Freud, o Inconsciente, A Des-Memória, A In-Memória e Os Paradoxos Do Esqueciemento, Do Sonho e Do Real de Auschwitz
Freud, o Inconsciente, A Des-Memória, A In-Memória e Os Paradoxos Do Esqueciemento, Do Sonho e Do Real de Auschwitz
Freud, o Inconsciente, A Des-Memória, A In-Memória e Os Paradoxos Do Esqueciemento, Do Sonho e Do Real de Auschwitz
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Homenagem a Regina Schnaiderman - raízes e devires
ano XXX - Junho 2018
195 páginas
capa: Vera Montagna
TEXTO
Freud, o inconsciente, a des-memória, a in-memória e os
paradoxos do esquecimento, do sonho e do real de Auschwitz
Freud, the unconscious, the memorylessness, the un-memory and the paradoxes of oblivion,
of dream and of the Real of Auschwitz
Paulo Endo
Colocar em pauta a questão da memória revela imediatamente um problema ético que assalta
não apenas os registros conhecidos do que deve e pode ser lembrado e esquecido, como também
voltar ao sumário tudo aquilo que jamais será esquecido porque nunca foi lembrado. Esses ficam como que de fora
das questões da memória, não se assuntam, não se pode perscrutá-los.
Resumo Populações inteiras extintas que jamais serão encontradas; pessoas e vidas indigentes e não
Esse artigo examina um curto período de identificadas que pereceram em porões jamais alcançados pelas pesquisas e pelas mídias; outros
trabalho de Sigmund Freud no qual se que sumiram em prisões e valas comuns são, quando muito, representados por flâmulas genéricas
evidencia uma teoria abrangente sobre a de tais massacres, assassinatos e extermínios que, por sua vez, não poderão repor os traços da
memória. Pretendo colocar algumas existência singular dos que desapareceram completamente nesses processos de erradicação.
elaborações freudianas desse período em
Combatentes, vencidos, povos extintos, etnias apagadas são sucedâneos genéricos que revelam e
diálogo com autores contemporâneos,
ocultam diante da impossibilidade de relembrar e restaurar uma memória factível e singular que
pensadores do campo das teorias da
fora abortada por um acontecimento qualquer, que guiou cada um dos sujeitos e vidas até os
memória e, desse modo, contribuir para
umbrais da morte prematura e, não raro, efeito de catástrofes sociais e políticas. Cada uma
precisar a contribuição freudiana aos
deles dissolveu-se nos coletivos negros, indígenas, tutsis, guerrilheiros, judeus, comunistas,
estudos contemporâneos sobre a memória
pobres, favelados, vândalos, criminosos, etc.
social, política e cultural.
Por vezes, por eles e para eles, ergueram-se memoriais, monumentos, obras de arte, renderam-
se homenagens, canções foram entoadas e rituais fúnebres a eles foram endereçados.
Palavras-chave Entretanto, há em tudo isso um aspecto que escamoteia e encerra compensatoriamente um
psicanálise; teoria freudiana; memória; impossível: a restituição singular de cada um dos milhões que foram assassinados. Suas histórias e
lembrança; esquecimento. nomes apagaram-se no momento de seus respectivos extermínios e não foram, nem serão mais
encontrados.
Isso indica a medida do excesso que não pode ser reparado sempre que uma decisão de uso
Autor(es) massivo da violência é deflagrado; aponta também para um limite problemático da memória a
Paulo Endo ser sempre interpelado com cautela.
É a isso que a psicanálise, sua teoria e sua clínica estão endereçados. À perpétua busca de um
sujeito que fala e falando repõe sua posição de enunciante e de constituição, reposição, criação
Notas e invenção da linguagem, único lugar onde um sujeito se singulariza e existe. É nesse sentido
1.Esse alerta foi emitido eloquentemente preciso que a linguagem estaria nas antípodas da violência, podendo estar ao lado das violências
por Victor Klemperer (2006). Ele alertou [1]
de outras tantas maneiras .
em seus apontamentos sobre a linguagem
[2]
do 3o Reich que a dominação começa O testemunho de si, do inconsciente que a situação psicanalítica repõe e que Shoshana Felma
sempre pela linguagem, sempre pelas viu como o próprio ato fundador da produção testemunhal, instala um sujeito que se reinventa
palavras, porque é ela que forja pela linguagem após ter sido capturado e submetido por ela em sua forma discursiva, categorial e
subjetividades e inventa novas formas definitória. É em torno dessa possibilidade e impasse que uma teoria sobre a memória se ergue a
para praticar, cometer e ocultar ou partir da psicanálise, e é sobre ela que farei as considerações a seguir.
banalizar violências. Lembramos ainda Serão observações breves, a serem complementadas com pesquisas vindouras, pois elas
Gracilaso de la Vega (1598-1616), sobre o constituem parte de uma pesquisa mais extensa que hoje se debruça sobre a elaboração onírica
processo de colonização das américas [3]
pelos espanhóis destacando como ante as experiências de aniquilamento .
primeiro ato o ato de incompreensão e Aqui procurarei considerar o percurso de quatro anos entre o primeiro texto de Freud por ele
transformação da língua nativa. renegado - O Projeto de uma psicologia para neurólogos, escrito em 1895, mas só publicado em
2.S. Felman, Education and crisis or the 1950, após sua morte - que é também o primeiro e último a tentar a aproximação entre a
vicissitudes of teaching, in S. Felman; M. psicologia e a neurologia - até o texto A interpretação dos Sonhos, terminado em 1899 mas só
D. Dori Laub (orgs.) Testimony: crises of publicado em 1900. O primeiro, um texto que Freud quis apagar de sua obra e o outro que ele
witnessing in literature, psychoanalysis desejou ressaltar, atrasando em um ano sua publicação, para que se tornasse um dos textos mais
and history. importantes do novecentos. Nesse interjogo dos textos freudianos, o desejo de evidenciar e
ocultar também é revelador dos traços da obra.
3.Esse artigo é mais uma das elaborações
que venho realizando sobre a literatura O segundo tempo deste artigo pretende iniciar uma interpretação, inspirada pela psicanálise, de
de testemunho e relatos de testemunhos sonhos oriundos de experiências liminares nas quais os campos de concentração e os porões de
da ditadura civil-militar brasileira (1964- regimes ditatoriais fazem existir; nos deteremos mais especificamente no atravessamento da
1985) apoiado nas elaborações elaboração onírica na obra de Primo Levi.
Freud e a memória
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metapsicológicas sobre o sonho. O leitor A hipótese do inconsciente como um lugar (topos) ou um lugar terceiro, entre (in between),
poderá encontrar, na bibliografia deste estrangeiro, excluído (a-topos) do ponto de vista da razão, da consciência e da memória
artigo, outros artigos publicados no evocativa, entendida como o que se move nas dinâmicas entre o lembrar e o esquecer, é uma
âmbito da mesma investigação (P. Endo, contribuição decisiva da psicanálise aos estudos sobre a memória.
2005, 2010, 2012, 2015, 2015a, 2016). Primeiro porque na trajetória de seu pensamento Freud inclui fendas, buracos, solavancos
4.S. Freud. Proyecto de una psicologia para enormes nessa passagem, além e aquém das dinâmicas entre o lembrar e o esquecer e, depois,
neurologos. In Obras Completas de porque sem fazer disso um campo de batalha decisivo, Freud propõe outra teoria sobre a
Sigmund Freud, T.i. p. 214. memória instalada sobre os processos e dinâmicas inconscientes que a determinam. Processos
5.P. Ricoeur, A memória, a história, que têm como origem e destino a constituição do psiquismo pautado pela sexualidade.
o esquecimento, p. 80. Esses processos, para Freud, dependiam da compreensão de mecanismos presentes na
6.A. Assman, Espaços da recordação: constituição do próprio psiquismo enquanto tal, a partir de menções, analogias e aproximações
formas e transformações da memória com a neurologia, cuja heurística foi escrita em 1895 com o texto Projeto para uma psicologia
cultural, p. 33. para neurólogos. Texto, como observado anteriormente, posteriormente abandonado por Freud e
somente publicado em 1950, após sua morte.
7.A. Assman, op. cit., p. 34.
Nesse texto Freud se esmera na construção de uma teoria neurológica plausível que incorporaria
8.P. Ricoeur, op. cit., p. 81.
suas próprias descobertas, hipóteses e suposições sobre um aparelho de memória. Freud diz:
9.Tanto no sentido de um jamais lembrado,
[...] uma das características do tecido nervoso é a memória, quer dizer, em termos gerais,
o ilembrável, presente na hipótese do
a capacidade de ser permanentemente modificado por processos únicos, característica que
recalcamento primário, quanto no sentido
contrasta tão notavelmente com a conduta de uma matéria que deixa passar um movimento
de contra a memória. Algo que anularia a
ondulatório, para retornar logo a seu estado prévio. Toda teoria psicológica digna de alguma
própria memória enquanto tal. Aqui
[4]
poderíamos propor como exemplo as consideração haverá de oferecer uma explicação sobre a "memória".
experiências limites em que o sujeito se Nesse trecho extraído das páginas iniciais do ‘Projeto' Freud evidencia, de um lado, sua ambição
encontra em situação continuada de risco em localizar fisicamente, na córtex cerebral e nas ligações neuronais, as funções e os processos
iminente de morte e na qual todos os neuropsíquicos em geral que ele pretende descrever e explicar, mas também o trabalho da
seus recursos psíquicos se voltam para a memória em particular; de outro indica o empreendimento de toda a psicanálise até então não
sobrevivência, que passa então a ser a nascida: a que se esmeraria na compreensão das transformações permanentes sofridas pelo
tarefa primeira do psiquismo: manter o psiquismo a partir das marcas nele impressas que, mais adiante, na primeira teoria do aparelho
organismo vivo. Remeto o leitor ao livro A psíquico apresentada em 1900, no texto A interpretação dos sonhos, Freud denominará de
violência no coração da cidade: um marcas mnêmicas.
estudo psicanalítico, especialmente na
Assim Freud primeiro examina, explica e discrimina o exame dos processos envolvendo o lembrar
segunda parte intitulada A violência no
e o esquecer, utilizando-se para isso de uma visão muito própria dos processos neurológicos que a
pensamento de Freud (Endo, 2005), onde
envolvem e a determinam para, depois, ater-se aos inúmeros matizes no vasto campo da
desenvolvo extensamente essa hipótese.
memória, que ele amplia e sucessivamente redefine ao longo de sua obra.
10. A ação dos mecanismos de defesa,
Podemos dizer genericamente que, para a psicanálise desde Freud, interessam as dinâmicas do
como o recalque, impossibilita a
des-lembrar (o percebido consciente que foi esquecido); do mal-lembrar (do que não pode ser
lembrança, bem como o esquecimento.
inteiramente lembrado a não ser pela via de sinais, indícios e pistas: os sintomas); do lembrar-
O ex-cadescere, cair para fora, presente
encobrindo (daquilo que se lembra precisamente para que não seja possível a lembrança, tornada
na etimologia da palavra esquecer
difícil e dolorosa), que se exibem na clínica psicanalítica cotidiana.
poderia receber outro prefixo, teríamos
então in-cadescere, cair para dentro. Ou Os sintomas seriam a demonstração de um lugar terceiro da memória, um lugar outro, que se
seja, algo que cai, como que solto instala fora das dinâmicas inerentes ao lembrar e ao esquecer. Revelam também uma tentativa
(desligado), mas perdura como conteúdo de equilíbrio inercial, pois buscam um outro equilíbrio. Ou seja, podem perdurar durante toda a
psíquico inconsciente. vida do sujeito se não forem psiquicamente interpelados, aturdidos e perturbados. Tarefa que a
clínica psicanalítica tomará para si.
11. M. Schneider, Afeto e linguagem nos
primeiros escritos de Freud. Os sintomas neuróticos - o corpo cativo da histérica pelo olhar de outrem e, ao mesmo tempo,
distante do gozo com outrem; a ideação aflitiva do obsessivo e a angústia como instalação de um
12. S. Freud, Freud (1893-1895) - Estudos
corpo impossível de prazer na neurose de angústia - revelariam que um trabalho inconsciente se
sobre a histeria. Obras completas, vol. 2.
põe em marcha produzindo efeitos que condenam o sujeito ao não esquecimento e, ao mesmo
13. J. M. Masson (edit.), tempo, o impedem de lembrar.
A correspondência completa de Sigmund
Dito de outro modo, são conteúdos que perduram como des-memória - um corpo e um psiquismo
Freud para Wilhelm Fliess (1887-1904),
(desmemoriado) que compulsiva e dolorosamente alienam-se da consciência, dos pensamentos e
p. 265-266.
ações voluntários e passam a frequentar, repetidamente, caminhos conhecidos não sabidos e
14. J. M. Masson (edit.), op. cit., p. 267. irreconhecíveis (Unheimliche). Um afeto desligado indica contudo que algo aconteceu, mas
15. Remeto o leitor ao capítulo vii de A impede que se realize psiquicamente a apropriação subjetiva desse acontecido.
interpretação dos sonhos, no qual Freud Conteúdos baldios, atemporais e sem rumo, como que se esgotando em seu próprio movimento
apresenta a primeira teoria do aparelho de perpetuação repetitivo, vagam em sua impossibilidade e mortificação. Energia, pulsão
psíquico. Ali vemos que a regressão a que psiquicamente desligada que se aliena no corpo para ali manter-se aprisionada, drenando energia
Freud se refere não é apenas temporal, psíquica na mobilização dos mecanismos de defesa psíquicos mantenedores da neurose.
mas tópica. Tal como a experiência do
Assim, no trabalho clínico, Freud depara com a seguinte constatação: o sintoma do neurótico não
sonho demonstra. O estado regressivo do
é um efeito de uma experiência realmente vivida e não lembrada, mas de um desejo combatido,
sonho suspende o sujeito numa posição
interpelado pelo próprio psiquismo do sujeito que, primeiro, cinde o desejo da possibilidade do
em que a percepção e a motilidade estão
ato em direção ao suposto objeto desse desejo e, depois, o irrealiza como fantasia proibida.
em estado de suspensão, mas são ambas
emuladas no sonhar que, de certo modo, Sendo um dos propósitos da fantasia adiar ou impedir a passagem ao ato, testemunhamos na
as suprime. Reconstituindo um estado histeria os estertores desse adiamento e impossibilidade em que um corpo, repleto de dores e
psíquico extraordinário em que tudo pode espetáculos, se mortifica no imenso trabalho de exibir para ocultar. Porém, a fantasia não vela o
acontecer sem que haja percepção e ação desejo, mesmo que para isso recaia sobre ela o recalque e, como seu corolário, o sintoma.
motora. O mundo é dispensado para que O sintoma exibe, portanto, o desejo convertido em limbo. Nesse sentido o corpo cativo da
o mundo do sonhador desperte. histérica e do histérico seriam exemplares desse sofrimento e dessa suspensão de um prazer do
qual nunca se sabe.
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16. Dori Laub, psicanalista, professor e Mas qual é o tempo das fantasias senão o tempo do desejo que demarca a distância entre querer
um dos fundadores do Fortunoff Video e ter? O tempo que a pulsão sexual trilha e marca na mesma - ou oposta - direção de seus
Archive for Holocaust Testimony da objetos. Para se aproximar de seus objetos ou para repeli-los, evitá-los, mantê-los à distância.
Universidade de Yale, observa que logo Um tempo que se incumbe de presentificar o que não existe e também negar, adiar, postergar o
após a libertação dos prisioneiros dos ato e alargar a distância entre pulsão e objeto, entre desejo e ato. É portanto um tempo-espaço
campos de concentração milhares de interpelado pela realidade que induz e exige trabalho psíquico. Tais preocupações fundam a
testemunhos escritos foram produzidos e própria psicanálise, pelo menos desde 1895, e consistem na constituição de matizes que Freud
mesmo gravados. Com o passar do tempo introduz nos estudos sobre a memória, concomitantemente ao nascimento da própria psicanálise.
houve um declínio dessa produção que Freud estava então no âmbito, ou muito próximo, do que Ricoeur distinguiu como memorização e
Laub atribui não ao fato da latência [5]
recordação e mesmo de Aleida Assman quando retomou a distinção conceitual entre memória e
necessária para que fosse possível dizer,
[6]
mas das possibilidades ainda inexistentes recordação .
de escutar. (Laub and Hamburger, 2017, Lembrando Junger, Assman relembra a equiparação de memória com coisas pensadas, ou seja,
p. 9) conhecimentos, e associou por sua vez a recordação com experiências pessoais. Cito:
17. P. Endo, "Partilha, testemunho e a A memorização procede basicamente de forma reconstrutiva: sempre começa do presente e
insistência e a impermanência do dizer"; avança inevitavelmente para um deslocamento, uma deformação, uma distorção, uma
"Sonhar, o mal-sonhar e o sonambulismo revaloracão e uma renovação do que foi lembrado até o momento da sua recuperação. Assim,
no horizonte da experiência do nesse intervalo de latência, a lembrança não está guardada num repositório seguro e sim sujeita
desaparecimento forçado de pessoas no a um processo de transformação. A palavra "potência" indica, nesse caso, que a memória não
Brasil". deve ser compreendida como um recipiente protetor, mas como uma força imanente, como uma
18. P. Levi, É isto um homem?; energia com leis próprias. Essa energia pode dificultar a recuperação da informação - como no
Os afogados e os sobreviventes. caso do esquecimento - ou bloqueá-la - como no caso da repressão. Porém ela também pode ser
controlada pela inteligência, pela vontade ou por uma nova situação de necessidade,
19. P. Levi, É isto um homem?, p. 62.
e proporcionar uma nova disposição de lembranças. O ato do armazenamento acontece contra o
20. P. Levi, op. cit., p. 62. tempo e o esquecimento, cujos efeitos são superados com a ajuda de certas técnicas. O ato da
21. C. Beradt, em Revêr sous le IIIe recordação, por sua vez, acontece dentro do tempo, que participa ativamente do processo. No
Reich, demonstrou habilmente como o que diz respeito à psicomotricidade da recordação, esquecimento e recordação estão
trabalho do sonho pode antecipar fatos, indissociavelmente intrincados. Um é possibilitador do outro. Podemos também dizer:
sentimentos e experiências antes que os [7]
o esquecimento é oponente do armazenamento, mas cúmplice da recordação.
acontecimentos flagrantes, catastróficos
ou espetaculares tivessem lugar. Suas E Ricoeur referindo-se à obra de Frances Yates, ars memoriae:
análises inspiradoras de 300 judeus Ademais, dessa recusa do esquecimento e do ser afetado resulta a preeminência concedida à
vivendo na Alemanha em 1933 revelaram memorização à custa da recordação. A valorização das imagens e dos lugares pela ars memoriae
seu aspecto preditivo indicando as [8]
tem como preço a negligência do acontecimento que espanta e surpreende.
consequências possíveis de um estado
nazista em estado de gênese, anos antes No caso da recordação, o esquecimento revelaria não o polo oposto, demérito e falha da
das catástrofes protagonizadas pelo memória, mas um fenômeno constitutivo que revela, em tudo aquilo que se recorda, algo que se
sistema nazista que se espalharam por esquece, e que os assim chamados ‘efeitos visíveis do recordado' são, desde sempre, reveladores
todo o mundo e, muito especialmente, do que foi temporária ou definitivamente esquecido.
pela Europa. No lembrado/esquecido há sempre um deixar lembrar, deixar esquecer para que nesses
22. P. Levi, op. cit., p. 60-61. intervalos se possa imaginar, ficcionalizar e inventar os liames de continuidade do perdido. Mas
no esforço freudiano teórico-empírico, consagrado aos fenômenos da memória, revelam-se não
23. P. Levi, op. cit., p. 91.
apenas as elaborações técnicas apropriadas de memorização, como também as de recordação.
24. Ver J. Derrida, Mal de arquivo: uma
A constatação de que, em termos clínicos e durante o tratamento, lembrar não é tudo ou nem é
impressão freudiana.
o mais importante teve de experimentar transformações decisivas nos trabalhos de Freud desde o
período pré-psicanalítico e depois.
O neurótico sofrer de reminiscências aludiria ao mesmo tempo a algo que persiste mal lembrado,
Referências bibliográficas
mas também ao que é lembrado de modo a provocar contínuo sofrimento psíquico. É justamente
Assman A. (2011). Espaços da recordação:
o fracasso do esquecimento absoluto que perpetua o impossível de lembrar (o ilembrável, a in-
formas e transformações da memória [9] [10]
cultural. Trad. Paulo Soethe. Campinas: memória) e o impossível de esquecer (in-quecer) , efeito do trabalho psíquico que imobiliza o
Editora da Unicamp. psiquismo enquanto repetição. A repetição como ato (acting out) seria, portanto, o que mantém
cativo o corpo do sujeito enquanto um trabalho psíquico não se realiza. A compulsão que revela
Beradt C. (1966/2004). Revêr sous Le IIIe.
uma insistência e fracasso mil vezes revelado de modo oblíquo e obscuro.
Reich. Trad. Pierre Saint-German. Paris:
Payot et Rivage. A primeira clínica de Freud, que conhecemos como pré-psicanalítica, ao mesmo tempo anterior e
fundante da psicanálise, pensava o esquecimento como um limbo da memória, cuja inscrição
De La Vega G. (1616/2017). Comentarios
seria não consciente e que poderia ser reencontrada a partir de técnicas de busca apropriadas:
Reales de los Incas. Arequipa, Peru:
resgatar do esquecido para o lembrado. Portanto, um olhar e uma crença bastante tradicionais e
Ediciones El Lector.
médico-neurológicas sobre o trabalho da memória.
Derrida J. (1995/2001). Mal de arquivo:
Como neurologista, para Freud, a memória ainda figurava em seus trabalhos e em sua clínica
uma impressão freudiana, Rio de Janeiro:
como um armazenamento de conteúdos, experiências, percepções e sensações potencialmente
Relume-Dumará,
evocáveis. As primeiras reflexões e experiências freudianas, ao menos até 1899, deixavam
Endo P. C. (2005). A violência no coração praticamente intocada a ideia da memória definida nas dinâmicas entre o lembrar e o esquecer;
da cidade: um estudo psicanalítico. São o evocável e o não evocável. A descrença para com suas neuróticas não revelaria que a paciente
Paulo: fapesp/Escuta. mente, mas que porta uma verdade outra para a qual ainda não havia se constituído escuta.
____. (2010). Partilha, testemunho e a Freud trabalhava no campo da memorização, distante dos fenômenos da recordação, para ele,
insistência e a impermanência do dizer. ainda invisíveis. O trabalho, a técnica da hipnose nas mãos de Freud evidenciaram esses impasse
In G. Milan-Ramos; N. V. A. Leite. Terra- de modo flagrante. Freud adotava obsessivamente a hipnose em seus primeiros casos, buscava na
Mar: litorais em psicanálise - escrita, crença na memorização sua salvaguarda, ao mesmo tempo que insistia no caráter expulsivo do
cinema, política, educação. Campinas: conteúdo tóxico.
Mercado das Letras.
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11/4/2019 Sociedade Civil Percurso - NP
____. (2012). Elaboração onírica, sonhos [11]
Monique Schneider esclarece essa matriz biológica e médica presente nas crenças de Freud
traumáticos e representação na literatura
que circundavam a hipnose, e que residiam no modelo que preconiza a expulsão, a retirada
de testemunho pós-ditadura no Brasil. In
cirúrgica do agente patogênico. Lembrar e dizer o lembrado significava, portanto, uma operação
M. Seligmann-Silva; J. Ginzburg; F. Foot
que reestabelecia entre a justa representação e o afeto a restauração de um elo que, por sua
Hardman (orgs.). Escritas da violência,
vez, reconstituía a lembrança tornada, a partir de então, palavra, ex-pressão conduzindo o
vol. ii, p.119-132: Representação da
conteúdo expelido "para fora" do psiquismo.
violência na história e na cultura
contemporâneas. Rio de Janeiro: 7 letras. A técnica da hipnose revelaria esse mesmo aspecto, porém redobrado em convicção. Existiria um
fulcro, um ponto zero da memória que se revelaria num conteúdo finalmente encontrado e não
____. (2015). Dream representation in the
imediatamente evocável. A técnica da hipnose faria o hipnotizado revelar, finalmente, o que lhe
face of pain and hope. In W. Owczarski;
provocava sofrimento psíquico e as palavras seriam os veículos da manifestação dos afetos, que
Z. Ziemann (edit.). Dreams, phantasms
acompanhavam tal lembrança, ab-reagindo-os. Expulsar, extirpar, remover, pôr para fora o
and memories. Gdansk: Gdansk University
excesso não digerível, desembuchar, expectorar o conteúdo perturbador para enfim dar início à
Press.
convalescença. Limpeza de chaminé (chimney swepping) como assim batizou a célebre primeira
____. (2015a). Violence, Dream Work paciente da psicanálise Bertha Pappenheim (Anna O.).
(Dreams' elaboration) and the testimonial
O sentido e o entendimento dos processos de memória estavam, nesse caso, inteiramente ligados
horizon. In W. Owczarski; M. V. F.
ao paradigma do tempo linear e do caráter evocativo da memória. Era preciso chamá-la, acordá-
Cremasco, Solidarity, memory and
la, despertá-la para depois expulsá-la, colocá-la para fora, excrementá-la. Residia aí também a
identity. Newcastle: Cambridge
vocação da técnica da hipnose. Técnica de perscrutação capaz de encontrar a lembrança, ou o
Publishing Scholars.
conjunto de lembranças patogênicas, e extirpá-las. Técnica de captura mnemônica, persistência
____. (2016). Sonhar, o mal-sonhar e o da evocação e trabalho de investigação comandado por um especialista e mestre hipnotizador.
sonambulismo no horizonte da
Contudo de que se lembra a histérica após o choque e o trauma sexual? Como se lembra? Por que
experiência do desaparecimento forçado
adoece? Em que o prazer na neurose obsessiva se translada para pensamentos e atos repetitivos
de pessoas no Brasil. Revista Literatura e
ilegíveis? Freud já trabalhava na determinação sexual do recalcamento desde ‘O Projeto'. Ali, na
Sociedade, n. 23, jul.-dez., p. 212-229.
descrição do mecanismo que mutila, altera, transforma o conteúdo da lembrança, o tratamento
Felman S. (1992). Education and crisis or psicanalítico poderá encontrar um princípio, cuja verdade íntima repousa num desejo que o
the vicissitudes of teaching. In S. Felman; próprio sujeito, de certo modo, ignora.
M. D. Dori Laub, (orgs.), Testimony: crises
A reconhecida carta de Freud a Fliess de 21 de setembro de 1897 condensa uma série imensa de
of witnessing in literature, psychoanalysis
pontos de chegada e partida do pensamento de Freud. Do ponto de vista do que é lembrado, fica
and history. Routledge: New York.
evidente que tudo o que é lembrado, durante o tratamento, pode e deve encontrar um novo
Ferenczi S.; Abraham K.; Simmel E.; Jones horizonte de escuta, impossível para Freud até então. Tratar-se-ia de escutar a verdade
E. (1921). Psychoanalysis and war inconsciente do paciente; da memória não como memorização, mas como recordação,
neurosis. New York: International testemunho e verdade de si, algo como uma pós-memória.
Psychoanalytical Press.
[12]
Ainda ouvimos o alerta de Emmy: "Fique quieto - não diga nada - não me toque" .
Ferenczi S. (1934/1992). Sobre o trauma. In
Impressionantemente retomado e inscrito no que mais tarde o tratamento psicanalítico
Obras Completas de Sandor Ferenczi vol.
assimilará como o negativo da posição e da escuta do analista, a neutralidade clínica e a abolição
4. Trad. Álvaro Cabral. São Paulo: Martins
do ato (e do corpo) na posição deitada sugerida pelo divã. Uma escuta que, enfim, se
Fontes.
convertesse no difícil ofício de ouvir.
Freud S. (1900/1996). A interpretação de
O assolamento do mundo pelos pais perversos, "sem excluir o meu", dirá Freud, revelou o quão
sonhos. In S. Freud, Edição standard
longe pode chegar uma fantasia teórica em nome da resistência à mudança de paradigma exigida
brasileira das obras psicológicas
por um modo inteiramente novo na compreensão, tratamento e escuta do sofrimento psíquico.
completas de Sigmund Freud (vols. 4-5).
Rio de Janeiro: Imago. Daí Freud trabalha para constatar que "[...]não se pode distinguir entre a verdade da ficção que
[13]
____. (1895/1950/1981). Proyecto de una foram catexizadas pelo afeto" . Há em tudo o que se recorda uma ficção que recorta e instrui.
psicologia para neurologos. In Obras A sexualidade se organiza de modo a construir, inventar e navegar entre ficções sem o solo firme
Completas de Sigmund Freud, T.i. Trad. das verdades unívocas nas quais o jovem neurologista Freud aprendeu a acreditar. A ciência
Luis Lopez Balesteros. Madrid: Biblioteca psicanalítica rumaria para o mais ignorado dos fenômenos estudados pela ciência médica:
Nueva. p. 209-276. os sonhos. Lá onde tudo é verdadeiro e tudo é falso; tudo aconteceu e nada aconteceu; tudo é
____. (1900/2013). A interpretação dos lembrado e tudo é esquecido. Como escreve ao final da carta de setembro de 1897:
sonhos. Trad. Renato Zwick. Revisão Tenho que acrescentar mais uma coisa. Neste colapso de tudo o que é valioso, apenas o
Técnica: Tania Rivera. Porto Alegre: psicológico permaneceu inalterado. O livro sobre o sonho continua inteiramente seguro e meus
L&PM. primórdios do trabalho metapsicológico só fizeram crescer em meu apreço. É uma pena que não
____. Freud (1893-1895/2016) Estudos [14]
se possa ganhar a vida, com a interpretação dos sonhos!
sobre a histeria: Obras completas, vol. 2.
São Paulo: Companhia das Letras. Os sonhos são sempre ou esquecidos ou mal lembrados. Trechos, detalhes, sentimentos ou afetos
são retidos enquanto perdura a sensação de que outros tantos são perdidos; aqueles que
____. (1920/1989). Más allá del princípio
poderiam reservar a inteireza, a completude e a explicação última dos sonhos, jamais
de placer. In S. Freud, Obras completas.
alcançadas. Sua pretensa reconstituição, portanto, é sempre problemática e imperfeita. Serão
Trad. J. L. Etcheverry. 2. ed., vol. 18,
precisamente dessas imperfeições dos sonhos que se falará ou se silenciará em análise. O que o
p. 60-120. Buenos Aires: Amorrortu.
material onírico oferece é a latência dos vazios.
Gay P. (1988/1989). Uma vida para nosso
Aceitando suas supostas imperfeições, como a plenitude de suas realizações, a psicanálise
tempo. Trad. Denise Bottman. São Paulo:
encaminha, à escuta desfeita das obrigações da memorização, a construção notável dos
Companhia das Letras.
princípios ocultos que regem verdades definidoras do sujeito. É a própria criação que ocorre no
Laub D.; Hamburger A. (2017). sonhar. Um sujeito que recria seu próprio itinerário a partir de pistas aparentemente aleatórias e
Psychoanalysis and Holocaust Testimony. impossíveis de seguir.
New York: Routledge.
Os sonhos rejeitam, todas as noites, a lógica linear e factual, as verdades últimas, definitivas e
Levi P. (1947/1988). É isto um homem? Rio inexoráveis e as posições de consenso e de ordem. Os sonhos jogam com as certezas como cartas
de Janeiro: Rocco. num baralho. Nos sonhos está a verdade singular, arranjada e rearranjada, enquanto se revela e
____. (1990). Os afogados e os se oculta o lembrado, para sempre mantido esquecido e o esquecido jamais inteiramente
sobreviventes. Rio de Janeiro: Paz e lembrado. No sonho não há o que buscar, o que ele revela é o que eventualmente poderá ser
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Terra. criado a partir dos traços que ele expõe, mas esses traços já são efeito de elaboração psíquica e
Masson J. M. (edit.) (1986). onírica, de modo que a pureza do fato lembrado jamais poderá ser encontrada psiquicamente
A correspondência completa de Sigmund falando.
Freud para Wilhelm Fliess (1887-1904). Entre a multiplicidade de formas fragmentárias, indefinidas e obtusas os sonhos instauram a
São Paulo: Imago. criação psíquica e seu laço com a alteridade (transferência) que inauguram uma escuta possível,
Ricoeur P. (2007). A memória, a história, ela mesma desordenada, donde se constitui uma outra cena na qual, todavia, o sujeito se
o esquecimento. Trad. Alain François. inscreve para além de toda ordem e de todo lembrado. Uma desordem na qual o sentido
Campinas: Editora da Unicamp. ultrapassa todos os outros indícios, e possibilita ligações impossíveis a partir da interpretação,
revelada pelo encontro entre a fala possível do analisando e a escuta possível do analista que,
Schneider M. (1993). Afeto e linguagem nos
por sua vez, se inscrevem no par analítico como tensão, criação e enunciação, perturbando, na
primeiros escritos de Freud. São Paulo:
[15]
Escuta. experiência do sonho, a inércia da profusão perceptiva e do silenciamento .
A função das marcas mnêmicas é constituir o próprio psiquismo enquanto tal, como um acervo de
memórias que continuamente se refazem e se organizam em função da intensidade dessas
marcas, ordenadas e desordenadas pelas pulsões que a elas se ligam ou que delas são
drasticamente desligadas, como provavelmente ocorre na gênese do trauma psíquico.
Abstract O sonho reservaria um lugar potencial de repouso dessas tensões, uma vez estando atenuados
This article examines a period of work by tanto o imenso manancial de percepções oriundas do mundo, quanto o agir e a motilidade como
Sigmund Freud in which a comprehensive possíveis respostas a essas impressões. O sono procuraria resguardar o sujeito da inerência das
theory about a memory is evinced. I tensões impostas entre o desejo e o mundo, ao mesmo tempo que realizaria um trabalho que
intend to open the dialogue between livra o desejo de seus objetos possíveis para reapresentá-los psiquicamente, recriados a partir
some Freudian elaborations of the period das marcas impressas no circuito pulsional redinamizado durante o sonho. Situação em que
with contemporary authors, thinkers of muitas peças voltam a ficar soltas para se reagrupar sem as exigências das sobredeterminações
the field of memory theories and thus mundanas que, nesse momento, repousam à espera do despertar.
contribute to the search for a Freudian O sonho, a elaboração onírica, traçam um ponto culminante e pródigo nos estudos sobre a
contribution to contemporary studies on a memória ao revelarem as invenções do desejo entre e além da lembrança e do esquecimento.
social, political and cultural memory. Assunto que será sucessivamente retomado no pensamento de Freud e levado ao seu limite
quando, uma vez mais, Freud retornar aos sonhos traumáticos e aos territórios nômades nos quais
nada foi esquecido porque nada pode ser lembrado. Uma latência de 20 anos nos permite ver, na
Keywords [16]
Keywords psicoanálisis; freudian theory; obra de Freud, as exigências do tempo da escuta do traumático .
memory; remembrance; forgetfulness. Sonhos de Auschwitz
É conhecido o papel importante que os sonhos ocupam na obra de Primo Levi. Em ocasiões
voltar ao sumário distintas apresentei alguns aspectos notáveis desses sonhos conhecidos lendo-os ao lado de
[17]
sonhos de ex-prisioneiros da ditadura civil-militar que vigorou no Brasil entre 1964 e 1985 .
[18]
Quando examinamos a obra testemunhal e a escrita de Primo Levi e suas reflexões sobre os
sonhos de Auschwitz, encontramos pistas importantes sobre o papel que a criação, a invenção e o
trabalho psíquico, que ocorrem como elaboração onírica, exercem diante das experiências
liminares em que a ameaça à vida é corriqueira e o defrontar-se com a violência, extremo.
Podemos compreender o interesse de Primo Levi pelos sonhos, em parte, devido à sua convicção
de que devemos e podemos compreender as atrocidades a partir das experiências singulares que
demarcam e confrontam as situações de massificação deflagradas nos campos, cujo corolário é o
assassinato em massa e a resoluta decisão de exterminar comunidades, grupos e povos inteiros.
Nesse ponto extremo Primo Levi sempre insistiu em apontar para os sujeitos, suas
particularidades, suas individualidades. Recusou definições mais ou menos genéricas sobre
vítimas e algozes e não se prontificou a produzir uma literatura que se resumisse a descrever
atrocidades, para ele, já bastante conhecidas até a publicação de seu primeiro livro É isso um
homem? em 1947.
É nesse aspecto que o sonho, no seu duplo sentido, é uma peça enriquecedora na literatura do
autor. Tanto como capacidade de sonhar o futuro, o além da morte e do extermínio quanto como
expressões, narrativas e produções oníricas durante e após o sono, que seriam capazes de dizer
algo mais sobre tantas almas absortas no vórtice de sua própria mortificação.
Acrescentaria ainda que o apreço de Levi pelo pensamento, mesmo nas situações em que se
duvida da humanidade do homem, é também importante na relevância que ele confere aos
sonhos e, nesse sentido, ele se aproximaria de Freud em sua compreensão de que um sonho é
efeito de um trabalho onírico, de um trabalho psíquico, também ele, pensamento. Pensamento
inconsciente que revela uma lógica diferida, profunda e que pode ser escutada, revelada e
explicada, como se dedicou Freud a fazê-lo durante toda a vida. Alteridade da outra cena que,
no sonhar, revela o si mesmo como outro.
Nesse ponto, mesmo sendo ambos homens formados nas ciências positivas, Primo Levi em
química e Freud em medicina, foi no anverso das ciências biológicas que ambos puderam revelar
aspectos fundamentais do trabalho do sonho. Primo Levi com a literatura e Freud com a
psicanálise.
Nos sonhos descritos por Primo Levi predominam os sonhos traumáticos, sonhos de derrocada,
para ele, pesadelos. Eles acompanham e perturbam o sono tranquilo e revelam que, mesmo
durante o sono, o prisioneiro não encontra guarida e que o horror dos campos devassa as
fronteiras entre a vigília e a experiência onírica. Para Levi, não há vida fora dos campos, mesmo
durante a noite, mesmo enquanto se dorme. É como ele os descreve:
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O sonho de Tântalo e o sonho de narração inserem-se num contexto de imagens mais confusas:
o sofrimento do dia, feito de fome, pancadas, frio, cansaço, medo e promiscuidade, transforma-
se à noite, em pesadelos disformes de inaudita violência, como, na vida livre, só acontecem nas
noites de febre. Despertamos a cada instantes, paralisados pelo terror, num estremecimento de
todos os membros, sob a impressão de uma ordem berrada por uma voz furiosa, numa língua
[19]
incompreensível.
E ainda:
Quando o pesadelo mesmo, ou o incômodo nos despertam, tentamos em vão decifrar seus
elementos, rechaçá-los um por um fora da nossa percepção atual, para defender nosso sono de
sua intromissão, mas, logo que fechamos os olhos, percebemos novamente que o cérebro
recomeçou a trabalhar, independente de nossa vontade; zune e martela, sem descanso, constrói
fantasmas e signos terríveis, sem parar os traça, os agita numa névoa cinzenta na tela dos
[20]
sonhos.
Essa natureza destrutiva dos sonhos, como pesadelos (sonhos traumáticos), entretanto, não é
exclusiva nas situações extremas de violência e crueldade a que se encontra submetido o
sonhador. Poderíamos discutir, mesmo nos pesadelos descritos por Primo Levi, o trabalho da
elaboração onírica em busca da restauração de um estado anterior remetido às experiências
longe do Lager, ao mesmo tempo que sua construção é invadida destrutivamente pelas
[21]
experiências de desgraça nos campos que nem o sonho é capaz de debelar .
[22]
Mesmo nas mensagens precárias que Primo Levi ressalta nos pesadelos sobre a restauração da
experiência do estar em casa, entre a família e os amigos, comendo um pedaço de pão, para
depois tudo ser devastado pelo sentimento de privação e precariedade poderíamos indagar se,
mesmo aí, não se revelam as sucessivas tentativas do trabalho do sonho, de restituir alguma
informação, mil vezes perdida, sobre uma história, uma experiência e algum indício sobre
elementos identitários que o psiquismo procura restaurar, mas que são cotidianamente
desfigurados nos campos, onde todos estão irreconhecíveis entre si e para si e onde não há
espelhos.
Nos dois tempos da reflexão freudiana sobre os sonhos, o primeiro apresentado em 1900 com o
texto A interpretação dos sonhos e o segundo em 1920 em Mais além do princípio do prazer,
Freud efetua uma passagem entre as funções do trabalho do sonho. Do sonho como realização de
desejo, portanto, como restituidor de um prazer pulsional alucinado, para o sonho como mera
repetição perceptiva na qual o princípio do prazer foi colocado de lado e que, portanto, repete o
intolerável infinitamente, alojando o psiquismo em penúria e imobilidade. Essa passagem em
Freud é confirmada por Primo Levi, mas também desconfirmada.
Nos pesadelos de Levi, a promessa do prazer é anunciada e aguardada (o pedaço de pão, o estar
entre familiares e amigos, o voltar ao lar...) para depois ser desfeito. A intensidade desse desejo
se manifesta da mesma maneira como a destruição desse mesmo desejo. Não poderia o sonho
querer revelar, precisamente, o que está sendo perdido para emular o que não foi
completamente destruído e sobrevive como experiência lembrável, ficcionalizável e, assim,
como experiência que ainda pode ser revivida, ainda que brevemente, mas perenemente, nos
sonhos?
Não poderíamos incluir isso na imagem dos afogados que Levi atribuiu aos muslims (muçulmanos),
aqueles que chegaram a tal grau de submissão que até seu absoluto e incondicional
submetimento tornara-se indiferente aos seus algozes? Aqueles que se renderam aos crematórios
e viam as cinzas como seu único e inexorável destino? Não apenas aqueles em cujo olhar, em
[23]
cujo rosto não se possa ver o ‘menor pensamento' , mas também um único sonho?
Do mesmo modo é possível, também, notar hiâncias e intervalos no trabalho teórico e clínico de
Freud e seus seguidores que só o testemunho, oral ou escrito, viria a esclarecer, particularmente
no que se refere aos sonhos traumáticos, ou se quisermos, sonhos de prisão, sonhos
concentracionários.
No que se denominou de sonhos traumáticos haveria o longo caminho de pesquisar os matizes,
as formações e experiências diversas possibilitadas pelos sonhos de prisão, sonhos de
sobreviventes e vítimas que se elaboram psiquicamente no seio de experiências de ódio,
destruição e ruína. Eles não se esgotam em sonhos de realização de desejos e nem em sonhos-
pesadelos nos quais o prazer foi inteiramente abolido e tornou-se psiquicamente impossível.
As investigações sobre esse fenômeno dependem da importância dada ao sonhador e a voz
noturna que, com ele, atravessa e persiste entre as frestas abertas na total escuridão. A riqueza
dessas experiências só nos é acessível hoje a partir da produção testemunhal, da literatura de
testemunho e dos arquivos sucessivamente criados que ensejam e indicam que a temporalidade
perdida do trauma é acolhida na elaboração onírica, porque nela o tempo sequestrado da
experiência traumática não impossibilita o devir da narrativa, nem de um sujeito que, onde quer
que esteja e de onde quer que parta, suscita linguagem.
[24]
É sobre a gênese da linguagem que um sonho se elabora e é como mal de arquivo que ele
também tanto existe quanto padece.
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