a hipótese de que os trabalhadores


enfrentam muitas dificuldades nas relações de trabalho estabelecidas. Tais dificuldades
se dão pela subordinação dos operários a empresa, isso, pela necessidade do ganho de
salário deles. Pois, como pode ser visto através do Materialismo Histórico e confirmado
nas entrevistas, o operariado vende sua força de trabalho por ser esta a única forma de
garantir sua sobrevivência.
Portanto, constatou-se que mesmo com direitos historicamente conquistados
através de sua lutas, o operariado sofre pela falta de execução dos mesmos. Isso porque,

599
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

como foi observado, a empresa tendo apoio de outros órgãos como o sindicato,
consegue encontrar formas de burlar os direitos que defendem os trabalhadores. Assim,
podemos notar que a luta por direitos para a classe operária é constante e necessária
para a eficácia dos que já estão garantidos na lei e dos que ainda precisam ser
conquistados.

FONTES DE PESQUISA

Entrevistas:
Laércio Ivanildo Barros dos Santos (Ajudante - Aux. de segurança no trabalho),
entrevistado em 11/09/2016.
José Thiago de Andrade (Carpinteiro), entrevistado em 23/09/2016.
Gilberto Unias Pereira (Pedreiro), entrevistado em 23/09/2016.
Francisco de Oliveira Silva (Carpinteiro), entrevistado em 24/09/2016.
Francisco Lucier Ferreira Leite (Operador de perfuratriz), entrevistado em 25/09/2016.

Sites:
http://ne10.uol.com.br/canal/interior/sertao/noticia/2014/02/07/uma-viagem-ao-
canteiro-de-obras-da-transposicao-do-sao-francisco-469956.php Acesso em 16/11/2016
https://moodle.ufsc.br/pluginfile.php/934138/mod_resource/content/1/elementos%20b%
C3%A1sicos1.pdf Acesso em 16/11/2016
http://www.adital.com.br/site/noticia2.asp?lang=PT&cod=31077 Acesso em 06/11/2016
http://www.culturabrasil.org/revolucaoindustrial.htm Acesso em 16/11/2016
http://www.direitobrasil.adv.br/arquivospdf/revista/revistav51/ensaios/be1.pdf Acesso
em 16/11/2016
https://www.marxists.org/portugues/manfred/historia/v02/08.htm#c810 Acesso em
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http://www.mi.gov.br/documents/10157/3932290/Mapa+de+Localização+das+Metas_.j
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600
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

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601
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

OS INVENTÁRIOS E SUAS POSSIBILIDADES DE PESQUISA FRENTE À


MEMÓRIA E A CULTURA MATERIAL (CAJAZEIRAS, PB – 1876-1930)233

JOSEFA JAKELINE ALVES OLIVEIRA


UFCG/CFP
[email protected]

RESUMO
Este trabalho é fruto da participação no projeto de pesquisa ―Inventariando memórias,
partilhando experiências: cultura material e redes familiares na recém-emancipada
cidade de Cajazeiras, PB (1976-1930)‖ e baseia-se na análise de inventários post-
mortem desta cidade com o objetivo de conhecer a sua cultura material, os hábitos de
consumo e as relações sociais e familiares presentes nessa documentação. Entendendo
que uma cidade não se constitui apenas por seu traçado urbanístico, mas sobretudo,
pelas relações que se estabelecem nela, Cajazeiras ganha outros contornos nessa
documentação. Todo elemento, seja este cultural, material, tradicional, etc., pode conter
indícios que em conjunto revelam o aparato por trás da sua constituição e que
possivelmente permanecem até os dias de hoje.
Palavras-chaves: Fonte Documental; Inventários post-mortem; Cultura Material.

Ao início da nossa trajetória, muitas eram as dúvidas em relação ao objeto de


pesquisa, sobre que determinado fato analisar e sobre o que essa fonte disponibilizaria.
Com o desenrolar dos trabalhos e com discussões que refletiam sobre sua origem,
produção e tipo de informações presentes, foi então possível entender a dinâmica
presente nessa documentação.
Os inventários são produzidos após a morte do inventariado, sendo um
documento produzido em conformidade com a lei e oficializado pelo juiz, no qual os
bens são registrados e distribuídos entre os herdeiros após pagas as suas dívidas. Estes
contêm ricas informações sobre a vida material, a religiosidade, a escravidão, a
composição familiar (idade, estado civil, filhos órfãos, filhos legítimos e ilegítimos),
etc.
Cada inventário tem sua particularidade, uma vez que, não se repetem, são
documentos exclusivos que nos permite conhecer inclusive a composição das camadas

233
O presente trabalho está sendo desenvolvido sob a orientação da professora Dr.(a) Viviane
Gomes de Ceballos e minha participação no projeto após a aprovação do mesmo pelo PIBIC
(Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica).

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

sociais alta, média e baixa (negociantes, fazendeiros, agricultores, advogados, oficiais a


cargo do Estado, médicos) a partir das referências quanto às atuações profissionais e do
valor final do monte-mor (o valor total de todos os bens deixados). São fontes que
podem fornecer detalhes minuciosos da vida cotidiana, de detalhes que envolvem uma
convivência em um meio familiar, como também o profissional. É uma viagem através
de palavras que narram uma vivência construída durante toda uma vida e após a morte é
retomada através das descrições materiais.
―É como se tivéssemos em mãos uma câmera indiscreta vasculhando os
meandros da casa, o vestuário, o mobiliário, o vasilhame, a despensa, o
quintal, o sìtio, as datas de mineração e sobretudo a mão de obra.‖
(MAGALHÃES, 1989, p.31)

A partir da Escola dos Annales com a reformulação de uma História narrativa e


factual e a opção por uma História problema, os inventários apresentaram-se como
fontes capazes de revelar grandes nomes, mas que, também permitiam conhecer as
massas anônimas, pois continham um caráter massivo e serial importante para a
construção histórica local. Teixeira afirma que ―... o conjunto dos inventários possibilita
uma análise social mais ampla‖ (2012, p.65), porque é uma documentação que ao
referenciar uma parte da sociedade, ao mesmo tempo faz lembrar daqueles que ela não
menciona, permitindo uma análise de um grupo mais amplo partindo das
individualidades de cada inventário.
A metodologia utilizada nessa pesquisa deu-se através da digitalização dos
processos seguida pela leitura dos mesmos e coleta de informações em uma ficha pronta
denominada de ―Ficha de Exploração de Inventário‖. A elaboração dessa ficha foi
baseada nas fichas utilizadas por Teixeira (2012) alterada para atender às
especificidades dos processos a que tivemos acesso. As descrições dos bens são
realizadas por categorias como: Pertences e utensílios domésticos; Mobiliário; Dinheiro;
Jóias; Mercadorias; Equipamentos; Instrumentos profissionais; Animais; Escravos e
Bens de Raiz; Dívida Ativa e Passiva; Herdeiros; Monte-Mor e Partilhas. Em cada uma
dessas categorias existem as subdivisões, que são: a origem, idade, estado, profissão
(escravos), nome e descrição do bem, valor, localização, quantidade, valor unitário,
valor total, nome de credores e devedores e o valor de suas dívidas. Além disso, a
mesma ficha está sujeita a alterações à medida que novas informações aparecerem e
assim não passarem despercebidas. Esse registro das informações constantes em cada
processo facilitará o levantamento dos bens inventariados e seus respectivos donos.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

A discussão (em grupo) de bibliografias propostas teve a finalidade de permitir


um maior número de informações e reflexões importantes sobre a documentação da qual
utilizamos.
A enorme quantidade de informações faz desses documentos, valiosos
testemunhos de uma época passada, sendo para o historiador ricas fontes de pesquisa.
Segundo Furtado (2009) por serem fontes documentais, merecem cuidados nos
momentos de pesquisa, pois o fato de serem oficializados não garante a seguridade ou a
imparcialidade das informações, podendo existir informações distorcidas e a diminuição
de dados registrados. Existe ainda a possibilidade de que durante o momento de sua
produção as descrições e atribuições de valores fossem feitas sem a verificação direta
com os bens, apenas confiava a uma pessoa essa responsabilidade e, portanto, não
haveria o que contestar porque ao nomear os avaliadores, os mesmos realizavam
juramentos no qual se comprometiam a uma avaliação de acordo com a lei sem
nenhuma fraude e ao final haveria a consolidação do processo por parte do juiz. Outro
fator importante é a condição de analfabetismo por parte da família do inventariado
principalmente de seus representantes no processo, como é o caso de um inventário
iniciado em 09 de julho de 1880 em que o filho Justino Alves da Silva que não sabia
escrever, era o inventariante de seus pais Lourenço Alves da Silva e Manuela Maria da
Conceição. Com o passar do tempo apenas os bens de maior valor do patrimônio eram
inventariados, o que de certa forma resultou na omissão de muitos elementos materiais,
talvez até mesmo bens que economicamente não apresentavam valor algum, mas que
sentimentalmente representasse mais que apenas um bem, como por exemplo, algo que
representasse uma herança presente há anos na mesma família. Os valores muito altos
ou muitos baixos em comparação a outros de mesma época nos leva a pensar sobre os
interesses que envolvem um inventário no momento de sua produção; assim como as
interferências que sobre eles incidem, o que é perceptível na documentação, uma vez
que, na maioria das vezes são designados os mesmos avaliadores ou até mesmo parentes
e vizinhos da família, abrindo margem ao favorecimento ou não da família, inclusive
disputas entre os herdeiros no momento da partilha.
Também é necessário que o historiador possua conhecimento das leis da época
de elaboração dos inventários, uma vez que, os mesmos são redigidos por leis
específicas. Furtado (2009) destaca a relação dos inventários com as Ordenações
Filipinas principalmente com relação às divisões da herança, ao pagar as dívidas, às

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

despesas do inventário, a parte que cabe à viúva e aos herdeiros234. Vale ressaltar que,
eram documentos produzidos apenas por uma parcela da sociedade e que poderiam ser
produzidos de forma privada, o que diminui a quantidade desse tipo de fonte disponível
em acervos públicos235.
É preciso que o historiador esteja atento a mudanças a longo e médio prazo no
formato dessa fonte, ou até mesmo mudanças na mentalidade social podem ser
incluídas, pois, como já discutido acima, esses fatores (interesses e privilégios pessoais)
interferem diretamente na redução e consequentemente na análise das informações. Por
isso o cuidado no trabalho com a mesma, sobretudo com a ideia de generalização. Cada
inventário é único, também há a possibilidade de inventários fidedignos em sua
produção e informações e que podem apresentar apenas os elementos que para aquele
momento eram consideráveis economicamente. Com isso é possível entender as
mudanças na mentalidade social, pois é no quadro social que essas mudanças e
interesses são construídos.
Magalhães (1989) também explicita que essa é uma documentação que exige
cuidado em seu trato, sobretudo quando ela coloca em suspense os elementos contábeis
de inventários por ela analisados, principalmente com relação ao baixo preço de alguns
bens observados, fato também observado por Teixeira (2012). A possibilidade de
alteração de informações, que gerem (des)valorização, ou que privilegie alguns em
detrimento de outros, são pontos chaves retratados por aqueles que já trabalharam e que
talvez ainda trabalhem com essa documentação.
Uma das dificuldades em se trabalhar com essas fontes, e talvez a maior, é o seu
estado de conservação; a fragmentação do acervo e a ausência dos mesmos. É um
material que, como toda fonte, merece cuidados ao serem manuseados, cuidados de
conservação e meios de pesquisas como a sua digitalização em um banco de dados
virtual. É partindo dessa dificuldade, que a pesquisa tem como parte inicial, a
digitalização do acervo dos inventários post-mortem datados entre os anos de 1876 e
1930, pertencentes ao arquivo do Fórum Dr. Ferreira Júnior em Cajazeiras, PB. Vale
destacar que fora encontrado um volume considerável de documentos a mais que o
234
O período mencionado nessa pesquisa corresponde ao final do século XIX, portanto processos cíveis
como é o caso dos inventários a serem analisados encontram-se dentro dos padrões de elaboração
correspondentes as Ordenações Filipinas.
235
Além da realização de Inventários post-mortem no meio judicial, existiam aqueles que por acordo
familiar eram realizados de maneira privada, então, feitos o levantamento dos bens e conseguinte a
partilha sem nenhuma ligação com o meio judicial, é impossível o acesso a essa documentação, uma vez
que, caso tenha sido realizado por escrito, certamente permaneceu na família.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

esperado. Além da análise dessa documentação, nosso objetivo também é assegurar a


existência dessas fontes e assim, garantir o acesso para outras pesquisas.
Várias são as dificuldades e os limites dessa documentação, contudo, há várias
possibilidades de trabalho com os inventários. Uma delas é por meio da análise serial,
quantitativa, utilizada por Teixeira (2012) e que mesmo assim, não excluiu a
possibilidade de estabelecer relações entre as informações e perceber os jogos de
interesse que ali apareciam. Como exemplo, ele analisou que os títulos de Dona para as
mulheres, coronel, capitães, tenentes, etc., eram mais frequentes que a ocupação como
ajudante e carpinteiro que raramente eram descritas no período analisado. A
possibilidade da grande quantidade de casamentos estar ligada diretamente à influência
religiosa, à hierarquia social, às diversas naturalidades que compõem a população de
determinada cidade; e com isso perceber a relação da imigração com as atividades
comerciais que estavam em alta; os laços de amizades que envolviam principalmente as
dívidas e despesas; número estimável de filhos para a época; localização entre rural e
urbano; atividades agrícolas em destaque; fragmentação da herança, terras e escravos,
etc. Vemos, portanto, que os inventários post-mortem dispõem de uma pluralidade de
informações e de uma diversidade de meios a se trabalhar com eles.
Mesmo diante da visibilidade da existência de Hierarquia social em toda
sociedade, Magalhães trata a possibilidade de compreender a composição das camadas
sociais locais, utilizando-se das descrições quanto à quantidade de bens e as atuações
profissionais de cada inventariado, fazendo um levantamento dos bens em conjunto com
os títulos de cidadãos. Compreendendo, assim, o lugar social que estes ocupavam.
Em um caso analisado por Magalhães (1989), percebeu-se que mesmo o senhor
possuindo plantações (que não eram boas) e cinco catas (escavação para mineração)
essa última em sociedade - sua principal fonte de riqueza eram os escravos e o preço
destes eram muito volúveis, pois nem sempre a idade era o critério de avaliação
econômica, além da idade poderiam ser considerados: o sexo, estado, origem, saúde e
filho pequeno ainda com a mãe. Isso significa que, apesar das atividades econômicas
exercidas e de outros bens em posse do senhor, para a época, era a posse de muitos
escravos que lhe garantia poder econômico. O senhor possuía pouca mobília, sendo
estas tão simples quando comparadas com o seu vestuário requintado, e então porque o
cuidado com a aparência? Talvez porque isso significasse que ele pertencia a um lugar
no qual esse era o padrão esperado de um senhor com tais posses. O baixo valor das
catas e de um terreno (este último que fora avaliado por antigos vizinhos), e a

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

propriedade - sociedade que continuava coletiva (herdeiras e credores - sócios), e de 59


escravos (a principal riqueza) que resultou no beneficio dos sócios com 32 escravos,
mais da metade do número destes, enquanto que apenas 27 escravos foram divididos
entre as duas herdeiras, geram indagações que são inevitáveis diante dos interesses e
benefícios de terceiros. Todas essas informações levam a pensar sobre os interesses e
manipulações que envolvem um inventário no momento de sua produção. Esse fator não
deve ser entendido como desestimulador a um trabalho que a utiliza, e sim como algo
que não deixa de ser outra possibilidade de pesquisa, um desafio a ser enfrentado pelo
historiador.
Teixeira (2012) também menciona outra alternativa de análise, pois os
inventários podem conter informações do período colonial, já que, foi durante esse
período que estes começaram a ser produzidos no Brasil. Através da análise desse
material é possível entender a lógica de funcionamento de determinadas sociedades
(bens materiais e status) relações e bens significativos também de acordo com o
período. Os inventários podem conter essas informações por serem uma documentação
detalhista e podem ser comparadas com períodos diferentes, encontrando-se as
transformações que se seguem com o passar do tempo.
Podem revelar inclusive os anseios que permeiam as partilhas de uma herança,
por que a mesma só segue adiante se ambos os herdeiros concordarem e mesmo
concordando existem autos que pedem uma nova repartição devido à insatisfação com
as partilhas mesmo depois de feitas. É o caso de um processo de 1877 encontrado na
documentação que analisamos, em que pedia a acção de nullidade de um inventário do
qual ocorrera a insatisfação dos herdeiros com relação à partilha, principalmente com
relação a um escravo que permanecera em poder da viúva, os quais moveram uma ação
contra sua mãe D. Jusepha Maria do Carmo e seu novo companheiro José Pereira 236. Os
herdeiros representados por José Martins da Fonseca Morais requeriam uma nova
repartição dos bens adquiridos e deixados por seu pai o finado Antonio Leite da
Fonseca.
Talvez possamos pensar que os inventários só permitirão falar sobre uma parte
da sociedade devido às condições necessárias a sua produção (possuir bens suficientes a
cobrir as despesas e dívidas), mas além destes, esse detalhe abre espaço para a minoria,
―E já que ela é a história dos grandes números e da maioria dos homens, é em primeiro

236
As palavras ―acção e nullidade‖ e o nome ―Jusepha‖ foram escritos nesse trabalho da mesma forma na
qual se encontravam escritas na documentação.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

lugar o explorado que ela coloca em primeiro plano‖ (PESEZ, 1990, p. 211), permitindo
entender e discutir as questões e desigualdades sociais e as representações do campo
econômico e social.
O movimento Iluminista desencadeou uma série de transformações e revoluções
que promoveram o surgimento da História Moderna. Esse movimento requeria ao
mesmo tempo uma revolução epistemológica para que repensasse seus conceitos e é
nesse ponto que a Filologia (estudos científicos de línguas), que o estudo objetivo das
línguas tornou-se indispensável, já que,
―... a História se faz com documentos e que os devemos conhecer muito bem.
Precisamos diferenciar documentos falsos de verdadeiros e isso só é possível
com um conhecimento aprofundado da lìngua utilizada‖ (FUNARI, 2008, p.
83)
Por meio da Filologia é então possível identificar a veracidade dos documentos
através do estudo e conhecimento sobre a língua utilizada, é uma maneira de
conhecermos bem a documentação. Mas, além disso, é necessário que toda análise ou
reflexão sobre determinado momento histórico deva ser levado em consideração de
acordo com o seu lugar, tempo, espaço e contexto em que ocorrera.
O conceito de ―documentos‖ estendeu-se para além dos propriamente escritos e
apenas oficializados pelo Estado. A cultura material passou a ter relevância como fontes
historiográficas, permitindo, ―... disponibilizar fontes escritas sobre o passado e de
complementar as informações existentes com evidências materiais sem escrita.‖
(FUNARI, 2008 p. 84). O material é também um documento, uma fonte que carrega em
si, indícios sobre algo que possivelmente o escrito mesmo oficializado não dispõe, ou
até mesmo omita. A partir de análises feitas sobre a cultura material, Funari (2008)
menciona que através de vestígios materiais, foram encontrados indícios de conflitos e
resistência a exemplos de índios e escravos, fato este, que muitos pesquisadores por
muito tempo negaram ou simplesmente os escritos omitiam esse tipo de informação,
pois,
―Não que os documentos não se refiram à resistência, mas o fazem a partir de
um ponto de vista do grupo dominante, o que muitas vezes pode induzir o
historiador a considerar o comportamento dos subalternos como desviantes,
desrespeitosos das normas sociais que deveriam ser aceitas e
compartilhadas.‖ (FUNARI, 2008 p.103)

Mesmo havendo diferenças e contradições entre as fontes, ambas se


complementam, ele não afirma que a evidência material é mais importante ou dispõe de

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

mais informações que a evidência escrita, mas que a mesma também deve ser
considerada. Não é questão de hierarquização das fontes, mas de complementação das
mesmas.
A cultura material impulsionou o surgimento de novas correntes historiográficas,
como a exemplo o Materialismo Histórico, que se desenvolveu devido às
multiplicidades e condições materiais do cotidiano. Então a História passou de relato à
interpretação das fontes. Funari define cultura material como, ―... tudo que é feito ou
utilizado pelo homem.‖ (2008, p.85). Apesar de serem fontes históricas, é preciso usar
ferramentas interpretativas que orientem sua análise, afinal é uma história que deve ser
construída baseada na veracidade dos fatos e dos meios utilizados nas interpretações
sobre as fontes materiais. É necessário conhecer obras que trabalham a respeito desse
tipo de documentação, pois quanto mais informações possíveis, melhor será o resultado
do trabalho com essa mesma fonte.
Deve-se estar atento e tomar cuidado com a metodologia utilizada. Para Funari
(2008), uma analogia etnográfica permite através de seu estudo descritivo conhecer
aspectos sociais e culturais.
Objetos da Antiguidade foram as primeiras fontes arqueológicas, ao contrário do
que muitos pensam, as fontes arqueológicas são importantes não apenas para
historiadores da Antiguidade como também para a História Moderna, ―A especificidade
de cada contexto histórico pode ser revelada pelo historiador que se vale de fontes
arqueológicas‖ (FUNARI, 2008, p.99), pois literalmente é uma parte daquele momento,
é uma informação privilegiada, pois não é algo descrito com palavras, mas que
simplesmente fez parte daquele momento e que o vemos não pela imaginação, e sim, tal
como era.
A cultura material também apresenta preocupações que são indispensáveis a essa
discussão. Rede (1998) aponta duas preocupações: a primeira é a própria constituição
social e sua relação com a construção da cultura material; a segunda é como aplicar uma
metodologia que permita a cultura material fazer parte do processo historiográfico
explorando suas potencialidades.
Falar sobre cultura material não significa que durante os trabalhos
historiográficos, esses elementos serão estudados isoladamente, mas que, serão
contextualizados com outras fontes, ajudando no desenvolvimento, veracidade e
justificativa de pesquisas, dando margem inclusive a dinâmica social. É justamente
partindo da contextualização, que a cultura movida por interações individuais e

609
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

coletivas com o meio, fazem com que o material, fruto da cultura, seja passível de
historicidade.
Em seu artigo, ―História a partir das coisas: tendências recentes nos estudos de
cultura material, Rede analisa a maneira como alguns estudiosos se posicionam com
relação a ligação existente entre o material e a cultura, pois para a maioria , são fatos
isolados e que portanto devem ser analisados da mesma forma, para ele, isso gera ―... o
esvaziamento da historicidade da noção de cultura.‖(1998, p. 268), pois ambas são
construídos e remodelados pelo meio social. Portanto o isolamento destas durante as
análises é uma ação imprópria. Ele vai além desse pensamento e defende a idéia de que,
―... a cultura material, a um só tempo, parte do fenômeno histórico e fonte documental
para sua compreensão‖ (1998, p. 266). O material e a cultura estão intrinsecamente
ligados e dependentes são como uma espécie de máquina que ao mesmo tempo produz e
consome seu próprio produto, sendo assim, não há motivos para uma análise do material
isolado do aspecto cultural que o envolve. Mesmo assim, a persistência em analisar o
material isolado da cultura, gera limitações.
―... as posições sobre as relações entre o universo material e a cultura
definirão, de algum modo, os limites das propostas de estudo e as formas de
mobilização dos elementos físicos na compreensão dos fenômenos
históricos.‖ (REDE, 1998, p. 267).
Apesar de alguns estudiosos reconhecerem a cultura material como fonte
documental, ainda existe grande insistência em se deter apenas a fontes escritas, por esta
ser a tradicional e a mais aceita, os quais se permitem estudar fontes não escritas apenas
na ausência ou minoria dos escritos.
O que os Inventários post-mortem têm a ver com Cultura Material se esses são
documentos escritos? Apesar de serem documentos escritos, eles estão ligados sim, pois
eles descrevem os bens materiais, registram cores, formatos, material (de fabricação),
estado de conservação, valores econômicos, localização, residência, etc.
―Os inventários descrevem o patrimônio de um indivìduo e, por isso, são de
natureza predominantemente econômica, sendo ricos testemunhos da cultura
material de uma sociedade.‖ (FURTADO, 2009, p.105)
O processo de construção de cidades é movido e mesclado pelos aspectos
políticos, sociais e religiosos, que unidos promovem grandes transformações,
confirmando o fato de que as cidades não são um produto finalizado, e sim, um
ambiente em constante transformação, impulsionado pelos anseios e desejos dos
cidadãos que nela habita.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Mediante essas transformações novos valores são construídos e a cultura acaba


sendo remodelada, refletindo até mesmo nas construções de prédios da cidade, o que
confirma a chegada do urbanismo e da modernização na projeção das cidades bem
organizadas, que promovem o bem estar e o convívio social mais agradável.
O urbanismo e a modernização estão presentes na sociedade atuando de maneira
significativa, que mediante os marcos, avanços e descobertas, promoveram a criação de
signos que se perpetuam ao longo dos anos na memória dos cidadãos. Esses signos
representam a transformação, o progresso, o novo, tudo que passou a ser o melhor para
a cidade e seus moradores.
São documentos que acompanham as transformações no espaço e por isso
podem revelar informações a mais que o esperado, como também de situações quanto à
obtenção de bens, pois é descrito quando o mesmo é herdado ou comprado, situação
também encontrada no respectivo inventário de 1880, já mencionado.
Portanto, os inventários oferecem imensas possibilidades de reflexões sobre o
quadro social. Eles carregam em si perspectivas e interesses de cada grupo familiar, ao
descreverem elementos materiais de determinadas épocas é como sabermos exatamente
o que era a tendência presente na sociedade em cada momento. São valiosas fontes de
informações ―... ajudam a formar um retrato bastante revelador da vida do falecido e da
sociedade que o cercava‖ (FURTADO, 2009, p. 115), pois neles são descritos tudo o
que estava em volta do inventariado.
Mesmo diante da riqueza de informações, é necessário cuidado na escolha da
metodologia a ser utilizada, de modo que, a mesma seja passível em corresponder as
questões que pairarão sobre eles.
O descaso recorrente com a não preservação na maioria das vezes de todo e
qualquer tipo de documentação deve ser plausível de medidas que favoreçam a sua
existência, pois são vestígios de uma realidade detentora de elementos e aspectos
históricos que, nos permitem entender inclusive os valores e práticas sociais que estão a
nossa volta.

FONTES:

Inventários post-mortem pertencentes ao arquivo do Fórum Dr. Ferreira Júnior Comarca


de Cajazeiras, datados entre os anos de 1876 e 1930.

Ref. Ano / Inventariado / Cônjuge e Inventariante:


01. (1877) Antonio Leite da Fonseca, D. Jusepha Maria do Carmo.

611
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Ref. Ano / Inventariados / Inventariante:


02. (1880) Lourenço Alves da Silva e Manuela Maria da Conceição, Justino Alves da
Silva.

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material. In: Anais do Museu Paulista História e Cultura Material. São Paulo. N.
Sér. v.41996. pp. 265-282.

TEIXEIRA, Adriano Braga. Inventários post mortem: possibilidades de pesquisa a


partir de uma fonte plural. Mal-Estar e Sociedade – Ano V - n.8 - Barbacena-
janeiro/junho 2012. pp.63-83.

612
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

INVENTARIANDO MEMÓRIAS DA PARAHYBA DO NORTE NOS


OITOCENTOS: POR UMA CULTURA MATERIAL DE CAJAZEIRAS-PB

MARIA LARISSE ELIAS DA SILVA


UFCG/CFP
[email protected]

RESUMO

Este trabalho é fruto de discussões desenvolvidas no Projeto de Pesquisa ―Inventariando


memórias, partilhando experiências: cultura material e redes familiares na recém
emancipada cidade de Cajazeiras, PB (1876-1930)‖. Este projeto tem como objetivo
geral digitalização e transcrição dos inventários da cidade de Cajazeiras entre os anos de
1876 e 1930 com o intuito de compreender a cultura material dessa cidade e as redes
familiares envolvidas na partilha de bens móveis e imóveis registrados. Começando a
análise documental, percebemos que o inventário também poderia ser analisado em sua
singularidade, compreendendo como se dava a transferência do patrimônio familiar sem
nos atermos a uma análise serial. Visto isso, problematizaremos aqui alguns
apontamentos em torno da pesquisa com inventários oitocentistas.
Palavras-chave: Inventários Post Mortem; Cultura material; Memórias oitocentista.

A PESQUISA COM OS INVENTÁRIOS POST MORTEM: UMA INTRODUÇÃO

Este trabalho é fruto de um projeto de pesquisa que fora desenvolvido na


Universidade Federal de Campina Grande, Campus Cajazeiras – intitulado
―Inventariando memórias, partilhando experiências: cultura material e redes familiares
na recém emancipada cidade de Cajazeiras, PB (1876-1930)‖ com vigência referente a
2016-2017; logo, nesse artigo a discussão será em torno dos seis primeiros meses da
pesquisa. A referida teve por objetivo digitalizar e transcrever os inventários Post
Mortem das famílias cajazeirenses entre os anos de 1876 e 1930, com a pretensão de
compreender a cultura material e as redes familiares envolvidas nas partilhas de bens
móveis e imóveis ali registrados – para que por meio dessa pesquisa pudéssemos
conhecer e historicizar as tecituras da cultura material dos habitantes dessa cidade.
Para situá-los um pouco do que foi desenvolvido no projeto até meados da
vigência, abordaremos nesse ponto um pouco da experiência que carregamos até então
quando pensamos no trabalho com inventários post mortem nos oitocentos. Quando o
projeto foi pensado, os integrantes sabiam que muitos desafios surgiriam. Primeiro que
irìamos ―mexer no que estava quieto‖ ou ―revirar a casa‖, como diz o ditado. Trabalhar
com os inventários post mortem com um cunho quantitativo é tentar empreender um

613
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

conhecimento sobre as posses das famílias – e, em se tratando de uma cidade


interiorana, o ato de ―revirar as malas‖ nem sempre é bem vindo.
Com isso, para que pudéssemos ter acesso a documentação para iniciar os
trabalhos, precisávamos obter autorização judicial para tal procedimento. Incontáveis
foram as tentativas de encontro com o funcionário encarregado, até que houvesse a
liberação para o trabalho com as fontes. Em paralelo a esse momento do requerimento
de autorização, iniciamos as leituras teóricas, tendo contato no primeiro momento com
leituras acerca da cidade de Cajazeiras e discussões mais teóricas relacionadas à questão
do urbano e do urbanismo, tendo encontros semanais para a realizarmos as discussões.
Após a liberação tivemos um primeiro contato com algumas caixas, pois, a
autorização só nos concedia ter acesso a um total de 10 (dez) caixas por vez. Digo, só
poderíamos ter contato com mais caixas quando terminássemos a digitalização das que
estavam em nossa responsabilidade. Nesse momento várias dificuldades foram
surgindo, como a exemplo, as condições de trabalho. Tínhamos reservado no arquivo do
Fórum Dr. Ferreira Júnior – aonde se encontrava o acervo documental - uma sala o qual
poderíamos fotografar a documentação, no entanto, embora isso parecesse cômodo, para
os pesquisadores envolvidos se apresentava como um problema; pois, tínhamos que
entrar na sala somente a partir das 08:00 horas da manhã e tínhamos até às 14:00 horas
para nos retirar. Passamos o período da digitalização correndo contra o tempo para
conseguir o maior número de documentos e em boa qualidade.
Ao pensarmos na qualidade dos registros fotográficos que estávamos operando,
nos deparávamos com o problema do manejo para com uma documentação dessa época.
A mesma requer cuidados específicos que são como uma via de mão dupla; o
pesquisador precisa ter noções básicas de manuseio em arquivos documentais antes de
ter o primeiro contato, tendo em vista que se faz necessário para sua proteção pessoal
estar bem equipado com luvas e máscaras, e, também compreender que o documento é
um testemunho histórico do recorte temporal que o projeto aborda.
Muitos dos documentos que entramos em contato estavam fossilizados, pois, a
preservação era dada em condições inadequadas para o arquivamento. Algumas das
caixas que continham documentação estavam pelo chão de uma sala sem higienização e
climatização, requisitos essenciais para a manutenção de arquivos. Visto essas
condições que observamos em muitos dos documentos, a leitura e interpretação dos
dados contidos se tornou mais um desafio; tendo em vista que, por vezes, tal estado leva
o documento a fragmentar-se em incontáveis partes uma mesma folha. No cotidiano da

614
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

pesquisa nos deparamos rotineiramente diante de um quebra-cabeça documental a ser


montado e decifrado.
A metodologia dessa primeira etapa do projeto foi divida em duas fases. A
primeira fase baseava-se na leitura e fichamento de textos trabalhados semanalmente.
Assim sendo, tínhamos as leituras como base das discussões e, a partir disso,
desenvolvíamos problematizações acerca da cultura material, da ideia de patrimônio
cultural, do urbanismo; buscando compreender sua gênese e algumas teorias mais
recentes voltadas para o espaço urbano. Também tivemos contato com modelos de
documentos manuscritos já digitalizados para que pudéssemos começar sensibilizar
nosso olhar em torno desse tipo de documentação.
Em paralelo a essa primeira fase organizamos o acervo já digitalizado, pelos
seus respectivos anos estabelecidos por cada caixa e dentro dessas caixas a organização
se manteve em ordem crescente de acordo com o ano do inventário. Vimos a
necessidade de pensar numa organização inicial por ainda não haver nenhuma
organização do referido acervo, tendo em vista que o mesmo estava sendo trabalhado
pela primeira vez pelo projeto de pesquisa em questão.
Para concluir essa apresentação sistemática do projeto de pesquisa com os
inventários post mortem de Cajazeiras, PB entre 1876-1930, vale salientar que muitos
desses processos que passaram pelas mãos dos pesquisadores envolvidos no projeto
tinham mais de 200 páginas, reforçando o que já foi dito acima sobre a variedade das
informações que podem ser encontradas nessa fonte documental. De acordo com
(REDE, 1996, p. 269) ―centralizar a análise em objetos em movimento em contextos de
produção e consumo, mais do que em objetos isolados, permitiria um melhor
entendimento da dinâmica social do grupo‖.
Portanto, a seguir problematizaremos como se davam as partilhas dos bens
deixados pelos inventariantes, tendo como fonte para análise problematizadora um
inventário post mortem do ano de 1897 feito na cidade de Cajazeiras, PB – percebendo
os aspectos traçados pela cultura material.

ESTADO DA ARTE

A partir de investigações empreendidas por pesquisas históricas,


compreendemos que houve um alargamento no pensar documental e suas abordagens

615
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

metodológicas, como aponta (LE GOFF, 1978, p. 6) ao esclarecer que as revoluções no


campo científico fazem nascer uma abordagem qualitativa além da quantitativa, o qual
―põe novamente em causa a noção de documento e seu tratamento‖. Com esse novo
olhar ao documento, passamos a compreender as múltiplas possibilidades de trabalho
historiográfico a partir dos inventários post mortem.
Enquanto fonte historiográfica os inventários já possuíram características muitas
vezes tidas como positivistas. Até a primeira metade do século XX alguns historiadores
ou guardiões da escrita citadina que trabalhavam especificamente com a história local
viam os inventários apenas como uma forma de recuperar a vida dos grandes
personagens daqueles lugares, salientando sempre seu aspecto econômico como
inserção na sociedade vigente ou ascensão comercial. Augustin Thierry (1837), aborda
que:

Assim, a recolha dos monumentos da história do Terceiro-Estado deve, de


certa maneira, fazer vir à luz as raízes mais profundas e mais vivas da nossa
ordem social atual... Porque realiza um dos votos mais queridos das grandes
inteligências históricas do século XVIII... que viam nos monumentos da
legislação municipal a origem mais segura e mais pura do nosso antigo
direito consuetudinário. (THIERRY, 1837, p. 28).

Essa forma de vislumbrar o documento, e, no estudo de caso em questão, os


inventários só se modificou a partir do novo pensar em torno dos métodos e técnicas de
pesquisa histórica influenciados pela Escola dos Annales. Referenciando FRAGOSO;
PITZER, (1998) podemos compreender que:

Nessa visão, mesmo as fontes já conhecidas quanto novas possibilidades de


testemunhos, que passaram a ser consideradas, começaram a ser inseridas,
questionadas e contextualizadas. Isso significou colocar como um dos
interesses da investigação histórica as massas anônimas. (FRAGOSO;
PITZER, 1998).

Em decorrência desses desdobramentos historiográficos, um fator interessante a


ser ressaltado é a pluralidade de informações que encontramos nos inventários post
mortem, desde terras, a casa, mesa, banco [de assentar], couro de boi, dividas passivas e
ativas, açude, louças, animais, roupas, enxadas, dentre outros. Todos esses bens
claramente designados por meio de subdivisões como bens de raíz, outros móveis,
dívida passiva e ativa, no auto de arrolamento.
A partir dos inventários buscamos conhecer os personagens, vislumbrando
informações como a situação matrimonial dos envolvidos, seu endereço residencial,

616
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

grau de parentesco entre os inventariados e inventariantes, qual ofício o inventariado


desenvolvia quando vivo(a), sua naturalidade, suas dívidas, seus bens, etc. Quando
passamos a trabalhar com essa documentação nos surpreendemos com as revelações que
página do inventário nos apresenta.
O contato com essas informações nos possibilita adentrar no cotidiano daquelas
famílias, descortinando, assim, os múltiplos aspectos que compunham a cultura material
de uma sociedade, assim como também é possível traçar os perfis dos sujeitos que
compõem esse espaço. No entanto, esse tipo de documento de acordo com (FURTADO,
2011, p. 105), ―os inventários são de natureza predominantemente econômica, sendo um
rico testemunho da cultura material‖.
Além do leque de informações que já apontamos aqui a serem encontradas nos
inventário da documentação que parte da pesquisa, nos deparamos com inventários de
escravos – tanto o escravo como um bem inventariado, como também escravo forro com
posse de escravo – em função desse descortinamento, compreendemos o significado
social que girava em torno da posse de escravos e as tramas que giravam em torno dessa
posse, seja por herança ou compra. Pois, mediante análise documental e reflexão
teórica, compreendemos que um dos motivos o qual os escravos alforriados buscavam a
posse de escravos era para ascender socialmente sua imagem.

O METIÊ HISTORIOGRÁFICO: UMA ANÁLISE DOS SUJEITOS


ENVOLVIDOS E DOS BENS

Percebendo o inventário Post Mortem como uma fonte ímpar e por isso pronta
para ser analisada em sua singularidade, a partir de agora nos ateremos à análise de um
inventário para que possamos compreender a cultura material de uma família
cajazeirense a partir de seus bens. Além do inventário, em anexo a esse documento há
também o Auto de Partilha dos bens, assim como a menção das dívidas ativas, no qual
traçaremos um panorama simplificado de como se deu essa partilha. Logo, vale salientar
que o inventariado não deixou testamento, diante disso, o processo de divisão dos bens
será dado de forma igualitária aos possíveis herdeiros.
Antes de iniciarmos a análise documental, é válido recordar uma saudosa fala de
BLOCH (2002, p.75) quando o mesmo faz uma reflexão acerca do passado e nos diz
que ―o passado é, por definição, um dado que nada mais modificará. Mas o

617
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

conhecimento do passado é uma coisa em progresso, que incessantemente se transforma


e aperfeiçoa‖.
Destarte, com base na análise do inventário do que tivera seu processo iniciado
no dia 13 de setembro de 1897, na comarca de Cajazeiras, província da Parahyba do
Norte, podemos perceber que o mesmo faz referência inicialmente ao inventariante João
Maria de Sousa e inventariados Gonçalo Correia de Meneses e Maria Francisca da
Conceição, de profissão indefinida no processo. Tendo também mencionado
inicialmente a presença do juiz Joaquim Gonçalves Rolim - que apresentará grande
importância para o processo, sendo as audiências realizadas na comarca de Sousa,
também da mesma Província – do escrivão Francisco Martins de Sousa Lima, que
acompanhará o juiz no decorrer do processo e também do oficial de justiça, Apollinario
José de Lyra.
Ainda nas primeiras páginas podemos obter dados mais pontuais como a data do
falecimento de Gonçalo Correia de Meneses, no ano de 1879 e Maria Francisca da
Conceição, um ano antes de Gonçalo. Como também constam informações acerca da
quantidade de herdeiros e a ausência do testamento. Nas páginas seguintes temos a
menção dos herdeiros co-sanguíneos e representativos, que são eles: Maria Joaquina do
Sacramento, grau de parentesco: filha dos inventariados; Francisca de Rol, grau de
parentesco: filha dos inventariados; Beijamin Gomes Vieira, grau de parentesco: genro
dos inventariados, esposo de Anna Rosa (in memoriam); Manoel Joaquim de Meneses,
grau de parentesco: filho dos inventariados; João Maria de Souza, grau de parentesco:
genro dos inventariados, esposo de Joanna Maria de Souza (ausente, sem mais
informações); e, Bernardina de Rol, grau de parentesco: filha dos inventariados.
Diante da menção dos herdeiros, partimos para o auto de arrolamento dos bens.
Os inventariados não deixaram dinheiro em espécie, nem ouro ou prata; porém, tinham
deixado 2 (dois) falos de cobre no valor de 1:000 mil réis cada um. Outros móveis,
como uma mesa velha no valor de 4:000 mil réis, um banco grande em bom estado no
mesmo valor e um couro de boi no valor de 2:000 mil réis.
Como bens de rais foi deixado uma casa de taypa em bom estado, sendo grande
e localizada no lugar Chiqueiro das Cabras, pelo valor de 100:000 mil réis. Uma parte
de terras no mesmo lugar valendo 11:244 mil réis. Uma parte de matta fresca
mencionada por 12:000 mil réis e uma parte no açude do mesmo lugar por 25:000 mil
réis. Os bens foram arrolados no total de 1:67:000 mil réis a ser divido entre o
pagamento da dívida deixada e os herdeiros. Para concebermos como se deu o auto de

618
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

partilha é necessário compreendermos que, de acordo com ARAÚJO (2003) apud


SAMARA (1998):

[...] eram considerados herdeiros forçados os parentes descendentes (filhos),


ou ascendentes (pais). O cônjuge em regime de comunhão de bens era
meeiro. A ordem de sucessão da outra metade era, descendentes, ascendentes,
colaterais até o décimo grau e, por último, o cônjuge; na falta destes, ficava o
Estado com bens. (ARAÚJO, 2003, apud SAMARA, 1998, p. 251).

Ainda acerca dos deixados pelos inventariados havia a existência de uma dívida
passiva no valor de 20:000 mil réis ao coronel Vital de Sousa Rolim.

AUTO DE PARTILHA DOS BENS


Para cada herdeiro tocou a quantia de 24:500 mil réis, sendo representada por
partes dos bens físicos. E, foi solicitado ao curador do processo, no caso João Maria de
Sousa a parte da casa de sua curatedalla para pagamento da dívida passiva. Do
montante geral ainda foi tirado a quantia de 17:100 mil réis para o pagamento das custas
processuais. A designação da partilha dos bens é dada em detalhes na tabela 1:

HERDEIRO CONSTITUIÇÃO DO AUTO DE PARTILHA


(A) Bens de raíz Valor Outros Valor Total
Móveis
1 Beijamin Uma parte na 14:500 Um taixo 10:000 24:500
Gomes casa mil réis pequeno mil réis mil réis
Vieira
2 Bernardina Uma parte de 2:400 24:500
de Rol terra na matta mil réis mil réis
fresca
Uma parte no 5:000
açude mil réis
Uma parte na 17:100
casa mil réis
3 Francisca de Uma parte de 2:400 Um banco 4:000 24:500
Rol terra na matta mil réis grande em mil réis mil réis
fresca bom estado
Uma parte no 5:000
açude mil réis
Uma parte na 13:100
casa mil réis
4 Joanna Uma parte na 17:100 24:500
Maria de casa mil réis mil réis
Souza Uma parte no 5:000

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

açude mil réis


Uma parte de 2:400
terra na matta mil réis
fresca
5 Manoel Uma parte de 2:400 Uma mesa 4:000 24:500
Joaquim de terra na matta mil réis velha mil réis mil réis
Meneses fresca
Uma parte no 5:000 Um couro de 2:000
açude mil réis boi mil réis
Uma parte na 11:100
casa mil réis
6 Maria Uma parte de 2:400 Um taixo 10:000 24:500
Joaquina do terra na matta mil réis pequeno mil réis mil réis
Sacramento fresca
Uma parte na 7:100
casa mil réis
Uma parte no 5:000
açude mil réis
TABELA 1: Auto de partilha.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao final dessa primeira etapa da vigência obtivemos alguns números em torno


de documentos digitalizados, representados na tabela 2:

DESCRIÇÃO DA QUANTIDADE DE PÁGINAS DE DOCUMENTOS


DIGITALIZADAS NA PRIMEIRA ETAPA, SETEMBRO 2016 – FEVEREIRO
2017
MÊS ANO QUANTIDADE Nº DE PÁGINAS TOTAL GERAL DE
DE DIGITALIZADAS DIGITALIZAÇÕES
PROCESSOS
SETEMBRO 2016 17 1.224 12.360
OUTUBRO 2016 51 2.718
NOVEMBR 2016 39 2.437
O
DEZEMBR 2016 28 1.456
O
FEVEREIR 2017 51 4.525
O
TABELA 2: Número de documentos digitalizados por uma voluntária.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

A partir da digitalização dessa documentação, chegamos à reflexão de que nem


só de inventários post mortem estavam compostas as caixas que estavam no acervo do
Fórum, sessão inventários. Tendo em vista que entre os processos nos deparamos com
processo crime de escravo, processo crime de defloramento, auto de embargo, processo
de raptos, dentre outros.
Vislumbrando os aspectos parciais que obtivemos durante essa vigência,
compreendemos que houve um amadurecimento intelectual de suma importância para
nossa formação. Tendo em vista que, estar em contato com a documentação nos
proporcionou construir um amadurecimento academicamente no âmbito das nossas
pesquisas científicas pessoais. O contato com a documentação também nos possibilitou
começar a identificar o que fazia parte da cultura na sociedade cajazeirense entre 1876 a
1930, a exemplo disso podemos citar os inventários de escravos que foram identificados
na documentação.
Portanto, para fins da análise documental em questão, concluímos que os
elementos que congregavam a cultura material da família do inventariado estavam
ligados a cultura da zona rural, onde percebemos maior incidência de objetos e espaços
que congregam o dia-a-dia do meio no qual a família estava inserida. Ainda no processo
não identificamos a presença de uma dependência da família ao espaço citadino. Tendo
em vista que os bens arrolados vislumbram o cotidiano ruralista.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARAÚJO, M. L. V. A. Os caminhos da riqueza dos paulistanos na primeira metade


dos oitocentos. 2003. 270 f. Tese (Doutorado em História Econômica) – FFLCH, São
Paulo, 2003.

BLOCH, Marc. Apologia da história: ou o ofício de historiador. Zahar, 2002.

FRAGOSO, J. & PITZER, R. R. Barões, homens livres pobres e escravos: notas


sobre fonte múltipla – inventários Post Mortem. Revista Arrabaldes, Petrópolis, n. 2, p.
29-52, set./dez. 1998.

FURTADO, Júnia Ferreira. Testamentos e Inventários. A morte como testemunho da


vida. O historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto, 2011.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

REDE, Marcelo. História a partir das coisas: tendências recentes nos estudos de cultura
material. Anais do Museu Paulista, v. 4, p. 265-282, 1996.

LE GOFF, Jacques. Documento/monumento. G. Einaudi, 1978.

THIERRY, Augustin. Rapport sur lês travaux de la collection des monuments inédits de
l‘Histoire du tiers état, adresse à M. Guizot, ministre de l‘instruction publique, lê 10
mars 1837. Tessier, Paris, s.d.

622
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

LOUCURA: DA ERA MEDIEVAL A CONTEMPORÂNEA

MARCIANO GUALBERTO ANDRADE NASCIMENTO JUNIOR 237


FACULDADE INTERNACIONAL DO DELTA
[email protected]

CLETO SANDYS NASCIMENTO DE SOUSA 238


SEDUC-PI
[email protected]

RESUMO

Com o objetivo de analisar o conteúdo epistemológico presente nas obras: A História da


Loucura e O Alienista, com a intencionalidade de pensar o percurso da Loucura da Era
Medieval até contemporaneidade, pautada nos avanços da medicina, com outros
costumes e modos de tratamento para especificar de maneira mais científica essa
enfermidade. A metodologia é composta pelo levantamento dos textos A história da
Loucura de Michel Foucault, que traz as informações de como se perpetuavam os
tratamentos a enfermidade da loucura na era medieval tendo seguimento depois da
Lepra e doenças venéreas, e obra O Alienista do Machado de Assis, que problematiza a
questão de como eram tratados os Loucos em Itaguaí no século XlX, na mesma
temporalidade em que o Brasil ainda fazia parte da coroa de Portugal.
Palavras-chave: História. Loucura. Medieval. Contemporânea.

O presente artigo, tem como intenção fazer um passeio durante alguns séculos,
da época medieval na Europa, até o século XIX no Brasil, chegando em um arremate
que nos faça pensar como a loucura se perpetuou durante esses regimes de tempo, e
ainda impera em nossa contemporaneidade com todos os avanços da ciência. Inserida
nessa linha cronológica constante, tendo como base epistemológica as fontes escritas ―A
história da Loucura de Michel Foucault e O alienista de Machado de Assis”.
O homem Europeu desde a Idade Medieval em toda sua evolução humanitária,
tem se relacionado com algo no intrínseco de si, de uma forma que chegasse a cunhar
toda a sua existência, tendo como nome a loucura, alienação, desrazão, ―demência‖.
Talvez em virtude disso, essa presença obscurecida tida como razão ocidental, deva algo
de sua total profundidade.

237
Graduando do curso de Licenciatura plena em História da Faculdade Internacional do Delta-FID.
238
Mestre em História do Brasil pela UFPI, Doutorando em História pela UFU. Professor da SEDUC-PI.

623
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Em certe medida hipotética a relação Razão-desrazão constitui para a cultura


ocidental, um dos processos dimensionais mais próximos de sua originalidade, ela é a
companhia que deu-se muito antes de Jeroen Bosch239 e seguiria seu intencional
percurso acompanhado de Nietzsche240. O que seria então todo esse afrontamento vindo
por baixo dos dispositivos de poder relacionado a linguagem da razão? Em direção que
ele poderia nos conduzir a uma interrogação que não seguiria a razão em seu tornar-se
horizontal, mas que buscaria acabar retraçando na temporalidade essa verticalidade em
constância, que ao longo da cultura europeia a confronta com o que ela não é, com a
medida proporcional de sua própria desmedida.
Seguindo-se cronologicamente, a segunda metade do século XV ou mesmo
depois, o tema da morte impera completamente sozinho. A finitude do homem, a
finitude dos tempos, se daria através de assumir os postos das pestes e das guerras. O
que várias vezes dominou a existência do ser humano, é esse fim e essa ordem que não
sugere escapatória, essa confiança que todos tem. A presença que é uma ameaça no total
interior de todo o mundo, é uma presença completamente descarnada, e eis que nos
últimos anos do século, essa imensa inquietude faria um giro em torno de si própria, o
desatino da loucura substitui a morte e a seriedade que sempre vinha lhe acompanhando.
A loucura seria o propagar-se da própria morte, mas o que existe no riso do
insano, alienado, louco, é que ele sempre ri antes do riso da morte, e a prevendo a ponto
de sentir completamente monstruoso e macabro, o insano se desarma. A loucura tem
toda uma relação de fascinação, em virtude de ser um saber, um saber para além da
percepção, que consiste no sentir, ou mesmo no estado de se imaginar insano, para
tentar ver, como funciona a insanidade e a grandeza de todos os seus mecanismos. Esse
saber tão inacessível e temível, onde o louco é detentor em sua parvoíce inocente,
enquanto o homem de total raciocínio percebe somente algumas figuras fragmentarias e
por isso mesmo acaba sendo mais inquietante.

239
Jeroen Bosch 1450 — 9 de agosto de 1516), foi um pintor e gravador holandês dos séculos XV e XVI
Muitos dos seus trabalhos retratam cenas de pecado e tentação, recorrendo à utilização de figuras
simbólicas complexas, originais, imaginativas e caricaturais, muitas das quais eram obscuras mesmo no
seu tempo.
240
Friedrich Wilhelm Nietzsche (Röcken, Reino da Prússia, 15 de outubro de 1844 — Weimar, Império
Alemão, 25 de agosto de 1900) foi um filósofo, filólogo, crítico cultural, poeta e compositor prussiano
do século XIX, nascido na atual Alemanha.[1] Ele escreveu vários textos críticos sobre a religião, a
moral, a cultura contemporânea, filosofia e ciência, exibindo uma predileção por metáfora, ironia e
aforismo.

624
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

A experiência clássica da loucura que nasce grande e nociva ameaça, que veio a
surgir no século XV, se atenuando os poderes inquietantes da alma que habitavam toda
a estrutura da pintura de Jeroen Bosch, mas acabou perdendo sua violência. Algumas
formas acabaram subsistindo, agora transparentes e dóceis acabaram formando todo um
cortejo, o inevitável cortejo da razão. O total esquecimento acabou caindo sobre o
mundo, sulcado pela livre escravidão de sua ―Nau‖, ou seja, seu navio dos insanos, essa
nau, não irá mais de um a quem para um além, em seu estranho momento de
culminação, nunca mais esse momento de passagem será fugido e absoluto.
Ei-la amarrada com compaixão no meio das coisas e das personas, isolada e
totalmente segura. Desde então, passou-se a não existir mais a barca dos insanos, mas
outro lugar de possível acolhimento e detenção: o Hospital. Durante toda a era
medieval, os loucos fazem parte de uma paisagem tida como social, e uma paisagem
tida como social e pitoresca que servia de relançamento de uma estrutura muito cética.
A loucura é inconsciente, e porque se todos são loucos, não haveria mais ponto de
referência para se saber se era louco ou não.
O interessante e inteiramente potente da era clássica é o fator histórico contido
nela por muito tempo silenciado, no qual consistia que um certo dia contido na linha da
cronologia, em abril de 1657, foram segregados e detidos em Paris cerca de seis mil
pessoas. Tais pessoas foram levadas à deriva da opressão ao Hospital geral, porque
eram desempregados, ou mendigos miseráveis e inúteis aos olhos das pessoas que lhes
colocavam nessa casa de separação social, independentemente de sua condição de
nascimento, ou se apresentava condição de trabalhar para se sustentar ou não, se fosse
considerado ocioso, era tido literalmente como louco, e tinha que ser escorraçado.
Eram também considerados loucos ou alienados, homossexuais desprovidos de
sensatez. Eram enviados aos Hospitais gerais, sem que se chegasse a se tomar contra
eles em nenhum momento uma medida jurídica precisa, era uma medida da polícia,
regida por ordens Reais, que simplesmente deveriam ser obedecidas sem
questionamentos, e o que seria mais absurdo: era necessária somente uma suplica dos
familiares do insano, para que ele passasse o resto de seus dias detido dentro de um
Hospital geral, em condições sub-humanas. Essa prática durou quase um século e meio,
foi um grande ritual de exclusão regido por crueldade e falta de humanidade.
É notório que a Europa, tinha seus regimes de partes territoriais invadidos por
fome, guerra e muito para além da peste negra, a letra e as doenças venéreas, que com o
passar da cronologia e suas potentes mudanças, depois sairiam de cena, e dariam lugar

625
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

para a loucura, a insanidade, a maldita habitação dos lunáticos que deveriam se


escorraçados a todo custo sem chance de defesa, ou quem os defendessem.
O Arcebispo Puisel, chegaria a fundar no final do século Xll, um hospital no
qual em 1434, apenas dois lugares tinham sido contagiados com a enfermidade da lepra.
Em 1348, o leprosário de Saint-Alban na França, continha apenas três homens. O
hospital de Romenall em Kent, teve sua habitação dissipada, e foi abandonado em
virtude disso, vinte e quatro anos depois por falta de leprosos no interno de seus
espaços.
Nesta mesma época na Alemanha, o repudio contra as pessoas leprosas acabou
ocorrendo, só que de maneira mais lenta, mesma conversão também de forma
demasiado apressada como na Inglaterra por uma reforma que chegou e confiou a
administração da cidade as obras tidas como de caridade e os espaços dos hospitais
gerais. Em Munique, Leipzig e Hamburgo acorreu basicamente a mesma coisa, com a
mesma intencionalidade.
Em Lippling o leprosário seria invadido e povoado por incuráveis loucos. A
verdadeira herança da lepra não deveria ser buscada ali, mas sim em um fenômeno
muito complexo a ponto de a medicina chegar a demorar muitos anos para se apropriar
e poder apresentar uma resolução plausível a respeito, esse fenômeno complexo demais
a ponto de causar sérias indagações em relação à loucura.
A loucura só veio ser dominada no século XVll, durante a Renascença na
Europa. Essa ―Loucura‖, cujas vozes da Renascença problematizaram, acaba de tornar
liberto todo o seu agir, sendo que a violência ela fez total domínio, que depois teve sua
voz ocultada pela era clássica, através de um grande e posterior golpe que fez uso
coercivo. Com todo o propagar-se da dúvida, o filósofo e físico René Descartes241, tem
a loucura como os fluxos de imaginações e cortejos que rumam aos sonhos, e tudo
aquilo que rege uma natureza errônea.
Descartes não tinha medo do perigo da loucura, tanto que não passava a evitá-la
do mesmo modo que fazia o contorno da eventualidade do sonho, que mesmo que não
fosse palpável, tinha certeza dos regimes de sua existência que agia de forma
contornada com o erro. Na imensidão da dúvida, há uma oscilação que culmina em um

241
René Descartes ( La Hayne em Touraine, 31 de março de 1596 – Estocolmo, 11 de fevereiro de 1650)
foi um filósofo, físico e matemático Francês. Durante a idade Moderna também era conhecido por seu
nome latino Renatus Cartesius.

626
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

desequilíbrio em virtude da loucura, ocupando todo o espaço de um lado, e o sonho e o


erro de outro.
Na perspectiva das internações regidas pela cronologia contida no século XVII,
foram criadas várias casas que serviam como internamento dos lunáticos ou insanos,
não é muito notório que mais de um habitante em cada cem da cidade de Paris,
encontrava-se completamente aprisionado numa dessas casas de detenção por alguns
anos.
Essa ótica mostrava que o poder absolutista da época utilizou das cartas régias e
de medidas que culminaram em prisões arbitrárias, sendo menos notório qual a
consciência jurídica que viria a animar toda essa causalidade aqui mensurada, e também
sabida qual consciência jurídica viria a causar uma potente animação nessas causas.
Tendo seguimento, a partir de Pinel, Tuke e Wagnitz, e nota-se que os loucos, foram
recolhidos sob as regras seguidas de maneira total por esse internamento, e eram
encontrados nas salas dos hospitais gerais, nas detenções das casas de força.

Na essência de todos os sistemas disciplinares, funciona um pequeno


mecanismo penal. É por uma espécie de privilégio de justiça, com
suas leis próprias, seus delitos especificados, suas formas de
particularidades de sanção, suas instâncias de julgamento. As
disciplinas estabelecem uma ―infra-penalidade‖, quadriculam; um
espaço deixado vazio pelas leis qualifica e reprime um conjunto de
comportamentos que escapava aos grandes sistemas de castigo por sua
relativa indiferença. (FOUCAULT, 1987, p. 149)

Entre as muralhas do quadro do internamento que Pinel e o campo da Psiquiatria


do século XIX, encontrarão os loucos, e lá não foi esquecido que eles os deixarão, não
sem antes manifestarem uma vangloria em sua existência, pôr os terem libertos. Com o
prosseguimento cronológico, na metade do século XVII, a loucura esteve
completamente inserida nessa terra regida por internamentos e ao gesto que mensurava
essa localização nesse espaço de terra, como o seu local de total naturalidade.
Considerando os fatos em toda sua estrutura de formação, sendo o internamento dos
alienados e a estrutura mais visível na tão emergente loucura, prosseguia-se sendo esse
um motivo escandalizado, quando essa experiência que tanto veio a incomodar, sumiu
dos cenários da era medieval.
Muitas vezes esses hospitais gerais ou essas novas casas de internamento, tem
sua existência dentro das muralhas dos antigos leprosários, tornando-se herdeiros de
seus bens, em virtude de forças eclesiásticas, seja por forças de decretos que vieram a

627
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

ser baixados em toda a conjuntura do século XVII. Tendo como prosseguidor de suas
instâncias, esses espaços destinados aos insanos, eram mantidos pelas finanças públicas,
e todos os outros valores que passavam pela mão do Rei.
Nessas instituições com muitos conflitos envolvidos no processo de
prosseguimento, os velhos privilégios da Igreja, que dava assistência aos pobres com
todo seu seguimento de hospitalidade, e toda a preocupação da classe burguesa de fazer
uma limpeza no mundo dos miseráveis, com o desejo de ajudar e a necessidade de
repressão, ao seguimento da propagação da caridade e a vontade de instaurar punição.

O exercício da disciplina supõe um dispositivo que obrigue pelo jogo


do olhar; um aparelho onde as técnicas que permitem induzam a
afeitos de poder, e onde, em troca, os meios de coerção tornem
claramente visíveis aqueles sobre quem se aplicam. Lentamente, no
decorrer da época clássica, são construìdos esses ―observatórios‖ da
multiplicidade humana para as quais a história da ciência guarde tão
poucos elogios. (FOUCAULT, 1987, p.143)

Com o decorrer de toda uma temporalidade, expandiram-se os regimes de


punição pela região da Europa, que ao final do século se estabeleceu o processo de
percorrer todo esse espaço através da Inglaterra, Alemanha, França, Itália, Espanha,
propagando-se todos esses lugares de internamento tidos como: prisões, casas de
detenção e hospitais gerais.
Tendo seguimento dentro de um percurso de tempo inserido na era moderna, a
situação de internamento tornou-se uma espécie de amalgama de origem abusiva, de
elementos de fases diferenciadas. Nessa perspectiva, ele deveria fazer jus a uma unidade
que visse a comportar sua urgência entre esse percurso de diversas formas que as
suscitou deve existir um principio com uma coerência instaurada que não basta por de
lado regido por um escândalo seguido por uma sensibilidade que se propagou a ser pré-
revolucionária.
Conhecer e sujeitar, saber no intrínseco do que realmente se sabe e comandar, essas são
coisas que estão ligadas de forma muito intima, tanto que essas verdades estão contidas no
estado puro do hospital psiquiátrico, onde o saber médico, o conhecimento aparentemente certo
e único nesse lugar que tem um reinado regido por psiquiatras, onde acaba sendo absolutamente
indissociável de um poder que tem sua essência regida por uma meticulosidade, sabiamente
hierarquizada acaba por se desvelar no espaços dos hospícios.

A doença é percebida fundamentalmente em um espaço de projeção


sem profundidade e de coincidência sem desenvolvimento. Existe

628
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

apenas um plano e um instante. A forma sob o qual se mostra


originalmente a verdade, é a superfície em que o relevo, ao mesmo
tempo se manifesta e se anula – o retrato: É preciso que aquele que
escreve a história das doenças... observe com atenção os fenômenos
claros e naturais das doenças, por menos interessantes que lhes
pareçam. (FOUCAULT, 1977, p.4)

Uma palavra que durante a idade medieval era demonizada, e tinha que se
dissipar por seu significado, seu peso e sua potência que era considerada potencialidade
negativa, seria o ―louco‖, mas essa palavra não teria que ser tão pérfida e temida, e sim
a menção que com o decorrer da cronologia, teria mais uma potencialidade negativa,
por vir à tona, que seria: ―doença mental‖. Tendo seguimento, o louco tem uma
passagem para o estado de doente, que aparentemente seria uma nova qualificação para
esse quadro, que em verdade seria uma tomada de poder.
Em seu funcionamento com todos os seus propósitos, o hospital geral, não viria
a se parecer com nenhuma ideia médica. Sempre teve no fundo de sua existência,
valores regidos por uma instancia de ordem de uma monarquia e burguesia que se
organizou na França nesse mesmo espaço de tempo. O que veio a inventar o
internamento, foi o caciquismo, um pouco como a idade média a segregação dos
leprosos, mas com o vazio que os leprosos deixaram, outras pessoas vieram a tomar
como ocupação no cenário do mundo Europeu: que seriam os internos.
Esse mecanismo que sanciona o poder de detenção, pelo método da vigilância
com resultado manifestado através do total aprisionamento, e a conformidade com essa
espécie de prisão, seja literalmente nas casas de detenção ou nos campos de quem
trabalha, acaba que finalmente formulando esse dispositivo de poder retomado em todos
os contextos políticos e sociais. Tal instituição servia de encerramento punitivo que
levava para a Europa na segunda metade do século XVIII, o que se tornou uma forma
de enquadramento geral, instaurada na grande massa da sociedade moderna, seja ela
socialista ou capitalista.
Mudando de região geográfica e temporalidade, com a intenção de nos levar a
uma viagem no tempo em meio ao século XIX no Brasil, quando tal país ainda era
dependente de Portugal, e só veio a instituir sua independência no ano de 1822,
Machado de Assis242 e toda a potencialidade de sua literatura, problematiza através de

242
Joaquim Maria Machado de Assis (Rio de Janeiro, 21 de junho de 1839 — Rio de Janeiro, 29 de
setembro de 1908) foi um escritor brasileiro, considerado por muitos críticos, estudiosos, escritores e
leitores um dos maiores senão o maior nome da literatura do Brasil. Escreveu em praticamente todos

629
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

uma narrativa regida por uma ficção que nos faça se aproximar ao máximo de uma real
noção, de como deu-se em nosso país o tratamento e menção aos alienados, que
recebiam tratamentos por alienistas243.
Em Itaguaí, cidade realmente existente no estado do Rio de Janeiro, na
temporalidade que Simão de Bacamarte, médico alienista que estava retornando da
Europa para a cidade de Itaguaí, e decidiu estudar a loucura, ele era um cidadão
dedicado a ciência, com temperamento totalmente sereno, sempre procurou agir dentro
da imensidão maior do quadro de racionalidade, já que sua principal intencionalidade
era estudar as pessoas que fugiam desse padrão de normalidade, e eram considerados
alienados.
O médico alienista era casado com Dona Evarista, uma viúva de 25 anos de
idade, que era uma mulher que não emanava beleza nem simpatia, mas Simão
acreditava ter capacidade de ter vários filhos saudáveis e com muita força. Como ela era
desprovida de beleza, o médico não precisaria perder tempo em reparar a esposa, daí
teria tempo para fazer o que mais gostava de manifestar: sua total dedicação para os
seus estudos voltado para campo das doenças mentais. Simão Bacamarte um certo dia
conversando com seu amigo Crispim Soares, fez o seguinte comentário: que um medico
de verdade, deveria cuidar fielmente da cabeça dos loucos, já que em Itaguai os loucos
ou alienados viviam trancafiados dentro de suas casas. Em virtude disso, o estudioso
médico pensou em construir uma casa para eles e levou essa ideia aos vereadores da
cidade, sendo assim sua ideia aceita. Com o surgimento da Casa verde, o médico passou
a trancafiar dentro desse espaço, pessoas que tinham o comportamento diferente do seu,
já que ele se considerava o único apto e normal a diagnosticar essa enfermidade nas
pessoas com o avanço de suas pesquisas cientifica, e a potencialidade e analise de seu
próprio discurso que muitas das vezes acabava facultando as pessoas.

O que eu tenho pra falar é muito mais importante. É uma experiência


cientifica. A ciência assim, senhor Soares. Ela é uma investigação
constante, e a experiência que estou fazendo vai mudar o mundo. Até
agora eu achava que a loucura era uma ilha no meio do mar da razão.
Agora acho que ela é um imenso continente. (ASSIS, 1881, p.16)

os gêneros literários, sendo poeta, romancista, cronista, dramaturgo, contista, folhetinista, jornalista e
crítico literário. Afro-descendente, testemunhou a Abolição da Escravatura e a mudança política no
país quando a República substituiu o Império, e foi grande comentador e relator dos eventos político-
sociais de sua época.
243
Aquele que trata de alienados, ou seja: que trata de pessoas que não têm ou que perderam sua
identidade, ou que vivem num estado em que se tornaram alheios a si mesmos, a si próprios, em um
estado em que não são responsáveis plenamente por seus atos.

630
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Assim, os dias foram passando e o comportamento do alienista estava ficando


cada vez mais demasiado, até que chegou um dia, em que ele havia trancado toda a
cidade de Itaguaí dentro da casa verde, por achar que até mesmo um simples
comportamento emanado de uma pessoa, seria uma manifestação lunática e precisava
ser estudada e tratada. Em virtude de tais medidas de Simão Bacamarte, o barbeiro
Porfírio, lidera uma rebelião contra a Casa Verde, conseguindo assim chegar ao poder
na cidade, mas depois mostra que tinha apenas ambição pelo poder, pois se nega a
colaborar com uma segunda rebelião.
Sendo assim, depois que tudo acabou por se acalmar, o alienista volta ao
comando da casa verde, e todos tem uma grande surpresa, o médico resolve soltar todas
as pessoas desse espaço de detenção, e prossegue dizendo que todas aquelas pessoas
estão curadas, e que a partir dali ele mesmo passou a ser sua própria e nova fonte de
pesquisa cientifica, no qual dele seriam emanados a própria teoria e prática do processo.
Chegando a finitude dessa narrativa, o alienista Simão Bacamarte morre dezessete
meses depois de ficar recluso dentro do espaço de internação que ele mesmo comandou,
sem achar a resposta que tanto procurava regida pela interrogação de si mesmo.
(In) concluímos que a presente narrativa Machadiana o alienista, problematiza a
seguinte abordagem, de como a sociedade e a ciência regida no século XlX no Brasil,
lidava com a loucura, sendo que se tornou notório, a percepção que tais medidas, não
eram nada dotadas de humanidade. Com todo o seu percurso na cronologia, a loucura
até o fim dos anos 1980, foi regida por um tratamento de exclusão através de asilos,
manicômios e presídios.
Machado de Assis, com toda a narrativa do alienista, nos faz traz a ótica
descritiva contida em seu livro, de que o médico Simão Bacamarte perdeu o pudor em
prol de seus próprios interesses relacionados aos estudos científicos, pensava somente
em si e que a ciência era tudo, percebemos que a obra trata-se de uma ficção, mas que
tem a intenção de nos fazer pensar no real, afinal, é como diz o historiador Francês
Roger Chartier “a ficção é um discurso que informa do real, mas não pretende
representa-lo nem abonar-se nele”, enquanto a história pretende dar uma representação
adequada a realidade que foi e já não é. (CHARTIER, 2009, p.24). Em virtude do
discurso cientifico, foi possível criar um processo indentitário para segregar aqueles
considerados insanos e diferentes, do meio social.

631
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

No Brasil foram criadas algumas instituições destinadas aos alienados, sendo a


primeira delas, o Hospício de D. Pedro II, entretanto, sabe-se que os hospícios serviam
como ferramenta que emanava exclusão, onde não existia direitos humanos. Nessa
perspectiva, a obra Machadiana o Alienista, não é apenas uma crítica a ciência do século
XIX, é uma narrativa ironizada destinada a sociedade Brasileira, que esperou demais da
medicina e das ciências a solução para a loucura.
O objetivo principal dessa pesquisa é usar o conteúdo contido no livro de Michel
Foucault, A história da Loucura, nos fazendo pensar no tratamento dos loucos em toda a
idade medieval nos hospitais gerais em todo o senário da Europa, e o livro O alienista
do Machado de Assis, trazendo à tona através de uma descrição critica narrativa, a
ciência na era moderna no Brasil, e unificando ambos os conteúdos, pensar em um
percurso que aborde a loucura, e o tratamento dos loucos em nosso século XXI.

REFERÊNCIAS

ASSIS, Machado de. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar 1994. v. II.

CHARTIER, Roger. A História ou a leitura do tempo. Belo Horizonte: Autêntica


Editora, 2009.

FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica. São Paulo:


Perspectiva, 1978.
_____________. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1977.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

OS PEQUENOS RECLAMANTES: PROCESSOS DE TRABALHADORES


MENORES NA JUNTA DE CONCILIAÇÃO E JULGAMENTO DE
GUARABIRA EM 1987

DIOGNNYS CARDOSO ESTEVAM


UFPB
[email protected]

RESUMO
Usando como fonte processos da Justiça do Trabalho da Junta de Conciliação e
Julgamento (JCJ) da cidade de Guarabira, que estão disponíveis no Núcleo de
Documentação Histórica no Centro de Humanidades da Universidade Estadual da
Paraíba (UEPB) em Guarabira, pretendo discutir contextos históricos que levaram
menores trabalhadores a entrarem na Justiça do Trabalho em busca de seus direitos
trabalhistas no momento de democratização da sociedade civil, junto com a ampliação
de estruturas institucionais do Estado, como a Justiça do Trabalho nas regiões
interioranas do Brasil. Assim, esse artigo pretende apontar questões iniciais sobre as
ações movidas pelos menores trabalhadores, as causas e os resultados dos processos
acionados no ano de 1987.
Palavras-chave: Trabalho infantil; Justiça do Trabalho; Agreste Paraibano.

INTRODUÇÃO
Como em todo trabalho, questões marcam o início de problemática, mas essas
não são questões que ―surgem do nada‖. Todo acontecimento faz parte de um processo;
no caso, do processo histórico pertencente ao contexto discutido nesse artigo. Assim a
conjuntura discutida estará delimitada na década de 1980 na região do agreste
paraibano, que em outra dimensão de escala faz parte do contexto histórico social do
Brasil no momento de retomada da democracia.

A discussão irá pautar questões iniciais sobre o contexto socioeconômico de uma


região comumente denominada ―Brejo‖ mas que tem Guarabira como cidade polo,
embora Guarabira pertença a mesorregião do Agreste paraibano, pois foi a cidade
contemplada pela Junta de Conciliação e Julgamento (JCJ), na qual irá agora abarcar 26
cidades244 da região do Agreste e Brejo paraibano.

244
A jurisdição da Junta de Conciliação e Julgamento aberta na cidade de Guarabira 1987 cobre as
cidades de: Alagoa Grande, Alagoinha, Araçagí, Araruna, Bananeiras, Belém, Borborema, Cacimba de
Dentro, Caiçara, Casserengue, Cuitegi, Dona Inês, Duas Estradas, Guarabira, Lagoa de Dentro,
Logradouro, Mari, Mulungu, Pilões, Pilõezinhos, Pirpirituba, Riachão, Serra da Raiz, Sertãozinho,
Solânea e Tacima.

633
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Inicialmente levanto o contexto socioeconômico da região e em sequência


problematizo aspetos sobre o uso da mão de obra infantojuvenil, para posteriormente
fazer a amostragem de processos trabalhistas da JCJ no ano de 1987. Apesar das
limitações das páginas para essa comunicação em artigo, pretendo levar o leitor a ter
uma noção inicial sobre a uma parte da história do uso do trabalho infantojuvenil no
interior da Paraíba.

A REGIÃO DO AGRESTE/BREJO NO CONTEXTO SOCIOECONÔMICO

Utilizarei dois trabalhos norteadores para discutir essa problemática. O primeiro


é uma dissertação de mestrado defendida na Universidade Federal da Paraíba (UFPB)
em 1988, de Giuseppe Tosi, sob o título Terra e salário para quem trabalha: um estudo
sobre os conflitos sociais no Brejo Paraibano 245. O segundo será um Trabalho de
Conclusão de Curso em História da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB)
defendido em 2015, de Lidineide Vieira da Costa, “Algodão entre cristais no conflito
capital-trabalho”: trabalhadores e patronato frente à Junta de Conciliação e
Julgamento de Guarabira – PB no ano de 1987246.

Guarabira está localizada a 98 km de distância da capital João Pessoa, situada na


mesorregião do Agreste paraibano, e na microrregião de Guarabira, mas é comumente
chamada de ―Rainha do Brejo‖ por ser a cidade polo mais próxima da região do Brejo.
Possuindo uma população estimada de 41 mil habitantes na década de 1980 247, a
maioria da população morava na zona rural. Com uma cartela de atividades laborais
reduzida, os principais setores empregatícios eram agrícolas, seguidos pelo comércio e o
serviço público, enquanto a indústria tinha pouca participação.

Como o maior ramo de contratos de trabalho para a época era a agricultura, a


região possuía forte cultivo da cana-de-açúcar, que tinha como principal destinação a
agroindústria canavieira financiada pelo governo federal. O programa estatal de
estìmulo à produção alcooleira, o ―Proálcool‖, começou suas atividades na Paraìba já
em 1978. Mas deve-se ressaltar que, apesar do predomínio, a região não tinha como

245
TOSI, Giuseppe. Terra e salário para quem trabalha: um estudo sobre os conflitos sociais no
Brejo paraibano. 1988. 266 f. Dissertação (Mestrado em Sociologia Rural) - Universidade Federal da
Paraíba. Campina Grande, 1988.
246
COSTA, Lidineide Vieira da. “Algodão entre cristais no conflito capital-trabalho”: trabalhadores
e patronato frente à Junta de Conciliação e Julgamento de Guarabira – PB no ano de 1987. 2015.
75 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em História) – Universidade Estadual da Paraíba,
Guarabira, 2015.
247
TOSI, Giuseppe. op. cit. p. 24.

634
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

exclusividade a cultura da cana-de-açúcar. As demais áreas destinavam-se à policultura


ou à criação de gado248.

Desde 1974, no plano econômico, as medidas adotadas nos governos militares já


não causavam efeitos positivos como anteriormente, no chamado ―milagre econômico‖.
As mudanças estruturais no sistema de produção capitalista colocava o trabalhador cada
dia mais à mercê do sistema – verificado pelos altos índices de inflação – com uma
política de reajustes salariais que sequer repunha as perdas reais causadas pela
inflação249. Não limitando-se a esse conjunto de problemas, David Maciel250 aponta que
no processo de transição do governo militar para o democrático havia uma postura
crìtica das ―frações hegemônicas do bloco no poder‖ 251 diante do governo militar. Isso
se deveu, fundamentalmente, à sua incapacidade de conduzir a política econômica para
além da administração cotidiana da crise252, a necessidade de pagar a dívida feita junto
ao Fundo Monetário Internacional (FMI), que impunha medidas de arrocho das contas
públicas. Aliado a isso, somou-se um conjunto de problemas sociais que acabou
levando a uma crise conjuntural.

Como resposta, a sociedade concentrada em pressionar o governo para a


abertura democrática aproveita as eleições de 1982 para mostrar a urgência das questões
sociais que deveriam ser pautadas pelo governo sucessor. Antes disso, o movimento
sindical amplificava suas lutas. O caráter massivo das greves nos anos de 1979 e 1980
se desdobrava numa onda grevista muito mais abrangente em termos de categorias,
regiões e trabalhadores envolvidos 253, indicando a participação direta dos setores
assalariados das camadas tradicionais da classe média urbana, demonstrando que a
perspectiva antiautocrática do movimento grevista não se limitava aos operários e aos
trabalhadores rurais254. Na região do Brejo paraibano, porém, a organização da classe
trabalhadora rural terá maior visibilidade, como veremos a seguir.

248
Ibidem, p. 25.
249
GOLDENSTEIN, 1994 apud MACIEL, David. Democratização e Manutenção da Ordem na
Transição da Ditadura Militar à Nova República (1974-1985). 1999. 408f. Dissertação (Mestrado em
História) – Universidade Federal de Goiás. Goiânia, 1999. p. 342.
250
MACIEL, David. Democratização e Manutenção da Ordem na Transição da Ditadura Militar à
Nova República (1974-1985). 1999. 408f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de
Goiás. Goiânia, 1999.
251
Ibidem, p. 343.
252
Ibidem.
253
Ibidem, p. 259.
254
Ibidem, p. 160.

635
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Segundo Tosi, em fevereiro de 1986, durante o acampamento na sede do


INCRA, realizado por trabalhadores rurais paraibanos, foram registradas – conforme
consta no documento entregue às autoridades – 135 áreas de conflitos que se localizam,
na sua grande maioria, nas regiões do Litoral, Várzea, Agreste e Brejo da Paraíba 255.

Essa retomada nos conflitos era consequência do sistema de produção agrícola


em decadência somado ao processo de expropriação dos trabalhadores do campo,
levando os trabalhadores a se agruparem para lutar pelos seus direitos. Nesse momento,
conforme Tosi destaca, a Igreja Católica, com diocese em Guarabira, e os Sindicatos de
Trabalhadores Rurais na região tiveram um papel crucial para o fortalecimento da luta
dos trabalhadores rurais.

Os sindicatos tiveram sua retomada simbólica com a comemoração do 1ª de


maio de 1981, momento registrado com a participação de 17 STRs do Brejo e áreas
vizinhas, e reuniu mais de quatro mil participantes256. Nos anos seguintes se sucederam
várias comemorações com o comparecimento expressivo de trabalhadores e dirigentes
sindicais257.

É em meio a esse processo de mobilização social que se instala a Junta de


Conciliação de Guarabira, pois a emergência da bandeira pela conquista da cidadania,
da luta dos trabalhadores na garantia dos seus direitos, dentre eles a questão da proteção
à infância e à juventude, se materializam também nas reclamações trabalhistas na
Justiça do Trabalho, que serão analisadas a seguir.

O MENOR: REGISTRO DE PEQUENOS TRABALHADORES NOS AUTOS


FINDOS TRABALHISTAS.

A partir de agora, passarei a fazer uma análise da amostragem de 18 processos


encontrados no ano de 1987 acionados por menores individual ou coletivamente. Os
processos foram abertos em maior parte nas comarcas das cidades na qual residia o
trabalhador, ou local onde ele exercia seu trabalho, sendo apenas 3 processos abertos
diretamente na JCJ de Guarabira após sua instalação em 1987.

255
TOSI, Giuseppe. op. cit., p. 44.
256
Ibidem, p. 175.
257
A maior parte destas iniciativas provinha do grupo de lideranças da Igreja, militantes da Pastoral Rural
e das CEBs, em colaboração com os ―serviços‖ e com outros centros de assessoria. Ibidem, p. 176.

636
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

A relevância do uso de processos da Justiça do Trabalho como fonte de pesquisa


demonstra a riqueza de acontecimentos históricos que ainda não pautaram discussões
sobre o devido tema, tanto da história do trabalho, da história do trabalho infantil na
região do Agreste e da Junta de Conciliação e Julgamento instalada em Guarabira.

Experiência próxima sobre o uso de mão de obra de crianças e jovens pelo


capital sucroalcooleiro é discutida por Ana Dourado, Christine Dabat e Teresa Araújo
em Crianças e Adolescentes nos Canaviais de Pernambuco258. Nesse texto as autoras
analisam a realidade do trabalho de crianças e jovens trabalhadores na agroindústria da
cana-de-açúcar em terras pernambucanas. Nas palavras das autoras, ―o uso da mão de
obra nos latifúndios canavieiros ceifou a condição de vida desses trabalhadores imersos
numa estrutura social de total exclusão‖. Deve-se salientar que este texto sobre a
realidade pernambucana foi fruto de uma pesquisa realizada entre 1992 e 1993,
momento no qual a sociedade já vinha lutando por uma ampliação de seus direitos e a
retomada da democracia, quando os direitos sociais das crianças e dos adolescentes
ganharam nesse ponto reforço com o Estatuto da Criança e do Adolescente.

Já a principal fonte da pesquisa para esse artigo tem origem na criação do


Núcleo de Documentação Histórica (NDH) do Centro de Humanidades da UEPB. Os
autos findos da Junta de Conciliação e Julgamento de Guarabira estavam destinados ao
descarte total. Mas a parceria da Universidade Estadual da Paraíba com o Tribunal
Regional do Trabalho da 13º Região tornou possível a preservação dessa documentação
histórica. A escolha de limitar a pesquisa apenas em um ano deve-se ao fato de ter o
conjunto dos autos movidos em 1987 já ter sido devidamente tratado através da etapa de
higienização na qual ainda passam os processos dos outros anos, sob guarda do NDH-
CH/UEPB.

O montante total de ações referentes a esse ano de 1987 é de 311 259. Entre eles,
não foi encontrado nenhuma reclamação trabalhista aberta por algum menor residente
na cidade de Guarabira. Por outro lado, foram localizados 18 processos envolvendo

258
DOURADO, Ana; DABAT, Christine; ARAÚJO, Teresa Corrêa de. Crianças e adolescentes nos
canaviais de Pernambuco. In: PRIORE, Mary Del (Org.). História das crianças no Brasil. 7. ed. São
Paulo: Contexto, 2010. p. 407-436.
259
COSTA, Lidineide Vieira da. op. cit., p.55.

637
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

menores, todos eles moradores das cidades da região pertencente agora à jurisdição da
JCJ na cidade260.

● Sobre os dados quantitativos iniciais.


Como já demonstrado por Costa261, como a Junta de Conciliação e Julgamento
de Guarabira foi inaugurada apenas em 1987, as ações trabalhistas eram abertas e
julgadas nas comarcas de cada cidade. Assim, a massa documental gerada no ano de
1987 tem um montante maior de ações encaminhadas à JCJ do que propriamente abertas
após sua instalação, conforme se vê no gráfico 1 abaixo:

Gráfico 1 – Total de ações da JCJ de Guarabira – PB (1987).

Fonte: COSTA, Lidineide Vieira. (2016).

Se nesse total de ações encaminhadas à JCJ pertenciam às cidades


circunvizinhas de Guarabira, nesse outro gráfico (2) fica demonstrado que, da massa
documental referente a esse ano, mais da metade dos processos são de trabalhadores
rurais:

Gráfico 2 – Porcentagem da natureza da atividade do trabalho nos processos da JCJ


Guarabira em 1987.

Fonte: COSTA, Lidineide Vieira. (2016).

260
Sobre as cidades na qual pertenciam a jurisdição da JCJ de Guarabira, ver nota ¹.
261
COSTA, Lidineide Vieira da. op. cit., p. 57.

638
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Dos 18 processos envolvendo menores trabalhadores localizados entre esse total,


apenas um é de uma trabalhadora urbana. Todos os demais são relacionados ao trabalho
no campo. Conforme já descrito mais acima com Tosi, a região do Brejo tinha como
principal fonte de produção a atividade rural, principalmente o plantio da cana-de-
açúcar, que, com seu declínio na segunda metade da década de 1980, levou à redução
dos empregos no setor. Como afirmam Moreira e Targino:

Essa situação vai ter reflexos tanto na zona rural quanto na zona urbana. Na
zona rural, ela agrava as condições de vida da população pois o engajamento
no cultivo da cana, particularmente, representa a principal fonte de renda para
a maioria dos trabalhadores. O quadro repete-se nas áreas urbanas, pois
quando eclode a crise do Pró-álcool, parte significativa da população expulsa
da área rural residia nos núcleos urbanos da Zona Canavieira do Estado.262

Assim, imerso nesse total de ações, os 18 processos de reclamações trabalhistas


movidas por menores trabalhadores contra seus empregadores, tanto de caráter coletivo
como individual, entre os 311 totais referentes ao ano de 1987, representam apenas 6 %
do total das ações:

Gráfico 3 – Total de processos envolvendo menores trabalhadores na JCJ de Guarabira


em 1987.

A faixa etária desses menores registrados nos autos fica entre 12263 e 18 anos.
Nos processos coletivos fica mais presente o relato de menores que começaram a
trabalhar desde muito cedo, sem limitar especificamente a idade mínima. As cidades nas
quais se originam as ações movidas pelos menores podem ser listadas no seguinte
gráfico:

262
MOREIRA, Emilia et.al. A visão dos atores sociais sobre a crise do emprego rural a zona canavieira
da Paraíba. Revista da ABET, V.I, Nº 1/2, 2001. p. 45. Disponível em:
<http://periodicos.ufpb.br/ojs/index.php/abet/article/view/15425>. Acesso em: 8 Abr. 2014.
263
NDH-CH/UEPB. Processo da JCJ- Guarabira Nº 173/87.

639
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Gráfico 4 – Cidades pertencentes às reclamações trabalhistas nos processos envolvendo


menores trabalhadores na JCJ Guarabira em 1987.

Quanto ao gênero dos trabalhadores envolvidos nas 18 ações, foram totalizados


30 menores, pois nas ações coletivas estão presentes mais de um menor, assim, 24 eram
meninos reclamando seus direitos, todos eles trabalhadores rurais, e apenas 6 menores
eram meninas. Destas, 5 vinculavam-se ao trabalho agrícola, e apenas uma menor
reclama seus direitos a um empregador da área urbana.

Na ação movida pela menor trabalhadora urbana, de número 163/87, de caráter


individual, a trabalhadora destaca que sua profissão era de comerciante. Assistida pela
sua mãe e residente na cidade de Solânea, apresenta reclamação trabalhista contra um
empregador funcionário público da mesma cidade. Sobre a reclamação, a trabalhadora
foi admitida para trabalhar na função de secretária em fevereiro de 1985, vindo a pedir
demissão em agosto do mesmo ano, alegando quebra de contrato por parte do
reclamado, uma vez ―que nesses 6 meses de trabalho nunca recebeu pagamento‖. Na
primeira audiência marcada a ação já obteve conclusão, as partes assinaram acordo de
conciliação, ficando o reclamado obrigado a dar um valor devido a reclamante, embora
o valor não fosse o mesmo pedido nas iniciais do processo.

Além de autos movidos por trabalhadores de modo individual, outros foram


movidos coletivamente. 9 das 18 ações foram de caráter coletivo 264. Nessas ações
coletivas temos processos acionados pela família do menor trabalhador, pai, mãe e
irmão, como também processos de vários trabalhadores, que entre eles está a
participação desses menores nos contratos de trabalho coletivo. As outras 9 ações,

264
NDH-CH/UEPB. Processos da JCJ-Guarabira de número: 098/87, 117/87, 127/87, 201/87, 303/87,
318/87, 320/87, 362/87, 401/87.

640
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

portanto, são de caráter individual265. Nessas ações individuais algumas são reclamações
contra grandes proprietários de terra. Inclusive contra alguns empregadores das ações
coletivas, mas por algum motivo o(a) trabalhador(a) menor decide entrar na Justiça do
Trabalho, rompendo sua relação de obediência para com seu empregador.

No fim da apresentação da reclamação trabalhista, o reclamante lista seus títulos


nos quais sempre teve direito de receber, mas nunca foi devidamente pago pelo
empregador. Assim, as principais questões reclamadas são: Indenização por tempo de
serviço; Férias; 13º Salário; Diferença Salarial; Repouso Semanal Remunerado. Essas
questões estão presentes em todas as reclamações, enquanto apenas nos processos
016/87, 098/87, 127/87, 201/87, 291/87 e 374/87 apresentam reclamações referentes à
assinatura da Carteira de Trabalho e à Previdência Social.

 Sobre o resultado das ações.


Após a abertura do processo na Justiça do Trabalho, o momento mais esperado é
seu resultado por ambas as partes: o reclamante, na esperança de alcançar seus direitos
negligenciados; e o reclamado, esperando a improcedência da reclamação para assim
não ser condenado a pagar os devidos títulos. O resultado das ações pode ocorrer de três
formas: a procedência da ação, quando há apresentação de provas suficientes para a
justiça; a improcedência, quando não existem elementos de provas suficientes pelo
reclamante; e a conciliação das partes, que é a primeira ação tomada pela Justiça. No
seguinte gráfico (5) podemos ver o desfecho no resultado dos 18 processos analisados
nesse trabalho:
Gráfico 5 – Resultado dos processos movidos por menores na JCJ de Guarabira em
1987.

265
NDH-CH/UEPB. Processos da JCJ-Guarabira de número: 016/87, 163/87, 171/87, 173/87, 202/87,
291/87, 327/87, 337/87, 374/87.

641
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Embora a entrada desses menores serem incialmente a cobranças de seus


direitos, é só com o desenrolar dos processos que vemos como será finalizada essa
conquista por parte dos trabalhadores.

A Justiça do Trabalho, no primeiro momento após a entrada da reclamação


trabalhista pelo trabalhador, irá propor uma conciliação entre as partes, na perspectiva
de evitar um prolongamento exaustivo de ambos envolvidos no processo. Como visto
no gráfico 5 acima, apenas em 5 casos houve conciliação entre as partes na primeira
audiência266, cujo registro de encerramento do processo versava com a seguinte
descrição: ―Os reclamantes, através do presente acordo, dão quitação de todo objeto da
reclamação.‖267 Essa proposta era uma tentativa para que as partes colocassem um fim
de forma rápida na questão da injustiça praticada durante o trabalho executado. Porém,
ao concordar com a conciliação, o trabalhador acaba não tendo a garantia de ter seus
direitos todos efetivados, principalmente os referentes aos valores cobrados nas iniciais.
Em muitos casos, na conciliação, o empregador acaba não executando a assinatura na
carteira pelo tempo de serviço, e, assim, não cumprindo as devidas obrigações prescritas
em lei. Desta forma, o cumprimento da lei acaba ficando subsumida à conciliação
quando, eventualmente, algum trabalhador considera que sua situação passou do
tolerável e resolver recorrer à intervenção do Judiciário.

Por outro lado, mais da metade das ações, como visto no gráfico 5, terminaram
com sentença de procedência da reclamação. Embora os trâmites mais longos – se
estendendo por anos –, com volume maior de folhas, junção de provas e depoimentos,
havendo insatisfação com o resultado da sentença, o reclamado ainda poderia recorrer à
instância superior do resultado da ação, e só depois de tudo isso, caso confirmada a
primeira sentença, é que o trabalhador menor de fato teria ganhado suas causas, cabendo
ao empregador pagar os devidos valores cobrados. Esse longo processo, embora
desestimulante para quem deseja ter seus direitos ressarcidos, revela que, embora toda a
aparente normalidade de trabalho alegada pelos empregadores, afirmando que foi o
trabalhador que abandonou o serviço e outros motivos a mais, no fim são apuradas pela
Justiça do Trabalho como improcedentes as razões da reclamada, aceitando a denúncia
feita pelo trabalhador menor. E isso fica evidente quando analisamos o tempo dos

266
NDH-CH/UEPB. Processo da JCJ- Guarabira de número: 098/87, 163/87, 291/87, 318/87 e 401/87.
267
NDH-CH/UEPB. Processo da JCJ- Guarabira de número: 401/87. Finais do Termo de Conciliação.
Nas iniciais os trabalhadores cobravam um total de Cz$ 79.380,00, mas só foi pago pelo reclamado a
quantia de Cz$ 35.000,00.

642
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

tramites processuais que o trabalhador tem que esperar para que no final de todas as
etapas corridas, o trabalhador ter o resultado de sua ação.

CONCLUSÃO
No curto espaço possível, tentei apresentar as problemáticas das mudanças nas
relações de produção, da expropriação dos trabalhadores rurais, da crise econômica e o
fim do Proálcool e demais questões que estiveram presentes no cotidiano de pais e
mães, meninos e meninas, crianças e jovens, trabalhadores que em 1987 –
principalmente os trabalhadores rurais – sofreram mudanças significativas.

A história do trabalho e do trabalho infantojuvenil na mesorregião do Agreste


ainda foi pouco explorada pela historiografia, e o recorte temporal desse artigo se trata
apenas das últimas décadas do século XX que faz levantar uma pergunta: Quanto de
histórias ainda estão para serem discutidas?

Não sabendo os devidos parâmetros para essa resposta, mas com a salvaguarda
dos processos da JCJ de Guarabira, e o uso desses processos como fonte histórica, vem
a ampliar a possibilidade de entrarem em pauta histórias de trabalhadores(as) que antes
estavam apenas guardados em uma sala da justiça prestes a serem incinerados sem
nenhuma utilidade para a pesquisa.

REFERÊNCIAS

ALBERTO, Maria de Fátima Pereira. O Trabalho Infantil na Cultura do Abacaxi no


município do Santa Rita – PB: um diagnóstico rápido à luz das piores formas de
trabalho infantil no Brasil. Programa Internacional para Eliminação do Trabalho
Infantil. (IPEC). Brasília: OIT – Secretaria Internacional do Trabalho, 2006. 64p.
Disponível em: <http://www.oitbrasil.org.br/node/358>. Acesso em: 3 Jun. 2014.

CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 18ª ed. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.

COSTA, Lidineide Vieira da. “Algodão entre cristais no conflito capital-trabalho”:


trabalhadores e patronato frente à Junta de Conciliação e Julgamento de
Guarabira – PB no ano de 1987. 2015. 75 f. Trabalho de Conclusão de Curso
(Graduação em História) – Universidade Estadual da Paraíba, Guarabira, 2015.

643
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

DOURADO, Ana; DABAT, Christine; ARAÚJO, Teresa Corrêa de. Crianças e


adolescentes nos canaviais de Pernambuco. In: PRIORE, Mary Del (Org.). História das
crianças no Brasil. 7. ed. São Paulo: Contexto, 2010. p. 407-436.
MACIEL, David. Democratização e Manutenção da Ordem na Transição da
Ditadura Militar à Nova República (1974-1985). 1999. 408f. Dissertação (Mestrado
em História) – Universidade Federal de Goiás. Goiânia, 1999.
MOREIRA, Emilia et.al. A visão dos atores sociais sobre a crise do emprego rural a
zona canavieira da Paraíba. Revista da ABET, V.I, Nº 1/2 – 2001, 40-65, 2001.
Disponível em: <http://periodicos.ufpb.br/ojs/index.php/abet/article/view/15425>.
Acesso em: 8 Abr. 2014.

PRIORE, Mary Del (Org.). História das crianças no Brasil. 7. ed. São Paulo:
Contexto, 2010.
TOSI, Giuseppe. Terra e salário para quem trabalha: um estudo sobre os conflitos
sociais no Brejo paraibano. 1988. 266 f. Dissertação (Mestrado em Sociologia Rural) -
Universidade Federal da Paraíba. Campina Grande, 1988.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

TERRITORIALIZAÇÃO E DESTERRITORIALIZAÇÃO DO BANDO DE


LAMPIÃO NA PARAÍBA (1923-1926)

GUERHANSBERGER TAYLLOW AUGUSTO SARMENTO268


UFRN
[email protected]

RESUMO

Este trabalho investiga o processo de territorialização/desterritorialização do bando de


cangaceiros chefiado por Virgulino Ferreira da Silva, a partir das relações de poder que
esse líder bandoleiro manteve com uma rede de agenciadores e opositores, entre os anos
de 1923 e 1926, no Estado da Paraíba. Partimos do pressuposto que o sustentáculo
alimentador era a espacialidade do bando de Lampião, a qual pode ser entendida a partir
de dois pontos fundamentais, a resistência e o agenciamento, ambos pensados através da
ótica de Deleuze e Guattari (1997), no seu Tratado de Nomadologia. Elencamos dois
tipos de fontes a serem exploradas neste trabalho: os jornais, que divulgaram notícias
sobre Lampião e seu bando; e a primeira biografia de Lampião escrita pelo jornalista
Érico de Almeida, ambos produzidos dentro do recorte proposto.
Palavras-chave: Lampião; Territorialização/Desterritorialização; Relações de poder;
Espaço.

O presente artigo busca refletir sobre o processo de territorialização do bando de


cangaceiros chefiado por Virgulino Ferreira da Silva, mais conhecido como Lampião
(1898-1938), na Paraíba, entre os anos de 1923-1926. Esse texto é fruto das nossas
primeiras impressões acerca da pesquisa de mestrado que estamos desenvolvendo desde
o início do primeiro semestre deste ano.269
A escrita da história como elemento da operação historiográfica, como nos diz
Michel de Certeau270, parte de questões levantadas no tempo presente, estando
permeadas pelas múltiplas influências que o lugar de produção exerce sobre o trabalho
do historiador. Com isso, as preocupações que nos levaram a produzir este texto partem
das discussões que buscam pensar a relação entre história e espaços.

268
Aluno vinculado ao Programa de Pós-Graduação em História, na UFRN/NATAL, que tem como área
de concentração: História e Espaços.
269
Desenvolvemos atualmente a pesquisa intitulada: VIRGULINO CARTOGRAFADO: RELAÇÕES DE
PODER E TERRITORIALIZAÇÃO DO CANGAÇO ENQUANTO ESPAÇOS DE ATUAÇÃO DO
BANDO DE LAMPIÃO (1918-1928), sob orientação do Prof. Dr. Durval Muniz de Albuquerque Júnior.
270
CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015. p. 56-108.

645
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Desde os trabalhos de Lucien Febvre, em O Reno: História, mitos e realidades


(1935), e Fernando Braudel, em O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrâneo na Época de
Filipe II (1949), que os historiadores (re)despertaram para a importância do espaço na
compreensão das relações sociais, tendo em vista que o homem como ser e construtor
do tempo, se constitui em substratos espaciais materiais271 delimitados. Portanto, não é
possível pensar a historicidade das ações humanas no tempo, deslocada da
espacialização que as mesmas configuram e reconfiguram. Toda ação humana é
criadora de espacialidades, ao mesmo tempo em que sofre suas influências, funcionam e
emergem sempre na relação, na interação entre homem e natureza, homem e
espacialidades.
Trabalharemos a noção de espaço na perspectiva do filósofo e historiador Michel
de Certeau como sendo o lugar das práticas humanas. Segundo Certeau (1994), são as
ações dos sujeitos que condicionam a produção dos espaços, entendidos como lócus de
vivências individuais e coletivas e configurados pelas práticas que conferem sentido,
significado e geram representações neste, deste e para este espaço.
Lançamos mão do diálogo interdisciplinar entre história e geografia 272 para
articular conceitos que permitem aos historiadores dos espaços estabelecerem conexões
com os saberes desenvolvidos ao longo das últimas décadas pelos geógrafos. Com isso,
buscamos tornar compreensíveis as práticas espaciais dos sujeitos e dos diferentes
grupos sociais, percebendo quais os interesses que os conectam e como mobilizam o
passado para criar espaços e territórios em suas multidimensionalidades.
O objetivo central desse diálogo é se apropriar de ferramentas conceituais
desenvolvidas na geografia para testar na análise da produção espacial do bando de
Lampião no Estado da Paraíba, entre os anos de 1923-1926. Essas espacialidades
seriam, antes de tudo, produto de processos de territorialização/desterritorialização, num
movimento constante de tecer e de desfazer redes de agenciamentos com protetores e

271
De acordo com o geógrafo Marcelo Lopes de Sousa (2009), o substrato espacial material são as
formas espaciais, os objetos geográficos tangìveis (edificações, campo de cultivo, feições ―naturais‖ etc).
Ou seja, a matéria que serve de suporte e referência para as práticas sociais. O autor lança mão desse
termo como um esforço de separação do que ele chama de espaço concreto (matéria, objeto), do espaço
social (constituindo pelas relações humanas). Pensamos ser interessante usar esse termo, pois entendemos
que o espaço é sempre social, surge na relação e interação da prática social com os substratos materiais.
272
Um ensaio introdutório do entrelaçamento da história com a geografia pode ser encontrado em:
BARROS, José D‘Assunção. História, Espaço, Geografia: diálogos interdisciplinares. Rio de Janeiro:
Vozes, 2017.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

coiteiros273 que possibilitavam a sobrevivência de Lampião e seu bando e seu exercício


em uma dada área geográfica. Mas, antes de iniciar nossa análise, pensamos que seja
necessário apresentar para os leitores como a dimensão espacial esteve por muito tempo
esquecida pelos estudiosos do cangaço. E a partir daí, mostrar qual o lugar das nossas
reflexões dentro dos estudos dessa temática e como podemos contribuir, apontando
novos direcionamentos.
A ampla historiografia do cangaço pouco tem se preocupado em direcionar o
olhar para os aspectos espaciais desse fenômeno, sobretudo porque uma notável parcela
dos trabalhos ainda parte de lugares de produção permeados pelas preocupações
memorialísticas e factuais. Podemos observar que quando o espaço aparece é visto
como dado, preexistindo às práticas dos sujeitos e sendo apenas um receptáculo das
mesmas. Já o território é coisificado, sendo confundido com o substrato material, ou
seja, a terra, como se fosse possível existir território sem os campos de força e de
sentido que emanam das relações sociais espacialmente delimitadas.
Em 1917, foi publicada a primeira edição do livro Heróis e bandidos: os
cangaceiros do Nordeste.274 Trabalho que se tornou uma espécie de paradigma
explicativo para os estudos do cangaço, tendo em vista que diversos pesquisadores
tomaram Gustavo Barroso como ponto de apoio para reflexões posteriores sobre o
banditismo. Por conseguinte, podemos dizer que Barroso se notabilizou como um autor
que Foucault denominou de: fundador de discursividade. Ou seja, o autor que
possibilita a formação de outros textos a partir dos seus escritos.275
De acordo com Ferreras (2003), o principal aspecto do livro escrito pelo
memorialista cearense é a função estabelecida pelo meio ambiente, sendo decisivo para
a compreensão e explicação da forma cultural dos habitantes do sertão nordestino. O
meio exerceria uma influência ímpar na produção das formas em que a sociedade se
desenvolve e transforma seus indivíduos. Portanto, a condição humana passaria a ser

273
Barros (2007) trabalhou a diferença entre coiteiros e protetores. Para ela, os primeiros eram os
fazendeiros de pequeno e médio porte, que agenciavam os cangaceiros seja porque eram chantageados,
seja porque eram beneficiados pelas relações comerciais mantidas com esse tipo de banditismo. Já os
protetores eram os grandes fazendeiros membros da elite nordestina, ligados às esferas dos poderes
políticos que agenciavam os cangaceiros a partir do litoral, das capitais dos estados do Nordeste. Ver em:
BARROS, Luitgarde Oliveira Cavalcanti. A derradeira gesta: Lampião e Nazarenos guerreando no
sertão. 2. ed. Rio de Janeiro: Mauad, 2007.
274
É importante destacar que, em 1930, Barroso também escreveu outro livro sobre o cangaceirismo,
intitulado: Almas de lama e de aço: Lampião e outros cangaceiros. Nesse livro, Barroso criticou a
desmoralização e os aspectos sociais e polìticos da chamada ―República Velha‖ que, para ele, eram os
principais produtores do atraso e do cangaceirismo no sertão nordestino.
275
Ver em: FOUCAULT, Michel. O que é um autor? In:____. Ditos e escritos: estética – literatura e
pintura, música e cinema (v.3). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011. p. 264-298.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

definida pelo meio ambiente que, por sua vez, condiciona os comportamentos humanos.
O cangaceirismo se constituiria como fruto do seu meio natural, como afirma Barroso:

O clima sertanejo tem a máxima culpa na produção da cangaceiragem [...] foi


a alma do sertão que moldou e fundiu a do cangaceiro. A fim de viver nessa
região agreste, batida pelo sol, e demasiadamente sóbrio. O eterno combate
contra o meio inóspito desenvolve-lhe a coragem e a resistência. A ameaça
continua de perceber dá-lhe o fatalismo e estóica resignação para todos os
males (BARROSO, 2012, p. 23-24).

O determinismo geográfico é lançado por Barroso como uma forma explicativa


para a análise das causas e motivações do cangaceirismo. A justificativa pela influência
do meio social também será um dos pilares de sustentação no processo de construção do
mito em torno do cangaceiro. Ao recorrer à historiografia do tema, é comum
percebermos a repetição do discurso de vitimização pelas circunstâncias vivenciadas
pelos indivíduos que passaram a usar o cangaço como forma de vida. O caso mais
conhecido é o de Lampião,276 que justificou sua entrada no cangaço para matar Zé
Saturnino e José Lucena: o primeiro, acusado de ser o causador das intrigas familiares
com os Ferreiras; e o segundo, de ter matado seu genitor. 277
O espaço em Barroso é entendido através das teorias deterministas do século
XIX, pelas quais o social poderia ser explicado através das condições geográficas que
determinavam a conduta humana. Nenhuma prática espacial dos sujeitos envolvidos no
cangaço seria capaz de alterar essa condição geográfica, pois tudo já estaria
determinado pelo meio natural. O cangaceiro seria um simples reflexo do seu substrato
espacial e material, todas as suas ações poderiam ser explicadas e justificadas pelo
isolamento sertanejo e pelas intempéries de uma sociedade excludente marcada pela
corrupção, analfabetismo, seca e fome.
Na década de 1960 o cangaço adentra como tema nas universidades brasileiras
(mas ainda sem problematizar o espaço), com a interpretação marxista de Rui Facó, no
livro Cangaceiros e Fanáticos (1963), publicado post mortem. Seguindo a perspectiva
da luta de classes, o autor defendeu que o cangaceirismo e o fanatismo seriam uma
reposta a concentração fundiária da terra, passando a ser entendidos como exemplos de

276
Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, atuou entre os anos de 1918-1938. É a figura mais conhecida
do cangaço, sendo constituído pelos múltiplos projetos de memória, como imagem representativa do ser
nordestino e fonte rentável atrativa dos projetos políticos em torno do turismo.
277
A essa prática discursiva de Lampião, Frederico Pernambucano de Mello definiu como ―escudo ético‖.
Em outras palavras, é o uso do chamado ―código de honra sertanejo‖ que obrigava a vingança da morte
dos seus pais para justificar a vida cangaceira. Ver em: MELLO, Frederico Pernambucano de.
Guerreiros do sol: violência e banditismo no Nordeste do Brasil. 5. ed. São Paulo: A Girafa, 2011.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

emancipação dos pobres, de insubmissão e estímulo de lutas para os camponeses e


militantes da esquerda contemporâneos ao autor do livro.
Já nos anos de 1970, o cangaço foi sendo analisado à luz da sociologia, cujos
autores se dedicaram a elaborar modelos explicativos sobre as causas sociais para o seu
surgimento.278 Destacam-se os trabalhos de Maria Chistina Matta Machado (1969) e,
sobretudo, Maria Isaura Pereira de Queiroz (1977). Para essa última autora, no período
de atuação de Lampião, o cangaço era independente da proteção dos coronéis, o que ela
mesma intitulou de cangaço independente. Porém, a despeito da importância dessas
ideias no contexto em que foram produzidas, acreditamos que essa linha explicativa
deve ser repensada, uma vez que a força do cangaceiro está diretamente atrelada às
relações de poder e dependência que os mesmos eram capazes de estabelecer com
muitos coronéis do sertão nordestino.
A preocupação sociológica na análise das causas desse fenômeno segue presente
nos estudos de Frederico Pernambucano de Mello, em Guerreiros do Sol, publicado em
1985 – trabalho que se tornou referência obrigatória para os leitores dessa temática.
Contudo, pouco conseguiu se distanciar das interpretações anteriores, inclusive, tendo
como principal referência os trabalhos do memorialista cearense Gustavo Barroso,
produzidos ainda nos primeiros anos da República.
Foi apenas no ano de 1995 que o espaço do cangaço Lampiônico foi tomado
como objeto de estudo, mesmo de forma pouco problematizadora e aprofundada, na
dissertação apresentada por Jorge Luiz Mattar Villela,279 ao curso de Pós-Graduação em
Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina. Esse trabalho não se
destaca apenas por ser o primeiro a problematizar a dimensão espacial da atuação do
bando de Lampião, ele se notabiliza (até os dias atuais) na historiografia do tema por ser
o único a colocar o espaço como questão de análise. Parece-nos relevante o fato de ser
um antropólogo e não um historiador o primeiro a perceber o potencial das categorias de
espaço e território para compreender as vivências do bando de cangaceiros mais
afamado do país. Além do mais, são raríssimas as referências que os escritos recentes
dos historiadores do cangaço fazem ao trabalho de Villela. Relevando por um lado, a

278
Maria Chistina Mata Machado (1969); Maria Isaura Pereira de Queiroz (1977) e Frederico
Pernambucano de Mello (1985) elencaram as seguintes causas sociais para o surgimento do cangaço:
secas, isolamento sertanejo, domínio do latifúndio e brigas familiares.
279
A dissertação foi defendida com o título: A organização espacial do cangaço sob a chefia de Virgulino
Ferreira da Silva, Lampião (1922-1938) ou como produzir território em movimento.

649
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

falta de conhecimento do seu texto e, por outro, a continuidade do desinteresse do


horizonte socioespacial desse fenômeno.
Contudo, é preciso mostrar os distanciamentos das nossas reflexões em relação a
dele. Em grande medida, Villela procurou entender de que forma o bando de Lampião
foi capaz de construir um território através de seu próprio movimento constante.
Embora o autor tenha deixado claro a sua defesa da importância do agenciamento de
Lampião por parte de alguns protetores e coiteiros, não conseguiu descrever como se
davam essas relações e como elas proporcionaram a produção dos espaços de atuação
do bando do Rei dos Cangaceiros. O autor enxerga no deslocamento e na ideia de
movimento essa territorialização, não problematizando os mecanismos e estratégias
políticas que deram curso a esse movimento enquanto constituição de territórios.
Enquanto Villela esteve interessado na velocidade dos movimentos que
desfazem e desmontam trajetos previamente estabelecidos (como estradas) 280 e que
criam territorialização sem centros, estamos preocupados nos movimentos de conexão,
de encontros entre Lampião e seus protetores. São esses movimentos de
entrecruzamentos no processo de tessituras de redes de agenciamentos que
proporcionam esse cangaceiro se territorializar e criar espaços de atuação para seu
bando. A permanência por 20 anos no cangaço estive atrelada ao potencial de barganha
que Lampião possuía frente aos seus agenciadores e apoiadores. Essas relações são
tratadas por nós como sendo atravessadas pelas relações de poder.281
Autores como Raffestin (1993) e Marcelo Lopes de Sousa (2014), propõe pensar
a noção de território associado às multidimensões do exercício do poder (cultural,
político, econômico). Sendo assim, o território é um campo de forças, relações de poder
operando em um substrato espacial material delimitado. O território não pode ser
confundido com a matéria e, portanto, será abordado no sentido mais amplo do termo,
280
Essa perspectiva é interessante para pensar a espacialidade do bando. A tática de desfazer e desmontar
trajetos prévios para evitar a captura é o que entendemos como práticas espaciais. Segundo Certeau
(1994), o que espaço se difere do lugar, pois esse último aparece como estratégia de ordenar e controlar o
cotidiano dos sujeitos. Nesse sentido, a construção de estradas significa estabelecer pontos fixos no
trajeto. Já o espaço, marcado pelas táticas de resistências, burlam e reconfiguram os lugares por meio das
práticas espaciais dos sujeitos.
281
Pode-se dizer que essas relações não estavam limitadas a tão imaginada imposição de poder de cima
para baixo, que partiria do macro para as micro-relações, por parte do Estado ou grupo social dominante.
O que existia nesse jogo é uma relação extremamente complexa, elaborada nas mais básicas relações
sociais, ou seja, uma microfísica do poder.281 Segundo Foucault (1979), o poder deve ser analisado como
algo que circula, ou melhor, como algo que só funciona em cadeia. Nunca está localizado aqui e ali,
nunca está em mãos de alguns, nunca é apropriado como uma riqueza ou um bem. O poder funciona e se
exerce em rede. Nas suas malhas, os indivíduos não só circulam, mas estão sempre em posição de exercer
este poder, de sofrer sua ação, ou de resistir a ele; nunca são alvos inertes ou consentidos do poder, são
sempre centros de transmissão.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

não somente como uma área geográfica pertencente a uma nação, com uma unidade
política e administrativa, mas como um conceito de espaço vivenciado/praticado pelos
agentes sociais que, através de estratégias e táticas, contribuem para a produção dos
espaços. Acreditamos que a produção do espaço é permeada pelas relações de poder e
de sentido, sendo assim, o processo de espacialização é territorializante. Isso mostra
também o caráter móvel do território,282 podendo operar tanto na continuidade quanto
na descontinuidade espacial.
Influenciado pelas leituras da dupla Deleuze e Guattari, Haesbaert (2016)
direciona seu olhar para uma abordagem processual do território. Na qual o território é
visto como um devir, um permanente movimento de tornar-se e desfazer-se, ou seja, não
existe território sem seus vetores de saída e, por sua vez, não existe saída do território
(desterritorialização),283 sem, ao mesmo tempo, um esforço para se reterritorializar em
outras bases (HAESBAERT, 2016, p. 99-101). Sendo assim, pensar a territorialização
do bando de Lampião é perceber o movimento duplo de des-reterritorialização. São
esses os movimentos que nos interessam. No primeiro momento um movimento de
territorialização, pelo qual Lampião vai mobilizar agenciamentos e constituir redes de
proteção e, no segundo momento, o processo de perda desses agenciamentos
(desterritorialização), o que vai culminar na necessidade de novas conexões para se
reterritorializar em outras bases. Segundo Haesbaert (2016), os agenciamentos são
moldados nos movimentos de territorialização e desterritorialização, uma vez que todo
agenciamento é territorial e duplamente articulado. Podendo marcar não só as entradas
no território, mas também suas saídas (linhas de fuga – nos termos de Deleuze e
Guattari).
Lampião opera esses agenciamentos através da máquina de guerra nômade 284
constituída por seu bando de cangaceiros, que tem como características por um lado, o

282
Geógrafos como Raffestin (1993); Marcelo Lopes de Sousa (2014); Haesbaert (2016) colocam em
cheque o mito da exclusividade territorial, uma vez que para eles o território circula e pode ser percebido
até nas relações microscópicas.
283
Haesbaert vai mostra em seu livro o mito da desterritorialização: do “fim dos territórios” à
multiterritorialidade, que os sujeitos que acreditam que o homem pode viver sem territórios, que a
sociedade pode existir sem territorialidade, são aqueles que cultuam o mito da desterritorialização. Ver
em: COSTA, Rogério Haesbaert da. O mito da desterritorialização: do ―fim dos territórios‖ à
multiterritorialidade. 9. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2016. p. 337-373.
284
A ideia de máquina de guerra nômade perpassa por toda a obra da dupla Deleuze e Guattari, mas foi
mais bem desenvolvida no quinto volume de Mil platôs. A noção de máquina significa operação em fluxo
e corte de agenciamentos. Enquanto que a guerra nômade abrange as potências de destruição e criação ao
mesmo tempo. É por essa razão que as forças do Estado tentam capturar para devir máquinas de guerra,
pois essas máquinas de guerra nômade estando em liberdade podem colocar em cheque o território do

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

seu poder destrutivo e desterritorializante e, por outro, sua capacidade de operar como
uma máquina, produzindo agenciamentos e criando territórios. É bom lembrar que esses
agenciamentos são entendidos em uma relação mútua e recíproca, os dois percorrem um
ao outro, intervém um no outro, sendo entendido sempre na horizontalidade das
relações e não na hierarquização das mesmas.
Durante sua intensa vida como cangaceiro, Lampião chegou a arrecadar riquezas
invejáveis. Os saques, os pedidos de regaste e os inúmeros bilhetes extorquindo
dinheiro dos moradores das vilas e cidades do interior de sete estados do Nordeste
(Pernambuco, Paraíba, Ceará, Alagoas, Rio Grande do Norte, Bahia e Sergipe) foram os
principais meios de arrecadação para alimentar os seus agenciamentos e abastecer o seu
bando. Segundo Mello (2011), essas práticas eram suficientes, inclusive para as
atividades de agiotagem junto aos coronéis. A diferença estava no fato de que enquanto
os coronéis alimentavam suas riquezas extorquindo o erário público por meio das
engrenagens do Estado, Lampião se beneficiava via atos ditos como fora da lei. Por
muito tempo a historiografia buscou separar o cangaceiro do coronel, mas até que ponto
os dois não se encontram? Não seriam duas formas diferentes de práticas de
expropriação que se alimentam do suor da sociedade sertaneja? A ponto de um
emprestar serviços ao outro e vice-versa?
O que estamos querendo enfatizar é que os agenciamentos aconteciam no
movimento recíproco, todos os envolvidos se beneficiavam de alguma forma. É o que
mostram Villela e Marques (1999):

Lampião e seus cangaceiros não significavam apenas ameaça, mas sob


muitos pontos de vista, de muitos sertanejos, constituíam um meio dos mais
eficazes de proteção. Proteção que em si mesma foi objeto de comércio dos
cangaceiros: o pagamento de uma quantia exigida garantiu por todo lado
propriedades intactas, a salvo entre outras coisas dos ataques dos próprios
cangaceiros, cujo poder de guerra era tão superior que mais valia pagar para
não ser uma vitima. A astucia de Lampião converteu sua própria ameaça em
proteção. Se a ameaça de Lampião era constante e conscientemente explorada
pelo cangaceiro, a sua amizade não implicava apenas sacrifício a temerosos
sertanejos. Lampião soube compensar com prodigalidade aqueles que lhe
prestavam favores de toda espécie, fosse um conhecido, fosse um
desconhecido que o acaso levasse a encontrar em seu caminho. Pagar sem
nenhuma parcimônia um almoço oferecido ou solicitado, espalhar como
esmola montantes elevados de dinheiro aos pobres, esbanjar bebida e comida
nas festas, promover bailes por onde passava, eram atitudes habituais de
Lampião, bem como a violência que infligia (VILLELA; MARQUES, 1999,
p. 127-128).

Estado baseado no monopólio da força. Ler em: DELEUZE, G. e GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo
e esquizofrenia, vol. 5. ed. 34. São Paulo: Editora 34, 1997.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

O que nos chamou atenção no texto citado foi o fato de que o poder destrutivo
da máquina de guerra nômade de Lampião lhe possibilitou transformar o medo em
agenciamentos e, assim, criar territórios. Contudo, esses agenciamentos eram
alimentados por Lampião através da sua habilidade de recompensar os valores, como
em um constante exercício de dar e receber. Os proprietários de terra se agenciavam285
com Lampião não só pelo medo de ter suas propriedades violentadas, mas pelo fato de
poder lucrar no comércio ilegal de armas e suprimentos, como também usufruir da
proteção dos cangaceiros para intimidar seus rivais locais. Por sua vez, os cangaceiros
se beneficiavam do apoio logístico desses proprietários em múltiplos sentidos, desde as
aquisições de armas e suprimentos até os tratamentos médicos, como nos primeiros idos
de 1924, quando Lampião passou meses tratando de um grave ferimento no pé nas
propriedades da destacada família Pereira Diniz de Princesa Isabel na Paraíba.
Agora já temos condições de entrar na análise do processo de
territorialização/desterritorialização do bando de Lampião na Paraíba. Iniciaremos em
1923, pois através das leituras dos jornais da época podemos notar que é a partir desse
ano que o bando de Lampião vai concentrar suas ações na fronteira dos Estados da
Paraíba e Pernambuco. Sobretudo entre os anos de 1923-1924, eram comuns notícias
dos cangaceiros do bando de Lampião entre as atuais cidades pernambucanas de Serra
Talhada, Triunfo, e São José de Belmonte, e a cidade paraibana de Princesa Isabel.
Nos anos anteriores, Lampião tinha concentrado suas ações nos Estados de
Pernambuco e Alagoas. Sendo o primeiro a sua terra natal, nascendo e vivendo sua
adolescência no sítio Passagem das Pedras, no atual município de Serra Talhada. Após
se envolver em uma briga com seu vizinho José Alves de Barros, o José Saturnino,
Lampião e seus familiares tiveram que se mudar para a localidade chamada Poço do
Negro, a cerca de 2 km do centro de Nazaré do Pico, atual distrito do município de
Floresta em Pernambuco. Aí se envolveria em novos conflitos, desta vez, com os
moradores de Nazaré que não aceitavam o fato de Lampião e seus dois irmãos, Antônio
e Livino Ferreira, andarem armados na então vila. Novamente a família Ferreira se
desterritorializa, para se reterritorializar no Estado de Alagoas, onde Lampião e seus
dois irmãos entraram no bando de saqueadores chefiado pelo seu tio Antônio Matilde.

285
Por essa não ser a pretensão deste artigo é importante destacar que Lampião se agenciava com sujeitos
de várias camadas sociais, como vaqueiros, pequenos proprietários, padres, familiares, chefes políticos e
membros das forças policiais.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Depois que Matilde deixou o bando, Lampião e seus irmãos entraram para o grupo de
cangaceiros dos irmãos Porcinos, para em seguida, mais especificamente no ano de
1920, entrar para o bando de Sebastião Pereira e Silva, o famoso Sinhô Pereira.
Envolvido na luta secular entre Pereiras e Carvalhos,286 Sinhô Pereira foi um
grande mestre na arte do cangaceirismo para Lampião. Para Chandler (1981):

Não foi só experiência no campo de batalha que Lampião aprendeu com


Sebastião Pereira. Aprendeu também como se comporta um bandido
profissional, principalmente em seu relacionamento com as comunidades
maiores. Foi apresentado a todos os parentes, amigos e protetores de Pereira,
alguns dos quais lhe prestariam muitos favores no futuro. Deve-se levar em
conta que a família de Sebastião Pereira era uma das que tinha mais prestígio
nos sertões de Pernambuco; valia a pena conhecê-la, e também, seus amigos.
É bem provável que o imaturo bandido tenha também aprendido que as
autoridades, incluindo a polícia, nem sempre devem ser consideradas como
inimigos implacáveis. Podiam, também, em certas ocasiões, ser subornadas
(CHANDLER, 1981, p. 51).

Em 1922 Sinhô Pereira deixa o cangaço e vai para o Estado de Goiás em busca
de reconstruir sua vida longe dos conflitos familiares na microrregião do Pajeú
pernambucano. Com isso, Lampião assume a chefia do bando e vai se tornar o
cangaceiro mais afamado do Nordeste. Mesmo Sinhô Pereira estando longe, os seus
ensinamentos serão seguidos e aperfeiçoados por Lampião. Esse último não era de
família tradicional como o seu ex-comandante, mas se destacaria como nenhum outro
cangaceiro no trato com as famílias do mais alto escalão da sociedade sertaneja, se
agenciando com personagens de notória influência seja na política, na economia ou na
religião. Para Chandler (1981), os acordos entre Lampião e a sociedade sertaneja
chegaram ao auge durante o período de 1923 a 1926. Justamente no momento que
Lampião agrupou suas atividades na fronteira entre Paraíba e Pernambuco como
mencionado anteriormente.
Foi no segundo semestre de 1923 que Lampião se instalou, para uma estadia de
diversos meses, na comarca de Princesa Isabel, cidade paraibana que está situada em
uma zona montanhosa, com vegetação espessa e com chuvas regulares. Sua base
principal era a pequena vila de Patos do Irerê, quase na divisa com Pernambuco.

286
Para mais informações entre a briga familiar entre Pereiras e Carvalhos, ver: SOARES, Cristiano
Emerson de Carvalho. Pereiras e Carvalhos: Uma história da espacialização das relações (Serra
Talhada-PE). 2015. Dissertação (mestrado) - Programa de Pós-graduação em História da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte. 2015. 149p.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Segundo Chandler (1981) a escolha se deu, como de costume, por Lampião


dispor ali de um aliado, visto que essa região era comandada pelo influente Coronel
Marçal Florentino Diniz. Um homem bem adestrado na arte de proteger e manter
relações com cangaceiros. Tinha também fortes relações políticas; o mais poderoso
chefe político dos sertões da Paraíba, José Pereira Lima, era seu genro. Zé Pereira, como
era chamado, não só dominava a comarca de Princesa Isabel, mas sua influência se
estendia por uma vasta área da Paraíba e de Pernambuco. Lampião já conhecia esses
dois potentados desde o tempo que fazia parte do bando de Sinhô Pereira e não seria
coincidência esse novo encontro. Em conversas com o escritor Nertan Macêdo no ano
de 1975, Sinhô Pereira relembrava de Zé Pereira como sendo um dos seus parentes mais
ilustres.287
Além disso, foi com Marcolino Pereira Diniz (filho do Coronel Marçal
Florentino Diniz), que Lampião construiu uma sólida relação de amizade. Com relações
como estas, Lampião e seu bando viviam às claras em Princesa. Os cangaceiros, não
temendo a polícia, entravam na cidade e caminhavam livremente pelos bares. Alguns
soldados alojados na cidade ficaram irritados com a tolerância para com os bandidos,
mas não podiam fazer nada. A liderança de Zé Pereira era tal, que na sua comarca, a
polícia (que na maioria dos casos eram nomeados pelo próprio coronel) fazia apenas o
que ele ordenava (CHANDLER, 1981. p. 63).
É bem verdade que a relação de Lampião com Zé Pereira não era tão aberta
como a que articulou com Marcolino. Esse fato pode ser explicado, sobretudo porque
Zé Pereira era uma figura pública e sua ligação com Lampião poderia comprometer os
seus interesses na política paraibana. Seria o ataque dos cangaceiros à cidade de Sousa
no interior da Paraíba, que colocaria em cheque os agenciamentos de Zé Pereira com o
bando de Lampião.
Era início de 1924, após um ataque surpresa das forças pernambucanas, Lampião
saiu gravemente ferido, tendo que passar entre dois a três meses sendo tratado na
fazenda do seu amigo Marcolino. Enquanto isso, o seu bando sob o comando dos seus
dois irmãos (Antônio Ferreira e Livino Ferreira) e do cangaceiro paraibano Francisco
Pereira Dantas (conhecido como Chico Pereira) atacaram a influente cidade de Sousa,
no dia 27 de julho de 1924. Oliveira (2009) aponta para a participação incisiva dos

287
MACÊDO, Nertan. Sinhô Pereira, o comandante de Lampião. Rio de Janeiro: Ed. Artenova, 1975. p.
21.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Pereiras de Princesa Isabel na trama desse ataque, fornecendo homens e armas para
facilitar o êxito dos cangaceiros em Sousa. Em troca, receberia parte do arrecadado no
saque. Em síntese, Lampião não autorizaria a movimentação do seu bando para um
ataque dessa proporção sem o consentimento dos seus aliados.
O sucesso desse ataque acabou sendo prejudicial para Lampião e seus homens,
pois em Sousa, diferentemente das humildes vilas que seu bando costumava saquear,
residiam famílias de prestígio. Por isso que acreditamos que poderia ter sido muito mais
vantajoso para os interesses de Lampião em terras paraibanas se os cangaceiros não
tivessem tido êxito em Sousa. Roubar e violentar sertanejos sem posse não representava
as mesmas consequências se essas ações recaíssem sobre famílias de prestígio
econômico e político.
Os feitos dos cangaceiros em Sousa tiveram como foco principal a tradicional
família Mariz, como também os Gadelhas e Gonçalves, seus rivais na disputa política
municipal. Essa escolha se justifica pelos interesses do cangaceiro Chico Pereira no
ataque. Esse último teve o pai assassinado no ano de 1922 pelos desdobramentos dos
conflitos da política sousense, sendo assim, com esse saque Chico Pereira vislumbrava a
oportunidade de vingar a morte do pai atacando os principais membros da família
Mariz.
Após o ataque a Sousa, o bando de Lampião vai começar ser fortemente
perseguido pelas forças do Governo paraibano. Diante da situação, os Pereiras de
Princesa Isabel aconselharam Lampião a deixar a região, visto que sua segurança não
poderia mais ser garantida. Nesse momento, Zé Pereira assume outra posição neste
jogo. De protetor passou a arregimentar homens (com o patrocínio do Estado da
Paraíba) para combater o bando de Lampião. Uma boa estratégia para continuar
lucrando com a chamada indústria do cangaço e, ao mesmo tempo, provar para os seus
aliados políticos o seu comprometimento com a luta contra o cangaceirismo. Por outro
lado, Lampião vai resistir com sua máquina de guerra nômade queimando e destruindo
algumas propriedades que pertenciam ao coronel Zé Pereira. O cangaceiro e seu bando
entram em uma linha de fuga, num processo de desterritorialização na Paraíba,
buscando novos agenciamentos, indo se reterritorializar no Cariri Cearense em 1926.
Nesse processo desterritorializante Lampião perdeu o primeiro irmão a lhe
acompanhar na sua trajetória no cangaço, Livino Ferreira, no ano de 1925, na localidade
chamada Baixa do Tenório, no município de Flores (PE), em combate com as forças da
Paraíba e de Pernambuco. Nesse momento as ações contra o bando de Lampião em

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

terras paraibanas já estavam sob a chefia de Zé Pereira, que a partir de outubro de 1924
passou a ser financiado pelo seu aliado João Suassuna, Presidente do Estado da Paraíba
entre os anos de 1924-1928. Neste mandato, Zé Pereira usufruiu dos investimentos da
indústria do cangaço, financiando homens para proteger suas propriedades e
aumentando seu arsenal bélico. Podemos dizer com isso, que Zé Pereira e seus jagunços
que antes compunham máquina de guerra devem Estado, tornam-se representantes da
ordem, ao ter em suas fileiras forças para enfrentar as ameaças da maquina de guerra
nômade de Lampião.
Vale lembrar que a primeira biografia de Lampião, escrita pelo jornalista Érico
de Almeida, foi produzida nesse contexto. No ano de 1926, a Imprensa Oficial do
Estado da Paraíba publicou a primeira biografia de Lampião. Segundo Cardoso (1996),
o texto foi encomendado pelo então Presidente João Suassuna e auspiciada pelo
Deputado José Pereira Lima (Zé Pereira, de Princesa Isabel). Essa escrita tinha como
objetivo denegrir a imagem de Lampião e exaltar o combate ao cangaceirismo pelo
Estado, comandado por seus representantes: João Suassuna, no litoral; e Zé Pereira, no
sertão.
O livro de Érico de Almeida apresentou um claro projeto de memória: construir
uma identidade de combate ao cangaceirismo, ressaltando os esforços de João Suassuna,
a quem o autor tratou de ―o anjo do bem‖. Para esse fim, reservou o primeiro capìtulo
do livro, chamado: O bandidismo e a ação do presidente João Suassuna. Como toda
memória é seletiva, permeada pela dialética da lembrança e do esquecimento, o escritor
buscou lembrar que o Governo paraibano não media esforços para combater o
cangaceirismo. Ao mesmo tempo, iniciou uma luta para que as acusações feitas a João
Suassuna e José Pereira Lima, de serem protetores de cangaceiros, caíssem no
esquecimento.
A importância aqui da primeira biografia de Lampião é perceber como sua
escrita está atravessada por alguns interesses que nos apontam para os campos de forças
que constituíram o processo de territorialização/desterritorialização do bando de
Lampião na Paraíba. Não temos pretensões neste artigo de fazer uma análise mais
aprofundada dessa biografia, uma vez que o nosso objetivo ao citá-la foi outro.
Não foi exclusividade do governo paraibano a mudança de postura frente às
atuações do bando de Lampião. Em 1926, Estácio Coimbra assume a presidência de
Pernambuco e nomeia Eurico de Souza Leão para o cargo de chefe de polícia do Estado.
Esse último estipulou como meta primeira, desarticular as redes de proteção que

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Lampião costurou no sertão pernambucano. Eurico de Souza Leão deduziu que a


principal força deste cangaceiro estava na sua capacidade de articular agenciamentos e
operar em redes. Sua luta para pressionar os protetores de Lampião surtiu efeito, e o
processo de desterritorialização do bando que já vinha acontecendo na Paraíba também
ganhou força em Pernambuco.
O apogeu do cangaço lampiônico em terras pernambucanas e paraibanas entrou
em declínio no ano de 1926, a máquina de guerra nômade teria que operar em novas
direções, criar outros agenciamentos, produzir territorialidades outras. Nada melhor para
Lampião do que se reterritorializar no Cariri Cearense com a benção do Padre Cícero do
Juazeiro do Norte, e sob a proteção do renomado coronel Isaías Arruda de Aurora, no
estado do Ceará. Mas esses novos movimentos territorializantes deixaremos para
acompanhar em outros trabalhos!

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659
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

OS CRIMES E OS CONFLITOS AGRÁRIOS EM BARRO – CE:


OS HOMICÍDIOS DO ANO DE 1942 AO ANO DE 1957

FRANCISCA JULIANA DOS SANTOS FELIPE


UFCG
[email protected]

RESUMO

O presente trabalho tem como objetivo analisar as questões agrárias e as disputas por
terras, que são motivações para as práticas de crimes em Barro - CE. Os crimes que
resultam em homicídios no decorrer dos anos vêm aumentando fazendo vítimas e
destruindo famílias, os processos crimes são riquíssimos em informações, a partir de
analise em processos procurarei compreender as motivações que há por trás destes
crimes que resultam em homicídios. Os homicídios no Brasil ao decorrer dos anos o
veem tendo um crescimento assustador no seu índice, o município de Barro – CE
também veem sofrendo com o aumento deste índice, os crimes a ser analisados no
presente trabalho ocorreram do ano de 1942 ao ano de 1957 o intuito deste trabalho é dá
ênfase às motivações que levaram os acusados a pratica-los.
Palavras-chave: Violência, Questões agrarias e Disputas por terras.

INTRODUÇÃO
A pesquisa visa compreender o porquê de se pratica esses crimes e se havia
ligações destes com disputa por terras já que praticamente todos os homicídios desse
período foram cometidos na zona rural e tanto as vítimas como os acusados eram
agricultores e os crimes foram praticados com os objetos de trabalho, os objetivos
específicos é a compreensão e a problematização das práticas de crimes em Barro- CE,
buscar compreender as relações entre crimes e pobreza, e presentar as relações entre os
crimes e as disputas de terras, as fontes utilizadas são os processos crimes do fórum
Normando Alves Feitosa da cidade de Barro – CE.
A partir de pesquisa realizadas em arquivos do poder judiciário tendo como
fontes os processos crimes do fórum Normando Alves Feitosa da cidade de Barro – CE,
foi desenvolvido o presente artigo a intenção deste é analisar os homicídios que
ocorreram na cidade entre o ano de 1942 ao de 1957, até o presente momento não se
tem nenhum estudo relacionado ao tema na cidade, as fontes mais antigas encontradas
no fórum foram processos crime do de 1942, os processos crimes deste período que
foram analisados em sua maioria estão presentes conflitos agrários. Está pesquisa
possui relevância social não apenas para a determina cidade como para outras cidades já

660
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

que o aumento de crimes que resultam em homicídios vem crescendo de forma


exorbitante e afeta a sociedade como um todo, a perspectiva teórica é a história social.
Diariamente vejo em jornais reportagens sobre homicídios que me faz refletir e fazer
alguns questionamentos sobre os homicídios e através desses questionamentos tenho a
intenção de com este trabalho aprofunda em um estudo tendo como tema os crimes e os
conflitos agrários em Barro – Ce.
Os homicídios analisados ocorreram na cidade de Barro – CE entre 1942 a 1957,
este artigo traz como problematização das análises é as motivações que levaram os
acusados a cometer os homicídios e a ligação com alguma disputa de terra entre as
vítimas e os acusados. Com a análise dos crimes é evidente a existência de forte
violência, principalmente em áreas rurais, dando destaque à ―justiça pelas próprias
mãos‖ e ao ―mundo do arbìtrio‖, as práticas criminosas cresceram gerando todo tipo de
violência em todas as cidades, as questões agrárias é um acontecimento que veio junto
com a formação das cidades e mesmo com o crescimento das mesmas ainda fazem parte
da realidade. Com o estudo do processo de formação de cada cidade e até mesmo as
cidades nos dias atuais, é possível se encontraremos em processos crimes ou relatos,
crime de homicídios que foram cometidos tendo como motivação questões agrárias,
assim como também se constata que nos processos crimes a desigualdade social se faça
presente na sociedade, essas duas motivações separadamente ou juntas foram
causadoras de inúmeros conflitos, conflitos estes que resultou em vários homicídios.
As descrições dos crimes deixam transparecer, por um lado, a existência de forte
violência, principalmente em áreas rurais, dando destaque à ―justiça pelas próprias
mãos‖ e ao ―mundo do arbìtrio‖, as práticas criminosas cresceram gerando todo tipo de
violência em todas as cidades. Se pararmos para estudar o processo de formação de cada
cidade e até mesmo as cidades nos dias atuais encontraremos através de processos
crimes ou relatos, crime de homicídios que foram cometidos tendo como intuito a
disputas por terras, de forma geral a desigualdade social sempre esteve presente em toda
a sociedade e esta foi a causadora de inúmeros conflitos, conflitos estes que resultou em
vários homicídios.
A fonte a ser utiliza são os processos criminais, ao trabalharmos com processos
crime, deparamo-nos com um documento dividido em pares bem definidas: queixa,
translado, devassa indagações policiais. Cada parte é um universo a ser desvelado, a
partir das indagações que são feitas. Os processos crimes como fonte histórica possuem
uma riqueza ainda pouco explorada, mas que ganha potencialidade com o avanço das

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

pesquisas que se utilizam da microanálise histórica. Abre-se, assim, um novo campo de


investigação que apresenta condições de se saber as motivações, as armas, o local, como
ocorreu o crime, a classe social de cada um e entre outras informações do homicídio
bem como da vítima e do acusado. É recente o uso da criminalidade como objeto de
estudo pela história, a principal fonte utilizada para a realização desses estudos são os
processos crimes.
Cabe ao pesquisador estabelecer um diálogo cuidadoso e criterioso com essas
fontes, de maneira a extrair delas o máximo possível de informações que permitam a
reconstituição, mesmo que parcial, das questões apontadas pelos documentos, como
bem lembrou Sidney Chalhoub:
[...] ler processos criminais não significa partir em busca ‗do que realmente
se passou ‗, porque esta seria uma expectativa inocente, da mesma forma
como é pura inocência objetar a utilização de processos criminais porque eles
‗mentem ‗. O importante é estar atento às ‗coisas ‗, que se repetem
sistematicamente: versões que se reproduzem muitas vezes, aspectos que
ficam mal escondidos, mentiras ou contradições que aparecem com
frequência (CHALHOUB, 1986, p. 41).

A ANÁLISE DOS PROCESSOS CRIMINAIS

Os homicídios que foram analisados para o presente trabalho ocorreram na


cidade de Barro – CE entre 1942 a 1957, os homicídios analisados foram os homicídios
dolosos, devido ser o maior número de crime encontrado, as descrições dos crimes
deixam transparecer, por um lado, a existência de forte violência, principalmente em
áreas rurais, dando destaque à ―justiça pelas próprias mãos‖ e ao ―mundo do arbìtrio‖,
as práticas criminosas cresceram gerando todo tipo de violência em todas as cidades. Se
pararmos para estudar o processo de formação de cada cidade e até mesmo as cidades
nos dias atuais encontraremos através de processos crimes ou relatos, crime de
homicídios que foram cometidos tendo como intuito a disputas por terras, de forma
geral a desigualdade social sempre esteve presente em toda a sociedade e esta foi a
causadora de inúmeros conflitos, conflitos estes que resultou em vários homicídios.
No ano de 1956 o acusado do homicídio Cícero Gregório assassinou o também
agricultor José Sotero dos Santos e a sua filha Raimunda Edite da Costa todos os
envolvidos residiam na zona rural no sitio Baixio. O acusado já havia dever dito a
vítima para que não mais andasse pela sua propriedade, alguns dias depois a vítima na
companhia da sua filha vinha da roça e passou pela propriedade do acusado que
indignado marchou para a direção da vítima com uma faca em punho a vítima com o

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intuito de se defender atirou com uma espingarda contra o acusado, mas errou o alvo. O
acusado atacou a vítima com golpes de farra e a filha com o intuito de defender o pai
também foi atingida pelo acusado e ambos morreram no local, o acusado fugiu e não foi
encontrado para pagar pelos homicídios que cometeu.
Em 1957 o acusado Jose Constantino de Almeida assassinou o então presidente
do partido do PSD local, ex-vereador e filho do atual prefeito da cidade daquele
momento. Há anos a vítima e o acusado já trocavam ofensas e o acusado acusava a
vítima de lhe agredido e o ameaçado de morte. No dia do homicídio a vítima foi até o
comércio do acusado e ambos trocaram acusações por motivos políticos, a vítima era
filiada ao partido PSD local e o acusado não era filiado a nenhum partido, logo após a
vítima se retirou e se digeriu para o comercio vizinho aonde foi surpreendido pelo
acusado com golpes de uma faca peixeira e depois do crime o acusado fugiu mais
depois foi encontrado e preço.
As descrições dos crimes deixam transparecer, por um lado, a existência de
forte violência, principalmente em áreas rurais, dando destaque à ―justiça pelas próprias
mãos‖ e ao ―mundo do arbìtrio‖, as práticas criminosas cresceram gerando todo tipo de
violência em todas as cidades. A realidade brasileira apresenta uma ampla
conflitualidade e um aumento da violência nos espaços sociais agrários, entre as classes
e os grupos sociais, por meio da análise nos processos fica nítido que esses conflitos não
são entre classes e grupos, mais sim são fatos insolados que na maior parte dos casos
entre pessoas conhecidas e vizinhas de propriedades, um dos maiores problemas dos
crimes que tem por motivação questões agraria, é a forma como se procuram mascara os
crimes, nos processos crimes que foram analisados os crimes corridos não foram
tratados como questões por terras , e sim como discursões por motivos desconhecidos
que finalizou com assassinato, em alguns dos casos é possível se ver a desigualdade
social que há entre os envolvidos.
No ano de 1956 onde o acusado foi Cicero Gregório o mesmo foi acusado de
pratica dois homicídios, ele era agricultor, residia na zona rural do sitio Baixio, o
mesmo veio a assassinar José Sotero dos Santos juntamente com a sua filha Raimunda
Edite da Costa ambos residiam nos mesmo sitio em que o acusado e possuíam a mesma
profissão que o acusado. Todo o desenrolar da cena se deu na propriedade do acusado, e
o mesmo já havia a divertido a vítima que não mais transitasse pela sua propriedade, as
discursões entre ambos eram constantes. Após um dia de trabalho as vítimas ao se
encaminhar para casa adentraram a propriedade de Cicero que ficou enfurecido com a

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presença dos mesmos em sua propriedade, após uma breve discursão Cicero com uma
faca em punho de dirigiu a José com o intuito de ataca-lo, José por sua vez para se
defender pegou a sua espingarda e atirou contra o acusado, mas errou o alvo. Cicero
com a faca que tinha em mãos começou a golpear José, Raimunda ao ver seu pai sendo
golpeado foi ao seu socorro e assim como o mesmo foi golpeada, ambos morreram no
local devido a gravidade dos golpes recebidos, Cicero evadiu do local e nunca foi preso
para responder pelos crimes cometidos.
Em 1951 Daniel Vitorino de Sousa assassinou Nezario Leite da Cruz, ambos
residiam no sítio Riacho dos Cavalos, eram agricultores, Nezario vinha colocando as
suas vacas na propriedade de Vitorino sem a sua permissão, Vitorino já o tinha divertido
que não gostava da sua atitude e pediu para que a vítima não fizesse mais isso, Nezario
continuou a afrontar o acusado, quando Nezario mais uma vez saia da propriedade do
acusado com as suas vacas foi surpreendido por Vitorino que irritado começou a atacar
as vacas com um cacete, e voltou-se para Nezario e o perguntou se o mesmo tinha
achado ruim e estes por sua fez enfurecido se dirigiu contra o acusado, Vitorino que
vinha da roça pegou a sua enxada e começou a golpeá-lo, a vítima veio a óbito no local,
o acusado fugiu e não mais foi encontrado .
Em ambos os processos os crimes foram cometidos na zona rural, tanto a vítima
quanto o acusado agricultores pessoas simples de pouca riqueza e o desenrolar de toa a
trama ocorreu na localidade dos mesmos, o período em que os crimes ocorreram foi em
um momento em que se havia os conflitos por terras, era comum crimes em função da
disputa pela terra. A questão agrária ocupa neste trabalho, a reflexão sobre as formas de
violência presentes no meio rural, a violência e a criminalidade no meio rural essas por
sua vez teve um crescimento de forma acelerada e isso fez com que se impossibilitasse
uma organização e passou a fazer parte da imprensa policial como por exemplo no
jornal da capital e estavam classificados e identificados por ocupações de terra, disputas
por terra e por fim mortes e lesões.
Nesses processos ao qual foram mencionados a cima e em outros também há a
ausência de testemunhas oculares do fato ocorrido, o processo se dá pelos relatos de
testemunhas que fazem parte do ciclo de amizades da vítima e do acusado pessoas que
não estava presente na cena e não sabe o verdadeiro motivo de se cometer o crime e que
começa a levantar empostasses as possíveis motivações dos crimes. No município no
período em que ocorreram esses assassinatos a grande maioria deles eram cometidos
pelos instrumentos de trabalho que era enxada, roçadeira, espingarda, faca e entre

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outros, vários dos crimes cometidos, os acusados não ficaram presos para responder
pelo mesmo em sua maioria fugiram.
Por meio de pesquisas e leituras foi possível constatar que os pesquisadores que
estudam este tema classifica as violências sofridas pelas vítimas no espaço agrário são
classificadas em: A primeira dimensão da violência, derivada do tipo de relação do
homem com a natureza que é a violência que depreda a fauna e o meio ambiente como
um todo, a segunda dimensão da violência agrária, consiste na violência costumeira
dentro desta está inserida a violência entre classes e grupos sociais , a terceira forma de
violência é a violência política está é responsável por expressa uma forma de dominação
entre as classes sociais no campo, exercida principalmente por orientação de mandantes
particulares, a principal característica é o assassinato dos seus opositores o qual se tem
uma impunidade dos mandantes e executores, a quarta forma é a violência simbólica
essa é possível se expressa por diferentes discursos que seria pelo discurso de
colonização e um outro pelo discurso das ameaças de mortes.
Cada delito cometido possuem os resultados processuais diferenciados, devido
isso é necessário se ter cuidado para não generalizar e estipular um padrão social a partir
de relator controversos, devido cada processo em se possuir a sua própria
particularidade, motivação e especificação, não se pode homogeneização a sociedade. A
maioria dos crimes ocorrem devidos problemas de ordem socioeconômica, por mais que
não seja geral, mais é uma realidade que está inserida dentro da criminalidade e mesmo
os crimes analisados sendo de épocas anteriores da atual, estes problemas de ordem
socioeconômica se fazem presente neles, para se realizar os estudos deste faz se
necessário estuda qual a era as questões socioeconômicas da época.
Nos processos analisados está claro a desigualdade social entre vítima e acusado,
por mais que ambos pertençam ao ambiente e pratique os mesmos trabalhos eles se
diferencia nas questões economias onde um é mais abastado financeiramente que o
outro e este que é abastado em sua maioria são os responsáveis pela pratica de
violências e crimes, na análise dos processos é nítido que por mais que os crimes
ocorram no meio rural, com objetos agrícolas onde nos processos estão presentes relatos
onde devido dividas de moradores, discursões causadas por terras, nos processos não
explicita que a motivação dos crimes foram por disputas por terras, sendo assim o
julgamento não é levado para o campo das questões agrárias e sim para outros que em
nada se assemelham ao o anteriormente citado.

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No artigo ―Violência, criminalidade e relações de dominação: do Brasil colônia


ao Brasil contemporâneo‖ foi escrito por Ana Carolina Cademartori e Adriane Roso, a
violência e a criminalidade forma tomadas como objeto a ser analisado nos diferentes
períodos históricos de nosso país, trazendo para a discussão as desigualdades sociais.
Para as autoras quando propomos olhar para a problemática da violência e criminalidade
na sociedade brasileira estamos destacando a importância desta constituição e
organização social do nosso país e que para as mesmas a violência é uma herança
deixada por nossa antiga forma de organização social, assim fica claro que o passado e o
presente a respeito da violência no Brasil se embaralharam e se confundem como já li
em outros trabalhos não se pode se olhar para a violência que ocorreu em determinado
período com o mesmo olhar que temos hoje dá violência, por isso faz se necessário
fazer um afastamento entre a pobreza e a criminalidade, pois mesmo que a pobreza
eleve a criminalidade, este pensamento causa o afastamento entre classes, e assim como
mostra os processos crimes quando o assunto é questões agrárias o principal
responsável são os grandes proprietários.
Mais segundo Conforme Lélis & Rodrigues (2011, p.181), a fala das
testemunhas nos processos crimes é rica em detalhes e serve de estopim para a
apreensão da história de pessoas comuns. Não obstante, é preciso que o historiador não
seja marcado por uma filosofia positivista, como foi descrito no início do trabalho de
uma história feita pelos grandes acontecimentos, e tenha em vista os sujeitos da história,
todos aqueles excluídos do poder, as pessoas comuns, as várias relações que compõe a
sociedade, bem como o cotidiano dos sujeitos, pois segundo Sharpe (1992, p.41) é
importante ―explorar as experiências daqueles homens e mulheres, cuja existência é tão
frequentemente ignorada, tacitamente aceita ou mencionada apenas de passagem na
principal corrente da história‖.
O intuito da pesquisa não é narrar os fatos ocorridos e sim realizar uma analisar
dos crimes e de todo o contextos que os mesmos estavam inseridos, é mostra a
sociedade as verdadeiras motivações que estão relacionadas com esses crimes e que se
esconde por traz deles, a sociedade precisa ver que os crimes não são fatos comum e o
marco que os crimes deixa na sociedade, além de mostrar uma das formas de como se
combater o crime e a violência que principalmente deve-se iniciar com políticas
públicas que possibilitem prevenir a não iniciação e o contato com armas, entre outros
fatores.

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OS CONFLITOS AGRÁRIOS

O Brasil é um dos países com o maior índice de criminalidade do mundo, essa


violência é resultante de vários motivos, principalmente socioeconômicos, o meio rural,
nunca foi pacífico como se pensa é marcado pela desigualdade social rural, o meio rural
também tem as suas formas de violência que o atingem, desde do princípio se há
conflitos causados pela disputa por terra estes conflitos geram violência e passam a dá a
sua parcela de contribuição para o aumento da criminalidade, a desigualdade social faz
vítimas pela fome, pela elevação do índice da criminalidade.
A realidade brasileira apresenta uma ampla conflitualidade e um aumento da
violência nos espaços sociais agrários, entre as classes e os grupos sociais, por meio da
análise nos processos fica nítido que esses conflitos não são entre classes e grupos, mais
sim são fatos insolados que na maior parte dos casos entre pessoas conhecidas e
vizinhas de propriedades, os crimes corridos não foram tratados como questões por
terras , e sim como discursões por motivos desconhecidos que finalizou com
assassinato, na grande maioria dos processos crimes é nítida a desigualdade social que
há entre os envolvidos e que entre a vítima e o acusado sempre há uma relação entre
ambos, seja de amizade, negócios ou arrendatários.
É preciso compreender a violência no campo, a partir de uma análise das
transformações das relações sociais: análise das principais classes que se inicia com os
grupos que são formados pelos grandes proprietários de terra, os pequenos produtores,
trabalhadores rurais, sejam eles arrendatários ou moradores. No decorrer das décadas
houve um processo de formação dessas classes, que foi diferenciado onde a
transformação das classes sociais no espaço social agrário não foi favorável para todas,
onde é visível a diferença socioeconômica entre elas, com estas diferenças que desde de
quando se início as transformações neste meio também com elas vieram ainda mais
forte e violentas as lutas pela terra, essas por sua vez também passaram a ter também
mais vigor das lutas agrárias.
Em todas as regiões brasileiras estão presentes os conflitos pela posse e
propriedade da terra, que foram e são marcados por inúmeros atos violentos que por
inúmeras vezes com fins trágicos os assassinatos, através de estudos é possível afirmar
que se desde do princípio se há ação generalizada contra as formas de luta pela terra das
populações rurais brasileiras. A luta pela terra é relacionada com a violência, foi e é a

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partir da luta pela terra que se gera conflitos e que em sua grande maioria marcados por
crimes e assassinatos, as questões socioeconômicas são fáceis de se perceber dentro das
questões agrárias principalmente devido a seletividade do Estado nos conflitos agrários.
No espaço social agrário se tem grupos dominantes, que são aqueles mais abastados
financeiramente que possuem uma posição de domínio em relação demais grupos são
inferiores a eles, essa posição de domínio sobre outros grupos poder em ponto político,
econômico e social.
O intuito é de colocar em evidência a violência rural, assim permitindo tirar do
esquecimento e do anonimato as barbárie, violências e crimes sofridos pelos grupos
pobres que pertencem ao meio rural e assim a partir daí alimentar as forças sociais
sejam elas sindicato dos trabalhadores, INCRA e entre outros que lutam pela conquista
e efetividade dos diferentes direitos que normatizam a vida social contemporânea.
Dentro destes direitos podemos também inserir os direitos civis e políticos, os direitos
sociais e esses direitos já citados se juntando com o direito ambiental, poderiam ser
capazes de vir a garantir o respeito aos direitos humanos na sociedade brasileira.
A luta pela terra, a violência dos proprietários da terra contra a classe pobre,
juntamente com a parcialidade do Estado no conflito agrário que a trata como a
criminalização da questão agrária, isso tudo leva a indicações que há a continuidade do
processo de dilaceramento da cidadania no campo, mas revelam também o vigor das
lutas agrárias, essas lutas desde do princípio sofrem repressão nos dias atuais mesmo de
forma niveladas as lutas agrárias sofrem repressão de infinitos modos e meios, foi a
partir de 1985 que segundo Prof. Dr. José Vicente Tavares dos Santos que a Reforma
Agrária tem sido uma das respostas políticas do Estado Brasileiro, aos conflitos
agrários.
Dentro deste campo de questões agrárias não se pode esquecer que cada ciência
possui a sua própria definição do conceito de questões agrárias e em cada uma delas ela
pode ser trabalhada de maneira diferente:

O conceito ―questão agrária‖ pode ser trabalhado e interpretado de diversas


formas, de acordo com a ênfase que se quer dar a diferentes aspectos do
estudo da realidade agrária. Na literatura polìtica, o conceito ―questão
agrária‖ sempre esteve mais afeto ao estudo dos problemas que a
concentração da propriedade da terra trazia ao desenvolvimento das forças
produtivas de uma determinada sociedade e sua influência no poder político.
Na Sociologia, o conceito ―questão agrária‖ é utilizado para explicar as
formas como se desenvolvem as relações sociais na organização da produção
agrìcola. Na Geografia, é comum a utilização da expressão ―questão agrária‖
para explicar a forma como as sociedades, como as pessoas vão se

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apropriando da utilização do principal bem da natureza, que é a terra, e como


vai ocorrendo a ocupação humana no território. Na história, o termo ―questão
agrária‖ é usado para ajudar a explicar a evolução da luta polìtica e a luta de
classes para o domínio e o controle dos territórios e da posse da terra. Aqui,
vamos trabalhar o conceito de ―questão agrária‖ como o conjunto de
interpretações e análises da realidade agrária, que procura explicar como se
organiza a posse, a propriedade, o uso e a utilização das terras na sociedade
brasileira.(STÉDILE, J. P. A questão agrária no Brasil: o debate tradicional:
1500-1960. São Paulo: Expressão Popular, 2005. 303p.)

As classes dominantes utilizavam de uma espécie de teatro do poder para intimar


as classes pobres, forçando os a saírem da terra, caso houvesse recusa se fazia uso da
violência. As classes dominantes exerciam o poder pessoal sobre as classes pobres, os
dominantes tinham sobre os pobres uma relação de controle, e quando os trabalhadores
conseguiam encontra uma forma de encerra com essas relações de violências, essas
classes ainda poderiam ser expostas ao trabalho da terra com exploração onde eles não
tinham o controle de seu tempo de trabalho, e ainda sofri intimidações que utilizando de
inúmeros e diferentes mecanismo de terror e de violências como a mais comum surras e
assassinatos. Foi a partir da repressão, exploração e violência sofrida pelas classes
pobres que começou a ser criada a reforma agrária é perceptível que apesar das variadas
formas de violências sofridas pelas classes pobres, elas construíram uma nova forma de
cidadania por meio de diversos modos sejam eles de produzir, de falar e de viver.
As violências sofridas pelas classes pobres do meio rural sejam de agressões e
assassinatos estas que são apresentadas nos processos monstra as formas de
comportamento daquele período em que a violência era a principal forma legitima para
a resolução de todos os conflitos existentes, elas faziam parte da cultura, de uma cultura
da violência que se existia entre indivíduos e grupos sociais.
O debate sobre ―A Questão Agrária no Brasil" vem se intensificando nos últimos
anos, nas questão agrária ainda se tem muito o que resolver, por um período ela ficou
esquecida mais não deixou de existir e os crimes relacionadas a ela também não
acabaram, o que ocorreu é que a mídia por um tempo não esqueceu esse tema pode-se
dizer ele saiu da moda pois como bem sabemos quando se começa a falar de um assunto
todos os veículos de comunicação esquecer dos demais tema e focar apenas em um esse
foi o caso da questão agrária, este tema não se pode esquecer devido fazer parte da vida
diária, principalmente dos os trabalhadores rurais, que devido uma série de conflitos
relacionados a esse tema não se pode permitir que seja silenciada, foram criadas várias
formas com o intuito de silenciar que foi o fechamento de sindicatos, prender e matar
líderes camponeses, além de outra série de violências que é do conhecimento de todos,
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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

todos os que pertenci a os grupos ou movimentos sócias voltados para a questão agrária
no Brasil sofri repreensão, a imprensa não mostra todos os lados da questão agrária e
nem as chacinas sofridas pelos agricultores, por mais que esse seja um assunto que
desde sempre existiu, nestas últimas décadas vem ocorrendo de forma mais violenta e
causando mais vítimas.
O presente trabalho trabalha é com a questão agrária que cominou com morte,
onde esses homicídios tiveram apenas uma vítima, e esse é o principal motivo que nas
pequenas cidades esse tema não se tem uma grande denotação, e é tratado como algo
sem grande importância e não se tem uma estatística relacionada a crimes que
ocorreram devido a questão agrária nas pequenas cidades, mas como se sabe nas
grandes capitais onde se tem crimes relacionados a questão agrária sempre há mais de
uma vítima e se tem uma estatística apenas para crimes relacionados a esse assunto.
No campo a violência sempre esteve presente, os agricultores pequenos
proprietários ou arrendatários são os que mais sofre com essa violência, os crimes que
foram analisados de algum modo se assemelhar sejam pelos grupos sociais a que
pertencem os envolvidos, os objetos utilizados ou até mesmo nas motivações que
mesmo não sendo bem definidas em uma maioria são semelhantes aos demais, é obvio
que não se pode generalizar esses crimes ou dá a eles a mesma motivação, pois como
bem sabemos são pessoas diferentes, em momentos diferentes, que podem ter objetivos
diferentes e em cada um tem seu próprio julgamento que deferi dos demais.

CONCLUSÕES

A violência como objetivo a análise passou a ser adotada em trabalho


recentemente na historiografia brasileira, a história social aborda objeto de pesquisa que
são alheios ao mundo das elites, parte das classes menos favorecidas na sociedade. Este
novo modo de enfocar a história revelou amplos laços sociais e concedeu o papel de
protagonistas da história também para classes inferiores, a história pode ser elaborada
do ponto de vista de uma Macro História ou pode ser elaborada do ponto de vista de
uma Micro História que se aproxima para enxergar de perto o cotidiano, as trajetórias
individuais, as práticas que só são percebidas quando é examinado um determinado tipo
de documentação em detalhe (por exemplo os inquéritos policiais, os documentos da
Inquisição, mas também determinadas produções culturais do âmbito popular onde

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

transpareçam elementos da vida cotidiana, das relações familiares, e assim por diante) a
pesquisa seguirá este ponto.
O homicídio tem a primazia entre os crimes mais graves, através de pesquisa é
possível se constata que o homicídio não é apenas o ato de tirara a vida do outro e sim
que por trás do ocorrido se tem uma história, se tem motivações e o principal a qual
meio social cada uma das partes pertenci, através dos estudos dos homicídios é possível
conhecer os valores e a cultura de determinada comunidade, é importante entendemos o
homicídio como um problema social e histórico da sociedade e procurar ver este tipo de
crime como práticas culturais de uma sociedade a parti da sua relação com os valores.
A realidade brasileira apresenta uma ampla conflitualidade e um aumento da
violência nos espaços sociais agrários, a partir do que foi apresentado, concluímos que
na cidade do Barro – Ce é vítima dessa violência, os conflitos são entre classes e
grupos, é certo que não se pode classificar. A sociedade como um todo está sempre
sofrendo mudanças, mas existi fato que mesmo que com o decorrer dos anos não deixa
de existir, homicídio é um ocorrido que sempre existiu desde o início da formação da
sociedade, só que por um certo tempo não foi objeto de estudo da história.
A tenção foi deixar claro a desigualdade social que há entre vítima e acusado,
forma geral a desigualdade social sempre esteve presente em toda a sociedade e esta foi
a causadora de inúmeros conflitos, conflitos estes que resultou em vários homicídios, a
realidade brasileira apresenta uma ampla conflitualidade e um aumento da violência nos
espaços sociais agrários, os conflitos não são entre classes e grupos, de as motivações
são questões agraria.
No final de tudo o que se objetiva não é ―abraças o mundo‖ com a pesquisa, mas
dar um pontapé inicial para o tema que é realidade do mundo em que vivemos que a
sociedade como um todo é afetada, é ver o homicídio além do fim da vida de alguém e
sim analisar o que se há interno deste e como esse meio em que vivemos influência a
prática deste crime.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

COTIDIANO, TRABALHO E NOÇÕES DE COMUNIDADE:


TRABALHADORES RURAIS DE NAZARÉ DA MATA NO CONTEXTO DO
GOLPE CIVIL-MILITAR DE 1964

ADEMIR BEZERRA DE MELO JUNIOR


UFPB
[email protected]

RESUMO

Refletindo acerca do cotidiano dos trabalhadores rurais de Nazaré da Mata no contexto


do Golpe Civil-Militar de 1964, este trabalho tem como objetivo discutir as possíveis
noções de comunidade que emergiram da vivencia dos homens e mulheres do campo na
luta pela conquista de melhores condições de trabalho e vida, e que acabaram por
influenciar tanto as formas dessas lutas como as instituições que eventualmente dela
resultaram, assim como refletir de que maneira a classe patronal e as forças de repressão
do Regime Civil-Militar reagiram a emergência de tais lutas, ideias e instituições.
Palavras-Chave: Trabalhadores Rurais; Cotidiano; Comunidade; Regime Civil-Militar.

UMA BREVE INTRODUÇÃO: ABORDAGEM PROPOSTA PARA A ANÁLISE


E CARACTERIZAÇÃO DO MUNICÍPIO DE NAZARÉ DA MATA

Este trabalho tem como objeto as relações de trabalho em Nazaré da Mata no


contexto do Golpe Civil-Militar de 1964. A abordagem proposta para a análise deste
objeto tem como elemento central a maneira como, no cotidiano dos trabalhadores
rurais de Nazaré da Mata, que não se esgota apenas na intensa exploração desses
trabalhadores, mas abarca também as lutas por melhores condições de trabalho e de
vida, além de outros elementos, emergiram noções de comunidade, revelando uma
trama de interesses comuns entre os próprios trabalhadores, que irão se materializar em
instituições, como sindicatos e as Ligas Camponesas, e se expressar, dentre outras
formas, no recurso à Justiça do Trabalho. Outro ponto importante da análise consiste na
percepção que os patrões e as forças do Regime Civil-Militar tiveram acerca dessas
ideias e movimentos, agindo de diversas maneira para constrange-los, recorrendo por
vezes a meios violentos a fim de intimidar os trabalhadores.
Historicamente voltado à cultura da cana-de-açúcar, o Município de Nazaré da Mata
está situado na região fisiográfica da Mata Pernambucana, e possui uma área de

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aproximadamente 130 Km², 288 distando 64 quilômetros da capital, Recife. No século


XX, a monocultura da cana domina quase todas os espaços cultivados do município
trazendo, com reconhecimento das próprias autoridades governamentais, os problemas
característicos do modelo de organização social da produção agrícola denominado
―plantation‖,289 alguns dos quais ainda serão objeto desta exposição, enquanto
elementos centrais para a compreensão da forma em que se desenvolveram as relações
de trabalho neste município.290

ELEMENTOS ACERCA DOS CONCEITOS DE COTIDIANO E


COMUNIDADE

No que diz respeito à noção de Comunidade utilizada neste trabalho,


acreditamos que as contribuições de E. P. Thompson oferecem um valioso instrumento
de análise. Para o historiador inglês, os elementos que envolvem o desenvolvimento da
noção de comunidade estão ligados não apenas a elementos materiais ou geográficos,
como a localização de um determinado número de pessoas num espaço delimitado, mas
envolve sobretudo elementos culturais, que caracterizam as relações entre indivíduos
que em determinado momento passam a se ver integrantes de uma comunidade,
sentimento que é reforçado por características peculiares, como modos de falar,
costumes comuns e complexas noções morais. Tais reflexões aparecem no conjunto da
obra de Thompson, notadamente em seus livros A Formação da Classe Operária
Inglesa291 e Costumes em Comum.292
Na primeira obra, o historiador procura demonstrar que a constituição da classe
operária inglesa, com suas noções particulares de justiça, formas de organização e
demandas políticas, não foi o simples resultado do choque de trabalhadores manuais do

288
Informação consultada no site institucional do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística-IBGE:
https://ww2.ibge.gov.br/home/geociencias/areaterritorial/area.php?nome=Nazar%E9+da+Mata&codigo=
&submit.x=0&submit.y=0, Acesso em: 15 de setembro de 2017.
289
Sobre o Sistema de Plantação, ou, no original inglês ―Plantation”, ver: WOLF, Eric R.; MINZT,
Sidney W. Fazendas e Plantações na Meso-América e nas Antilhas. IN: MINTZ. Sidney W. O poder
Amargo do Açúcar: Produtores Escravizados, Consumidores Proletarizados. Organização e tradução
Christine Rufino Dabat. 2. ed. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2010.
290
PERNAMBUCO. Secretaria de Planejamento. Fundação de Informações para o desenvolvimento de
Pernambuco-FIDEPE. Série Monografias Municipais: Nazaré da Mata. Recife, 1982.
291
THOMPSON, E. P. A Formação da Classe Operária Inglesa I: A Árvore da Liberdade. Tradução de
Denise Bottmann, 6. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2011.
292
THOMPSON, E. P. Costumes em Comum. Tradução de Rosaura Eichemberg. 8ª reimp. São Paulo:
Companhia das Letras, 2015.

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período pré-industrial com a nova realidade do sistema fabril, mas tal constituição deve
ser compreendida como um fazer-se, em que os próprios indivíduos são agentes que não
mantém apenas uma relação reativa com sua realidade história, mas que sua ação é
formada de modo complexo tanto pelas alternativas possíveis em cada momento, como
pela bagagem cultural que tal indivíduo ou conjunto de indivíduos traz consigo. Daí a
importância central do conceito de Experiência na obra de Thompson, conceito que, ao
nosso ver, se refere a toda a bagagem mobilizável por grupos e indivíduos na avaliação
das opções postas pela realidade histórica e, por conseguinte, na decisão acerca de qual
rumo seguir em cada momento. Desse modo, os diversos movimentos realizados pelos
trabalhadores na Inglaterra nos anos mais duros da Revolução Industrial não podem ser
compreendidos como simples atos de rebeldia de homens e mulheres incapazes de
valorizar o progresso ou reconhecer sua ―verdadeira‖ consciência, sendo mais
satisfatoriamente compreendidos se reconhecermos ―o sentimento de perda de toda
coesão comunitária‖ que esses homens e mulheres compartilhavam, elemento presente
nas palavras de ordens dos trabalhadores, e que irá se expressar nas suas formas de
organização e em seu programa político. (2012, p.437)
Quanto ao conceito de Cotidiano, serão utilizadas as contribuições de Lukács e
Agnes Heller. O Filósofo húngaro, naquilo que considerava ser uma reconstituição
fundamental do pensamento de Marx e, por essa via, do marxismo, põe a questão do Ser
Social no centro de suas reflexões, naquela que será sua última obra e, para alguns, seu
maior legado filosófico. É assim que na Ontologia do Ser Social293 o cotidiano terá um
lugar de destaque, pois, para o autor, é na vida cotidiana que os elementos mais
importantes da reprodução do ser humano, sejam do homem individual ou do conjunto
da sociedade, emergem e sempre voltam a desembocar. Para Lukács, ―vida cotidiana,
ciência e religião (teologia incluída) de uma época formam um complexo
interdependente, sem dúvida frequentemente contraditório, cuja unidade muitas vezes
permanece inconsciente‖. Nesta ligação de caráter relacional entre esses três elementos
da vida social, cabe ao ―prosaico e terreno senso do cotidiano, alimentado pela práxis
diária, (...) de quando em quando constituir um saudável contrapeso aos modos de ver
estranhados da realidade das esferas ―superiores‖.‖ Desse modo, filosofia, ciência,
religião etc., ―não podem ignorar essas exigências da vida cotidiana.‖ (2012, p.30-1).

293
LUKÁCS, György. Para uma Ontologia do Ser Social I. Tradução de Carlos Nelson Coutinho,
Mário Duayer e Nélio Schneider. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2012.

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Por sua vez, Agnes Heller, bastante influenciada pela obra de Lukács, concebe a
vida cotidiana como a vida de todo homem, na sua completude, a vida do homem
inteiro. Marcada pela heterogeneidade – pois as diversas atividades que nela realizamos
não são iguais –, e pela hierarquia, embora tal hierarquia não seja imutável, mas
histórica, de maneira que aquilo que em determinado momento assume uma posição
central pode tornar-se secundário em outro contexto. Dessa maneira, ―o homem da
cotidianidade é atuante e fruidor, ativo e receptivo‖ muito embora ―não tenha nem
tempo nem possibilidade de se absorver inteiramente em nenhum desses aspectos; por
isso, não pode aguça-los em toda sua intensidade.‖. (2008, p.31) Ambos os autores no
ajudam a perceber a vida cotidiana não apenas como algo trivial ou desimportante, mas
salientam sua riqueza e complexidade, possibilitando a ampliação de nossa abordagem.
Veremos como as vivencias da vida cotidiana dos trabalhadores moldaram suas lutas e
marcaram tanto a forma de suas organizações quanto seu programa político.

COTIDIANO DOS TRABALHADORES RURAIS DE NAZARÉ DA MATA E AS


LUTAS POR MELHORES CONDIÇÕES DE TRABALHO E DE VIDA

Em pontos fundamentais como tipo, intensidade e duração da jornada diária, o


trabalho na cana em Nazaré da Mata se insere no contexto mais amplo da zona
canavieira pernambucana, onde a homogeneidade da exploração da força de trabalho é
um traço reconhecido pela bibliografia. A estrutura fundiária da região, resultado do
processo de colonização, caracteriza-se pela concentração das terras nas mãos de
algumas poucas famílias, fato que traz como resultado mais imediato o controle quase
total da força de trabalho por parte dos proprietários, que têm a sua disposição uma
oferta de mão de obra em grande quantidade e a baixo custo, uma vez que a falta de
alternativas a que estão condenados os trabalhadores não lhes deixa alternativa à lavoura
canavieira, sejam nas atividades mais diretamente ligadas ao corte da cana ou em outras
constitutivas do processo produtivo do açúcar. Dessa maneira, a permanência de
relações que remontam ao período colonial e escravista é uma marca da região, seja na
forma da já referia estrutura fundiária seja no que diz respeito às relações de trabalho
vigentes no período pós-escravidão. (DABAT, 2012, p.23)
Ao lado dessa coerção, proporcionada pela ausência de alternativas num
contexto em que os proprietários eram donos de todos os meios de subsistência, os
trabalhadores ainda se viam submetidos à violência direta, e mesmo ao risco de morte.

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Em sua obra, Dabat vai questionar como a ―onipresença da violência patronal‖ aparece
nos depoimentos de trabalhadores, ―seja ela efetiva ou potencial‖. A autora nos mostra,
dentre outros casos, a comum atitude dos proprietários de invadir a casa de seus
trabalhadores, a qualquer hora, pessoalmente ou enviando seus prepostos, com a
finalidade de aterrorizá-los para manter a ―ordem‖. Um dos aspectos mais brutais de tal
violência, o assassinato de trabalhadores, eram muitas vezes motivados por ―conflito de
interesse‖, quando os proprietários se negavam a pagar os vencimentos a que os
trabalhadores tinham direito, e estes não relutavam em reivindicá-los. A indicação é
clara, na zona canavieira de Pernambuco ―a violência patronal‖ deve ser compreendida
como um ―fator econômico‖. Veremos como o caso do trabalhador rural Manoel Biró
da Silva, ocorrido em Nazaré da Mata no ano de 1969, auge do regime de exceção,
explicita os traços mais brutais dessas relações de trabalhos, ainda mais agudizados nos
anos de chumbo. (2012, pp. 732-734)

Os trabalhadores rurais, por seu turno, não deixaram de reagir a tal


situação. No caso de Pernambuco, e no que diz respeito mais propriamente à zona
canavieira, as décadas de 50 e 60 foram de intensas lutas e de construção de
movimentos reivindicatórios que fizeram as elites latifundiárias temerem uma
insurreição dos trabalhadores rurais. A recriação das Ligas Camponesas, que
ressurgiram com o nome de Sociedade Agrícola dos Plantadores e Pecuaristas de
Pernambuco (SAPPP), fundada em 1955, em Vitória de Santo Antão, é um dos
exemplos desse momento. Nesse mesmo ano, a participação das Ligas no Congresso de
Salvação do Nordeste foi bastante destacada, sobretudo a ênfase dada à questão da
reforma agrária. Também em 1955, no dia 03 de setembro, realizou-se o 1º Congresso
Camponês de Pernambuco, outra iniciativa das Ligas. (ABREU E LIMA, 2012, pp. 42-
43) O congresso reuniu 3.000 trabalhadores rurais e, nas palavras de Dabat, inaugurou
―uma nova era‖, onde a situação dos trabalhadores era reconhecida como uma questão
social que já não podia ser ignorada por parte do governo, e a reforma agrária passou a
ser discutida abertamente. (2012, p. 122-26) Entre 1955, ano de seu ressurgimento, e
1961, as Ligas reuniam 10 mil trabalhadores rurais em 40 sedes municipais espalhadas
pelo estado de Pernambuco, sendo uma delas a de Nazaré da Mata. (ABREU E LIMA,
2012, p.44-45)

Em 1958 foi realizado o 1º Congresso de Lavradores, Trabalhadores Agrícolas e


Pescadores de Pernambuco. Na ocasião, uma multidão de trabalhadores marchou até a

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Assembleia Legislativa para acompanhar as discussões sobre a Reforma Agrária.


(DABAT, 2012, p. 122) Já em 1959, após várias mobilizações que envolveram a
realização de congressos, encontros e passeatas, os trabalhadores rurais, unificados nas
ligas, conquistam a desapropriação das terras do Engenho Galileia, situado na cidade de
Vitória de Santo Antão. A mobilização envolveu ―setores progressistas e liberais do
Recife, que denunciavam, na imprensa ou na Assembleia Legislativa, a repressão‖ aos
moradores do engenho. (ABREU E LIMA, 2012, p. 43)

Em abril de 1960 realizou-se o I Congresso Sindical dos Trabalhadores do Norte


e Nordeste. Adiantou-se ali a discussão sobre a sindicalização. Já em 1961, no dia 20 de
maio, ―foi lançado o manifesto de convocação para o I Congresso Nacional dos
Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil‖, sob iniciativa da União dos
Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil – ULTAB. (DABAT, 2012, p. 123)

A sindicalização teve papel destacado nesse contexto de luta dos trabalhadores


rurais. Regulamentada de maneira tardia em relação ao que foi vivenciado pelos
trabalhadores urbanos, a sindicalização rural foi impossibilitada pelas ações do ―Bloco
Agrário‖, que agia no sentido de impedir às organizações dos trabalhadores, e pela
consequente ausência de legislação específica. Tal situação só será revolvida em 1963,
com a promulgação do Estatuto do Trabalhador Rural, que traz, no seu Tìtulo IV, ―Da
Organização Sindical‖, o texto especìfico que trata da regulamentação dos sindicatos
rurais. (DABAT, 2012, p.112) Tais sindicatos foram sumamente importantes na luta dos
trabalhadores rurais, seja na assistência de trabalhadores desempregados ou impedidos
de trabalhar, seja na defesa destes contra a violência patronal, sendo, de diversas
formas, um dos elementos responsáveis pela modernização das relações de trabalho no
campo, ajudando a romper com os padrões seculares de dominação. O Sindicato dos
Trabalhadores Rurais de Nazaré da Mata foi fundado em novembro de 1961, sendo
organizado pelos trabalhadores com o auxílio do Serviço de Orientação Rural de
Pernambuco – SORPE –, organismo criado por setores da igreja católica que buscavam
limitar a influência do Partido Comunista Brasileiro, que também atuava na zona
canavieira na organização dos trabalhadores e disputava a direção dos movimentos.
(ABREU E LIMA, 2012, p. 56)

Buscamos aqui avaliar de que maneira determinadas noções de comunidades,


advindos das vivencias cotidianas de trabalhadores rurais, dentro e fora do trabalho,
acabaram por moldar as lutas e instituições que emergiram dessas próprias vivências.
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Como vimos ao discutir brevemente as contribuições de Thompson, a noção de


comunidade envolve o reconhecimento de determinadas características peculiares ao
grupo, como modos de falar, noções morais etc. Em diversos momentos essa
valorização do modo de ser do homem do campo, as vezes por meio da imagem do
―matuto‖, é valorizado nos discursos dos trabalhadores rurais. Acrescente-se a isso que,
ao contribuir para moldar movimentos reivindicatórios, a noção de comunidade pode
reforçar seu senso de unidade ao reconhecer um inimigo comum, contra o qual todos
devem se unir na luta. Tais características também podem ser notadas na fala dos
trabalhadores rurais, sobretudo quando rememoram os grandes momentos de suas
organizações, como grandes manifestações ou a conquista de determinada demanda.
Numa entrevista concedida à historiadora Maria do Socorro de Abreu e Lima, inserida
numa obra já citada no presente trabalho, o trabalhador e dirigente camponês Amaro
Luís de Carvalho, rememora o grande acontecimento que eram as assembleias sindicais,

―eram verdadeiras apoteoses. As denúncias contra os crimes dos senhores de


engenho, dos fornecedores de cana e usineiros eram levadas às assembleias e
às praças públicas. Os reacionários locais eram denunciados. Os policiais
títeres eram apontados e surrados pelos camponeses. Os agentes secretos do
exército, como aconteceu no engenho Oiteirão eram presos e desarmados. Os
‗cortejacas‘ e ‗chaleiras‘ eram postos para fora dos sindicatos. Os
administradores comprometidos, desarmados e presos eram trazidos até os
sindicatos. Os vigias surrados e desarmados. Os camponeses medrosos foram
filiados à força aos Sindicatos. Em cada cidade, os comerciantes tidos como
‗tubarões‘ eram denunciados na assembleia sindical. As delegacias de polìcia
foram abjuradas pelos camponeses. Todas as questões eram levadas ao
sindicato, não mais a polícia, tamanho era o respeito que tinham pela
organização. As autoridades constituídas, para os camponeses, não tinham
nenhum valor, todo poder emanava do sindicato.‖ (2012, p. 49.)

Sem pretensão de construir uma imagem idílica, Amaro nos revela como as discussões
nas assembleias demonstram não apenas uma consciência clara dos trabalhadores acerca
das violências que sofriam, uma noção daquilo que era ou não aceitável de acordo com
suas percepções de certo e errado, condenando tanto a violência patronal como os
comerciantes que abusavam no preço das mercadorias. O sindicato aparece, desse
modo, não apenas como uma organização cujo fim é reivindicar melhores condições de
trabalho, mas um espaço onde esses homens e mulheres podem discutir elementos mais
variados das suas vivencias cotidianas, dispensando inclusive o recurso aos aparelhos
estatais para resolução de querelas, de maneira que a violência, tanto sentida por eles em
sua relação com os patrões, podia ser um instrumento agora mobilizável em seu favor,
contra aqueles que praticassem atitudes que consideravam incorretas, pois ela era parte

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de suas vivências diárias, cotidianas, as quais comparecem sempre que têm de enfrentar
as questões apresentadas em cada momento.

Mas o princípio da sindicalização não foi tarefa fácil para os trabalhadores. O


temor das consequências que a associação ao sindicato poderia trazer frente aos
proprietários ou até mesmo a desconfiança nos resultados das lutas dificultaram e muito
os primeiros passos dos sindicatos rurais. (ABREU E LIMA, 2012, p. 56) Mas
superadas as dificuldades iniciais, os trabalhadores conseguiram ampliar sua
organização a fim de unificar a luta a nível estadual, constituindo uma Federação capaz
de agregar todos os sindicatos rurais em torno de uma pauta comum. Em um manifesto
publicado no jornal Última Hora, no dia 30 de novembro de 1963, e assinado por alguns
líderes sindicais, podemos perceber a ampliação da consciência por parte dos
trabalhadores rurais, que ao utilizarem o termo ―assalariados agrìcolas‖ passavam a
reconhecer e congregar um número muito maior de trabalhadores em torno de interesses
comuns:

A unidade conquistada na luta (...) haveria de nos levar à unidade no terreno


da organização. Federação e sindicatos não federados revolveram convocar,
para dentro de 30 dias, reunião em que será fundada, com esse caráter
unitário, a Federação dos Trabalhadores na Lavoura de Pernambuco, órgão
dos assalariados agrícolas de nosso Estado. (ABREU E LIMA, 2012, p.76)

Tais possibilidades abertas por organizações como o sindicato rural e a


Federação não poderiam deixar de despertar o temor dos proprietários e das forças da
repressão, como também ocorria no caso das Ligas Camponesas. Como observa Silva, é
no contexto da ditadura que a Ideologia de Segurança Nacional elaborada pela Escola
Superior de Guerra irá dominar em primeiro lugar os órgãos de segurança, a partir do
que irá propagando-se para toda a sociedade. (2014, p. 32) Dessa maneira, o Golpe
Civil-Militar aparece como um grande movimento que congregava os interesses das
elites nacionais e que, no que diz respeito às relações de trabalho na zona canavieira, foi
utilizado pelos proprietários como elemento de coerção com o objetivo de minar as
conquistas e avanços dos trabalhadores rurais, valendo-se de meios como a intervenção
nos sindicatos rurais e a violência direta contra trabalhadores que, ao reivindicarem seus
direitos, eram classificados como subversivos, entrando na engrenagem informacional e
repressiva que caracterizou o regime de exceção.

Observando agora o caso de Manoel Biró da Silva, trabalhador rural e morador


de engenho, tentaremos perceber como todos esses elementos comparecem aqui,

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ajudando a fornecer um quadro das relações de trabalho em Nazaré da Mata nos anos do
Regime Civil-Militar. Trata-se de uma querela trabalhista, em que o patrão de Manoel
Biró, proprietário do engenho Diamante, onde o mesmo trabalhava e residia, aciona a
Justiça do Trabalho a fim de conseguir a rescisão do contrato de trabalho por justa
causa, alegando que o trabalhador havia cometido falta grave ao ausentar-se do trabalho
por tempo superior ao permitido em lei, sem apresentar justificativa.

Devemos explicar brevemente que a própria existência deste documento, na


realidade um Inquérito,294 nomenclatura que recebe, na Justiça do Trabalho, o processo
que tem por finalidade apurar o cometimento de falta grave por parte do trabalhador,
justificando sua demissão por justa causa e, por conseguinte, dispensando o empregador
do pagamento de qualquer ônus pela eventual extinção da relação de trabalho, é um dos
mais importantes frutos da luta dos trabalhadores rurais. Tal conquista foi garantida pela
promulgação do Estatuto do Trabalhador Rural,295 lei sancionada em 1963, cujo efeito
prático era estender para os trabalhadores rurais as garantias previstas pela
Consolidação das Leis do Trabalho, já asseguradas aos trabalhadores urbanos desde os
primeiros anos da década de 1940. Dessa maneira, após a promulgação do Estatuto,
estava vedada ao empregador a possibilidade de demitir seus trabalhadores de acordo
com sua mera vontade, sem nenhum ônus ou contrapartida. A seção ―Do contrato
individual do Trabalho‖ do referido Estatuto, em seu capítulo IV, discorria sobre a
estabilidade do trabalhador rural e determinava que ―o trabalhador rural que conte mais
de dez anos de serviço efetivo no mesmo estabelecimento, não poderá ser despedido
senão por motivo de falta grave ou circunstância de força maior art. 82 e 100.
devidamente comprovadas.‖ (Estatuto do Trabalhador Rural, Art. 94) Definindo o
Tempo de Serviço como ―todo aquele em que empregado esteja à disposição do
empregador‖. (Estatuto do Trabalhador rural, Art. 95, § único)

Vimos anteriormente como o caráter concentrado da estrutura fundiária, aliado


às permanências das relações de trabalho de modelo escravista caracterizam as relações
de trabalho na zona canavieira de Pernambuco. Nesse contexto, podemos perceber a
importância dessa legislação. A estabilidade impedia que os trabalhadores fossem
dispensados ao bel prazer do senhor de engenho, limitando um importante elemento
indireto de coerção do trabalhador rural. Outro lado importante a ser percebido na
294
Processo Trabalhista da Junta de Conciliação e Julgamento de Nazaré da Mata. Processo: 02/96.
295
Para visualizar a versão digital do Estatuto do Trabalhador Rural, conferir o seguinte endereço:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1950-1969/L4214impressao.htm

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

abordagem dessa legislação está diretamente ligado à relação de morada, outro elemento
importante para a compreensão do caso de Manoel Biró e das relações de trabalho na
zona canavieira pernambucana. Também ligada ao passado escravista, a relação de
morada caracteriza-se pela cessão aos trabalhadores de um determinado lote de terra
onde seria permitido aos mesmos fixar residência e eventualmente plantar culturas de
subsistência, enquanto durasse sua relação de trabalho com o senhor de engenho. Tal
estratégia era adotada pelos proprietários com o objetivo de fixar a mão de obra nos
engenhos, a fim de garantir seu fornecimento em quantidade suficiente e a baixo preço.
Os trabalhadores, por seu turno, na ausência de alternativas, assumiam a relação de
morada e submetiam-se às condições impostas pelo senhor. (DABAT, 2012, pp. 91-2)
Desse modo, para os trabalhadores que viviam na condição de ‗morador‘, a demissão
era ainda mais penosa, pois significaria a perda da própria residência. Nesses termos, a
importância de uma legislação que assegurasse a estabilidade dos trabalhadores rurais
fica ainda mais clara, seja pelas garantias que oferecia aos trabalhadores, seja pelo golpe
que infligia no modelo tradicional de dominação dos proprietários.

É nesse contexto que, no dia 26 de agosto de 1969, João da Costa Azevedo,


proprietário do Engenho Diamante, situado no município de Nazaré da Mata, ingressa
com o referido Inquérito alegando que seu ―empregado estável (...), após rixa com a
296
Guarnição Militar sediada em Nazaré da Mata, desapareceu do serviço‖,
ausentando-se sem comunicar aos responsáveis do engenho, tendo ainda dito a
conhecidos que não voltaria mais a trabalhar. Assim tem início o Inquérito nº 02/69 da
Junta de Conciliação e Julgamento de Nazaré da Mata. Ao logo deste processo serão
colhidos vários depoimentos, por meio dos quais podemos perceber vários elementos
presentes no cotidiano dos trabalhadores rurais de Nazaré da Mata neste período,
ampliando nossa compreensão sobre o papel que cada um deles desempenha no âmbito
dessas relações.

Já no depoimento de Manoel, na primeira audiência de instrução, as motivações


que o levaram a ausentar-se do trabalho são esclarecidas. Conta o trabalhador que no dia
19 de junho, após regressar do trabalho, havia almoçado quando chegaram em sua casa
―três policiais‖, que perguntaram o seu nome. Após ele se identificar, afirmaram ― ter
conhecimento que ele (...) era possuidor de um revolver e uma espingarda de cartucho‖.
Em seguida, um dos policiais teria comentado com os outros dizendo ―que nem todas as

296
Processo Trabalhista da Junta de Conciliação e Julgamento de Nazaré da Mata. Processo: 02/96, p. 09.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

ordens que se recebem podem ser cumpridas‖, ordenando ainda que Manoel os
acompanhasse até o carro da guarnição, salientando que se o trabalhador tentasse correr
ele atiraria. Conta ainda Manoel que foi levado pelos policiais, que conduziram o
veículo para dentro dos canaviais, enquanto lhes faziam perguntas. Em primeiro lugar,
queriam saber se outros trabalhadores possuíam armas na propriedade, afirmando que se
ele não respondesse ―seria pior para a sua pessoa‖. Manoel conta que os policiais ainda
lhe questionaram se ―os outros (trabalhadores) eram agitadores como ele?‖, ao que o
trabalhador respondeu que ―assim sendo todos nós seriam agitadores, porque cobra o
salário do dia.‖ Manoel relata então que indicou um trabalhador aos policiais, o qual
possuía uma arma. A viatura teria então tomado o rumo da residência desse trabalhador,
chamado por Manoel de ―O velho‖. Lá os policias questionaram o ―Velho‖ a fim de
saber se o mesmo possuía alguma arma. Manoel não esclarece em seu relato qual a
resposta dada aos policiais pelo trabalhador, diz apenas que em seguida os dois foram
postos dentro do carro, e que na estrada um dos policiais teria revelado a Manoel que
havia recebido a missão de mata-lo na Secretaria do 4º Exercito. Após essa afirmação, o
carro teria sido conduzido para o canavial, sendo Manoel espancado pelos policiais que,
antes de abandonarem o trabalhador ferido, ―lhe recomendaram para nada dizer a
ninguém nem mesmo no sindicato‖, e que se assim não fosse ―ele voltaria por uma
madrugada, o enforcaria e o colocaria em um saco e que o enterraria na beira do rio, no
massapê‖. Manoel ainda afirma que ―acha que o espancamento partiu de seu patrão‖ e
que ―outros trabalhadores (do engenho) receberam a promessa de levar o que ele
levou‖.297

Esse relato brutal revela um caso que não pode ser considerado uma exceção no
contexto por nós analisado. Basta apenas refletirmos como ele revela elementos
importantes no que diz respeito a utilização do aparelho repressivo dos anos de chumbo
na intimidação dos trabalhadores, de suas formas de luta e instituições. Em tal contexto,
o próprio ato de ir à Justiça do Trabalho reclamar algum direito é motivo para todo tipo
de enquadramento dos trabalhadores enquanto ―agitadores‖, justificando atos de
violência como vimos acima. Ao longo dos depoimentos, ficamos sabendo que Manoel
havia entrado em conflito com o administrador do engenho Diamante no dia anterior ao
seu espancamento. Manoel levou o caso ao Sindicato que em seguida defendeu os
interesses do trabalhador perante a Justiça. Tal informação é comprovada no

297
Ibidem, p. 08-09

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

depoimento do comissário que recebeu a queixa do sindicato. Romildo Barbosa


Cordeiro conta que ―recebeu uma queixa do Sindicato referente ao incidente entre o
Requerido neste processo e o administrador do Engenho Diamante; que a queixa se
referia a ameaças do feitor contra o Requerido‖, e afirma ainda ter conhecimento que ―o
incidente entre o Requerido e a Polìcia foi por ele provado‖. Afirma ainda que após
registrar a ocorrência encaminhou o trabalhador aos cuidados médicos.298 Os ferimentos
provocados pelo espancamento acarretaram uma internação de 21 dias ao trabalhador,
informação confirmada pelo atestado emitido pelo médico responsável pelos cuidados
de Manoel.299

Os depoimentos registrados no processo parecem indicar que Manoel sustentava


a fama de ser um trabalhador disposto a sempre reclamar seus direitos, atraindo para si a
fama de ―baderneiro‖ e ―mau elemento‖. No depoimentos do trabalhador Luiz Batista
de Lima, de 65 anos, é salientado que Manoel ―vivia de encontro com o engenho por
motivo de questões de trabalho‖.300 Já o comerciante José Ramos, afirma não poder
dizer ―se ele é bom ou mal elemento‖, parecendo-lhe, no entanto, ―que ele é mais mau
elemento porque ouvia falar que antes ele vivia sempre com questões; (...) e que as
questão de que falam referentes ao Requerido são questões trabalhistas.‖ 301 Ou seja,
recorrer à Justiça era um risco não apenas frente à violência dos patrões, mas tal
ambiente acabava gerando, entre os próprios trabalhadores, uma avaliação negativa
acerca desse meio de luta.

Em outro depoimento, a fala do trabalhador Manoel Braga da Cunha parece


revelar o funcionamento desse mecanismo que, por meio do temor da violência
potencial dos proprietários, acaba por inibir a atitude reivindicatória dos trabalhadores,
que passam a julgar negativamente os próprios companheiros que buscam a justiça na
defesa de seus direitos. Afirma o trabalhador que teve um desentendimento com o
―Senhor de Engenho‖ mais ou menos entre os dias 21 e 22 de junho, ou seja, logo em
seguida ao espancamento de Manoel Biró. O empregador parece ter receio que o
trabalhador revele o caso do espancamento. Ele conta

―que foi chamado pelo senhor de engenho o qual se encontrava aperreado e o


repreendeu lhe dizendo que ele depoente tinha a língua comprida; que o

298
Ibidem, p. 32.
299
Ibidem, p. 37.
300
Ibidem, p. 33.
301
Ibidem, p. 34.

684
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

senhor passou-lhe uns carões, verificou se se encontrava armado e o agarrou


pela camisa (...), quando foi repreendido pelo senhor de engenho ele lhe disse
(...) que estava falando sobre os negócios do engenho; que não esteve no
Engenho Trapuá incitando os trabalhadores a demandarem com o senhor de
engenho‖. 302

O trabalhador também afirma ter tido uma ―desinteligência‖ com o motorista do Senhor
de Engenho, que ao vê-lo reivindicar o pagamento relativo ao trabalho executado em
um feriado ―soltou uma graça, lhe chamando de comunista porque havia pleiteado ditos
pagamentos ao que respondeu que não era comunista‖.303 Como podemos ver, o
discurso da subversão era agora mobilizado na repressão aos trabalhadores, inibindo,
entre outras coisas, seu recurso ao Judiciário Trabalhista. Manoel Biró deveria ser visto
como um exemplo para os outros trabalhadores, que ao incorrerem nos mesmos ―erros‖
do colega, poderiam ―levar o que ele levou‖.

Essas são apenas algumas passagens desse rico documento. Nelas vemos que a
complexidade das vivencias cotidianas, tal como pensou Lukács, não nos permitem
inferir um único caminho de resposta. Se nesses contextos os trabalhadores
denunciavam patrões em público nas assembleias sindicais, também ocorria, de acordo
com a particularidade de cada caso, de temerem tais organizações por medo de
represálias. Assim, por exemplo, a atitude legalista assumida pela Federação dos
Trabalhadores na Agricultura de Pernambuco – PETAPE no período pós-golpe,
caracterizada pela recusa da influência de militantes comunistas no movimento e
restrição da pauta reivindicatória a conquista de direitos, não deve ser vista como um
ato de covardia ou concessão, mas responde as próprias vivencias desses trabalhadores,
fazem sentido para eles, e exemplos como esses apresentados nos depoimentos de
trabalhadores podem ajudar a esclarecer suas escolhas. (ABREU E LIMA, 2012, pp.
125-26)

CONCLUSÃO

Procuramos refletir no presente trabalho sobre as possíveis noções de


comunidade construídas por trabalhadores rurais a partir de suas vivências cotidianas,
com especial atenção para o caso de Nazaré da Mata. Em nossa abordagem, buscamos
salientar a riqueza de experiências vivenciadas pelos trabalhadores, que acabam

302
Ibidem, pp. 38-39.
303
Ibidem, p. 40.

685
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

traduzidas nas formas de seus movimentos e em suas pautas políticas. Evitamos


considerar apenas uma possiblidade de resposta para os problemas enfrentados por esses
homens e mulheres em seu dia a dia. As instituições construídas pelos trabalhadores ao
longo deste período demonstram que as estratégias de luta sofrem sempre a influência
da experiência de seus participantes, sendo cotidianamente reconfiguradas.

O caso de Manoel Biró da Silva, seu espancamento, suas atitudes perante as


injustiças a que fora submetido, deixam transparecer que o sentimento de justiça estava
presente, sem muitas vezes ter ocasião de desabrochar. No contexto em questão, a
simples atitude de requerer na Justiça um direito reconhecido legalmente significava o
risco de perder o emprego, a residência e até mesmo a vida. Nessas circunstâncias, a
própria recusa dos trabalhadores em assumir tal posição nos parece bastante plausível,
frente aquilo que poderia estar sendo posto em risco. Os vários movimentos realizados
pelos trabalhadores rurais, dos quais citamos apenas alguns, são, acima de tudo, grandes
exemplos de coragem, mas a atitude daqueles que receavam participar deles também
deve ser compreendida, tendo como base as motivações que esses homens e mulheres
retiravam de suas vivencias diárias, sobre as quais não cabem nenhum tipo de juízo de
valor, pois, usado uma imagem de Thompson, ―eles viveram nesses tempos de aguda
perturbação social, nós não.‖ (2011, p. 14)

No que se refere ao resultado do Inquérito, o julgamento da JCJ de Nazaré da


Mata considera o pedido do empregador improcedente, uma vez que Manoel apresenta a
justificativa para se ter ausentado do trabalho. O proprietário João da Costa Azevedo
recorre da decisão, mas a mesma é confirmada na segunda instância, em julgamento
realizado no Tribunal Regional do Trabalho da Sexta Região-TRT6. O espancamento de
Manoel Biró é atribuìdo pelo Juiz da JCJ de Nazaré da Mata a policiais ―ainda
desatentos aos reais limites de seus poderes‖. O proprietário, malgrado o relato do
trabalhador Manoel Braga da Cunha, citado por nós, acerca da sua ―desinteligência‖
com seu patrão, é eximido de qualquer culpa no infortúnio de Manoel Biró, ao
contrário, é reconhecido seu ―caráter firme‖ e o temperamento voltado ao ―estrito
cumprimento de suas obrigações‖.304

Nesse caso específico, o ganho de causa para Manoel Biró da Silva significa
retornar ao trabalho, nas condições anteriores ao espancamento, reconhecida sua

304
Ibidem, p. 57-8.

686
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

condição de trabalhador estável. Essa é, segundo as palavras dos desembargadores do


TRT6, ―a única decisão justa, legal e humana‖.305

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABREU E LIMA, Maria do Socorro de. Construindo o Sindicalismo Rural: Lutas,


Partidos, Projetos. 2. ed. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2012.

BRASIL. Lei nº 4.214, de 2 de mar. de 1963. Estatuto do Trabalhador Rural,


Brasília, DF, Mar 2017.

DABAT, Christine Rufino. Moradores de Engenho: relações de trabalho e condições


de vida dos trabalhadores rurais na zona canavieira de Pernambuco, segundo a
literatura, a academia e os próprios atores sociais. 2ª. ed. rev. Recife: Ed. Universitária
da UFPE, 2012.

HELLER, Agnes. O Cotidiano e a História. 8. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2008.

LUKÁCS, György. Para uma Ontologia do Ser Social I. Tradução de Carlos Nelson
Coutinho, Mário Duayer e Nélio Schneider. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2012.

MINTZ. Sidney W. O poder Amargo do Açúcar: Produtores Escravizados,


Consumidores Proletarizados. Organização e tradução Christine Rufino Dabat. 2. ed.
Recife: Editora Universitária da UFPE, 2010.

PERNAMBUCO. Secretaria de Planejamento. Fundação de Informações para o


desenvolvimento de Pernambuco-FIDEPE. Série Monografias Municipais: Nazaré da
Mata. Recife, 1982.

SILVA. Marcília Gama da. Informação, Repressão e Memória: a Construção do


Estado de Exceção no Brasil na Perspectiva do DOPS-PE (1964-1985). Recife: Editora
UFPE, 2014

THOMPSON, E. P. A Formação da Classe Operária Inglesa I: A Árvore da


Liberdade. Tradução de Denise Bottmann, 6. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2011.

305
Ibidem, p. 90.

687
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

_____________. Costumes em Comum. Tradução de Rosaura Eichemberg. 8ª reimp.


São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

ARQUIVOS PESQUISADOS

1. Acervo do Memorial da Justiça do Trabalho em Pernambuco – TRT6


a. Processos Trabalhistas da Junta de Conciliação e Julgamento de Nazaré da
Mata

688
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

USOS E DESUSOS DOS DIREITOS HUMANOS: A CRISE DE IMIGRAÇÃO


EUROPEIA À LUZ DE ZIZEK

SUZYANNE VALESKA MACIEL DE SOUSA


UFCG/ CFP
[email protected]

ORIENTADOR: ISAMARC GONÇALVES LÔBO


UFCG/ CFP
[email protected]

RESUMO

Os Direitos Humanos surgiram como proposta de universalidade de normas básicas de


proteção da vida humana. Todavia, internacionalmente, eles têm sido utilizados como
justificativa para a intervenção de países desenvolvidos nos países subdesenvolvidos,
gerando um debate acerca da legitimidade destes direitos. Na recente crise imigratória
europeia a partir de 2011, vemos exemplificado casos de desrespeito aos direitos
humanos dos refugiados. Assim, interessa-nos analisar, balizados pelas discussões
elaboradas pelo filósofo Slavoj Žižek (2010), a contraposição entre a instrumentalização
dos direitos humanos enquanto justificativa de intervenção humanitária e a omissão para
com os mesmos no cenário do abrigo aos refugiados na recente crise imigratória na
Europa, o que será avaliado a partir da cobertura midiática de jornais internacionais.
Palavras-chave: Direitos Humanos; Imigração; Intervenção; Omissão.

INTRODUÇÃO

No mórbido clima internacional deixado pela Segunda Guerra Mundial


surge, ainda em 1945, a Organização das Nações Unidas (ONU) com o intuito de
promover a paz e a estabilidade entre os países evitando o surgimento de novos
conflitos internacionais e mediando os conflitos locais.
Nesse sentido, em 1948 a ONU promulga a Declaração Universal dos
Direitos Humanos que, apesar de ter inspiração em diversas declarações precedentes, foi
notavelmente singular no aspecto de gerar uma internacionalização de uma noção
comum, em seu preâmbulo lê-se:

Considerando que os povos das Nações Unidas reafirmaram, na Carta


da ONU, sua fé nos direitos humanos fundamentais, na dignidade e no
valor do ser humano e na igualdade de direitos entre homens e

689
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

mulheres, e que decidiram promover o progresso social e melhores


condições de vida em uma liberdade mais ampla, […] a Assembleia
Geral proclama a presente Declaração Universal dos Diretos Humanos
como o ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as
nações […] (ONU, 2015).

Assim foram constituídos os chamados direitos humanos, popularizando-


se enquanto meta internacional segundo a qual todos os seres humanos estariam sob
igualdade de direitos e passando a ser adotados pela maioria dos países através de sua
inclusão em diversas constituições e tratados.
A noção de direitos humanos adotada pela ONU instituiu prerrogativas
universais que deveriam estar acima de quaisquer condições seja de raça, sexo,
nacionalidade, etnia, idioma, religião ou qualquer outra, sem discriminação. Eles
asseguram, em tese, o direito à vida e à liberdade, à liberdade de opinião e de expressão,
o direito ao trabalho e à educação, entre tantos outros valores básicos a dignidade
humana.
Dessa forma, ao corroborarem com os direitos humanos os estados se
comprometeram a promoção destes direitos não apenas para suas populações como a
nível mundial, protegendo contra qualquer violação utilizando os meios disponíveis a
seu alcance, sejam estes internos, do próprio país, ou externos, pedindo auxílio a outros
países.
Sob um diferente olhar, o filósofo esloveno Slavoj Zizek (p.23, 2010)
proporciona uma visão particular sobre estes direitos, pois para ele ―podemos
problematizar, em um nível geral, a política supostamente despolitizada dos direitos
humanos e vê-la como uma ideologia do intervencionismo militar, que serve a fins
político-econômicos especìficos.‖
Assim, ele entende que a noção de direitos humanos, apesar de pretender
ocupar um status acima dos interesses nacionais, foi instrumentalizada de tal forma que
na prática passou a ser uma mera justificativa para o que ele denomina de militarismo
humanitário, em outras palavras, os direitos humanos se tornaram apenas um pretexto
para a intervenção de países desenvolvidos em questões dos países menos
desenvolvidos a fim de interceder em busca de seus próprios interesses, quase sempre
econômicos.
Destarte, este trabalho visa abordar esta noção de Zizek acerca dos direitos
humanos a fim de discutir a aplicação destes também durante a recente crise de

690
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

imigração avaliada na Europa desde 2011, início das agitações da Primavera Árabe, até
os dias de hoje com o movimento de milhões de pessoas advindas das regiões do
Oriente Médio, África e Ásia do Sul.

USOS DOS DIREITOS HUMANOS

Em seu texto denominado ―Contra os Direitos Humanos‖ (2010, p. 24)


Slavoj Zizek propõe-se a problematizar a noção de direitos humanos, para tanto o
filósofo estabelece que:

Paradoxalmente, fico privado dos direitos humanos no momento


preciso em que sou reduzido a um ser humano ―em geral‖, e venho a
ser, portanto, o portador ideal daqueles ―direitos humanos universais‖,
os quais pertencem a mim independentemente de minha profissão,
sexo, cidadania, religião, identidade étnica, etc.

Para o autor, os direitos humanos se evidenciam enquanto uma


necessidade no justo momento em que os indivíduos encontram-se desprovidos de seus
direitos mais básicos, como, por exemplo, na ocorrência de um conflito bélico em que
pessoas são desprovidas de seus direitos à moradia, trabalho, liberdade de expressão pu
liberdade de trânsito, neste momento de ausência de direitos a discussão em torno destes
direitos universais torna-se imperativa no sentido de fornecer proteção às pessoas que se
encontram em condições de risco.
Deste modo, os direitos humanos acabam sendo recorrentemente aplicados
em áreas que sofrem com problemas como a fome, conflitos armados, epidemias, entre
outros. Cabe ressaltar que, desde o fim da Guerra Fria, estas questões têm sido
concentradas principalmente nos países menos desenvolvidos.
Por conseguinte, ainda de acordo com Zizek (2010, p.25) para
compreender os direitos humanos é necessário observar não apenas sua prerrogativa
apolítica ou os motivos que justificam sua criação, mas principalmente a sua
instrumentalização, isto é, a forma que eles têm sido utilizados. Visto que,

[...] hoje, o que os ‗direitos humanos de vìtimas sofredoras do


Terceiro Mundo‘ efetivamente significam, no discurso dominante, é o
direito das próprias potências do Ocidente de intervir política,

691
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

econômica, cultural e militarmente em países do Terceiro Mundo de


sua escolha, em nome da defesa dos direitos humanos.

Eric J. Hobsbawm (2007, p.160) nos fornece um válido exemplo desta


ideia elaborada por Zizek: ―O Oriente Médio é apenas um exemplo disso: muito mais
instável agora do que dez anos ou mesmo cinco anos atrás. A ação dos Estados Unidos
enfraquece todos os arranjos alternativos, formais e informais, para a manutenção da
ordem‖. O resultado direto das ações estadunidenses desde o inìcio da chamada ―Guerra
ao Terror‖ foi um aumento significativo da desestabilização dos países
subdesenvolvidos, especialmente nas regiões do Oriente Médio e África. Apesar da
retórica em torno da justificativa do benefício das populações locais através da defesa
de seus direitos humanos, os Estados Unidos defenderam claramente seus próprios
interesses políticos e econômicos desde o início de suas intervenções militares no
Oriente Médio (HOBSBAWM, 2007).
Dessa forma, Slavoj Zizek (2010, p.26) afirma que os ―‗direitos humanos‘
são, enquanto tais, uma falsa universalidade ideológica, que mascara e legitima a
política concreta do imperialismo, das intervenções militares e do neocolonialismo
ocidentais‖. Logo, os direitos humanos enquanto noção universalizada constituiu-se
como um pretexto que permitiu aos países desenvolvidos atuar livremente dentro dos
países subdesenvolvidos.

DESUSOS DOS DIREITOS HUMANOS

Desde 2011, início da Primavera Árabe, intensificou-se o deslocamento


em massa de pessoas das regiões do Oriente Médio, África e Ásia do Sul, que realizam
a travessia do mediterrâneo em direção aos países Europeus. Essa imigração em larga
escala é o resultado de uma ampla conjuntura histórica que produziu instabilidade e
hostilidade nestas áreas emissoras, suas especificidades já são abordadas por outros
trabalhos acadêmicos, sendo nosso interesse neste trabalho tão somente compreender a
aplicabilidade realizada pelos países europeus da noção dos direitos humanos,
anteriormente debatidos, neste contexto de crise humanitária.
Através da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 a ONU
assume em seu artigo 14º, parágrafo 1° que "todo o indivíduo tem o direito de buscar e
gozar, noutros países asilo nas perseguições". De semelhante modo, no documento

692
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

denominado de Declaração sobre o Asilo Territorial, promulgado também pela ONU em


1967, assegura em seu artigo 1° que as pessoas que têm razão para solicitar asilo não
poderão ser rejeitadas, e uma vez tendo adentrado no país não poderão ser expulsas para
os Estados onde estarão expostas aos riscos de perseguição política.
De acordo com Norberto Bobbio (1998, p. 58), estas declarações não
estabelecem necessariamente obrigações aos estados membros das Nações Unidas,
funcionando como uma forte influência, ou pressão, sobre o comportamento de suas
instituições governamentais e seus representantes.
Mas como esta noção de direitos humanos pode ser verificada na recente
crise humanitária? Se nos voltarmos para a cobertura jornalística podemos verificar um
aumento expressivo de relatos de violação dos direitos humanos dos refugiados que
buscam asilo na Europa, conforme os exemplos a seguir.
Segundo noticiado pela revista portuguesa Sábado (2017) no artigo ―Itália
ignorou desastre em que morreram 268 refugiados‖, um naufrágio de um barco
pesqueiro aconteceu no dia 11 de outubro de 2013 próximo à ilha de Lampedusa no
qual morreram 268 refugiados, incluindo mulheres e crianças. De acordo com a matéria,
o fato ocorreu devido à negligência das autoridades italianas que ignoraram durante
cinco horas os pedidos de socorro dos sírios que fugiam da guerra civil. Este incidente
ainda está sob investigação italiana, mas sem nenhuma punição dos envolvidos até
agora.
Sobre este caso podemos depreender que os direitos humanos claramente
não constituíram uma preocupação para as autoridades italianas que, comprovadamente,
decidiram ignorar os pedidos de resgate dos refugiados mesmo diante de seu iminente
perigo de morte, o que acabou gerando uma das maiores tragédias desta crise
humanitária.
Os casos mais alarmantes de violação dos direitos humanos na crise
humanitária que assola a Europa são protagonizados pelos traficantes de pessoas,
indivíduos que lucram a partir da necessidade dos refugiados de realizarem a travessia
expondo os mesmos a todo tipo de risco em condições sub-humanas.
Um exemplo disto foi o episódio divulgado pelo site Terra (2017) sob o
tìtulo ―'Se morrerem, largue-os na floresta': a história dos 71 imigrantes asfixiados em
caminhão na Hungria‖, que relata a morte de cinquenta e nove homens, oito mulheres e
quatro crianças advindos do Iraque, Afeganistão e Síria que tentavam adentrar na
Hungria. Em 27 de agosto de 2015, o traficante responsável pela travessia destes

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

refugiados os colocou em um caminhão frigorífico (Imagem 1) sem ventilação


adequada, onde acabaram morrendo por asfixia em condições horríveis. Os traficantes
envolvidos foram identificados e estão em processo de julgamento.

Imagem 1 Caminhão onde os imigrantes foram encontrados Foto: BBCBrasil.com apud Terra (2017)

Este caso em especial gerou uma onda de indignação e ganhou repercussão


internacional, sendo responsável pelo aumento da pressão internacional sobre a Europa
no sentido de aumentar a fiscalização quanto ao tráfico de seres humanos através de
suas fronteiras.
O jornal online português Diário de Notícias (2017a) noticiou a seguinte
matéria ―Governos europeus deportam quase 10.000 afegãos, pondo-os em perigo‖,
segundo a qual o relatório da Anistia Internacional divulgou dados que demonstram que
dez países europeus realizaram a deportação de dez mil afegãos de volta ao Afeganistão,
país que tem se tornado cada vez mais violento. Além disso, ainda de acordo com a
matéria, as concessões de asilos têm diminuído significativamente enquanto o número
de deportações só aumenta, dentre as pessoas deportadas encontram-se até crianças
desacompanhadas.
Outro artigo publicado pelo jornal português Diário de Notícias (2017b)
sob o tìtulo ―Triplica o número de migrantes mortos ou desaparecidos‖, discute dados
fornecidos pela Organização Mundial para as Migrações (OIM) segundo os quais no
ano de 2017 triplicaram o número de refugiados mortos e desaparecidos em relação ao
ano de 2016.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Imagem 2 Imagem de um naufrágio perto da costa da Líbia MARINA MILITARE/HANDOUT VIA


REUTERS apud Diário de Notícias (2017b)

Como vimos anteriormente, não conceder asilo e colocar pessoas sob risco
constitui graves violações aos direitos humanos, no entanto, ainda assim não é possível
verificar intervenções efetivas de países não europeus nas questões referentes à crise de
imigração na Europa. É evidente que muitos países, dentre os quais os Estados Unidos,
têm enviado ajuda humanitária de diversas formas. O que não se verifica é uma
intervenção, seja direta ou indireta, jurídica ou não quanto aos casos verificados de
negligência por parte de governos europeus aos direitos humanos dos refugiados e
requerentes de asilo.
Jeanne Park (2015, s/p) em seu artigo ―Europe‘s migration crisis‖ analisa
que:

Centros de detenção de migrantes em todo o continente, incluindo na


França, Grécia e Itália, receberam acusações de abuso e negligência ao
longo dos anos. Muitos grupos de direitos humanos alegam que vários
desses centros de detenção violam o artigo III da Convenção Europeia
de Direitos Humanos, que proíbe tratamento desumano ou degradante.
(tradução livre)

O desrespeito aos direitos humanos na crise de imigração na Europa torna-


se cada vez mais evidente, porém o clima internacional parece corroborar ou no mínimo
ignorar este fato. A Organização das Nações Unidas realiza investigações divulga dados
alarmantes, mas sua atuação limita-se a uma pressão indireta e não uma intervenção.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O que verificamos neste trabalho é uma diferenciação evidente quanto aos


usos dos direitos humanos, num primeiro momento quando são verificadas violações a
estes direitos em países subdesenvolvidos, como analisou Zizek (2010), estas servem de
justificativas para intervenções militares internacionais que se legitimam através de um
discurso humanitário de ―proteção‖.
Todavia, quando estas violações são realizadas em países desenvolvidos,
como os europeus durante a recente crise de imigração, não apenas não se verifica a
mesma demanda internacional por uma intervenção como também há uma espécie de
consenso, posto que as investigações referentes às violações dos direitos humanos são
realizadas principalmente de forma interna.
Ademais, concluímos que os direitos humanos têm sido tratados pelos
países desenvolvidos como um simples instrumento que recebe atenção de acordo com
a conveniência de sua utilização, sendo apresentado como de vital importância quando
necessário, mas permanecendo ignorado quando seu uso não condiz com os interesses
dos mais poderosos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ACNUR, ONU. Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados. 1951. Disponível


em:
http://www.acnur.org/t3/fileadmin/Documentos/portugues/BDL/Convencao_relativa_ao
_Estatuto_dos_Refugiados.pdf Acesso em: 20 de Julho de 2017.

BARRETO, Diogo. Itália ignorou desastre em que morreram 268 refugiados.


Revista Sábado, 9 de Maio de 2017. Disponível em:
http://www.sabado.pt/mundo/europa/detalhe/italia-ignorou-desastre-em-que-morreram-
268-refugiados. Acesso em: 20 de setembro de 2017.

BOBBIO, Norberto et al. MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário


de política, v. 1, p. 382, 1998.

DIÁRIO DE NOTÍCIAS. Governos europeus deportam quase 10.000 afegãos,


pondo-os em perigo. Disponível em: https://www.dn.pt/lusa/interior/governos-
europeus-deportam-quase-10000-afegaos-pondo-os-em-perigo---ai-8822259.html.
Acesso em: 20 de setembro de 2017.

696
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

______. Triplica o número de migrantes mortos ou desaparecidos. Disponível em:


https://www.dn.pt/mundo/interior/triplica-o-numero-de-migrantes-mortos-ou-
desaparecidos-no-mediterraneo-5739037.html. Acesso em: 20 de setembro de 2017.

HOBSBAWM, Eric J. Globalização, Democracia e Terrorismo. São Paulo:


Companhia das Letras, 2007.

ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos. v. 13, 2015.

PARK, Jeanne. Europe‘s migration crisis. New York: Council of Foreign Relations.
p. 311-325, 2015. Disponível em: https://www.cfr.org/backgrounder/europes-migration-
crisis. Acesso em: 23 de Janeiro de 2017

TERRA. Se morrerem, largue-os na floresta: a história dos 71 imigrantes


asfixiados em caminhão na Hungria. 21 de Junho de 2017. Disponível em:
https://www.terra.com.br/noticias/mundo/europa/se-morrerem-largue-os-na-floresta-a-
historia-dos-71-imigrantes-asfixiados-em-caminhao-na-
hungria,d22ee811f18e0aac32f964a359ce1d94fk7erf2g.html Acesso em: 20 de setembro
de 2017.

ŽIŽEK, Slavoj. Contra os direitos humanos. Mediações-Revista de Ciências Sociais,


v. 15, n. 1, p. 11-29, 2010.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

... VOCÊS DIRÃO: TODOS VIVEM!!! MAS EU DECIDI QUE POSSO PARAR
COM ISSO." O SUICÍDIO NA CIDADE DE BERNARDINO BATISTA/ PB
(2000 - 2015)

JAINE MARIA DA SILVA


UFCG/ CFP
[email protected]

RESUMO
Analisar historicamente a prática do suicídio na cidade de Bernardino Batista, município
localizado no sertão paraibano, é o objetivo. Observa-se que dentro do quadro de mortes
do referido município, há uma considerável parte desses óbitos que se dão por meio de
suicídio. Atestados de óbitos se constituíram a princípio como fonte para a análise
histórica que buscará compreender o fenômeno do suicídio e os discursos que
instituídos desde o século XIX pelo discurso médico, o religioso e o moral ainda ecoam
na Bernardino Batista, com um enfoque nos anos 2000 a 2015, recorte temporal
escolhido por fatores decisivos aos quais viabilizaram a efetivação da pesquisa, entre
eles o conjunto de fontes disponíveis. Busca-se compreender o suicídio como um
fenômeno histórico, dotado de historicidade. Em uma perspectiva cultural partimos de
conceitos como biopolítica em Michel Foucault e as esferas de biopoder que perpassam
os discursos sobre o suicídio.
Palavras-chave: Suicídio; Bernardino Batista; Historiografia; Michel Foucault.

A EMERGÊNCIA DE SE FALAR DO SUICÍDIO

A organização mundial de saúde (OMS) estima que anualmente morram um


milhão de pessoas no mundo por meio de suicídio e que seguindo esses dados a cada
quarenta segundos uma pessoa consegue tirar sua própria vida. É o equivalente a quase
2 % dos óbitos no total de mortes. De acordo com a OMS o tema é bastante delicado e
se constitui historicamente em um verdadeiro tabu social e que precisa sair dessa esfera
urgentemente para que estratégias possam ser pensadas no sentido de diminuir o
número de óbitos voluntários. O suicídio se compara ao HIV (human immuno
deficiency vírus) que já esteve envolto em estigmas e tabus, mas que com novas
perspectivas e iniciativas puderam ser trazidas para o âmbito da saúde, sendo
considerado um problema de saúde pública, sobressaindo aos poucos de um campo de
preconceito, injustiças e intolerâncias com relação ao sujeito portador do vírus306, até
chegar ao desenvolvimento de políticas públicas de prevenção e de atendimento ao
portador.
306
Rio de Janeiro; Relume-Dumará; 1994. 141 p. (História social da AIDS, 3)

698
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Na média global, os homens cometem mais suicídios que as mulheres, 15 por


100 mil mortes por suicídio são só de homens e de mulheres chegando a 8 a cada 100
mil e atribui-se a isso os métodos utilizados pelos homens que em tese são mais letais,
proporcionando assim uma morte rápida e efetiva. No entanto a ideação suicida é mais
forte entre o sexo feminino. Mesmo com todo os números, menos de trinta países no
mundo possuem uma estratégia nacional de prevenção ao suicídio que realmente seja
posta em prática, principalmente os países com renda média e baixa que são os que
apresentam um número demasiadamente alto. O brasil por exemplo, segundo dados do
ONU (Organização das Nações Unidas) é o oitavo no ranking de mortes por suicídio do
mundo. A Índia ocupa o primeiro lugar na lista dos países com alta taxa de suicídio
somando um pouco mais de 250 mil mortes voluntarias por ano e lá vale ressaltar, a
prática é crime.307 Diante disso se faz necessário diálogos urgentes sobre as mortes
voluntárias e nos mais diversos espaços no âmbito mundial e nacional, a exemplo de
Bernardino Batista.

A EXPERIÊNCIA DO SUICÍDIO NA BERNARDINO BATISTA

―Ela/ele tinha depressão.‖ ―Foi desilusão amorosa!‖ ―Muita divida.‖ ―Perdeu um


familiar querido.‖ ―Sofria de transtornos mentais.‖ ―Perdeu o emprego.‖ ―Esse mal já é
de famìlia!‖ ―Não tem Deus no coração.‖ ―Irresponsável.‖ ―Egoìsta.‖ ―Não vai para o
céu.‖ ―Não fala que atrai.‖ ―Queria chamar a atenção.‖ ―Álcool demais‖, são esses e
muitos outros discursos que permeiam sob os corpos suicidas na urbe batistense.
Pensar, refletir, estudar, falar em morte ainda é hoje um tabu dentro de várias
esferas e sociedades, as pessoas demonstram em suas falas e comportamentos um receio
de tornar esse assunto um pouco mais profundo. Até bem pouco tempo atrás, dentro das
sociedades pequenas e tradicionais como ainda o é hoje a de Bernardino Batista a vida
era marcada por fortes relações, experiências comunitárias, onde as pessoas da
comunidade mantinham intensos vínculos umas com as outras por inúmeros fatores.
Essas vidas em comunidade eram marcadas basicamente por acontecimentos como o
nascer, casar e morrer, um ciclo comum até aí, simples. Esses costumes mudam com o
passar do tempo, acompanhando o ritmo de urbanização, os laços comunitários se
tornam frágeis, nota-se um acelerado processo de individualismo.

307
Dados da Organização das Nações Unidas sobre o suicídio e seus números pelo mundo disponível em:
www.who.int

699
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

AS FONTES E O JUDICIÁRIO

Faz parte da natureza que os seres vivos morram, assim como nascem. A morte
é um fator biológico, contudo as concepções da morte e do morrer podem se diferenciar
de acordo com o espaço e o tempo na qual se insere. As pessoas passam a pensar a
morte de forma diferente, o sentido muda de sociedade para sociedade, assim como
podem se tornar diferentes de acordo com cada temporalidade. Inevitavelmente a morte
chega, enquanto ela chega às pessoas vivem. Mas todos vivem? Quem espera pela
chegada da morte? Quem aguarda? Foi pensando essas questões que veio o interesse em
estudar o suicídio, pensando em porque as pessoas não esperam, o que as movem a
cometer suicídio. Quais são os fatores para uma determinada sociedade apresentar entre
seus populares uma maior disposição para matar a si mesmo?
O interesse em estudar o suicídio na cidade de Bernardino Batista se deu pelo
fato da cidade apresentar segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatísticas) uma população de 3.153 habitantes e levando em consideração esse dado,
as tentativas e efetivações de mortes por suicídio são visivelmente recursivas. Dando
enfoque nos anos 2000 a 2015 podemos contar com um conjunto documental que nos
traz um apanhado qualitativo de levanta questões importantes sobre as condições em
que esses documentos são registrados. Tendo acesso ao livro de tombo da comarca da
cidade de São João do Rio do Peixe, a qual Bernardino Batista pertence judicialmente,
podemos notar também a carência de dados com relação aos casos ocorridos no
município, estando registrado apenas um caso, o da Jovem Jéssica Alves Martins 308,
este estando com poucos detalhes, rasurados no campo de especificação da causa mortis
com corretivo e por cima um escrito o detalhando como ―Fato atìpico‖ e esse tipo de
descrição de causa de óbito chama bastante atenção quando percebermos que até mesmo
dentro da esfera da justiça o suicídio é tratado como um fato atípico, que não é
recorrente? Que não é normal? Natural? Assim também encontramos pouquíssimos
atestados de óbitos, tanto no cartório da cidade, bem como nos arquivos da unidade
básica de saúde e esta UBS vale ressaltar é de onde saí os dados relativos a saúde dos
munícipes batistenses que vão para o ministério da saúde e que em tese voltam como
propostas de soluções para possíveis problemas de saúde pública. Mas como voltam se
a Atenção Básica não tem um levantamento preciso e seguro das mortes por suicídio? O

308
Jéssica Alves Martins, 15 anos de idade, batistense e residente na cidade cometeu suicídio em
07/09/2007 por meio de enforcamento em sua residência.

700
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

desenvolvimento de políticas públicas voltadas a problemática só chega ao município a


partir do momento em que não exista uma banalização dos documentos comprobatórios
das mortes voluntárias.

A IGREJA;

Analisar-se-á historicamente como essa sociedade constrói um discurso


sobre essas mortes e quais os fatores que influenciam a recorrente busca pela morte
nessa sociedade nos remete ao discurso que a igreja católica desde a idade média nos
traz, tendo em vista que a religião predominante do município ainda é a católica. O
suicídio como um pecado sem salvação. Em um caso em especifico, o de Maria Romana
se faz necessário pensar o sujeito e suas ligações com instituições como a igreja católica
e o tratamento que não só o catolicismo, mas também outras vertentes cristãs dão a
309
morte por suicídio. Ao suicida é atribuído a não salvação por parte de Deus e esse
discurso religioso perpassou desde a idade média até os dias atuais a ideia de que a vida
é sagrada, dada por Deus e, portanto só podendo ser tirada por vontade deste. Uma das
falas mais comuns com relação ao morto por suicídio é justamente embasada no
fundamento do querer de Deus. É esse discurso que norteia as diversas interdições da
instituição religiosa com relação a suicidas e ainda aqueles considerados de vida errante
ao decorrer do tempo como Cláudia Rodrigues (2009) nos aponta em um caso de
intervenção da igreja diante do sepultamento de um indivíduo que tira sua vida.

Em relação ao caso de David Sampson, a argumentaç ão do


pároco de Sapucaia para a proibição do seu sepultamento no
cemitério público foi que se tratava de um suicida, além de
protestante. Decisão que foi confirmada pela autoridade
eclesiástica a quem estava submetido, o monsenhor Felix
Maria de Freitas e Albuquerque, sob a alegação de que as
leis da Igreja católica proibiam o enterramento em sagrado
dos suicidas que não tivessem se arrependido antes da
morte, além dos protestantes. (RODRIGUES, 2009 in
VIEIRA, 1980).

E é isso que a igreja traz. Essa indiferença com o corpo do suicida sofre
ao longo do tempo algumas mudanças, novas perspectivas, mas o discurso é pautado na

309
Os cemitérios públicos como alvo das disputas entre Igreja e Estado. Diálogos, DHI/PPH/UEM, v. 13,
n. 1 p. 119-142, 2009.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

premissa de que a vida é dom de Deus e que a ele pertence. Ao individuo é negado o
direito de vida e morte, mesmo que esta esteja em poder de cada um, como nos aponta
alguns pontos do Catecismo da Igreja católica.310 Não raro as pessoas comentam ―É
falta de Deus.‖, ―Estava longe de Deus.‖, ―Isso é coisa de quem não acredita em Deus.‖.
O caso de Lia esbarra nesse discurso de que o suicida ―não tem Deus‖. Não há aparente
fragilidade nesse laço humano com o divino e com uma instituição. Chama atenção
ainda para o fato da igreja ainda não ter abandonado esse discurso de pecado
imperdoável e mesmo assim, não só Lia em questão, mas um grande número de cristãos
católicos rompe com o ciclo da vida voluntariamente.

A MEDICINA;

A compreensão do suicídio como um fenômeno histórico, coloca o historiador


ao meu ver frente a uma problemática múltipla, diante de um fenômeno que cabe ao
exame, levando em consideração que o suicídio não é um tipo de morte que se dá por
um único fator, mas que é dotado de historicidade, ou seja, são fatos únicos. Cada ato
carrega diversos fatores que precisam ser levados em consideração ao serem
examinados. E é isso que faz o historiador Fábio Henrique Lopes (2008) que foi um dos
primeiros pesquisadores responsáveis pela abordagem do suicídio, no campo da
História, no Brasil. O autor deixa claro em suas escritas a necessidade de se romper com
o silêncio no qual está envolto o suicídio no Brasil. Em sua tese intitulada "Suicídio e
saber médico: estratégias históricas de domínio, controle e intervenção no Brasil do
século XIX‖, Lopes, problematiza o lugar de produção do conhecimento sobre o
suicídio e diversifica os sentidos que são impostos ao indivíduo que comete suicídio.
O autor busca problematizar, para só assim entender, o fato dos discursos
que eram lançados pelos médicos aqui no Brasil no século XIX serem importantes
devido ao funcionamento dos discursos em questão, como uma espécie de instrumento
que controlava e intervinha nas ações dos indivíduos que atentavam contra a própria
vida. Diante de seu trabalho o autor nos revela quão grande é a dimensão e potência
histórica que se pode observar dentro da temática do suicídio devido justamente a
pluralidade de sentidos que o cientista pode perceber no estudo do tema.

310
O Catecismo da Igreja Católica (C.I.C) é claro ao afirmar que ― o suicídio é gravemente contrário à
justiça, à esperança e à caridade. É proibido pelo quinto mandamento‖. C.I.C. nº 2325. ―O suicìdio
contradiz a inclinação natural do ser humano a conservar a própria vida‖. C.I.C. 2281.

702
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O texto do autor nos traz as subjetivações e naturalizações do


―saber/poder‖ que os médicos possuìam e que de certa forma estão conosco até os dias
de hoje, enveredando as produções de discursos envoltos ao ato do suicida. Em seu livro
o autor analisa a todo o momento o suicídio e o sujeito que pratica o suicídio em
diferentes esferas. Lopes faz uso do espaço das cidades, espaço esse que se apresenta
produtiva no crescimento de uma população, assim chamada, ―massa maligna‖ que
precisava fazer obedecer a uma ação que buscava higienizar, tornar saudável esse
ambiente. Buscou-se assim adquirir e sistematizar novos saberes para conseguir
controlar o suicídio. A medicina foi à principal responsável por realocar o suicídio para
a categoria de doença e não mais como um pecado como antes visto pelas entidades
religiosas, e o enquadrou no quadro de problemas psíquicos, sendo o suicida um doente
mental.

A prática de relacionar as causas de suicídio com o universo mental –


distúrbios, alucinações, desarranjos e loucuras – pode ser detectada no
inicio da tematização médica brasileira sobre o suicídio, ocorrida na
primeira metade do século XIX, quando os médicos começaram a
produzir saber e conhecimento sobre o ato. A partir daí, o suicídio e as
desordens mentais passaram a ser indissociáveis. LOPES, (2008) p.35.

No seu texto o autor recorta e organiza, para então explorar, algumas


séries temáticas como a medicina social e as instituições médicas no Brasil no século
XIX, a forma com a qual o suicídio entra para o rol das doenças e é ligada aos distúrbios
mentais, a relação entre as paixões e o suicídio que levaram os médicos a separarem as
―boas paixões‖ das ―patologias‖ que levavam o indivíduo a cometer suicídio.
Frederico Hosanam (2015), também como historiador percebe o suicídio como
um campo plural, com Lopes, o autor também se propõe a problematizar o suicídio,
dessa vez relacionando as condições históricas do indivíduo e a marca da subjetividade
que se apresenta nas cartas deixadas por eles ao cometerem o suicídio.

Se há, atualmente, como Fábio sugere... uma multiplicidade de


olhares sobre o suicídio, penso que seja possível problematizar o
suicídio a partir de uma relação entre a nossa condição histórica e a
sua subjetivação presente nas cartas de adeus. OSANAM, (2015) p. 3.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Osanam faz uso apenas de cartas escritas por suicidas. São cartas,
bilhetes e anotações que para o autor são fontes, documentos, que deixados pelos
indivíduos os quais recorreram ao suicídio, revelam quais eram as suas visões de
mundo. O autor chama atenção para o fato de ao emergir o período pós-moderno e todos
os discursos que o acompanham, inclusive sobre a condição humana e sobre a morte,
gerou-se assim uma transformação no modo com o qual o indivíduo particulariza suas
experiências e reflete ainda em como ele representa o ato de tirar a sua própria vida.

Penso, ainda, que a partir dos anos 1960/1970, com a emergência


daquilo que alguns chamam de pós-modernidade e outros de
modernidade líquida, os discursos sobre a condição humana, tais
como comportamentos, valores, consumos, e, por outro lado, os
discursos sobre a morte, produziram algumas transformações em
como o suicida subjetiva suas experiências no mundo e como ele
representa o seu ato. OSANAM, (2015) p.4.

Dialogando com Zygmunt Bauman, sociólogo polonês, Osanam nos


mostra como Bauman vai caracterizar o advento da pós-modernidade que para ele
poderia ser chamada de "modernidade líquida", devido ao fato das relações dessa
sociedade não mais ser formada por laços sólidos, enfatizando o fato de a sociedade
estar cada vez mais marcada pela individualização dos corpos. Esse novo momento
apresenta fartas escolhas, aumentando assim as chances de errar ou acertar, bem como
se apresenta um momento onde se precisa desesperadamente acertar, acertar para se
alcançar, segundo Bauman, a felicidade. Essa se torna objeto de desejo. E é a partir daí
que se inicia um processo que pode levar indivíduos a cometer suicídio. A exposição
excessiva de propagandas de felicidade plena por todo o meio influencia o indivíduo a
procurar suprir esse ideal de felicidade. Na condição de não detentor dessa felicidade, o
indivíduo se enxerga e se sente triste, com sentimentos de incompletude e de
insatisfação pela sua condição, ou seja, o meio precisa lhe causar sentimentos ―ruis‖
para só então, a partir de aí lhe trazer a felicidade.
Portanto, numa sociedade, como a nossa, que enuncia e vende
conceitos e comportamentos ambivalentes; que vende a necessidade
de ser feliz, mas precisa da tristeza para produzir novelas, para vender
romances, para sensacionalizar a vida nos palcos, para comercializar
remédios, entupir consultórios psicanalíticos, fabricar psicotrópicos,
mobilizar multidões dentro de igrejas e em procissões; nesta
sociedade, o suicídio pode ser, em muitos dos casos, fruto do potencial
destrutivo do comércio de imagens e produções de sentido sobre a
tristeza. De um comércio que cria a sensação de incompletude
permanente, mas, de que é possível conseguir. De uma condição

704
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

histórica que concebe a felicidade como um ―estado‖, mas que ―só


pode ser um estado de excitação estimulado pela incompletude‖.
OSAMAM, (2015) p.6.

A partir de então, Osanam nos traz essa marca de incompletude presente


nos bilhetes de adeus, causada justamente por essa busca pela felicidade, por algo
concreto que nunca se realizou, são bilhetes que denotam profunda tristeza, segundo o
autor, com frases corriqueiras do tipo ‗desculpa, não consegui‘ que nos remete a ideia
de que para o suicida, algo ficou incompleto. Ao expor trechos de algumas cartas de
suicidas nota-se que as ―explicações‖ dadas são em sua maioria, fundadas no fato de
não terem alcançado esse ideal de felicidade que para o autor se constrói artificialmente
e que dificilmente se conseguirá. O autor ainda usa como exemplo o caso da atriz Leila
Lopez que cometeu suicídio e deixou uma carta na qual explica os motivos pelos quais
ela teria se matado.

Eu não me suicidei, eu parti para junto de Deus. Fiquem cientes que


não bebo e não uso drogas, eu decidi que já fiz tudo que podia fazer
nessa vida. Tive uma vida linda, conheci o mundo, vivi em cidades
maravilhosas, tive uma família digna e conceituada em Esteio, brilhei
na minha carreira, ganhei muito dinheiro e ajudei muita gente com ele.
Realmente não soube administrá-lo e fui ludibriada por pessoas de má
fé várias vezes, mas sempre renasci como uma fênix que sou e sempre
fiquei bem de novo. Aliás, eu nunca me importei com o ter. Bom, tem
muito mais sobre a minha vida, isso é só para verem como não sou
covarde não, fui uma guerreira, mas cansei. É preciso coragem para
deixar esta vida. Saibam todos que tiverem conhecimento desse
documento que não estou desistindo da vida, estou em busca de Deus.
Não é por falta de dinheiro, pois com o que tenho posso morar aqui,
em Floripa ou no Sul. Mas acontece que eu não quero mais morar em
lugar nenhum. Eu não quero envelhecer e sofrer. Eu vi minha mãe
sofrer até a morte e não quero isso para mim. Eu quero paz! Estou
cansada, cansada de cabeça! Não aguento mais pensar, pagar contas,
resolver problemas... Vocês dirão: Todos vivem!!! Mas eu decidi que
posso parar com isso, ser feliz, porque sei que Deus me perdoará e me
aceitará como uma filha bondosa e generosa que sempre fui. O
GLOBO, (2009).311

De acordo com o autor, a carta nos remete a ideia de que a atriz tinha a
sensação de não pertencimento ao lugar que estava, e que quando não há esse

311
DIVULGADA a carta deixada por Leila Lopes, O Globo, Rio de Janeiro, 08 dez. 2009. Disponível
em: http://oglobo.globo.com/cultura/revista-da-tv/divulgada-carta-deixada-por-leila-lopes-3185750

705
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

sentimento de pertença a um espaço, o indivíduo não se envolve e nem consegue formar


sua identidade no espaço. Chama atenção ainda para o fato de a atriz querer deixar claro
o qual racional foi sua escolha, de que não precisou fazer uso de qualquer substancia
para tomar tal atitude, pelo contrário. Considera-se corajosa e exprime ao final do relato
uma insatisfação com a rotina que a vida segue não vê sentindo nesse movimento
rotineiro ao qual a grande maioria da sociedade ver como normal.
Osanam ressalta a importância do trabalho de Durkheim, mas, assim
como nós concorda também de que quando o sociólogo categoriza o suicídio em uns
grupos e encaixam todos esses suicídios em uma mesma identidade, esquece assim o
fato de que ao pensarem suas mortes, esses indivìduos ―inventam‖ e ―criam‖ sìmbolos e
sentidos para a sua maneira de morrer. Todas as mudanças que as ciências humanas e
sociais viveram, segundo o autor, em seus paradigmas, dos anos 1960 em diante tornam
inviáveis a possibilidade de enquadrar os tipos de suicídios em tão poucas categorias. O
autor propõe com seu estudo uma problematização a cerca do suicídio levando em
consideração a condição histórica dos indivìduos e que ―há a necessidade de pluralizar
as leituras sobre o ato suicida.‖.
De antemão o que podemos perceber é o qual permeado a Bernardino
Batista está sob determinados efeitos de poder e micropoder de esferas diversas. Os
discursos e a falta de atenção a problemática de saúde pública, do suicídio em questão,
são barreiras reais que imprimem uma relação de poder sob o corpo do morto e sob a
família deste. O suicídio é uma realidade, é uma experiência pela qual os populares
passam e cabe aqui como bem apontou Lopes (2010) como historiador o papel de
―historicizar sua emergência enquanto tema, preocupação e objeto dentro de um jogo
complexo de forças‖.

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312

312
Fotografia do livro de tombo que se encontra na cidade de São João do Rio do Peixe, delegacia esta
responsável pelo destacamento policial de Bernardino Batista. Na ficha constam informações a respeito
do óbito da jovem Jéssica Alves Martins.

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313

313
Atestado de óbito da Senhora Maria Romana que se encontra do cartório de registro civil do município
de Bernardino Batista.

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REFERÊNCIAS

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historiográfico” in Textos de História (Revista do Programa de Pós-Graduação em
História da UNB). dezembro de 2003, volume 11, n.1/2. p.145-171
CHARTIER, Roger et al. A história cultural. Entre práticas e representações. Lisboa:
Difel, 1990.
DE CERTEAU, Michel. A escrita da história. Forense Universitária, 2011.
DIAS, Maria Luiza. Suicídio: testemunhos de adeus. São Paulo: Brasiliense, 1991.
DURKHEIM, Èmile. O suicídio: estudo de sociologia. 4. ed. Trad. de Luz Cary,
Margarido Garrido e J. Vasconcelos Esteves. Lisboa: Editorial Presença, 1987.
LIMA, Frederico Osanam Amorim. ACHEI QUE A HORA ERA ESSA: O
SUICÍDIO NAS CARTAS DE ADEUS. Fênix – Revista de História e Estudos
Culturais Julho – Dezembro de 2015 Vol. 12 Ano XII nº 2 ISSN: 1807-6971 Disponível
em: www.revistafenix.pro.br
LOPES, Fábio Henrique. Suicídio e saber médico: estratégias históricas de domínio,
controle e intervenção no Brasil do século XIX. Moreira Dias Editora LTDA, 2014.
______ O suicídio sem fronteiras: entre a razão e a desordem mental. 1998. Tese de
Doutorado. Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas.
MICHEL, FOUCAULT. Microfísica del poder. Rio de Janeiro: Graal, v. 979, 1979.
______ Ordem do discurso (A). Edições Loyola, 1996.
______ Vigiar e punir. Leya, 2014.
RAGO, Margareth. As marcas da pantera: Foucault para historiadores.Resgate-Revista
Interdisciplinar de Cultura, v. 4, n. 5, p. 22-32, 1993.
Sentidos da morte e do morrer na Ibero-América / organização Claudia Rodrigues,
Fábio Henrique Lopes. – Rio de Janeiro: EdUERJ, 2014. 516p.

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A LOUCURA NA CAJAZEIRAS-PB DA PRIMEIRA DÉCADA DO SÉCULO


XXI

LARISSA BESERRA DOS SANTOS


UFCG
[email protected]

ORIENTADORA: ROSILENE ALVES DE MELO


UFCG
[email protected]

RESUMO
Este artigo busca abrir o diálogo acerca do estado da questão da ―loucura‖ na primeira
década do século XXI na cidade de Cajazeiras-PB. É fruto de um estudo que está sendo
desenvolvido como trabalho de conclusão de curso. Aqui, delinearemos os
sustentáculos de nossa pesquisa a partir de uma perspectiva foucaultiana de análise de
discurso. A ideia é traçar uma arqueologia em torno da criação dos CAPS em 2001 e no,
consequente, processo de desestímulo do modelo hospitalocêntrico como resultado das
lutas que foram e estão sendo travadas desde 1980 no Brasil. A pesquisa terá como base
documental a análise dos prontuários do Centro de Associação Psicossocial (CAPS II).
Desejamos, com isso, ampliar as possibilidades de re (elaboração) das ações
socioculturais voltadas à saúde mental.
Palavras-chave: Loucura; Cajazeiras; Contemporaneidade.

Introdução

Desenho de Albino Braz, sem tìtulo, na mostra ―História da loucura:


desenhos do Juquery‖, em cartaz no MASP, no ano de 2015.

710
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

A partir do diálogo desenvolvido na disciplina de Introdução aos Estudos


Históricos, ministrada pela professora Rosilene Alves de Melo, orientadora desta
pesquisa, tive o primeiro contato com Michel Foucault e sua obra ―História da Loucura‖
(1997), publicada pela primeira vez na década de 1960, trazendo à tona um fazer
historiográfico particular. Destarte, logo percebi que tinha encontrado não só o meu
campo temático, mas uma questão com a qual me identifiquei acima disso e que foi
tomando maiores proporções; os caminhos foram se apresentando e se enraizando por
diversas veredas, criando possibilidades de elaboração, imersão e comunicação
buscando encontrar os fios condutores para construção de uma ―operação
historiográfica‖. (CERTEAU, 1982). O encantamento e o sentimento de pertença desde
o início de 2015 foram perdurando e ganhando adornos.
O recorte temporal deste estudo está sintonizado com as transformações
ocorridas da virada do século XX para o XXI. As fontes utilizadas serão prontuários
médicos. Existem, no arquivo, prontuários de pacientes de 2001, ou seja, do ano
inaugural da instituição em Cajazeiras-PB.
As características esdrúxulas, como enclausuramento, tortura física, que no
século XIX e, inclusive, fins do século XX como apontam estudos realizados nos já
extintos Hospital Colônia de Barbacena em Minas Gerais e Hospital Psiquiátrico do
Juquery em São Paulo começam a ser atacadas pela Reforma Psiquiátrica que se inicia
na Itália na década de 1960 com Franco Basaglia e tem seu ápice no Brasil a partir da
década de 1980. Pensando nesse processo de continuidades e descontinuidades,
trataremos da primeira década do século XXI fazendo um diálogo com os movimentos
anteriores (Reforma Psiquiátrica, Luta Antimanicomial) e em como eles se relacionam
com o sertão cajazeirense a partir da promulgação da Lei Paulo Delgado (Lei n° 10.216.
de 06 de abril de 2001) e com a criação dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS),
consequentemente.
O objetivo é problematizar essas mudanças e refletir acerca do processo de
desinstitucionalização do modelo hospitalocêntrico e pensar em como ele está sendo
desenvolvido no contexto nacional e, sobretudo, cajazeirense. Desejamos pensar nas
políticas públicas desse movimento histórico, bem como buscar perceber as veredas
identitárias dos sujeitos que utilizam do atendimento do CAPS II, adentrando, por fim,
em uma história das sensibilidades, pluralizando a questão da saúde mental ainda pouco
explorada pela historiografia cajazeirense. Sendo assim, pensamos na dinamicidade

711
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

espiralada dos aspectos sociais e culturais que nos proporcionam problematizar essa
questão em seus diversos aspectos.

CONTEXTUALIZANDO

A loucura já foi vista de diversas maneiras ao longo do tempo. Ora, com adornos
mágico-transcendentais, em que o sujeito consegue caminhar por diversos espaços de
sociabilidade, ora como algo que passa a ser símbolo de inimputabilidade, como um
veiculador de uma mensagem ilegítima, delirante, e encaminha-se como patologia
requerendo o auxílio médico. Noções de beleza, de comportamento corporal, de
moradia, de classe, de religiosidade, de cor, foram sendo ―encaixadas‖ e pré-
determinadas aos sujeitos sociais interferindo nas construções da loucura como doença e
sendo articulados aos tratamentos psiquiátricos vigentes. As representações da
sociedade vão sendo perpassadas e o imaginário de si acaba sendo mesclado com esses
conceitos.
A cientificidade do saber no século XIX traz, sobretudo, uma configuração
linguística nova em que o poder de quem fala conduz a relação com o objeto de que se
fala. Essa postura remodelada é algo que se apodera da relação médico-paciente. Para
Michel Foucault (2008) há mais uma concretude ―conceitual‖ do que qualquer ideia de
―desenvolvimento‖, de fato, estabelecido entre a Medicina Clássica e a Cientìfica.
É primordial, sobretudo, pensarmos em um século XIX como um período de
reflexões epistemológicas e teóricas acerca da elaboração dos conhecimentos gerais. A
própria historiografia passa por esse processo. Enfim, há toda uma metamorfose dos
saberes que tem início no fim do Medievo e início do Renascimento e que se consolida
no século XIX. A partir disso, no século XX o relativismo é introduzido em cena com a
teoria do físico Albert Einstein marcando assim um contexto de novas configurações
nos diversos campos de saber. É iniciada uma ―marcha‖ em que é necessário quebrar
―estruturas‖ ligadas às verdades absolutas e pensar nos meios de ―racionalidades‖
diversas.
A mobilização dos saberes é uma marca destes dois últimos séculos. A realidade
histórica, portanto, é vista como uma construção. Sendo assim, a essência do
relativismo é compreender que não existe um campo de saber imutável. Para Michel

712
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Foucault há uma mudança de discurso em relação à loucura. Porém, esse novo


posicionamento não implica, necessariamente, em progresso.
Em ―O Nascimento da Clìnica‖ (1987), Foucault diz que existe uma mudança de
―linguagem‖, mas que esse fator não está ligado, necessariamente, ao progresso da
postura médica e dos seus consequentes resultados. Mas, é necessário enfatizarmos que
Foucault não nega que existam mudanças. O autor enxerga, sobretudo, que não há uma
ruptura entre o século XVIII e o XIX com a institucionalização da psiquiatria. De
alienação mental à doença, o filósofo pensa em como isso é refletido por meio dos
discursos. Aqui, Foucault percebe o discurso como ponto chave da construção do saber-
poder psiquiátrico em cima do dito ―louco‖. Inclusive, ele aponta o número crescente
das ―caracterìsticas‖ das doenças mentais. Sendo assim, fica clara a dimensão do
discurso que Foucault problematiza e leva à tona no século XX. Não foi uma aceitação
simples dentro do meio científico/acadêmico. Foucault traz um modo próprio de se
relacionar com a História, a Psiquiatria, a Literatura, a Linguagem, a Psicologia e a
própria Filosofia.
O método Nietzschiano assemelha-se muito ao que Foucault insere em seus
trabalhos. Isso tudo fica exposto na própria ruptura com a filosofia clássica (não há
―continuação‖ de nenhuma das filosofias anteriores), pois com Nietzsche a razão é
questionada
no sentido de que a preocupação não é mais com o verdadeiro e o falso. Sendo assim, o
cenário é transformado e Foucault vai atrás dessa mudança de perspectiva.
Para Foucault (2014, p.10), ―o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as
lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo porque, pelo que se luta, o poder do qual
nos queremos apoderar‖. O discurso e o desejo de verdade estão sendo atrelados. Ele
nos faz pensar em torno da razão e da desrazão. Aponta-nos em como essa dicotomia é
fabricada e desconstrói uma noção de verdade absoluta. Foucault diz que há o
envolvimento das palavras com quem transmite, mas que o discurso vai tomando
proporções muito maiores e distintas ao longo do tempo que o próprio transmissor não
seria capaz de acompanhar. Sendo assim, o domínio do discurso pertenceria ao próprio
discurso. Mas é claro que há determinada identificação do indivíduo que recebe e,
assim, o discurso ganharia uma proporção plural dentro das singularidades de cada meio
que ele invade e que o molda conforme o passar do tempo. O discurso é
visto/considerado a partir de uma apropriação.

713
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

A falta de consciência, de racionalidade, de lógica, direcionada aos que sofrem


de transtornos mentais, cria um discurso incapacitante em cima desses indivíduos e os
generaliza em uma figura que perdeu o sentido de sua própria existência. Foucault faz
pensar em como essa tradição arraigada é remodelada através das políticas públicas.
Nos mostra que existe uma rede de interesses que refletem no dia-a-dia desses
indivíduos. Passamos a pensar nas noções de cidadão, de utilidade, de produtividade.
Percebemos o contexto econômico que se pauta no capitalismo e em como ele acelera o
cotidiano mais ―ameno‖ do perìodo medieval (apesar dos perìodos de guerras,
epidemias e fome) e a mentalidade vai gradualmente acompanhando esse processo do
devir.

DISCUTINDO CONCEITOS

Simpatizante dos Annales e da história-problema, Michel Foucault enxerga o


ofício do historiador como algo que deve, intrinsecamente, ser ligado às revoluções, às
descontinuidades, ao discurso, à ausência de sedimentação, às construções do real e da
verdade. Foucault rompe com o modo tradicional da narrativa da loucura e dá voz aos
―silenciosos‖ gritos que tanto percorriam os manicômios. Partiu para uma ótica que
desvenda o próprio objeto através dos signos de dominação psiquiátrica. As fontes
utilizadas por ele foram diversas. Além de tratados médicos, analisou documentos
institucionais e a própria literatura. ―O Elogio da Loucura‖ (2011), de Erasmo de
Roterdã é um exemplo citado na obra e mostra essa miscelânea de campos de saber na
construção de ―História da Loucura‖ e, também, em outros trabalhos. O autor indica
focos de análise que perpassam o período clássico e moderno percebendo como o social
cria padrões de normatividade e insere representações da loucura diferentes ao longo do
devir histórico. Veja no trecho abaixo essa relação:
A prática do internamento, no começo do século XIX, coincide com o
momento no qual a loucura é percebida menos em relação ao erro do que em
relação à conduta regular e normal; no qual ela aparece não mais como
julgamento perturbado, mas como perturbação na maneira de agir, de querer,
de ter paixões, de tomar decisões e de ser livre (FOUCAULT, 1997, p. 48).

Maria Clementina Pereira Cunha (1988) em ―O Espelho do Mundo: Juquery A


História de um Asilo‖ pensa em como se constituìam as relações dentro do espaço
―asilar‖ e fora dele. Aspectos como: urbanização, ordem, limpeza visual, preconceitos,

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instituições sociais, medicina, psiquiatria foram colocados sob o olhar de Clementina.


A autora buscou, inclusive, problematizar as correlações de forças historiográficas que
teciam os discursos sobre mulher e loucura. Ela faz todo um questionamento acerca da
singularidade da palavra ―mulher‖ e aponta uma crìtica para uma ―estrutura‖ rìgida que
se montava (em cima do sistema patriarcal do século XX), criando uma única
representação do que é ser mulher. Esta imagem encaminhava-se para um gênero
feminino propenso à loucura. A autora pensa, dessa maneira, numa particularidade do
indivìduo dentro do coletivo. Percebemos isso em um trecho da obra ―Elogio da
Loucura‖ (2011), publicada no século XVI, de Erasmo de Roterdã:
Senhor, — disse-lhe eu — dê uma mulher ao homem, porque, embora seja a
mulher um animal inepto e estúpido, não deixa, contudo, de ser mais alegre e
suave, e, vivendo familiarmente com o homem, saberá temperar com sua
loucura o humor áspero e triste do mesmo. Quando Plutão pareceu hesitar se
devia incluir a mulher no gênero dos animais racionais ou no dos brutos, não
quis com isso significar que a mulher fosse um verdadeiro bicho, mas
pretendeu, ao contrário, exprimir com essa dúvida a imensa dose de loucura
do querido animal. Se, porventura, alguma mulher meter na cabeça a ideia de
passar por sábia, só fará mostrar-se duplamente louca [...] Acreditai-me, pois,
que todo aquele que, agindo contra a natureza, se cobre com o manto da
virtude, ou afeta uma falsa inclinação, ou não faz senão multiplicar os
próprios defeitos. E isso porque, segundo o provérbio dos gregos, o macaco é
sempre macaco, mesmo vestido de púrpura. Assim também, a mulher é
sempre mulher, isto é, é sempre louca, seja qual for a máscara sob a qual se
apresente. (p.33, grifo nosso).

Portanto, discutiremos essa relação da loucura buscando os seus aspectos sociais


e culturais, perpassando por uma questão gênero, pensando na exclusão do feminino a
partir da construção dos campos sociais bem delineados. O lugar da mulher era
sustentado pelo discurso da loucura, da doença mental e queremos pensar nas formas
com que isso se estabelece na contemporaneidade.
A historiadora Yonissa Mamitt Wadi (2009) aponta que os recortes temporais
estão sempre voltados para os séculos XIX e XX pensando numa ―mentalidade‖ quase
absoluta. Yonissa enxerga uma necessidade de discussão historiográfica a partir do
movimento da Reforma Psiquiátrica (aqui no Brasil). Sendo assim, além de se adentrar
em uma História da Loucura ela discute sobre uma História da Psiquiatria que parte
dessas lutas ainda em processo. Assim como ela, acreditamos que essa preocupação em
pensar a partir dos acontecimentos, digamos, mais recentes é extremamente pertinente,
pois nos dá a oportunidade de problematizar o que está sendo posto.
A década de 1980 chegou trazendo consigo um questionamento dos próprios
pressupostos do hospital psiquiátrico, como o lugar por excelência para tratar
os loucos, e do saber psiquiátrico, como o legítimo enunciador da verdade da

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

loucura, reivindicando o resgate da cidadania das pessoas tidas como loucas.


(2009, p.73).

Uma circularidade cultural, dentro de uma ―estrutura‖ que é vista muitas vezes
como algo, estritamente, rígida, é trabalhada por Yonissa. Ela pensa nesses novos
cenários que vão sendo elaborados e ressignificados a partir de uma linha que envolve
Cultura, Relações de Gênero e Memória. Yonissa busca problematizar a
institucionalização dos Hospitais e da Psiquiatria no âmbito nacional percebendo as
veredas que foram sendo fabricadas no Estado do Paraná.
Com o intuito de perceber em como a ideia de ―loucura‖ tramita na sociedade
cajazeirense no tempo presente e, também, pensando em como as identidades dos
pacientes que utilizam esse serviço público são construídas, pretendemos historicizar
esse processo interno e externo de análise de si dentro de um contexto de virada de
século. Dialogaremos com prontuários médicos que nos darão meios de solidificar esse
estudo. A partir de, por exemplo, nome completo, idade, profissão, estado civil, quadro
clínico, entre outros, podemos indicar graus de parentescos entre os pacientes, faixa
etária que utiliza esse serviço na cidade, diálogo desses pacientes com a sociedade por
meio do trabalho, alcance de atendimento do CAPS às regiões circunvizinhas, suas
relações pessoais, duração do tratamento, o que levou esses indivíduos a procurar
auxílio, como está sendo o processo de tratamento, enfim, um leque de particularidades.
A institucionalização da saúde, no geral, se dá na transição do século XVIII para
o XIX. Aqui no Brasil se dá entre o final do século XIX e começo do século XX. A
vinda da famìlia real e a ―loucura‖ de D. Maria (mãe de D. João VI) foi o ponto de
partida para se pensar na psiquiatria no país. O primeiro hospício se inaugura no Rio de
Janeiro em 1852 e recebe o nome de Pedro II, segundo Nádia Maria Weber Santos
(2013). O número de hospícios vai aumentando no Brasil com o delineamento do
campo de saber psiquiátrico e a partir do ―movimento higienista‖.
No Brasil Império, momento em que o país tenta construir fortemente uma
identidade nacional através da literatura, com a chegada da família real ao Brasil, essa
―necessidade‖ de ser ―singular‖ passa a ser um discurso proferido na época e esteve
relacionado com a origem das instituições hospitalares ditas próprias para os loucos e ao
desenvolvimento da psiquiatria no paìs. Uma verdadeira vontade de ―limpar‖ os
sofrimentos alheios colocando em cena a constante felicidade intelectual e, claramente,
normativa com ares de boemia presentes e prioritárias na vida urbana brasileira. Sendo

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

assim, o diferente logo precisa ser ―catado‖, assim como os feijões que são retirados
quando não servem para cozinhar e o depositamos em seus lugares designados.
Os loucos precisavam de um lugar específico para que não trouxessem
problemas para a sociedade. Elisa Verona (2008) faz uma relação entre o Romance
(gênero literário de grande alcance de leitores na época, principalmente mulheres) e o
histerismo que é ligado, incisivamente, à mulher por conta do útero que provocaria
reações que seriam transmitidas ao cérebro. Enfatizamos que a mulher para ser contida
sexualmente, quando considerada histérica, era tratada com ―injeção de água gelada no
ânus, a introdução de gelo na vagina, a extirpação do clitóris ou dos órgãos sexuais
internos‖. (CUNHA, Maria Clementina Pereira. O espelho do mundo: Juquery a história
de um asilo. In: VERONA. O Romance, A mulher e o Histerismo No Século XIX
Brasileiro. 2008. p. 6). No período republicano essa preocupação aumenta e a
especialização entra em cena com os psiquiatras comandando o ―discurso‖ do saber-
poder médico acerca das pertinências da loucura.
É necessário, em vários momentos, como Michel Foucault fez com a
historiografia, pularmos dentro dos nossos próprios precipícios e desconstruirmos
verdades, supostamente, sedimentadas. É pensar ―A razão‖ não como mestra de tudo,
mas como uma árvore frutífera de racionalidades. A forma de representação da loucura
parte, também, do próprio ―louco‖. Acreditamos que é necessário colocar em prática o
diálogo com a literatura e os escritos de si. A partir disso, nós podemos entrecruzar
essas; ―narrativas que respondem às perguntas, expectativas, desejos e temores sobre a
realidade, a História e a Literatura oferecem o mundo como texto‖. (PESAVENTO,
2003, p.33). Essa união nos possibilita pensar nas subjetividades e no sensível da escrita
de si e das representações.
O que difere os dois discursos é que a História está intrinsecamente preocupada
em alcançar o real, diferente da Literatura que procura ousar em seus enunciados, com
os lirismos, brincando com as palavras. Mas, toda obra literária é fruto de uma época, de
um lugar social, ou seja, de um contexto. Segundo Pesavento (2003):
[...] geste entendimento da História como uma narrativa sobre o passado liga-
se ao conceito da representação, que encarna a idéia de uma substituição, ou
ainda da presentificação de uma ausência. Assim, no sistema de
representações sociais construídas pelos homens para atribuir significado ao
mundo, ao que se dá o nome de imaginário, a Literatura e a História teriam o
seu lugar, como formas ou modalidades discursivas que tem sempre como
referência o real, mesmo que seja para negá-lo, ultrapassá-Io ou transfigurá-
Io. (p.33)

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

A partir de uma perspectiva foucaultiana trabalharemos com conceitos como;


genealogia, saber-poder, subjetividade, descontinuidades, entre outros. Sendo assim,
desenvolveremos nosso olhar para uma ―história-filosófica‖ que não é, meramente,
cronológica, que pensa além das causas e que é desviante das ―estruturas‖
determinantes. O primeiro termo citado correlaciona os outros: ―Genealogia é uma
expressão que Foucault utiliza a partir de Nietzsche para designar um modo de
abordagem da constituição histórica dos objetos, sem remetê-los a um começo solene,
um inìcio fundamental.‖ (RESENDE, 2005, p.2). Esse conceito de genealogia traz um
―efeito‖ novo para o construto historiográfico em vários sentidos. O primeiro seria
desconstruir essas linearidades bem definidas que trazem uma proposta de ―inìcio, meio
e fim‖. Foucault trabalha mais ―explicitamente‖ com essa noção na obra ―Microfìsica
do Poder‖ (1979) em que ele faz uma relação entre os jogos do poder. Nesse sentido a
subjetividade é aflorada, pois como há uma noção de processo, de movimento, de
fluidez, percebemos como os recortes serão inseridos na pesquisa de modo que tenham
um ―sentido‖ quando agrupados, mas que não são estimados pensando em
essência/origem.
Com Chartier (1991) pensaremos em uma construção das práticas socioculturais
que criam os ―perfis‖ da loucura na contemporaneidade. Não é pensar, somente, nos
―moldes‖ em que a saúde mental está inserida no século XXI, mas percebê-la em fusão
com o cultural. Em relação ao conceito de representação para Chartier o entendemos
como: ―alternativa de compreensão do social e cultural da realidade via representação, o
real como sentido, ele recebe sentido, é representado‖. (GUARATO, 2009, p.6).
Queremos construir as relações de poder que envolvem o saber médico, as
relações com o social e como os indivíduos dentro de suas subjetividades são
―enxergados‖. É interessante enfatizar que o que é ―revelado‖ aponta, também, o
invisìvel, segundo Chartier. Queremos pensar além da dicotomia ―médico-louco‖,
enfatizamos que o desejo é permear em como o social relaciona-se com as práticas
discursivas e as representações culturais e entender essa dinamicidade.
Dialogaremos pensando nos indivíduos, nas diferenciações seriais e, claro, na
pluralidade que constituem as representações. Portanto, acreditamos que devemos estar
atentos e ―sempre tentar entender essa complexidade, essa simultaneidade de atitudes
muito diferentes segundo os indivìduos e segundo os grupos.‖ ( CORBIN, Alain. 2005,
p.16).

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Pensaremos na ―saúde mental‖ (termo que ganhou ênfase na década de 1980 a


partir do Movimento Nacional de Luta Antimanicomial) percebendo-a em seu
―emaranhado‖ de permanências, descontinuidades e transitoriedade do tempo,
apresentando com isso o caráter relacional do saber-poder que é estabelecido por meio
das práticas discursivas;
A década de 1980 chegou trazendo consigo um questionamento dos próprios
pressupostos do hospital psiquiátrico, como o lugar por excelência para tratar
os loucos, e do saber psiquiátrico, como o legítimo enunciador da verdade da
loucura, reivindicando o resgate da cidadania das pessoas tidas como loucas.
(WADI, Yonissa Marmitt. 2009. p.73).

A partir de Foucault iremos pensar o próprio termo ―loucura‖ que nem sempre é
atrelado às doenças mentais até porque foi criado anteriormente à sua
institucionalização. Ela é ligada, em suma, aos modos desviantes das normatividades
sociais. Foucault aponta que o dito ―louco‖ é dotado de historicidade. Um exemplo
disso está claramente no fenômeno da higienização na cidade do Rio de Janeiro do
inìcio do século XX que foi ―encaixado‖ em um padrão de normalidade do social e não
apenas em aspectos arquitetônicos. Essa relação entre o que é doença e saúde mental é
uma linha tênue que será analisada ao longo da pesquisa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É necessário percebemos o ―delineamento‖ do que é saúde e o que é doença


mental e em como se dá esse processo de luta pelo fim dos manicômios em fins do
século XX, aqui no Brasil, e adentrarmos nas atuais discussões sobre o aumento das alas
psiquiátricas por conta das problemáticas advindas do atendimento realizado pelos
Centros de Atenção Psicossocial que passaram a funcionar a partir da Lei Paulo
Delgado, referenciada acima. Trabalharemos também com os aspectos culturais desses
indivíduos, pensando em suas identidades que são construídas de forma coletiva e
particular, perpassando pelas sensibilidades.
Não podemos ser estranhos à loucura. O que é o ―invisìvel‖ dessa conjuntura, o
que é o ―não dito‖? E o que transparece? Quais os jogos de poder que estão sendo
estabelecidos? Tudo isso é pensar; qual a miscelânea de faces da loucura na
contemporaneidade? É necessário levantarmos essas problemáticas e desconstruir esse
estigma de exclusão ―naturalizado‖ acerca dos sujeitos que utilizam serviços de apoio e
tratamento à saúde mental.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Apesar de a escrita encerrar um processo de pesquisa, este trabalho não é um


epílogo, mas uma abertura de diálogo em que o leitor dará novas dimensões que
tampouco foram arquitetadas. Aos poucos os de (lírios) da pesquisa vão sendo
solidificados, seja de forma calculada ou instintiva.

REFERÊNCIAS

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Editora FIOCRUZ, 2000.

CERTEAU, Michel de. A operação historiográfica. A escrita da história, v. 2, p. 65-


109, 1982.
CHARTIER, Roger. O mundo como representação. Estudos avançados, v. 5, n. 11, p.
173-191, 1991.
CONCEPTA PADOVAN, Maria. As máscaras da razão: memórias da loucura no
Recife durante o período do Estado Novo (1937-1945). 2007.
CUNHA, Maria Clementina Pereira. O espelho do mundo: Juquery, a história de um
asilo. In: O espelho do mundo: Juquery, a história de um asilo. Paz e Terra, 1988.
DE ROTTERDAM, Erasmo. Elogio da loucura. Ediouro, 1985.

FOUCAULT, Michel. História da loucura na idade clássica. São Paulo: Perspectiva,


1997.
__________. O nascimento da clínica. trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2008.
__________. Ordem do discurso (A). Edições Loyola, 2014.
__________. Microfísica del poder. Rio de Janeiro: Graal, v. 979, 1979.
GUARATO, Rafael. Considerações acerca do conceito de representação e seus usos
historiográficos. 2009.
MARMITT WADI, Yonissa. UMA HISTÓRIA DA LOUCURA NO TEMPO
PRESENTE: os caminhos da assistência e da reforma psiquiátrica no Estado do
Paraná. Revista Tempo e Argumento, v. 1, n. 1, 2009.
PESAVENTO, Sandra Jatahy. O mundo como texto: leituras da História e da
Literatura. History of Education Journal, v. 7, n. 14, p. 31-45, 2003.
RAGO, Margareth. O efeito-Foucault na historiografia brasileira. Tempo social, v. 7, n.
1/2, p. 67-82, 1995.

720
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

SANTOS, Nádia Maria Weber. Loucura e sanidade psíquica, duas faces do


desenvolvimento humano–alguns aspectos historiográficos (Brasil, 1808-2008). Saúde
e Desenvolvimento Humano, v. 1, n. 1, p. 61-72, 2013.
VERONA, Elisa Maria. O romance, a mulher e o histerismo no século XIX
brasileiro. Americana, p. 12, 1974.
VIDAL, Laurent. Alain Corbin o prazer do historiador. Revista Brasileira de História,
v. 25, n. 49, p. 11-31, 2005.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

SESSÃO COORDENADA “HISTÓRIA E RELIGIOSIDADE”


COORDENADORES:
MARIANA MOREIRA NETO & SEBASTIÃO LEAL F. V. NETTO

DECLÍNIO DA IGREJA CATÓLICA, ESTAGNAÇÃO DAS IGREJAS


TRADICIONAIS E CRESCIMENTO DO PENTECOSTALISMO NO BRASIL
NO SÉCULO XX

HERIKA ALVES FARIAS DANTAS314

INTRODUÇÃO

O contexto religioso do Brasil desde o início é marcado fortemente pela


presença da Igreja Católica em praticamente todos os setores da sociedade, bem como a
ligação que essa religião tem com o Estado, demonstrando por muito tempo a influência
que o governo tem perante o catolicismo e a subordinação da igreja ao aparelho estatal.
Além disso, vemos também no século XIX a chegada do protestantismo em terras
brasileiras, incialmente por meio das imigrações alemãs, e posteriormente com a vinda
dos missionários norte-americanos; a presença do protestantismo no país aos poucos vai
ganhando adeptos e se fortalecendo, chegando a retirar fiéis da Igreja Católica, mas não
a ponto de ameaçar o seu controle.

314
Formada no curso de História pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), o presente
trabalho é parte da pesquisa do trabalho de conclusão de curso.

722
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

As missões protestantes que primeiro chegaram ao Brasil são as das igrejas


tradicionais, oriundas da Reforma Protestante do século XVI, posteriormente, mais
precisamente no início do século XX vemos a chegada de outra vertente do
protestantismo, vertente essa que vai exercer grande influência no meio religioso
brasileiro, o pentecostalismo com as igrejas Congregação Cristã no Brasil e Assembleia
de Deus. O movimento pentecostal ao longo do tempo vai ganhando destaque na
sociedade brasileira, pois vai conquistar muitos adeptos demonstrando um rápido
crescimento, passando na frente das igrejas tradicionais que já tinham sido estabelecidas
aqui a mais tempo, revelando uma estagnação dessas igrejas perante o pentecostalismo.
O método utilizado para a presente pesquisa se deu com a leitura de livros,
dissertações e teses que falam a respeito do tema proposto. O artigo foi dividido em três
partes, a primeira: ―Tradição católica: influência na sociedade, polìtica brasileira e seu
declìnio‖, trata da questão religiosa no Brasil, da influência do catolicismo na sociedade
e da sua ligação com o Estado, além disso vai ser tratada a chegada do protestantismo
no país e do declínio do catolicismo para essa nova religião em razão da perda de fiéis
para as igrejas protestantes. A segunda parte: ―Igrejas tradicionais e sua estagnação‖ vai
falar do crescimento dessas igrejas em solo brasileiro, mas apesar do seu crescimento
chega um momento de paralisação, ao contrário das igrejas pentecostais que crescem
vertiginosamente. A terceira parte: ―Presença pentecostal‖ fala a respeito da chegada do
pentecostalismo no país, a aceitação por parte do povo brasileiro e a influência que esse
movimento vai exercer no protestantismo e na religião no Brasil como um todo, e
também na sociedade.

TRADIÇÃO CATÓLICA: INFLUÊNCIA NA SOCIEDADE, POLÍTICA


BRASILEIRA E SEU DECLÍNIO

Desde os primórdios da história do Brasil vê-se a presença da igreja


Católica em praticamente todos os setores, influenciando não só os seus membros, mas
também a sociedade e a política do país. Dessa forma, no período colonial estabelece-se
um modelo de catolicismo, o da cristandade, onde o cristianismo se apresenta como
uma religião do Estado, e a relação com o aparelho estatal se dá na forma de união,
sendo uma instituição destinada para toda a sociedade; tendo como objetivo exercer
uma dominação social, política e cultural. Por conseguinte, podemos ver como o

723
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catolicismo exerceu sua dominação e propagou os ideais dos colonizadores através da


catequização dos indígenas, e da imposição da sua religião como a única que era capaz
de levar os homens à civilização e a ―salvação‖. Dessa forma, até 1890 a relação entre
os Estados (lusitano e espanhol) e a Igreja Católica era muito forte, sendo que essa
relação fez da América Latina um campo controlado por apenas uma instância religiosa.
De acordo com Gamaliel Carreiro:
Pelo sistema do padroado, os sacerdotes e missionários eram funcionários
reais. A serviço da Coroa, a cruz se aliou à espada. O padroado e o direito
português criaram uma estrutura oficial; canonicamente civil; para
conquistar, dominar a terra e disciplinar o sentimento religioso dos povos.
Não existia uma religião do povo, mas uma religião do Estado. (CARREIRO,
2007, p.63).

Podemos ver tamanha ligação entre essas instituições como se fossem uma,
a religião era uma forma do Estado penetrar na mente e na cultura da colônia,
inculcando nas pessoas os ideais pregados pelo governo, bem como os rituais religiosos,
onde acontece uma apropriação religiosa para legitimar o seu poder, e ela se apropria da
cultura dos indígenas tornando-a errada e demoníaca, sendo necessária a imposição de
uma instituição que conduzisse esse povo à ―salvação‖; tornando a Igreja Católica uma
empresa religiosa com objetivo de inculcar e disseminar suas práticas na população.
Ainda segundo CARREIRO (2007), o Estado fazia dessa crença seu instrumento de
poder, e a partir daí passou a orbitar em torno da Coroa, constituindo um ornamento do
trono. Gamaliel afirma que ―A situação de dominação do Estado em assuntos da Igreja
ao longo dos séculos XVI, XVII, XVIII e XIX foi se agravando de uma forma tal, que a
presença e a força do Papa e da Cúria Romana eram quase nulas‖ (CARREIRO, 2007,
p. 64).
Sendo o padroado uma forma do Estado predominar nos assuntos religiosos,
pois dava ao Imperador o direito de indicar todos os cargos eclesiásticos no Brasil,
sendo realizado pagamentos de salários para o clero, tornando-os como funcionários.
Além disso, todas as bulas e documentos papais que vinham para o país eram obrigadas
a ter autorização do Imperador, demonstrando o controle do aparelho estatal sobre a
Igreja e uma subordinação que ela tinha em relação a ele:
Quando a Igreja desejava aumentar sua presença institucional nas colônias,
não podia, pois dependia da boa vontade do Estado e de seus recursos para tal
incursão. Quando a questão tinha interesse do Estado tal empreendimento
acontecia; quando não, simplesmente o projeto era vetado ou arquivado.
(CARREIRO, 2007, p. 68).

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Por conseguinte, podemos perceber que por muito tempo a Igreja Católica
brasileira ficou subordinada ao Estado, como uma espécie de desmembramento do
governo, tomando como exemplo a constituição de 1824 que demonstra a supremacia
do aparelho estatal em detrimento da igreja, e a grande eficiência em controlar a
religião, pois é atribuído ao Imperador nomear bispos e prover benefícios eclesiásticos.
Apesar desse controle, é interessante ressaltar a importância que o catolicismo vai
exercer durante o período imperial, pois se constitui como uma das bases da cultura e
das estruturas política, social, econômica e jurídica da sociedade brasileira, além disso
essa instituição religiosa vai gozar de benefícios e privilégios por ser a religião oficial
do país, tendo também o prestígio e influência que vai adquirir junto à sociedade,
influência essa que se repercute até os dias atuais.
Mesmo com os ganhos que a Igreja Católica conquistou, ela obteve diversas
perdas: como o enfraquecimento e desgaste das instituições e agentes católicos, além
dos descontentamentos com o Estado que controlava a instância religiosa deixando-a
submissa e dependente do governo, tomando como exemplo de conflito entre Igreja e
Estado é a questão religiosa, onde o papa Pio IX envia uma bula excomungando todos
os católicos que estivessem envolvidos com a maçonaria, atingindo diretamente d.
Pedro II que integrava os quadros da instituição censurada, dessa forma o Imperador
formula um decreto não reconhecendo a ordem dada, entretanto os bispos de Olinda e
Belém resolvem acatar as ordens do papa expulsando párocos ligados à maçonaria, por
conseguinte esse acontecimento vai desgastar bastante a relação entre coroa e igreja, e a
partir daí possibilitará uma nova fase do catolicismo, resultando em uma maior
independência dessa instituição perante o governo.
Além do desgaste entre o Estado e a Igreja, podemos ver nesse período a
inserção do protestantismo no país de forma institucional e definitiva a partir do século
XIX, inicialmente nos anos 20, com a presença imigrante incrementado através do
Tratado Comercial com a Inglaterra em 1808, que previa a liberdade de culto, e,
posteriormente como resultado do empreendimento missionário estadunidense, o
―protestantismo de missão‖, descrito na literatura especializada; fase essa do
estabelecimento do movimento protestante no Brasil com a chegada de diversas missões
religiosas, principalmente as norte-americanas, e o começo da atividade dirigida a fazer
prosélitos entre os brasileiros.
Outro ponto que vai ser de fundamental importância para a implantação
dessa nova religião no país vai ser a chegada da mão-de-obra imigrante, visto que o

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Brasil tinha crescente necessidade desse tipo de trabalho, que tinha maior
predominância em países de tradição protestante, ao contrário dos países com tradição
católica. Sendo necessário o estabelecimento de algumas garantias, particularmente no
que se refere às liberdades e aos direitos destas populações; essa liberdade religiosa vai
ser essencial para a propaganda do Brasil no exterior com o intuito de atrair esses
trabalhadores. É interessante destacarmos que o modelo de formação e prática
sacerdotal herdado da tradição tridentina que Roma formava seu clero, não foi aceito de
forma espontânea pela ―Igreja popular‖ no paìs, manifestando um certo anticlericalismo,
sendo assim, isso vai consistir em um elemento que vai impulsionar grandemente as
camadas populares abraçarem o protestantismo.
Com a chegada do protestantismo no Brasil, as reações iniciais foram de
curiosidade, interesse e indiferença. As reações dos setores do clero foram variadas,
alguns mais reticentes, outros hostis e menos os de influência jansenista 315. Além disso
o anticlericalismo entre as elites, citado anteriormente, e uma aproximação com o
pensamento liberal, constituíam-se como fatores simpáticos ao protestantismo. Dentro
desse cenário, as perseguições foram episódicas e particulares, o que podemos
depreender que mesmo o catolicismo sendo a religião oficial, há uma certa abertura a
uma nova instância religiosa, cabendo uma análise e ponte com a atualidade, onde
mesmo o cristianismo, no sentido geral, abarca a maior parte da população brasileira, há
espaço para diversas religiões e pensamentos acerca de uma Alteridade no Brasil.
Entretanto, a reação romana contra a presença protestante se deu pelo esforço de
supressão da propaganda católica, pela difusão de literatura religiosa, pelo incremento
das ―santas Missões‖ e o confisco de sua literatura, como a queima de bìblias
protestantes em Olinda no ano de 1865.
Dessa forma, com a chegada das missões protestantes no Brasil e com a
disseminação da sua mensagem, vemos a partir do início do século XIX e mais
precisamente na sua segunda metade em diante um declínio do catolicismo, onde
despertará um curiosidade e simpatia com a mensagem protestante, gerando uma perda
de fiéis para as igrejas tradicionais. Apesar disso, as igrejas tradicionais, que foram as
primeiras a chegarem aqui, não chegaram a representar uma ameaça a hegemonia
católica, pois essas igrejas mesmo com a aceitação por parte da sociedade, não tiveram

315
O jansenismo foi um movimento reformista dentro da Igreja Católica. Fundou suas bases teológicas no
agostianismo, em detrimento do tomismo, e acentuou tendências anti-jesuítas e de distanciamento da
contrarreforma.

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tanta força no país como as igrejas pentecostais que teve o início das missões no país no
início do século XX com a Igreja Assembleia de Deus e a Congregação Cristã no Brasil.
Por conseguinte, podemos perceber como as igrejas de tradição pentecostal vão ter uma
maior influência na sociedade brasileira em detrimento das igrejas tradicionais.

IGREJAS TRADICIONAIS E SUA ESTAGNAÇÃO

Como já foi dito anteriormente, o estabelecimento protestante no Brasil se


deu definitivamente a partir do século XIX. Onde se estabelece o modelo do
protestantismo de imigração na primeira metade do século XIX com a chegada dos
imigrantes alemães, já o protestantismo de missão, que teve mais influência no país, foi
instituído na segunda metade do mesmo século por missionários norte-americanos e
europeus. As primeiras igrejas protestantes que foram implantadas em solo brasileiro
são mais conhecidas por igrejas tradicionais, pois compreende principalmente as igrejas
que tiveram sua origem no início da Reforma Protestante, ou bem próximo a ela. De
acordo com Sandra Rosa (2009), as igrejas tradicionais são caracterizadas
principalmente por rejeitarem a adoração de imagens, a crença na glossolalia 316 e no
exorcismo317, tendo como centro da sua mensagem o estudo da bíblia e a aplicação
desses ensinamentos em sua vida.
As alianças evangélicas tiveram uma forte influência para a implantação do
protestantismo no Brasil, pois eram uma iniciativa das igrejas protestantes nascidas na
Inglaterra no final do século XIX. Esse movimento tinha como característica a teologia
dos movimentos pietistas318 e fundamentalistas que tinham como propósito formar uma
frente única para disputar espaço com o catolicismo, que para eles era o único
empecilho para o avanço missionário iniciado no final do século XVIII. Sendo assim, a
influência desse movimento alcançou o Brasil no começo do século XX, com o avanço

316
O dom de falar em línguas estranhas ocorreu no dia de pentecostes relatado no segundo capítulo do
livro de Atos, no qual acredita-se que os cristãos tenham se reunido para fazer orações até que em certo
momento o Espírito Santo atuou distribuindo a habilidade de louvar a Deus em línguas que não
conheciam, que, no entanto os estrangeiros presentes puderam entender.
317
Expulsão de espíritos malignos que afligem a vida do indivíduo.
318
O pietismo é caracterizado principalmente por afirmar a possibilidade de uma experiência pessoal com
Deus.

727
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de missionários protestantes em todo mundo e que receberam o patrocínio das alianças


evangélicas.

Dessa forma podemos destacar um ponto que difere substancialmente o


catolicismo do protestantismo, pois o primeiro foi definido pela visão da unidade, já o
segundo foi o contrário da tradição católica, pois os protestantismos do século XVI
foram bem mais longe na variedade de tendências e instituições que a geraram,
revelando a dificuldade de se manterem unidos. Portanto, não houve apenas um
movimento reformado na Europa do século XVI, mas quatro: reforma luterana,
calvinista, anglicano e anabatista. Na América Latina, as religiões que são oriundas da
Reforma Protestante Europeia do século XVI são denominadas de evangélicas. Sendo
assim, o protestantismo no Brasil é marcado por três fases: ―protestantismo de
conquista‖, ―protestantismo de imigração‖ e ―protestantismo de missão‖. Como já foi
mencionado o protestantismo de imigração tem origem na primeira metade do século
XIX, com a chegada de imigrantes alemães no Brasil principalmente na região sul, e em
1824 é funda a Igreja Evangélica de Confissão Luterana do Brasil.

Essa corrente religiosa influenciou na formação cultural moderna no país, outro


fator que vale a pena destacar, é que no protestantismo de imigração os líderes
protestantes tinham suas atenções voltadas para atender as necessidades espirituais dos
seus compatriotas em terra estrangeira, segundo Edson d‘Avila (2006). A fase que
correspondeu a um efetivo estabelecimento protestante no paìs foi o ―protestantismo de
missão‖, com a chegada de missões de variadas denominações religiosas, sobretudo
estadunidenses. Um fator que vai favorecer a fixação do protestantismo no Brasil foi a
assimilação da mão-de-obra de imigrantes estrangeiros no país, e que era maioria nos
países de tradição protestante.

O pensamento que vai marcar o tipo de protestantismo que veio para o Brasil foi
o evangelical, esse pensamento tem como característica a ênfase espiritualista e
moralista que é o centro do conceito de disciplina eclesiástica e de natureza
comportamental. Foi através do doutor Robert Kalley que teve início uma missão
protestante definitiva, e que a partir disso seria a origem das igrejas congregacionais no
Brasil. Contudo, como já foi dito anteriormente, as igrejas tradicionais que deram início
ao movimento protestante no país não demonstraram ter condições suficientes para
rivalizar com o catolicismo, chegando a sua estagnação, ao contrário do movimento
pentecostal que crescia de forma muito rápida, uma diferença no crescimento mostra um
728
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novo perfil de religiosos no país que se diferencia dos católicos e das igrejas
tradicionais. Campos e Dolghie justificam essa maior aceitação ao pentecostalismo
devido: ―O pentecostalismo se aproxima muito do catolicismo popular, mais por
aspectos culturais do que teológicos, uma vez que sua teologia teve sua matriz no
protestantismo tradicional‖. (CAMPOS; DOLGHIE, 2012, P.38).

A justificativa que se dá para uma maior aceitação do pentecostalismo em


detrimento das igrejas tradicionais e uma possível semelhança com o catolicismo
popular, é a simplificação teológica pentecostal, visto que nas igrejas tradicionais há um
maior rigor e exigência por parte das lideranças para um estudo mais detalhado da
bíblia; enquanto que nas igrejas pentecostais não há tanta preocupação quanto a isso, o
que acaba atraindo principalmente a população de classe social mais baixa que não tem
uma letramento tão aprofundado. E ainda segundo Campos e Dolghie:
Enquanto o protestantismo histórico lutava contra o catolicismo e para levar a
nação ao evangelismo, o pentecostalismo surgia e crescia alimentado por
aqueles que a rigidez, a racionalização e a ética protestante não conseguiam
atingir: a população urbana de baixa renda, sem qualificação para o mercado
de trabalho, com pouca escolarização. (CAMPOS; DOLGHIE, 2012, P.39).

Essa aceitação ao pentecostalismo é demonstrada principalmente nas décadas de


50 e 60, enquanto os protestantes não pentecostais cresceram em torno de 10%, os
pentecostais cresceram cerca de 60%. Revelando o que já tínhamos destacado, embora
as igrejas tradicionais chegassem a dar um certo desequilíbrio ao catolicismo, não
chegou a ameaçar sua hegemonia e com o passar do tempo a estagnar o seu crescimento
principalmente com a chegada das igrejas pentecostais que vão ter um crescimento
vertiginoso em todo país. Outro fator interessante que faz com que o pentecostalismo se
sobressaia às igrejas tradicionais, foi a maior aceitação por parte das massas devido ao
seu tipo de pregação que foca na existência de um ―reino no céu‖ que ―não haverá mais
sofrimento‖ o que acaba conquistando pessoas de classe social mais baixa que procuram
um alívio para o seu sofrimento. Dessa forma, podemos perceber a influência
pentecostal e a estagnação das igrejas tradicionais não apenas no século XX, mas ainda
nos dias atuais onde as pentecostais crescem vertiginosamente não só em número de
membros, mas também na quantidade de igrejas que são construídas, mas isso também
nos mostra como o protestantismo tem se tornado importante na sociedade brasileira,
seja com as igrejas tradicionais ou pentecostais. Por conseguinte, é interessante
entendermos um pouco mais sobre esse movimento e como a influência do
pentecostalismo marcou o protestantismo no Brasil.

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PRESENÇA PENTECOSTAL

Além dos outros grupos anteriormente já citados, existe outro que vai conquistar
uma grande aceitação da população brasileira, os ―pentecostais‖. É no inìcio do século
XX que o pentecostalismo moderno é institucionalizado, e geralmente é com a leitura
do texto bìblico de Atos 2.4 que retrata a ―descida do Espìrito Santo‖ e o falar em
línguas no dia de Pentecostes, retratados em uma pregação do pastor William J.
Seymour em uma igreja de Nazarenos.319 Acreditava-se que além da conversão e
santificação haveria uma terceira benção, o ―batismo com o Espìrito Santo‖, que é
demonstrado pelo falar em outras línguas e que até hoje é a marca do pentecostalismo.
Com essa interpretação fez com que Seymour fosse expulso da igreja dos nazarenos, e a
partir disso juntamente com outros defensores do ―falar em lìnguas‖ alugaram um
antigo templo na rua Azusa e iniciaram o movimento com o nome de ―Fé Apostólica‖,
ou também conhecido por movimento da rua Azusa que atraía vários grupos
evangélicos curiosos por esse fenômeno religioso, e que serviu também como um centro
de formação missionária para outros países.
Charles Fox Parham,320ligado ao movimento de santidade do meio-oeste
estadunidense, teve a primeira experiência do ―falar em lìnguas‖, e a partir disso
convenceu-se que a glossolalia, ato de falar em outras línguas, representava a evidência
decisiva do batismo no Espírito Santo e que era a chave para o avanço missionário para
a evangelização mundial, criando o ―Movimento de Fé Apostólica‖. Seymour após
contato com Parham popularizou o movimento em Los Angeles na rua Azusa como já
foi mencionado. Segundo Eduardo Paegle:

Los Angeles, por ser uma cidade que recebia inúmeros imigrantes,
certamente, se tornou um lugar propício para a propagação do dom de
319
A Igreja do Nazareno (em inglês:Church of the Nazarene) é uma denominação
cristã protestante surgida nos Estados Unidos na década de 1900 e derivada do Movimento de
Santidade do século XIX, sendo a maior denominação a ter como base os princípios do Wesleyanismo e
do Metodismo.[2] Possui cerca de 2 milhões de membros, conhecidos como "Nazarenos", em 29.365
templos espalhados pelo mundo.
320
Charles Fox Parham (4 de junho de 1873 — 29 de janeiro de 1929) foi um pregador estadunidense,
sendo considerado um instrumento fundamental na formação do pentecostalismo.[1] Parham também criou
um movimento chamado de Apostolic Faith (Fé Apostólica), constituído por igrejas independentes
(inicialmente chamadas "missões") que cresceram no sul e no oeste dos Estados Unidos, onde ele
realizava as suas reuniões. Embora a imprensa fora inicialmente favorável em algumas das áreas onde
Parham ministrava, algumas das maiores igrejas de linha principal, e a hierarquia eclesiástica da cidade de
Sião, não foram favoráveis ao seu ministério e fizeram de tudo para que os seus ensinamentos não
prosseguissem. Como resultado, alguns relatórios da imprensa tornaram-se mais negativos a medida que o
seu ministério se aproximava do seu ápice entre 1906 e 1907.

730
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línguas, de um fenômeno, que já se inicia transnacionalizado ou, em


outras palavras globalizado. (PAEGLE, Eduardo Guilherme de
Moura, 2013, p. 28.).

Dessa forma, Charles Parham é considerado o fundador do pentecostalismo, pois


ele forneceu uma conexão teológica de suma importância para a emergência do
movimento, e assim diferenciando do movimento de santidade321 no qual ele foi gerado.
O movimento pentecostal chega ao Brasil através de Luigi Francescon de origem
italiana, mas que migrou para os Estados Unidos no final do século XIX. Inicialmente
era membro da primeira Igreja Presbiteriana Italiana, mas por não aceitar o batismo por
aspersão, quando o ministro aplica certa quantidade de água sobre a pessoa sem
necessidade de locais específicos com grandes quantidades de água, e defendendo o
batismo por emersão que é o oposto da aspersão; gerando o seu desligamento e de
outros ―irmãos‖ onde começaram a se reunir nas casas. Em 25 de agosto de 1907
recebeu o ―batismo com o Espìrito Santo‖ 322 através do ministério de William Durham.
No ano de 1910, Francescon implanta a igreja Congregação Cristã no Brasil, dando
início ao pentecostalismo, e sendo até hoje uma das principais igrejas pentecostais no
país.
Dando continuidade a presença pentecostal no Brasil, é importante falarmos
sobre umas das principais representantes desse movimento no país, a Igreja Assembleia
de Deus. A história dessa denominação começa com os dois missionários suecos
Gunnar Vingren e Daniel Berg, mas ambos residentes nos Estados Unidos e que
chegaram ao Brasil no ano de 1910. Segundo é passado para os membros dessa igreja é
que a chegada desses missionários aqui foi por meio de um sonho que Adolf Uldin teve
revelando a missão de Gunnar Vingren e Daniel Berg irem para o Brasil com destino ao
Pará, sendo que eles não conheciam o Brasil muito menos o Pará e tiveram que ir até
uma biblioteca local para achar a localização; e além do mais não tinham nenhum
dinheiro nem foram financiados por nenhuma igreja, o que era comum na época para
avançar o evangelismo protestante no mundo. Mas de acordo com Siepierski, a estória

321
O Movimento de Santidade (em inglês: Holiness Movement) no cristianismo é um movimento que
ensina que a natureza carnal da humanidade pode ser purificada através da fé e pelo poder do Espírito
Santo possibilita que seus pecados sejam perdoados através da fé em Jesus Cristo. Os benefícios incluem
poder espiritual e uma capacidade para manter a pureza de coração (que foram, pensamentos e motivos
corrompidos pelo pecado). A doutrina é tipicamente atribuída nas igrejas de Santidade como
total santificação ou perfeição cristã.
322
O batismo no Espírito Santo para os pentecostais é uma obra distinta e à parte da regeneração, esse ato
acontece de forma simbólica diferente do batismo nas águas, e a evidência que ocorreu esse batismo é o
ato de falar em outras línguas.

731
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desse sonho remete a passagem de Atos 2:17, ―vossos anciãos terão sonhos‖, e,
portanto, esse acontecimento ficou como um relato legitimador da obra dos
missionários no Brasil, ou seja, tornou-se o mito fundador das Assembleias de Deus.
Ele ainda destaca algumas observações:

A explosão missionária do século dezenove estimulou o missionário


autossustentado (Erik Nelson é um bom exemplo). Como as agências
missionárias denominacionais impunham uma série de restrições,
como preparo teológico, submissão à hierarquia, alcance de metas e
objetivos e, principalmente, a designação do campo onde o
missionário iria atuar (com o agravante de que as diferentes
denominações dividiam entre si, em nome da cooperação, os campos
missionários estabelecendo uma espécie de reserva de mercado),
aqueles que não se dispunham a atender tais restrições optavam pelo
autossustento. Com isso, além de tornar seu envio quase imediato,
ainda lhe proporcionavam uma aura de santidade pois iam ―pela fé‖.
(SIEPIERSKI, Paulo Donizéti, p. 15.).

Siepierski ainda afirma que:

O sonho nada mais fez do que conferir legitimidade espiritual a um


desejo e uma estratégia já externados e é certo que Uldin e, mais certo
ainda, Vingren, já tivessem consciência da localidade (a própria
consulta ao mapa já revela isso), se não por outros motivos, pelo
menos pelo fato que Uldin morava numa cidade receptora da borracha
proveniente do Pará, o ministério de Erik Nelson era conhecido nas
igrejas batistas suecas, suas cartas eram divulgadas nas conferências
atendidas por Vingren e, de não menor importância, o estrategista
missionário Durham já comissionara Luigi Francescon para a obra
missionária no sul do Brasil. Esse roteiro é extremamente comum no
meio pentecostal e foi reproduzido nas igrejas brasileiras quando elas
também começaram a enviar seus missionários. (SIEPIERSKI, Paulo,
p. 16.)

Dessa forma podemos ver como a chegada desses missionários ao Brasil é


passada de geração em geração por membros da igreja e como é vista de forma
plenamente sobrenatural. Deixando de lado os fatores que influenciaram a vinda de
Vingren e Berg para cá. Deixando-os com uma aura de santidade, e fazendo a imagem
da Assembleia de Deus como uma igreja que foi totalmente guiada por Deus desde a
sua fundação. Por isso é importante sabermos que a vinda de missionários para outras
partes do mundo era comum naquela época e como se dava a chegada dessas pessoas a
diferentes locais do planeta. Sendo assim, com o desligamento dos missionários da
igreja Batista aqui no Brasil, começou a realizar-se cultos nas casas das pessoas que
também saíram dessa igreja, pois simpatizavam com a mensagem pentecostal pregada

732
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

por Vingren e Berg, já que a batista não concordava com esse tipo de mensagem; a
partir de então, foi-se aumentando o número de pessoas nesses cultos até fundarem uma
igreja Missão de Fé Apostólica que posteriormente foi mudada para Assembleia de
Deus; e com isso vê-se um crescimento acelerado dessa igreja no Brasil, não só dessa
igreja mas do movimento pentecostal como um todo.
A partir de então podemos ver o quanto a Assembleia de Deus foi conquistando
uma simpatia por parte da sociedade brasileira, seja pela sua mensagem que atraía
principalmente a população de classe mais baixa, seja pelo investimento na criação de
igrejas, gerando uma ascensão do movimento pentecostal no Brasil que possibilitará o
surgimento de outras igrejas com essa mesma mensagem. Sendo assim, o crescimento
protestantismo no país se deve em grande parte, a expansão do pentecostalismo, pois
como já vimos as igrejas tradicionais não vão apresentar um crescimento suficiente a
ponto de rivalizar com o catolicismo. O crescimento pentecostal foi tamanho que Isael
de Araújo afirma que:
Uma estimativa feita em 1971 apontava que oito entre dez crentes
evangélicos brasileiros eram pentecostais. Foi o censo demográfico do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 1980 que primeiro
separou os pentecostais dos demais protestantes. (ARAÚJO, 2007, p. 585.).

Demonstrando o quanto as igrejas pentecostais estavam fazendo parte do


cotidiano religioso do povo brasileiro, e tomando como exemplo a Assembleia de Deus
podemos ver a quantidade de igrejas nas cidades, praticamente em cada bairro encontra-
se uma congregação dessa denominação, isso se dá devido ao investimento por parte
dos lìderes da igreja em evangelizar e com isso ―povoar‖ o Brasil e não só o Brasil, mas
também o mundo, pois essa denominação investe grandemente na preparação de
missionários para pregar a mensagem protestante e pentecostal em outros países. Outro
fato que também justifica um maior crescimento dessa igreja é que ao contrário das
denominações tradicionais, que para estabelecer uma igreja em um bairro, ou em outra
cidade há toda uma preparação começando de cursos teológicos para os futuros
pastores, para que assim eles possam assumir a liderança, na Assembleia de Deus não
há tanta preocupação com a preparação teológica dos pastores, o que mais importa é que
a pessoa esteja disposta a fazer a ―obra de Deus‖ e tenha recebido o ―batismo com
Espìrito Santo‖ ,e tenha uma vida de acordo com os padrões bìblicos e os padrões
estabelecidos pela igreja que ela pode assumir um pastorado, gerando então um maior
crescimento dessa igreja.

733
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

É importante destacar que com o crescimento da igreja Congregação Cristã do


Brasil e Assembleia de Deus, com o passar do tempo foram surgindo novas igrejas com
a mesma mensagem pentecostal e que assim foram atraindo cada vez mais membros,
tornando o Brasil um país de grande influência Pentecostal. Com o surgimento do
pentecostalismo tomando conta do cenário protestante no país foram construídas várias
tipologias que especificam melhor esse movimento; o de Paul Freston, publicado em
1994 é bem conhecido, pois ele trata o movimento pentecostal por meio das ondas; onde
a primeira onda se dá na década de 1910 com a Congregação Cristã do Brasil e a
Assembleia de Deus, a segunda onda que abrange as décadas de 1950 e 1960 com a
Quadrangular, Brasil para Cristo e Deus é amor, e a terceira onda neopentecostal, de
1970 e 1980 com a Igreja Universal do Reino de Deus e a Igreja Internacional da Graça
de Deus.
É interessante falarmos um pouco do neopentecostalismo, movimento esse que
já foi mencionado como a terceira onda do pentecostalismo e dissidente do mesmo. Ao
contrário do movimento pentecostal, onde a maior ênfase da sua mensagem é o
―batismo com Espìrito Santo‖ sendo externado com o ―falar em lìnguas‖ ,e a
rigorosidade nos usos e costumes que se refere a proibição do uso de calças pelas
mulheres e ao uso de barba pelos homens; a pregação neopentecostal centraliza-se na
dualidade do mundo espiritual dividido entre Deus e os homens e na teologia da
prosperidade onde vários líderes dessas igrejas ensinam:

No Brasil, eles também estão ensinando que todos os cristãos devem


ser ricos financeiramente, ter o melhor salário, a melhor casa, o
melhor carro, uma saúde de ferro, e que toda enfermidade vem do
Diabo. Além disso, dizem que se o cristão não vive essa vida
pregada por eles é falta de fé ou pecado na vida do cristão.
(ANDRADE, Joaquim, 2014, p. 100.).

Esse trecho mostra a diferença da mensagem pentecostal para a neopentecostal


enquanto que os pentecostais pregam o desapego as riquezas materiais e que os
problemas da vida como falta de dinheiro, doença e entre outros não é pecado ou falta
de fé, mas ―provações‖ que Deus faz a seu povo. A confissão positiva herdada da
teologia da prosperidade e que é bastante usada pelos neopentecostais prega que o
cristão tem poder nas suas palavras e o que ele declarar acontecerá, por exemplo: ―eu

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declaro que vou ter um carro novo‖, os neopentecostais acreditam que como Deus criou
o mundo por meio das palavras, os cristãos também receberam esse ―poder‖ para
conseguir as coisas por meio da palavra.

E isso nos mostra mais uma diferença em relação ao movimento pentecostal e


nos mostra também o quanto o neopentecostalismo tem atraído milhares de pessoas para
os seus cultos, pois ao contrário do pentecostalismo que prega uma separação do mundo
terreno e que só terá a verdadeira felicidade e paz no ―reino dos céus‖, os
neopentecostais acreditam que os cristãos podem e devem ter uma vida plena aqui na
terra, de ter o melhor e isso logicamente se torna atrativo, fazendo com que as igrejas
neopentecostais como a Universal do Reino de Deus que é a representante do
movimento aqui no Brasil cresçam cada vez mais.

Entretanto, é interessante perceber que mesmo com algumas diferenças já


citadas entre o neopentecostalismo e o pentecostalismo, esse movimento que é herdeiro
do movimento pentecostal também ganhou e vem ganhado grande aceitação por parte
do povo brasileiro, demonstrando o quanto esse movimento é influente na sociedade
brasileira, e ressalta o que já viemos falando o quanto o crescimento das igrejas
tradicionais estagna com a chegada do pentecostalismo, dando espaço para esse
movimento que tanto cresce no Brasil.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente estudo teve como objetivo analisar a questão religiosa no Brasil do


século XX, bem como analisar a chegada do protestantismo no país e como essa nova
religião vai atrair membro que irão sair da igreja católica, demonstrando um relativo
declínio do catolicismo diante das igrejas tradicionais, primeiras igrejas protestantes que
se estabeleceram por aqui.

Entretanto, mesmo com a retirada de fiéis da igreja católica as igrejas


tradicionais não chegaram a rivalizar nem tampouco ameaçar a hegemonia do
catolicismo. A partir daí podemos ver a chegada de uma nova religião protestante que
vai abalar o meio religioso brasileiro, o pentecostalismo, com a Congregação Cristã no
Brasil e a Assembleia de Deus, ambas chegaram no início do século XX em 1910;
Vimos então que o pentecostalismo vai ter uma boa aceitação pela sociedade brasileira,
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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

sendo demonstrado pelo crescimento acelerado que esse movimento vai ter, enquanto
que as igrejas tradicionais vão estagnar no seu crescimento.

Dessa forma, é interessante percebermos que essa questão do crescimento das


igrejas tradicionais e pentecostais ainda é algo que repercute nos tempos atuais, visto
que o movimento pentecostal cresce vertiginosamente com o passar do tempo, tanto no
número de templos ao redor do país, como no número de membros participantes dessas
igrejas; enquanto que as igrejas tradicionais crescem, mas é um crescimento mais lento
se comparados às igrejas pentecostais. Demonstrando que o protestantismo no Brasil é
nitidamente marcado pela vertente pentecostal e neopentecostal de forma mais recente.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CAMPOS, Breno Martins; DOLGHIE, Jaqueline Ziroldo. Campo cristão brasileiro no


século XX: Declínio católico, estagnação protestante e crescimento pentecostal. In:
LEONEL, João (Org.). Novas perspectivas sobre o protestantismo brasileiro v.2:
pentecostalismo e neopentecostalismo. São Paulo: Fonte editorial, 2012, cap. 1.

PAEGLE, Eduardo. A “mcdonaldização” da fé. O culto como espetáculo entre os


evangélicos brasileiros. 2013. 266 f. Tese (doutorado em ciências humanas) – Centro de
Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis.

CARREIRO, Gamaliel. Análise sócio-desenvolvimental do crescimento evangélico


no Brasil. 2007. 323 f. Tese (doutorado em ciências sociais) – Departamento de
Sociologia, Universidade de Brasília, Brasília.

SIEPIERSKI, Paulo. Gunnar Vingren e Daniel Berg: a propósito do período desses


dois batistas suecos nos Estados Unidos e de sua vinda para o Brasil, p. 1-18.

PENTECOSTALISMO. In: ARAÚJO, Isael. Dicionário do Movimento Pentecostal.


1. Ed., 3ª reimpressão. Rio de Janeiro: Casa Publicadora das Assembleias de Deus,
2007. P. 585.

736
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

“PROFETAS DO SERTÃO”: A RELAÇÃO ENTRE UMA CRENÇA


ASTROLÓGICA E O CATOLICISMO POPULAR NA CIDADE DE IBIARA –
PB (1960 a 1990)

LILIAN DE LIMA BESERRA323

RESUMO

Este trabalho tem como objetivo analisar a utilidade e o significado do almanaque - um


tipo de livreto composto por um calendário, previsões astrológicas - como elemento de
uma religiosidade popular no meio rural Ibiarense. ―O Nordeste brasileiro‖ é um
almanaque da autoria de Manoel Luiz dos Santos, no qual foram utilizados por uma
família de uma comunidade rural na cidade de Ibiara – PB. Pretendemos, portanto, com
base na leitura destes almanaques e a partir de depoimentos de agricultores e
agricultoras que participaram do contexto onde estes livretos tiveram maior relevância
nessa comunidade (entre 1960 e 1990), analisar as significações de um conteúdo
astrológico utilizados por agricultores de crença religiosa cristã. Tendo como aporte
teórico as discussões do historiador Peter Burke (2008) e Michel De Certeau (1974).
Palavras-chave: Almanaques; Religiosidade Popular; Astrológico;

INTRODUÇÃO

―Cultura é um padrão, historicamente transmitido, de significados


incorporados em símbolos, um sistema de concepções herdadas,
expressas em formas simbólicas, por meio das quais os homens se
comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas
atitudes acerca da vida‖ (apud BURKE, 2008, p.52).

De acordo com Geertz, citado por Burke (2008, p. 52), os símbolos, assim como
as práticas de um povo, são as ―chaves‖ para compreender-se a cultura de determinada
sociedade. Assim, em Ibiara, temos o almanaque como objeto de estudo para
analisarmos a estrutura tanto religiosa quanto social dos ibiarenses nas décadas já
precedidas.
É a partir da década de 1960 quando a História Cultural é redescoberta e passa a
ser estudada pelos historiadores, sem deter-se somente a questões políticas, econômicas,
mas passando a analisar práticas, costumes, símbolos de um povo, ou seja, a cultura
desse povo. E ainda assim, com bases nesses elementos, passa-se a compreender
também outros fatos ligados a sociedade (BURKE, Peter, 2008).
323
Graduanda em Licenciatura plena em História pela Universidade Federal de Campina Grande no
Centro de Formação de Professores (UFCG – CFP). Email: [email protected].

737
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Almanaque, palavra de vários significados: calendário, livro tem de tudo. Assim


também como há vários tipos: almanaque de farmácia, almanaque popular, almanaque
do pensamento.
Esta pesquisa trata-se ainda de um estudo inicial no qual apresentaremos o
significado da palavra almanaque, abordando o seu conteúdo, discorrendo sobre o autor
do almanaque que iremos analisar, assim também, o contexto e o público que os
utilizaram.
Segundo Le Goff (1996, p. 518), os almanaques começam a circular pela Europa
a partir do século XV, pois é o momento em que a ação publicitária desenvolve-se e
torna este livreto um objeto de publicidade. No Brasil ele surge no século XIX, período
que a família real aqui desembarca e o almanaque é utilizado como meio de divulgação
das atividades da coroa portuguesa (TRIZOTTI, Patrícia Trindade, 2007, p. 1).
O público que se utilizou dos almanaques populares sob o qual iremos
desenvolver essa pesquisa são agricultores de uma cidade do interior do sertão
paraibano, no nordeste brasileiro, onde ainda constam-se em sã consciência, passíveis
de entrevistas. Foi, justamente, no arquivo pessoal desses agricultores onde localizamos
os almanaques populares intitulados ―O Nordeste brasileiro‖, tendo como autor o
pernambucano Manoel Luiz dos Santos.
Enquanto integrante de um meio social no qual práticas e costumes tradicionais
são transmitidos de geração para geração, costumes estes influenciadores na vida de
cada indivíduo inserido em determinada comunidade, as práticas místicas utilizadas,
principalmente, por minha família, sempre influenciaram no decorrer do meu
crescimento. No entanto, ocuparam e ocupam um lugar de inquietação, pois, ao mesmo
tempo em que fui influída a crer em magias, profecias, sinais astrológicos, os dogmas
cristãos ocuparam também um lugar de crença, no qual, jamais deveria deixar de seguir.
No processo de consulta aos acervos históricos, me deparei com uma coleção de
almanaques que foram utilizados pela família na qual pertenço. Levando em
consideração a minha formação dentro de uma comunidade crente destas práticas, o
objeto de estudo em minhas mãos, literalmente, e as pessoas que se utilizaram dos
almanaques ainda com a possibilidade de contribuir, através de entrevistas, ao
desenvolvimento e respostas as questões dessa pesquisa, em que estas foram formadas a
partir do momento que percebi o seguimento desse povo em uma fé católica, mas ao
mesmo tempo usuários de práticas proféticas, senti-me com o dever de levar este
trabalho a diante.

738
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Portanto, com base na leitura destes almanaques, na influência das crenças


místicas em meu crescimento e através de entrevistas com os agricultores que fizeram
uso do almanaque ―O Nordeste brasileiro‖ e também com o produtor Manoel Luiz dos
Santos em que ainda encontra-se vivo, desenvolveremos essa pesquisa.

IBIARA: UM BERÇO DE COSTUMES E CRENÇAS:

Tendo em vista a formação cultural e social do Brasil, a presença de várias


culturas e crenças, o catolicismo, principalmente nas zonas rurais, trazido por
camponeses portugueses adentraram – se as essas camadas populares brasileiras e
difundiu-se com a inclusão de crenças populares, provenientes da presença de cultura
africana, indígena e europeia. (HOORNAERT, Eduardo, 1974). Esse catolicismo
popular é um tipo de sincretismo religioso, tornando-se a principal religiosidade das
pequenas cidades brasileiras, inclusive Ibiara.
A cidade de Ibiara desde a sua formação foi instaurada por seus ―fundadores‖
um dos símbolos desse Catolicismo popular: a imagem de Nossa Senhora do Rosário. E
com isso sucedeu-se o seguimento do povo a religião Católica, tendo como padroeira da
cidade a referida santa. No entanto, o sincretismo religioso nessa cidade faz-se aparecer
às superstições, práticas mágicas, astrológicas, profecias, onde o povo também incluiu
como pontos de crenças.
Uma sociedade formada em meio a uma escassez de pessoas alfabetizadas pode-
se pensar que não haveria a compra deste almanaque, já que ele não possui imagens que
tornasse possível a compreensão. Contudo, é notável ao analisarmos os agricultores que
faziam uso deste objeto, que estes possuíam um status social e financeiro maior do que
outros, também possuindo destaque por saber lerem. Os agricultores que compravam os
almanaques eram aqueles que possuíam referência na cidade.
Nesta sociedade agrícola a educação não estava no topo da pirâmide social, pois
importava mais possuir uma ―moral‖, terras, produtividade, ter um status social. Em
meio a este contexto, os almanaques tinham uma relevância para os agricultores
ibiarenses, pois as profecias proporcionavam-no rendas, consequentemente, aumentando
seu status.

Uma cidade hierarquizada, marcada pelas diferenças sociais, em que, neste


momento, os agricultores tinham a ―voz‖ na urbe, apesar de ser um momento que o

739
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

moderno e saberes científicos estavam chegando as cidades interioranas. Os


conhecimentos tradicionais e populares ainda eram prevalecentes em Ibiara, as
superstições, profecias, os (as) rezadeiros (as) ocupavam o lugar da cultura que desde a
formação da cidade era transmitido.

Os agricultores que contribuirão com essa pesquisa são pertencentes às famílias


que dentro de Ibiara estão inseridos no grupo de pessoas destacadas socialmente como
324
―direitos‖ , que possuem condições financeiras. Analisamos também que estes eram
quem possuìam a leitura e escrita, enquanto aqueles que não se ―encaixavam‖ com essa
classe estavam submetidos aos trabalhos desses donos de terra e, provavelmente, através
da relação ―patrão e trabalhador‖, tivessem conhecimento dos almanaques.

Dentre as práticas que se incluíram ao catolicismo, o almanaque torna-se um


elemento dessa religiosidade popular, que adquiriu a confiança dos agricultores
ibiarenses, pois estes fizeram do almanaque um dos elementos de fé, de crença. A partir
da década de 1960 quando começa a surgir em Ibiara traços de modernidade
caracterizando a cidade, o mundo rural ainda tem sua influência nesse novo meio que
surge modernamente, com práticas e costumes considerados ―atrasados‖.

DO CALENDÁRIO AO LIVRO TEM DE TUDO325:

―Constatou-se ou sentiu-se a cada passo que o calendário é o resultado


de um diálogo complexo entre a natureza e a história. É chegado o
momento de retomar a ação da história sobre o calendário,
acrescentando algumas considerações suplementares‖ (LE GOFF,
1996, p. 515).

Le Goff (1996) faz um estudo acerca do calendário e discorre que além de um


sistema ele é também um elemento cultural, tendo em vista os vários tipos de
calendários e o significado dele para determinada civilização326. Na França da Idade
Média os calendários eram objetos que remetiam a classe burguesa, só a elite que podia
adquiri-lo, usados para serem entregues como presentes aos vassalos para se tornarem
conscientes do tempo e assim pagarem os impostos.

324
Um conceito ainda utilizado por essas pessoas para qualificarem-se como homens honestos,
trabalhadores, que seguem as regras da sociedade tradicional.
325
CHARTIER, Roger; O livro dos livros: os Almanaques no Brasil; 1999.
326
Casa Nova (1996, p. 28) ressalta que: ―cada povo media o tempo e controlava-o conforme seu
cotidiano, sua crença. Cada povo, um calendário, uma história‖.

740
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

É a partir do século XV que os calendários começam a ser fabricados em forma


de xilogravuras, além do calendário em si, trazendo informações acerca das indicações
astronômicas para cada mês. Exibe também um conteúdo de propagandas,
principalmente, em homenagem ao rei Luís XIV, aos grandes personagens e heróis da
época, apresentando um conteúdo militar, político. Mas também, exibem conteúdos
sobre a pobreza e a miséria do período. (LE GOFF, 1996, p. 517)
Pode-se pensar que é a partir destes calendários que surge a necessidade de
adicionar mais informações a este objeto. Os almanaques surgem como um ―guia‖ para
as pessoas viverem melhores e informadas, pois estes ―livros‖ informarão sobre
acontecimentos do dia-a-dia da cidade, astrologia, receitas que ajudarão na saúde das
pessoas, ou seja, estarão contidos temas que interessa ao público tornando-se um objeto
de venda (NOVA, Vera Casa).

―Ilustrado com signos, figuras, imagens, o almanaque dirigi-se aos


analfabetos e a quem lê pouco. Reúne e oferece um saber para todos:
astronômico, com os eclipses e as fases da Lua; religioso e social, com
as festas e especialmente as festas dos santos, que dão lugar aos
aniversários no seio das famílias; científico e técnico, com conselhos
sobre trabalhos agrícolas, a medicina, a higiene; histórico, com as
cronologias, os grandes personagens, os acontecimentos históricos ou
anedóticos; utilitário, com a indicação das feiras, das chegadas e
partidas de correios; literário, com anedotas, fábulas, contos; e
finalmente astrológico‖ (LE GOFF, 1996, p. 518).

Já se percebe uma mudança/diferença do almanaque em relação ao calendário: o


seu público. Enquanto os calendários eram direcionados, exclusivamente, aos reis, a
burguesia, os almanaques serão produzidos, principalmente, para aqueles das camadas
―populares‖, que possuem pouca leitura e escrita, mas que ainda possuem um ―poder‖
na cidade, por isso, é repleto de imagens e ilustrações para que, a partir da leitura da
imagem, as pessoas possam compreender o conteúdo deste novo livro informativo.
―O Nordeste brasileiro‖, almanaque da análise desta pesquisa, teve como público
os agricultores ibiarenses, estes iam às feiras de final e início de ano com sede para
comprar os almanaques, pois estes revelariam as previsões chuvosas para o seguinte
ano, e os agricultores crentes dessas previsões faziam suas plantações. As feiras
ocorriam aos domingos na praça central da cidade, era o momento de dialogação e
encontro de agricultores com as pessoas da cidade, realizavam seus negócios,

741
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

compravam, vendiam, trocavam, conversavam assuntos acerca do cotidiano, das


famílias, dos arranjos para casamento, momento também de diversão, de bebedeiras.

―(...) Tempo que o calendário, espaço primordial no almanaque, define


como presente, passado e futuro, no período de um ano. Tempo de
vida, tempo de morte. Tempo de plantar, colher, para viver e não
morrer de fome. Economia. Produção de alimento: consumo. Saber
prever para prover. Por isso os dias de sol ou de chuva devem ser
previstos, ainda que com margem de erro. Se tudo no almanaque se
relaciona com o tempo, com o cálculo, nada mais natural do que
organizar as atividades e o cotidiano do homem em sua vida prática‖
(NOVA, Vera Casa; 1996; p. 48).
Não era só o conteúdo das previsões das chuvas que chamava a atenção das
pessoas, pois o almanaque ―O Nordeste brasileiro‖ é diversificado, continha os saberes
medicinais, o horóscopo, conselhos, e isto levavam muitos a comprarem estes livretos,
mesmo com o analfabetismo. O interesse em saber o que estava escrito em seu signo
para o decorrer do ano, as plantas nas quais se utilizaria para curar determinada doença,
o que se deveria fazer em determinada situação. Esses eram os assuntos que adentravam
o cotidiano destes agricultores, fazendo com que o almanaque fosse um tipo de
―conselheiro‖ que guiava o modo de vida das pessoas que o utilizavam.

―A melhor coisa que podeis dar aos vossos inimigos é o perdão; a um


adversário, tolerância; a um amigo, vosso coração; ao vosso filho, um
bom exemplo; a vosso pai, deferência; a vossa mãe, conduzir-vos do
modo que ela se orgulhe de vós; a vós mesmo, respeito; a todos,
caridade‖ (SANTOS, Manoel Luiz; 1974; p. 4).

Os conselhos vindos do ―profeta‖ tinham o respeito, a crença e o uso dos


agricultores, pois, segundo eles, Manoel Luiz tem a sabedoria e o dom enviado por
Deus. Seria como um transmissor dos pedidos da divindade, pois a partir do momento
que suas profecias concretizavam-se, gerava confiança e respeito para com esse homem.

Imagem 1: Almanaque ―O Nordeste brasileiro‖, 1974.

742
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Fonte: (Arquivo pessoal de Levi Beserra de Sousa).

É percebível o quanto de informações estavam contidas no almanaque de


Manoel Luiz, desde a forma do calendário em si até a notícias e novidades históricas
que despertavam interesse a leitura dos agricultores e os levavam a comprarem. Estas
informações eram justamente incluídas para tornar-se uma novidade e ―comprar‖ a
atenção e curiosidade dos leitores.

Imagem 2: Capa do almanaque ―O Nordeste brasileiro‖, 1974.

743
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Fonte: (Arquivo pessoal de Levi Beserra de Sousa).

Os versos estão presentes na capa de todos os almanaques analisados de Manoel


Luiz, estes, normalmente, com rimas que enaltecem Deus e os santos do cristianismo,
assim também como apresenta as previsões chuvosas e o que o homem deve fazer para
viver bem.
Encontrados em um arquivo pessoal, os dezoito almanaques no qual utilizarei
como fonte para o desenvolvimento desta pesquisa, possui como tìtulo ―O Nordeste
brasileiro‖ e foi produzido pelo pernambucano Manoel Luiz dos Santos. Pomian (1984,
p. 55) argumenta que é comum encontrar em moradias particulares, palácios e até em
tumbas conjuntos de elementos que já estão fora da circulação econômica, e as pessoas
mantém arquivados.
Estes almanaques são um exemplo disso, localizados em um espaço que, após
algum tempo, levaria a sua degeneração, pois as pessoas no qual utilizaram esses
livretos já não fazem mais uso, porque o conteúdo já não remete aos anos atuais. Porém,
apesar disso, mantém os mesmos guardados. Embora esta situação de armazenamento
não signifique para os ―colecionadores‖ uma coleção, Pomian ressalta que:

744
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

(...) ―não é necessário determinar quantidades. Porque, em geral, o


número de objectos que formam a colecção depende do local em que
se acumulam, do estado da sociedade, das suas técnicas e do modo de
vida, da sua capacidade de produzir e acumular o excedente, da
importância que se atribui à comunicação entre o visível e o invisível
por intermédio dos objectos‖ (1984, p. 67).

Diante disso, esse conjunto de almanaques é considerado uma coleção a partir da


ideia de Pomian ao argumentar sobre isso, pois independente da quantidade, o que
valerá para encaixar determinados objetos ao significado de coleção é a atribuição que
as pessoas no qual utilizaram fazem.

O “PROFETA DO SERTÃO”

Manoel Luiz dos Santos, o ―profeta do sertão‖, entendedor de sinais, o poeta.


Nasceu no ano de 1926, no sítio Batatas pertencente ao distrito de Barro Vermelho em
de São José do Egito – PE, uma cidade marcada pelos poetas e seus versos, a ―capital do
repente‖, a ―terra da poesia‖. Este é o lugar onde Manoel Luiz desenvolveu seu
almanaque abrangendo todo o sertão nordestino e que segundo ele ―circulava pelo
mundo todo‖ 327.
Com 91 anos de idade ainda relata sobre suas duas famílias, na qual ficou viúvo
de sua primeira esposa com cinco filhos e casando-se novamente com Olívia, que
durante três anos o ajudou na escrita do seu almanaque, devido a um problema de
Catarata em sua visão, impossibilitando de enxergar. Porém, atualmente, vive sozinho
na sua ―casa dos horóscopos‖ em São José do Egito.
Chamado por muitos de profeta e/ou poeta, assim também como ele considera-
se com essa denominação, teve uma formação em um curso Técnico de Contabilidade, é
―diplomado‖, ―Professor de Astrologia e Ciências Ocultas‖. Manoel Luiz possui uma
irmã e um irmão, no qual o irmão já faleceu e em sua família destacou-se por esse dom
que acredita-se ele e as pessoas crentes de suas profecias que foi enviado por Deus com
intermédio do ―Padim Ciço do Juzaeiro‖, em que este foi um dos seus ―incentivadores‖
para iniciar esse trabalho que o fez tornar-se conhecido em todo o Nordeste Brasileiro.
A residência de Manoel Luiz é o local onde este escrevia seus almanaques, se
debruçava sobre os papéis e preenchia as folhas com seus versos, poemas e profecias,
palavras que intimidavam o leitor e faziam ser verdade. Era o lugar onde ele também
327
Entrevista realizada com Manoel Luiz dos Santos no dia 14/08/2017 em São José do Egito – PE.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

vendia os Talismãs, amuletos da sorte para o homem deixar de ser cachaceiro ou para
você deixar aquele amor aos seus pés ou ainda adiar os dias de vida e ainda sobre
muitos outros desejos que você realizaria adquirindo o talismã, a pedra mágica. Assim
também como as pessoas se deslocavam para sua residência com o objetivo dele
―profetizar o futuro‖, como, por exemplo, foi relatado por sua irmã328 que as pessoas
antes de realizarem uma viagem iam diretamente a Manoel Luiz para saberem se daria
certo viajar em certo dia e horário.
Após colocar suas ideias no papel, Manoel Luiz dirigia-se, possivelmente, a
cidade de Caruaru - PE para datilografar em uma gráfica os seus almanaques e assim
enviar o seu conhecimento ao agricultor sertanejo. Ainda desconhecemos qual o trajeto
dos almanaques depois de serem datilografados e como chegavam à feira livre da cidade
de Ibiara. Isso ocorreu durante 42 anos de publicações.
Manoel Luiz, o profeta, é conhecido e ainda admirado por alguns agricultores
ibiarenses, contudo, devido à idade já avançada e o contexto social vivenciado
atualmente tornou-se irrelevante o trabalho destes profetas, pois os saberes modernos e
―cientìficos‖ ocuparam o lugar dessas práticas mìsticas que influenciaram durante
décadas a vida dos ibiarenses.
Durante essas décadas a serem analisadas, também percorreu pela feira de Ibiara
o almanaque de Manoel Caboclo, este residente em Juazeiro do Norte –CE e que
Manoel Luiz teve como seu ―sócio‖. Sempre aos finais e inìcio de ano, os agricultores
eram ansiosos pela chegada dos almanaques que, de certa forma, guiaria as produções
agrícolas. Aos domingos estes homens se deslocavam de suas residências rurais para a
rua, onde deixavam os filhos mais velhos em casa cuidando das obrigações e levava
somente o mais novo. Aqueles que já possuíam carro enchiam a carroceria de coco,
banana, macaxeira e iam em busca de adquirir o dinheiro da feira e pagar aos
trabalhadores semanais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Embora seja um caminho de pesquisa que ainda há muitas lacunas para serem
preenchidas, as análises desses almanaques populares que circularam no Nordeste

328
Entrevista realizada com Maria Barros da Conceição no dia 14/08/2017 em São José do Egito – PE.

746
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Brasileiro, possivelmente, nos levarão a tornar práticas e crenças de um povo em um


conhecimento histórico.
O presente projeto visa problematizar as significações deste almanaque popular
como elemento de uma religiosidade, crença, em uma sociedade caracterizada pelo
catolicismo cristão. Nesse sentido, buscamos investigar o lugar social dos agricultores
que fizeram uso desse objeto, assim como, abordamos teoricamente, a partir de Burke, e
outros autores os significados a palavra ―cultura‖.
Buscamos com essa pesquisa tentar preencher uma das lacunas acerca dos
almanaques populares no Nordeste, dando assim, uma importante contribuição a
historiografia, apresentando novos dados sobre esse campo de pesquisa e estudo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BURKE, Peter. O que é história cultural?. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
HOORNAERT, Eduardo. Formação do catolicismo brasileiro —1550-. 1800: ensaio
de interpretação a partir dos oprimidos. Petrópolis. Vo- zes. 1974.
LE GOFF, Jacques. História e Memória. 4. ed. Campinas, SP: Editora da UNICAMP,
1996.
NOVA, Vera Casa. Lições de almanaque: um estudo semiótico. Belo Horizonte,
Editora UFMG, 1996.
POMIAN, Krzysztof. Coleção. In: Enciclopédia Einaudi. : Imprensa Nacional Casa da
Moeda, 1984. V.1
SANTOS, Manoel Luiz. Almanaque “O Nordeste brasileiro”. 1974.
TRIZOTTI, Patrícia Trindade. Identidade Paulista: Construção e Representação nas
Páginas do Almanaque D` O Estado de S. Paulo. Anais eletrônicos da XXIV Semana de
História: "Pensando o Brasil no Centenário de Caio Prado Júnior‖. Assis – SP. 2007.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

SESSÃO COORDENADA “HISTÓRIA E MEMÓRIA”


COORDENADORES:
EDINAURA ALMEIDA DE ARAÚJO, HELMARA GICCELLI
FORMIGA & EDMUNDO MONTE BEZERRA

UMA BUSCA PELA VALORIZAÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL DA


CIDADE DE CAMPINA GRANDE

ANDRESSON ARAÚJO GOMES


UEPB
[email protected]

RESUMO

Em Campina Grande a transformação do espaço urbano tem se constituído um dos


principais motivos para a degradação do patrimônio histórico e cultural. Nos anos de
1930, quando se inicia a política de modernização com o prefeito Vergniand Wanderlei,
muito do patrimônio cultural foi destruído e reformado. Diante das transformações
geradas pela modernidade em campina Grande, a necessidade de preservação do
patrimônio histórico e cultural de Campina Grande é urgente. Com isso, busco
contribuir para a valorização e construção da história via memória de Campina Grande,
destacando o processo de modernização de Campina Grande e a consequente destruição
de seu patrimônio histórico e cultural.
Palavras-chaves: Amnésia Social, Memória, Patrimônio, Monumento.

INTRODUÇÃO

[...] O Casario de Campina Grande, com exceção de alguns edifícios


residenciais tipo bungalow, é acanhado e sem o menor gosto arquitetônico. É
uma das minhas cogitações estimular a construção de prédios modernos que
substituam os casebres inestéticos pelo menos na principal artéria da cidade
(A União, p. 1, 24 de set. 1935)

748
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Esta é uma fala do prefeito Vergniaud Wanderley, após ser eleito em 1935 na
cidade de Campina Grande ao jornal da União, no qual explica ao articulista do diário
seus planos e anseios no que diz respeito ao seu programa de administração para a
cidade.
Tais perspectivas de administração urbana estavam concentradas em um
contexto da metade do séc. XIX e início do séc. XX, no qual as cidades metrópoles
brasileiras passaram por um processo de modernização e higienização que marcaram a
história país, e principalmente dos habitantes que viveram e presenciaram tal
espetáculo. Era o adentramento do Modernismo.
Influenciados e inspirados pelas reformas urbanas e sanitárias europeias, e pelas
exigências do capitalismo em expansão; prefeitos, gestores e governantes brasileiros
mobilizaram suas atenções e pautas em projetos urbanos modernos que se
enquadrassem neste novo modelo exigido.
Isso fez com que as cidades sofressem modificações profundas afetadas pela
necessidade de modernização. Mais do que perder seus bens culturais, a modernidade
significava também a perca do seu lugar, do seu espaço e de seus costumes isto é, tudo
aquilo que simbolizava o antigo, o retrogrado, estava sendo dizimado das cidades a fim
de esquecer o passado de atraso das mesmas. Praças, paço municipais, monumentos e
com eles costumes, referenciais de memória, espaços culturais sociais foram destruídos
em favor do progresso.
Em Campina Grande não foi diferente. Nos anos 1930, o prefeito Vergniaud
Wanderley, citado no começo do texto, inicia na cidade de Campina o grande projeto de
urbanização. Os motivos alegados para tais modificações giravam em torno dos
discursos e das novas questões levantadas na sociedade por higienistas e sanitaristas.
A fim de promover uma melhor estética e plasticidade das ruas, prédios e
logradouros, o prefeito afirmava ser umas das suas cogitações estimular a construção de
prédios modernos que substituiriam os casebres sem a estética desejável e idealizada
para uma cidade em processo de mudança.
Tais mudanças além de mudarem a fisionomia de Campina Grande, sem sombra
de dúvidas afetou de maneira considerável o patrimônio histórico e cultural da mesma.
Nesse sentido, se percebe que durante o processo de modernização da cidade não
houve o interesse de preservação do patrimônio local tanto no seu caráter material
quanto no imaterial, pois à medida que se dispunham a modernizar-se, os moradores da

749
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

localidade abriam mão de um passado, de costumes que eram seus, mas que deveriam
ser relegados ao esquecimento em prol do progresso da cidade.
Com isso, o trabalho objetiva contribuir para a valorização e construção da
história via memória de Campina Grande, destacando a destruição do patrimônio
cultural de Campina Grande no processo de modernização do governo de Vergniaud
Wanderley (1935 – 1938; 1940 - 1945). Identificando aquilo que foi extinguido no
processo de modernização, pautado no discurso urbanístico e higienista. Percorrendo
um caminho no qual o destaque não se focaliza nas grandes construções ou reformas
realizadas, mas na destruição causada em prol da concretização de um projeto, de uma
visão, ou seja, da modernização.

A TRAJETÓRIA DAS REFORMAS ANTES DE VERGNIAUD WANDERLEY

A cidade de Campina Grande (PB) foi ―vìtima‖ desse movimento. A partir de


1920, os políticos de Campina Grande passaram a ter um objetivo em comum:
modernizar a cidade. A meta era deixar para trás o aspecto ainda provinciano e
adotar uma estética parecida com o estilo de uma metrópole.
No entanto, para se efetivar a modernização, era necessário abrir mão do
passado concebido como retrógado, sacrificar alguns aspectos característicos do período
colonial, vivido em outrora, que se fazia presente nas cidades. A modernização refletia
uma ideia de ―ruptura‘ como mostra Maria Raquel Silva 329,

[...] a modernidade era vista como um momento de ruptura com o que se


considerava velho, arcaico e atrasado, dando lugar ao novo, avançado e
evoluído. Nesse sentido, pensamos a modernidade como um momento de
rupturas rápidas e de constante movimento, substituindo, interagindo e
renovando com o que era visto como antigo [...] (SILVA, 2011, p. 20)

Percebe-se que as primeiras mudanças na cidade começaram no governo


de Lafayete Cavalcanti, que esteve à frente da prefeitura entre 1929 e 1932. L.
Cavalcanti foi responsável por iniciar a construção do calçamento da cidade.
Também é atribuída a L. Cavalcanti a implantação da estrada que liga Campina
Grande à capital João Pessoa. L. Cavalcanti foi sucedido por Antôn io Pereira

329
SILVA, Maria Raquel. Civilizando os filhos da “Rainha”, Campina Grande: modernização,
urbanização e grupos escolares (1935 a 1945) / - João Pessoa, 2011. (Mestrado em História)
Universidade Federal da Paraíba

750
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Diniz (popularmente conhecido como ―Antônio Peba‖), que renunciou ao cargo


após pouco mais de um ano e meio de gestão.
A. P. Diniz, que governou entre 1934 a 1935. Foi o primeiro a propor
oficialmente o chamado ―bota abaixo‖, expressão pela qual ficou conhecido o
projeto de demolição de prédios antigos para a abertura de novas avenidas ou
para serem substituídos por construções consideradas modernas.
A. P. Diniz baixou um decreto, em 1934, regulamentando as construções
na área central da cidade, estimulando que as casas térreas deveriam ser
substituídas por prédios. O decreto dizia que a medida valia para as ruas João
Pessoa, Marquês do Herval, Maciel Pinheiro, Monsenhor Sales e Cardoso Vieira
e nas Praças João Pessoa, do Rosário e Epitácio Pessoa. A partir de então só
seriam permitidas construções e reconstruções com mais de um pavimento. O
prefeito priorizou as áreas que considerava mais visitadas da cidade.
A. P. Diniz também foi o responsável, em 1934, pela demolição da antiga
cadeia, na época instalada onde hoje fica a Praça Clementino Procópio. A prisão
foi substituída com a construção de uma nova penitenciária mais afastada do
Centro, no Monte Santo. Ele iniciou ainda a implantação do sistema de
saneamento e abastecimento de água da cidade.
Mas as mudanças mais drásticas e relevantes foram no governo do prefeito
que administrou a cidade por dois mandatos, conhecido como ―Vergniaud
Wanderley‖.

VERGNIAUD WANDERLEY E O PREÇO DA MODERNIZAÇÃO

Filho de tradicionais famílias de proprietários de terras do sertão


paraibano e campinense, Vergniaud Wanderley fez seus primeiros estudos em
Campina Grande (o curso secundário no Lyceu Paraibano, na capital) e formou -
se bacharel na Faculdade de Direito do Recife, no qual concluiu o curso em 1929.
Para não romper com a família, com quem tinha divergências políticas, foi
para o Rio de Janeiro. Ingressou – com o auxílio de amigos - no Ministério
Público como promotor nas cidades de Blumenau, Brusque e Itajaí. Foi juiz de
direito em Harmonia e Biguaçu, cidades de Santa Catarina, entre 1930-1935.
Por meio de convite do recém-eleito governador e amigo Argemiro
de Figueredo fez parte do governo. Primeiro como chefe de polícia, como mostra

751
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

a matéria no jornal A Batalha, ―[...] E avulta, entre os secretários do governo do


dr. Argemiro de Figueiredo, a figura nobilíssima desse moço digno, que é o dr.
Vergniaud Wanderley, em bôa hora chamado para ocupar o importante cargo de
chefe da segurança pública‖ (A Batalha, p.8, 13 fev. 1935); e depois como
secretário da Agricultura.
Meses após de assumir esses cargos foi indicado candidato a prefeito de
Campina Grande, nas eleições de 9 de setembro de 1935. Segundo V. Wanderley,
candidato de consenso para apaziguar os ânimos e disputas internas do Partido
Progressista. Contemplou dois mandados na cidade o primeiro o primeiro de
1935-1938 e o segundo de 1940-1945.
No curto tempo do seu primeiro mandato deixou como marcas a instalação
de telefones automáticos, a reforma da Praça Coronel Antônio Pessoa, o
calçamento de inúmeras ruas e avenidas. Também foi nessa primeira gestão que
iniciou a construção de um de seus projetos prediletos, a construção do Grande
Hotel. O objetivo era construir um edifício moderno em um dos pontos centrais
da cidade, uma construção que marcaria profundamente a todos, e com
arquitetura art. déco.
V. Wanderley também empreendeu o ―bota-abaixo‖. Demoliu o antigo
edifício Paço Municipal, sede administrativa desde a época do Império, prédio
com seis janelas, vizinho a igreja Matriz, em 12 outubro de 1942. O local é
ocupado atualmente pelo estacionamento da igreja Catedral.
Derrubou a Igreja do Rosário (a diocese foi indenizada e a igreja
reconstruída no bairro da Prata), que ficava entre a Praça da Bandeira e o Cine
Capitólio, para abrir a avenida Floriano Peixoto. O projeto era construir uma
artéria atravessando o município.
Também foram demolidas várias casas de antigos moradores da Rua
Venâncio Neiva nas proximidades da igreja e em outros pontos onde a avenida
deveria passar, incluindo casarões de ricos comerciantes e proprietários de terras,
cuja característica chamativa se devia aos belos jardins que compunham as casas.
Houve resistência de alguns moradores.
O modelo que V. Wanderley pretendia adotar era parecido com o que
aconteceu no Rio de Janeiro, no qual cortiços foram derrubados para o
embelezamento da cidade.

752
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

V. Wanderley iniciou o ordenamento do Açude Velho e tentou afastar


bares de prostíbulos das áreas centrais da cidade. Destaque para a demolição do
bar ―fla-flu‖, local utilizado pelos jovens para encontros amorosos e sociais.
Praticamente destruiu a chamada ―Rua Grande‖, derrubando casarões e pontos
comerciais, para dar lugar ao que conhecemos atualmente como a Rua Maciel
Pinheiro. Com a meta de tirar a aparência de ‗vila‘ que o munic ípio ainda tinha,
foi o prefeito responsável por dar a feição ao que conhecemos sobre os principais
pontos do Centro.
A efetivação do projeto de alinhamento da Rua Maciel Pinheiro, conhecida
também como Rua Grande, levou a marginalização de dois símbolos d a política
da República Velha: O sobrado de ex-prefeito Cristiano Lauritzene o Pavilhão
Epitácio Pessoa (local utilizado para reuniões festivas das elites).
E não podemos esquecer de uma ação crucial de V. Wandeley, no qual
afetou o cotidiano e ritmo das pessoas de C. Grande drasticamente. A
transferência da feira (cuja prática percorria pelas nas ruas Meciel Pinheiro,
Monsenhor Sales, Venâncio Neiva, Cardoso Vieira, e as praças Epitácio Pessoa e
Lauritzen) para o Mercado Público em 1941.
Uma ação incentivada pelo discurso higienista e de intelectuais, nos quais
interpretavam a feira campinense como um local que transmitia promiscuidade e
desordem, como mostra Fábio Gutemberg

Na ótica de um higienizado letrado de tradicional família, o


funcionamento da feira em suas artérias centrais dava ares de
promiscuidade à mesma, o que afrontava sua imagem de cidade
progressista. Portanto, desloca-la para um ponto afastado se fazia
preciso. (SOUZA, 2001, p. 277)

AMPLIANDO A DISCURSÃO

Como o objetivo de trabalho pauta em uma abordagem patrimonial, se faz


necessário discutirmos alguns conceitos que iram ampliar os horizontes do artigo com
relação à proposta.
Como aporte teórico para o trabalho, utilizamos como base os conceitos de
monumento, memória, patrimônio e amnésia social.
Na abordagem conceitual de monumento, Françoise Choay explica que
monumento, no sentido original do termo, vem do latim monumentum (que deriva de

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

monere que significa: advertir, lembrar), que significa trazer à lembrança alguma coisa;
tocar, pela emoção, uma memória viva; ―monumento é tudo o que for edificado por uma
comunidade de indivíduos para rememorar ou fazer que outras gerações de pessoas
rememorem acontecimentos, sacrifìcios, ritos ou crenças‖ (CHOAY, 2001, p.18).
A especificidade do monumento deve-se ao seu modo de atuação sobre a
memória, mas não todo tipo de memória; uma memória que contribua para manter e
preservar a identidade de uma comunidade étnica ou religiosa, nacional, tribal, ou
familiar.
Com Choay discutimos também a questão de patrimônio, ela diz que patrimônio
é,

Uma expressão que designa um bem destinado ao usufruto de uma


comunidade que se ampliou a dimensões planetárias, constituído pela
acumulação continua de bens de uma diversidade de objetos que se
congregam por seu passado comum: obras e obras primas das belas artes e
das artes aplicadas, trabalhos e produtos de todos os saberes e savoir-faire
dos seres humanos (CHOAY, 2001, p. 11).

Quando olhamos para a efetivação do projeto de modernização em Campina


Grande, observamos o descaso com o patrimônio. Como por exemplo, a demolição do
antigo Paço municipal, já citado acima, que se constitua como sede administrativa, tanto
do Legislativo como do Judiciário, desde a época do Império no Brasil. Imagina o
quanto da história de Campina grande, e também do Brasil, se perdeu com a destruição
deste prédio.
Umas das principais argumentações do ex-prefeito Vergniaud Wanderley,
pautava na destituição de Campina Grande do aspecto provinciano da época
colonial que persistia no cotidiano campinense. Com isso, a ideia de Amnésia
social se encaixa perfeitamente neste contexto, levando em conta a argumentação
de Le Goff, no qual mostra que

―a amnésia não é só um distúrbio da memória do indivìduo, com o


envolvimento de perturbações da presença da personalidade, mas
possui também o significado de ser a falta ou perda, voluntária ou
involuntária, da memória coletiva de povos e nas nações que pode
determinar perturbações graves da identidade coletiva‖ (apud
PINHEIRO, 2004, p. 93)

A cidade estava se modernizando, os espaços estavam sendo modificados,


logo, as pessoas deviam seguir o mesmo ritmo, ou seja, se atualizarem da mesma

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

forma. Não era apenas uma mudança no espaço físico de Campina Grande, se
constituía também, como uma mudança de cultura, no qual as práticas e vivencias
concebidas como ―coloniais e retrógadas‖, tinham que ser esquecidas e
substituídas. Ou seja, contra aquilo que estava fora dos padrões impostos como
modernos, se constituía como descartável, não havia neces sidade de lembrar ou
recordar.
E para o conceito memória destacamos a reflexão do sociólogo francês Halbwachs,
no qual elaborou o conceito de ―memória coletiva‖. Conceito este que se torna essencial
na temática.
Para Halbwachs a ideia fundante consiste plenamente na afirmação de que a
memória individual, as lembranças do sujeito, estão pautadas na memória coletiva do
grupo, ou seja, nos outros. Todas as lembranças são constituídas no interior de um
grupo. A constituição da memória de um indivíduo é uma combinação das memórias
dos diferentes grupos dos quais ele participa e participou e gera influência. Seja na
família, na escola, em um grupo de amigos ou no ambiente de trabalho
A origem de reflexões, paixões, conceitos e sentimentos que concebemos a nós, são
na verdade inspiradas pelo grupo, pelo coletivo. Halbwachs relaciona a memória
individual a participação de um grupo social, no qual, quando temos o ato de lembrar
nos deportamos de um grupo ao outro em pensamento.
Halbwachs afirma que as lembranças são restituìdas a partir de ―pontos de contato‖,
em outras palavras, ele concebe a memória individual como insuficiente para fomentar a
lembrança e considera que deva haver noções comuns, ou melhor, uma ―semente de
rememoração‖ através de pessoas participantes do mesmo convívio social no passado.
―A reconstrução das lembranças [...] opera a partir de noções comuns e passam de um
para o outro. Mas esse movimento só e possível se as pessoas fizeram ou ainda fazem
parte de um mesmo grupo social‖ (BRAGA, 2000, p. 51).
Ou seja, Halbwachs considera que a memória é um construto a partir do outro, no
qual o sujeito ao lembrar do passado tentado focalizar a uma recordação que lhe traga
sentido, o faz através de determinadas testemunhas que fizeram parte do seu meio social
no tempo passado. Podemos dizer que

Nossas lembranças permanecem coletivas e nos são lembradas por outros,


ainda que se trate de eventos em que somente nós estivemos envolvidos e
objetos que somente nós vimos. Isto acontece porque jamais estamos sós.
Não é preciso que outros estejam presentes, materialmente distintos de nós,

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

porque sempre levamos conosco certa quantidade de pessoas que não se


confundem. (Halbwachs, 2006, p.30)

E Halbwachs vai mais além com relação ao assunto. As memórias individuais


também são constituìdas a partir de ―quadros‖ fornecidos – ou impostos – pelo meio
social. Esses são os chamados ―quadros sociais da memória‖, que funcionam como
pontos de referência para a construção subjetiva de lembranças. Eles determinam o que
deve ser lembrado, esquecido, silenciado ou comemorado pelos indivíduos. A
contextualização realizada pelos quadros sociais inclui, ainda, a padronização social do
tempo e do espaço, dimensões fundamentais da experiência humana.
A questão da memória coletiva, trazendo para o que estamos abordando, se figura
nas demolições de casarões e ruas da cidade de Campina Grande. Destaque para os
casarões da rua Venáncio Neiva.
Se percebe que o cotidiano das pessoas foi totalmente modificado com as reformas,
V. Wanderley não se importou com os aspectos de sociabilidade que tais espaços
proporcionavam para as pessoas, ―Não importava a sociabilidade daqueles antigos
moradores, as relações de vizinhança não contavam; não interessava ao ―operoso
prefeito‖ quaisquer sofrimentos que por desventura tenham passado aqueles habitantes‖
(FILHO, 2007, p. 35).
As indenizações feitas pela prefeitura aos moradores destes casarões, para que
pudessem enquadrar a estética da moradia nos padrões urbanísticos exigidos, não cobria
as despesas necessárias, fazendo com os moradores deixassem o local, que a partir de
então seriam demolidas, e se mudassem para áreas mais afastadas do centro da cidade.
Com isso, todas as práticas e convivências, ou seja, toda uma memória, construída
no coletivo entre os moradores dessas áreas, foi apagada e esquecida.

CONCLUSÃO

Em meio a um processo de mudança, com um crescimento urbano acelerado e


uma exacerbada busca pelo desenvolvimento econômico; construções que
simbolizavam um passado retrógado e colonial, e que não se enquadrassem na estética e
no ideal do projeto modernista do prefeito Vergniaud Wanderley, eram destruídos,
demolidos para dar lugar a prédios modernos.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

E entre ruas abertas e construções demolidas, muito do patrimônio histórico e


cultural de Campina Grande foram destruídos. Muito de sua história materializada nos
seus bens culturais foram demolidos, e com o tempo esquecidos.
Por isso, percebe-se o quanto é importante desenvolver um trabalho de
conscientização a favor da preservação do patrimônio histórico e cultural de Campina
Grande. Em meio a tatas modificações e transformações (consequente do projeto de
modernização), é necessário um novo olhar para história e memória de Campina
Grande.

REFERÊNCIAS

CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. São Paulo: Ed. UNESP, 2001.

HALBWACHS, Maurice. Memória coletiva. 2Ed. 2006.

BRAGA, Elizabeth dos Santos. A constituição da memória: uma perspectiva histórica


cultural. Coleção Educação. Ed. UNIJUÍ, 2000. 216p.

FILHO, Severino Cabral. A cidade através de suas imagens: uma experiência


modernizante em Campina Grande (1930-1950). 2007. Tese de Doutorado
(Programa de Pós-Graduação em Sociologia) UFPB – João Pessoa.

PINHEIRO, Marcos José de Araújo. Museus, Memória e Esquecimento: um projeto


de modernidade. Rio de Janeiro: E-Papers Serviços Editoriais, 2004. Coleção Engenho
& Arte – vol.7

Jornal A União, p. 1, 24 de set. 1935.

Jornal A Batalha, p.8, 13 fev. 1935

SILVA, Maria Raquel. Civilizando os filhos da “Rainha”, Campina Grande:


modernização, urbanização e grupos escolares (1935 a 1945). 2011. p. 101.
Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal da Paraíba.

SOUZA, Fabio Gutemberg Ramos Bezerra. Campina Grande: cartografias de uma


reforma urbana no Nordeste do Brasil (1930-1945). 2001. Tese de Doutorado
(Departamento de História do Instituto Filosofia e Ciências Humanas), Unicamp – São
Paul.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

“ANOS DOURADOS: PRAÇA SIQUEIRA CAMPOS”: ENTRE NARRATIVAS


E ESPAÇOS JUVENIS DA DE DÉCADA DE 60 NA CIDADE DO CRATO

MARIA DAÍSE FELIPE DE OLIVEIRA OLIVEIRA


SEDUC-CE
[email protected]

RESUMO
O artigo está ligado à temática ―Cultura e Cidades‖, relacionando-a com ao campo da história
cultural. Assim que na nossa pesquisa pretendemos descortinar os atores sociais que formularam
uma sociedade e seu cotidiano na urbe na década de 60 do século passado, na cidade do Crato -
CE. Tendo como principal objeto de estudo os espaços que serviram como palco para que a
juventude cratense. Vamos trabalhar com fontes escritas, mais especificamente com o jornal
católico A Ação e um livro de memórias ―Anos Dourados: Praça Siqueira Campos‖. Importa
considerar que compreendemos o jornal e o livro como Gomes afirma um ―lugar de memória‖
portanto, atribuindo assim visões de mundo e paixões de quem o escreve; e história oral de vida
com algumas jovens que escreveram o livro em forma de blocos de perguntas amplos para que o
colaborador possa mergulhar em suas lembranças e recordações do passado. Dessa forma foram
desenvolvidas análises sobre a memória destes jovens sobre suas práticas e os espaços citadino.
Palavras-chave: Cidade; espaços; juventude.

INTRODUÇÃO

Ao falarmos sobre a cidade do Crato vários signos veem a mente: a


chapada, a cidade da cultura, a Universidade Regional do Cariri (URCA), festival da
canção, e as praças e ruas, clubes, festas. Entre uma dessas praças da cidade se destaca à
Praça Siqueira Campos. O objetivo desse artigo é revisitar esses logradouros, fazer
suscitar as vozes e memórias de seus frequentadores.
Como um espaço ainda vivo da cidade, é interessante o procedimento que
possa fazer reviver pela história os dias idos de outrora na dimensão da memória dos
sujeitos. Podemos assim compreender esses lugares ou a cidade como portadora de
―sentidos, a que se dá o nome de imaginário. Mais do que espaços, ou seja, extensão de
superfìcie, eles são territórios, porque apropriados pelo social‖ (PESAVENTO, 2008,
p.3). Assim os espaços da cidade se fazem como espaços que são utilizados pelos
moradores, transeuntes, turistas e todos estes vão dando e formando um ou vários
significado(s) ao local, ou atribuindo imagens de passado, construindo memórias
afetivas e narrativas. O objetivo do presente artigo é essa rememoração desse espaço
pelos jovens daquela época.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Pois, compreendemos que a cidade não é só passível a análise sobre o


discurso dos médicos higienistas, arquitetos e pela produção econômica, ela também é
passível a análise de seus atores sociais por entendê-la como um palco para que as
tramas da vida e de seus habitantes se desenrolem ao passo das contradições, lugares de
conflitos, formas de lazer e convivência. Assim o cotidiano das pessoas e suas práticas
citadinas, suas formas de interação social e as produções de sentidos da época.
Mas para que cheguemos até este ponto é necessário situarmos a Cidade de Crato no
recorte temporal e local da pesquisa.

“SHOU DA CIDADE”: OS ESPAÇOS JUVENIS

Vamos imaginar um local que reunisse todos os cidadãos, sem distinção,


este lugar seria uma praça. Pela manhã pessoas que vão à cidade para resolver negócios,
fazer compras, quando finalizam os afazeres descansam um pouco nas sombras das
árvores; à tarde os populares que residem próximo vão para ter conversas amenas, jogos
de tabuleiros; e a noite a juventude que polvorosa começa a agitar sua vida social. A
Praça Siqueira Campos era este local no Crato.

Tendo como nas suas proximidades uma estrutura de cinemas, café,


sorveteria e lojas, no caso os cines cassino e Moderno, o Café Líder, a
sorveterias Bantim e a loja Azteca, a praça, no coração do Crato, era,
além do coqueluche, o centro da moda e o local de encontro dos
brotos do lugar... Enfim, ela a noite, era o ponto chique de todo o
Cariri (AQUINO, 2009, p.17).
Assim o logradouro da Praça Siqueira Campos pode ser entendida como
um lugar de fruição, um lugar de destaque nas tramas da cidade que se fazem e refazem
com o passar do tempo e das narrativas, lugar de afirmação e caracterização de grupos.
Pois:

caracterizam por sediarem um ethos urbano. Uma maneira de ser, um


estilo de vida, uma performance citadina de comportamento. É lá, no
coração do urbano, que se abriga esta energia e que se constitui este
elemento, comportamental, simbólico e intrínseco à modernidade,
como um jeito especial de agir e ser habitante de uma cidade
(PESAVENTO, 2008, p. 7).
Tendo em vista essa caracterização um dos principais logradouros da cidade
era a Praça Siqueira Campos, sempre que perguntarmos pela cidade ao algum transeunte
esse vai referir-se a esta que era o ponto de encontro entre dos cidadãos daquela
sociedade. Mas quais cidadãos ou grupos nos interessam nessa pesquisa?

759
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Como o propósito desta pesquisa é analisar os espaços da cidade do Crato


como palco para os jovens, passa a interessas a analisar os ecos, as formas de recepção
da juventude, os usos e táticas no meio de interação urbana na praça. Com isso vamos
aos pouco destrinchando esses conceitos e o referencial teórico que dará suporte para o
seu desenvolvimento. Vejamos a seguir o conceito e a historiografia sobre os jovens e a
juventude.

Para o entendimento destas táticas nos espaços é importante sabermos


primeiro quem são estes atores, a juventude. Compreender que a juventude não é
entendida apenas como um dado biológico, ela está diretamente relacionada às culturas
e o significado que a sociedade dá a esta fase do corpo humano.

Após a segunda guerra mundial, a juventude passa a ocupar crescente


lugar de destaque nos diversos campos: na ciência, no Estado, na
Igreja, no mercado e na mídia. Neste período se consolida um discurso
jurídico, um discurso escolar e uma florescente indústria,
reivindicando a existência dos jovens como sujeitos de direito e como
sujeitos de consumo (BARBIANI, 2007, p.141).
No pós-guerra os vários setores da sociedade passam a olhar mais
atentamente para estas pessoas que estão em fase de transição intelectual, ademais de
biológica e passam a construir vários discursos de acordo com um campo especifico,
onde a juventude é temática heterogênea: gêneros, culturas, grupos, etnias, religiões,
classes. Portanto, portadora de historicidade ―a juventude é uma condição constituìda
pela cultura, mas que tem, por sua vez, uma base material vinculada com a idade, com a
facticidade que essa categoria encerra‖ (BARBIANI, 2007, p. 143). E estes jovens de
forma (des) organizada criam.

Os estilos e culturas juvenis são as formas pelas quais vai-se


configurando a experiência da condição juvenil. Os sujeitos jovens
procuram ingressar na esfera pública de diversas formas (através da
música, do trabalho, das expressões culturais, etc.), construindo
formas próprias de sociabilidade, exercitando a convivência social e o
contraditório espaço das diferenças (BARBIANI, 2007, p. 147)

E assim estes jovens e esta juventude atribuíram sentidos aos espaços da


cidade. Para isso vamos utilizar como referência Certeau e seu conceito de espaço:

O espaço é um cruzamento de móveis. É de certo modo animado pelo


conjunto dos movimentos que aí se desdobram. Espaço é o efeito com
produzido pelas operações que o orientam, o circunstanciam, o
temporalizam e o levam a funcionar em unidade polivalente de

760
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

programas conflituais ou de proximidades contratuais. [..]. Em suma o


espaço é um lugar praticado (CERTEAU,1994: 202).
Dessa forma vamos entender espaço como um mister. Ele passa a existir
pela sua utilização, apropriação, laços de identidade e pertencimento, rememorações e
recordações. Com isso é passível de análise da praça da cidade do Crato, pois as pessoas
mais especificamente os jovens, tomam estes lugares para si e a transformaram em
espaço. O que Pesavento denomina de cidade sensìvel ―é aquela responsável por
atribuição de sentidos e significados ao espaço e ao tempo que realizam na e por causa
da cidade‖ ( 2007, p. 14-15).

Por isso a escolha do livro ―Anos Dourados: Praça Siqueira Campos‖


publicado pela editora A Província em 2009 escrito por um grupo de amigas dos anos
60 sobre a memória de sua juventude na praça, os relatos dos encontros, passeios, cafés,
flertes. Devemos analisar de forma mista, tendo cuidados parecidos com as formas do
jornal e das entrevistas. Assim, como o jornal A Ação da década de 60 que estão
disponíveis no Centro de Documentação do Cariri - CEDOCC, na Universidade
Regional da Cariri. Assim que ao tomar um jornal ou periódico enquanto fonte é
pertinente que se faça algumas perguntas: a qual grupo este jornal pertence; por qual
grupo este jornal é consumido; qual sua periodicidade; qual o contexto político-social
está inserido? Dessa forma o jornal é tomado aqui também como lugar de memória. Em
resposta as essa perguntas o jornal A Ação era um periódico semanal ligado à Igreja que
teve uma circularidade de mais de 20 anos.

Ser um lugar de memória implica ser também lugar de escolhas e de


procedimentos porque a memória não é espontânea. Nos jornais, as
matérias noticiadas foram sobre assuntos e eventos selecionados,
escolhidos por critérios de edição (GOMES, 2007, p.179).
E assim entender que as linhas redigidas no livro e nos jornais são memórias
dos grupos que também são feitas a partir da memória individual, se tornando em
muitos casos uma amalgama.

Os vários textos que compõe o livro contam: dos volteios pela praça, das
roupas escolhidas ansiosamente já na segunda- feira, dos flertes, de como aquele era um
tempo bom. Essas memórias fazem parte não apenas da memória individual, mas
também da memória coletiva. Essa memória ―se desenvolve a partir dos laços de
convivência [...]. ela entretém a memória de seus membros, que acrescenta, unifica,
diferencia, corrige e passa a limpo‖ (BOSI, 1994, p. 410-411). Por isso ao falar ou

761
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

escrever as suas memórias existe um filtro entre o esquecimento e a lembrança, o dito e


o não dito, o individual e o coletivo.

Nas entrevistas foi utilizada a história oral de vida, que tem como objetivos
e procedimentos desenvolvidos em blocos de perguntas amplos para que o colaborador
possa mergulhar em suas lembranças e recordações do passado.

O sujeito primordial desse tipo de história oral é o depoente que tem


maior liberdade para dissertar o mais livremente possível sobre sua
experiência pessoal. Nesse caso, deve ser dado ao depoente espaço
para que sua história seja encadeada segundo sua vontade. A
experiência deve, desde logo, ser o alvo principal das histórias orais
de vida, pois não se busca a verdade e sim a versão sobre a moral
existencial (MEIHY, 2000, p. 62)
O objetivo com isso é fazer com que o colaborador mergulhe no seu íntimo
e em sua fala suscite lembranças, emoções e outros elementos que o ajudaram pela
memória a fazer parte deste local e construíram um sentimento de identidade. Por isso a
escolha desses colaboradores não foi aleatória, foram escolhidas pessoas que tinham a
Praça Siqueira Campos um elo em sua vida e jornada.

“ANOS DOURADOS: PRAÇA SIQUEIRA CAMPOS”

A praça está localizada no centro da cidade do Crato, foi construída no


início do século XX, recebeu esse nome em homenagem a um notável comerciante da
cidade. ―O monumento tem como caracterìsticas o ligar-se ao poder de perpetuação,
voluntária ou involuntária, das sociedades históricas (é um lugar ligado à memória
coletiva)‖ (LE GOFF,1990,p.536). Ao monumentalizar tem-se o ideal de deixar
memorar e rememorar e para que se fixe na memória. Formando assim, um conjunto de
fatores que faz o indivíduo se reconhecer como parte de um determinado grupo ou
classe social, e a junção da memória e do monumento tem um papel importante na
construção desse sentimento de pertença. E assim as teias das lembranças e memórias
vão construindo o lugar, o espaço.

Vejamos o relato de senhor que atualmente é taxista na praça e na sua


mocidade era frequentador do logradouro:

Era muito bom aqui, tranquilo. Não tinha esses problemas das drogas.
Você passa uma noite aqui era os veín todo passeando. Quando eu era
novo andava aqui, não era perigoso como é hoje. O espaço aqui tinha
umas rolinhas, mas o espaço tá pequeno o pessoal passa

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

constantemente, não tem mais espaço para ela comer e deixaram até
de vim à praça. Eu mesmo comprava comida e dava pra elas e alguém
ainda me doava comida e alguém ainda chegou a me dá comida pra eu
dá pra elas. Era as rolinha nova caia aqui do ninho a gente pegava,
ajeitava, botava lá. Teve um rapaz aqui que chegou até levar pra casa
pra terminar de criar e depois soltar. (TAL, entrevista concedida em
05 de junho de 2012)
Assim ao trabalhar no local de sua juventude o senhor Getulio evoca em sua
fala memórias do passado e anseios do presente como o sentimento da insegurança
pública e o faz sentir falta de um passado que em sua lembrança se faz sem grandes
conflitos, sem violência onde a ingenuidade e apreço a natureza que o circundava
naquele espaço.

Os lugares de memória de uma cidade são também lugares de história.


História e memória são, ambas, narrativas do passado que
presentificam uma ausência, reconfigurando uma temporalidade
escoada. São representações que dão a ver um ―acontecido‖ que,
a rigor, não é mais verificável ou sujeito à repetição. Mas o tempo
passado não é irrecuperável, uma vez que, através do imaginário, se
faz presente no espírito, dando-se a ler e ver através de discursos e
imagens (PESAVENTO, 2008, p.4).

E assim ao se lembrar dos dias idos da praça ele refaz a si e a praça em um


misto de sentimentos e memórias que dão cor e vida à Praça Siqueira Campos que se
faz presente na vida da cidade.

Outro aspeto importante da praça eram as festividades e reuniões políticas.


Como sabemos nas praças as pessoas se reúnem e assim à Siqueira Campos era um dos
palcos escolhidos para que os políticos da cidade lançassem suas candidaturas e apoio
para outros candidatos.

Numerosos comícios políticos foram realizados, com maior ou menor


sucesso, dependendo da simpatia do eleitor pelo candidato. Alguns se
tornavam populares e eram exaltados, outros foram inexpressivos.
Dependia da influência de quem os havia indicado ou de como era
apresentada a proposta do governo, ou ainda, se eram invocados
infortúnios da vida dos adversários políticos (FEITOSA, 2009, p.112).
A ida à praça acontecia principalmente aos domingos logo depois da missa,
as moças ficavam dando voltas pela praça com seus grupos de amigas todas de braços
entrelaçados e os rapazes ficavam ao redor da praça, sempre a observar as belas que
volteavam.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Essas voltas e passeios significavam um momento de lazer; de uma


liberdade- embora vigiada; de encontros com amigos; possíveis flertes; e também um
espaço de distinção. Mas tinha o horário para chegar à casa que era reforçado pela
Amplificadora Cratense um sistema de rádio que tocava a noite na praça e que
controlava os horários dos jovens frequentadores ―Com o hino do Crato era a hora de ir
para casa, pois dentro de 15 minutos não ficava mais uma jovem na praça‖ (VILLAR,
2009, p. 10) dessa forma as moças eram vigiadas pelos pais com suas ordens e pela
sociedade que estimavam o controle dos corpos. E se elas não voltassem no horário
combinando sofriam retaliações: ―O castigo passou de uma arte das sensações
insuportáveis a uma economia dos direitos suspensos” (FOUCAULT, 2014, p. 16). Se
antes os pais impunham castigos físicos aos filhos agora se usa a tática de retirar-lhes o
que mais gostavam, no caso, as voltas na praça no domingo como forma de punição
pela regra descumprida.

Para estes jovens as noites de domingo na Praça Siqueira Campos era um


evento muito importante, todos aguardavam ansiosamente, pois era o ponto de encontro
dos amigos, de diversão e dos flertes. Por isso, sempre requeriam cuidados específicos
com a roupa, cabelos e maquiagem. Praça Siqueira Campos era ―considerada sìmbolo
‗fashion‘ dessas gerações de lambretas e dos ritmos do iê-iê-iê‖ (AQUINO, 2009, p.19).

Ai que dia esperado! A semana toda sonhando como iríamos. Vestido


novo, cintura baixa, por sinal muito fina, anáguas com bordados,
sapatos alto e meia fina, cabelo penteado geralmente de coque, com
bastante laquê para não despentear, ou quando não era cabelo pajem.
Os olhos muito pintados com lápis e feito a rabisco na ponta do olho,
parecendo uma chinesinha, com sobrancelhas bem marcadas.
(VILLAR, 2009, p. 10).
Este trecho de memória encontra-se no livro, é possível identificar que
Villar está se referindo aos anos 50 e Aquino aos anos 60, os jovens continuavam com
os preparativos e a ansiedade para que o tão sonhado domingo chegasse e assim poder
passear na praça.

Por isso a ansiedade, a pressa em escolher o figurino com antecedência para


a próxima ida à praça, ao cinema.

No caso das mulheres que obrigatoriamente, usavam um, e às vezes


dois (dependendo de quem morasse mais perto) vestidos novos para
cada domingo, uma de suas maiores características era a de ficarem
rodando, de braços dados com as amigas até às nove da noite,

764
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

aproximadamente, nas passarelas em torno do centro da praça


(AQUINO, 2009: 18).
Como já foi posto, a praça tinha em seu entorno cinemas, que exibiam
principalmente produções norte-americanos, essa indústria utilizava o conceito ―‗estrela
de cinema‘ que valoriza a figura de seus artistas‖ (SILVA, 2007, p.114) as estrelas
faziam filmes, também faziam comercais e saiam estampadas nas capas de revistas de
moda difundindo o estilo de vida americano e atraindo cada vez o público para as salas
de cinema. Era comum o cinema estar cheio porque um determinado ator estava em
cartaz, como ainda permanece.

uma vez analisadas as imagens distribuídas pela TV e os tempos que


se passa assistindo aos programas televisivos, resta ainda perguntar o
que é que o consumidor fabrica com essas imagens durante essas
horas [..] o que é que eles ― absorvem‖, recebem e pagam? O que
fazem com isso? (CERTEAU, 1994, p. 93).
Agora nos resta indagar o que os telespectadores faziam com esses signos e
imagens que lhes eram posto nos filmes?

Costumávamos assistir aos filmes e discuti-los, ainda no calor das


emoções, na Praça Siqueira Campos. Curtíamos o artista,
admirávamos o desempenho da atriz. Analisávamos o enredo, alguns
comportamentos e atitudes, às vezes dávamos até outro final. Destes,
houve alguns filmes que marcaram época como o Candelabro Italiano,
Quando Setembro Vier, Suplício de uma Saudade, E o Vento Levou...
Havia ainda os filmes cowboys que eram bem apreciados por todos. O
valentão do filme era até imitado (FEITOSA, 2009, p. 116).
A praça servia como esse espaço de discussão entre as amigas sobre o filme,
redesenhar do filme se dava logo na saída do cinema, pois as impressões e opiniões
estavam à flor da pele e precisavam ser discutidas e assim remodelar o filme com base
em seus juízos e valores. Também serviam de fonte de inspiração para os rapazes no
requesito de formar outros padrões de comportamento.

Ao usar mais de uma roupa no domingo demonstrava a sua classe social, já


que também para que isso acontecesse era necessária uma logística para que a troca
pudesse ser efetuada. Mas, logicamente nem todas as moças podiam fazer isso. Embora
estejamos falando de famílias com boa posição social, não era possível usar sempre uma
roupa nova todos os domingos, mas em comemorações especiais como a festa da
Padroeira Nossa Senhora da Penha era comum ter uma roupa nova para todas as noites.
Segundo a colaboradora:

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As roupas eram mais feitas, pegava aquela revista e mandava fazer por
costureiras, inclusive eu tenho uma amiga Dilma que a mãe dela
pegava revistas mandava fazer, ela era quem lançava a moda
praticamente aqui no Crato (TAL, entrevista concedida 26 de agosto
de 2014).
Na época eram poucas pessoas que tinham um aparelho de TV em casa, mas
os jornais, filmes e revistas tinham maior circulação entre estes jovens, fazendo assim
com que eles tivessem acesso. E então podemos considerar que estes jovens apenas
reproduziam estes comportamentos que viam através da mídia da época ou eles o
fabricavam de acordo com o seu local de origem, gostos, renda familiar, ferramentas
disponíveis?

A ―fabricação‖ que se quer detectar é uma produção, uma poética-


mas escondida, porque ela dissemina nas regiões definidas e ocupadas
pelo sistema da ―produção‖ (televisiva, urbanìstica, comercial, etc.) e
porque a extensão sempre mais totalitária desses sistemas não deixa
aos ―consumidores‖ um lugar onde possam marcar o que fazem com
os produtos. A uma produção racionalizada, expansionista além de
centralizada, barulhenta e espetacular, corresponde a outra produção,
qualificada de ―consumo‖: está é astuciosa, é dispersa, mas ao mesmo
tempo ela se insinua ubiquamente, silenciosa e quase invisível, pois
não se faz notar como produtos próprios mas nas sua maneiras de
empregar os produtos impostos por uma ordem econômica dominante
(CERTEAU, 1994, p.39).

Assim os jovens quando viam um filme ou a mocinha do cinema


estampando o comercial de uma determinada marca na revista, esta produção não
deixava espaço para que naquele momento existisse uma troca, não era possível deixar
ou registrar a sua marca, pois ele era visto apenas como espectador/consumidor.

É justamente nesta fala da colaboradora que se evidencia que os jovens


tinham suas formas de resistência, de burla dos mecanismos. Eles se apropriavam e a
reutilizavam da maneira que lhe era interessante e possível no seu contexto. Fazendo o
que podemos chamar até mesmo de um desenho por cima da imagem. Ou seja, ele muda
o que lhe foi posto ele o redesenha.

Na última tertúlia da AABB foi promovido um desfile de penteados,


pelas alunas da quarta série do ginásio Ana Couto. Participaram do
desfile as elegantes senhoritas: Lastênia Araújo, Eneida Saldanha
(colunista), Tereza Lisieux, Ana Benvida e Tereza Mota (Jornal A
Ação, 24 de setembro de 1966, p. 7).
E mudavam, por exemplo, um penteado, um vestido longo: ao fazer
pequenas alterações em cortes, e tamanho do vestido. Para que servissem nos passeios

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

na praça, para que não atrapalhassem os passos que eram dados quase que no mesmo
ritmo pelos grupos de amigas que volteavam todas de braços entrelaçados, que uma vez
ou outra lançavam seus olhos sobre os rapazes que ficavam no entorno da praça e que
quando por um segundo os olhares se cruzavam sentiam as maçãs do rosto entregarem
suas emoções.

Havia ainda os dias excepcionais da praça. As festas com os grandes


cantores do momento que eram organizadas pelos comerciantes locais.

Havia os magníficos shows de grandes proporções que as casas


comerciais organizavam, a fim de atraírem as pessoas e determinados
produtos, como as das Máquinas Vigoreli. Armavam-se palanques
para shows de cantores mais populares e requisitados nas paradas de
sucesso como Nelson Gonçalves. Luiz Gonzaga, Ângela Maria,
muitos outros. A praça ficava lotada, pois todos queriam vê-los. Era
possível encontrarmos adultos, crianças e até idosos. A programação
era para toda a família. Os pais embevecidos com a música liberavam
as filhas que aproveitavam para marcarem encontros, conversar com
os rapazes, flertar, ou namorar. As mães soltavam as crianças, as quais
faziam outro tipo de festa. Ora correndo e brincando no meio da
multidão, ora saboreando, como todas as outras gerações, sorvetes e
pipocas ou guloseimas vendidas na praça. As crianças mais ousadas
até subiam no palco para tocar e ver mais de perto o cantor e os
organizadores do evento. Todos se divertiam. Era um acontecimento
comentado por vários dias (FEITOSA, 2009, p. 112).

Esses dias em que todos, principalmente os adultos, estavam animados e


acabavam esquecendo-se de vigiar e controlar os jovens que acabavam aproveitando e
colocando em práticas suas táticas que tinha por fim ―a própria decisão, ato e maneira
de aproveitar a ‗ocasião‘‖ (CERTEAU, 1994, p. 47). Nesse caso as crianças e jovens
aproveitavam este momento em que os olhos dos adultos estavam vidrados nos cantores
e acabam por fazer e sentir outras aventuras que iam contra a lógica dos outros dias. O
subir no palco para ver o artista, o beijo roubado no escurinho nesses dias era executado
e sem nenhum tipo ou forma de penalidade para os envolvidos.

Com isso podemos compreender ato de ir à praça, cinemas, e festas apenas


como um dado pronto e acabado em si. ―Ir ao cinema é prática codificada e datada. Não
apenas traduz um hábito, mas revelam as formas de frequentação e distinção social,
fruição estética, imaginações sobre a diversão e a cultura‖ (SCHAVARZMAM, 2005,
p.154). Assim, devemos entender como um comportamento social e que com o passar

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

dos anos suas relações e os padrões de convivência vão sendo modificados e/ou
reproduzidos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pesquisa aconteceu de forma leve e prazerosa, por alguns motivos: a


Praça Siqueira Campos por quase dois anos (2012-2013) fazia parte do meu percurso de
casa até à Universidade Regional do Cariri- URCA; nesse tempo vi os taxistas e
vendedores ali trabalhar; também vi a reforma da praça, que na verdade não vi, já que
estava envolto por tapumes; vivi a praça como frequentadora dos vários eventos que
animavam e animam o centro da cidade nos finais de semana.
O espaço físico não era desconhecido para mim, já a memória dos seus
antigos frequentadores sim, era desconhecida. E ao fazer esta pesquisa foi como se eu
tivesse pisado no chão da Siqueira Campos duas primeiras vezes. Uma vez com os
meus pés e a outra primeira vez a partir da memória dos frequentadores de outrora. E
ao fazer isso percebi o quanto a rotina massacrante ou inebries dos goles partilhados não
nos deixa lançar um olhar um pouco mais reflexivo sobre o espaço frequentado.
E que com o desprendimento do olhar que tudo vê, mas nada enxerga que
foi entendida a Praça Siqueira Campos não só como um lugar do centro urbano da
cidade de Crato, mas como um espaço que porta significados, história, memória e que
ajuda a molda a identidade dos que a frequentaram e frequentam.
Como sabemos a memória é fruto da experiência e do coletivo, é um direito,
e é formadora do sentimento de pertença e assim cabe a nós professores/historiadores da
região utilizar os espaços, os relatos, os moradores, as reformas, o descaso com o
patrimônio para ―falar‖ sobre o passado da cidade, para que o aluno passe a reconhecer
e conhecer a sua localidade. E que estes temas possam servir para pesquisas futuras.
Podemos concluir em linhas breves que entre as calçadas da Siqueira
Campos, seus bancos e entorno serviu de palco para que as tramas se desenrolassem,
para que o espaço servisse de refúgio e que todos fossem cúmplices do que era ser
jovem em uma cidade interiorana que tinha os olhos voltados para os comportamentos.
E que este espaço foi lugar para por em prática suas táticas e astúcias e assim ter a praça
não só como um espaço, mas como uma confidente das aventuras vividas em um tempo
sacralizado na memória de quem o viveu. Onde acontecem eventos importantes da vida
e história da cidade e seus habitantes.
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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

As praças nascem da necessidade que o homem tem de se socializar e


descansar. E o que para algumas pessoas que podem lançar o olhar e ver apenas as
pessoas sentadas nos bancos, para os historiadores ao contrario do que se imagina, essas
pessoas não deixaram passar a vida e, sim fazem a vida das cidades. E que isso possa
servir de inquietação para as futuras pesquisas sobre a cidade do Crato.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDRADE, Iarê Lucas. “Ao sopé da serra entre o canaviais”: a cidade do Crato
nos 40 a 60. Da linha do trem pra lá: O discurso sobre a prostituição na cidade de
Crato (1940/1960). Dissertação de Mestrado em História Social. Rio de Janeiro:
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio de Janeiro,
2000. p. 17-23.

BOSI, Ecléia. Memória e interação. In: memória e sociedade: lembranças dos velhos.
São Paulo. Companhia das Letras, 1992. p. 405- 422.

CERTEAU, Michel de. Introdução Geral. In: Invenção do cotidiano: artes de fazer.
Petrópolis, RJ: Vozes, 1994. p. 37- 53.
CORTEZ, Antônia Otonite de Oliveira. A construção da “cidade da cultura”: Crato
(1889-1960), Universidade Federal do Rio de Janeiro, Dissertação de Mestrado, 2000.
FOUCAULT, Michel. O corpo do condenado. In: Vigiar e punir: nascimento da
prisão. Ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014. p. 9-34.
GOMES, Nilo Sérgio. Em busca da noticia: memórias do Jornal Do Brasil de 1901 in:
RIBEIRO, Ana Paula Goulart e FERREIRA, Lúcia Maria Alves. Mídia e memória: a
produção de sentidos nos meios de comunicação, Rio de Janeiro: Mauad X, 2000. p.
179.
LE GOFF, Jacques. Documento/Monumento. In: História e Memória. Campinas, SP
Editora da UNICAMP, 1990. p. 535-549.
MEIHY, José Carlos Sebe Bom. História. Manual de história oral. Edições Loyola: São
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PESAVENTO, Sandra Jatahy. Cidades visíveis, cidades sensíveis, cidades imaginárias.
In: Revista Brasileira de História, vol. 27, nº 53, 2007. p .11- 23.
______. História, memória e centralidade urbana. Rev. Mosaico, v.1, n.1, jan./jun.,
2008. p.3-12.
REIS JR, Darlan de Oliveira. Natureza e trabalho no cariri cearense. In: Anais do
XXVI Simpósio Nacional de História, ANPUH- São Paulo, julho 2011. P. 1- 14
SCHAVARZMAM, Sheila. Ir ao cinema em São Paulo nos anos 20. In: Revista Brasileira de
História. vol.25, n.49., 2005, p.154.

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SILVA, Márcio Inácio da. Nas telas da cidade: salas de cinema e vida urbana na Fortaleza dos
anos de 1920. Fortaleza: UFC, Dissertação de Mestrado, 2007.

FONTES

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Siqueira Campos. Fortaleza: A província, 2009. p. 15-19.
TAL, Fulana de. Entrevista I. [agosto de 2014] Entrevistador: Maria Daíse Felipe de
Oliveira. Crato, 2014.
Feitosa, Zânia Maria Alencar Cunha. Praça Siqueira Campos no Crato. In: Anos
Dourados: Praça Siqueira Campos. Fortaleza: A província, 2009. p. 109- 117.
TAL, Fulano de. Entrevista I. [junho de 2012] Entrevistador: Maria Daíse Felipe de
Oliveira. Crato, 2012.
Jornal A Ação, ano de 1967. Disponível no Centro de Documentação do Cariri -
CEDOCC, Universidade Regional da Cariri.
VILLAR, Clymene. Voltando ao passado: Anos Dourados. In: Anos Dourados: Praça
Siqueira Campos. Fortaleza: A província, 2009. p. 9-11.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

HISTÓRIA NÃO É SÓ PRA CONTAR: MEMÓRIAS DE LUTA DA


COMUNIDADE DE MANGABEIRA

ANSELMO DE OLIVEIRA NUNES


UFPB
Email: [email protected]

RESUMO

No presente trabalho pretendo analisar as memórias contidas na obra "Mangabeira: Uma


História Viva!",organizado pelo grupo História Viva de Mangabeira, onde 21 autores
retratam suas memórias envolvendo as movimentações políticas junto as Associações
de Moradores do bairro e seus desdobramentos. Analisaremos o discurso memorialista
contidos nos 2 primeiros capítulos do livro focando em 4 eixos principais: as ocupações
das casas pelos moradores, a união coletiva que ocasionou a criação da primeira
Associação do Bairro, as disputas internas existentes nesse processo e as conquistas que
essas movimentações nos primeiros anos do bairro geraram para toda a comunidade da
época e nos dias atuais.
Palavras-chave: História; Memória; História local.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho foi desenvolvido a partir das leituras e inquietações


decorrentes da pesquisa de mestrado em andamento intitulada ―Memórias dos
Moradores de Mangabeira (1983-2003)‖ vinculado ao programa de Pós-Graduação em
História da Universidade Federal da Paraíba, onde estou realizando entrevistas com os
primeiros moradores do bairro, com o objetivo de analisar as memórias dos mesmos
para construir uma história do bairro através da perspectiva destes moradores, aliado a
uma pesquisa documental em arquivos públicos e pesquisa bibliográfica.
Neste trabalho analisarei os dois primeiros capìtulos do livro ―Mangabeira: uma
historia viva!‖ (2006), contendo vinte e um autores/moradores, que relatam suas
experiências como moradores do maior bairro da Paraíba.
A necessidade de se registrar um período bastante fecundo da História
paraibana, através dos relatos e da memória dos moradores de mangabeira, no livro
supracitado, inspirou a criação deste trabalho. A respeito dessas necessidades, saliento
para o fato de existir uma lacuna na produção historiográfica sobre a vida de homens e
mulheres dos bairros de João Pessoa.

771
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

De qualquer maneira, considero importante tratar este livro de memórias


enquanto uma maneira de trazer à tona as vidas de dezenas de milhares de pessoas que,
investindo no sonho de uma casa própria, inscreveram-se no programa de habitação
popular, na esperança de serem sorteados com uma casa. Portanto, o Grupo História
Viva de Mangabeira buscou explanar uma narrativa que tivesse por objetivo descrever
os aspectos relacionados à vida dos moradores de mangabeira, bem como seu cotidiano
de reuniões com o objetivo de organizar a população do bairro para que, unidos através
da Associação de Moradores, lutarem por seus direitos por uma moradia e vida dignas.
Com um discurso memorialista, os autores desenham uma região da cidade de
João Pessoa dos anos oitenta aos anos dois mil – corte temporal dos acontecimentos
narrados – em suas lembranças como um espaço de recomeço, de luta, de conquistas e
também de derrotas, desentendimentos, disputas que encerraram amizades, entre outras
situações descritas nos artigos. Um saudosismo que evoca críticas e historiciza os
espaços e as pessoas que conviveram durante aqueles tempos, bem como o período de
produção do próprio livro, pois ―história não é só pra contar‖ e sim pra ser vivida, como
enfatizou ―irmã Gê‖ (moradora/autora) demonstrando uma consciência de que a atuação
de cada um, contribuiu e serve de exemplo para o presente, desejando inquietar as
pessoas em relação a necessidade de se conscientizarem e agirem politicamente de
forma organizada.
Pode-se considerar que a maneira como os autores narraram e construíram uma
memória daqueles acontecimentos reporta-se não apenas do objetivo de representar,
inventariar escolhas, pessoas, lugares, e sim o de incentivar nas novas gerações de
moradores do bairro de mangabeira, a consciência de que é preciso união e organização
política para conquistar melhorias para a população.
Em linhas gerais, o livro analisado instigou algumas inquietações que serão
apresentadas no decorrer deste pequeno trabalho.

RECAPITULANDO A CAMINHADA

O processo de urbanização brasileiro se caracterizou por grandes loteamentos oficiais


destinados a população de maior poder aquisitivo. São exemplos destas iniciativas, na cidade
de João Pessoa, os loteamentos financiados e construídos nos períodos entre 1964-1967, de
quando a cidade possuía uma configuração mais compacta, voltada para o seu centro
histórico, nas proximidades do rio Paraíba, local da chegada dos invasores portugueses no

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

séc. XVI, com a construção de uma das principais avenidas da cidade, a Epitácio Pessoa, que
objetivava criar a ligação entre o centro da cidade e a orla marítima, além de abrir espaço
para a construção de casas residenciais para as classes mais abastadas. Apenas com as obras
da BR-101 (em direção a Recife) e da BR-230 (em direção a Cabedelo) e com a implantação
do Campus Universitário, representaram o início da expansão da cidade em direção ao
sul/sudeste.
O contexto de crises generalizadas (econômica, política, social, etc.) vividas pelo
Brasil na década de 1980, como muitos classificam de ―década perdida‖, também foi um
período muito profícuo politicamente. As aberturas políticas desencadeada pelo desgaste do
regime civil-militar ainda vigente acarretaram na re-organização e mobilização das camadas
populares, fortalecendo os sindicatos existentes, como os Metalúrgicos do ABC, liderados
por Luís Inácio da Silva, o Lula, e posteriormente as criações do Partido dos Trabalhadores e
do PMDB, por exemplo. Havia um grande clima de politização e por lutas por direitos entre
as classes menos abastadas da população brasileira de uma forma geral, e em João Pessoa
não era diferente.
Contando com cercade 76 mil habitantes o Conjunto Habitacional Tarcísio de
Miranda Burity, conhecido popularmente como bairro de Mangabeira, é o mais populoso de
João Pessoa. Caso fosse um município do estado da Paraíba, o bairro de Mangabeira seria o
6º em número de habitantes e perderia apenas para João Pessoa (723.515 habitantes),
Campina Grande (385.213), Santa Rita (120.310), Patos (100.674) e Bayeux (99.716). De
acordo com o Censo 2010 do IBGE, 94,40% da população do bairro é alfabetizada
colocando Mangabeira em 26ª posição no ranking de escolaridade da Paraíba. A renda per
capita do bairro é de R$ 846,84, a 36ª maior renda de João Pessoa. Uma parte da população,
10,31%, é composta por pessoas com idades que variam entre 25 e 29 anos, o que
corresponde a 7.835 habitantes. A menor parte, 0,01%, é composta por 6 pessoas que estão
com 100 anos ou mais. As mulheres são maioria no bairro e somam 40.144 moradores, já os
homens somam 35.844 habitantes (IBGE, 2011).
Mangabeira primeiramente foi projetada para ser inaugurada após a conclusão
da estrutura mínima que um bairro precisa. Saneamento básico, ruas pavimentadas, água
encanada, iluminação pública, entre outros itens. O problema da moradia explodia em
todo Brasil, sendo este um dos motivos para a criação do Sistema Financeiro de
Habitação (SFH) e do Banco Nacional de Habitação (BNH), logo após o golpe em
1964. A capital da Paraíba convivia diariamente com dezenas de milhares de pessoas
sem casa própria, muitos vivendo amontoados em barracos nas favelas, como foi

773
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

originalmente o bairro do Grotão330, conjunto habitacional construído para extinguir a


favela de mesmo nome. Os terrenos públicos eram ilegalmente invadidos para a
construção de pequenas casas.
Elaborado por uma equipe chefiada pelo arquiteto Hugo José de Freitas
Peregrino331, entre 1982 e 1984, o projeto Mangabeira era então o maior projeto já
construído pelo BNH em parceria com o governo do Estado através da CEHAP.
Possuindo um traçado diferenciado dos demais conjuntos habitacionais de João Pessoa,
contendo mais de doze tipos diferentes de unidades habitacionais.
Com as casas construídas a cerca de um ano, mas toda essa estrutura mínima
mencionada anteriormente, a população não quis saber de esperar a boa vontade dos
governantes e invadiram as casas. Não é possível afirmar precisamente a quantidade de
casas invadidas, mas, a Companhia Estadual de Habitação Popular (CEHAP), com
medo de invasões, entrega as chaves antes do tempo previsto, mesmo o bairro estando
sem alguma estrutura mínima. Percebe-se aqui desde já, um exemplo da força dos
moradores ao unirem-se em prol do mesmo objetivo.
O relato feito por José Rodrigues, beneficiado com uma casa em 1983, nos ajuda
a entender a realidade do bairro naquele momento em que já havia invasões e acarretou
a antecipação da entrega das chaves:

―Parecia que tìnhamos saído da escravidão para a liberdade. Todos,


esperançosos, num misto de alegria e saudade. Alegria por estarmos
vislumbrando um novo horizonte, e saudade dos amigos e parentes que
tínhamos deixado. Experimentávamos euforia e preocupação na adaptação da
nova residência, onde havia problemas na instalação hidráulica ou elétrica, e
na arrumação dos móveis que as vezes não cabiam bem nos cômodos. Era
tanta coisa ao mesmo tempo... Mas estávamos felizes como uma criança que
ganha um brinquedo novo. Sabemos que a felicidade nunca é completa, mas
estávamos na expectativa de melhores dias, contando com a ajuda de Deus.
Depois de deixarmos a casa mais ou menos em ordem, fomos cuidar do
quintal. Era um mato enorme com carrapateira, mamona, capim de roça,
capim gordura, vassoura de botão e tantas outras variedades que, apesar da
inconveniência, era até ecológico aquele permeio de arbustos e ervas. (...)
Mesmo assim procuramos fazer melhor, substituindo as plantas nativas por
umas que tivessem mais serventia como coqueiros, cajueiros, jambeiros,
flores e plantas medicinais.‖ (2006, Pág. 25).

330
Para mais informações sobre os projetos financiados pelo BNH em João Pessoa: LEAL, Anny Karinny
Lima. Permanências e inovações: o projeto do Conjunto Mangabeira. Dissertação (Mestrado em
Arquitetura e Urbanismo) – Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo, UFPB, João
Pessoa, 2012.
331
Hugo José de Freitas Peregrino formou-se em arquitetura e urbanismo, pela Faculdade de Arquitetura
e Urbanismo da UFRJ, em 1973, e em 1977, foi admitido na CEHAP.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

A falta de competência dos órgãos municipais e estaduais para entregar em


tempo hábil os conjuntos habitacionais, justificando seus atrasos sempre repassando a
responsabilidade para o governo federal, e principalmente para o BNH, acarretou a
revolta – ou desespero – da população que expressou este(s) sentimento(s) através das
invasões das casas já construídas. Até o presente momento não consegui entrar em
contato com algum morador que tenha invadido alguma das casas, para poder
entrevista-lo sobre o tema. É possível que ainda aja um receio de revelar-se como um
invasor destas casas, devido a constante e incisiva campanha difamatória existente na
mídia da época, e até os dias atuais, seja retratando mobilizações feitas pelo Movimento
dos Trabalhadores sem Teto (MTST) ou do Movimento dos Sem Terra (MST), entre
outras organizações sociais que reivindicam direitos garantidos pela Constituição
Federal, como o direito a moradia digna.

Figura 1: Temendo invasões, a CEHAP entrega casas.

Fonte: Jornal Correio da Paraíba, edição do dia 06/04/1983, acervo da Fundação Casa de
José Américo.

Figura 2: População invade as casas construídas.

Fonte: Acervo Jornal Mangabeira Cracem. Fotógrafo desconhecido

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Mangabeira configurava um espaço de inúmeras modalidades de encontros e


circulação de pessoas, das quais, com ou sem exageros de uma narrativa que trata a
memória de espaços e pessoas numa perspectiva compartilhada – as igrejas, as reuniões
nas casas dos outros moradores, as tendas de vendas, os bares de chão de barro, os
forrós em ―casas de evento‖ improvisadas, os cabarés, as histórias desses lugares, enfim,
tudo aquilo que trate da vida de homens e mulheres que estão em busca de trabalho,
diversão e uma vida social em um bairro que acabara de nascer.
Em sua narrativa coloquial, Rodrigues descreve o desenvolvimento de grupos de
amizade entre os moradores. Aos poucos as pessoas iam se conhecendo e as afinidades
formaram círculos de amizades com encontros mais frequentes. O autor enfatiza a união
das pessoas religiosas para encontrar um terreno propício para a construção da primeira
igreja católica do bairro, bem como para realizar reuniões de estudos bíblicos e
reflexivos nas casas uns dos outros. O grupo do qual faz parte a maioria dos integrantes
do Grupo História Viva de Mangabeira, José Rodrigues incluso. Como é salientado
posteriormente pelo autor, provavelmente outras pessoas tenham uma visão diferente
dos acontecimentos dos primeiros anos do bairro, pois como afirma Samuel (1990) as
pessoas podem morar na mesma rua, mas viver em universos completamente diferentes,
nos quais essa diferença se dá, na maioria dos casos, por questões de profissão. Uma
empregada doméstica que 4 km pra chegar ao trabalho, vive uma vida completamente
diferente de um operário de uma fábrica têxtil sindicalizado com aspirações políticas,
por exemplo. Portanto a idéia de comunidade pode ser ilusória.
O fato de ter sido escrito por um grupo ligado as comunidades religiosas,
majoritariamente de fé Católica, faz perder um pouco da diversidade de olhares
existente em um bairro tão populoso, apesar da relativamente grande quantidade de
autores (21 ao todo), abordando suas memórias das oito divisões de Mangabeira. Não
existe uma menção sequer a algum terreiro de umbanda, por exemplo, apenas à
Federação de Cultos Africanos, localizada na avenida principal do bairro, a Josefa
Taveira. Em pequenas reminiscências podemos descortinar posições não deixadas
claramente pelo autor.
Nota-se no texto a ausência de uma demarcação temporal precisa, algo
compreensível em um livro feito de forma coletiva, pois a memória também é formada
por esquecimento, por lapsos, lacunas temporais. Pode-se imaginar as reuniões feitas
para rememoração dos fatos, aonde, provavelmente em diversas situações, preferiu-se
ocultar informações sobre datas, nomes, etc., e isso ocorre em boa parte do livro, uma

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

não-linearidade das narrativas dos mais de vinte autores que contribuíram com seus
relatos e memórias.
Passado este primeiro momento de calmaria, de convites para visitas regadas a
muito café, cigarros, bolo de milho, tapiocas e todo tipo de comida diariamente
consumida pelo trabalhador paraibano, acontece o fato que culmina no primeiro
pesadelo e o estopim para a união destes moradores que tinham recentemente sido
apresentados uns aos outros pelo destino de serem sorteados com uma casa de
mangabeira: as altas prestações das casas.

DO DESESPERO NASCE A ESPERANÇA: A PRIMEIRA ASSOCIAÇÃO DE


MORADORES

A narrativa construída pelo autor, de maneira simples e direta, vai elencando os


acontecimentos que, na sua perspectiva, devem ser registrados, e rememorados,
fortalecendo a resistência contra o esquecimento, objetivando realizar uma reflexão
através das trajetórias de vida dos moradores. As cobranças abusivas recebidas ―como
um pesadelo‖ pela população de mangabeira, conseguiram instigar a união entre eles,
para juntos tomarem providências, através de uma Associação, esquecendo inclusive as
diferenças ideológicas, pois no final eram todos moradores de mangabeira. O autor
descreve:
―Em setembro de 1983, deu-se a sua fundação de direito e de fato e, com
bastante empenho, começou a trabalhar, através de seu presidente Valter Dantas,
com o apoio dos demais membros da diretoria e dos mutuários, que logo se
fizeram associados. Não se pode dizer que sua primeira gestão não tenha sido
eficaz, pois foi através da mesma que mais de 1000 mutuários encaminharam
ações a justiça, ações que, bem mais tarde, em 1988, foram vitoriosas.‖ (Pág.
31).

Em um contexto de reabertura política no Brasil, após um sangrento regime


Civil-Militar que perdurou por 21 anos, e com isso a fundação de organizações políticas
como o Partido dos Trabalhadores e do PMDB, ambos fundados em 1980. O
associativismo cresceu de forma explosiva – existem hoje em dia cerca de 32
Associações no bairro de Mangabeira – durante este período de grandes construções de
conjuntos habitacionais, o que tornou-se objeto de interesse dos partidos que queriam
angariar mais filiações para suas determinadas legendas, assim como atender os
interesses dos dirigentes de situação, inviabilizando uma gestão que tenha uma postura
combativa e crítica as políticas que não beneficiem a maioria da população, como

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

repetidamente os autores dos artigos gostam de enfatizar. Esta definição do outro como
um mero ―pelego‖ (termo pejorativo utilizado pelos sindicalistas para indicar um
sindicalizado que luta a favor do patrão) ou de ―comunista‖ nos indicam as maneiras
pelas quais os moradores tentaram fazer-se ouvir, e em um primeiro momento
conseguiram uma conquista histórica, em uma mobilização que até os dias atuais gera
orgulho de ser contada pelos moradores que participaram dela – em todas as
oportunidades que tive de conversar com os moradores, isso era claramente destacado
pelos mesmos.
Como afirma Melo (2015) quando consideramos a ação e a experiência dos
agentes históricos no labirinto das relações sociais, as possibilidades de pesquisa em
história são ampliadas, proporcionam um alargamento e ao mesmo tempo um
rompimento nos limites do conhecimento histórico que estão postos a nossa disposição.
A história local, bem como a história de bairros como Mangabeira, podem nos
proporcionar a possibilidade de resgatar atores sociais silenciados e omitidos da história
geral tida como oficial, apresentando uma alternativa de construção do conhecimento
histórico, contribuindo para o suporte da identidade social, gerando assim consciência
de classe, ação e transformação, assim como fizeram os primeiros moradores de
Mangabeira.

A DERROTA E A SABOTAGEM

Desviando um pouco da temática a respeito do bairro, Rodrigues passa a


inventariar situações diversas, aonde várias delas aconteceram com seus familiares e
com o próprio. A descrição acurada do roteiro de uma eleição e pós-eleição em qualquer
organização política, sejam em Associações, Sindicatos, Diretório Central de Estudantes
de Universidade Federal, Centros Acadêmicos, Prefeituras, entre outras, justificando a
indicação de alguns nomes, (em alguns momentos fazendo uso do nome completo, em
outros apenas o primeiro nome, ou até mesmo apelidos – sem atentar para o leitor(a)
que não é ―natural‖ de Mangabeira - ), intencionando dar ares de veracidade aos fatos
narrados, como o autor afirma, para ―dar mais valor‖.
Enveredar pelo mundo das disputas políticas não é simples. Em contextos de
forte repressão, um governo ainda predominantemente militar, ainda que em frangalhos,
é ainda mais complexo. A dedicação necessária para se produzir um trabalho bem feito,
uma gestão organizada, com as prestações de conta em dia, planejar e executar

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

campanhas de conscientização da importância da organização política, entre outras


inúmeras atividades que uma gestão eleita deve executar, isto tudo sendo realizado fora
do horário de trabalho, faz com que envolva todas as instâncias da vida. O autor nos
descreve uma série de situações vexatórias engendradas pela chapa derrotada na disputa
pela eleição da segunda gestão da Associação dos Moradores. Intimações judiciais,
prisões ilegais, delegados arbitrários que determinavam buscas sem mandados judiciais,
entre outros acontecimentos, nos demonstram a complexa teia de aranha que envolve
ser um sujeito político, aspirante a modificador da realidade em que vive.
Este período de sabotagem realizado pela chapa perdedora está, segundo o autor,
diretamente ligado ao esvaziamento da Associação e a desanimação dos companheiros
integrantes, que aos poucos foram deixando de participar, com isso a Associação passou
apenas a ―existir‖ de forma apenas decorativa da mesma forma que as dezenas de outras
Associações comunitárias existentes em Mangabeira, as quais em sua maioria estão
focadas no oferecimento de cursos profissionalizantes para a juventude do bairro.
O autor enfatiza – e aqui aparenta estar diante de seus antigos desafetos políticos
- que o que está contido no livro não é uma verdade absoluta, que a sua intenção, como
participante daqueles acontecimentos narrados, é registrar suas memórias,
intencionando demonstrar, a partir da descrição dos episódios que não agradam quando
rememorados, os motivos pelos quais muitas vezes a população não se interessa em
participar de movimentações como estas, além de todo o esforço necessário, como
descrito anteriormente, os inúmeros conflitos e problemáticas associadas a construção
de uma iniciativa coletiva, popular e em um bairro de periferia recentemente criado.
Após o esfacelamento da diretoria da primeira Associação, formou-se uma
comissão provisória, assumindo a diretoria durante anos, período no qual a entidade
apenas serviu de suporte para a sustentação de um esquema político, ligado ao governo
estadual, para executar a distribuição do ticket leite, e atuando como intermediária entre
a CEHAP e os moradores do bairro, em relação ao processo de negociação para
solucionar o problema das prestações abusivas cobradas pelas casas populares.
Nos capítulos seguintes do livro, os moradores/autores descrevem o
desenvolvimento das outras oito etapas do projeto Mangabeira, seguindo a característica
dos artigos analisados neste trabalho, relatam suas experiências pessoais e as lutas em
prol da moradia digna. Em poucas páginas escritas sobre um curto período de tempo,
descortina-se todo um universo existente em apenas um dos bairros da capital
paraibana. É um recorte da história de um grupo de moradores de um dos maiores

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

bairros da Paraíba, e já se demonstra uma fonte riquíssima para pesquisas que podem
ser desenvolvidas nas escolas do próprio bairro, bem como nas universidades. Se faz
necessário falar de gente. Urge conhecer nossa gente. A história do Brasil está nos becos
e vielas das favelas e invasões de Mangabeira, como em qualquer outro bairro periférico
deste estado. O livro que é fruto de uma união coletiva memorialística fez sua parte da
maneira que puderam, como o sábio professor que ensina a partir do exemplo de suas
atitudes, alertando para nós historiadores a mina de ouro que se encontra bem ao lado de
nossas casas, próximo de nossas universidades e escolas, nosso povo, nossa gente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Através da análise do livro, pudemos refletir sobre as condições de vida que os


primeiros moradores do Conjunto Habitacional Tarcísio de Miranda Burity,
popularmente conhecido como Mangabeira, vivenciaram. Em um contexto de rápido
crescimento populacional, a cidade de João Pessoa se viu diante da formação de um
bairro com proporções de uma cidade, mas construído e entregue de forma desigual,
com déficit de estrutura básica como pavimentação, iluminação e água encanada,
demonstrando a turbulência política e econômica por qual o País passava. Retomando a
caminhada dos moradores, podemos perceber a complexidade das movimentações
políticas locais, estaduais, regionais e nacionais, refletidas nos acontecimentos relatados
no decorrer do artigo.
Foi possível refletir sobre a importância da História local demonstrando, através
das memórias de alguns de seus primeiros moradores, o protagonismo dos mesmos ao
organizarem-se para a conquista de direitos básicos de cidadania, para a melhoria de
suas condições de vida em um contexto de reabertura política, em fins da Ditadura
Civil-Militar, bem como contradições e disputas internas existentes nas organizações
representativas como sindicatos e Associações.
As memórias e as Histórias dos moradores de Mangabeira são muito ricas e
precisam ser estudadas de forma aprofundada, a luta pela moradia e pela vida digna tem
uma longa e complexa trajetória que reescreve a história de nosso país, a partir da ótica
dos que sempre foram omitidos, ocultados e apagados pelos historiadores ditos oficiais.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

REFERÊNCIAS

FERNANDES, Salismar. Mangabeira: Uma história viva! João Pessoa: Editora


Gráfica Mangabeira, 2006.

IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo Demográfico 2010.


Brasília: IBGE, 2011

LEAL, Anny Karinny Lima. Permanências e inovações: o projeto do Conjunto


Mangabeira. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Programa de Pós-
graduação em Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa,
2012.

MELO, Vilma de Lurdes Barbosa. História local: contribuições para pensar, fazer e
ensinar. João Pessoa: Editora da UFPB, 2015.

SAMUEL, Raphael. "História Local e História Oral" in: Revista Brasileira de


História. História em Quadro-Negro: escola, ensino e aprendizagem. São Paulo:
ANPUH/Marco Zero, 1990, p. 220.

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PATRIMÔNIO E IDENTIDADE: A AMBIGUIDADE DO DISCURSO SOBRE A


PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO DE POMBAL-PB

ALESSANDRE FERRREIRA DOS SANTOS*


UFCG/ CFP
[email protected]

RESUMO

A significação que é atribuída a objetos do passado, nos permite compreender com mais
clareza fragmentos importantes da nossa história. Parte dessa significação pode ser
atribuída ao patrimônio histórico nacional, seja ele material ou imaterial, legitimado
como segmento importante de uma determinada cultura. Sendo assim, dialogaremos
com os autores do ―manifesto em defesa do patrimônio histórico‖ de Pombal-PB,
(ARAÚJO NETO & SOUSA, 2004.) para buscarmos compreender a importância de se
estabelecer uma relação com o patrimônio histórico à qual atribuímos valores e
significados. Além desses e de outros autores, faremos uso do meu trabalho de
conclusão de curso intitulado ―A cadeia velha de Pombal: discursos e diálogos na
preservação do patrimônio histórico pombalense no século XXI.‖.
Palavras- chaves: Patrimônio; Preservação; Memória; Significados.

INTRODUÇÃO

O tema patrimônio histórico tem se expandindo com maior intensidade em nossa


sociedade nos últimos anos. A necessidade de se preservar objetos do passado que
estão intrinsecamente ligados a uma memória coletiva, faz renascer no indivíduo a
perspectiva de maior seguridade para os bens patrimoniais, sejam eles materiais ou
imateriais, que compõe o conjunto dos signos culturais eleitos como patrimônio
histórico de uma sociedade.

Nessa perspectiva, a memória coletiva imprime sobre o objeto, um valor


cognitivo, que faz aflorar no indivíduo o sentimento de pertencimento, sentimento de
posse, daquilo que lhe foi deixado como herança por seus antepassados. ―Pois através
da materialidade, o indivíduo consegue se realizar e afirmar sua identidade cultural,
podendo também, reconstruir seu passado histórico‖ (OLIVEIRA; LOURES
OLIVEIRA, apud ROCHA 2012).

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

É importante fazer transparecer que essa memória coletiva, surgi das escolhas de
cada indivíduo e é através da inter-relação desses indivíduos com os objetos do passado
eleitos como partes importantes das suas vivências, (pois estes estão repletos de
significados) que lhes faz remontar um período cronológico, que a memória vai se
perpetuando, se cristalizando, transformando-se consequentemente em uma memória
coletiva. Pois, ―cada indivìduo é parte de um todo – da sociedade e do ambiente onde
vive – e constrói, com os demais, a história dessa sociedade [...]‖ (GHIRARDELLO,
2008, p. 15).
Os significados que são atribuídos a esses bens, valorizando-os e dando
notoriedade dentro da sociedade, e que são fragmentos dessa memória, podem está
inserido em diferentes categorias: seja no âmbito religioso, cultural, etnológico,
artístico, nas edificações de uma cidade, nos costumes de um determinado povo, entre
outros, mas que faz surgir determinadas práticas e concepções que se propagam através
do tempo.
Essa memória coletiva que em tempos passado era constituída e transmitida de
diferentes formas, através da oralidade ou da escrita, entre grupos de pessoas ou de
diferentes tribos e regiões, encontra agora um maior aparato diante das novas
possibilidades proporcionadas pela mídia e pela inovação tecnológica, capazes de
registrar e armazenar uma infinidade de informações e de transmiti-las em alta definição
e com maior precisão através do mundo.
Sendo assim, essas novas tecnologias tornam-se importantes aliados na
preservação dos objetos do passado, pois abrange um grande número de pessoas que se
manifestam a favor ou contra a manutenção desses bens, gerando importantes
discussões, como as que ocorreram em Pombal-PB, durante a tentativa de derrubada da
chaminé da fábrica Brasil Oiticica, no ano de 2012, onde várias pessoas se
manifestaram através das redes sociais para expressar as suas opiniões acerca daquela
polêmica.
Porém, não é a primeira vez que discussões inerentes ao patrimônio histórico da
cidade são levantadas. Durante a demarcação e processo de tombamento do centro
histórico da cidade, originada após denuncia ao ministério público, em decorrência do
desrespeito e mal uso de objetos históricos da cidade, várias pessoas se manifestaram
dando apoio à luta iniciada por um cidadão comum e que resultou no tombamento do
centro histórico e dos seus principais objetos.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

O presente trabalho tem o objetivo de mostrar como essas discussões que


ocorreram em momentos distintos corroboraram para a preservação do patrimônio
histórico da cidade e como a cristalização dessa memória coletiva gerada em torno do
patrimônio histórico de Pombal, vem se desenvolvendo.

MANIFESTO EM DEFESA DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO DE POMBAL- PB

Os anos que sucederam ao tombamento do centro histórico de Pombal foram


marcados por debates calorosos em defesa da preservação do patrimônio histórico da
cidade. No foco da discussão encontravam-se a ―Cadeia Velha‖ da cidade, construção
de 1847, que após o seu tombamento foi transformado em museu da cidade,
denominado Casa da Cultura Senador Ruy Carneiro, onde estão guardados objetos que
fazem parte da história local.

Se a princípio a Casa da Cultura por meio da ação dos seus administradores,


teria sido um objeto de suma importância para a concretização do tombamento dos bens
patrimoniais da cidade, fato realizado pelo IPHAEP no ano de 2002, poucos anos depois
ela serviu de exemplo traduzindo o descaso e a falta de assistência dos órgãos
municipais para com os objetos que constituem a história e a memória da população
pombalense.

Dialogando com pessoas próximas no nosso cotidiano, percebi que quando


tratamos de tombamento e da preservação dos bens patrimoniais em nossa sociedade, a
ideia que prevalece na maioria das conversas, provavelmente pela falta de conhecimento
sobre o assunto é que: os objetos que se encontram amparados pela Lei do tombamento
são algo intangíveis, e por isso, são vistos como prioridade se comparados a outros
objetos que se encontram desprotegidos ou que não exercem tanta representatividade
dentro da mesma sociedade.

Geralmente temos essa concepção porque acreditamos que esses elementos por
se encontrarem protegidos por Lei, receberão dos órgãos responsáveis atenção
diferenciada, passando a ser restaurados todas as vezes que houver necessidade da
realização de reformas ou quando precisarem da ajuda dos órgãos preservacionistas para
resolver qualquer problema que ameace a sua existência.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Entretanto, quando partimos para a realidade existente percebemos que as


coisas são diferentes e que na verdade, não é isso o que ocorre. Como responsáveis pela
preservação do patrimônio histórico, os órgãos preservacionistas como, por exemplo, o
IPHAEP, dependem assim como outros departamentos do ―entrosamento com entidades
municipais, estaduais, regionais, federais, paraestatais e internacionais‖ (TARGINO,
2003, p. 16) para a realização das obras nas cidades históricas. Sendo assim, para que as
coisas funcionem, passa a ser algo complexo, mas, de suma importância, a ação dos
municípios através da formação de políticas públicas que visam a preservação dos bens
patrimoniais das cidades tombadas.

Como exemplo, na experiência vivida em Pombal-PB, diferente do que se


imagina; o tombamento não representou de imediato à salvação do patrimônio histórico
da cidade. Pois, mesmo com a regulamentação perante o IPHAEP, a preservação dos
prédios tombados continuou estagnada, esperando por ações do poder público que
tivessem como objetivo, a viabilização de alguns trabalhos que pudessem resolver com
urgência a situação dos objetos tombados, que naquela ocasião passavam por sérios
problemas.

Contudo, essas ações tão esperadas demoraram a chegar, aparentemente graças à


omissão do poder público, mesmo após o tombamento.

O poder público municipal, que deveria agir conforme e conjuntamente à


união, reage muitas vezes com atitudes que criam situações de conflitos,
movido por questões politicas ou outros interesses predominantes
circunstancialmente. É comum que as prefeituras permitam ou, às vezes,
promovam obras em flagrante desrespeito àquilo determinado pelo PHAN
ou, constantemente, em desacordo à proteção do patrimônio- ambiental ou
cultural- possibilitando que a população posicione-se de um lado ou de outro,
conforme suas necessidades circunstanciais e individuais. (SIMÃO, 2006,
p.41).

Esse posicionamento que de fato veio a ocorrer deixa claro o interesse das parcelas
envolvidas e promove o distanciamento de parte da população com o poder público
municipal, através das divergências políticas e da postura contrária adotada por alguns
governantes, que por consequência, termina penalizando toda a população que fica
privada de tais benefícios.

No que se refere ao patrimônio histórico pombalense, a omissão do poder


público para com os objetos históricos da cidade revela algo inesperado, fazendo surgir

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

naquele momento o sentimento de pertencimento de pessoas da sociedade que passam a


se reconhecer como parte importante desse meio social.

Dentro dessa perspectiva, indivíduos que antes eram desconhecidos de grande


parte da população, (apesar da grande maioria ser pessoas letradas ou de pertencer a
classes com poder aquisitivo considerável) começam a se apropriar e consequentemente
a cobrar por um espaço que lhes é comum, espaço em que eles se reconhecem; pois,
neste local estão inseridas partes importantes não só da sua vivência, mas também da
vivência dos seus familiares e amigos.

Sendo assim, o sentimento que aflora dentro dessa parcela da população vai aos
poucos ganhando força, e em pouco tempo se transforma em protesto em defesa dos
objetos históricos da cidade.

Os motivos que levaram a revolta das pessoas envolvidas nesta ação podem ser
observados através de fotografias daquela época, quando a antiga cadeia encontrava-se
totalmente encoberta por trailers comerciais e ao mesmo tempo oculto dos olhos da
população.

Contudo, mesmo escondida dos olhos da maior parte da população que parecem
estar alheios a esse tipo de situação, talvez por não entender o valor histórico que cada
objeto representa dentro da própria cidade, apesar disso, é da própria população que
surge a iniciativa para se buscar soluções que possam manter preservadas as heranças
deixadas através do tempo.

Foto 01- Casa da Cultura em 2002 (IPHAEP, 0030, 2002, fl. 19).

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Na imagem acima é possível observar a Casa da Cultura em péssimo estado de


conservação. E mesmo encoberta por barracos é possível percebermos também o quanto
a sua faixada encontrava-se prejudicada pelo salitre, provavelmente consequência da
urina das pessoas que frequentavam o local e que usavam o ambiente para realizar as
necessidades fisiológicas.

Hoje a cadeia velha, tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico Artístico


do Estado da Paraíba- IPHAEP, agora denominação de Casa da Cultura, se
encontra por trás de contraditórios barracos que vendem bebidas alcoólicas,
dando margem para sua calçada secular, de pedras rústicas, servirem de
banheiro para bêbados e desocupados. O abandono do nosso monumento
histórico exalta o atraso e o desrespeito aos nossos antepassados, ao presente
e as futuras gerações. (ARAÚJO NETO & SOUSA, 2004, p. 18).

Além do desrespeito com a história pombalense naquele momento, o abandono dos


bens patrimoniais da cidade representa ainda, a incerteza para as gerações futuras, já
que acreditamos que ―é observando o passado que o homem adquire as experiências
necessárias para corrigir os erros do futuro‖ criando assim situações que lhes sejam
mais favoráveis e que possam lhes proporcionar uma maior comodidade.

―OS INIMIGOS DA MEMÓRIA‖

Ao analisarmos o livreto ―O manifesto em defesa do patrimônio histórico‖,


idealizado pelo Engenheiro agrônomo pombalense José Tavares de Araújo Neto e
apoiado por ―filhos da terra‖ espalhados por diversos lugares do mundo, que tem como
objetivo chamar a atenção da população para o descaso existente para com o patrimônio
histórico da cidade é que podemos entender de maneira mais clara a relação das pessoas
envolvidas com o movimento em questão. Movimento que reúne não só as pessoas da
cidade, mas também, pessoas externas que valorizam a história e a cultura brasileira de
uma forma geral.

Já no prefácio do trabalho, intitulado ―Os inimigos da memória‖, o escritor,


poeta e compositor Braulio Tavares, movido pelo sentimento de revolta ocasionado pela
destruição do patrimônio Histórico Artístico e Cultural, não só da Paraíba, mas
principalmente o patrimônio histórico brasileiro de uma forma geral, destaca três
categorias de indivíduos que de maneira consciente ou inconsciente destroem os objetos

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

da nossa história, são eles: o Lucrador Predatório, o Modernizador Angustiado e por


fim, o Desinformado Catastrófico.

Dentro da sua perspectiva, cada um desses indivíduos contribui de forma


expressiva para a destruição dos objetos deixados por nossos antepassados. Entre esses
grupos de pessoas o que existe em comum é o fato de que todos estão movidos pelo
capitalismo, e a busca pelo acúmulo de valores que esse sistema proporciona, é que os
leva a destruir o patrimônio existente, na intenção de se criar elementos que se
encaixem, sobretudo, nesse conceito de modernidade que gera cada vez mais lucro e
que se torna cada vez mais presente no nosso meio social.

O Lucrador Predatório é o cara que bota abaixo o prédio onde um jornal


funcionou por 50 anos e faz ali uma farmácia. É o cara que está fazendo um
filme e para filmar uma cena manda serrar uma árvore que já estava ali
quando Pedro Álvares Cabral chegou em Porto Seguro. É o cara que derruba
um chafariz do século 18 para construir uma garagem para sua camionete.
Ele não tem nada específico contra o patrimônio, contra a memória, a não ser
quando eles prejudicam seus interesses. Ele é como um gafanhoto: quer
apenas devorar o que aparece a sua frente (TAVARES, apud, ARAUJO
NETO, 2004, p.9-10). [grifos do autor]

No pensamento deste indivíduo, a história não exerce nenhuma influência. Por isso, ele
não se incomoda em se desfazer daquilo que é precioso para as futuras gerações, se em
contrapartida, aparecer um negócio que lhe proporcione algum lucro.

Por outro lado o ―Modernizador Angustiado‖ é conhecedor da história, mas a


história para ele não traz boas recordações. De acordo com o autor esse tipo consciente,
viveu parte da sua vida cercado por regras e costumes de uma sociedade conservadora
que sempre via as coisas novas (O moderno) como ―algo suspeito‖ dentro dos padrões
tradicionais.

E nesse impulso ele começa a combater tudo que parece velharia. Não
adianta dizer que tem valor histórico. Para o Modernizador Angustiado, o
mundo já tem história demais, passado demais. Ele é um fanático pelo futuro,
e para impor o que ele acha ser o futuro é capaz de implodir a Catedral de
Notre Dame ou de aterrar os canais de Veneza. (TAVARES, apud, ARAUJO
NETO, 2004, p. 10).

Sendo assim, de nada adianta sua consciência ou o seu conhecimento sobre a história
das gerações anteriores. Ele busca se libertar, e para isso o que interessa mesmo é que
tudo seja renovado.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Diferente dos dois tipos apresentados surge o ―Desinformado Catastrófico‖. De


acordo com o autor esse individuo não tem consciência daquilo que está fazendo.
Muitas vezes isso ocorre por falta de conhecimento ou por ele não ter recebido na sua
formação, a educação necessária que o tornasse consciente daquela situação.

É o sujeito que assume uma repartição e manda jogar no lixo aquelas caixas e
caixas de papéis velhos ―que só servem para ocupar espaço‖. É a turma que
vai fazer acampamento no parque florestal, acende um fogo para fazer café, e
destrói não sei quantos mil hectares de Mata Atlântica, num incêndio que
precisa de mil bombeiros para ser contido. É o síndico que não gosta de um
mural e manda arrancar todos os ladrilhos, sem perguntar quem fez aquilo ou
quando. (TAVARES, apud, ARAUJO NETO, 2004, p. 10- 11).

Esse indivíduo muitas vezes só quer fazer o que para ele parece ser correto. Porém, a
falta de conhecimento não o deixa enxergar que tudo aquilo o que ele está fazendo, na
verdade prejudica uma grande parte da sociedade ―os delitos que pratica não são
dolosos (com intenção de prejudicar), mas são culposos, porque prejudicam‖.
(TAVARES, apud, ARAUJO NETO, 2004, p. 11).

Assim como esses indivíduos, existem na sociedade vários grupos de pessoas


que por algum motivo não veem o patrimônio histórico como algo benéfico ou digno de
ser preservado. Por outro lado, existem também pessoas que enxergam no patrimônio
histórico, uma forma de aprendizagem essencial tanto para as gerações presentes como
para as gerações futuras.

São pessoas, capazes de se organizar e de buscar dentro da própria população o


apoio necessário para conseguir os seus objetivos. Assumindo tal postura, ele está
exercendo também, a posição que lhes é de direito como cidadão, o direito de participar
e de cobrar dos nossos governantes de maneira consciente, ações que venham beneficiar
não apenas um indivíduo de maneira seletiva, mas todo o coletivo de forma geral. E é
isso que ocorre em Pombal.

Partindo da experiência vivenciada pelos pombalenses onde o objetivo era o


coletivo, o resultado foi expressivo e podemos perceber através dos depoimentos
presentes no manifesto, a reação e a indignação das pessoas ao se depararem com a
destruição dos bens patrimoniais espalhados pela cidade.

...É uma pena que o descaso e a falta de sensibilidade e respeito histórico


façam com que lugares que deveriam servir de guardiã da historia
pombalense fiquem entregues ao abandono e às traças. É um verdadeiro

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

assassinato a nossa história. Fica aqui o meu protesto e descontentamento.


(Stanley Dias Nobrega- Brasília - DF)
O que acabei de ver realmente doi o coração, principalmente de uma
pombalense que ama a sua terra. O que teremos para mostrar aos nossos
filhos sobre nossa história, se tudo está indo de água abaixo? Assim vamos
ficar sem passado, provavelmente sem futuro. É muito triste e vergonhoso.
(Auta Sueley Formiga Arruda- Brasília -DF ).

Os objetos que formam a história pombalense ocupam um lugar de destaque dentro da


discussão. Porém, a possibilidade de não poder mais contar com esses objetos, por
causa do descaso com o patrimônio da cidade, é visto como ameaça, algo prejudicial às
gerações futuras, já que existe a possibilidade de não teremos mais como exemplos,
esses elementos de forma palpável, o corpo físico presente; algo que não esteja apenas
nas lembranças das pessoas que vivenciaram uma determinada época, mas, que também
faça parte do presente e que possam trazer para as gerações futuras, a possibilidade de
conhecer ainda mais sobre as heranças deixadas pelos seus antepassados.

Nessa perspectiva, o sentimento de indignação que se perpetua principalmente


contra os gestores municipais, por esses não se preocuparem com a situação que se
apresenta, serve como combustível ajudando a dar ainda mais impulso ao movimento
existente.

Por outro lado, o apoio que chega de vários lugares, é visto como ferramenta de
grande importância, na tentativa de pressionar os governantes locais e fazer com que
esses gestores tomem as devidas providências, diante da grave situação em que se
encontra o patrimônio histórico municipal. ―José Tavares, a história se faz com luta e
perseverança. O seu trabalho é digno de um filho consciente e de sentimentos aos
valores culturais da nossa terra. Parabéns.‖ (Verneck Abrantes de Sousa- Campina
Grande- PB).

Pessoas como o amigo Jose Tavares merecem nosso aplauso pela bravura de
está engajado nessa luta, que é de todos nós, mas deveria ser, principalmente,
da administração municipal de Pombal, que, deixe bem claro, nada,
absolutamente nada tem feito pela cultura de nossa Pombal. (Naldo Silva-
Pombal- PB)

Porém, além do apoio como podemos observar, também é possível destacar alguns
pontos essenciais que marcaram esse discurso. A importância da participação popular
no discurso que pede a preservação dos objetos que constituem a memória da cidade é
algo que tem que ser destacada como parte fundamental desse processo de conquista.

790
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Além disso, o que foi realizado em Pombal através da iniciativa de um cidadão


comum, neste caso, José Tavares de Araújo Neto, nos faz refletir ainda mais sobre o
papel do cidadão dentro da nossa sociedade. O cidadão consciente que ouve e se faz
ouvir, e que não deixa apenas sob a responsabilidade do poder público, os encargos de
fiscalizar o município. Cobrando e agindo com responsabilidade ele faz com que as
coisas funcionem de maneira organizada, tudo dentro de sua ordem e do seu devido
lugar.

Outro ponto importante que podemos destacar é o apego da população com os


objetos da cidade, apego que se mostra cada vez mais forte e nos dá um pouco da noção
do que esses objetos representam para essa sociedade. ―Como é sabido, a cidade de
Pombal representa não só a parte histórica viva paraibana, mas também do cenário
nacional, pois o seu patrimônio cativa e vislumbra seus visitantes orgulhando ainda
mais os seus filhos ilustres‖. (Pedro Junqueira Neto – Pombal- PB).

A intelectualidade pombalense não suportará golpe tão grande desfechado


por políticos que somente enxergam a anti-cultura como solução
administrativa. Engajo-me ás lutas dos bravos irmãos pombalenses na
preservação da Casa da Cultura de Pombal. (Rogério Dias- poeta e Artista
Visual- Mossoró- RN)

Se por um lado o patrimônio histórico pombalense é algo que aparece em ―segundo


plano‖ na visão dos governantes, para as pessoas envolvidas neste levante ―A defesa do
patrimônio histórico paraibanos é uma luta que sempre vale a pena ser travada.”
(Braulio Tavares- Rio de Janeiro- RJ). E é por esse valor inserido em cada um desses
elementos que essas pessoas resolvem erguer sua voz. ―Pombal, não dar para suportar o
que os homens públicos estão fazendo com tua cultura, esquecendo-a.‖ (Eudézio
Cardoso- Presidente Médice- RO)

Caro Tavares. A Cadeia Pública de Pombal está, para nós pesquisadores,


como um marco histórico para o capítulo do cangaço na história do Nordeste
e do Brasil. A luta continua companheiro!!! Enquanto tivermos cidadãos
preocupados com a preservação da nossa história e que tenham a devida
coragem de denunciar estes descasos, ainda veremos a luz no fim do túnel.
Siga em frente na tua luta. (Kyldelmir Dantas- Presidente da Sociedade
Brasileira de Estudos do Cangaço (SBEC)- Mossoró- RN)

A ―luz no fim do túnel‖ representa para essas pessoas, a certeza de que ao retornarem
um dia ao seu local de origem, poder se deparar novamente com os mesmos objetos que
deixaram durante a sua partida. Ou ainda, a garantia de poder ter como exemplo, objetos

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

como a antiga cadeia da cidade ou mesmo da Igreja de Nossa Senhora do Rosário,


elemento de grande importância e que ao longo de séculos vem ajudando a contar a
história dessa parte do Brasil, ainda pouco explorada pelos historiadores.

SEGUNDO MANIFESTO

A história se repete. Da mesma maneira que ocorreu no ano de 2002, quando a cadeia
velha esteve no centro das discussões que proporcionou o aceleramento do tombamento
do centro histórico da cidade e consequentemente dos seus bens patrimoniais, anos
depois surgi um novo levante, dessa vez, em defesa de um bem privado, mas que
também exerceu grande significado na vida das pessoas da cidade e da região.

Durante muito tempo a fábrica da Brasil Oiticica localizada na cidade de


Pombal, foi a grande geradora de renda para muitas famílias dessa região. ―Fundada em
1934, a Brasil Oiticica, indústria oriunda do Ceará, em pouco mais de 50 anos de
existência conseguiu exportar mais de U$ 22 milhões de dólares, até que, no ano de
1987, teve decretada sua falência.‖ (QUEIROGA, 2012.)

Após a sua desativação a fábrica permaneceu fechada enquanto suas estruturas


sucumbiam com ação do tempo. Seus enormes galpões que antes eram ocupados por
máquinas e onde se armazenava a produção da região, foram caindo gradativamente,
paulatinamente, até que seus proprietários lhes desferissem o golpe final, derrubando o
que restou.

Entretanto, uma parte da fábrica não tinha sido atingida. A chaminé onde
funcionava a caldeira teria sofrido vária tentativa de demolição, porém nenhuma delas
obteve êxito, devido a sua estrutura, apesar de alta, ter se fortalecido provavelmente
com o calor da sua caldeira.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Foto 2- Chaminé da Brasil Oiticica durante tentativa de derrubada (Foto de Lucio Flávio Formiga )

A foto acima mostra a chaminé amarrada com cabos de aço enquanto na sua base foram
feitas escavações para facilitar a derrubada. No entanto, esse seria o foco da segunda
discussão envolvendo o patrimônio histórico da cidade e a população local, onde a
população se posicionou de maneiras opostas, contrários ou a favor da derrubada da
chaminé da Brasil Oiticica.

Assim como ocorreu em 2004 quando foi criado o ―manifesto em defesa do


patrimônio histórico de Pombal‖ organizado pelo Engenheiro agrônomo Jose Tavares
de Araújo Neto, em 2012, também foram criadas manifestações, porém, dessa vez o
autor organizou o levante por meio das redes sociais, o que proporcionou a participação
de varias pessoas.

Em junho de 2012, a Radio Liberdade FM (empresa de rádio local) diante do


assunto polêmico, realizou uma enquete na qual as pessoas da cidade se manifestaram
votando contra ou a favor da derrubada da chaminé. Naquela ocasião o resultado parecia
anteceder o fim absoluto da Brasil oiticica, como mostra o próprio autor. ―Apesar de
existir um vicio no programa da enquete, o resultado favorável a derrubada da chaminé
não me surpreende.‖ (ARAÚJO NETO, 2012).

Ai vai minha opinião sobre esse caso da chaminé que está gerando a maior
polemica aqui em Pombal... Jose Tavares De Araujo Neto, Rapaz eu acho
que essa chaminé não tem mais condições de ficar ai não até por que, não sei
se você viu mais ela esta quebrando lá em cima e ela já sofreu muito dano, e
outra, eu tive a oportunidade de entrar dentro dela e ver ela por dentro e a
coisa está mais feio ainda, devido a umidade ela está muito acabada por
dentro.... Se for para reformar ela vai gastar muito mesmo! Dinheiro que
poderia ajudar muita gente ai que precisa aqui em Pombal, na minha opinião

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

esse caso da chaminé seria um desperdício de dinheiro !!!! Mais vamos que
no que vai da neeh.....( EDSON KAIQUE, 2012.)

Mas apesar do resultado da enquete ter sido algo negativo, as pessoas que pediam pela
preservação continuaram suas manifestações através das redes sociais. ―A sua luta
incansável junto a todos os que compartilham com esse ideal terá resposta favorável.
Acredito que o Poder Público vai começar a entender a importância de um patrimônio
histórico. Parabéns!‖ (ALMEIDA, 2012). E esse apoio continuou crescendo.

Eu sou quem agradeço a todos que abraçaram esta causa, desde aqueles,
pombalenses ou não, que vem fazendo importante trabalho de bastidores
junto aos órgãos competentes, como também aqueles que depuseram a favor
da preservação, compartilharam nossos fotos ou curtiram os comentários
favoráveis. o MP, a UFCG, O IPHAEP, são órgãos que estão tendo papel
fundamental.( ARAÚJO NETO, 2012. )

As manifestações surtiram efeitos e com a ajuda de várias entidades juntamente como o


Ministério Publico, o IPHAEP realizou algumas avaliações nas quais foram descartados
os riscos de desabamento e ainda ―Vai propor que seja preservada a torre da Chaminé
para um Monumento histórico que beneficiará os moradores da localidade com a
construção de uma praça. Ele considerou que a chaminé é um ícone para a cidade de
Pombal‖ (BRUNET, 2012).

O que de fato veio a ocorrer, pois no local onde hoje se encontra a torre foi
construída uma praça, provando que mesmo os objetos do passado são capazes de serem
integrados à modernidade e conviver passivamente com o presente e ainda ser útil a
população.

CONCLUSÃO

Os manifestos que ocorreram em Pombal em tempos distintos mostraram a


preocupação de uma parcela da população com os objetos que compões a história dessa
cidade. O receio dessas pessoas diante da possibilidade de perder esses objetos, fez
ressurgir em vários momentos, fragmentos de suas memórias que estão repletos de
significados e que contribuíram com o surgimento de uma memória coletiva.

Nos dois casos o apoio da população foi de suma importância para a preservação
dos bens citados. Provocando o Ministério Público fez com que o mesmo se

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

manifestasse assumindo uma postura diante daquela polêmica que envolvia a sociedade
pombalense. Da mesma forma ocorreu com o órgão preservacionista, o apoio da
população fez o IPHAEP perceber a importância histórica inserida em cada um desses
objetos, além disso, também fez transparecer o quanto a população se reconhece e se
identifica com cada um desses elementos espalhados pela cidade.

Com isso, é possível reconhecer o indivíduo como agente transformador do seu


espaço, é possível pensar também a importância da participação de cada um desses
agentes e o papel que esse desempenha dentro da sociedade, seja na criação de políticas
publicas, seja na preservação do patrimônio material ou imaterial que compõe a sua
história e que lhe garante uma identidade.

REFERÊNCIAS

ARAÚJO NETO, José Tavares de & DE SOUSA Verneck Abrantes. In: A cadeia velha
de Pombal: Manifesto em Defesa do Patrimônio Histórico. Pombal, 1 Ed. Gráfica
Andyara, 2004.
ARMELINI, Angela Inês Micheletti da Silva Quintino. A preservação do patrimônio
em Santo André: uma avaliação sobre a contribuição do uso cultural em imóveis
tombados. São Paulo, 2008; Dissertação (Mestrado – Área de Concentração: História e
Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo) – FAUUSP.

CHOAY, François. A alegoria do patrimônio. São Paulo: Editora UNESP, 3 Ed. 2008.
DE SOUSA, Verneck Abrantes. In; Nossa história, nossa gente; Igreja de Nossa
Senhora doRosário. Pombal-PB, 4 Ed. Gráfica Martins, 2008.

PARAÍBA. Processo nº 0030/2001. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do


Estado da Paraíba. Tombamento da Antiga Cadeia publica e da Igreja do Rosário de
Pombal, João Pessoa, PB, 02 de Março de 2001, fls. 01-120.

ROCHA, Thaise Sá Freire. Refletindo sobre memória, identidade e patrimônio: as


contribuições do programa de Educação Patrimonial do MAEA-UFJF

SANTOS, Alessandre Ferreira Dos, A “Cadeia Velha” de Pombal – PB: discursos e


diálogos na preservação do patrimônio histórico pombalense no século XXI.
Monografia (Graduação) - UFCG/CFP, 2015.

SIMÃO, Maria Cristina rocha. Preservação do patrimônio cultural em Cidades. Belo


Horizonte: Autêntica, 2006.

795
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

TARGINO, Itapuan. Patrimônio Histórico da Paraíba 2000- 2002. In: O Centro


Histórico de Pombal - O Velho Arraial de Piranhas. João pessoa: Ideia, 2003. p. 33-60

SITES
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trancos-e.html Acesso em: 04 de outubro de 17
Disponível em: http://omundocomoelee.blogspot.com.br/2012/05/diretor-do-iphaep-em-
laudo-tecnico-vai.html acesso em: 04 de outubro de 17
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Disponível em: http://clemildo-brunet.blogspot.com.br/2012/05/exclusivo-diretor-do-
iphaep-em-laudo.html Acesso em: 04 de outubro de 17

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PATRIMÔNIO E MEMÓRIA NO BICENTENÁRIO DA REVOLUÇÃO DE


1817: O QUE AS COMEMORAÇÕES NÃO CONTAM

PAULO RAPHAEL FELDHUES


UnB
[email protected]

AUGUSTO CÉSAR G. DE LIRA


UFPE
[email protected]

RESUMO

Comemorar é antes de tudo trazer à memória conjuntamente. Nas comemorações do


bicentenário da Revolução de 1817 noções muito abstratas como república, liberdade,
pátria e identidade (de luta) perfazem o universo simbólico em torno da Revolução e
materializam-se em patrimônios construídos com o objetivo de perpetuar uma narrativa
memorialista específica. Tomando as comemorações do bicentenário em Pernambuco,
busca-se identificar (I) que narrativas memorialistas são projetadas; (II) quem são os
agentes construtores e difusores dessa memória; e (III) quais as aproximações e tensões
percebidas na relação História e memória.
Palavras-chave: Patrimônio; Memória; Revolução de 1817; Representações Sociais.

INTRODUÇÃO
Comemorar é antes de tudo trazer à memória conjuntamente, é celebrar
coletivamente um passado. Nas festividades cívicas o potencial comemorativo ganha
amplitude quando o passado a ser relembrado alimenta a própria identidade
sociocultural e política daquele grupo que rememora. As comemorações do bicentenário
da Revolução de 1817 carregam tal potencial. Neste estudo buscam-se identificar os
sentidos presentes nas narrativas memorialistas em torno do bicentenário em
Pernambuco e sua relação com o Poder Público.
Memória é conceito polissêmico e seu uso torna necessário um breve
esclarecimento. A memória abordada aqui está inserida no âmbito grupal e refere-se as
representações sobre o passado. Nesse sentido a memória social destaca-se pelo caráter
intencional com que se reconstrói o passado, enquanto que a memória coletiva remete a
tudo aquilo que fica do passado no vivido dos grupos. Tal entendimento foi apresentado
por Pierre Nora (1993) para indicar o surgimento dos lugares de memória, expressões da
memória social processados pela memória coletiva. Neste sentido é que edifícios,
símbolos nacionais, comemorações e uma gama de construções artificiais adquirem a
qualificação de lugar de memória no momento que são assimilados pela memória

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coletiva, contemplando simultaneamente os aspectos material, simbólico, funcional e de


intencionalidade (vontade de memória, ser criado para perpetuar algo). Não se descarta
que o reavivamento de 1817, através das comemorações do Bicentenário, possa
produzir lugares de memória.
Memória e patrimônio histórico se confundem no desejo de preservar algo
determinado da ameaça do esquecimento. O ato de preservar ou rememorar por
celebrações indica ainda os valores expressos naquilo que se preserva. A
patrimonialização histórica pressupõe valores que norteiam políticas públicas, valores
que atribuem qualificativos a determinados registros; são valores historicamente
produzidos. Não deve passar despercebido que a noção de patrimônio se consolida no
contexto formativo dos estados nacionais, sobretudo no século XIX, em que identidade
e nacionalismo respondem ao fluxo desorganizador do crescimento urbano. No atual
contexto dito pós-moderno, a perspectiva patrimonial ganha novos contornos,
englobando temas como etnia, religião, direitos humanos, gênero e raça numa tentativa
de abranger a diversidade de grupos sociais até então pormenorizados. A
disputa/seletividade de memórias torna o patrimônio um produto político por natureza.
Instituições que dialogam com a preservação e difusão do patrimônio, como
museus e arquivos, são agentes de uma ação política que relaciona memória e
identidade. Mais do que isso, cabe destacar que a memória expressa nestas instituições
não é uma exposição do passado preservado, mas uma interpretação a partir de recortes,
organizações e discursos. Neste sentido é que se pretende fazer uma leitura das
comemorações do bicentenário da Revolução de 1817 em Pernambuco.

A REVOLUÇÃO DE 1817 E SEUS SENTIDOS


Quando eclodiu em 06 de março de 1817 o que se chama hoje de Revolução
Pernambucana, Revolução dos Padres ou simplesmente Revolução de 1817, uma
complexa trama estava formada a partir de diferentes aspectos da realidade provincial,
colonial e ocidental, criando um amplo contexto de possibilidades ao evento. A crise
nos engenhos, produto da forte dependência sobre a exportação do açúcar em meio à
concorrência internacional, somava-se à seca de 1916, expandindo o quadro de penúria
aos pequenos camponeses. O ingresso ou a influência na administração também
apresentava dificuldades, pois a chegada da Coroa em 1808 ampliou o número de
portugueses em cargos público. O presença Real no Rio de Janeiro trazia outro
incômodo, a forte elevação nos tributos (a exemplo da taxa cobrada para financiar a

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iluminação no Rio de Janeiro). No plano das ideias, o seminário de Olinda, fundado em


1800, tornava-se um centro de ilustração a partir dos pressupostos estabelecidos em seu
estatuto, pelo bispo Azeredo Coutinho, integrando formação científica e religiosa à
formação dos jovens (Cf. SIQUEIRA, 2009). Outro aspecto intelectual foi a influência
maçônica e as representações da Independência Americana e da Revolução Francesa em
torno de noções bastante vagas de igualdade, liberdade e fraternidade.
O evento de 1817 agregou então um conjunto de insatisfações que, conforme
organização das ideias, foi representado na figura da monarquia. A pretensão de realizar
a independência e estabelecer um regime republicano desenvolveu-se como uma
oposição à Coroa: a independência abriria novas possibilidades ao redirecionamento dos
interesses políticos e econômicos, afastando os portugueses do centro de influência,
enquanto que com a república seriam eliminados os altos gastos da nobreza pagos pela
tributação pública. Como pano de fundo, a Revolução Francesa ecoava em atitudes. Na
Paris revolucionária, cumprimentos em público passaram a acompanhar o termo
―cidadão, cidadã‖, demarcando um novo tempo em que a igualdade facilmente se
confundia com o direito morrer, tal como o rei, na guilhotina. Em Pernambuco, o
cumprimento por ―patriota‖ pode ser um indicativo da alusão aos franceses, embora a
noção de pátria não deva ser entendida com relação à soberania territorial do Estado ou
a qualquer sentido de nação:
A palavra ―pátria‖ tinha um conteúdo, às vezes, quase abstrato, ou, no
mínimo, significados diferentes, que não se contradizem, mas se somam, indo
do lugar do nascimento e/ou habitação à entidade resultante da vontade
popular, reunindo território, ―povo‖ e organização polìtica. Podia significar o
local de nascimento e/ou moradia, com os afetos e as redes de sociabilidade
nele estabelecidos (...) (VILLATA, 2003: 77)

Da mesma forma, liberdade e igualdade referem-se à situação colonial e rementem à


repulsa pelo que representava a Coroa à época. Na perspectiva revolucionária, o
movimento justificava-se pelo combate à tirania identificada ora no português, ora no
Rio de Janeiro (idem).
Após 75 dias de insurgência, o movimento foi sufocado por tropas fiéis à Coroa,
levando à morte parte significativa de seus líderes. Ao fim do movimento restavam
memórias fragmentadas em objetos, locais, documentos textuais e reminiscências de
alguns personagens. Passada a Revolução, o regime monárquico agora se debatia com o
simbolismo e representações em torno de 1817 que porventura viessem questionar a
legitimidade do regime. A historicidade da memória depõe seu aspecto processual, de
construção ao longo do tempo. O presente, em toda sua conjuntura social, política e

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

cultural, condiciona o olhar sobre o passado, moldando as possibilidades de narrativa


memorialística. Em meados do século XIX, no contexto de consolidação do estado e
busca de sua identidade, coube ao Instituto Histórico Geográfico Brasileiro o esforço
inicial de narrar uma História do Brasil. Assim é que em História Geral do Brasil, de
1852, Varnhagen retoma a Revolução de 1817 tão somente para ressaltar que o
fracassado movimento foi convertido em ―mito heroico de patriotismo‖, quando na
verdade resumiu-se a evento provincial (VARNHAGEN, 1852, p.1116). Contudo, o fim
do regime monárquico em 1889 colocaria em marcha uma nova reorganização da
memória de 1817.

A REVOLUÇÃO DE 1817 RESSIGNIFICADA


Em estudo já clássico, José Murilo de Carvalho (1990) argumenta que a
Proclamação da República esbarrou no desafio de oferecer um significado ao novo
regime capaz de produzir identificação com uma população que não o idealizou.
Símbolos, monumentos e celebrações fazem parte dos esforços que buscaram fomentar
no imaginário popular elementos simbólicos da jovem República. Trata-se de uma
batalha política em torno da memória em que o evento de 1817 se reveste de novo
significado, adquirindo áurea de legitimação e heroísmo.
O centenário da Revolução trouxe uma oportunidade singular de mobilização
cívica em consolidação da narrativa em que a Revolução aparece como precursora da
República. Na memória reconstruída, os revolucionários tornaram-se defensores de
valores republicanos e morreram combatendo a tirania monárquica. Seus mortos são
mártires, seus líderes são heróis e seus combatentes são verdadeiros guerreiros que
semearam a identidade de um povo.
Por ocasião das comemorações do centenário em Pernambuco, o Instituto
Arqueológico, Histórico e Geográfico de Pernambuco (IAHGP) efetuou um trabalho de
ressignificação da memória daquele evento, orientada como legitimação da centralidade
do movimento pernambucano na construção dos valores republicanos. Francisco Muniz
Tavarez, fundador do Instituto e autor da obra História da Revolução de 1817, tornou-se
então uma espécie de referência oficial, o ‗cronista de dezessete‘. Sob esse contexto
rememorativo, o governador Manoel Borba (Partido Republicano Conservador) instituiu
pelo Decreto estadual n.459/1917 uma nova bandeira ao estado (a atual), retomando
quase por completo o formato daquela cem anos antes.

800
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Documentos, objetos e lugares são vestígios ainda preservado da Revolução, e se


revestem com valores e significados pela memória celebrativa do centenário. História e
memória são formas de aproximar-se do passado, cada uma de seu modo. A memória é
campo da paixão, do afeto, do sentimento; não quer preservar, mas manipular o passado
numa reconstrução seletiva de adaptação ao presente; a memória sacraliza recordações.
A História é saber científico, operação intelectual crítica que dessacraliza interpretações,
é conhecimento intencionalmente produzido sobre o passado (LÖWENTHAL, 1998). O
patrimônio histórico, carregado de factualidade e envolto pelo simbólico, talvez seja o
que melhor representa esse tensão entre História e memória.
Monumentos, praças, nomes de ruas e avenidas, obras de arte e símbolos se
multiplicaram em torno de memória de 1817. Em Natal, as comemorações do centenário
transformaram o local escolhido no século XVII para fundação da cidade em praça
André de Albuquerque, homenagem ao líder da revolucionário no Rio Grande do Norte.
Ao centro da praça, um obelisco de granito com 5,10 metros de altura traz em seu
pedestal placas de bronze saudando a memória do Frei Miguelinho, religioso de
destaque no movimento de 1817 (Cf. PAIVA, 2011). As comemorações do centenário
ensejaram a encomenda da tela O Julgamento de Frei Miguelinho332, realizada pelo
governo do Rio Grande do Norte ao pintor Antônio Parreiras. A emblemática obra
compõe atualmente parte do patrimônio cultural e histórico potiguar. De modo
semelhante, a passagem de Parreiras pelo Nordeste rendeu-lhe outro contrato, desta vez
com o governo da Paraíba. A memória de 1817, representada na obra José Peregrino,
faz-se por uma narrativa imagética em que a participação na Revolução deste
personagem paraibano mostra-se como uma heroica luta republicana. A tela foi
concluída em 1918 e passou a figurar no Palácio da Rendenção, cuja face frontal se
depara com a praça 1817, centro de João Pessoa. Em Pernambuco, Parreiras foi
requisitado pelo governo uma década depois – ocasião dos 110 anos do movimento
separatista –, quando apresentou a obra Benção das Bandeiras da Revolução de 1817,
tela que atualmente decora o salão principal do Arquivo Público Estadual.
A patrimonialização de uma memória histórica, através de obras de arte, mostra-se
fenômeno recorrente à ação do Poder Público em grandes datas comemorativas, tal
como aqui analisado. Os ganhos políticos não devem ser ignorados, pois os valores
demarcados pela narrativa memorialística pretendem ser adesivados também ao agente

332
A obra, com 3x2 metros de dimensão, foi concluída em 1918 e compõe hoje o acervo da Pinacoteca do
Estado do Rio Grande do Norte.

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

difusor da representação daquele passado. Ou seja, os valores da Revolução são dignos


de serem rememorados e eu (a gestão pública) o reverencio e comemoro porque
compartilho de tais valores. O outro lado do ritual cívico comemorativo é a manipulação
da percepção da autoimagem coletiva, fomentando um sentimento de orgulho por
pertencimento a um passado comum, representado como alicerce da identidade política
e cultural de um grupo ou sociedade. Nessa perspectiva é que as representações da
memória de 1817 alimentam o processo forjador de uma identidade pernambucana, em
constante movimento. A relação entre memória e História é fluida, pois enquanto a
História busca legitimação em fatos comprovados e análise metódica, a memória é
campo de ―elaboração‖ conveniente do passado pelo presente.
A simbologia no último século em torno Revolução é ampla em Pernambuco e,
um breve passeio pela capital – talvez para o visitante conhecer o vitral ―Leão do
Norte‖, no Palácio do Campo das Princesas – pode levá-lo por ruas e avenidas com os
nomes Padre Roma, Padre Miguelinho, Gervásio Pires, Domingos José Martins, Vigário
Tenório, Frei Caneca ou Cruz Cabugá, passando ainda pela ponte José Barros Lima.
E como o outro lado da memória, o esquecimento é também um trabalho de
política, de seleção e composição de narrativas: torna-se então significativo o silêncio
no Recife em torno da figura do Imperador D.Pedro I.
Mais recentemente, os 190 anos da Revolução foi oportunidade para promulgação
da Lei Estadual n.13.386/07 que, através de proposta parlamentar, o então governador
Eduardo Campos (Partido Socialista Brasileiro) instituiu o 06 de março (data da eclosão
da Revolução) como Data Magna no estado, ―marco dos ideais de liberdade do povo
pernambucano‖ (PERNAMBUCO, 2007). Ainda pela legislação, criou-se a Medalha
Frei Caneca, concedida anualmente pela assembleia estadual à personalidade de mérito
democrático e popular. Nas escolas, o calendário letivo passou a contar com
comemorações naquela data, que inclui atividades pedagógicas a respeito. A
performance memorialística do Poder Público tornou-se ritual periódico exigindo
hasteamento solene da bandeira de Pernambuco, colocação de flores no monumento aos
revolucionários, na praça da República, e desfile cívico.
Através da rememoração de 1817, História e memória aproximam-se e
contribuem para um trabalho de luto coletivo, encontram-se na consciência de dívida do
presente com o que já não está. Os vestígios da Revolução são concretos, seus
documentos preservados atestam personagens reais que a História legitima; a memória,
por seu lado, sacraliza as recordações com a liturgia comemorativa. Ainda que de modo

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ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

distinto, o rito de recordação pela História ou pela memória re-presentifica mortos (Cf.
RICOEUR, 2007; CATROGA, 2011; CERTEAU, 1982).

COMEMORAÇÕES DO BICENTENÁRIO DA REVOLUÇÃO DE 1817


Vislumbrando as comemorações do bicentenário, o governo de Pernambuco
instituiu em 2015 a Comissão para organização e comemoração do Bicentenário da
Revolução Pernambucana de 1817333. Pelo Decreto n.41.531 o governador socialista
Paulo Câmara justificou o ato considerando
o profundo impacto político de que se revestiu o movimento revolucionário
(...) o que levou à dura retaliação imposta pelo Governo Central, com a
severa punição de seus líderes e partícipes, além da própria Capitania de
Pernambuco, que teve de si subtraída a Comarca das Alagoas
(PERNAMBUCO, 2015).

Aqui, o julgamento moral implícito sinaliza os possíveis caminhos a serem percorridos


pelas narrativas da comemoração do bicentenário. A chamada ―dura retaliação‖,
levando à redução do território pernambucano, contribui para o entendimento do
silenciamento em torno do D.Pedro I, conforme já indicado. Tal decreto é
particularmente significativo pelos valores que faz representar na memória do evento.
Assim, entendeu-se que:
(...) Revolução Pernambucana de 1817 representou um marco na história
constitucional do Brasil, quando pela primeira vez em terras brasileiras se
instituiu uma República;
(...) tal movimento constitucional e republicano, que antecipou em quase uma
década a primeira Constituição do Brasil, posicionou a então Capitania de
Pernambuco na vanguarda do liberalismo jurídico-político e enraizou na alma
do povo o sentimento de patriotismo constitucional pernambucano;
(...) o ideal de liberdade e o sentimento de patriotismo que guiaram os
revolucionários pernambucanos, assim como os princípios da liberdade de
expressão e tolerância religiosa, por eles defendidos, perduram e fazem-se
presentes e necessários no coração dos cidadãos brasileiros e de seus líderes
políticos (idem).

Cabe inicialmente observar que desde de 2007 os socialistas mantém-se no


controle da administração do estado334, reservando para si parte do exercício de seleção
da memória oficial. É nesse sentido que o governo estadual acaba por se envolver numa
curiosa situação: conciliar numa narrativa memorialística os interesses de um partido

333
A Comissão foi formada por representantes da Secretaria da Casa Civil (coordenação), Secretaria de
Educação, Secretaria de Cultura, Procuradoria Geral do Estado, Assembleia Legislativa, Prefeitura do
Recife, Prefeitura de Olinda, Ministério da Cultura, Academia Pernambucana de Letras (APL), Instituto
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, IAHGP e Comitê Pernambuco 2017.
334
Salvo o período de abril de 2014 ao final daquele ano, quando o então governador eleito Eduardo
Campos renunciou para concorrer à Presidência, assumindo o vice- governador João Lyra (Partido
Democrático Trabalhista).

803
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

socialista e um evento revolucionário dito liberal (ainda que não se tratasse do


liberalismo econômico). A solução foi apresentada no trecho citado, demarcando com
clareza que o caráter republicano do movimento se inscreve no ―liberalismo jurìdico-
polìtico‖, o que enraizou no pernambucano um sentimento de ―patriotismo
constitucional‖. Ou seja, trata-se de um liberalismo em que a liberdade seja tutelada
pela lei, cabendo ao Judiciário um papel de ―neutralidade e reserva institucional‖ (Cf.
VIEIRA, 1993), distintamente do que se entendia no despotismo do Antigo Regime.
Nessa interpretação das intenções revolucionárias, o patriotismo constitucional
(controverso como seja tal entendimento)335 seria fruto desse desejo legalista do
pernambucano buscando uma garantia contra o autoritarismo monárquico.
Pode-se observar os sentidos da memória a ser afirmada: 1) a Revolução foi um
marco na história constitucional do Brasil, antecipando a primeira Constituição; 2) foi a
primeira experiência republicana entre brasileiros; 3) Pernambuco esteve na vanguarda
do liberalismo jurídico-político; 4) o sentimento patriótico do pernambucano se dá em
torno de um apego legalista; e 5) o ideal de liberdade, tolerância religiosa e o sentimento
patriótico são heranças que se apresentam ainda hoje. Outras referências são pontuadas
na fala do governador durante a assinatura do decreto que instituiu a Comissão do
Bicentenário: as comemorações seriam oportunas para ―aprofundar reflexões sobre o
valor do idealismo, dos direitos humanos, das conquistas democráticas e da afirmação
da soberania nacional‖ (PERNAMBUCO, 2015). O governador destacou ainda a
atualidade do evento de 1817 diante do cenário percebido naquele momento: ―São
valores que precisam ser permanentemente defendidos. Hoje, com intensidade
redobrada diante da crise econômica, social, política e ética em que foi mergulhado o
Brasil‖ (idem).
Vejamos que há uma tensa relação entre História e memória nas comemorações
do Bicentenário, pois não pretende o Poder Público (nem tampouco isso se espera)
limitar-se a aspectos metodológicos da História, mas se valer de sua legitimação para,
além dela, atualizar o passado através de novas representações da memória de 1817.

335
Em Pernambuco, um entendimento de patriotismo constitucional foi proposto por Denis Bernardes, em
análise ao período 1820-1822. Diante da Revolta do Porto (1820) e da instalação das Cortes de Lisboa,
D.João VI viu-se forçado a deixar o Brasil, condição que tornou regente o príncipe D.Pedro. Em Portugal,
o rei passou a governar sob as limitações constitucionais e nesse sentido é que também as provinciais
brasileiras deveriam se submeter ao constitucionalismo. O patriotismo constitucional se insere nesse
contexto, em que a expressão patriótica se faz nos contornos constitucionais, legitimando a autoridade do
monarca, mas buscando garantias contra o despotismo. Pensar um patriotismo constitucional em 1817,
antes mesmo das Bases da Constituição da Monarquia Portuguesa, exige dados concretos de pesquisas
que até então não existem (Cf, BERNARDES, 2006).

804
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Assim, a percepção de uma autoimagem ancorada em passado heroico contribui para a


construção da identidade pernambucana presente, representada na ideia de patriotismo.
Defesa dos direitos humanos, da democracia e da República, em seu aspecto legalista,
são ideais relacionados ao legado revolucionário, o qual o pernambucano preservaria em
sua identidade. Apartada da História, tal representação da memória torna-se um afago
ao pernambucano enquanto coletividade, ao passo que cria verdadeira cegueira frente
aos vícios culturais. A ênfase no republicanismo, na democracia, no legalismo silenciam
práticas clientelistas e patrimoniais fortemente enraizadas na cultura política brasileira
(Cf. LEAL, 1986; FAORO, 1975; LEITE, 2003). Estaria Pernambuco em sua formação
história e com seus atuais 185 municípios alheio a esta cultura?
Com a aproximação da data magna do Bicentenário, referências à Revolução se
multiplicaram, mostrando uma mobilização orquestrada de setores do Poder Público e
sociedade civil. Entre janeiro e fevereiro de 2017, a galeria Arte Plural, localizada no
bairro do Recife Antigo, abriu a exposição 17 por 12, trazendo doze obras de diferentes
artistas336 sobre a Revolução de 1817. Com curadoria de Raul Córdula, as obras foram
encomendadas pela Companhia Editorial de Pernambuco (órgão que publica o Diário
Oficial do estado) com o objetivo de realizar um calendário comemorativo ao
Bicentenário da Revolução. Os temas de cada obra foram propostos visando construir
uma narrativa do conjunto, capaz de fazer sentir simbolicamente ―o espìrito libertário
[que] permanece até hoje e cada pernambucano‖, conforme indicou o texto de
apresentação da exposição. O universo simbólico em torno da narrativa é bastante
significativo quando se observa que as doze composições se ajustam tal como as
estações da via-crúcis. A representação do passado já não se esgota em rememoração
cívica, mas o herói transformado em mártir reclama liturgia, sacralização. A encomenda
do órgão do estado, a partir de temáticas pré-definidas, faz representar a Revolução de
forma sacralizada; os valores que são mobilizados em torno de 1817 se condensam
numa memória que pretendem dar suporte à identidade pernambucana. Nas palavras do
curador, ―a Revolução de 17 é um dos episódios que alimentaram o que viria a ser a
pernambucanidade‖ (In: ALBERTIM, 2017).
A representação de uma memória heroica e contestadora sobre 1817 atrelada à
identidade pernambucana faz tomarmos como indício que desde 2015, quando teve
ampla divulgação os preparativos para as comemorações do Bicentenário, uma

336
São eles: Jeims Duarte, Helder Santos, Daaniel Araújo, Bruno Vilela, Beto Viana, Plínio Palhano,
Jéssica Martins, Gio Simões, Roberto Ploeg, George Barbosa, Renato Valle e Rinaldo Silva.

805
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

efervescência de singularidade identitária ganhou amparo na memória de 1817. Sob esse


contexto foi que se formou o Grupo de Estudo e Avaliação Pernambuco Independente
(GEAPI) que, inspirado na Revolução de 1817, reafirma diferenças culturais e
econômicas que justificariam a criação de uma república pernambucana parlamentarista
e independente (FERNANDES, 2016). A ancoragem da representação na memória de
1817 fica clara quando a própria bandeira a ser instaurada seria a mesma daquela há 200
anos, modificando apenas o significado das três estrelas que passariam a simbolizar
coragem, liberdade e amor à pátria (ARAÚJO, 2017). Com endereço eletrônico próprio,
o grupo divulga sua proposta e se autoproclama continuador dos ideais dos mártires
revolucionário: ―Reconhecemos a República de 1817 como base ideológica‖ (GEAPI,
2015). Nas redes sociais, o GEAPI utiliza o Facebook como ferramenta de
comunicação, onde mantém 5.152 seguidores. Aqui identificamos uma construção
memorialística que, embora às margens do projeto governamental, filia-se a parte das
representações elaboradas, como a ênfase da noção de pernambucanidade.
Na semana que precedeu ao início das comemorações, o presidente da Comissão
Organizadora, o secretário-executivo da Casa Civil do estado, Marcelo Canuto,
justificou toda aquela mobilização afirmando que ―a Revolução de 1817 tem a ver com
o pioneirismo do pernambucano em defender a liberdade e a democracia. Portanto, o
Governo do Estado se sentiu na obrigação de realizar esses eventos para divulgar os
valores de 1817‖ (PERNAMBUCO, 2017-a). O Diário Oficial do estado divulgou a
programação das comemorações do Bicentenários, que incluíram desfiles, entrega de
medalhas, construção de monumentos, publicação de livros, confecção de selo
comemorativo pelos Correios, exposição cultural e educacional (envolvendo o Museu
da Cidade do Recife), pintura da fachada do Arquivo Público Estadual, valorização da
Revolução de 1817 no conteúdo programático das escolas públicas e fixação de placas
de azulejo para identificação de monumentos ou locais que remetem a Revolução. A
APL e o IAHGP se comprometeram a realizar conjuntamente sessão solene no dia da
abertura das comemorações. O IAHGP organizou ainda um concursos de monografias e
redações sobre 1817 e um Seminário Nacional sobre a época (idem). O governo também
iniciou tratativas para encomenda do Mirante da República, um monumento a ser
construído às margens do Capibaribe, nas mediações da praça da República e que deve
ser assinado pela artista franco-brasileira Marianne Peretti, a mesma que compôs os
vitrais da Catedral de Brasília (CELEBRAÇÃO, 2017).

806
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

As comemorações do Bicentenário foram oficialmente abertas às 8h do dia 06 de


março de 2017. Em frente ao Palácio do governo, o hasteamento solene da bandeira de
Pernambuco, seguido pelo desfile cívico-militar da Polícia Militar, do Corpo de
Bombeiros e de grupo da maçonaria foi acompanhado por autoridades da política
nacional, representantes de entidades civis, militares e cônsules de diversos países. Em
sequência, já na praça da República, o governador depositou flores no monumento aos
heróis da Revolução, seguido de um minuto de silêncio em homenagem aos mártires.
Em retorno ao Palácio, deu-se início à entrega de medalhas a ex-governadores,
entidades e personalidades337. Conforme noticiou a imprensa oficial do estado, ―os
valores fundamentais da liberdade e da justiça social e o espírito autonomista marcaram
a abertura‖, ressaltando que ―o movimento histórico e sua simbologia foram exaltados
como destacada e inspiradora passagem da história de Pernambuco e do Brasil‖
(PERNAMBUCO, 2017). Tratou-se aquela da primeira de uma série de atividades
visando celebrar o ―ideal iluminista e a contribuição dos pernambucanos e nordestinos
ao processo de separação da Coroa Portuguesa‖. Segundo o governador:
São símbolos e cenários que nos estimulam a estar aqui, em data tão
marcante. E certamente nos fazem refletir sobre os legados da Revolução
Republicana de 1817 que permanecem vivos até hoje. Afirmam-se no espírito
autônomo e insubordinado dos pernambucanos, na luta de gerações contra o
arbítrio e na defesa do Brasil como nação independente (Idem).

No final da tarde daquela segunda-feira, enquanto no auditório da APL


prolongava-se a sessão solene com a presença do professor Valmireh Chacon,
discutindo o tema a Revolução de 1817 e a cultura brasileira, no marco zero da cidade
do Recife a antiga bandeira revolucionária com três estrela voltava a ser estendida, desta
vez pelo grupo separatista GEAPI, em meio a uma tímida manifestação em divulgação
de sua proposta.
Menos de uma semana depois, em 12 de março, o aniversário da capital
pernambucana foi a oportunidade para o Museu do Recife inaugurar a exposição 1817 –
Revolução Republicana, em parceria com o IAHGP. A memória sobre o evento contou
com objetos cedidos pelo Instituto e teve sua narrativa dividida em cinco momentos:
iniciando por uma projeção dos nomes dos presos no movimento, em meio a textos e
imagens, seguindo por desenhos de Debret e Tollenare, numa ambientação ao cotidiano

337
As entidades agraciadas foram: Assembleia Legislativa, a Câmara do Recife, a APL e o IAHGP. As
personalidades agraciadas foram: o Grão Mestre da grande loja de Pernambuco, o Grão estre do Grande
Oriente Independente de Pernambuco, o coordenador da Comissão da Memória e Verdade Dom Helder
Câmara e o presidente do Tribunal de Justiça de Pernambuco.

807
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

de um vilarejo novecentista. Num terceiro momento, objetos utilizados na Revolução


entram em cena, seguidos por depoimentos de especialistas. Por fim, a exposição se
encerra numa visita ao simbolismo dos valores presentes na bandeira pernambucana em
sua historicidade. Destaca-se que enquanto museu municipal de caráter histórico, o que
está em questão é a preservação e divulgação de um legado histórico-cultural
identificado com a própria cidade. As peças cedidas pelo IAHGP são fragmentos
materiais de uma memória de 1817, e que adquirem sentido pela narração sob uma
perspectiva cuidadosamente articulada através dos cinco momentos em que o visitante é
conduzido (embora não se deva pensá-lo como sujeito passivo). Os valores a serem
representados na memória revolucionária, reiteradamente repetidos nas falas de
membros do governo estadual, estão inseridos na exposição. Não se pode pensar na
memória representada na exposição 1817 – Revolução Republicana sem relacioná-la a
uma política de memória, levada a efeito não apenas pelo Museu da Cidade do Recife,
mas por diversas instituições que se organizaram em torno da Comissão de
Comemorações do Bicentenário de 1817.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Até aqui se buscou mostrar a historicidade da memória em torno da Revolução de
1817. Enquanto no período monárquico as representações sobre o evento o fizeram
diminuto no conjunto da história brasileira, a partir da Proclamação da República um
novo conjunto de narrativas valorativas passam a reconstruir a memória revolucionária.
O olhar mais detido sobre as comemorações do Bicentenário em Pernambuco permitiu
identificar nas narrativas memorialísticas referências gerais à ideia de republicanismo,
liberdade, democracia e patriotismo, noções que se projetam para construção da
autoimagem coletiva e delineiam o sentido da chamada pernambucanidade, ligando
passado e presente. Quanto à identificação dos agentes difusores dessa memória
(majoritariamente atrelados ao Poder Público), sugeriu-se possível deslizamento de
sentidos em que os valores ressaltados na memória de 1817 são tomados como próprios
daquele que evoca tal memória, lançando luz sobre a dimensão política das
comemorações.
Por fim, a forma pela qual é dada a aproximação do presente com o passado
revolucionário mostrou a forte tensão entre História e memória, representada em parte
pelo conteúdo patrimonial. A memória, ainda que envolta em paixões ou interesses
inconfessos, é uma forma de conhecer o passado e significar a sociedade. Por sua

808
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flexibilidade, a memória pode vir a preencher o vazio onde a História mostrou rigidez
no alinhamento aos interesses presente. É saudável que não caiba ao historiador o
monopólio das representações sobre o passado (tentativas de controle são pensáveis
apenas dentro de regimes totalitários). No entanto, a perspectiva da História é
fundamental para que a sociedade (pernambucana, em específico) se perceba
criticamente, permitindo reconstruir-se dia-a-dia pela superação de seus vícios em
recusa a afagos ufanistas.

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POR UM MINUTO DE SILÊNCIO: A ATUAÇÃO DE JOSÉ LINS DO REGO


(1901-1957) EM MACEIÓ

MARIA THAIZE DOS RAMOS LIRA


UFRPE
[email protected]

RESUMO
Neste trabalho, buscamos discutir alguns aspectos acerca da formação intelectual de
José Lins do Rego. Abordaremos elementos biográficos e a sua atuação como
intelectual nordestino, em Maceió, pois, o seu lugar social está relacionado à produção
de uma ―escrita de si‖, considerada pelos seus estudiosos como uma escrita que faz
referências às suas memórias do tempo em que era um ―menino de engenho‖. Um fato
que chama atenção é o envolvimento de JLR nas ―rodas literárias‖, aspecto que é fadado
ao esquecimento por uma gama de estudiosos. Para tanto, por base os estudos de
Fernandes Freire (2014), Souza Barros (1972), e Micelli (1977). Como aporte teórico,
dialogaremos com Gomes (2002), Bordieu (2006) e Certeau (2000).
Palavras-chave: ―Escrita de si‖; roda literárias; intelectual nordestino.

INTRODUÇÃO

Nossa principal inquietação neste trabalho é perceber como se deu a formação


de um intelectual nordestino a partir do seu lugar social 338, mais efetivamente, um
sujeito que observava seus alicerces serem substituídos pelo advento da modernidade.
Um romancista que abre espaço para o menino que habitou o interior dos engenhos
nordestinos e, a partir desse fato, atribuiu a si a tarefa de, juntamente com outros
intelectuais, constituir tradições para a região.
Buscamos aqui compreender o período da vida de José Lins do Rego que
circunda até a década de 1940. Para tanto, como tratamos com aspectos biográficos, não
podemos esquecer que o seu lugar social está relacionado à produção de uma ―escrita de
si‖, conceito trabalhado por Gomes (2002), ou seja, muitos dos escritos de José Lins do

338
Pensamos o lugar social a partir das reflexões de Michel de Certeau (2000), quando aponta que o
lugar social é construído historicamente e funciona ao mesmo tempo como uma possibilidade e como
uma limitação, posto que é através dele que uma narrativa é pensada, construída e torna-se conhecida.
Desta maneira, “toda pesquisa historiográfica se articula com um lugar social de produção
socioeconômico, político e cultural” (CERTEAU, 2000, p. 66). Assim, o lugar social de José Lins do Rego é
o de neto de senhor de engenho, herdeiro da sociedade patriarcal, que corrobora em seus escritos para
a ideia de decadência.

812
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

Rego se referem a suas rememorações da infância e juventude nos engenhos


nordestinos.
A escrita de José Lins do Rego é marcada pelo tom memorialista e
autobiográfico – seguindo as colocações de Gomes (2004), pela escrita de si ou escrita
auto-referencial, que faz parte de um conjunto de modalidades do que se convencionou
chamar de produção de si no mundo ocidental. A prática da escrita de si pode ser
compreendida como parte de um variado conjunto de ações, que vão desde as
autobiografias até os diários íntimos, passando pela constituição de uma memória de si.
A escrita de si é comumente associada à ideia de ―teatro da memória‖, no sentido de que
há uma evidência para o indivíduo como personagem de si mesmo e assim da história
do grupo a que pertence.
Por meio da escrita de si, é possível dar novos sentidos às ações, manifestar
aquilo que é importante e esconder o que é ―necessário‖. Escrever a própria vida é poder
se libertar, se mover e reviver. É poder contar a própria história sob uma ótica
particular, é revisitar espaços perdidos, espaços cheios de sentimento, que podem ser
mapeados pela memória construída a partir do tempo presente.
O estudo das práticas de escrita de si é possível a partir da relação estabelecida
entre o indivíduo moderno e seus documentos, que toma como ponto central a ideia de
que:

Através desses tipos de práticas culturais, o indivíduo moderno está


constituindo uma identidade para si através de seus documentos, cujo
sentido passa a ser algo alargado. Embora o ato de escrever sobre a
própria vida e a vida de outros, bem como de escrever cartas, seja
praticado desde há muito, seu significado ganha contornos específicos
com a constituição do individualismo moderno. A chave, portanto,
para o entendimento dessas práticas culturais é a emergência histórica
desse indivíduo nas sociedades ocidentais (GOMES, 2004, p. 11).

O aparecimento do indivíduo nas sociedades ocidentais deu margem também à


ideia de ―ilusão biográfica‖, expressão de Pierre Bordieu (2006), que coloca este
conceito como vindo do senso comum, adentrando o meio científico, e, em suas
palavras, representando ―inseparavelmente o conjunto dos acontecimentos de uma
existência individual concebida como uma história e o relato dessa história‖
(BOURDIEU, 2006, p.183). Esse entendimento tem por base a negação da ideia de que
a história de vida se daria no sentido linear, na qual o indivíduo nasce, cresce, se

813
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

desenvolve e morre, de maneira que tudo aquilo que aconteceu durante o período de sua
existência fluísse numa rede de eventos organizados em volta do próprio fim da história.
Esta forma teleológica de compreender a biografia associada a uma estrutura de
relato e a um romance, no qual as ações estão colocadas de forma cronológica, em que o
enredo se dirige para um fim, um desfecho, é definido por Bordieu como ―ilusão
biográfica‖. Seria uma tentativa de se entender e narrar a vida de uma pessoa em um
dado período, levando em conta a linearidade temporal da vida entre o nascer e o morrer
– como se a vida fosse um desdobramento cronológico contínuo, explicado por uma
existência cujo sentido estaria no nome próprio adquirido.
Segundo Miceli (2001), as memórias constituem um gênero de investimentos
praticados por diversas categorias de escritores. Dentre os escritores consagrados, em
sua maioria, romancistas ou poetas, ―a elaboração de memórias constitui a oportunidade
de reafirmar o domìnio completo do ofìcio de escritor‖ (MICELI, 2001, p. 85). Nos
casos de Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Augusto Meyer, Gilberto Freyre etc, a
infância ou os primeiros anos da mocidade são os períodos que se dispõem a
rememorar.

Decerto porque a impossibilidade de suprir as lacunas desses períodos


favorece o tratamento eminentemente poético dos episódios e das
figuras que pontuam a trama. E dado essa modalidade narrativa os
dispensa de restituir as determinações prosaicas do ambiente familiar
de quando eram crianças, esses escritores sentem-se à vontade ao
reivindicar para suas memórias uma apreciação fundada apenas em
critérios estéticos. Se, por um lado, os procedimentos de eufemização
a que se sujeitam sua história de vida dificultam o rastreamento das
mediações práticas que se colocam na raiz de sua habilitação para o
trabalho intelectual, por outro lado, tendem a privilegiar certos
eventos que prenunciam a gênese social de uma ―sensibilidade‖ de
escritor (MICELI, 2001, p. 85).

Consideramos que foi a partir desse lugar de memória que ele se construiu
enquanto um intelectual nordestino. Entendemos o intelectual a partir das proposições
de Albuquerque Júnior (2005), quando nos informa que a palavra intelectual surgiu no
final do século XIX em substituição ao termo erudito. Segundo ele:

O substantivo ―intelectual‖ surge para nomear, portanto, o que seria


uma nova ―classe‖ de pensadores e escritores, quase sempre em
oposição à ordem sócio-política estabelecida – ou ao menos à margem
dela – tendo, pois, o sentido de alguém descontente, que mantém uma
atitude crítica e independente frente ao governo e à sociedade de seu
país (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2005 p. 4).

814
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

As colocações de Sérgio Miceli (2001) podem ser aplicadas a José Lins do


Rego, pois, segundo ele:

[...] as profissões intelectuais constituem um terreno de refúgio


reservado aos herdeiros das famílias pertencentes à fração intelectual
e, em particular, aos filhos das famílias em declínio. Estes últimos,
tendo podido se livrar das ameaças de rebaixamento social que
rondavam os seus, tiveram a oportunidade de se desgarrar de seu
ambiente de origem e, ao mesmo tempo, de objetivar com seus
escritos essa experiência peculiar de distanciamento em relação à sua
classe. Em suma, não se podem dissociar as disposições favoráveis ao
trabalho intelectual das experiências sociais que moldaram tais
disposições (MICELI, 2001, p. 82).

“LIGEIROS TRAÇOS” DE UM MENINO DE ENGENHO

José Lins do Rego, nasceu em 03 de junho de 1901, na várzea paraibana, num


engenho familiar339, município de Pilar, estado da Paraíba. Filho de João do Rego
Cavalcanti e Amélia Rego Cavalcanti, foi criado por seu avô materno, o coronel José
Lins Cavalcante de Albuquerque, proprietário do referido engenho, e por uma tia, a ―tia
Maria‖. Concluiu os estudos secundários na cidade do Recife, na qual, em 1919,
ingressou na Faculdade de Direito do Recife340, dando assim, início a sua atuação como
cronista, atividade que marcou o início de sua carreira e representa boa parte de sua
produção, particularmente o período que compreende a década de 1920.
O envolvimento de José Lins do Rego com o tradicionalismo aconteceu quando
ele ainda estava em terras paraibanas, por volta de 1924. Após isso, ele seguiu para
Manhaçu, cidade do interior de Minas Gerais, na qual passou a exercer a função de
promotor público entre os anos de 1925-1926. Esse emprego lhe foi conseguido através
de seu sogro, o senador Antônio Massa. Contudo, a vida em terras mineiras não lhe
agradava muito. Ter que lidar com o ofício jurídico e o cotidiano de uma cidade do

339
O local exato onde José Lins do Rego nasceu é ainda objeto de discussão. Uns apontam o engenho
Corredor e outros apontam o engenho Itapúa. O fato é que ambos se localizavam na várzea paraibana.
Ver: FIGUEIREDO JÚNIOR, Nestor Pinto. Onde nasceu José Lins do Rego, afinal? João Pessoa: Ideia,
2000.
340
Moema Selma D´Andrea aponta que a vida cultural do Recife possuía regras familiarmente localista
cujo status era conferido por meio da obrigatória passagem pela Faculdade de Direito,
“tradicionalmente conhecida como centro difusor dos vários estudos humanísticos, franqueava a rota
batida e segura dos filhos d´algo do Nordeste açucareiro. A tradição que começava na ‘aristocracia de
berço’ continuava na ‘aristocracia togada’”. D´ANDREA, Moema. A Tradição Re(des)coberta. Campinas
– SP: Ed. da Unicamp, 1992. p.24.

815
ANAIS DA IX SEMANA NACIONAL DE HISTÓRIA CFP/UFCG

interior lhe estimularam o desejo de retornar para o Nordeste, seja para Pernambuco,
seja para a Paraíba.
Em uma carta endereçada ao amigo Gilberto Freyre, José Lins do Rego anunciou
sua ida para Maceió. Lá, passou a ocupar o cargo de fiscal de banco, que lhe foi
conseguido através da atuação do pai de sua esposa, um homem que já tinha ajudado
José Lins várias vezes, o que nos leva a considerar que Antônio Massa era um homem
de bastante influência.
―Em 14 de dezembro de 1926, a bordo do vapor Pará, chegava a Maceió um
homem de terno branco, bem vestido, com óculos bengala e costeletas que logo
chamaram atenção de muitos‖ (SANTANA, 1980, p. 39). O homem em questão era
José Lins do Rego, que chegava à capital de Alagoas como um desconhecido, mas que
iria se tornar um escritor reconhecido nacionalmente a partir de escritos em terras
maceioenses.
O historiador Fernandes Freire (2014) chama a atenção para o fato de o período
em que José Lins do Rego passou em Maceió passar despercebido pelos estudiosos de
sua produção literária:
Na verdade, o que podemos observar é um certo silenciamento
discursivo em torno daquela temporada. Gilberto Freyre, nos seus
textos sobre José Lins, quase não aborda a época em que seu amigo
esteve em Maceió. Para o ensaísta pernambucano, Maceió não teria
sido muito importante, não passaria de um mero capítulo na vida do
paraibano, pois teria sido o Recife, grande metrópole regional, que
teria contribuído para a obra literária de José Lins (FERNANDES
FREIRE, 2014, p. 118).

O tempo que passou em Recife e a sua importância para a formação de José Lins
do Rego pode ter contribuído para que seus estudiosos menosprezassem a sua estadia
por outras cidades, principalmente, Maceió. Para demonstrar essa postura, temos os
estudos de José Aderaldo Castello (1961), Pávula Maria Sales do Nascimento (2009) e
Mariana Chaguri (2009), os quais destinaram apenas leves parágrafos aos anos
maceioenses de José Lins. Esse fato indica o silêncio de que esse período padeceu, com
Gilberto Freyre reforçando a cidade do Recife como a principal na vida e na obra de
José Lins. Entretanto, para nós, os anos em que José Lins viveu na capital alagoana
foram importantes para a sua produção literária.
Em 1926, José Lins se mudou para Maceió e passou a exercer a função de fiscal
de banco. Não se tratava de um simples adepto do tradicionalismo freyreano que
chegava. Nos anos de 1924-1926, tinha fundido seu tradicionalismo com o

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regionalismo, assim como aconteceu com o movimento Regionalista de 1924, oriundo


do Recife. Tornou-se o correspondente alagoano de ―A Provìncia‖, dirigida por Freyre.
Naqueles anos, José Lins do Rego entrou em contato com as propostas
regionalistas de seu amigo pernambucano, a partir do ―Livro do Nordeste‖ e dos artigos
do ―Diario de Pernambuco‖, que difundiam informações e ideias acerca do movimento.
Apesar de ter sido cotado para contribuir com a obra, José Lins não apareceu entre os
autores do livro comemorativo do centenário do jornal.
Segundo Tadeu Rocha, a influência de José Lins ―junto ao povo alagoano foi o
tipo do apostolado moderno: apostolado do meio, em que o intelectual chegado de fora
atuou entre intelectuais da terra, passando a estes a incumbência de levar a nova
mensagem regionalista‖ (ROCHA, 1964, p. 26).
Nos anos 1920-1930, Alagoas passou por uma considerável efervescência crítica
na cultura local, resultado da participação ativa de críticos e da intensa atuação de
escritores. Viviam em Alagoas Graciliano Ramos, Jorge de Lima e José Lins do Rego,
que liderava uma espécie de liga intelectual sob forte inspiração nas ideias regionalistas
desenvolvidas em Pernambuco por Gilberto Freyre. Não era de se estranhar que as
ideias de vanguarda – via modernismo – fossem interpretadas como uma afronta a tudo
que representava o Nordeste.
O cenário social e econômico alagoano cooperava ainda mais para essa aversão,
pois Alagoas e sua capital ainda eram, naquele período, de intensa base rural. Ao
mesmo tempo, como a fortalecer a dualidade dos aspectos identitários, o menor sinal de
urbanização presente na cidade era, de certa maneira, considerada uma ameaça aos
aspectos que formavam a identidade cultural alagoana. Buscava-se, então, um estilo de
preservação daquilo que chamavam de tradição, que também deveria se dar na
literatura.
Enquanto residiu na capital alagoana, José Lins conviveu diretamente com
Graciliano Ramos, Jorge de Lima e Rachel de Queiroz, Aurélio Buarque de Holanda,
que então residiam naquela cidade. Continuou no mundo jornalístico, escreveu crônicas
e continuou na crítica literária. A partir daquele momento se entrelaçaram as inspirações
para sua formação enquanto futuro romancista. Acerca disso, vejamos:

(...) Surgiu a mais importante sucursal do Regionalismo


Tradicionalista (...). O movimento só foi acolhido em começos de
1927 – um ano após o lançamento do Manifesto Regionalista e alguns
meses depois com a chegada do escritor José Lins do Rego à capital
de Alagoas (ROCHA, 1964, p. 13).

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No entender de Rocha, portanto, a cidade de Maceió só teria passado a viver a


efervescência dos anos 1930 em decorrência do encontro dos intelectuais acima citados,
quando travaram discussões sobre o Regionalismo e deram novos rumos e contornos
estéticos ao movimento.
Os vários momentos nos quais os homens das letras se socializavam, seja em um
bar, praça, salão de evento ou em qualquer outro espaço, constituìram uma ―roda
literária‖, conceito trabalhado por Simone Silva (2008), uma estudiosa que faz uma
comparação entre os processos de publicação das obras de estreia de Mário de Andrade
e de José Lins do Rego. A autora analisa o sistema de trocas e obrigações no mundo do
livro durante as décadas de 1920-30. Através do estudo das primeiras obras que marcam
a carreira de ambos os escritores, ―Pauliceia Desvairada‖ (1922) e ―Menino de
engenho‖ (1932341), respectivamente, a intenção é demonstrar a dependência do espaço
literário nacional em relação aos ―grupos de amigos‖, que era uma prática comum
naquele período.
Uns liam os manuscritos, outros revisavam a prova do livro que era
em seguida encaminhada a um editor e, depois de publicada, restavam
as tarefas de distribuição e de divulgação, que também estavam a
cargo de membros dos grupos. Aos poucos, fui percebendo que todas
aquelas pessoas não podiam ser agrupadas em simples divisão de
trabalho literário. Tratavam-se de amigos próximos envolvidos
indistintamente em diversas atividades. A princípio, pareciam ser
simples ―grupos de amigos‖ que se ajudavam em função dos laços
afetivos. Contudo, ficou claro, ao longo da pesquisa, que o apoio
mútuo existente entre eles, era parte de um sistema coercitivo de
obrigações, essencial para o âmbito artístico daquele período (SILVA,
2008, p. 183).

Podemos dizer que no contexto de publicação das referidas obras existiam dois
grandes grupos de amigos: os que compunham a ―roda de São Paulo‖ (Mário de
Andrade, Tarsila do Amaral, Anita Malfatti, Menotti del Picchia e Oswald de Andrade)
e os que compunham a ―roda de Maceió‖ (José Lins do Rêgo, Rachel de Queiroz,
Graciliano Ramos, Jorge de Lima, Aloísio Branco, Valdemar Cavalcanti, Aurélio
Buarque de Holanda).

De fato, os grupos de editoras e revistas eram formados a partir das


―rodas de amigos‖, ou seja, com o ingresso de seus membros em uma
dada editora, eles passavam a constituir a sua roda. Por exemplo, os
membros da ―roda de Maceió‖, ao ingressarem na José Olympio,

341
Ganhou o Prémio da Fundação Graça Aranha.

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passaram a fazer parte da roda dessa editora. Com isso, é importante


perceber que a constituição de muitos grupos de uma mesma roda era
importante porque aumentava o número de alianças de seus membros
e também expandia o espaço de circulação de suas obras (SILVA,
2008, p. 185).

No tempo em que estava começando a se envolver mais diretamente no mundo


dos livros, José Lins do Rego compôs a chamada ―roda de Maceió‖, formada pelos
membros acima destacados. Aos poucos, essa ―roda‖ foi se constituindo em um grupo
de amigos que se interessavam pelo mundo dos livros. Como nem todos dispunham das
mesmas condições, no que concerne aos contatos editoriais, uniram-se na intenção de
trocar experiências e contatos para poderem publicar seus livros.

As ―rodas‖ passaram a ser o meio através do qual os artistas


produziam e faziam circular suas obras. No tempo das rodas, eram
elas as responsáveis pelo julgamento, pela crítica e pela divulgação do
produtor artístico. No caso do mundo do livro, por exemplo,
evidencia-se a importância que as ―rodas‖ passaram a ter no processo
fundamental de promoção do escritor – a publicação dos livros, que
segue um largo trajeto até chegar ao editor por meio de um integrante
da ―roda‖ (SILVA, 2008, p. 189).

Durante a sua permanência em Maceió, José Lins retornou para a fase da escrita
das crônicas e dos pequenos ensaios críticos, proeminentes na sua carreira342,
contemplando durante esses anos as suas definições literárias em prol do movimento
regionalista do Recife e em crítica para o movimento modernista de São Paulo.
No prefácio de ―Gordos e Magros‖ (1942), José Lins comenta sua passagem por
Maceió: ―relembro a fase alagoana de minha vida como tempos fecundos, época de
floração de minha carreira. Saía do aprendizado para fazer qualquer coisa com as
minhas próprias mãos‖ (REGO, 1942, p.47).
Foi na fase de Maceió que ele se dedicou a escrever um estudo biográfico e
crítico sobre Gilberto Freyre, mas o sociólogo pernambucano teria intervindo para que
não fosse publicado. Ao mesmo tempo, foi em Maceió que se deu a elaboração de seus
primeiros romances, como aponta Castello: ―sua atividade de romancista começou em
1932, com o plano de uma novela em que, no primeiro capítulo, ele se voltaria para a
infância, no ambiente dos canaviais‖ (1961, p. 91). Pela cronologia das obras, fica
nítido que estaria se referindo a Menino de Engenho, pois menciona o desejo de
enaltecer a figura de seu avô:

342
As crônicas escritas nesse momento de sua vida são os volumes de Gordos e Magros (1942) e Poesia
e Vida (1945), quando José Lins residia no Rio de Janeiro.

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Em 1929, li as memórias de Mistral e me impressionou o episódio em


que o poeta francês evoca o moinho dos seus pais, onde, diante da
figura paterna, era descarregado o trigo trazido pelos cavalos. Desse
pequeno episódio, nasceu em mim o desejo de evocar meu avô.
Primeiramente, pensei em memórias. Depois, resolvi fazer um
romance, e aí nasceu Menino de engenho, escrito em dois meses. Eu
tinha, então, trinta e um anos – livro foi escrito em 1930 (REGO apud
MARTINS, 2010, p. 12).

A obra em questão é tida pela crítica literária e pelo próprio José Lins como a
primeira obra do conhecido ―Ciclo da cana-de-açúcar‖. Porém, Bueno (2006) adianta
que são muitos os romances que se apresentam na década de 1930. As primeiras edições
de Menino de engenho e Doidinho não fazem qualquer referência a pertencerem a um
ciclo literário em andamento. Foi preciso que a crítica identificasse uma continuidade
entre os dois livros para assim os definir.
Bueno (2006) nos adianta que, naquele momento, era costume da Editora José
Olympio publicar as obras na forma de ciclos. E isso não era partilhado por todo o
romance brasileiro de 1930, tendo em vista que grande parte dos casos tem relação com
a denominação e publicação comum pela José Olympio Editora. O autor de ―Uma
história do romance de 30‖ deixa um alerta para pensarmos se realmente estamos diante
de romances cíclicos, e o quanto esse tipo de projeto literário é determinado por um
realce na literatura social. Vejamos o que nos adianta acerca de José Lins do Rego:

Autor importantíssimo foi também José Lins do Rego, cujo romance


cíclico ficou marcado como um dos mais característicos da década. A
importância que esses romances conquistaram em nossa tradição
literária deve-se a vários fatores que José Lins conseguiu coordenar
em seus escritos. Em primeiro lugar, suas obras mostram meticuloso
trabalho de observação aliado à experiência pessoal do autor, o que
constituiu o registro mais expressivo da região açucareira. Entrelaçado
a esse registro primoroso, há a estética com a qual ele foi realizado:
uma expressão que destrói muitas barreiras entre o coloquial e o
literário, trazendo à linguagem dos personagens a oralidade que lhes é
própria (COELHO, 2010, p. 21).

Assim, nos escritos de José Lins do Rego, temos vários pontos a serem
trabalhados, desde pensarmos seu viés enquanto cronista, até seus romances cíclicos. A
relevância de José Lins para a tradição literária verifica-se na maneira como ele
conseguiu articular sua produção. Inicialmente, ligada à sua experiência pessoal, depois,
balanceando o estilo coloquial e o literário, acrescentando aspectos referentes à
linguagem dos personagens um tom de oralidade.

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ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

É importante refletirmos que a formação e as redes de amizade de José Lins do


Rego marcaram de maneira profunda a sua forma de escrever sobre o seu Nordeste,
aquele que se envolveu cedo no mundo da imprensa e deixou de lado a musa das letras
jurídicas. Tais fatos por si não dizem muito se forem analisados em separado, ou fora do
contexto das primeiras décadas do século XX, uma vez que o autor bebeu nas fontes dos
escritores regionalistas do Recife. Vivendo no Recife, onde o passado, o presente e o
futuro não pareciam em harmonia, a produção de José Lins do Rego foi marcada pelo
caráter peculiar de narrar um passado que se perdia – era uma personagem quase sem
voz que ele queria trazer para a cena.
Maceió foi o local onde José Lins do Rego teve contato com as rodas literárias e,
também, o momento em que vemos efetivamente sua atuação enquanto romancista. Na
contramão dessa leitura, alguns estudiosos do tema não valorizam a importância de
Maceió na formação do nosso romancista, centrando-a quase unicamente na cidade do
Recife, como sendo essa a grande metrópole regional onde teriam ocorrido as principais
vivências e experiências formadoras do pensamento e, consequentemente, da obra
literária de José Lins do Rego. A despeito dessa interpretação, é necessário destacar
também as vivências e diálogos ocorridos na cidade de Maceió como influenciadoras
para a produção dos romances, pelo convívio e pela oportunidade que teve de interagir
com uma gama de literatos, um mundo que propiciava à literatura.

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