Tese de Marina Lacerda
Tese de Marina Lacerda
Tese de Marina Lacerda
Neoconservadorismo:
articulação pró-família, punitivista e neoliberal na Câmara dos Deputados
Rio de Janeiro
2018
Marina Basso Lacerda
Neoconservadorismo:
articulação pró-família, punitivista e neoliberal na Câmara dos Deputados
Rio de Janeiro
2018
Marina Basso Lacerda
Neoconservadorismo:
articulação pró-família, punitivista e neoliberal na Câmara dos Deputados
Banca examinadora:
_____________________________________________
Prof. Dr. Luiz Augusto Campos (orientador)
Instituto de Estudos Sociais e Políticos – UERJ
_____________________________________________
Prof. Dr. Fabiano Guilherme Mendes Santos
Instituto de Estudos Sociais e Políticos – UERJ
_____________________________________________
Profa. Dra. Flávia Milena Biroli
Universidade de Brasília
_____________________________________________
Prof. Dr. José Leon Szwako
Instituto de Estudos Sociais e Políticos – UERJ
_____________________________________________
Prof. Dr. Ricardo Mariano
Universidade de São Paulo
Rio de Janeiro
2018
AGRADECIMENTOS
Agradeço aos meus pais, Naura Marina Basso de Lacerda e Celso Lisbôa de Lacerda, que
financiaram minha educação fundamental e média nas melhores escolas particulares.
Agradeço ao Estado brasileiro, que custeou graduação, mestrado e doutorado.
Em especial agradeço à Casa patrocinadora dessa última fase, a Câmara dos Deputados,
que comporta pluralidade de opiniões tanto do ponto de vista da representação política quanto do
ponto de vista da educação e produção de seus funcionários.
Agradeço às pessoas cujo apoio foi imprescindível à realização desta tese: Clotildes de
Jesus Vasco, Márcio Marques de Araújo e Maria Isabel Monteiro.
Agradeço a meu orientador, Prof. Dr. Luiz Augusto Campos, pela dedicação.
Agradeço, pela revisão de partes do texto, com valiosas contribuições de forma e de
conteúdo ao resultado final, ao Prof. Dr. Adalberto Moreira Cardoso, à Ana Regina Villar Peres
Amaral, ao Prof. Dr. Fabiano Guilherme Mendes Santos, ao Fernando Bola Brito, à Profa. Dra.
Flavia Millena Biroli Tokarski, ao Prof. Dr. Ivan Jairo Junckes, ao Márcio Nuno Rabat e à Silvia
Mugnatto Macedo.
Agradeço à Andressa Porto, à Carla Varea Guareschi, ao Elianildo Nascimento, ao
Geter Borges de Sousa e à Talita Victor pela ajuda em obtenção de dados relevantes à esta pesquisa.
Agradeço, finalmente, ao Rodrigo Estrela, meu amor e meu companheiro, por seu imenso
aporte intelectual.
***
Os amigos Leticia Perez e Marco Aurélio Garcia, que faleceram durante a elaboração deste
trabalho, foram protagonistas de episódios objeto de estudo. Tive oportunidade de expressar a eles
meu afeto, mas não o registro por sua participação nesta pesquisa acadêmica.
The present work analyzes the articulation around different issues of the contemporary right
wing agenda in Brazil: traditional family, popular punitivism, neoliberalism and the fight against
Bolivarianism. The focus of this investigation is on the possibility of a concerted promotion of
those issues within the Brazilian Chamber of Deputies, on who would be its protagonists and on
which arguments link those matters. The research employs a transversal understanding of the
political action in each one of the aforementioned topics. The hypothesis states that there is a
neoconservative political articulation within the Chamber, as a reconfiguration of that North
American ideology in Brazil. The analytical axis for research is the literature on this political
movement that came into prominence in the United States in the 1980s. This literature provides the
conceptual framework to test the hypothesis. The methodologies used are both quantitative and
qualitative: the analyses of plenary votes, of bills and of parliamentary speeches on the topics
indicated, as well as the profile (religious denomination and ideological commitment) of the
representatives who performed such actions. The results confirm the hypothesis, demonstrating
similarities between the performance of a group of Brazilian federal deputies and the North
American movement. The action produced in Brazil, however, contains the idiosyncrasies of a
peripheral country: there isn´t an imperialist drive, as in the United States – on the contrary, it
enables a hemispheric and non-autonomous international insertion; and the defense of neoliberal
principles is not so clear, probably because Brazilian neoconservative parliamentarians have a
lower class constituency lacking state protection. The linking of the different issues happens
through a neoconservative ideology, which has in its core the defense of Christianity and family
values as a response to social dysfunctions. The leading figures of this movement in the Brazilian
parliament are members of the Assemblies of God, a North American Pentecostal Church with a
strong presence in Brazil and probably one of the main channels of neoconservative ideological
diffusion.
Gráfico 1 – Riqueza do 0,1% da população com maior renda nos EUA, Grã-Bretanha e
França, entre 1913-1998. ............................................................................................................... 55
Gráfico 2 – Quantidade de iniciativas contra o aborto e pelo endurecimento do aborto,
contra as demandas LGBT e contra o gênero (2003-2015) ........................................................... 70
Gráfico 3 – Discursos com tema “aborto” no plenário da Câmara dos Deputados brasileira,
por ano (1991-2014) ...................................................................................................................... 71
Gráfico 4 – Contribuição dos deputados conforme grande grupo religioso (2013-2015). 87
Gráfico 5 – Contribuição dos deputados conforme sua denominação. ............................. 88
Gráfico 6 – Quantidade de iniciativas conforme denominação dos autores por tema. ...... 88
Gráfico 7 – Frequência dos tipos de argumentos por iniciativa (2003-2015). .................. 92
LISTA DE TABELAS
AC Acre
AD Assembleia de Deus
AI Ato Institucional
AL Alagoas
AM Amazonas
ANC Assembleia Nacional Constituinte
AP Amapá
ARENA Aliança Renovadora Nacional
BA Bahia
BNDES Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social
CCJC Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania
CDHM Comissão de Direitos Humanos e Minorias
CE Ceará
CGADB Convenção Geral das Assembleias de Deus no Brasil
CIA Central Intelligence Agency
CNV Comissão Nacional da Verdade
CPAD Casa Publicadora das Assembleias de Deus
CPI Comissão Parlamentar de Inquérito
CPMI Comissão Parlamentar Mista de Inquérito
CSPCCO Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado
CW Consenso de Washington
DEM Democratas
DF Distrito Federal
DIAP Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar
ENEM Exame Nacional do Ensino Médio
ERA Equal Rights Amendment
ES Espírito Santo
ESG Escola Superior de Guerra
ESLAVEC Escola de Líderes da Associação Vitória em Cristo
ESP Escola Sem Partido
EUA Estados Unidos da América
FHC Fernando Henrique Cardoso
FMI Fundo Monetário Internacional
FP Frente Parlamentar
FPE Frente Parlamentar Evangélica
FPSP Frente Parlamentar da Segurança Pública
GO Goiás
GOP Grand Old Party
IEQ Igreja do Evangelho Quadrangular
INC Indicação
INFOPEN Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias
ISP Instituto Sou da Paz
IURD Igreja Universal do Reino de Deus
LGBT Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transsexuais e Travestis
LIC Low Intensity Conflict
MA Maranhão
MDB Movimento Democrático Brasileiro
MEC Ministério da Educação
MERCOSUL Mercado Comum do Sul
MG Minas Gerais
MS Mato Grosso do Sul
MST Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra
MT Mato Grosso
NRB National Religious Broadcasters
OAB Ordem dos Advogados do Brasil
OLP Organização para a Libertação da Palestina
ONU Organização das Nações Unidas
PA Pará
PB Paraíba
PCB Partido Comunista Brasileiro
PC do B Partido Comunista do Brasil
PCO Partido da Causa Operária
PDC Projeto de Decreto Legislativo
PDS Partido Democrático Social
PDT Partido Democrático Trabalhista
PE Pernambuco
PEC Proposta de Emenda à Constituição
PEN Partido Ecológico Nacional
PEQ Requerimento
PFL Partido da Frente Liberal
PHS Partido Humanista Da Solidariedade
PI Piauí
PL Projeto de Lei
PM Polícia Militar
PMB Partido da Mulher Brasileira
PMDB Partido do Movimento Democrático Brasileiro
PMN Partido da Mobilização Nacional
PNE Plano Nacional de Educação
PODE Podemos
PP Partido Progressista
PPL Partido Pátria Livre
PPS Partido Popular Socialista
PR Paraná
PR Partido da República
PRB Partido Republicano Brasileiro
PROS Partido Republicano da Ordem Social
PRP Partido Republicano Progressista
PRTB Partido Renovador Trabalhista Brasileiro
PSB Partido Socialista Brasileiro
PSC Partido Social Cristão
PSD Partido Social Democrático
PSDB Partido da Social Democracia Brasileira
PSDC Partido Social Democrata Cristão
PSL Partido Social Liberal
PSOL Partido Socialismo e Liberdade
PSTU Partido Socialista Dos Trabalhadores Unificado
PT Partido dos Trabalhadores
PTB Partido Trabalhista Brasileiro
PTC Partido Trabalhista Cristão
PV Partido Verde
REDE Rede Sustentabilidade
RIC Requerimento de informação
RJ Rio de Janeiro
RN Rio Grande do Norte
RO Rondônia
RR Roraima
RS Rio Grande do Sul
SC Santa Catarina
SD Solidariedade
SE Sergipe
SP São Paulo
STF Supremo Tribunal Federal
STJ Superior Tribunal de Justiça
SUS Sistema Único de Saúde
TO Tocantins
TP Teologia da Prosperidade
UNESCO Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
UNICEF Fundo das Nações Unidas para a Infância
URSS União das Repúblicas Socialistas Soviéticas
USA United States of America
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................... 17
1. NEOCONSERVADORISMO NOS ESTADOS UNIDOS: HISTÓRICO E
CONCEITO ..................................................................................................................... 27
1.1. Sentidos da expressão “neoconservadorismo” .............................................................. 27
1.2. Delimitação conceitual: neoconservadorismo, conservadorismo e direitismo ........... 29
1.2.1. Definição de conservadorismo por Samuel Huntington ................................................. 29
1.2.2. O neoconservadorismo e a definição situacional de conservadorismo ........................... 31
1.2.3. Neoconservadorismo, direita política e peculiaridade noeconservadora ........................ 33
1.3. Elementos do neoconservadorismo ................................................................................ 35
1.3.1. Direita cristã ...................................................................................................................... 36
1.3.1.1. Breve histórico da atuação política da direita cristã nos EUA .................................... 36
1.3.1.2. Ascensão da direita cristã como reação ao avanço feminista e dos homossexuais ..... 38
1.3.1.3. Reaganismo e direita cristã América Latina ..................................................................... 41
1.3.2. Defesa da família patriarcal ............................................................................................... 45
1.3.3. Sionismo ............................................................................................................................ 48
1.3.4. Militarismo anticomunista ................................................................................................. 50
1.3.5. Idealismo punitivo ............................................................................................................. 52
1.3.6. Neoliberalismo .................................................................................................................. 54
1.3.6.1. Histórico do neoliberalismo ........................................................................................ 54
1.3.6.2. Neoliberalismo e neoconservadorismo: a aliança paradoxal ...................................... 57
1.3.6.3. Estado de bem-estar social corporativo ....................................................................... 60
1.3.6.4. Libertarismo, liberalismo e neoconservadorismo ....................................................... 61
1.4. Neoconservadorismo pós-Reagan .................................................................................. 62
1.5. Conclusão ......................................................................................................................... 64
2. DEFESA DA FAMÍLIA TRADICIONAL: ATUAÇÃO PARLAMENTAR EM
COMBATE AO FEMINISMO E ÀS DEMANDAS DO MOVIMENTO LGBT ...... 66
2.1. Metodologia do capítulo .................................................................................................. 67
2.2. Ação pró-família como reação a movimentos feministas e LGBT .............................. 70
2.2.1. Reação contra o aborto ...................................................................................................... 70
2.2.2. Reação contra a agenda LGBT .......................................................................................... 75
2.2.3. Combate à ideologia de gênero ......................................................................................... 78
2.2.3.1. Criação da ideologia de gênero ........................................................................................ 82
2.2.4. A 55ª Legislatura ............................................................................................................... 84
2.3. Perfil dos protagonistas da reação pró-família ............................................................. 85
2.3.1. Características gerais ......................................................................................................... 85
2.3.2. Denominação dos parlamentares protagonistas................................................................. 87
2.3.3. Considerações a respeito do protagonismo evangélico ..................................................... 90
2.4. Argumentos utilizados nas iniciativas ........................................................................... 92
2.5. O cerne da agenda neoconservadora na Câmara dos Deputados no Brasil .............. 96
2.6. O caso do Estatuto da Família ........................................................................................ 97
3. IDEALISMO PUNITIVO: ATUAÇÃO PARLAMENTAR PELO RIGOR
CRIMINAL .................................................................................................................... 102
3.1. Metodologia do capítulo ................................................................................................ 102
3.2. Contornos da agenda neoconservadora punitivista ................................................... 103
3.3. Análise das pautas punitivistas..................................................................................... 105
3.3.1. Redução da maioridade penal .......................................................................................... 105
3.3.2. Exibição das fotos de crianças e adolescentes em conflito com a lei .............................. 110
3.3.3. Alterações da lei de drogas .............................................................................................. 111
3.3.4. Autos de resistência ......................................................................................................... 114
3.3.5. Transformação do homicídio de policiais em crime hediondo........................................ 116
3.3.6. Obstruções à Comissão Nacional da Verdade ................................................................. 120
3.3.7. Flagrante provado ............................................................................................................ 123
3.3.8. Dez medidas contra a corrupção ...................................................................................... 125
3.3.9. Revogação do Estatuto do Desarmamento ...................................................................... 128
3.3.10. Privatização do sistema penitenciário.............................................................................. 130
3.3.11. Outros temas: pena de morte e lei antiterror.................................................................... 131
3.3.12. Análise quantitativa da militância dos protagonistas da ação pró-família no
neoconservadorismo criminal .......................................................................................... 133
3.4. Articulação entre as bancadas evangélica e da segurança......................................... 135
3.5. Articulação neoconservadora sobre a temática de direitos humanos ....................... 141
3.6. Luta do bem contra o mal ............................................................................................. 142
4. BOLIVARIANISMO E SIONISMO: INSERÇÃO INTERNACIONAL RELIGIOSA
E ANTICOMUNISTA ................................................................................................... 146
4.1. Metodologia do capítulo ................................................................................................ 146
4.2. Bolivarianismo: a nova ameaça comunista ................................................................. 148
4.3. Manifestações dos parlamentares a respeito do socialismo no século XXI .............. 150
4.4. Neoconservadorismo de periferia................................................................................. 157
4.5. Israel: os aliados no meio-oriente ................................................................................. 158
4.6. Posicionamento dos deputados sobre Israel ................................................................ 160
4.7. Comunidade internacional de fé .................................................................................. 165
5. NEOLIBERALISMO: ATUAÇÃO PARLAMENTAR POR
DESNACIONALIZAÇÃO, DESREGULAMENTAÇÃO, PRIVATIZAÇÃO E
VALORES DE MERCADO ......................................................................................... 167
5.1. Metodologia para o capítulo ......................................................................................... 167
5.1.1. Importância da clivagem governo/oposição na política econômica ................................ 168
5.1.2. Postulados do Consenso de Washington em pauta .......................................................... 169
5.2. Análise das votações que refletem as premissas neoliberais ...................................... 171
5.2.1. Alteração da participação da Petrobrás na exploração do pré-sal ................................... 171
5.2.2. Teto dos gastos públicos .................................................................................................. 174
5.2.3. Reforma trabalhista.......................................................................................................... 176
5.3. O que explica a diferença nas votações? ...................................................................... 179
5.4. Moralismo compensatório ............................................................................................ 182
5.5. Neoliberalismo punitivo ................................................................................................ 183
6. CONSIDERAÇÕES SOBRE A ATUAÇÃO DA ASSEMBLEIA DE DEUS NA
POLÍTICA BRASILEIRA: CANAIS COMUNICANTES BRASIL-ESTADOS
UNIDOS .......................................................................................................................... 185
6.1. Histórico da presença da AD no Brasil e seus laços com os EUA ............................. 186
6.2. Breve histórico da relação entre pentecostais e política no Brasil ............................ 192
6.2.1. Ditadura militar de 1964 .................................................................................................. 193
6.2.2. Redemocratização ............................................................................................................ 195
6.3. Vasos comunicantes entre Estados Unidos e Brasil.................................................... 196
CONCLUSÃO............................................................................................................................ 199
REFERÊNCIAS ........................................................................................................................ 207
APÊNDICE ................................................................................................................................ 218
17
INTRODUÇÃO
1
A PEC 171/1993, que trata da alteração da maioridade penal, foi aprovada pelo Plenário da Câmara mas até a
finalização desta tese não foi aprovada pelo Senado, não tendo se tornado, portanto, norma jurídica.
18
discute a conexão da bancada evangélica com a defesa de Israel. Uma literatura especializada em
relações internacionais explora as formas de inserção do Brasil no mundo e em relação a seus
vizinhos (Lima, 2005). A posição dos parlamentares a respeito da intervenção do Estado na
economia é objeto de farta literatura (v. g. Zucco Jr., 2011).
Esses trabalhos demonstram a existência de uma importante produção acadêmica e
multidisciplinar em torno dos temas citados. Mas a ação política sobre cada um desses assuntos
costuma ser analisada isoladamente. A contribuição que se espera com esta tese é justamente
estudar essas matérias conjuntamente. Sendo assim, o objetivo da presente pesquisa é analisar a
articulação em torno de diferentes temas da agenda legislativa contemporânea: o ativismo pela
família tradicional, pelo punitivismo, pelo neoliberalismo, em combate ao bolivarianismo e em
defesa do Estado de Israel. Investiga-se se existe uma militância concertada nesses itens, quem
seriam seus protagonistas e quais argumentos unem esses assuntos.
A referência temporal é a legislatura2 iniciada em 2015. É nesse ano que toma posse a
composição mais conservadora do Congresso desde 1964 (Souza e Caram, 2014), quando Eduardo
Cunha assume a Presidência da Câmara dos Deputados. É nessa legislatura que, como veremos no
Capítulo II, expande-se a ação já consolidada em nome da família tradicional. É também nessa
legislatura que, como identificam Codato, Bolognesi e Roeder (2015:127, 32-4, 39), cresce
significativamente na Câmara uma direita política que defende radicalmente os valores da família
tradicional e o liberalismo econômico com intervenção limitada do Estado na economia para
garantir igualdade de oportunidades.
O eixo analítico para a investigação é a literatura a respeito do neoconservadorismo.
Neoconservadorismo se refere originalmente à coalizão neoconservadora que reuniu parcela
majoritária do movimento religioso evangélico, elementos da direita secular do Partido
Republicano e intelectuais neoconservadores na eleição de Ronald Reagan como presidente dos
Estados Unidos em 1980. O movimento de reação às políticas de bem-estar social e ao avanço de
movimentos feministas, LGBT (para usar uma nomenclatura contemporânea 3 ) e pelos direitos
2
Legislatura é o período de quatro anos entre duas eleições para os assentos no Congresso Nacional. A
51ª Legislatura corresponde aos anos de 1999-2002; a 52ª, 2003-2006, a 53ª, 2007-2010; a 54ª, 2011-2014 e a 55ª,
2015-2019.
3
Até meados da década de 1990 falava-se em homossexuais. A referência foi sendo gradualmente ampliada para
incorporar, além de gays e lésbicas, também bissexuais, transgêneros e transexuais – daí a sigla que se refere às
pessoas LGBT. Hoje uma sigla mais completa seria LGBTTIQ+, ou seja, lésbicas, gays, bissexuais, transexuais,
transgêneros, intersex e queer (Florian, 2017). O “+” se refere às múltiplas identidades de gênero e orientações
sexuais que não se enquadram nas letras anteriores. Mas nesta tese a expressão LGBT será a usada, por ser a mais
19
civis, desde a década de 1960, cimentou uma mentalidade neoconservadora e tornou possível a
coalizão entre diferentes tradições políticas.
Esse ideário político alia idealismo punitivo, absolutismo do livre mercado, militarismo
anticomunista e valores da direita cristã. Como os críticos do neoliberalismo afirmam –
notadamente Harvey (2005) –, a crescente falta de solidariedade resultado do desmonte das
políticas públicas do pós-guerra redunda em desagregação social. O que a preenche, no discurso
neoconservador, são os valores religiosos e a defesa da família “natural”, de um lado, e, para
aqueles que não se ajustam, a punição rigorosa via sistema criminal. As disfunções sociais são
vistas, pelos neoconservadores, não como resultado da falta de programas estatais de inclusão, mas
como resultado da falta de famílias fortalecidas. No limite, se a família não funcionar, o que resta
é a “lei-e-ordem”.
A aliança inusitada entre libertarismo econômico e tradicionalismo moral e religioso tem
um apelo forte, que é unir a promessa de progresso material com valores transcendentes e laços
sociais sólidos. Além disso, a linguagem evangélica da luta entre o bem e o mal é facilmente
comunicável com a luta militarista anticomunista, contra, à época, a União Soviética. A defesa de
Israel é agregada como um elemento conjuntural, apoiada por motivos religiosos (Diamond, 1989).
A hipótese central desta tese é de que há, pelo menos desde 2015, um movimento de
orientação política neoconservadora na Câmara dos Deputados brasileira. Isso será verdade se se
verificar que existe uma articulação que une: a) defesa de valores morais religiosos e da família
tradicional em reação ao feminismo e à agenda LGBT; b) punitivismo; c) militarismo
anticomunista; d) defesa de Israel; e e) neoliberalismo. Tudo isso deve ser informado pela atuação
política da direita cristã.
corrente no Brasil – por exemplo, a nomenclatura do órgão que inclui representantes do governo e da sociedade civil
para propor diretrizes para o tema se chama Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos
Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (CNCD/LGBT). No presente trabalho, quando a
expressão LGBT se referir à origem do movimento neoconservador, tratar-se-á sempre de um uso antes de o termo
existir.
20
estado de graça, mas sim para usufruir de suas posses neste mundo. Esse aspecto será
particularmente relevante quando discutirmos a adesão evangélica ao neoliberalismo.
É preciso fazer ainda outro esclarecimento conceitual, a respeito de dois termos que estarão
presentes durante todo o texto: “bancada” e “Frente Parlamentar”. A bancada evangélica existe
desde a Constituinte, enquanto a Frente Parlamentar Evangélica foi criada em 2003. Frente
Parlamentar, pela definição jurídica, é a associação suprapartidária de pelo menos um terço de
membros do Congresso Nacional, destinada a promover o aprimoramento da legislação sobre
determinado setor da sociedade4. Mas a definição formal não auxilia a compreender sua aplicação
prática e sua diferença com o conceito de bancada, que também é uma associação suprapartidária
de parlamentares que atuam em determinado tema.
Na prática uma Frente Parlamentar é uma lista de assinaturas de pelo menos 171 deputados.
Esses deputados autografam voluntariamente o pedido de criação de determinada FP; isso, porém,
não significa que os parlamentares subscritores efetivamente atuem naquela temática, ou mesmo
que apoie as demandas centrais daquele grupo. Como aponta Antônio Augusto Queiroz, diretor do
Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar, a exigência regimental de número mínimo
de assinaturas para as Frentes acaba “tornando comum um companheirismo na linha do ‘assina a
minha, que eu assino a sua’” (Medeiros e Fonseca, 2016). Já a bancada é um grupo de
parlamentares que realmente atua em prol de determinada pauta. Assim, a identificação de uma
bancada é mais difícil, porque demanda verificar se um político milita de fato numa agenda ou
pertence realmente a um setor.
A diferença entre Frente e bancada é bem ilustrada pelo caso evangélico. Segundo o portal
eletrônico da Câmara dos Deputados a Frente Parlamentar Evangélica tem, na 55ª Legislatura, 198
deputados signatários. Dentre eles encontramos, por exemplo, o deputado Valmir Assunção
(PT/BA) e o deputado Paulo Teixeira (PT/SP), que não são evangélicos e que têm discursos
registrados em Plenário defendendo a pauta LGBT, o que contraria um dos cernes da atuação da
bancada evangélica. A bancada evangélica tem um tamanho bem menor: 74 membros (Diap, 2014)
– ou seja, foram identificados 74 indivíduos que professam a fé protestante tradicional ou
pentecostal na Câmara dos Deputados.
4
Ato da Mesa Diretora da Câmara dos Deputados de nº 69, publicado em 10/11/2005.
22
Mesmo assim as listas de apoio das Frentes têm significado. Ainda que não a totalidade de
seus membros, parte expressiva deles certamente endossa o que é o núcleo da agenda política de
uma frente. Os números partidários demostram isso. O PSOL é o partido que menos tem afinidade
com a Frente da Segurança Pública, que defende de regra uma agenda punitivista. O PC do B e o
PSOL são os que têm proporcionalmente menos membros da Frente da Agropecuária, que defende
a pauta do agronegócio. PSOL e PT são os que mais apoiam a Frente de Apoio aos Povos Indígenas,
e assim por diante. Durante a tese tomaremos por vezes a Frente Evangélica (lista de parlamentares
que subscrevem o coletivo) e por vezes a bancada evangélica (lista de fieis protestantes, conforme
lista do DIAP) como critério de análise, sempre de maneira especificada. Analisaremos ainda a
denominação religiosa de cada indivíduo.
As fontes principais desta tese, além da composição das Frentes e das bancadas, serão
discursos e proposições legislativas. Proposição é toda matéria sujeita à deliberação da Câmara,
seja ela uma proposição principal (v.g. um projeto de lei, uma proposta de emenda à constituição),
seja ela uma proposição acessória, como um requerimento ou um parecer. Considerando que cada
grande tema (gênero, justiça criminal, política externa e neoliberalismo) é tratado por uma literatura
diferente e tem uma relevância específica no conceito de neoconservadorismo, os procedimentos
de seleção dos dados e de sua análise irão variar conforme o capítulo.
O Capítulo I apresentará o conceito do neoconservadorismo e sua história. É um capítulo
de revisão bibliográfica, assim como o Capítulo V, a respeito da relação entre pentecostais e política
no Brasil. Nos Capítulos II, III e IV trataremos, item a item, dos temas que integrariam uma ação
de feição neoconservadora no Brasil. Eles se baseiam em pesquisa empírica, cujos critérios
explicaremos brevemente e seguida e mais detidamente no corpo da tese.
O Capítulo II, sobre a agenda conservadora relacionada à moral sexual, se baseou em um
banco de dados formado por proposições e discursos em plenário que se referem a essas
proposições. Embora o objetivo desta tese resida em investigar se existe, contemporaneamente, na
55ª Legislatura (iniciada em 2015), uma ação neoconservadora, as fontes do Capítulo II são
relativas aos anos de 2003 a 2015.
Esse capítulo é o que tem o marco temporal de análise mais extenso, porque, como veremos,
o neoconservadorismo nos EUA surge em reação ao movimento feminista e LGBT; portanto, para
identificar se existe um crescimento na militância legislativa contra essas agendas e se há uma
23
dinâmica de reação no Brasil, é necessária uma análise ao longo das últimas legislaturas. O marco
inicial, 2003, foi o escolhido porque, dentre outros motivos, esse é o ano de criação formal da
Frente Parlamentar Evangélica. O marco final, 2015, ocorre simplesmente pelo período de
elaboração desta tese.
Esse levantamento possibilitou identificar, além da dinâmica de reação, quais são os
deputados protagonistas da ação pró-família, assim como seu perfil – denominação religiosa,
partido e pertencimento a bancadas. O Capítulo também se utiliza do estudo dos discursos e das
justificativas das proposições, buscando identificar os argumentos mobilizados para a defesa dessas
pautas.
No mesmo capítulo a tese dialoga com publicações anteriores sobre a ação da bancada
evangélica em relação à questão LGBT e ao aborto (Gomes, Natividade e Menezes, 2009;
Machado, 2012a; b; Vital e Lopes, 2013). Porém, diferente desses trabalhos, esta pesquisa não
parte do grupo de parlamentes evangélicos, e sim das iniciativas e proposições pró-família para
depois se identificar o perfil sociológico de seus protagonistas – que, de fato, são
predominantemente pentecostais.
É importante salientar ainda que, enquanto a literatura especializada enfoca a atuação da
bancada evangélica em respeito à moral sexual (v.g Vital e Lopes, 2013), esta tese trata da ação
articulada, centrada na bancada evangélica – mas com a aderência de outros parlamentares –, não
apenas na defesa da família tradicional, mas em outros âmbitos políticos e socioeconômicos, que
traduzem, afinal, uma agenda neoconservadora.
O Capítulo III, sobre a face bélica do que seria o neoconservadorismo no Brasil, valeu-se
de dois conjuntos de informações. O primeiro deles foi o estudo de temas da agenda legislativa
contemporânea. Foram selecionadas dez pautas emblemáticas debatidas na 55ª Legislatura que
refletissem, na Câmara dos Deputados, a agenda criminal neoconservadora, a partir de critérios
apresentados pela literatura (Argüello, 2005; Dornelles, 2008). Será verificado se são atuantes
nessas pautas os integrantes da bancada evangélica (considerando a centralidade da direita cristã
para o neoconservadorismo) e também os protagonistas da ação sobre a moral sexual, vista no
capítulo anterior. Serão analisados ainda os argumentos utilizados por esses sujeitos para a defesa
da agenda punitivista.
O segundo conjunto de informações se refere à relação dos integrantes das bancadas e das
Frentes da segurança pública e evangélica na 55ª Legislatura. Investigar-se-á se existe uma atuação
24
cruzada dos respectivos membros nas pautas indicadas e em Comissões Especiais de interesse
prioritário para cara um dos grupos. O objetivo principal do capítulo é buscar se existe uma
articulação da defesa dos temas da moral sexual e do punitivismo, seja na militância concatenada
a respeito do tema, seja nas justificativas usadas como fundamento das pautas.
Para analisar a militância neoconservadora a respeito da política externa (Capítulo IV) e do
neoliberalismo (Capítulo V), foi selecionado um grupo de deputados a partir dos protagonistas
encontrados nos Capítulos II e III. Separaram-se os deputados que tiveram uma atuação
especialmente ativa na questão da moral sexual e que também atuaram pelo rigor penal. Os
supostos neoconservadores não se resumiriam a esse grupo. O objetivo da seleção é ter um conjunto
de parlamentares particularmente militante no que seria uma agenda neoconservadora, para testar
se eles aderem a outras pautas desse ideário.
O Capítulo IV se vale das opiniões desses parlamentares expressas no legislativo ou em
outros meios de comunicação5 a respeito do que seria a agenda externa do neoconservadorismo.
Em primeiro lugar, a respeito dos inimigos a serem combatidos na arena internacional. Nos Estados
Unidos, a militância neoconservadora, fundada no contexto da Guerra Fria, tinha como cerne a luta
contra a União Soviética. Contemporaneamente no Brasil o combate ao que seria o comunismo se
expressaria na ação contra o “socialismo do século XXI” – expressão de Hugo Chávez que sintetiza
políticas adotadas por países vizinhos no sentido da inclusão e da soberania nacional, chamadas de
bolivarianas por seus críticos brasileiros. Verificar-se-á se os deputados que integram a seleção dos
militantes mais ativos pró-família e pró-punitivismo se manifestam contra o bolivarianismo. Serão
discutidos os argumentos usados a partir da localização do Brasil como um Estado periférico
(Guimarães, 2003; Lima, 2005).
Os aliados preferenciais do neoconservadorismo norte-americano nas relações exteriores
era Israel, por razões estratégicas, ideológicas e bíblicas. Investigar-se-á se isso se repete no Brasil,
a partir das opiniões expressas dos parlamentares selecionados. Será feito ainda um diálogo com a
literatura que já trata da articulação entre a bancada evangélica e a pauta sionista (Gonçalves, 2017).
5
A escolha de pronunciamentos ocorre porque as agendas de política externa investigadas no Capítulo IV são
fragilmente expressas em proposições legislativas.
25
disputa sobre política econômica nesse período. É que os governos petistas não encamparam
agendas legislativas nem tão neoliberais nem tão desenvolvimentistas (Singer, 2012). Diferente
disso, Michel Temer, desde o início do exercício da Presidência em 2016, defendeu agendas de
política econômica sobre as quais pesam acentuada polaridade ideológica. Selecionaram-se, assim,
para estudo, projetos que refletem a disputa de opinião a respeito de princípios do Consenso de
Washington: mudança no regime de exploração do pré-sal, Novo Regime Fiscal e reforma
trabalhista. As respectivas votações nominais em Plenário, ocorridas entre 2016 e 2017, foram
analisadas, buscando, novamente, identificar a posição dos parlamentares evangélicos e daqueles
que seriam os protagonistas da ação neoconservadora, conforme o grupo selecionado para estudo.
A militância contra a intervenção do Estado no domínio econômico é tratada longamente
por autores que estudam posições político-ideológicas no Legislativo, identificando essas posturas
como posturas de direita ou conservadoras. Mainwaring, Power e Meneguello (2000), por exemplo,
têm estudo sobre os partidos conservadores do Brasil, com ênfase no pós-1985. Uma das teses do
livro é a respeito das características desses partidos: neoliberais na economia, conservadores
“quanto a questões como a segurança pública, o aborto e a moral familiar”. Essa tríade (moralismo
comportamental, rigor penal e neoliberalismo) é também o cerne do neoconservadorismo de
origem estadunidense.
É evidente que a militância contra liberdades comportamentais, a militância autoritária, a
militância anticomunista e a militância neoliberal não surgem no Brasil no século XXI e não devem
ser consideradas simples importações dos Estados Unidos. A peculiaridade desse
neoconservadorismo que passaria a se manifestar mais recentemente na Câmara dos Deputados
residiria em dois aspectos centrais. O primeiro deles seria o amálgama entre os temas, tendo como
eixo de gravidade a atuação da direita cristã e informados pela defesa de que a família – e não o
Estado – é a resposta para toda ordem de disfunções sociais. O segundo aspecto seria uma dinâmica
própria de reação. Quando os movimentos feministas e LGBT ganharam espaço na sociedade e
chegaram a ter algumas demandas institucionalizadas, a reação a essas pautas, justificada na defesa
da família tradicional, passaria ser o eixo dessa ação política neoconservadora, cada vez mais
radicalizada. A presença ou não desses elementos será investigada ao longo da tese.
O Capítulo VI, finalmente, trará considerações a respeito da Assembleia de Deus – igreja a
que Eduardo Cunha se filiou à época em que passou a presidir a Câmara –, denominação cujos
membros constituem a maioria dos protagonistas da ação neoconservadora, como veremos.
26
Conforme o liberalismo foi mudando a partir da década de 1960 para incluir demandas da
“nova esquerda”, os intelectuais neoconservadores foram movendo-se para uma posição mais
conservadora ou mais à direita. Eles se opõem então a um “liberalismo alterado”, que desafiou o
status quo em apoio ao Great Society – os programas do presidente democrata Lyndon Johnson
pela eliminação da pobreza e a desigualdade racial, fundado nas reivindicações dos movimentos
pelos direitos civis, contra guerra do Vietnã, pela libertação da mulher e por cotas e ações
afirmativas. A ascensão estudantil, Black Power e feminista criou a preocupação com o fato de que
as exigências por maior igualdade poderiam sair do controle. O neoconservadorismo se revelou,
então, propriamente conservador por apostar na visão de ameaça e não de oportunidade, cultivando
pessimismo sobre a democracia e a mudança social (Diamond, 1995:180; Mueller, 1981:10-11;
Noble, 2007:112; Steinfels, 2013 [1979]:55, 59, 81, 211).
Nesse contexto os intelectuais neoconservadores, de início ligados à direita do Partido
Democrata, abandonaram-no e aliaram-se à direita secular do Partido Republicano e à direita cristã.
A oposição àqueles movimentos reivindicatórios fomentou, portanto, a aliança neoconservadora –
também chamada de nova direita6 –, que se consolidou no processo de eleição de Ronald Reagan
para a presidência do Estados Unidos, em 1981, e que deu ao Partido Republicano o controle do
Senado dos Estados Unidos pela primeira vez desde 1952. Trata-se do neoconservadorismo como
movimento político.
A aproximação teria acontecido pelas pautas comuns: a agenda interna de valores morais
tradicionais – prioridade da nova direita secular e da direita cristã –, a luta contra o comunismo,
Israel e política externa – prioridade dos intelectuais neoconservadores 7 – e defesa da não
intervenção do Estado na economia – agenda comum a todos os integrantes da aliança. Irving
Kristol é um ícone do pensamento que representa a coalizão. Para ele o tradicionalismo moral seria
6
Nesta tese “nova direita” e a “coalizão neoconservadora” serão tomadas como expressões equivalentes, como
fazem Himmelstein (1983:13-14); Petchesky (1981:206); Pierucci (1987:42-3). Em outra acepção, a “nova direita” é
a denominação dada à classe política da direita secular que integrou a aliança – ou seja, é o nome de um componente
da aliança e não o nome da aliança em si. É o que defende Sara Diamond (1995:165, 78-81, 91, 95, 202), para quem
foram basicamente três grupos políticos que se associaram: os intelectuais neoconservadores, a “nova direita”
(elemento da direita secular integrante do Partido Republicano) e a direita cristã. Trata-se, porém, apenas de
nomenclaturas diferentes para a mesma realidade.
7
Steinfels (2013:pos.211, 237) pondera que alguns intelectuais neoconservadores foram francamente hostis à
aproximação à direita religiosa evangélica em questões de aborto ou a interferência do Estado na vida familiar, mas
só raramente faziam essas divergências saírem em campo aberto. Um divergente digno de nota é Friedrich Von
Hayek, que nunca se identificou como conservador ou neoconservador.
29
tão importante quanto as questões econômicas e de política externa (Diamond, 1995:207 e 74;
Mueller, 1981:10-12).
Neoconservadorismo, nesta tese, não se refere ao movimento intelectual. Refere-se, sim, ao
movimento político – à coalizão neoconservadora – e ao ideário resultante dessa aliança. Neste
capítulo abordaremos o histórico do neoconservadorismo e seus elementos, que servirão como eixo
analítico da presente pesquisa. Antes, porém, são necessárias algumas delimitações conceituais.
defendida por Burke não era nem primariamente feudal nem exclusivamente aristocratica; (b)
Burke estava preocupado com a consruação de outras sociedades, como a indiana e a americana;
(c) Burke era um liberal, um Whig, e um comerciante. Para Huntington a teoria autônoma também
falha em entender Burke porque: (a) todas as falas e escritos de Burke eram direcionados a
problemas e necessidades imediatos; (b) ele rejeitava que fossem desejáveis ou necessários
principios universalmene aplicáveis e (c) os principais elementos de seu pensamento político foram
direcionados para justificar instituições estabelecidas. Para Hungtinton, afinal, Burke defendia as
instituições de um contexto preciso. Seria, portanto, um conservador na definição situacional.
A teoria situacional é a defendida por Huntington e a que será adotada nesta tese. De acordo
com essa perspectiva, o conservadorismo é posicional e se desenvolve conforme necessidades
histórias precisas. A ideologia conservadora é produto de intenso conflito ideológico e social. Ela
só surge quando forças sociais que desafiam a ordem estabelecida se tornam relevantes o suficiente
para apresentar perigo claro e presente às instituições. O conservadorismo, assim, é a resistência
que existe em um contexto especifico, articulada, sistemática e teoricamente elaborada à mudança
(Huntington, 1957:457-8, 61).
Para Huntington o neoconservadorismo não seria conservador, de acordo com sua teoria
situacional. Mas os argumentos do autor para excluir o neoconservadorismo da definição
situacional não procedem. Vejamos.
Huntington, que escreveu em 1957 nos Estados Unidos, afirma que faltavam aos
neoconservadores de então características próprias de um movimento conservador. Os
neoconservadores, para ele, careciam de certeza sobre quais princípios eles pretendiam defender:
alguns pregavam livre mercado, outros eram aristocratas. Ele diz também que os neoconservadores
eram muito vagos quanto às ameaças que pretendiam combater – alguns enfrentavam o liberalismo,
outros o modernismo, outros o racionalismo ou o irracionalismo (Huntington, 1957:471-72).
Sobre isso, é preciso anotar que Huntington escreve ainda durante o movimento intelectual
neoconservador, na fase inicial da produção dos intelectuais neoconservadores, antes de
consolidada a coalizão neoconservadora. Por isso não se confirmou na História o argumento de
32
que o neoconservadorismo não sabe quais princípios defender. Se isso não era claro em 1957, se
tornou claro quando a coalizão neoconservadora foi firmada, a partir dos anos 1980.
Além disso, para Huntington (1957:472), os neoconservadores falhariam em descobrir uma
tradição conservadora nos Estados Unidos. Para o autor, o conservadorismo seria necessário para
defender a tradição liberal dos EUA contra o desafio do comunismo8. O argumento de Shadia
Drury (1999:138-9, 152) vai no mesmo sentido. Para ela, o neoconservadorismo é radical e
reacionário, contrário à tradição liberal dos Estados Unidos9. O radicalismo seria expresso, por
exemplo, nas pautas contra o “outro”, contra minorias sexuais, e na defesa enfática dos
neoconservadores da Guerra do Vietnam, e por uma postura muito enfática contra a União
Soviética e em relação ao conflito entre árabes e israelenses.
Ocorre que definir o que é o verdadeiro e o falso conservadorismo depende de um consenso
sobre quais as reais instituições e valores de uma comunidade política. A própria Drury (1999:177),
no fim de seu livro, assume que os Estados Unidos são no fundo mais puritanos do que liberais.
Essa consideração da autora – que contradiz sua afirmação de que a tradição estadunidense seria a
liberal – confirma que não é simples afirmar que o neoconservadorismo não é um movimento
conservador, pois ela mesma tergiversa sobre sua opinião acerca do que seria a verdadeira tradição
do país – se liberal ou puritana.
O neoconservadorismo é, sim, conservador, nos moldes definidos por Huntington em sua
teoria situacional. Veremos ao longo deste capítulo que o neoconservadorismo procura preservar a
ordem social em um contexto específico de ameaça. Essas ameaças seriam provenientes das
políticas de bem-estar social, que reduziam a desigualdade, e também dos movimentos LGBT e
feminista, cujas pautas passam a ser recebidas pelo poder público. Isso posto, agora verifiquemos
por que o neoconservadorismo pertence à direita política.
8
Não há qualquer dicotomia entre conservadorismo e liberalismo para Huntington. Essa oposição existe somente
para a teoria aristocrática, que coloca o conservadorismo como a teoria oposta às mudanças ocorridas na história
ocidental entre os séculos XVII e XVIII. Para Huntington o conservadorismo pode ser, inclusive, necessário para a
defesa do próprio liberalismo. O conservadorismo é, para o autor, oposto ao radicalismo – desejo de mudança
profunda, não importa qual posição política substantiva defenda (Huntington, 1957:460, 472).
9
Em outro momento do livro, Shadia Drury (1999:XIII, 138-9) adota a teoria aristocrática. Conservadorismo seria
então a defesa de ideais de hierarquia, unidade, ordem e reciprocidade realizados mais proximamente durante a Idade
Média. Com o sucesso da Revolução Francesa e do liberalismo, a direita, derrotada, teria virado radical: não quereria
mais resistir à mudança, mas sim estava ansiosa para reverter a revolução liberal. Nesse sentido de fato o
neoconservadorismo não seria conservador, porque não procuraria defender hierarquias medievais.
33
“Direita e esquerda” é uma linguagem posicional utilizada pela ciência política para se
referir a grupos de posturas ideológicas. O uso dos termos deriva da Assembleia Constituinte que
se seguiu à Revolução Francesa: “(...) como em todas as reuniões humanas, o semelhante começa
a adaptar-se por si próprio ao semelhante (...). Há um lado direito, um lado esquerdo; (..) o Côté
Droit, conservador, o Côté Gauche, destruidor (...)” (Carlyle, 1962 [1871]:192). A direita era então
identificada “com posições aristocráticas, tradicionalistas e monárquicas; a esquerda com
alinhamentos democráticos, racionalistas e, pelo menos potencialmente, republicanos” (Fernandes,
1995:108).
Ao longo do século XIX, com a difusão do marxismo e do movimento operário, a posição
de esquerda passou a incorporar a defesa dos interesses da classe proletária. A socialdemocracia e,
em 1917, a Revolução Russa fizeram com que a burguesia e a defesa do capitalismo se deslocassem
para a direita. O keynesianismo, a partir da década de 1930, enfatiza a oposição entre intervenção
do Estado, à esquerda, e liberdade do mercado, à direita (Tarouco e Madeira, 2009:3; 2013:151).
Alguns autores, assim, tratam direita e conservadorismo como sinônimos, já que os anseios
de mudança, em geral, estão relacionados a posições de esquerda. Mas outros autores, como Benoit
e Benoit e Laver (2006:2, 13 e 14, 103, 28, 30, 32, 41, 42, 52), consideram que direita e
conservadorismo não se confundem: direita se referiria a questões econômicas e conservadorismo
a temas morais e culturais.
Esta tese não se valerá da diferenciação proposta por Benoit e Laver; tampouco tomará os
termos como sinônimos, embora sejam conceitos próximos. Conservadorismo se refere, neste
trabalho, à ideologia produto de uma situação de conflito entre manutenção e alteração do status
quo – conforme a definição de Huntington. Direita, por sua vez, refere-se a um conjunto de posições
substantivas mais ou menos opostas à busca crescente por igualdade.
É o critértio apresentado por Norberto Bobbio (1995:95, 96, 99, 110), para quem o que
melhor caracteriza as doutrinas e os movimentos de esquerda é o igualitarismo, desde que
entendido não como uma sociedade em que todos são iguais em tudo, mas como tendência a exaltar
mais o que faz os homens iguais do que o que os faz desiguais, e de outro, a favorecer as políticas
que objetivam tornais mais iguais os desiguais. O conceito de igualdade, para ele, é relativo – e não
absoluto. Relativo aos sujeitos entre os quais se trata de repartir os bens e os ônus; aos bens e ônus
34
a serem repartidos; e ao critério com base no qual os repartir. Varia, ainda, de acordo com as
reivindicações por inclusão que são elaboradas em cada momento histórico.
O neoconservadorismo é um movimento de direita em se considerar os critérios
substantivos que derivam dessa premissa geral, apresentados por diversos autores, sobre o contexto
da política nos países europeus, da América e mesmo do Brasil. O neoconservadorismo privilegia
a atuação estatal no sentido do saneamento das finanças e não na necessidade de investimentos
sociais (Benoit e Laver, 2006; Castañeda, 1993; Fernandes, 1995; Kaysel, 2015; Power, 2008;
Tarouco e Madeira, 2013; Zucco Jr., 2011); o neoconservadorismo requer a atuação do Estado
como repressor, o que tende a penalizar mais os pobres (Power, Meneguello e Mainwaring, 2000;
Singer, 2000); é contrário à legalização do aborto e à igualdade de direitos para as pessoas LGBT
(Power, Meneguello e Mainwaring, 2000); aderiu a regimes militares (Madeira e Tarouco, 2010;
Power, Meneguello e Mainwaring, 2000). O neoconservadorismo ainda privilegia a segurança
nacional e não os direitos humanos, o que se coaduna com um critério de direita para os países de
periferia (Castañeda, 1993; Tarouco e Madeira, 2013).
Assim, temos que o neoconservadorismo é conservador, porque reage a um contexto de
forte conflito político e social ao que é considerado ameaça às instituições vigentes, e é também de
direita. Mas esses não são, como enfatizou-se, conceitos absolutos. Há conservadorismos e
direitismos, conforme o contexto social e histórico. O que o diferencia, então, o
neoconservadorismo de outros movimentos que também estão nessas posições do espectro
político?
Sara Diamond (1995:165) assume a visão de Rosalind Petchesky (1981:207) segundo a
qual o que há de novo na nova direita estadunidense é o “foco nas questões sexuais e reprodutivas”.
As questões sexuais, reprodutivas e sobre a família são, segundo as autoras, o cerne do programa
político da coalizão neoconservadora, e o que a diferencia. Mais precisamente, teria sido a oposição
a uma proposta legislativa que tratava de igualdade de direitos entre homens e mulheres (a ERA –
abordaremos o tema adiante) que teria identificado a nova direita a partir de uma ideologia própria.
Para Pierucci (1989:115-16), no mesmo sentido, a direita se tornou uma “nova direita”
“justamente por injetar no conservadorismo sócio-econômico revigorada ênfase nas teses
conservadoras/restauracionistas em matéria sexual”. Para ele, sexo e família entrelaçam-se,
complementando seu conservadorismo econômico e seu anticomunismo. O inimigo principal da
35
nova direita cristã seria, para o autor, o feminismo. Além disso, como veremos, outra peculiaridade
do ideário neoconservador é que seu eixo de gravidade reside em valores religiosos cristãos.
O neoconservadorismo, portanto, é um ideário conservador e de direita, e sua peculiaridade
reside na centralidade que atribui às questões relativas à família, à sexualidade e à reprodução e
aos valores cristãos. O movimento político neoconservador se materializou em uma coalizão.
Trataremos, a partir de agora, dos principais elementos que constituem essa aliança.
10
Grand Old Party, apelido do Partido Republicano.
36
convertidos” como Irving Kristol. De forma semelhante, Brandon High (2009:475, 83) chama de
“trilogia profana” a “coalizão republicana” das três correntes políticas de sustentação de Bush Jr.:
o cristianismo evangélico de direita, grandes empresas e intelectuais neoconservadores. Para
Grandin (2006:22-23, 166-67) a “coalizão tripartite” entre idealismo punitivo, absolutismo do livre
mercado e mobilização da direita cristã deu a Reagan mandato para perseguir interesses
anticomunistas, para restabelecer a moral tradicional e para acabar em grande parte com o Estado
de bem-estar.
A partir dessas leituras a respeito da coalizão neocon, trataremos, a parir de agora, de
elementos que constituem a articulação e o pensamento neoconservador. Em primeiro lugar
abordaremos o ator mais relevante dessa coalizão: a direita cristã. Na sequência abordaremos os
principais temas dessa coalizão: a defesa da família patriarcal, o sionismo, o militarismo
anticomunista, o idealismo punitivo e o neoliberalismo.
O engajamento político dos evangélicos nos Estados Unidos ocorreu a partir de meados da
década de 1950. Além da militância pelos valores religiosos, eles já engrossavam, naquele contexto
do começo da Guerra Fria, o “consenso nacional anticomunista”. Fizeram-no por meio da
disseminação de opiniões pró-capitalismo a seus fiéis. Por exemplo: Percy L. Greaves, colunista
de primeira página da Christian Economics – uma das publicações evangélicas mais importantes
11
Nos Estados Unidos utiliza-se a distinção entre protestantes liberais e evangélicos (Hunter, 1983, pos 658), ou
entre protestantes tradicionais e pentecostais/neopentecostais.
37
da década de 1950 –, tinha como argumento “típico” o de que o desejo de muitos pela redistribuição
de riqueza não passava “de cobiça anticristã e de ignorância econômica” (Diamond, 1995: 96-99 e
105).
Mas foi a partir dos anos 1970 que a direita cristã, antes uma coleção pouco articulada de
TVs evangélicas, clérigos e eleitorados esparsos, passou a adquirir estrutura organizacional e poder
de massa (Guth, 1983:31-2). A participação dos evangélicos em um projeto político conservador
estruturado decorreu de duas causas. A primeira, o avanço de pautas feministas e das demandas
dos homossexuais (trataremos do assunto no item 1.4.4.2). O segundo fator foi o estímulo da nova
direita secular para que a nova direita cristã, ao lado de outros setores, passasse a integrar o tecido
coalizão neoconservadora, selada em 1980 (Gago, 2013: 8; Diamond, 1995: 92, 161, 165, 255).
A nova direita secular – cujos líderes trabalhavam para se tornar a fração dominante do
Partido Republicano – já tinha como bandeiras essenciais o militarismo anticomunista, o
tradicionalismo moral e o libertarismo econômico. Esse grupo passou a alimentar a direita cristã
por conta do poder eleitoral dos evangélicos (que tinham muita capilaridade) e por conta de sua
propensão à luta contra o comunismo e contra a intervenção do Estado pelo bem-estar social, além
de seu engajamento por valores religiosos (Diamond, 1995: 92, 161-162, 173-176, 228, Harvey,
2005: 49-50, 82).
Em 1979 foram criadas duas organizações muito expressivas do poderio evangélico que
atraía outros setores da direita: a Voz Cristã e Maioria Moral. A primeira foi impulsionada por
Robert Grant e Richard Zone. Tratava-se de uma mescla de grupos “anti-gay”, contra a pornografia
e pró-família. Seus membros pertenciam a 37 denominações, mas a maior parte dos ativistas vinha
das igrejas Batista e Assembleias de Deus (Guth, 1983:37). A Maioria Moral, organização com
100 mil membros, foi fundada por Jerry Falwell (Diamond, 1995: 174-5). Chegou a ter mais de
300 estações de televisão e 280 de rádio, presente em 31 estados norte-americanos (Petchesky,
1981: 217). Essa organização tinha um “sabor muito sulista, ainda que grande parte de seus triunfos
tenha ocorrido fora do sul” (Guth, 1983: 32 e 34).
A participação dos evangélicos foi essencial à eleição de Reagan em 1980 e à conquista,
por parte do Partido Republicano, de maioria no Congresso. Esse é o momento em que, para Gago
(2013:7), a religião em estado puro aparece em cena, impulsionada pela filosofia de Leo Strauss.
O autor identifica que entre 1983 e 1988 o tema da religião civil – expressão ideológica da vertente
republicana do pensamento religioso nos EUA, segundo a qual as pessoas comuns “trabalham duro,
38
leem a Bíblia, vão à igreja, obedecem às ordens do governo, lutam em guerras, e morrem para o
Estado” (Linker et al., 2011:165) – passa a ser substituído por discussões sobre o nacionalismo
americano e a religião: “os valores republicanos saem de cena e em seu lugar aparece a Nação
Cristã.
A Nação Cristã comunica que os cristãos são maioria. Embora sejam – e porque são – uma
minoria, os evangélicos invocam como argumento central de sua ação política de que constituem
a maioria moral. Para Diamond (1995:166), trata-se da expressão de uma ideologia de direita, que
foi usada para legitimar suas pautas principais: a oposição a políticas que visavam a expandir ou a
distribuir poder a grupos subordinados, nomeadamente mulheres e homossexuais; e defesa dos
comportamentos tradicionais de gênero.
Foi usando esse argumento e no contexto da ascensão política neoconservadora na década
de 1980, imbuída da vinculação entre política e religião, que a direita cristã se tornou o grupo
político mais coerente, homogêneo e bem organizado nos EUA (Gago, 2013: 2, 8).
Como vimos, a reação aos avanços feministas e dos homossexuais foi, ao lado do estímulo
dado pela nova direita secular, um dos fatores decisivos para o engajamento dos evangélicos na
política. Segundo ideólogos da direita cristã, a “América” começou como uma nação fundada em
princípios bíblicos; porém, conforme foi se tornando mais pluralista, a cultura americana foi
desenvolvendo de maneiras distantes de Deus, com resultados visíveis como a legalização do
aborto e a permissividade sexual. Os religiosos precisavam, assim, de acordo com essa leitura,
reagir (Diamond, 1995:166 e 246, Gago, 2013:9).
O primeiro acontecimento político relevante nesse sentido foi, como já mencionado, a
oposição à ERA (sigla em inglês para Emenda de Direitos Iguais). Para Rosalind Petchesky
(1981:207), foi luta contra a ERA que identificou a nova direita a partir de uma ideologia própria.
Para Sara Diamond (1995:167), a batalha contra a ERA foi uma “benção” à coalizão nascente entre
a nova direita e a direita cristã.
A ERA foi aprovada pelo Congresso dos Estados Unidos em março de 1972. Apoiada pelo
presidente Richard Nixon, a emenda garantia igualdade de direitos às mulheres. O movimento
39
contra a ERA foi protagonizado pelos evangélicos: eles entendiam que a proposta legislativa
incentivava o divórcio, estimulava o trabalho da mulher fora de casa e desestabilizava os papeis de
homens e mulheres na sociedade. Como explica Snyder (2007:475, 431), o argumento da direita
cristã era o de que o feminismo, ao estimular divórcios, machucaria as mulheres, enquanto o
patriarcado as ajudaria. Isso porque as mulheres desejariam segurança, proteção, paz e também
maridos que lhes proviessem afetiva e materialmente.
Tanto que a oposição à ERA usou símbolos tradicionais da dona-de-casa norte-americana
em suas manifestações, como pães, geleias e doces caseiros, com o slogan “eu defendo a mamãe e
a torta de maçã”. Os métodos de campanha estabeleceram um padrão de atuação da nova direita,
que, além de protestos, incluíam mobilização nos estados e coletas de assinaturas para pressão aos
congressistas. Assim, ainda que não fosse maioria na população, o movimento teve sucesso em seu
objetivo. A proposta precisava ter sido ratificada por 38 Estados até 1982 para ter vigência – mas
apenas 30 o fizeram, de modo nunca teve validade (Diamond, 1995:166-7; Petchesky, 1981:210;
Sposato, 2017:125).
Outro tema que causou reação foi a permissão para o aborto, considerado válido pela
Suprema Corte dos Estados Unidos em 1973. Mediante a decisão, os serviços médicos de vários
estados passaram a subsidiar a interrupção voluntária da gravidez. O contramovimento a esse
veredicto foi chamado inicialmente de pró-vida, e depois renomeado de pró-família. Embora tenha
sido uma criação original da Igreja Católica, foi impulsionado por evangélicos e pela articulação
neoconservadora nascente, que criou várias organizações como a National Right to Life Committee
(NRLC), a Life Amendment Political Action Committee (LAPAC), a American Life Lobb (ALL) e
a National Pro-Family Coalition. (Diamond, 1995:170-72, 228; Petchesky, 1981:213-16)
Resultado das pressões, em 1976 foi aprovada a Emenda Hyde, a primeira medida da
contraofensiva do movimento pró-vida. A Emenda proibiu o uso de recursos públicos para realizar
aborto nos casos permitidos por lei. A controvérsia foi judicializada no caso Harris v. McRae. Em
1980 a Suprema Corte decidiu que os Estados não eram obrigados a financiar abortos realizados
por necessidade médica quando não houvesse reembolso federal. Na mesma toada, em 1981 foi
apresentado o projeto em defesa da vida humana, que proibia permanentemente fundos públicos
para realização de interrupção de gravidez – foi aprovado o fim do fundo federal, sendo facultado
aos estados institui-lo ou não (Diamond, 1995:230, 35; Petchesky, 1981:209). Como argumenta
Diamond (1995:230), se direita racista estava em pleno declínio em 1980, em grande medida
40
porque seus princípios fundadores perderam legitimidade, a causa contra o aborto, pelo contrário,
estava em ascensão e era justificável.
Não obstante essas questões relacionadas aos direitos das mulheres, para Diamond
(1995:171) a “oposição aos direitos dos homossexuais era a pauta mais visceral da agenda pró-
família”. Somente em 1962 as relações entre casais homossexuais passaram a ser descriminalizadas
nos EUA. Mas o movimento LGBT avançou rápido. Em 1970 ocorrera a primeira Parada do
Orgulho Gay, em Nova Iorque. Na década de 1970 o Condado de Miami-Dade incluiu os
homossexuais na lei local contra a discriminação.
Um dos pilares da contraofensiva foi a proposta de Ato de Proteção da Família, apresentado
em 1979 pelo senador Paul Laxalt, porta-voz da Maioria Moral no Congresso e colaborador de
Reagan. O projeto, além de restringir o aborto, promover as discriminações entre os sexos e
incentivar com benefícios financeiros famílias tradicionais cujas esposas ficassem em casa,
restringia os direitos dos homossexuais. Contra o argumento de que a proposta seria uma intrusão
indevida na vida pessoal, seus defensores afirmavam que o propósito do Ato era fazer com que o
Estado parasse de financiar programas que visavam a mudanças em valores morais e familiares
(Diamond, 1995:172, 232).
Pretendia-se, de acordo com Petchesky (1981:225-226), restabelecer a família baseada no
casamento heterossexual como o ente com autoridade moral última sobre todas as questões. Seus
dispositivos previam o favorecimento do homem como cabeça da família. A maior parte dos itens
tinha a ver com educação – como a proibição de quaisquer programas ou materiais de estudos que
tendessem a “denegrir, diminuir ou negar o papel das diferenças entre os sexos como
historicamente entendidos pelos Estados Unidos”. A proposta eliminaria “muitos programas
feministas existentes e os direitos dos homossexuais, que dependem fortemente de recursos
federais, e reconstituiria as agências familiares e privadas, tais como a igreja”. O projeto retirava a
possibilidade de supervisão governamental a programas escolares religiosos.
Apesar disso, o Ato de Proteção da Família jamais passou das comissões parlamentares. A
derrota da direita cristã deveu-se à articulação do Partido Democrata, mas também ao fato de
Reagan, apesar da retórica pró-família, ter priorizado, perante o Congresso, a pauta econômica e
militar. Mesmo com a frustração legislativa, porém, a direita cristã foi essencial para os esforços
anticomunistas de Reagan na América Latina (Diamond, 1995:228, 230, 237). É o que veremos
agora.
41
vigentes. O capitalismo é, nessa cosmovisão, um sistema ético, que corresponde à dádiva de Deus
que é o livre arbítrio. Os evangélicos relacionavam o lucro com o projeto divino para o homem
(Diamond, 1989:84; Grandin, 2006:5, 19, 164; High, 2009:489).
A posição da presidente da organização evangélica pró-família Concerned Women for
America, Beverly LaHaye (1984:9 apud Diamond, 1989:48), também confirma a convergência de
visão. Ela afirma na introdução do seu livro Who But a Woman? que é necessário o ativismo das
mulheres contra o comunismo. Ela ilustra seu argumento com base na derrocada de João Goulart
no Brasil em 1964 – sem mencionar, como observa Sara Diamond (1989:48), que houve aqui um
golpe militar. LaHaye considera que o comunismo foi derrotado depois que "vários homens de
negócios proeminentes começaram a se reunir informalmente em 1961 para deter a imersão do
Brasil no totalitarismo". Diamond prossegue comentando Who But a Woman? :
Eles formaram o Instituto de Assuntos Econômicos e Sociais, cujo objetivo seria cassar
subversivos, estabelecer uma rede de televisão e mobilizar mulheres para tomar medidas
contra o governo. Essas mulheres - que LaHaye elogia como modelos - formaram grupos
de células para organizar reuniões de oração, marchas de protesto patrióticas e a compra
de tempo de antena de televisão e espaço de jornais para proclamar sua mensagem
anticomunista. Em última análise, LaHaye diz, foram os esforços dessas mulheres anti-
comunistas que fizeram os empresários bem-sucedidos. O resultado foi uma ditadura
militar instalada em 1964, que durou vinte anos e resultou ‘na tortura e no assassinato de
milhares de cidadãos brasileiros’. Esteja ou não Beverly LaHaye plenamente consciente
das implicações de sua pequena história, ela transmite uma importante mensagem:
ativistas de direita mobilizados por seus líderes masculinos desempenham um papel
crucial na desestabilização ou manipulação de uma sociedade dirigida por uma direção
progressista. (Diamond, 1989:48)
O conservadorismo interno do movimento pró-família foi usado como uma ponte para
construir o apoio à intervenção militar anticomunista também em um outro sentido. Pregadores
evangélicos como Billy Graham e teólogos como John Price e Jerry Falwell interpretaram a derrota
no Vietnã como um sinal do precipício em que os Estados Unidos caíam em do avanço do aborto,
dos direitos dos homossexuais, da igualdade de direitos e assim por diante. E, por isso, pela conexão
entre temas internos e externos, os EUA e os cristãos deveriam se envolver em ambas as questões
(Grandin, 2006:159-60).
O episódio ocorrido em 1984, que ficou conhecido como escândalo Irã-Contra, levou a
público que o suporte de armamentos dados ao Irã e aos Contra na Nicarágua tinha financiamento
privado, mas coordenado pela CIA e pelo Conselho de Segurança Nacional (Diamond, 1995: 219-
221 e Stoll, 1990:384). Mas, apesar desse financiamento armado, o tipo de intervenção mais
43
relevante de Reagan na América Central e na América no Sul foi pelo soft power, inclusive com o
poder de influência e de mobilização dos missionários da direita cristã.
No suporte às operações na América Central havia mais de uma dúzia de organizações da
direita cristã – como a Maioria Moral e o Comitê de Ação Pró-Vida, que pertenciam a redes
carismáticas e pentecostais, incluindo as Assembleias de Deus. As organizações arrecadavam
dinheiro, suprimentos médicos, alimentos, bíblias para envio junto de missionários, que
estabeleceram escolas, clínicas e missões religiosas (Grandin, 2006:170-71; Stoll, 1990:320, 27-
35, 1958, 2047; 1993:2-3).
As organizações atuavam com estratégias de ajuda humanitária e operações psicológicas,
incluídas na noção de “conflito de baixa intensidade” (LIC, na sigla em inglês). A direita cristã em
particular aplicava sua noção de “guerra espiritual” ou confrontação religiosa com o mal (Grandin,
2006:169-170, 191-3 e Diamond, 1995:238-9). Diamond cita as palavras de um pastor evangélico
não identificado, quanto à atuação em relação aos indígenas na Guatemala, que exemplifica o
argumento de guerra espiritual contra o comunismo:
A transmissão ideológica não se dava apenas aos fiéis nos cultos e não se restringiu à
América Central. Os veículos mais visíveis eram os programas de televisão, que ofereciam uma
mistura harmoniosa de patriotismo, capitalismo e anticomunismo. Por exemplo: o pregador Jimmy
Swaggart, ligado às Assembleias de Deus, tinha seus programas transmitidos em três mil estações
espalhadas por mais de 140 países, alcançando meio bilhão de pessoas (Stoll, 1990:1964, 1977).
No Brasil, seu programa era apresentado pela Rede Bandeirantes às manhãs de sábado.
A National Religious Broadcasters, rede de radiodifusão evangélica, tinha várias filiais na
América Latina. Uma das maiores ficava no Brasil, onde, na década de 1980, “a NRB financiou a
construção de estações de rádio cristãs brasileiras, uma escola de treinamento técnico para
radiodifusores cristãos e um transmissor de ondas curtas” (Diamond, 1989:42-3).
As editoras evangélicas, que publicavam conteúdo inspirado na direita cristã norte-
americana, eram outra relevante fonte de influência. As editoras, ao lado das missões norte-
44
David Chilton (1981:92), do Institute for Christian Economics, definiu que a pobreza era
resultado “do controle de Deus sobre culturas pagãs: elas devem passar tanto tempo cuidando de
sua sobrevivência que serão incapazes de exercer domínio ímpio sobre a terra”. Como Grandin
(2006:164) argumenta, a elaboração evangélica em contraponto à Teologia da Libertação estava
em plena consonância com esse pensamento da nova direita. Se o que há não é luta de classes, se
o que há é recompensa do bom trabalho e punição do mau, o poderio norte-americano sobre ao
mundo, e em especial sobre a América Latina, seria simples expressão da benção divina.
45
Tendo examinado aspectos da direita cristã, ator político que é espinha dorsal da coalizão
neoconservadora, passemos, agora, a abordar os principais temas do neoconservadorismo. São eles
a defesa da família patriarcal, do neoliberalismo, do punitivismo, do militarismo e do Estado de
Israel. Embora à primeira vista essa relação de temas pareça ser elencada aleatoriamente, os
assuntos têm conexão entre si. Isso será explicado no decorrer do texto.
portanto); incluiria também, para os conservadores, o poder do homem controlar sua família; de
controlar os corpos de suas esposas, filhos e escravos.
Foi em defesa do poder privado do chefe de família que o Partido Republicano estabeleceu,
em sua plataforma para a eleição de Reagan, a oposição a qualquer proposta que desse ao governo
ingerência nesse âmbito. Pelo mesmo motivo os neoconservadores defenderam o Ato de Proteção
da Família e se opuseram à Emenda de Direitos Iguais, mencionadas anteriormente. Com
fundamento igual, antagonizaram-se à proposta de legislação federal sobre violência doméstica –
ainda que aceitando que a violência doméstica existe, os representantes da nova direita e as
feministas divergiam a respeito de suas causas; o argumento neoconservador era de que a existência
do problema não seria resultado de uma cultura sexista, mas sim de desvios individuais que seriam
solucionados com o fortalecimento da instituição familiar (Petchesky, 1981:210, 21, 25, 26).
Pelo mesmo motivo uma grande energia política foi investida na educação a fim de
restabelecer “o controle local, parental e religioso” sobre a formação dos indivíduos (Petchesky,
1981: 227). Os neoconservadores defendiam que as prerrogativas parentais biológicas e
ideológicas que deveriam prevalecer sobre as prerrogativas estatais (Diamond, 1995: 166). Assim,
entre a direita cristã era aceito que a educação deveria incluir castigos físicos. Para James Dobson,
fundador da organização Foco na Família, “uma surra deve ser suficientemente grave para fazer a
criança chorar genuinamente de dor em vez de simplesmente de raiva ou humilhação”, e por isso
ele liderou um movimento para autorizar os castigos corporais nas crianças (Snyder, 2007:487-
509).
Várias outras medidas eram propostas pelos grupos pró-família em relação ao tema: (1)
restauração da "oração voluntária" nas escolas públicas; (2) ensino do criacionismo nas escolas;
(3) a oposição a qualquer interferência do governo federal sobre as escolas privadas e religiosas,
inclusive sobre a segregação racial; (4) incentivos fiscais para matrícula de crianças em idade
escolar em estabelecimentos privados e religiosos; (5) oposição à sindicalização dos professores
da rede pública; (6) eliminação de todos os programas ou livros relacionados com a educação
sexual, a homossexualidade, ou uma visão crítica dos papéis sexuais tradicionais; (7) e demissão
de professores homossexuais de emprego em escola pública (Diamond, 1995: 166, Petchesky,
1981: 221).
Havia, ainda, a reivindicação de homeschooling que, para Gago (2013: 12, 13), era a
vanguarda do nacionalismo cristão. Como o autor salienta, a proposta se fortalecia como reação
48
neoconservadora quando nos anos 1960 e 1970 a escola pública ficou impregnada do ambiente de
contracultura. De acordo com ele em 1983 Michael Farrys fundou The Home School Legal Defense
Association, buscando a legalização da educação em casa em todos os estados da federação. A
geração dos filhos educados em casa é conhecida como “Geração Moisés”, e a “Geração Josué” a
que deveria reconquistar os Estados Unidos. A plataforma ideológica para alcançar este fim é a do
criacionismo, ou seja, a visão de um Deus criador, “inimiga da teoria evolucionista”. Sob o domínio
cristão, os Estados Unidos deixariam de ser um “país pecador, e os dez mandamentos formariam a
base do sistema legal”.
1.3.3. Sionismo
12
Embora frequente associados, o sionismo (defesa da criação de um Estado judeu e de mecanismos para sua
permanência) não se confunde necessariamente com a judaicidade, seja a judaicidade entendida como a religião
judaica, seja a judaicidade entendida como um conjunto de tradições culturais judaicas seculares (Butler, 2017).
49
política externa, Israel é o principal aliado dos EUA, e na política interna, a direita-cristã possui
forte capilaridade. Mas, além disso, há razões ideológicas e teológicas.
Drury (1999:19-21, 148) aponta as razões ideológicas. De acordo com ela, Leo Strauss,
embora fosse judeu, inspirou neoconservadores como Irving Kristol a apoiarem a direita cristã.
Isso por entenderem que a religião é necessária para a unidade política e para superação do niilismo
que estaria na raiz dos problemas estadunidenses. Além disso as pautas da direita cristã, para Drury,
eram coerentes com os propósitos straussianos e neoconservadores de destruição do liberalismo
nos Estados Unidos, enquanto liberdade individual, direitos humanos e ausência de fonte única de
verdade.
Há, ainda, os motivos religiosos. As origens do “sionismo cristão” estão na teologia do
dispensacionalismo, que trata do retorno de Jesus Cristo após anos de turbulências, culminando
com o Fim dos Tempos e o estabelecimento do reino dos céus na terra. A teoria estabelece um
papel preciso para Israel na profecia bíblica do Armagedom: o Fim dos Tempos ocorreria uma
geração após o controle de Israel ser devolvido aos judeus. Assim, a criação do Estado de Israel
em 1948 foi vista como um sinal.
Acreditava-se que a Batalha Final seria lançada por uma invasão da URSS – nação ateia e
pecadora – contra Israel. A Guerra dos Seis Dias de 1967, em que Israel capturou Jerusalém e
começou a sua ocupação dos territórios conhecidos na Bíblia como Judeia e Sumaria, também seria
uma comprovação das palavras sagradas. Essa crença teria sido expressa até mesmo por Ronald
Reagan. Daí a intensa atenção da direita cristã à política do Oriente Médio. Essa interpretação
bíblica foi um tema constante nas principais redes cristãs de TV e rádio evangélicas e nos
ministérios de difusão religiosa (Diamond, 1989: 131 e 201, Mearsheimer e Waltm, 2007: 133).
O apoio da direita cristã dos EUA para o governo israelense foi principalmente na frente da
propaganda. Vejamos exemplos: em 1979 Jerry Falwell pregava em seu púlpito da Maioria Moral
que "ficar em pé contra Israel é contra Deus”; durante a ocupação israelense do Líbano, em 1982,
um dos líderes da Full Gospel Businessmen's Fellowship International transmitia mensagens para
ameaçar simpatizantes da OLP – na época Pat Robertson pregava pela estação de televisão Estrela
da Esperança, que operava dentro do complexo do exército de combatentes mercenários de Israel.
Organizações carismáticas também forneceram valiosos serviços ao governo israelense, com
transmissão de radiodifusão religiosa em apoio à causa, além de doações em dinheiro (Diamond,
1989: 18, 24-25, 200-202).
50
O militarismo anticomunista foi expresso por conta do contexto da Guerra Fria como forma
de projeção do poder dos Estados Unidos nas relações internacionais. Tratava-se combater a União
Soviética e os princípios anticapitalistas. Esse elemento do neoconservadorismo defendeu a
intervenção militar no estrangeiro e mudanças de regime pela governança imperial pela promoção
dos valores norte-americanos para o mundo (Linker, 2011:176, Diamond, 1995: 186, 195). Fez
parte desse esforço a exportação da direita cristã para a América Latina sob comando da Casa
Branca naquele período, tratada anteriormente.
Durante a administração de Reagan a política externa deixou de ser baseada em direitos
humanos para ser baseada no combate ao terrorismo internacional, associado ao comunismo.
Expressão dessa visão era o fato de a embaixadora dos EUA na ONU naquele período, Jeane
Kirkpatrick, líder da coalizão neoconservadora, defender que um regime autoritário não marxista
poderia proporcionar espaço para a sociedade civil se desenvolver, o que, com o tempo, promoveria
a mudança democrática (Diamond, 1995:215-17; High, 2009:483; Totaro, 2007:938-9).
Mas no fim da década de 1980 e início da de 1990 ocorreu um rompimento no campo
neoconservador, o que ficou conhecido como a disputa entre o neoconservadorismo propriamente
51
O resgate do reaganismo se deu também em relação aos papeis essenciais de gênero. Bush
justificou intervenções no oriente médio na promoção dos direitos das mulheres islâmicas. Mas,
para Ferguson (2007:3388) e Ferguson e Marso (2007:105, 109, 174, 265, 269, 323), os objetivos
das mulheres defendidos por Bush eram bastante limitados, restritos ao alcance de direitos políticos
e de alguns direitos econômicos, o que é compatível com a defesa conservadora de papeis de gênero
desiguais. A concepção conservadora de Bush sobre o gênero definia as mulheres, de acordo com
as autoras, como submissas e vulneráveis e os homens como dominantes e protetores, ao mesmo
tempo em que Bush desenhava a si mesmo como um líder forte e masculino em tempo de guerra –
como o próprio Estado contra o terrorismo. E nisso, novamente, a mentalidade neoconservadora
presente.
O belicismo neoconservador, como elemento de projeção de poder e luta contra os inimigos,
não foi expresso apenas externamente; foi, também, defendido para as questões domésticas. É o
que veremos a partir de agora.
“Idealismo punitivo” é a expressão que Greg Grandin (2006: 104, 138-9, 152-3) usa para
definir o uso neoconservador da violência para fins imperiais. Esse idealismo punitivo, entretanto,
não é adotado pelos neoconservadores apenas no âmbito internacional. A punição é vista, como o
autor aponta, como um caminho doméstico. Trata-se da imposição interna da “lei-e-ordem”, ou
seja, do rigor penal contra os crimes e contra os dissidentes políticos internos.
O pensamento neoconservador defende o uso rigoroso do poder coercitivo do Estado para
promover a ordem contra a criminalidade, vista como opção individual e não no contexto de
explicações econômicas, políticas e sociais; reivindica-se, ainda assim, a posse de armas para os
indivíduos, para a autodefesa do cidadão de bem (Kilduff, 2010:241; Linker et al., 2011:195 e 207;
Norris, 1996:165; Petchesky, 1981:222).
Se na filosofia do Estado de bem-estar vigia o paradigma da segurança social, na sociedade
neoliberal/neoconservadora, com elementos desintegradores e excludentes, prevalece o princípio
da “insegurança coletiva” (Dornelles, 2008:19). O desmonte do Estado de bem-estar teve, assim,
como contraparte o fortalecimento penal, processo ocorrido nos Estados Unidos a partir dos anos
53
198013. Os retrocessos em políticas sociais implicam em expansão do sistema penal como estratégia
para conter e administrar as manifestações da desigualdade, da exclusão e do desemprego (Kilduff,
2010:240-41). Exige-se um Estado mínimo nas relações econômicas e sociais, mas um Estado
máximo para tratar das respectivas consequências deletérias (Dornelles, 2008:64).
Davies (2016:129-32) trata do “neoliberalismo punitivo”, evidente na primeira fase do
neoliberalismo – de Reagan e de Thatcher – e a partir de 2008. Significa que, aos problemas sociais
decorrentes das medidas de austeridade, responde-se com uma moralidade de castigo, de ódio e de
violência contra os cidadãos prejudicados pela pobreza e pela fragilidade das redes de seguridade.
Acumulação capitalista “mais insidiosa” e a redução do Estado – controle de gastos
públicos, redução de impostos, flexibilização do mercado de trabalho (“permitir ao mercado o
emprego de um mínimo de trabalhadores, extraindo-lhes o máximo de produtividade”) – implica
em menos liberdade ao coletivo dos cidadãos, em uma “liberdade apenas aos mercados”. A
insegurança causada pela diminuição da proteção social é contrabalanceada pelo incremento dos
sentimentos vingativos e pelo agravamento das políticas de segurança – e não por soluções
coletivas que enfrentassem a real natureza dos problemas, centrada na brutal desigualdade e
exclusão. Assim, escolhem-se determinados indivíduos para serem culpados pelos problemas
sistêmicos. Geralmente, esses culpados são os mais vulneráveis: os negros, os pobres e os
imigrantes indesejáveis (Argüello, 2005:2-5).
Por essa razão a guerra contra as drogas teve papel tão importante, uma vez que, justamente,
possibilitou a criminalização da pobreza e o aumento da população carcerária. Já no “início dos
anos 70 aparecem as primeiras campanhas de ‘lei e ordem’ tratando a droga como inimigo interno”
(Batista, 2003:84). A “’guerra à droga’ lançada por Ronald Reagan, e ampliada desde então por
seus sucessores, marcou o abandono do ideal da reabilitação e a multiplicação dos dispositivos
ultra-repressivos (Wacquant, 2001 [1999]:62).
Como argumenta David Harvey (2005: 82-3, 195), o neoliberalismo é bastante autoritário,
na medida em que dissolve instrumentos de solidariedade social contra a acumulação financeira
(como sindicatos) para a manutenção do livre mercado. O autor considera que o
neoconservadorismo é simplesmente manifestação explicita do autoritarismo implícito ao
13
É o que aponta Wacquant (2001 [1999]:55-56), que demostra o aumento, a partir de 1979, dos gastos com o
sistema carcerário, e a redução em outras áreas – por exemplo, de acordo com ele, em 1985 os créditos para
funcionamento das penitenciárias superaram o montante do orçamento do principal programa de ajuda social, Aid to
Families with Dependent Children (AFDC).
54
neoliberalismo. A ênfase nos princípios morais que o neoconservadorismo tem seria o antídoto
contra o caos dos direitos individuais a que o neoliberalismo leva. O autor lembra que, como
Margareth Thatcher pregou, para o neoconservadorismo/neoliberalismo não havia sociedade,
apenas indivíduos. Isso, porém, no limite, pode levar à completa desagregação social. A coação,
assim, passa a ser necessária para manter a ordem. Por isso os neoconservadores enfatizam a
militarização. Militarização para manter a estabilidade e a “lei e a ordem”, dentro e fora do país,
estimulando o medo contra inimigos reais ou imaginários.
1.3.6. Neoliberalismo
Depois da Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos, o Japão e diversos países da Europa
desenvolveram modelos de Estado que deveriam focar no pleno emprego, no crescimento
econômico e no bem-estar de seus cidadãos – inclusive, se necessário para esses fins, intervindo
ou substituindo mecanismos de livre mercado. Isso ficou conhecido como “liberalismo
encapsulado”, segundo o qual o mercado e as corporações empresariais deveriam ser rodeados por
uma rede de restrições sociais e políticas. O modelo possibilitou altas taxas de crescimento
55
econômico nas décadas de 1950 e 1960, inclusive em boa parte do “Terceiro Mundo” (Harvey,
2005: 10-13).
Nos Estados Unidos o “liberalismo encapsulado” foi representado pelo Great Society,
produto da pressão de parte das organizações trabalhistas e das forças progressistas dentro do
Partido Democrata, que conseguiram pressionar por uma série de reformas na década de 1960. Foi
importante também a ascensão do movimento negro por direitos civis no norte do país – incluindo
rebeliões negras em Nova York, Filadélfia e Los Angeles em 1964 e1965, que reivindicaram, além
de igualdade política, também o bem-estar econômico. Assim, Lindon Johnson avançou no marco
dos direitos civis e políticos, e na expansão de políticas sociais. As reformas do Great Society
incluíram programas de saúde, de segurança alimentar e um aumento substancial dos benefícios da
previdência social; isso além do fortalecimento da proteção ambiental e do consumidor. O conjunto
de medidas implicou em um aumento do gasto social e na regulação do mercado, o que, por sua
vez, resultou em uma queda nas taxas de lucros das corporações (Brenner, 2007: 40-42).
Harvey (2005: 13-19) aponta que, no fim dos anos 1960, o liberalismo encapsulado
começou a ruir por uma crise de acumulação de capital. As propostas socialistas e comunistas, no
sentido de se aumentar a regulação e o controle estatal, seriam uma possível solução para a crise;
outra resposta seria o neoliberalismo, que saiu vitorioso. A santificação da nova ortodoxia deu-se
no Consenso de Washington, em 1990. O arranjo pós-guerra implicara em poder econômico restrito
às classes altas e em a classe trabalhadora ter um pedaço maior do bolo para si. O avanço de partidos
e de forças sociais de esquerda representavam um risco às elites de países como Itália, França,
Espanha e Portugal, e também como Chile, México e Argentina. O neoliberalismo, assim, se
efetivou para restabelecer o poder das elites econômicas.
O aumento da desigualdade com a implantação das políticas neoliberais pode ser
visualizado no seguinte gráfico:
Gráfico 1 – Riqueza do 0,1% da população com maior renda nos EUA, Grã-Bretanha e
França, entre 1913-1998.
56
Os intelectuais que deram base ao neoliberalismo foram Friedrich von Hayek, Milton
Friedman, Karl Popper e Ludwig von Mises (Noble, 2007: 113). O primeiro experimento de
implantação do neoliberalismo foi no Chile governado por Pinochet, após o golpe de 11 de
setembro de 1973. Foi escolhido para ajudar a “reconstruir” a economia chilena um grupo de
economistas conhecidos como “Chicago boys” – adeptos das teorias neoliberais de Friedman,
professor da Universidade de Chicago. Essa escolha se deu naquele contexto de formação da
coalizão neoconservadora e em que os Estados Unidos fomentarem políticas de combate a
governos de esquerda na América Latina durante a Guerra Fria. No Chile, apoiado pelo Fundo
Monetário Internacional e pelos Chicago boys, Pinochet reverteu as nacionalizações e efetivou
privatização de patrimônio público, abriu recursos naturais (como madeira) para exploração
privada, privatizou a seguridade social e facilitou investimento estrangeiro (Harvey, 2005: 7-8).
Depois do Chile, o neoliberalismo foi implantado na Inglaterra de Thatcher e nos Estados
Unidos de Reagan, a partir de 1979. E depois disso quase todos os países, incluindo pertencentes à
57
antiga União Soviética; até democracias com Estados de bem-estar social consolidados como Nova
Zelândia e Suécia, adotaram alguma versão da teoria neoliberal (Harvey, 2005: 3). Ao final dos
anos 1980 e durante os anos 1990 tanto essa política como essa ideologia alcançaram a América
Latina, especialmente o Peru (Alberto Fujimori), a Argentina (Carlos Menem) e o Brasil (Fernando
Henrique Cardoso) (Codato, Bolognesi e Roeder, 2015:117).
Na síntese de Noble (2007: 111), a virada neoliberal nos Estados Unidos exigiu a construção
de um novo projeto de hegemonia que foi possibilitado com a costura da aliança neoconservadora.
Ele enfatiza a junção, principalmente no sul do país, de capitalistas de direita, de trabalhadores
politicamente atomizados e ainda de camadas da classe média já extremamente conservadoras,
grupos sobre os quais o pentecostalismo tinha grande influência, e opostos a todos os aspectos do
Great Society. Como aponta o autor, a crítica aos programas de bem-estar residia no fato de que
ignorariam a distinção entre o pobre "merecedor" e pobre "indigno", ao oferecer ajuda a todos em
situação de necessidade14.
Mas há diferenças importantes entre o neoliberalismo e o neoconservadorismo. Mais que
isso: a costura entre libertarismo na economia e tradicionalismo é até mesmo paradoxal
(Himmelstein, 1983:21-23). O neoliberalismo, com sua retórica a favor da liberdade individual,
não é a princípio incompatível com o multiculturalismo, com movimentos pela liberdade artística,
pela diversificação dos estilos de vida (Harvey, 2005: 40-42; 47). A racionalidade neoliberal
implica na criação de necessidades para estímulo ao mercado, o que colide com a racionalidade
neoconservadora de produzir uma ordem orientada para a repressão dos desejos. O neoliberalismo
trabalha com a ideia de futuro no qual as fronteiras serão apagadas pelo nexo monetário, enquanto
o neoconservadorismo busca fortalecer o nacionalismo (Brown, 2006: 699). Como, então, se
explica a aliança do neoliberalismo com o neoconservadorismo?
Para Wendy Brown (2006: 690, 699-700, 703-5), neoliberalismo e neoconservadorismo são
dois ideários políticos convergentes em muitos sentidos. Ambos contribuem para produzir a
14
A distinção entre "trabalhadores" e "pessoas que não trabalham" seguiu sendo fundamental aos movimentos de
direita. É o caso do Tea Party. Como apontam Williamson, Skocpol e Coggin (2011:33-35), é a dicotomia ideológica
que justifica, por parte do grupo de direita contemporâneo nos Estados Unidos, a rejeição a programas sociais, que
são vistos como pagamento para pessoas que não merecem, que não trabalham, que não funcionam socialmente.
58
Esping-Andersen define três tipos de welfare state, a partir de combinações entre Estado,
mercado e família: os modelos liberal, corporativo e social-democrata. O modelo liberal defende
assistência apenas aos comprovadamente pobres, com transferências universais reduzidas e planos
de previdência e seguridade mínimos. Nesse tipo o Estado é mínimo, garantidor do livre mercado,
e “os limites do bem-estar social equiparam-se à propensão marginal à opção pelos benefícios
sociais em lugar do trabalho” (Esping-Andersen, 1991:108).
O segundo modelo é dominado por Esping-Andersen de corporativo. Esses regimes, de
acordo com ele, “são moldados de forma típica pela Igreja e por isso muito comprometidos com a
preservação da família tradicional”. A previdência social exclui esposas que não trabalham fora, e
os benefícios destinados à família encorajam a maternidade. Creches e outros serviços semelhantes
prestados à família são subdesenvolvidos. O princípio de subsidiariedade enfatiza que o Estado só
interfere quando a capacidade da família servir os seus membros se exaure” (Esping-Andersen,
1991:109).
No modelo social-democrata vigoram os princípios do universalismo das políticas de
proteção social e de “desmercadorização” dos direitos sociais. Nesse sistema a proposta não é
aguardar que a capacidade da família seja exaurida a fim de que o Estado seja acessado; o ideal é
“não é maximizar a dependência da família, mas capacitar a independência individual (Esping-
Andersen, 1991:110)
O autor elenca países que se enquadrariam em um ou outro tipo ideal. Nenhum teria um
tipo puro. Mas o que interessa aqui é observar que, idealmente, o modelo de welfare state defendido
pelo neoconservadorismo se enquadra no segundo modelo de Esping-Andersen, o tipo corporativo.
61
A família e a religião devem atuar em primeiro lugar. As políticas sociais e previdenciárias estarão
previstas na sua falha. Não há preocupação nesse modelo, como no modelo socialdemocrata, de
alívio da carga de tarefa familiar das mulheres com crianças, desvalidos e idosos.
movimento por direitos civis, à reivindicação por cotas e ações afirmativas, à contracultura, ao
movimento contra a Guerra no Vietnam e ao Great Society (Muller, 1981: 10). Snyder explica:
15
Isso se relacionaria à sua experiência de vítima do nazismo. Strauss liga a democracia à República de Weimar, a
cuja derrocada se seguiu a vitória do nazismo na Alemanha. Assim a experiência alemã, para Strauss, levaria à
confirmação do argumento platônico, segundo o qual a democracia leva à tirania (Drury, 1999: XII, 3-5, Linker,
2011:pos. 106-111).
63
1.5. Conclusão
sionista. O cimento entre esses elementos, que parecem esparsos e até contraditórios, foi
identificado pelos autores citados ao longo deste capítulo. Retomemos brevemente.
O eixo da linguagem neoconservadora é a ideia de privatização. Seja no sentido de garantir
o total livre mercado, livre de ingerências estatais; seja no sentido de se manter intocado o poder
patriarcal.
A peculiaridade do ideário neoconservador reside no foco que tem em relação às questões
sexuais e reprodutivas. A defesa da família tradicional e dos valores religiosos oferece laços sociais
sólidos que visam a compensar a falta de solidariedade deixada pelas políticas neoliberais. O
fortalecimento da família e dos papeis tradicionais de gênero seria necessário, também, para que
as pessoas não dependessem de políticas públicas. Além da família, outro tratamento dado à
pobreza, na linguagem neoliberal e neoconservadora, seria o rigor penal.
A defesa de Israel é o pilar da coalizão neoconservadora que não se comunica diretamente
com a ideia de privatização. O ponto une intelectuais neoconservadores – de maioria judia – e a
direita cristã. A aliança, nesse aspecto, foi costurada principalmente por motivos ideológicos (a
família como cimento da sociedade) e teológicos (teoria do dispensacionalismo).
O militarismo anticomunista faz parte da agenda neoconservadora como elemento de
projeção de poder dos Estados Unidos e de disseminação do capitalismo pelo mundo. Destacou-
se, nessa agenda, o papel da direita cristã na América Latina. Sob o comando de Reagan,
organizações religiosas e missionários atuaram de modo a combater os influxos progressistas;
atuaram em nome da expansão da palavra de Deus, do combate ao comunismo, em uma guerra
espiritual do bem contra o mal.
A hipótese desta tese é de que há um movimento neoconservador, nos moldes existentes
nos Estados Unidos, na Câmara dos Deputados brasileira. Ou seja, a hipótese é de que existe uma
articulação de grupos em prol de uma agenda neoconservadora. Essa articulação defenderia,
portanto, os diferentes elementos que compõem o ideário neoconservador.
Isso será verdade se se verificar que existe um movimento político que contempla: a) defesa
de valores morais religiosos e da família tradicional em reação ao feminismo e ao movimento
LGBT; b) o punitivismo; c) o militarismo anticomunista; d) a defesa de Israel, e) o neoliberalismo.
Tudo isso deve ser informado pela atuação política de algo equivalente à direita cristã. É essa
estrutura que será testada nos capítulos seguintes.
66
O tema do capítulo são as iniciativas que constituem a reação pró-família na Câmara dos
Deputados. A defesa da família tradicional significa a defesa dos papeis tradicionais de homens e
mulheres na sociedade, aliada ao enfrentamento de reivindicações de autonomia da mulher sobre
seu corpo e de demandas de reconhecimento dos grupos LGBT. No debate atual os Deputados
articulam sistematicamente esses temas.
Este capítulo se apoiará em um banco de dados quantitativo composto pelas iniciativas pró-
família em tramitação na Câmara dos Deputados. Nesse trabalho “iniciativa” se refere a: a)
proposições, que são principais (Propostas de Emenda à Constituição – PEC16, Projeto de Lei
Complementar - PLP 17 , Projetos de Lei – PL 18 , Projetos de Decreto Legislativo – PDC 19 ) ou
acessórias (Pareceres20, Indicações – INC21, Requerimento de Informações – RIC22, Requerimentos
16
Altera o texto da Constituição da República, norma de maioria hierarquia no ordenamento jurídico brasileiro.
Apresentada por 2/3 de deputados, pelo Presidente da República ou por outro sujeito, conforme previsão
constitucional. Discutida e votada em dois turnos, em cada Casa do Congresso, aprovada se obtiver, na Câmara e no
Senado, três quintos dos votos dos deputados (308) e dos senadores (49).
17
Inova o ordenamento jurídico em matérias que a Constituição determinada que devem ser reguladas por Lei
Complementar. Apresentado por qualquer deputado, pelo Presidente da República, além de outros atores
legitimados. Deve ser discutido e votado, aprovado por maioria absoluta, pelo Plenário da Câmara e do Senado, e
posteriormente sancionado pelo Presidente da República.
18
Inova o ordenamento jurídico em matérias que não precisam de PLP. Apresentado por qualquer deputado, pelo
Presidente da República, além de outros atores legitimados. Pode, conforme a matéria, ser aprovado conclusivamente
pelas comissões da Câmara e do Senado. De regra, porém, é submetido ao Plenário de ambas as casas, onde deve ser
discutido e votado, aprovado por maioria simples (presente a maioria dos deputados, aprovado pela maioria dos
presentes). É submetido à sanção do Presidente da República.
19
Para regular matérias de competência exclusiva do Poder Legislativo, conforme previstas na Constituição, dentre
as quais sustar atos normativos do Poder Executivo. Pode, conforme a matéria, ser aprovado conclusivamente pelas
comissões da Câmara e do Senado. De regra, porém, é submetido ao Plenário de ambas as casas, onde deve ser
discutido e votado, aprovado por maioria simples.
20
Os pareceres são apresentados pelos relatores nas Comissões pertinentes e no Plenário.
21
É a proposição através da qual um deputado sugere a outro Poder a realização de um ato.
22
Solicitado a Ministro de Estado, importando crime de responsabilidade a recusa ou o não atendimento no prazo de
trinta dias, sobre ato ou fato na área de competência do Ministério.
68
23
Os requerimentos podem ser autônomos (como solicitando a realização de uma audiência pública) ou relativos a
alguma matéria em tramitação (solicitando, por exemplo, a retirada ou inclusão de pauta de algum projeto).
24
As emendas propõem a alteração de uma proposição em discussão.
25
O voto em separado é apresentado por escrito por um deputado que não é relator da matéria.
69
autoria não pode ser individual; é necessário o apoio de 171 deputados para que tenha início uma
proposta de mudança à Constituição, a norma máxima do ordenamento jurídico brasileiro.
80
70
60
50
40
30
20
10
0
2002 2004 2006 2008 2010 2012 2014 2016
anos 198026 – o direito à vida desde a concepção foi objeto de polêmica importante na Assembleia
Nacional Constituinte em 1987 e 1988 (Pierucci, 1989:124) – e que a partir dos anos 2000 ampliou-
se a quantidade de manifestações contrárias ao direito ao aborto, “com uma radicalização das
posições conservadoras, na mesma medida em que houve passos em direção a avanços”.
Em 2007, como vemos pelo Gráfico 2, o tema do aborto passa a entrar na agenda da Câmara
com mais força do que antes. Esse dado é confirmado pela pesquisa de Miguel, Biroli e Mariano
(2017) a respeito dos discursos em Plenário sobre o aborto:
26
Para esse argumento os autores se baseiam em Rocha, Rostagnol e Gutiérrez (2009).
27
PL 7443/2006.
28
Os crimes hediondos são inafiançáveis, insuscetíveis de graça, anistia e indulto e a progressão de seu regime penal
é mais dificultosa.
72
2007 foi apresentada outra proposta no mesmo sentido, o projeto de Estatuto do Nascituro29, que
na versão original proibia o aborto mesmo em caso de estupro – hipótese na qual a legislação
atualmente autoriza a interrupção voluntária da gravidez –, conferindo uma pensão ao filho gerado
nessas circunstâncias, razão pela qual foi apelidado posteriormente, por feministas, de “Bolsa
Estupro” (Lemes, 2013). Essa proposta foi a primeira que dispôs a respeito de direitos do feto.
Nesse ano também ocorreu a retomada da tramitação do projeto que propunha a
descriminalização da interrupção voluntária da gravidez30, apresentado em 1991, mas que ficara
mais de quinze anos praticamente parado. Em 2008 o parecer de Jorge Tadeu Mudalen (DEM/SP)
a esse PL, pela sua rejeição e consequente manutenção do aborto como crime, foi aprovado pela
Comissão de Seguridade Social e Família, após intensa polêmica. Dois meses depois o projeto foi
considerado inconstitucional pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, sob parecer do
deputado Eduardo Cunha, pela acachapante maioria de 61 a 4.
A derrota do projeto denotou, para Dantas (2011:206), a eficácia do “lobby evangélico em
sua articulação com outros segmentos religiosos”. O resultado foi considerado pelos parlamentares
um marco e uma vitória das bancadas cristãs como um todo:
Mas a bancada evangélica já era muito expressiva desde 2003, quando passou a contar com
52 membros, e a bancada católica há décadas atuava contra o aborto no legislativo (Gomes,
Natividade e Menezes, 2009:29; Rocha, 2006). Então, além da articulação religiosa, o que explica
29
PL 478/2007, de Luiz Bassuma - PT/BA e Miguel Martini - PHS/MG, a ele apensados o PL 489/2007, de Odair
Cunha - PT/MG, o PL 1763/2007, de Jusmari Oliveira - PR/BA e Henrique Afonso - PT/AC, o PL 3748/2008, de
Sueli Vidigal - PDT/ES, o PL 1085/2011, de Cleber Verde - PRB/MA, o PL 8116/2014, de Alberto Filho -
PMDB/MA , Arolde de Oliveira - PSD/RJ e Aníbal Gomes - PMDB/CE.
30
PL 1135/1991, de Eduardo Jorge - PT/SP, Sandra Starling - PT/MG, a ele apensado o PL 176/1995, de José
Genoíno – PT/SP.
73
as propostas pelo agravamento da legislação contra o aborto a partir de 2006 e derrocada dos
projetos de descriminalização em 2008 depois de mais de década sem tramitação? Por que isso
ocorre nesse momento?
As manifestações dos deputados elucidam. Trata-se de reação a influxos pela
descriminalização do aborto vindos do Executivo. O Deputado João Campos (PSDB/GO), em
entrevista concedida para a pesquisadora Bruna Suruagy do Amaral Dantas (2011:180), a respeito
da derrubada da proposta pela descriminalização do aborto, afirmou que o governo do Presidente
Lula era um “governo abortista, que defende o aborto claramente, de forma aberta, sem nenhum
constrangimento”.
É que, em 2005, a Secretaria Especial de Políticas para Mulheres do Governo Federal
instalara comissão tripartite – com representação do Executivo, do Legislativo e da sociedade civil
– para revisar a legislação punitiva contra o aborto. Também em 2005 o Ministro da Saúde
Humberto Costa publicou a norma técnica “Atenção Humanizada ao Abortamento”, sobre o
atendimento nos casos de aborto legalmente autorizado, mesmo sem boletim de ocorrência. Ambas
as iniciativas foram criticadas em discursos em plenário, e a norma técnica foi objeto de um projeto
pela sua revogação31.
Além disso, José Gomes Temporão, Ministro da Saúde do segundo mandato de Lula, a
partir de maio de 2007 passou a dar declarações no sentido da necessidade de descriminalização
do aborto. Ele chegou a afirmar que a discussão sobre o assunto seria machista, uma vez que
conduzida apenas por homens, e que se eles engravidassem “essa questão já estaria resolvida há
muito tempo". Para Temporão, o aborto deveria ser tratado sob a perspectiva da saúde pública –
declaração que fez ao receber a “Carta do Rio de Janeiro pelos direitos sexuais e reprodutivos, pela
equidade de gênero e em defesa do estado laico”, elaborada por pesquisadores da saúde (Ac, 2007;
Cm, 2007; G1, 2007; Guerreiro, 2007).
As declarações do Ministro ensejaram inclusive iniciativa de criação uma Comissão
Parlamentar de Inquérito sobre a prática de aborto. O deputado Luiz Bassuma (PT/BA) afirmou
em Plenário, em 25 de fevereiro de 2008, que começou a coletar assinaturas para a criação dessa
CPI 32 baseado “em denúncia pública feita pelo próprio Ministro da Saúde de que se vendem
ilegalmente remédios abortivos e se faz a prática ilegal do aborto em nosso País”. A CPI visava,
31
PDC 42/2007, de autoria de Henrique Afonso – PT/AC. A norma técnica foi revogada pelo governo mesmo sem
ter sido o PDC aprovado.
32
RCP 9/2008, de Luiz Bassuma (PT/BA). A CPI nunca foi instaurada.
74
33
Mesmo com o decréscimo a partir de 2009, o tema continua na pauta, ainda que não se reflita em iniciativas
normativas. Fato especialmente relevante foi a publicação pelo Executivo, no ano de 2009, do 3º Programa Nacional
de Direitos Humanos, que originalmente previa o apoio à “aprovação do projeto de lei que descriminaliza o aborto,
considerando a autonomia das mulheres para decidir sobre seus corpos” (Decreto nº 7.037, de 21/12/2009). A
redação foi objeto de forte crítica, dentro e fora do parlamento. Na sequencia o texto foi revisto. No tópico, passou-se
a considerar “o aborto como tema de saúde pública, com a garantia do acesso aos serviços de saúde” (Decreto nº
7.177, de 12/05/2010).
34
Na disputa, resgatou-se um vídeo que, em entrevista do ano de 2009, Dilma Rousseff, então Ministra-Chefe da
Casa Civil, afirma que “o aborto é uma agressão”, mas que “o aborto, do ponto de vista de um governo, não é
questão de foro íntimo, mas de saúde pública”. Nas eleições de 2010 o campo pentecostal se dividiu – a IURD
defende a descriminalização do aborto e defendeu Dilma, enquanto a Assembleia de Deus se posicionou no sentido
oposto. Os movimentos católicos Renovação Carismática, Opus Dei e Defesa da Vida fizeram forte oposição à
candidata com base no tema. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, órgão máximo da Igreja Católica no país,
também cindiu internamente. O voto religioso jogou um papel decisivo e levou as eleições para o segundo turno
(Machado, 2012a:26, 36-37) A candidata recuou completamente. Na mensagem de Dilma para os cristãos, lançada
em 15/10/2010, para pôr fim às “calúnias”, ela afirmou defender a manutenção da legislação atual sobre o assunto e
afirmou que o PNDH-3 seria uma carta de intenções que estava sendo revista. Ela afirmou também que sancionaria o
PLC 122, sobre a criminalização da homofobia, apenas nos artigos que não violassem a liberdade de crença culto e
expressão (Rousseff, 2010).
75
Vemos pelo Gráfico 2 que o tema LGBT mobiliza mais iniciativas do que o aborto. Isso
ocorre possivelmente por esse ser um movimento mais recente que o movimento feminista,
colocando uma pauta relativamente nova no espaço político (Villazzón, 2014). Isso se dá também,
provavelmente, pela maior visibilidade das pautas LGBT nos grandes meios de comunicação –
pelo menos na impressão dos parlamentares 35 . Como afirmou o deputado Jefferson Campos
(PMDB/SP)36: “uma das maiores redes de televisão” brasileira atua pelo “marketing LGBT”. Em
contraposição a isso, nenhuma televisão no Brasil se manifesta pela descriminalização do aborto.
Assim como o combate ao aborto, aquele à agenda LGBT é anterior ao século XXI. A
militância contra os direitos das “minorias sexuais” remonta pelo menos à Assembleia Nacional
Constituinte (Câmara, 2002; Gomes, Natividade e Menezes, 2009:19; Pierucci, 1989:124). Ocorre
que, como o Gráfico 2 mostra, o ativismo contra a agenda LGBT aumenta lentamente, mas em
2011, no início da 54ª Legislatura, primeiro ano do mandato de Dilma, há um súbito crescimento.
Em 2011 é apresentada a iniciativa da “cura gay”, como apelidada por seus opositores. A
proposta 37 visava a sustar uma resolução do Conselho Federal de Psicologia que veda o
oferecimento de terapias para a homossexualidade. O CPF tinha a norma desde 1999, mas somente
12 anos depois de sua edição é que o parlamento se voltou contra ela. Para o autor da proposta, o
CFP restringe o trabalho dos profissionais de psicologia, extrapolando seu poder regulamentar e
usurpando a competência legislativa.
Foi também em 2011 que o PLC 12238, sobre a criminalização da homofobia, mais recebeu
atenção nos discursos em Plenário na Casa. De 2007 (o projeto foi aprovado na Câmara em
novembro de 2006) a 2010, a proposta foi objeto de 15 pronunciamentos; só em 2011, 25 discursos
o abordaram: um aumento de 66% em relação à soma do período anterior.
35
“Na novela Mulheres Apaixonadas, acompanhada por milhões de telespectadores, duas adolescentes envolvem-se
numa relação de lesbianismo com a naturalidade própria do amor heterossexual — quer dizer, natural. O exemplo é
péssimo para o público jovem, vítima do vale-tudo a que se dispõem as grandes redes de televisão, que invadem e
profanam a santidade dos lares e a intimidade das consciências na briga pela audiência. Seu objetivo é criar na mente
dos telespectadores menos preparados uma confusão entre o certo e o errado. Confusos, fica muito fácil impregnar
neles o conceito da permissividade: tudo é natural, tudo é normal e não há nenhum mal”. (Deputado Elimar Máximo
Damasceno, PRONA-SP, 14/07/2003.)
36
Discurso de 30/06/2015.
37
PDC 234/2011, de João Campos (PSDB/GO).
38
PLC 122/2006 é o número que recebeu no Senado. Na Câmara sua identificação era PL 5003/2001, de autoria de
Iara Bernardi (PT/SP).
76
Esse giro que acontece em 2011 foi uma reação a dois acontecimentos de maio daquele ano,
vindos de outros Poderes da República. O primeiro foi o julgamento, pelo Judiciário, da
constitucionalidade da união homoafetiva. O segundo foi a tentativa, pelo Executivo, de se divulgar
um material contra a homofobia nas escolas. Isso, porém, é o cume de um processo de anos.
No ano de 2004 o Ministério da Saúde publicara o “Brasil Sem Homofobia: Programa de
combate à violência e à discriminação contra GLTB e promoção da cidadania homossexual” (Cncd,
2004). O material, que continha diretrizes para a superação do preconceito e a promoção da
inclusão de pessoas LGBT, foi considerado um acinte à moral e aos bons costumes. Em 2008 foi
promulgada uma Portaria do SUS que regulamenta o processo transsexualizador39. A norma foi
criticada pelos valores que promoveria, e por gastar recursos públicos de saúde em um
procedimento que não seria prioridade. Em 2009 a Secretaria Especial de Direitos Humanos
publicou o Plano Nacional de Promoção da Cidadania e Direitos Humanos de Lésbicas, Gays,
Bissexuais, Travestis e Transexuais, que também foi criticado, especialmente pala diretriz de
promoção da não-discriminação nas escolas. O PNDH-340, publicado no fim de 2009, previa a ação
programática de instituir nos sistemas de informação do serviço público todas as configurações
familiares constituídas por pessoas LGBT com base na “desconstrução da heteronormatividade”.
Em 2010, no fim de seu mandato, Lula assinou o Decreto 7.388, que criou o Conselho Nacional de
Combate à Discriminação, voltado para o combate à discriminação e para a promoção e defesa dos
direitos de LGBT. O conselho foi criticado na Câmara por não combater a discriminação de outros
segmentos vulneráveis da sociedade, e foi visto dentro do mesmo pacto de medidas pelo aborto.
Em maio de 2011 ocorreu o julgamento mencionado, pelo Supremo Tribunal Federal, da
constitucionalidade da união estável entre pessoas do mesmo sexo, seguida pelo julgamento pelo
Superior Tribunal de Justiça da legalidade do casamento homoafetivo e de sua regulamentação
pelo Conselho Nacional de Justiça, que normatiza a atividade dos cartórios. Entre 2011 e 2012, 28
discursos abordam o tema em Plenário41. Os julgamentos foram considerados, por parlamentares,
inconstitucionais por violarem a competência do Legislativo e por violarem a definição de união
39
Portaria GM/MS nº 1.707, de 18/082008.
40
No ano de 2009 o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva publicou o 3º Programa Nacional de Direitos Humanos. O
documento, resultado dos trabalhos da 11ª Conferência Nacional de Direitos Humanos e de propostas aprovadas nas
mais de 50 conferências nacionais temáticas promovidas desde 2003, tratou do direito à memória, verdade e justiça,
de direitos LGBT, de reforma agrária, de aborto (como dito anteriormente), dentre outos temas que causaram reação
de setores conservadores.
41
Nem todos esses discursos integram o banco de dados que embasou o Gráfico 2, que apenas contempla
pronunciamentos em Plenário referentes a proposições específicas.
77
42
PDC 232/2011, de André Zacharow - PMDB/PR. Em 2013 a Comissão de Direitos Humanos e Minorias,
presidida então pelo deputado Marco Feliciano (PSC/SP), aprovou a proposta, que seguiu então para a CCJC, mas
acabou sendo arquivada.
43
A emenda estabeleceria quantidade mínima de votos de membros de tribunais para declaração de
inconstitucionalidade de leis; condicionaria o efeito vinculante de súmulas aprovadas pelo Supremo Tribunal Federal
à aprovação pelo Poder Legislativo e submeteria ao Congresso Nacional a decisão sobre a inconstitucionalidade de
Emendas à Constituição. O relatório do deputado João Campos (PSDB/GO) pela admissibilidade da proposta,
defendendo a separação de poderes, foi aprovado pela CCJC. Mas a PEC acabou não tendo comissão especial criada
e foi arquivada.
44
Nem todos esses discursos integram o banco de dados que embasou o Gráfico 2, que apenas contempla
pronunciamentos em Plenário referentes a proposições específicas.
45
Ou, nas palavras da presidenta: "Não aceito propaganda de opções sexuais. Não podemos intervir na vida privada
das pessoas" (Educação, 2011).
78
Somente em novembro de 2013, porém, a ideologia de gênero foi resgatada pelo deputado Pastor
Eurico, para então entrar definitivamente na agenda. De acordo com o parlamentar, os conceitos
de "gênero", "identidade de gênero" e "orientação sexual" trazem embutida a “ideologia de
gênero”. Na sua concepção, o gênero, ao substituir a “expressão ‘sexo’”, esconde “uma ideologia
que procura eliminar a ideia de que os seres humanos se dividem em dois sexos”. Para ele, a
“ideologia de gênero está sendo introduzida na legislação como uma bomba-relógio, com o
objetivo de destruir o conceito tradicional da família como a união de um homem e uma mulher
vivendo com compromisso de criar e educar filhos”. Ele alerta, ainda, para a existência do
movimento organizado em defesa da vida e da família e da moral e dos bons costumes:
(...) quero informá-los que temos aqui no Congresso Nacional um exército de defensores
da família, da vida humana e da liberdade religiosa atento 24 horas por dia a todas as
46
Nem todos esses discursos integram o banco de dados que embasou o Gráfico 2, que apenas contempla
pronunciamentos em Plenário referentes a proposições específicas.
79
investidas dos inquisidores da família, da moral e dos bons costumes. (Deputado Pastor
Eurico – PSB/PE, discurso em Plenário em 22/11/2013).
47
A formalização do Programa Escola sem Partido como um projeto de lei ocorreu mais tarde, em 2015, por
iniciativa do deputado Izalci (PSDB/DF). O PL 867/2015 propõe vetar “em sala de aula, a prática de doutrinação
política e ideológica bem como a veiculação de conteúdo ou a realização de atividades que possam estar em conflito
com as convicções religiosas ou morais dos pais ou responsáveis pelos estudantes”, e que apresenta como diretriz da
educação nacional o “respeito às convicções do aluno, de seus pais ou responsáveis, tendo os valores de ordem
familiar precedência sobre a educação escolar nos aspectos relacionados à educação moral, sexual e religiosa, vedada
a transversalidade ou técnicas subliminares no ensino desses temas”.
48
Pelo menos desde 2009 a bancada evangélica buscava centrar seus esforços em determinadas comissões, como a
de Constituição e Justiça, Seguridade Social e Família e Direitos Humanos e Minorias (Dantas, 2011:185).
49
PL 8035/2010, de autoria do Poder Executivo.
80
O projeto, assim como o Programa Escola Sem Homofobia, foi abordado em Plenário pela
primeira vez pelo deputado Jair Bolsonaro, que em 15 de agosto de 2013 manifestou desagrado
quando à proposta, associada ao Plano Nacional de Cidadania LGBT. O objetivo dos textos, em
suas palavras, seria a “desconstrução da heteronormatividade”. Ele bradou: “Qual a intenção?
Desgraçar o tecido social, esculhambar com os valores familiares, porque uma família destruída é
mais fácil de ser cooptada para o PT. Só posso crer que seja isso!”
Foi no debate do PNE que a expressão “ideologia de gênero” se fixou na Câmara, tanto nas
falas dos parlamentares quanto nas manifestações dos militantes religiosos que compareciam às
sessões de discussão do projeto. Após várias e acaloradas discussões, a posição contrária à menção
ao gênero e à orientação sexual no Plano venceu.
Apesar disso, o Documento Final da Conferência Nacional de Educação apresentou, dentre
as diretrizes para as políticas educacionais no Brasil, a superação das desigualdades de gênero e de
orientação sexual (Fne, 2014:19), trecho que fora retirado da proposta do PNE. Essa menção foi
considerada por parlamentares pró-família uma violação da lei, sendo objeto de forte crítica
expressa em 12 discursos.
À Conferência Nacional de Educação se seguiu a discussão dos planos estatuais e
municipais de educação. As críticas à ameaça de a ideologia de gênero estar contida nesses planos
foram expressas em 32 iniciativas, entre discursos e requerimentos. Ainda na esteira da reação à
posição da Conferência, foram apresentadas propostas para proibir que exista, no sistema, conteúdo
que tenda relativo à ideologia de gênero, gênero ou orientação sexual50, e mesmo para criminalizar
a inclusão, em atos de governo, de termos como orientação sexual e identidade de gênero, e de usar
essa expressão em materiais didático-pedagógicos, “com o intuito de disseminar, fomentar, induzir
ou incutir a ideologia de gênero”.51
Mais medidas foram tomadas no contexto de reação à introdução da “ideologia de gênero
nas escolas”. Em 2015 a resolução de n° 12 do Conselho Nacional de Combate à Discriminação de
LGBT (composto por membros do Estado e da sociedade civil, com sede no Executivo), que
estabeleceu condições de acesso e permanência de pessoas travestis e transexuais nos sistemas e
instituições de ensino, foi objeto de projetos de decreto legislativo pela sua sustação. Nada menos
50
PL 2731/2015, do deputado Eros Biondini - PTB/MG e PL 3236/2015, do deputado Pastor Marco Feliciano -
PSC/SP. Ambas as propostas foram retiradas de tramitação a pedido dos autores.
51
PL 3235/2015, do deputado Pastor Marco Feliciano - PSC/SP.
81
52
PDCs 16, 18, 30, 48, 61, 91 e 115/2015, assinadas por Alan Rick - PRB/AC, Alfredo Kaefer - PSDB/PR,
Anderson Ferreira - PR/PE, André Fufuca - PEN/MA, Andre Moura - PSC/SE, Antonio Bulhões - PRB/SP, Antônio
Jácome - PMN/RN, Brunny - PTC/MG, Capitão Augusto - PR/SP, Carlos Gomes - PRB/RS, Celso Maldaner -
PMDB/SC, Cleber Verde - PRB/MA, Delegado Éder Mauro - PSD/PA, Diego Garcia - PHS/PR, Edmar Arruda -
PSC/PR, Eduardo Bolsonaro - PSC/SP, Eros Biondini - PTB/MG, Esperidião Amin - PP/SC, Evair de Melo - PV/ES,
Evandro Gussi - PV/SP, Ezequiel Teixeira - SD/RJ, Fábio Sousa - PSDB/GO, Fausto Pinato - PRB/SP, Flavinho -
PSB/SP, Francisco Chapadinha - PSD/PA, Francisco Floriano - PR/RJ, Givaldo Carimbão - PROS/AL, Gonzaga
Patriota - PSB/PE, Hugo Leal - PROS/RJ, Irmão Lazaro - PSC/BA, Jair Bolsonaro - PP/RJ, Jefferson Campos -
PSD/SP, Jhc - SD/AL, João Campos - PSDB/GO, José Carlos Aleluia - DEM/BA, Jose Stédile - PSB/RS, Josué
Bengtson - PTB/PA, Júlio Delgado - PSB/MG, Leonardo Picciani - PMDB/RJ, Leonardo Quintão - PMDB/MG,
Lincoln Portela - PR/MG, Luciano Ducci - PSB/PR, Luiz Lauro Filho - PSB/SP, Major Olimpio - PDT/SP, Marcelo
Aguiar - DEM/SP, Marcelo Aro - PHS/MG, Marcos Rogério - PDT/RO, Marx Beltrão - PMDB/AL, Mendonça Filho
- DEM/PE, Miguel Lombardi - PR/SP, Missionário José Olimpio - PP/SP, Moroni Torgan - DEM/CE, Nelson
Marquezelli - PTB/SP, Nilton Capixaba - PTB/RO, Pastor Eurico - PSB/PE, Pastor Marco Feliciano - PSC/SP, Paulo
Foletto - PSB/ES, Paulo Freire - PR/SP, Professor Victório Galli - PSC/MT, Raquel Muniz - PSC/MG, Renzo Braz -
PP/MG, Ricardo Tripoli - PSDB/SP, Roberto Alves - PRB/SP, Roberto Sales - PRB/RJ, Rodrigo Martins - PSB/PI,
Rogério Rosso - PSD/DF, Ronaldo Martins - PRB/CE, Ronaldo Nogueira - PTB/RS, Sérgio Moraes - PTB/RS, Silas
Câmara - PSD/AM, Sóstenes Cavalcante - PSD/RJ, Stefano Aguiar - PSB/MG, Subtenente Gonzaga - PDT/MG,
Tenente Lúcio - PSB/MG, Uldurico Junior - PTC/BA, Valdir Colatto - PMDB/SC, Vinicius Carvalho - PRB/SP,
Walney Rocha - PTB/RJ.
53
PL 309/2011, do deputado Marco Feliciano – PSC/SP.
54
PL 943/2015, do deputado Alfredo Kaefer, PSDB/PR.
55
PL 8099/2014, do deputado Pastor Marco Feliciano, PSC/SP.
56
O REQ 54/2015, do Deputado Sóstenes Cavalcante (PSD/RJ), propõe debater ações e projetos nacionais para as
famílias que utilizam o sistema alternativo de alfabetização doméstica - homeschooling - em todo o País (sete
discursos em plenário defendem o homeschooling, entre 2004 e 2016.
57
PL 7672/2010, transformado na Lei ”, nº 13.010 de 2014, depois batizada de “Lei Menino Bernardo”.
82
do aborto”58. O Deputado João Campos afirmou que a lei desintegraria a família, assim como a
possibilidade de união entre pessoas do mesmo sexo59. Eles associaram, portanto, a interferência
do Estado no domínio familiar seria à promoção do aborto e dos direitos das pessoas LGBT.
O combate à ideologia de gênero, com vimos, ganhou corpo na cena legislativa como reação
à possibilidade de conteúdos a respeito da diversidade de orientação sexual e de identidade de
gênero serem tratadas na escola, em iniciativas do Poder Executivo, do Conselho Nacional de
Educação ou no contexto dos debates sobre o PNE. A ideologia de gênero, a um só tempo, combate
a reivindicação de descriminalização do aborto e as demandas do movimento LGBT, e sustenta
conteúdos relacionados à precedência da moral religiosa e familiar nos conteúdos educacionais.
Mas a ideologia de gênero não foi inventada no Brasil. É necessário um esclarecimento a esse
respeito.
A invocação "teoria de gênero" resulta da estratégia discursiva desenvolvida a partir de
1990 por católicos. Seu embrião está em diversos textos do Papa João Paulo II – Familiaris
Consortio (Paulo Ii, 1981), Mulieris Dignitatem (Paulo Ii, 1988) e Carta às mulheres (Paulo Ii,
1995) – e culminou com a publicação do Lexicon (Fillod, 2014:322; Pcf, 2003). Esse livro reúne
textos escritos pelo Conselho Pontifício para a Família, com a intenção de deslegitimar o que é
produzido no campo dos estudos de gênero. Foi publicado na Itália em 2003, na França em 2005
e, desde então, traduzido em oito idiomas. É um dicionário sobre gênero, sexualidade e bioética,
proveniente de mais de setenta autores, muitos deles conselheiros do Vaticano (Garbagnoli,
2014:250, 54).
Ao lado dos conselheiros do Vaticano, a norte-americana Dale O'Leary, católica da Opus
Dei, é das principais elaboradoras do conceito de “ideologia de gênero”. A escritora é pertencente
à Associação Nacional de Pesquisa e Terapia da Homossexualidade e ao Conselho de Pesquisa da
Família, ambas para prevenção e tratamento da homossexualidade, para defesa de princípios
cristãos e da família tradicional (Fillod, 2014:322-3).
58
Deputado Pastor Eurico – PSB/PE, discurso em Plenário em 11/06/2014
59
Deputado João Campos - PSDB/GO, discurso em Plenário em 28/03/2011
83
A autora, já em 1995, insurge-se contra o gênero. Ela critica então a Plataforma de Ação
para a IV Conferência Mundial sobre a Mulher, que aconteceria em Pequim naquele ano. Para
O´Leary (1995), o documento era baseado em pressupostos feministas radicais, não compartilhados
pela maioria das mulheres do mundo, centrados na noção de “gênero”. A autora pontua que
“gênero”, na forma como utilizada na conferência, “não significa masculino e feminino – não é um
sinônimo de sexo”. Gênero, como ela aponta, se refere a papeis socialmente construídos e que
podem ser alterados: masculinidade e feminilidade; heterossexualidade, homossexualidade e
bissexualidade; maternidade e paternidade. Assim, a plataforma de Pequim estaria sendo pensada
para mudar a natureza humana.
As organizações contra a ideologia de gênero se posicionam contra qualquer arranjo que
não seja dentro da família natural, que permita relações entre pessoas do mesmo sexo (ou o sexo
fora da procriação), que tire as mulheres do seu foco principal de cuidado com seus filhos e marido,
que questione que a divisão de papeis os sexos não seja derivada da natureza, que discuta a
legalidade do aborto (Fillod, 2014:322; Garbagnoli, 2014:259; O'leary, 1997:207). Segundo
O´Leary (1997:97-116), essa ideologia é baseada em uma interpretação neo-marxista da história
desenvolvida em 1970, radicalizada em 1990 por Judith Butler (2010 [1990]), mas ainda mais
opressiva, aparecendo sob o disfarce de um discurso de libertação e igualdade60.
Contemporaneamente na Itália as organizações católicas contra o gênero se articulam contra
intervenções no ambiente escolar que visem a quebrar estereótipos ou combater a violência
homofobia (Garbagnoli, 2014:259). Na França, a teoria de gênero foi invocada, por exemplo,
60
Isso reverbera na fala dos parlamentares brasileiros: “Uma coisa que faço questão de frisar, Sr. Presidente, sobre o
PNE em discussão nesta Casa, é a inclusão da ideologia de gênero no texto legal. Como defensor convicto da família
e dos princípios cristãos tradicionais da sociedade brasileira, considero uma aberração essa ideia imaginada por
cientistas sociais que tem como eixo a afirmação de que o sexo biológico com o qual nascemos não define a nossa
sexualidade. Esta é pura e simplesmente uma construção social, que pode assumir tantas variáveis quanto julgarem
conveniente aqueles que querem implantar essa ideologia. O fim último dela é a completa subversão da sexualidade
humana e da família natural. A teoria de gênero está sendo utilizada para promover uma revolução cultural sexual
marxista, principalmente entre as crianças em idade escolar. Tem suas origens nas ideias dos pais do comunismo,
Marx e Engels.
Na submissão da mulher ao homem através da família, e na própria instituição familiar, Marx e Engels entenderam
estar a origem de todos os sistemas de opressão que se desenvolveriam em seguida. Se essa submissão fosse
consequência da biologia humana, não haveria nada que fosse possível fazer.
A ideologia de gênero, afirmando que a diferença entre o homem e a mulher não é biológica - pasmem! -, mas
consequência de papéis socialmente construídos, somou-se à obra de Marx através da conclusão que, se esta é a base
de toda opressão e tudo não passa de uma construção social, então será possível modificar, justamente através da
ideologia de gênero, os papéis de homens e mulheres até chegarmos a uma igualdade tão completa que não haveria
mais espaço para os papéis de marido e esposa e mesmo da instituição que hoje conhecemos como família.”
(Deputado Givaldo Carimbão, PROS/AL, em 09/04/2014).
84
quando apresentou-se um projeto de lei em 2012 para permissão do casamento de casais do mesmo
sexo (Fillod, 2014:322). Na América Latina, para Villazzón (2014), a “ideologia de gênero” é um
dos elementos centrais da atuação evangélica – e não católica – no início do século XX, relacionada
às agendas pró-família, pró-vida e contra a “agenda gay”. Para ele, o combate à “ideologia de
gênero” se dá em reação sobretudo à ascensão do movimento LGBT.
No Brasil essa produção influencia o processo político. Desde pelo menos 2014 são
distribuídas nas dependências da Câmara dos Deputados duas publicações. Uma delas é o panfleto
“Caindo no conto do gênero”, que consiste em uma entrevista com o Padre José Eduardo Oliveira
Silva, professor de Teologia Moral (Silva, 2014). Esse material é editado pela Zenit, “agência de
notícias internacional, sem fins lucrativos, formada por profissionais e voluntários convictos de
que a sabedoria extraordinária do Papa e da Igreja Católica”.61 A outra publicação é um resumo
em português do livro The Gender Agenda, de Dale O'Leary (1997).
O uso do material sobre a teoria de gênero, entretanto, embora produzido por católicos, se
dá não apenas por católicos, mas sobretudo por evangélicos no legislativo brasileiro. Aliás, na 54ª
legislatura eram apenas três padres, e nas 55ª apenas dois, e todos filiados a partidos de esquerda e
defensores dos direitos LGBT 62 . A ação pró-família, como aponta Villazón e como veremos
adiante, tem protagonismo pentecostal na Câmara dos Deputados.
61
Informação disponível em https://pt.zenit.org/agencia/, acessada em 05/05/2017.
62
São eles Padre João (PT/MG), Luiz Couto (PT/PB) e Padre Tom (PT/RO) – esse último não tem mandado na 55ª
Legislatura.
85
desde a concepção e veta o casamento entre pessoas do mesmo gênero – temas que, de forma
inédita, passaram pelo crivo de um colegiado.
O enfrentamento ao aborto, embora ganhe menor quantidade de iniciativas com o passar
dos anos, mantém sua presença na agenda com a aprovação, também em 2015, na Comissão de
Constituição e Justiça da Câmara, do PL 5069/2013, de autoria do deputado Eduardo Cunha. O
texto do relator Evandro Gussi (PV-SP), aprovado na CCJC, torna crime a prestação de qualquer
auxílio ou até mesmo orientação a mulheres para interrupção da gravidez e prevê mais exigências
para o aborto em caso de estupro63. Foi a primeira investida aprovada em um colegiado no sentido
de restringir o aborto legal.
Em 2015 há uma consolidação à ação reativa iniciada anteriormente. Por esses motivos,
esta tese investiga a existência de um movimento neoconservador no legislativo brasileiro a partir
de 2015 – ano em que crescem as iniciativas pró-família, iniciadas anos antes em reação a
conquistas do movimento feminista e LGBT perante poderes instituídos.
Seguindo as perguntas elencadas para serem respondidas neste capítulo, vimos na sessão
anterior que os principais momentos de crescimento da ação em defesa da família tradicional
ocorrem em reação à influência de movimentos feministas e LGBT na política brasileira. Agora
veremos quem são os protagonistas dessa reação.
63
Prevê a necessidade de perícia, além do boletim de ocorrência, para a caracterização de violência sexual, e
estabelece que, embora a profilaxia da gravidez e o aborto em caso de estupro sejam direitos, “nenhum profissional
de saúde ou instituição, em nenhum caso, poderá ser obrigado a aconselhar, receitar ou administrar procedimento ou
medicamento que considere abortivo”.
86
Tabela 2 – Participação das deputadas no total de iniciativas contra o aborto, contra demandas
LGBT e contra o gênero (2013-2015).
transexuais no sistema de ensino64. A iniciativa tem 78 autores, de 18 partidos (DEM, PDT, PEN,
PHS, PMDB, PMN, PP, PR, PRB, PROS, PSB, PSC, PSD, PSDB, PTB, PTC, PV, SD), de 21
estados da federação. Ou, ainda, o PDC 214/2015, para sustar a criação do “Comitê de gênero” no
MEC65. A iniciativa tem 48 autores, de 16 partidos (DEM, PDT, PHS, PMDB, PP, PR, PRB, PROS,
PSB, PSC, PSD, PSDB, PTB, PT do B, PV, SD) e 19 estados.
Como o Gráfico 4 mostra, mais de 60% das iniciativas pró-família partem de deputados
evangélicos (entre tradicionais, pentecostais e neopentecostais). Sua contribuição é
desproporcional ao seu tamanho – a bancada evangélica teve, entre os anos pesquisados, a média
de 12% das cadeiras da Câmara.
Mórmon
Espíritas
Católicos
Protestantes
64
“Susta a Resolução nº 12, de 16 de janeiro de 2015, do Conselho Nacional de Combate à Discriminação e
Promoções dos Direitos de Lésbicas, Gays, Travestis e Transexuais - CNDC/LGBT, que ‘Estabelece parâmetros para
a garantia das condições de acesso e permanência de pessoas travestis e transexuais - e todas aquelas que tenham sua
identidade de gênero não reconhecida em diferentes espaços sociais - nos sistemas e instituições de ensino,
formulando orientações quanto ao reconhecimento institucional da identidade de gênero e sua operacionalização’”.
65
“Susta a Portaria nº 916, de 9 de setembro de 2015, do Ministério da Educação, que ‘Institui Comitê de Gênero, de
caráter consultivo, no âmbito do Ministério da Educação’”.
88
Católicos, entre carismáticos e tradicionais, contribuem com mais de 25% das iniciativas.
Cerca de 15% dos discursos e proposições partiram de deputados cuja denominação não foi
identificada. Espíritas contribuem com 6%. Todas as religiões identificadas são cristãs.
Tanto a bancada católica quanto a evangélica são heterogêneas. Os católicos podem ser
carismáticos ou tradicionais. Os deputados evangélicos são pertencentes a denominações
tradicionais (batistas e metodistas); à Assembleia de Deus, à Igreja Universa do Reino de Deus e a
outras denominações de menor porte.
Mórmon
Espírita
Igreja Universal do Reino de Deus
Católico carismático
Protestante tradicional
Evangélica - outras
Sem religião identificada
Católico tradicional
Assembleia de Deus
Assembleia de Deus
Católico Carismático
Católico tradicional
Sem religião identificada
Evangélico tradicional
Evangélico - outras
IURD
Mórmon
Espírita
0 10 20 30 40 50 60 70 80
Sua contribuição é proporcional ao seu peso: a Assembleia contribuiu com 38% das
iniciativas e tem 34% da composição evangélica da Câmara, na média entre as legislaturas
estudadas. A pequena participação da IURD no ativismo, por sua vez, não era de todo previsível.
Era previsível, sim, em relação ao aborto. A Universal adota posição mais progressista no tema do
que outros setores evangélicos e do que a Igreja Católica (Dantas, 2011:184; Machado, 2012a:31;
2012b:43, 46).
Entretanto a Universal, de acordo com os dados desta pesquisa, mostra-se também mais
progressista em relação ao gênero e às questões LGBT, o que é um achado digno de nota. A
contribuição da Universal é quase residual em qualquer tema. Seus deputados apresentaram 2%
das iniciativas contra ou pelo endurecimento do aborto, 4% contra o gênero e 4% contra as
demandas LGBT. É uma contribuição desproporcional ao seu peso no campo evangélico: a IURD,
ao longo das legislaturas estudadas, teve em média 18% dos membros da bancada evangélica66.
A Igreja Católica historicamente protagonizou a luta pró-vida nas instituições (Aldana,
2008:640, 42). Mas, como identificam Miguel, Biroli e Mariano (2016:132), sobretudo a partir dos
anos 1990 cresce uma articulação entre católicos e pentecostais no Congresso Nacional em relação
66
Resultado obtido a partir dos dados de Campos (2010:65); Dantas (2011:46-47); Diap (2014; Fonseca (2008:pos.
4160).
90
à temática. É o que os dados do Gráfico 6 indicam: a Igreja Católica não tem mais o protagonismo
principal da militância contra o aborto, embora sua participação seja bastante relevante. Há, ainda,
uma militância católica significativa contra as pautas LGBT, ainda que a maior parte da atuação
nesse campo também seja pentecostal.
Fonte: elaboração própria com dados de Baptista (2007; Diap (2014; Machado (2012b
LGBT e feministas antecede, portanto, o maior crescimento da bancada em 2011, até o cume tanto
de iniciativas quanto de religiosos eleitos em 2015.
Esses dados vão ao encontro do argumento de Machado (2012b:39), para quem o
reposicionamento do combate ao aborto e à homossexualidade na agenda política foram bem-
sucedidos no sentido de trazer projeção e retorno eleitoral aos evangélicos. Vital e Lopes
(2014:176) corroboram a hipótese. Eles afirmam que as “ações performáticas dos evangélicos na
política fizeram com que eles aparecessem na mídia como atores muito poderosos”,
contrabalanceando o fato de, pelo menos até 2007, só conseguirem compor o “baixo clero”
(Baptista, 2007:234 e 92).
Na síntese de Machado e Burity (2014:601-2), a participação dos pentecostais no Poder
Legislativo é explicada por dois vetores principais: a) como forma de sobrevivência em uma ordem
social em que os movimentos feministas e pela diversidade sexual vinham influenciando políticas
públicas no campo da educação, da saúde e das relações familiares – essa é a hipótese da reação,
vista acima, e b) como forma de construção “de uma agência coletiva com pretensões de
reconhecimento e influência”.
Portanto, não é propriamente o crescimento da bancada evangélica que explica o
crescimento do ativismo conservador. Mais precisamente, o que informa a reação pró-família seria
a busca por visibilidade política por parte desses religiosos e busca resistir a avanços do feminismo
e do movimento LGBT no Executivo e no Judiciário.
Há outro esclarecimento a fazer. O movimento evangélico é definido, de maneira geral,
como antifeminista67 (Gago, 2013b; Hallum, 2003; Villazón, 2014). Para Saulo Batista (2007:229),
67
Para Machado (2005), “uma das consequências não intencionais da adesão das mulheres ao pentecostalismo é
justamente a ampliação da autonomia dessas fiéis em relação aos seus parceiros e familiares. Mariz e Machado
(1997:51-2), em estudo sobre o Brasil, concluem que, se o pentecostalismo envolve a assunção de valores
individualistas, esse individualismo é muito distante do feminismo liberal. A mulher pentecostal não contesta os
valores tradicionais sobre a família, o comportamento sexual ou os papeis de gênero. Mas o pentecostalismo, ao
enfatizar que a mudança de vida depende apenas da relação do indivíduo com Deus, coloca as mulheres em uma
posição menos presa à rigidez dos desígnios impostos contra sua vontade. Antes coloca essas mulheres como agentes
ativos e responsáveis por sua própria vida e de sua família; responsáveis contra o mal, identificado com as paixões
naturais e os instintos. Além disso, como apontam pesquisas levantadas por Hallum (2003:181, 84), a ideologia
evangélica condena a violência, o que protege as mulheres em contextos domésticos de agressão. As organizações
pentecostais contribuem também para solução de problemas como atenção à saúde, pobreza, baixa autoestima e
abuso masculino, todas questões que atingem particularmente as mulheres. Machado (2005:384-5) ainda pondera que
a IURD se destaca por “ser a igreja mais feminina, estimular a entrada das mulheres no mercado de trabalho,
fomentar o ativismo político e apoiar candidaturas das fiéis nas disputas eleitorais, ao mesmo tempo que mantém um
controle sistemático sobre o processo de ascensão das mulheres na hierarquia religiosa e na formação de lideranças
políticas femininas”.
92
a “grande bandeira” dos pentecostais nos parlamentos é a defesa da família. Freston (1993:235)
identifica o foco de preocupação em tais questões como o central desde o recrutamento para a
constituinte.
Esses argumentos levantados pelos autores são convergentes com os achados desta tese.
Há, porém, duas nuances relevantes. A primeira delas é que não há unanimidade evangélica sobre
o aborto tampouco sobre questões LGBT, como vimos. Trata-se, sempre, de generalizações. A
outra nuance diz respeito à centralidade nas questões de gênero na ação evangélica. Veremos ao
longo desta tese que, embora a agenda de gênero seja a principal pauta evangélica, essa não é a
única: os evangélicos aderem majoritariamente a temas que se referem a uma agenda mais ampla,
neoconservadora.
Argumentos políticos
Argumentos científicos
Argumentos de maioria
Argumentos jurídicos
0 10 20 30 40 50 60 70 80 90 100
93
Começando dos menos frequentes: os argumentos sobre saúde se referem aos riscos que o
aborto traz à saúde da mulher, à negativa do aborto como método contraceptivo e à mortalidade
materna. Os argumentos de gestão orçamentária criticam os gastos estatais com programas LGBT
e aborto legal. Os argumentos políticos invocam os conceitos de cidadania e de democracia;
consistem também em críticas a manobras regimentais consideradas ilegítimas. Os argumentos
científicos tratam da discussão de estatísticas referentes à mortalidade que decorre do aborto ilegal
e da afirmação de que a homossexualidade é um transtorno, ou que cientificamente se comprovaria
que a orientação sexual pode ser modificada. Os argumentos baseados no resultado de políticas
públicas se referem à descriminalização do aborto não solucionar a mortalidade decorrente da
prática ilegal, ao fundo de direitos das mulheres fomentar o aborto e às políticas pela diversidade
sexual estimularem a homossexualidade. Os argumentos baseados na natureza são aqueles segundo
os quais a família é baseada na procriação e a ideologia de gênero subverte ordem natural.
São 31 as iniciativas que trazem o argumento de que os valores da maioria dos brasileiros,
que é cristã, devem prevalecer sobre demandas das minorias, seja em relação ao casamento entre
pessoas do mesmo sexo, seja em relação ao aborto68. Diz-se que a maioria dos brasileiros é cristã
e defende a família; a minoria, que defende a ideologia de gênero, quer destruí-la69. Na verdade, já
na constituinte evangélicos adotaram argumentos que foram classificados por Pinheiro (2008:86)
como aqueles que colocam os “evangélicos enquanto maioria moralista” e os “evangélicos
enquanto minoria religiosa”. Assim, não obstante serem uma minoria, eles se consideram porta-
vozes do desejo da vontade da maioria cristã, que deveria prevalecer.
Em terceiro lugar estão os argumentos religiosos como os mais frequentes. Trata-se de
citações à importância das religiões cristãs, em especial à Católica e à Evangélica e às bancadas
68
O argumento da maioria cristã não fica adstrito às questões de sexualidade. O carismático Flavinho defendeu, no
Plenário em 15/04/2016, o impeachment de Dilma Rousseff em nome da maioria cristã brasileira, que seria contra o
que o governo petista defenderia: “uma ideologia embolorada, comunista, marxista, que quer transformar a
naturalidade de homem e mulher por meio de suas políticas públicas”. No mesmo sentido o Pastor Marco Feliciano
(discurso em Plenário em 14/10/2014), felicitando a eleição de mais deputados conservadores em 2014, rechaçara o
que seria, por parte de Dilma Rousseff, “a imposição de um regime socialista aos moldes bolivariano e cubano” e
felicitou a defesa da família tradicional. Para ele, a eleição foi o despertar da sociedade conservadora brasileira, de
maioria cristã.
69
Deputado Pastor Eurico – PSB/PE, em voto em separado ao PL 7086/2014, em 05/11/2014.
94
religiosas da Câmara; referências a Deus, à Bíblia, aos valores cristãos e à noção de pecado que
reside na homossexualidade e no aborto. Além disso, há outros raciocínios, tais como: as doenças
seriam uma resposta divina aos vícios humanos, argumento utilizado no contexto da discussão
sobre propostas de união civil entre pessoas do mesmo sexo70; a ideologia de gênero seria contra a
criação de Deus 71 ; a família seria aquela definida no Velho Testamento 72 ; só Deus dá a vida,
portanto só ele pode retirá-la, por isso o aborto de feto anencefálico deve ser proibido73; a família
é a definida por Deus e alheia a comparações profanas como com as relações homossexuais74
Em segundo lugar está a defesa da família tradicional, aquela formada pela união entre o
homem e a mulher com vistas à procriação. A família tradicional seria o alicerce basilar da
sociedade e estaria ameaçada pela ideologia de gênero. Mais que isso. As feministas radicais,
fundamentadas na ideologia de gênero, quereriam destruir a família para se livrarem da opressão
da mulher. E, assim, defenderiam a aniquilação de seu membro mais vulnerável: o feto 75 . O
reconhecimento da família formada por pessoas do mesmo sexo significaria um ataque à família
tradicional76. Por outro lado, o fortalecimento da família formada pelo casamento heterossexual
seria a solução para toda ordem de problemas: para evitar a gravidez precoce77 ; para evitar o
aborto78; para combater estupros79. A família seria o caminho para uma sociedade justa e contra a
criminalidade80. A família, ademais, seria o instrumento de proteção das mulheres “de verdade”,
que não quereriam ser empoderadas, mas sim amadas e cuidadas81.
70
Pastor Manoel Ferreira, voto em separado ao PL 674/2007.
71
Deputado Carlos Andrade – PHS/RR, discurso em Plenário em 03/09/2015.
72
Pastor Eurico – PSB/RG, voto em separado ao PL 7.086/2014
73
Deputado Miguel Martini – PHS/MG, discurso em Plenário em 28/10/2008
74
Deputado Walney Rocha, PTB-RJ, discurso em Plenário em 24/05/2011.
75
Deputado Elimar Máximo Damasceno – PRONA/SP, discurso em Plenário em 27/05/2004, que não consta no
banco de dados quantitativo por não se referir a proposição específica, mas que é citado aqui por ser um dos
primeiros a tratar da ideologia de gênero.
76
Deputado Antonio Bulhões – PRB/SP, discurso em Plenário em 24/06/2015.
77
PL 7180/2014, parecer do relator Deputado Diego Garcia, PHS-PR, em 22/05/2015.
78
Deputado João Campos – PSDB/GO, voto em separado ao PL 1135/1991, em 09/07/2008.
79
Deputado Marco Feliciano – PSB/SP, discurso na Comissão de Direitos Humanos e Minorias em 09/06/2016, que
não consta no banco de dados quantitativo por não ter sido proferido no Plenário, mas que é citado aqui por se referir
à oposição do parlamentar, um dos protagonistas da ação investigada neste capítulo, à reivindicação feminista de
reconhecimento de que existe uma “cultura do estupro” no Brasil.
80
Deputado Alan Rick – PRB/AC, discurso em Plenário em 01/07/2015, que não conta no banco de dados
quantitativo, mas que é citado por se referir à ideologia de gênero e por ser proferido por um dos protagonistas da
ação investigada neste capítulo.
81
Deputado Flavinho - PSB/SP, discurso em Plenário em 27/04/2016, que não consta no banco de dados
quantitativo por não ter se referir a proposição específica, mas que é citado aqui por se referir a um embate do
parlamentar, que é um dos protagonistas da ação investigada neste capítulo, com feministas.
95
Por fim, os argumentos e as referências mais frequentes são os jurídicos. São dezenas deles,
dentre os quais se destacam os seguintes: o aborto viola o direito à vida, que é cláusula pétrea, e,
portanto, é inconstitucional; a família é definida no artigo 226 da Constituição, estabelecida entre
um homem e uma mulher; as resoluções do governo sobre os direitos LGBT extrapolaram o poder
regulamentar do Executivo; o combate à homofobia viola o direito fundamental à liberdade de
expressão; o STF invadiu a esfera legislativa ao jugar constitucional a família formada por um casal
de pessoas do mesmo gênero; os pais têm o direito de educar seus filhos conforme seus valores
morais, de acordo com o Pacto de São José da Costa Rica.
Ainda que não levem em consideração resultados quantitativos, estudos prévios apontam a
relevância de argumentos fora do campo religioso na ação contra os direitos sexuais e reprodutivos
e os direitos LGBT, cujo protagonismo, como vimos, é predominantemente evangélico. Um dos
pontos fundamentais de análise de Vital e Lopes (2013:20), por exemplo, é aquele segundo o qual
“os religiosos operam com as mesmas categorias, mobilizando um conjunto de argumentos que é
também utilizado por aqueles que desejam garantir a separação institucional entre Estado, política
e religião no Brasil”.
A conclusão é verdadeira, mas parcial. Como visto no Gráfico 7, os argumentos religiosos
expressos são importantíssimos, quase tão frequentes quanto os jurídicos e a defesa da família
tradicional. Os resultados desta pesquisa são mais próximos da conclusão de Dantas (2011:60),
para quem a bancada evangélica, “em decorrência da experiência política adquirida nos últimos
trinta anos, passou a pronunciar enunciados mais politizados”. Assim, mobiliza referências à
inconstitucionalidade de projetos de lei, por exemplo, para afinal “sustentar teses em prol da
moralidade cristã”. Mas, para a autora, “apesar da incorporação de símbolos políticos em seus
sistemas de argumentação, o discurso dos parlamentares evangélicos continua a serviço da
preservação da moral privada e dos valores religiosos”.
O uso de argumentos jurídicos, científicos e políticos pode ser uma estratégia retórica para
apresentar intenções religiosas em um Estado laico, ou estratégia de debate em um ambiente no
qual muitos atores reivindicam argumentos não-religiosos. Mas a estratégia pode ser lida também
como como forma de contrapor os argumentos de seus opositores com base nas suas próprias
categorias e como forma de agregar elementos de convencimento a reivindicações que em sua
origem são religiosas.
96
e é usada a partir de 2011 no parlamento brasileiro, principalmente por evangélicos, para combater
a um só tempo o feminismo e as demandas LGBT, em defesa da família e da religião. A ideologia
de gênero traz em si o binômio família/anticomunismo, pois é tida, em essência, como uma
ideologia neo-marxista (O'leary, 1997:97-116), elemento que reforça sua conexão com um ideário
neoconservador.
O ativismo pró-família brasileiro é, tal qual o movimento neoconservador estadunidense,
protagonizado por evangélicos – nosso equivalente da direita cristã. Há participação também de
católicos e espíritas, mas os protestantes impulsionam a maior parte das iniciativas. Aqui há uma
peculiaridade: o protagonismo é sobretudo da Assembleia de Deus, primeira e maior denominação
pentecostal do Brasil.
Os argumentos mais frequentes usados na reação pró-família brasileira são religiosos
cristãos – depois de argumentos jurídicos e da defesa da família tradicional. O léxico
neoconservador está presente: os valores da maioria cristã devem prevalecer; a família é o principal
projeto para uma sociedade justa e o principal mecanismo para prevenir estupros, pobreza, gravidez
precoce, entre outros males. A família, e não o feminismo, oferece a segurança que as mulheres
querem e precisam.
Tendo, portanto, que há um movimento pró-família no Brasil com significativas
semelhanças com o movimento neoconservador norte-americano, no capítulo seguinte se
investigará a respeito da existência de um paralelo em relação a temas de justiça criminal. Antes,
porém, veremos o caso do Estatuto da Família, que sintetiza as semelhanças da ação pró-família
nos dois países.
gênero. O projeto brasileiro ainda se preocupa com questões relativas à educação, central na pauta
neoconservadora estadunidense e, como temos visto ao longo desse Capítulo, central à ação pró-
família brasileira.
A proposta, em síntese, define a família como a união entre um homem e uma mulher ou
ainda a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes – excluindo, portanto, as
uniões homoafetivas do conceito de família; cria e torna obrigatória a disciplina “Educação para
família” nos currículos escolares – coerente com a preocupação neoconservadora com a educação
voltada para os valores morais religiosos evangélicos; estabelece a celebração do Dia Nacional de
Valorização da Família nas escolas; institui os Conselhos da Família, “órgãos permanentes e
autônomos” “encarregados de tratar das políticas públicas voltadas à família e da garantia do
exercício dos direitos da entidade familiar”. Nesse sentido, de previsão de diretrizes para políticas
públicas, o projeto incentiva com políticas públicas a família tradicional.
O PL 6583/2013 foi apresentado pelo deputado Anderson Ferreira (PR/PE). Assim como o
Senador Laxalt, que propôs o Ato de Proteção da Família, Anderson Ferreira é um membro da
direita evangélica, pertencente à Assembleia de Deus. A justificativa sociológica, baseada em um
argumento tipicamente neoconservador, é nos problemas decorrentes da “desconstrução do
conceito de família”, que repercutiria “na dinâmica psicossocial do indivíduo”. Assim, com o
projeto, pretende-se combater a drogadição, a violência doméstica e a gravidez na adolescência.
Outro PL 2285/2007, anterior, de autoria de Sérgio Barradas Carneiro – PT/BA, dispunha
sobre o Estatuto das Famílias. Esse PL, com 274 artigos (em contraste com os 15 do Estatuto de
Anderson Ferreira), dava à união homoafetiva um regime jurídico próprio, com as mesmas regras
aplicáveis à união estável heterossexual. Mas esse PL não recebeu comissão especial, e, sim, o
projeto de Ferreira. A criação de uma comissão especial é resultado de uma decisão política do
presidente da Câmara dos Deputados que, à época, era Henrique Eduardo Alves (PMDB/RN).
O primeiro relator, Ronaldo Fonseca, acrescentou ao projeto norma de que os adotantes
fossem casados civilmente ou mantivessem união estável no modelo heterossexual. Mas a
legislatura foi encerrada sem apreciação do parecer. Em 2015, primeiro ano da nova composição
da Câmara, foi novamente constituída Comissão Especial e apresentado, em setembro, parecer do
99
novo relator, Diego Garcia (PHS/PR). Esse parecer, apesar da oposição de diversos parlamentares,
foi aprovado pela comissão82.
Diego Garcia, em seu parecer, apresentou substitutivo (uma nova versão do PL) com as
mesmas características do projeto original: definição da família como união entre homem e mulher;
diretrizes de políticas públicas; criação de conselho de família. Ele excluiu a proibição expressa da
adoção por casais homoafetivos e acolheu emenda do deputado Marcos Rogério (PDT/RO) sobre
o dever do Estado, da sociedade e do Poder Público assegurar à entidade familiar a efetivação do
direito à vida desde a concepção. Ou seja, o substitutivo, assim como o Ato norte-americano,
restringia o aborto.
O parecer de Garcia ilustra a movimentação pela qual passou o neoconservadorismo na
Câmara dos Deputados em relação à temática de gênero. Trata-se de um projeto apresentado por
um deputado evangélico, relatado por um deputado católico carismático, promovido sobretudo pela
bancada evangélica. Suas pautas fazem parte do núcleo da agenda evangélica. Ainda assim, o
relator procura, em suas palavras, apresentar um parecer “estritamente jurídico”, sem fundamentos
religiosos83. O argumento central do relator é o disposto no artigo 226 da Constituição:
82
O projeto teria seguido para o Senado, mas deve ser apreciado pelo Plenário da Câmara por conta do recurso
apresentado pelos deputados Jean Wyllys e Érika Kokay.
83
É o que explicou no Chat Interativo promovido pela Câmara dos Deputados no dia 08/09/2015.
100
(...) a pessoa que tem afeto, antes está numa posição passiva, afetada. O afeto é um
sentimento. Por vezes se alia a uma conduta nobre, conforme à dignidade humana. Por
vezes se distancia da atitude correta, sendo avesso a compromissos familiares e deveres
sociais. (…) Pedófilos nutrem afeto pela prática sexual com crianças; zoófilos pela
atividade sexual com animais. Nem uma e nem outra situação são protegidas pela lei (…)
A definição objetiva da família, para efeitos jurídicos, como credora da proteção especial
do Estado, portanto, depende da conformação das relações àquilo que o Estado reputa
como sendo ‘base da sociedade’, antes que da atribuição individual afetiva.
Apesar de comparar o afeto entre pessoas adultas à zoofilia e à pedofilia, o relator considera
que a proposta de Estatuto da Família não seria homofobia. Defender o casamento heterossexual,
para ele, não é homofobia, que “tem a ver com a aversão à pessoa do homossexual” e que “respeitar
a uma pessoa não se confunde com acatar suas práticas ou trabalhar para que seus interesses sejam
equiparados a direitos”. Para o relator, a proposta tampouco é fundamentalista, pois “quem acusa
outrem de ‘fundamentalista religioso’ deve provar que se trata de uma pessoa violenta e que está
constrangendo outra a aderir a seu ponto de vista religioso”.
Na mesma linha, Garcia afirma que “é possível aprovar um Estatuto que não contemple
todos os modelos de vida da atualidade, porque o Estatuto pretende fortalecer a família definida
pela Constituição”. O relator sugere que o Legislativo poderia no futuro apreciar a criação da
“parceria vital”, mediante a qual “poder-se-ia reconhecer o enlace de solidariedade entre duas
pessoas, que estabeleceriam vínculo de peculiar interdependência”, o que “atenderia também
reuniões de pessoas do mesmo sexo, independentemente da orientação sexual”. Nota-se que há
uma preocupação significativa em combater a o argumento de que a ação pela “família tradicional”
seria preconceituosa, argumento usado pelo movimento LGBT.
Em discurso, o deputado associa o Estatuto da Família ao combate à ideologia de gênero.
Ele afirma que tanto o Estatuto da Família quanto o Programa Escola sem Partido são necessários
para combater a ideologia de gênero:
Um deles (seção 3.4) é a atuação sobreposta dos membros das Frentes e das bancadas
evangélica e da segurança pública na 55ª Legislatura, considerando, de um lado, a centralidade da
direita cristã para um hipotético movimento neoconservador, e de outro sua militância particular
em temas envolvendo a moral sexual. O outro critério (seção 3.3) é o estudo de temas da agenda
legislativa que reflitam posturas político-ideológicas neoconservadoras. Buscar-se-á descobrir: a)
quais os argumentos mobilizados em sua defesa e b) se são atores em prol dessas pautas aqueles
protagonistas da ação pró-família (elencados no Capítulo I) e os evangélicos.
Selecionaram-se temas que estiveram em pauta na 55ª Legislatura (iniciada em 2015), com
exceção da alteração da lei de drogas, cuja votação ocorreu em 2013. A exceção para esse caso se
deveu ao fato de que a política de drogas é o principal fator relacionado ao encarceramento e um
dos pilares da visão neoconservadora a respeito da criminalidade, como veremos. A seleção de
determinados projetos tem uma razão pragmática: a análise do universo das propostas e discursos
que visam ao endurecimento penal é inviável no âmbito desta pesquisa. Para se ter uma ideia,
segundo levantamento do Instituto Sou da Paz (2016:7), só em 2015 foram apresentados mais de
700 projetos de lei (isso sem contar outras formas de iniciativas, como requerimentos) que tocam
no tema da criminalidade. Não seria possível estudar, um a um, seu teor. Além disso, há uma razão
teórica. Nem toda proposta sobre segurança pública, direito penal ou processo penal expressa uma
ideologia neoconservadora. É necessário dialogar com os elementos do neoconservadorismo
criminal conforme os conceitos oferecidos pela literatura especializada expostos a seguir.
103
Durante a onda neoconservadora nos Estados Unidos nos anos 1970, uma destacada
produção acadêmica sobre o tema legitimou e promoveu programas criminais mais repressivos do
que os anteriores, posteriormente exportados para América Latina como “políticas exitosas de
combate ao crime” (Kilduff, 2010:241). Da perspectiva local, essa importação se deu pela
organização de políticas penais a partir da definição de inimigos internos. Naquela década, o
inimigo nacional era o terrorista comunista contra o regime militar, como aponta Vera Malaguti
Batista (2003:12, 40-1). Porém, com o fim do regime militar e a desarticulação dos movimentos
comunistas a figura do inimigo interno mudou. Na imagética da segurança pública, o jovem
traficante dos bairros pobres assumiu, segundo a autora, o lugar outrora ocupado pelos terroristas
subversivos.
O direito penal, assim, intensificou-se como instrumento de controle da pobreza. À cada
onda de arrocho econômico seguiu-se uma onda de criminalização; as consequências da
desigualdade são tratadas de modo a punir criminalmente os afetados (Batista, 2003:12, 40-1). As
políticas de encarceramento e aumento de pena se voltam, de regra, contra a população negra e
pobre. Dentre os presos, 61,7% são pretos ou pardos, enquanto 53,63 da população brasileira tem
essa característica. Os brancos, inversamente, são 37,22% dos presos, enquanto são 45,48% na
população em geral. Além disso, 75% dos encarcerados tem até ensino fundamental completo,
indicador de baixa renda (Depen, 2014). Apenas 1% da população carcerária tem ensino superior
completo (Almeida e Mariani, 2017).
Wacquant (2001 [1999]:4-6) opõe dois tratamentos estatais dados à miséria: o tratamento
social, com sua visão de longo prazo ancorada nos valores de justiça e solidariedade, e o tratamento
penal. O uso do segundo modelo no Brasil, que se vale das técnicas punitivas “made in USA”, é
para o autor essencialmente contrário ao estabelecimento de uma sociedade pacificada e
democrática, e praticamente induz a uma ditadura sobre a pobreza entre nós. Não por outra razão,
como aponta Cristina Buarque de Hollanda (2005), movimentos de esquerda no Brasil atuam desde
a democratização no sentido da “redisciplinarização da polícia” em favor dos direitos humanos das
pessoas menos favorecidas socialmente, diante de uma atuação policial que acaba partindo do
104
A PEC 171/1993, que prevê a diminuição da idade a partir da qual as pessoas podem
responder penalmente, relaciona-se à demanda neoconservadora da expansão do encarceramento,
inclusive da aplicação da legislação punitiva de adultos àqueles menores de 18 anos84. Deputados
evangélicos sempre impulsionaram a proposta, apresentada em 1993. A PEC 171/1993 é de autoria
do Benedito Domingos (PP-DF), pastor da Assembleia de Deus. A proposta prevê, na redação
original, a imputabilidade penal a partir dos 16 anos (e não dos 18, como atualmente). O primeiro
relator, deputado Luiz Clerot (PMDB-PB), que se manifestou pela admissibilidade da redução da
maioridade penal, é pastor da igreja evangélica Sara Nossa Terra. A justificativa da PEC tem várias
citações do Velho Testamento:
84
Embora existam propostas para aplicação da lei aos menores de 16, o texto que tramitou estabelecia a punição até
os 16 anos.
106
A uma certa altura no Velho Testamento, o profeta Ezequiel nos dá a perfeita dimensão
do que seja a responsabilidade pessoal. Não se cogita nem sequer de idade: ‘A alma que
pecar, essa morrerá’ (Ex. 18).
(...)
Ainda referindo-nos a informações bíblicas, Davi, jovem, modesto pastor de ovelhas,
acusa um potencial admirável com o seu estro de poeta e cantor dedilhando sua harpa mas,
ao mesmo tempo, responsável suficientemente para atacar o inimigo do seu rebanho.
Quando o povo de Deus estava sendo insultado pelo gigante Golias, comparou-o ao urso
e ao leão que matara com suas mãos.
(...)
Salomão, do alto de sua sabedoria, dizia: ‘Ensina a criança no caminho que que deve
andar, e ainda quando for velho não se desviará dele’.
assinada por ele, também propõe a redução para 16 anos como a idade a partir da qual as pessoas
podem responder penalmente. Coerente com a argumentação neoconservadora, a maioridade deve
ser reduzida, de acordo com ele, para “oferecer mais segurança às famílias brasileiras” (discurso
em Plenário no dia 29 de maio de 2013).
Eduardo Cunha foi, na qualidade de Presidente da Câmara dos Deputados, o responsável
por criar a comissão especial para a PEC da redução da maioridade. Trata-se de um ato
discricionário que indica prioridade a um tema. Ele também compareceu à instalação da comissão
especial “para demonstrar seu apoio e sua opinião favorável à matéria” (Lourenço, 2015). O
relator da matéria foi o deputado Laerte Bessa (PR/DF), profissional da segurança pública. A
maioria dos membros da comissão especial da PEC defendeu, desde sua instalação, a redução da
idade para imputabilidade penal (Ac, 2015b).
Apesar de a maioria no colegiado ser a favor da proposta, o governo, então presidido por
Dilma Rousseff, era contra. Também eram contra a redução a Associação Brasileira de
Magistrados, Promotores de Justiça e Defensores Públicos da Infância e da Juventude – ABMP85,
a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil86, a Ordem dos Advogados do Brasil87, o Fundo das
Nações Unidas para a Infância – UNICEF 88 e diversas organizações da sociedade civil com
atuação em direitos humanos. Assim, possivelmente por conta da pressão contrária à PEC, a
comissão especial aprovou a redução da maioridade apenas para crimes hediondos, homicídio
doloso, lesão corporal grave, lesão corporal seguida de morte e roubo agravado. Ou seja, reduziu a
abrangência do texto original.
Essa versão foi rejeitada pelo Plenário da Câmara. Eram necessários 308 votos favoráveis
ao substitutivo adotado pela comissão, mas apenas 303 deputados firmaram “sim” no pleito. Apesar
da derrota (ou por causa dela), no dia seguinte o Presidente da Câmara colocou em votação uma
“emenda aglutinativa” – uma nova versão do texto – que suavizava mais ainda a redução da
maioridade. Pela emenda, que ao final foi aprovada em primeiro e em segundo turno, aqueles entre
85
Moção disponível em
http://www.abmp.org.br/noticia/sistema_de_justica/mocao_de_repdio__reducao_da_maioridade_penal.html,
acessada em 16/06/2017.
86
Nota pública disponível em http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-
temporarias/especiais/55a-legislatura/pec-171-93-maioridade-penal/documentos/outros-documentos/documentos-e-
estudos/nota-da-conferencia-nacional-dos-bispos-do-brasil-cnbb, acessada em 16/06/2017.
87
Nota disponível em http://www.oabpr.org.br/reducao-da-maioridade-penal-nao-resolve-violencia-diz-presidente-
do-cfoab/, acessada em 16/06/2017.
88
Nota disponível em https://www.unicef.org/brazil/pt/media_29163.htm, acessada em 16/06/2017.
108
16 e 17 anos respondem por crimes hediondos e por homicídio doloso – excluiu-se, do texto da
comissão especial, a punição por tortura, terrorismo, lesão corporal grave e roubo qualificado. Pelo
aprovado, que seguiu para o Senado, as pessoas nessa faixa etária deverão cumprir a pena separadas
dos adolescentes que cumprem medidas socioeducativas e dos maiores de 18 anos.
O fato de Eduardo Cunha ter colocado em deliberação uma emenda aglutinativa referente
a um projeto rejeitado no dia anterior foi uma condução incomum do processo legislativo,
possivelmente indicativa de seu grande compromisso político com a pauta da redução da
maioridade. Essa condução dos trabalhos por Cunha foi considerada por muitos como uma violação
do devido procedimento de votação. A palavra “golpe” foi usada 22 vezes nas sessões do dia 1º de
julho de 2016, em referência ao que parlamentares consideraram uma quebra do Regimento
Interno.
Além do papel de destaque de Cunha e dos outros deputados mencionados, na deliberação
da PEC da redução da maioridade 54 evangélicos presentes89 votaram sim e 11 votaram não. Ou
seja, 83% dos evangélicos se posicionaram a favor da matéria. Aplicando-se a tabela de
contingência para a votação evangélica, tem-se o seguinte:
Não membro
Membro da bancada evangélica
da bancada evangélica
Voto “sim” ao substitutivo da PEC 171 122% 96%
Voto “não” ao substitutivo da PEC 171 53% 108%
89
Uma PEC precisa do apoio de maioria qualificada, de modo que eventualmente as ausências podem ser
consideradas como estratégia para a derrubada da proposta. Não foi o caso da PEC 171. Não se estimava
possibilidade de ausência de quórum suficiente, os opositores foram efetivamente votar, em vez de usar alguma
estratégia de obstrução via falta de presenças. Além disso, muitos deputados não estão presentes porque no dia da
votação estão licenciados, por motivos diversos.
90
Para explicação sobre a metodologia empregada, vide Apêndice.
109
Ou seja, realizou-se apenas metade dos votos preditos contrários à maioridade por parte dos
religiosos protestantes. Em outras palavras, apenas metade dos evangélicos que deveria votar “não”
à redução, caso o fator de ser evangélico não influenciasse o voto, posicionou-se dessa maneira.
A adesão das outras frentes temáticas também foi expressiva. Cerca de 80% dos signatários
da Frente Parlamentar da Agropecuária votaram a favor da PEC 171; 78% dos membros da Frente
Parlamentar da Segurança Pública o fizeram. A média da adesão dos membros dessas frentes é
maior do que a média de adesão da Câmara em geral: 68% dos presentes votaram a favor da redução
da maioridade. Mas, notemos, a adesão evangélica foi maior do que a da Frente da Segurança
Pública. O discurso do deputado Éder Mauro (PSD/PA), que integra tanto a bancada da segurança
pública quanto a bancada evangélica, sintetiza os argumentos de ordem neoconservadora:
Sr. Presidente, Sras. e Srs. Deputados, hoje eu ocupo esta tribuna para me dirigir às
famílias brasileiras, às famílias de cada Município, àquelas famílias que colocaram cada
um de nós aqui nesta Casa, a muitas famílias que tiveram seus filhos perdidos, as suas
famílias destruídas, com a morte de seus filhos, de pais de família. Eu quero dizer a essas
famílias que não foi em vão que nós, 303 Deputados, ontem votamos ‘sim’, pela redução
da maioridade penal, a favor da família, a favor do cidadão de bem, diferente daqueles que
votaram a favor do bandido, que assinaram para que bandidos de 16 anos e 17 anos
continuassem matando os nossos filhos, continuassem massacrando as nossas famílias,
cometendo barbáries como aquela do Piauí, em que quatro jovens foram levadas para o
morro, estupradas por mais de 2 horas, foram seviciadas, tiveram os bicos dos seus seios
cortados, foram jogadas do penhasco e, ainda não conformados, os bandidos desceram lá
e as apedrejaram, para ter certeza de que elas estavam mortas. Como eles estavam
drogados, não puderam ter essa certeza. Uma menina morreu, uma está em coma e as
outras ainda estão hospitalizadas. Esse é o retrato dos bandidos de 16 anos e 17 anos, e
não o da juventude que fez parte de uma grande pesquisa neste País, em que 90% do povo
brasileiro pede e clama pela redução da maioridade penal (...). (Deputado Éder Mauro -
PSDB/PA, discurso em Plenário em 01/07/2015.)
Na fala está presente a invocação da defesa da família, o argumento que separa os “cidadãos
de bem” dos inimigos/bandidos, e o argumento de maioria. Esse discurso compreende, para
Faganello (2015:151-2), um “princípio de cidadania não universal e igualitário”; ou seja, a noção
de “cidadão de bem”, utilizada constantemente pelos promulgadores do discurso punitivista,
“pressupõe uma cidadania cindida”: “uma divisão dos direitos civis e fundamentais –
especialmente do direito à vida – entre aqueles que ‘merecem’ (de bem) e os que ‘voluntariamente’
abdicaram dela (bandidos)”. O assembleiano Sóstenes Cavalcante, por sua vez, se pronunciou
também em defesa da família, associando a questão da imputabilidade penal à questão da
diversidade sexual e de gênero:
110
Eu pedi para falar, já a esta altura da noite, para demonstrar a hipocrisia de dois partidos
que são contrários e orientam que se vote contrariamente à redução da maioridade penal
para 16 anos. Deputados desses dois partidos apresentaram o Projeto de Lei nº 5.002, de
2013, que autoriza uma criança de 12 anos - escutem bem, 12 anos! - a fazer a cirurgia de
troca de sexo. Essa criança, com 12 anos, se os pais não autorizarem, pode ir ao Ministério
Público e fazer a cirurgia sem a autorização de seus pais. Esse mesmo partido, para
marmanjo de 16 anos usa dois pesos e duas medidas. Fala que, quando se trata de
marmanjo bandido, não pode ser preso. Isso é usar dois pesos e duas medidas.
Quero lamentar a atitude desses partidos e dizer que hoje nós daremos a resposta à
sociedade, daremos a resposta à família brasileira, votando "sim" à redução da maioridade
penal.
Muito obrigado, Sr. Presidente. (Palmas.) (Sóstenes Cavalcante – PSD/RJ, discurso em
Plenário em 01/07/2015.)
Em síntese, além dos argumentos de ordem neoconservadora – que incluem, como vimos,
a evocação do Velho Testamento na justificativa da PEC –, uma articulação com essa característica
política é vista na tramitação da proposta. O projeto, que aposta na punição como resposta a
problemas existentes na sociedade, teve sua tramitação protagonizada por parlamentares
evangélicos, que apoiaram massivamente a proposta na votação em plenário.
O PL 7553/2014, assim como a PEC 171, propõe alterações dos direitos das crianças e dos
adolescentes. O projeto visa a “permitir a divulgação de imagem de criança e adolescente a quem
se atribua ato infracional” – pela norma vigente é proibida a exposição de criança ou adolescente
em situação provável de ter infringido a lei. Seu autor é o deputado Marcos Rogério (PDT/RO),
fiel da Assembleia de Deus. Ele é o relator do voto vencedor pela admissibilidade da PEC 171,
pela redução da maioridade, como vimos logo acima.
No segundo semestre de 2016, a proposta que permite a exibição das imagens foi aprovada
em duas comissões de mérito (permitindo a exibição de imagem de pessoa com mais de 14 anos):
a de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática e a de Segurança Pública e Combate ao
Crime Organizado. Ambos os relatores, Claudio Cajado (DEM-BA) e João Rodrigues (PSD-SC),
pertencem à Frente Parlamentar da Segurança Pública. Ou seja, também nesse projeto, que reflete
uma pauta neoconservadora, verifica-se uma “dobradinha” entre evangélicos e membros da
chamada “Bancada da Bala” no que diz respeito ao protagonismo na tramitação da proposta.
O objetivo declarado da proposta não é a estigmatização. É, sim, possibilitar a localização
de infratores, para que cumpram as medidas socioeducativas. Entretanto, a linguagem que justifica
111
Não distinguir usuário de traficante é fazer com que a polícia continue penalizando a
juventude negra. Se um negro for pego com droga, imediatamente será enquadrado como
traficante. Mas, se for o filho de um Deputado branco, será enquadrado como usurário.
Essa é a distinção. (Deputado Amauri Teixeira, PT/BA, discurso em Plenário em
28/05/2013).
91
Promovido pelas organizações da sociedade civil Rede Pense Livre, Instituto Sou da Paz, Pastoral Carcerária,
Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos - Neip, Instituto de Defesa do Direito de Defesa - Iddd,
Conselho Federal de Serviço Social e Instituto Brasileiro De Ciências Criminais - Ibccrim. Abaixo-assinado
disponível, em
https://www.avaaz.org/po/petition/DIGA_NAO_AO_PROJETO_DE_LEI_QUE_VAI_MANDAR_USUARIOS_DE
_DROGAS_PARA_A_CADEIA/, acessado em 06 de junho de 2017.
112
As defesas do projeto, por outro lado, preocuparam-se em dizer que o usuário não estaria
sendo penalizado. Mas, mesmo assim, as falas a esse respeito aderiram a uma visão punitivista.
Veja-se, por exemplo, o deputado Pastor Eurico, que defendeu a prisão perpétua:
Sr. Presidente, em nenhum momento esta lei está marginalizando o usuário. Ao contrário,
ela o está protegendo. Está bem claro aqui no § 5º, que especifica o traficante. Diz aqui
que o aumento de pena é para aqueles que exercem o comando individual ou coletivo.
Esses, sim, merecem.
Essa pena, Sr. Presidente, ainda é pequena. Ah! Se pudéssemos votar aqui pena perpétua,
seria bem melhor! (Deputado Pastor Eurico – PSB/RJ, discurso em Plenário em
28/05/2013).
Quanto ao projeto de lei do Deputado Osmar Terra — esse vem ao encontro a projeto de
minha autoria, o PL 3.167/12, que, em apenso, trata do mesmo tema —, pergunto qual é
a medida mais adequada, a internação compulsória ou a permissão para que levas de
mortos vivos perambulem sem rumo, sem noção, de dia ou de noite, quando a única
alimentação que recebem vem de valentes caridosos cristãos que lhes servem uma sopa
ou um lanche. (Deputado Pastor Marco Feliciano - PSC/SP, Discurso em Plenário em
28/05/2013).
Sr. Presidente, esta Casa aprovou um projeto que estabelece que todo atendimento será
feito na rede de saúde por equipes multidisciplinares. Portanto, o atendimento será feito
na rede de saúde, no SUS. Esta Casa também aprovou que toda internação, Deputado
Genoíno, será feita também no Sistema de Saúde. Não será feita a internação para
desintoxicar em qualquer comunidade terapêutica. Agora, de forma absolutamente
contraditória, esta Casa quer tirar o dinheiro que iria para o Sistema Único de Saúde, que
está assumindo todas essas atribuições, e repassá-lo, de forma absolutamente aleatória, às
entidades privadas. Isso é recurso público da dedução do Imposto de Renda, porque
Imposto de Renda é recurso público! (Deputada Érika Kokay, PT/DF, em 28/05/2013).
Por outro lado, a relevância das comunidades terapêuticas, e de seus vínculos com as
religiões, foi defendida por pastores evangélicos em Plenário:
Agora, Sr. Presidente, o que me chama a atenção é a grande preocupação que nasceu aqui,
neste plenário, com as comunidades terapêuticas, que até hoje têm prestado relevante
serviço à sociedade sem pedir um centavo ao Governo. Sempre fizeram isso, apoiadas
pelas Igrejas Evangélicas, pela Igreja Católica, pelos Centros Espíritas, por ene ONGs que
têm feito esse trabalho sem nenhum centavo. Agora, é fácil defender a cultura aqui, e
muitos dos que defendem a cultura defendem também a legalização das drogas (...). O
PSB encaminha ‘sim’, Sr. Presidente, em honra à sociedade brasileira e ao bem das
famílias. (Deputado Pastor Eurico – PSB/RJ, discurso em Plenário em 28/05/2013).
Essas comunidades terapêuticas têm demonstrado que não conflitam com outros órgãos
governamentais que tratam do tema, mas se completam, pois têm em seus quadros grande
número de voluntários, o que barateia os custos e maximiza os resultados. Se alcançarmos
resultado pela fé, ou por qualquer outro meio, já valeu a pena. (...) Quando afirma que
parceria do Governo com entidades religiosas viola o princípio do Estado Laico, sugere
que tenhamos de abrir mão dos milhares de instituições assistenciais, algumas centenárias,
que tanto contribuem para melhorar a qualidade de vida de tantos irmãos brasileiros.
Quando uma ilustre pessoa, profissional gabaritado como o Dr. Edmar, coloca sua
consideração e cita pessoas, seria de bom alvitre que apresentasse opções, que, de forma
insofismável, pudessem ser estudadas e aplicadas em curto prazo. Acima das convicções
pessoais, devemos olhar para os pequeninos assim como Cristo ensinou: ‘O que fizerdes
para eles estais fazendo para Mim’. Meu gabinete na Comissão de Direitos Humanos e
Minorias está sempre de portas abertas para quem quiser qualquer esclarecimento.
(Deputado Pastor Marco Feliciano - PSC/SP, em 28/05/2013).
114
Um tema prioritário para organizações da sociedade civil que atuam no tema de justiça
criminal é a vedação dos chamados “autos de resistência” (Ibbcrim, 2014). O PL 4471/2012,
apresentado pelos deputados Paulo Teixeira - PT/SP, Fabio Trad - PMDB/MS, Delegado
Protógenes - PCdoB/SP e Miro Teixeira - PDT/RJ, pretende tornar obrigatória a perícia e a
instauração de inquérito em homicídios cometidos por agentes policiais em serviço. Hoje as mortes
nessas situações normalmente não são objeto de procedimento investigativo, sendo classificadas
como decorrentes da legítima defesa do policial em sua atividade, rotulados como resistência
seguida de morte.
Como aponta manifesto assinado por onze entidades da sociedade civil92, só “no Rio de
Janeiro, entre 2001 e 2011, mais de 10 mil pessoas foram mortas pela Polícia Militar em situações
formalizadas como auto de resistência”. Considerando ainda que a maior parte dos mortos é de
pessoas negras, as organizações alegam que os autos de resistência são também uma expressão
92
Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública de São Paulo, Associação Juízes para a
Democracia, Rede Justiça Criminal, Conectas, Ouvidoria da Defensoria Pública de São Paulo, Justiça Global,
SMDH, Educafro, IBCRIM e Instituto dos Defensores de Direitos Humanos.
115
Temos também que ver uma questão muito importante: o Estatuto do Desarmamento. Hoje
em dia, é praticamente impossível o cidadão de bem conseguir comprar uma arma, quer
ele more na área rural ou urbana. Temos que sepultar aqui o projeto que acaba com o auto
de resistência. Hoje o policial militar ou civil não tem retaguarda jurídica para poder
exercer seu trabalho. Diante de qualquer problema que ocorra, geralmente uma grande
parte da sociedade, a mídia, essas entidades de direitos humanos que só defendem a
bandidagem neste País vão contra o policial militar. (Deputado Jair Bolsonaro - PP/RJ,
discurso em Plenário em 10/02/2015).
“E hoje tramita nesta Casa proposta para que se retire o auto de resistência do
procedimento policial. O auto de resistência é uma peça no inquérito policial que ratifica
a ação legal do policial pelo estrito cumprimento do dever legal e pela excludente de
ilicitude quando, em confronto com o bandido, o bandido morre.
(...)
Nós não precisamos e não devemos legislar para bandido! Aqueles que acham que bandido
é bom, que os levem para suas casas, porque bandido bom é bandido morto!
Que viva a família! (Palmas).” (Delegado Eder Mauro – PSD/PA, discurso em Plenário
em 18/03/2015)
(...)Agradeço a Deus e aos meus eleitores. Espero prestar um bom serviço, principalmente
na área de segurança pública. Aliás, hoje foi relançada a Frente Parlamentar da Segurança
Pública, presidida pelo Deputado Coronel Braga. Pretendemos com essa nova composição
conservadora do Congresso levar algumas medidas adiante e, com certeza, frear algumas
besteiras que são feitas aqui no Congresso, como, por exemplo, o fim do auto de
93
Disponível em http://www.conectas.org/arquivos/editor/files/Autos%20de%20Resist%C3%AAncia_FINAL.pdf,
acessado em 08/06/2017.
94
Disponível em http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_deputados?idProposicao=556267, acessado em
26/03/2016.
116
resistência. Essa medida não pode passar. A esquerda tenta a todo custo encarcerar
policiais que fazem nada mais do que o seu trabalho. Num País onde morrem centenas de
policiais e mais de 50 mil pessoas por ano, como se quer combater a violência? Com
flores? Não pode policial ir para uma ocorrência sabendo que dali partirá para o cemitério
ou para o batalhão prisional.
Assim sendo, Sr. Presidente, essa é a conduta que pretendo seguir nesta Casa. Conto com
o apoio dos demais colegas, principalmente das forças policiais, para levar adiante alguns
projetos que deixam a sociedade mais tranquila com relação a essa criminalidade que a
massacra todos os dias.
Muito obrigado. (Palmas.)
(Eduardo Bolsonaro - PSC-SP, discurso em Plenário em 25/02/2015).
Os evangélicos não são unânimes na rejeição dessa pauta. Os parlamentares Pastor Eurico
(PSB/PE) e Antony Garotinho (PR/RJ) manifestaram-se a favor da vedação dos autos de
resistência, cujas consequências vitimam em especial a população pobre. Ambos se filiam a uma
corrente evangélica em alguns aspectos progressista, influenciada pelo brizolismo (Fonseca, 2008)
– que, justamente, atuou de maneira a aplicar os direitos humanos à atuação policial (Hollanda,
2005). Por outro lado, na CDHM, o deputado Sóstenes Cavalcante (PSD/RJ) apresentou
requerimento em 2015 para serem ouvidos os policiais presos por conta do suposto envolvimento
no homicídio do pedreiro Amarildo, morto em 2013, atendendo à reivindicação dos familiares dos
policiais acusados.
De qualquer forma, a compreensão do papel dos evangélicos na impossibilidade de votar a
vedação aos autos de resistência fica mais clara com a aprovação da hediondez dos homicídios
contra policiais. Vejamos.
protegido. Ele registra, no parecer, que as causas de aumento de pena previstas no Código Penal
em razão da qualidade da vítima são relacionadas à sua especial condição de vulnerabilidade, em
razão da sua diminuída capacidade de reação ou da relação de confiança que mantinha com o
autor”. Diferente disso, porém, para ele, “os integrantes de carreiras policiais, por exemplo, não
possuem capacidade de reação reduzida em relação ao cidadão comum – ao contrário, os policiais
são treinados para reagir de forma adequada e eficiente a perigos aos quais o cidadão comum não
teria chance de resposta.”
No sentido oposto ao do parecer, na mesma comissão, ainda em 2008, três deputados
apresentaram requerimentos regimentais com vistas a possibilitar a aprovação do PL. São eles João
Campos (PSDB/GO), presidente da Frente Parlamentar Evangélica, Deputado William Woo
(PP/SP), membro da FPE, e Deputado Guilherme Campos (PSD/SP), integrante da bancada da
segurança pública. Já aí nota-se o que seria uma articulação neoconservadora.
Em 2008 a proposta foi aprovada na CSPCCO; desde então, porém, ficou praticamente sem
tramitação. Em 2015, por pedido de líderes e do Presidente da Frente Parlamentar da Segurança
Pública, o PL foi incluído na pauta do Plenário da Câmara. A proposta foi discutida e aprovada no
dia 26 de março.
É com o pedido de urgência aprovado que se dispensa o trâmite nas comissões. Os pareceres
pelas comissões são proferidos por relatores em Plenário. Esse papel coube a dois deputados
evangélicos: João Campos (PSDB-GO), pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania,
e Lincoln Portela (PR-MG), pela Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado
– ambos pela aprovação da matéria. Foi em Plenário que o Deputado João Campos, como relator,
apresentou uma “subemenda substitutiva global”, que, acatando outras emendas, estabeleceu um
texto final agravando e tornando crimes hediondos apenas os homicídios que vitimam policiais (e
seus familiares), e não homicídios praticados por policiais. Glauber Braga insurgiu-se contra a
emenda:
Sr. Presidente, nós estamos aqui tratando de norma penal. Como nós vamos tratar de
norma penal com um acordo formatado em 5 minutos, negociado em plenário sem passar
por Comissão? Não podemos fazer isso dessa forma! Isto aqui não pode ser produção em
série (...) (Deputado Glauber Braga – PSB/RJ, discurso em Plenário em 26/03/2015).
acima. Se deve ser punida com mais severidade a morte de policiais, deve ser punida com mais
severidade a morte causada por eles. É o que argumentam Érika Kokay (PT/DF) e Alessandro
Molon (PT/RJ):
Sr. Presidente, o projeto que foi aprovado aqui a partir das subemendas retira dois
elementos que são fundamentais. Um deles, se é verdade, e eu concordo com isso, é que,
quando se mata um agente público em função da sua função, está-se assassinando o
próprio Estado. O inverso também deveria ser verdadeiro, ou seja, quando alguém mata
com dolo em função da condição que ocupa no Estado, também nós estamos possibilitando
que o Estado mate. Portanto, Sr. Presidente, nós tivemos uma modificação no projeto que
veio do Senado, ao retirarmos o agravamento dessa pena cometida pelo agente público.
Entretanto, isso será sanado com o compromisso que aqui foi feito de discutirmos o projeto
que trata dos autos de resistência. E o projeto sobre os autos de resistência é muito simples:
propõe apenas que se investigue. Não há nenhum anúncio de culpa; apenas propõe que se
investigue. Os policiais, portanto, que trabalham na retidão da lei — e são a esmagadora
maioria — serão salvaguardados, obviamente, e teremos uma investigação absolutamente
imparcial. (Deputada Érika Kokay - PT/DF, discurso em Plenário em 26/03/2015.)
Sr. Presidente, Sras. e Srs. Deputados, esse projeto traz ao debate um fato importante que
vem chamando a atenção da população brasileira nos últimos dias, nos últimos meses, nos
últimos anos, que é o extermínio, a matança de agentes de segurança pública no
cumprimento de suas funções, muitas vezes apenas pelo fato de serem agentes de
segurança pública. Não são raros os casos de policiais ou de agentes de segurança que,
tendo sido descobertos num ônibus, numa condução, ou próximos à sua casa, como
agentes de segurança, são executados por essa razão. É evidente que isso merece uma
resposta do Parlamento. No entanto, Sr. Presidente, o objeto do debate que fazíamos há
pouco é o fato de que a nossa Casa não pode olhar só para isso. (...) Aliás, o Estado
brasileiro não pode tratar determinadas vidas como mais preciosas ou menos preciosas do
que outras; por isso, essa relação com o exercício das funções. Mas não apenas isso, Sr.
Presidente. É preciso olhar para o outro lado. E é por isso que nós estamos aqui
trabalhando, e acho que vamos caminhar na direção de um acordo para votar o projeto de
lei de autoria dos Deputados Paulo Teixeira, Miro Teixeira, Manuela d'Ávila, Fábio Trad
e outros Parlamentares, que é o PL dos autos de resistência. Os autos de resistência são
um problema gravíssimo no nosso País. Infelizmente, nós temos maus agentes de
segurança que usam das suas funções para executar, para exterminar, para praticar crimes.
E nós queremos que o Parlamento trate dessa questão também. (Deputado Alessandro
Molon - PT-RJ, discurso em Plenário em 26/03/2015.)
Érika Kokay também criticou a retirada de outros agentes públicos do objeto da norma:
O que me causa espécie nesse projeto — e eu faço essa restrição para que possamos
corrigir posteriormente, porque votarei a favor da proposição — é que nós tínhamos uma
abrangência para todos os agentes de Estado assassinados em função do exercício dessa
condição de agente público, mas isso ficou restrito aos policiais. Somos favoráveis que
quem assassina policial tenha o agravamento da pena. Mas eu me pergunto: como ficam
aqueles que assassinaram os auditores fiscais, aqui em Unaí? Como ficam esses? Esses
não terão suas penas agravadas? Aqueles agentes públicos no exercício da sua função não
foram assassinados por isso? (Deputada Érika Kokay - PT/DF, PT-RJ, discurso em
Plenário em 26/03/2015.)
119
Não membro
Membro da bancada evangélica
da bancada evangélica
Voto “sim” ao substitutivo do PL 3131 140% 92%
Voto “não” ao substitutivo do PL 3131 22% 115%
Dos membros da Frente da Segurança Pública, 76% votaram a favor da proposta. Ou seja,
um percentual maior de membros da bancada evangélica, em relação a membros da própria FPSP,
apoiou o projeto. Os evangélicos aderiram mais a uma agenda da corporação policial do que os
subscritores da respectiva Frente.
Antes de seguir em mais uma agenda relacionada aos interesses dos policiais/militares, é
preciso dizer que há uma importante exceção à ideia de que os evangélicos apoiam esse item da
pauta neoconservadora. Trata-se da desmilitarização das polícias, reivindicação de movimentos de
95
O PL 8504/2017, de autoria de Alberto Fraga (DEM-DF), agravou ainda mais a consequência dos crimes
cometidos contra policiais. Pelo texto aprovado, não se aplica mais a progressão de regime aos autores de crimes de
homicídio e lesão corporal a esses agentes públicos – a progressão possibilita que a pena seja paulatinamente
aliviada. A, que ocorreu no dia 08/11/2017, ocorreu de maneira simbólica e não nominal – não é possível, assim,
identificar a postura de cada parlamentar.
96
Para explicação sobre a metodologia empregada, vide Apêndice.
120
(...) a proposta tem limites muito fortes para lhe dar eficácia e efetividade em relação aos
objetivos a que ela se propõe, como o objetivo de trazer à memória os fatos daquele
período, trazer à tona a verdade histórica daquele período, e não toca num objetivo que
todas as Comissões da Verdade colocam como principal, que é fazer justiça. (...)
O período de 42 anos é largo demais. Dois anos de funcionamento da Comissão é
insuficiente para se chegar ao mínimo que se pretende com uma Comissão dessas. Sete
membros, para funcionar em 2 anos e para cumprir todos aqueles objetivos, não é
razoável.
(...)
Uma outra dimensão é a falta de autonomia financeira da Comissão. Como ela poderá
dispor de meios e de estrutura para cobrir o País inteiro, buscando dados, informações e
testemunhas para testemunhar aquilo que possam trazer para a Comissão da Verdade? (..)
(Deputada Luiza Erundina – PSB/SP, discurso em Plenário em 21/09/2011).
Dos 459 discursos realizados com a expressão “comissão nacional da verdade”, Jair
Bolsonaro foi autor de 48 deles. É o parlamentar que mais se pronunciou a respeito, e de maneira
fortemente contrária. Depois de Bolsonaro, católico, o deputado que mais fez discursos
abertamente contrários à CNV foi Arolde de Oliveira (PSC/RJ). Arolde é evangélico. Vejamos
trechos de discursos de Arolde:
(...) a Comissão da Verdade proposta pelo Governo tem um foco preferencial nos
Governos militares de 1964 a 1985 e nos supostos atos contra direitos humanos por eles
121
(...) E a verdade que está para ser levantada é a verdade que ocorreu no período de 1964 a
1975, quando, por duas vezes, houve a intenção, pelas armas, de idealistas do sistema
comunista de implantar um regime comunista no Brasil. Pegaram em armas, houve uma
reação, e a Nação brasileira delegou às Forças Armadas, é claro, a missão de repelir essa
intenção. (Deputado Arolde de Oliveira, DEM-RJ, discurso em Plenário em 21/09/2011).
(...) Imaginem que há uma nota da chamada Comissão Nacional da Verdade sobre a
criação de um grupo de trabalho para investigar o papel das igrejas cristãs - católica e
evangélica - no período da ditadura. Eu não consigo entender por que razão o revanchismo
vai alcançar também as denominações religiosas, em particular essas duas, discriminando,
inclusive, as demais. Faço esse registro com tristeza, porque essa Comissão Nacional da
Verdade, que é parte de um processo marxista, gramscista, que tem prosseguimento em
nosso País e que sorrateiramente, sutilmente procura desmontar as estruturas de resistência
ao marxismo em nosso País, desde 1964, faz agora carga sobre a Igreja, aliás, ratificando
essa minha afirmação. (Deputado Arolde de Oliveira, PSD-RJ, discurso em Plenário em
07/011/2012).
Sr. Presidente, colegas Parlamentares, meu registro diz respeito ao relatório final da
malfadada Comissão Nacional da Verdade (CNV), que produziu um documento eivado
de parcialidade e revanchismo. (Deputado Arolde de Oliveira, PSD-RJ, discurso em
Plenário em 16/12/2014)
Arolde poderia ser um caso isolado entre os religiosos, mas não é. Vejamos o caso da
chamada “Comissão Parlamentar da Memória, Verdade e Justiça”. Desde a criação da CNV, em
2011, por requerimento de Luiza Erundina a Comissão de Direitos Humanos e Minorias criou
anualmente a Subcomissão Parlamentar Memória, Verdade e Justiça, para acompanhar os trabalhos
da comissão sediada no executivo. Nos anos de 2011, 2012 e 201497 esse colegiado funcionou
apoiando os trabalhos com audiências públicas, resgate da história de deputados cassados, pedidos
de investigação, etc.
Em 2015, primeiro ano da nova legislatura, Erundina tentou recriar a subcomissão, dessa
vez para acompanhar a implementação das Recomendações do Relatório da Comissão Nacional da
Verdade, apresentado no ano anterior. Em reunião da CDHM do dia 18 de março de 2015, ela
afirma que a subcomissão pretenderia participar do esforço da sociedade de resgatar memória e
verdade sobre os crimes lesa-humanidade cometidos durante a ditadura militar, e para que haja
justiça – condenação dos responsáveis. O requerimento não foi deliberado nesse dia. No dia 15 de
abril de 2015 o deputado Major Olímpio (SD/SP) e o deputado Jair Bolsonaro (PP/SP) se opuseram
97
Em 2013 a subcomissão não foi criada porque nesse ano a CDHM foi presidida por Marco Feliciano (PSC/SP), e
os parlamentares do campo da esquerda, incluindo Erundina, deixaram de acompanhar os trabalhos do colegiado.
122
(...) Quero me colocar nessa tarde diante dessa realidade deixando muito claro que não
sou a favor de toda essa movimentação de militarização que está sendo feita em nosso país
(...) não é colocando arma na mão das pessoas que vamos fazer com que realmente as
instituições sejam respeitadas em nosso país.
(...)
Não quero aqui de forma alguma me alinhar nem com um lado nem com um outro; nem
por isso fico sem nenhuma opinião. Aliás, andar em cima do muro às vezes precisa ter
muito mais equilíbrio que tendenciar para um lado ou para o outro. Não quero aqui apoiar
aqueles que estão fazendo esse discurso (...) em favor de uma militarização do nosso país
de uma forma totalmente indiscriminada e querendo trazer à tona de novo aquilo que não
foi bom pro nosso país, que foi a ditadura (...). Mas também quero deixar claro e também
apoiando aqui o Major Olímpio que a Comissão da Verdade de verdade não tem nada. Se
tivesse verdade nisso estaria apoiando coisas que foram feitas pela nossa presidente e por
outros e não foi apurado. Então não quero tendenciar nem para um extremo nem para o
outro, porém para a democracia que tem que ser preservada em nosso país e por nós
parlamentares muito muito muito defendida. (...) “Senhor presidente, somente pra
completar, só quero dizer que sou contra o requerimento; respeitando as duas partes,
porém sou contra o requerimento. (Deputado Flavinho - Flavinho PSB/SP, discurso em
Reunião Ordinária da Comissão de Direitos Humanos e Minorias, em 15/04/2015).
Senhor Presidente, a questão é a seguinte: no momento em que houve anistia, foi ampla e
irrestrita pra ambos os lados. Então quando a gente pensa em uma comissão dessa, eu
acredito que deveríamos também pensar do outro lado (...). Se houve arbitrariedade por
um lado, do outro lado também aconteceu. Aqui parece mais um tribunal inquisitório em
cima dos militares quando se trata desse assunto. Eu respeito todo o posicionamento da
companheira, mas eu acredito que esse é um assunto que praticamente eu entendi que foi
resolvido quando chegou a anistia. (...). Sou contra o requerimento. (Deputado Pastor
Eurico - PSB/SP, discurso em Reunião Ordinária da Comissão de Direitos Humanos e
Minorias, em 15/04/2015).
Pimenta ponderou que as mais diversas opiniões estavam sendo contempladas na CDHM, e que
aquela posição deveria ser atendida também, no sentido de construir espaço para diversidades. Ao
apelo, o Pastor Eurico respondeu que não via necessidade da subcomissão, e que votaria contra ela.
Flavinho respondeu que acreditava que a CDHM deveria “concentrar esforços em situações muito
mais atuais e necessárias”, e disse que a comissão deveria levar o tema para votação. Percebendo
que perderia no voto diante da aliança religiosa-militar, Erundina requereu retirada de pauta de seu
requerimento, que acabou sendo arquivado. Também nesse caso uma aliança de feição
neoconservadora fez prevalecer o interesse da corporação militar/policial, interditando que a
CDHM monitorasse, em caráter oficial, a implantação das recomendações da CNV.
O PL 373/2015 foi apresentado pelo Delegado Éder Mauro, adventista. A proposta cria
mais uma hipótese de flagrante, o denominado "flagrante provado". Pelo Código de Processo Penal,
considera-se em flagrante delito quem: está cometendo a infração penal; acaba de cometê-la; é
perseguido, logo após; é encontrado, logo depois, com instrumentos que façam presumir ser ele
autor da infração. O PL acrescenta que está em flagrante quem é encontrado, tempo depois,
reconhecido por filmagem ou foto da ação criminosa, ou que confessa o crime.
A proposta, para deputados como Wadih Damous (PT/RJ)98 e Padre Luiz Couto (PT/PB)99,
viola garantias penais. De acordo com a legislação atual, num caso como esse – de surgimento
posterior de provas –, o juiz determinaria a prisão, se presentes os requisitos legais para a medida.
Mas, consoante o projeto, a própria autoridade policial poderia realizar a prisão, em flagrante. Por
isso PL 373/2015 reduz o controle judicial da prisão. Trata-se de uma expressão do que Cristina
Buarque de Hollanda (2005:40) aponta como “mecanismo” utilizado frequentemente pela polícia
para driblar a fiscalização judicial.
Discutindo a matéria na CCJC, Marcos Rogério (DEM/RO), apresentou voto em separado
a favor do flagrante provado, com substitutivo. Marcos Rogério propôs alteração para definir como
em flagrante provado aquele que é reconhecido por imagem e encontrado “logo após” (e não
98
Manifestou-se em voto em separado.
99
Discurso na CCJC em 13/10/2015.
124
“tempo depois”). Seu substitutivo também exclui a confissão da hipótese do flagrante. Também
evangélico, Ronaldo Fonseca (PR/DF) concordou com a proposta nessa versão atenuada:
(...) Com a fala do Deputado Marcos Rogério, entendo que o desejo do Deputado Delegado
Éder é atendido pelo Relator, e, técnica e juridicamente, a proposta ficou bem melhor do
que estava. O ‘logo após’ foi incluído; no anterior, não havia, o tempo era indeterminado.
Havia uma dilação muito grande de tempo para um flagrante delito com a
redação ‘reconhecido pela vítima ou por terceiro que o identifique por filmagem e/ou por
foto da ação criminosa’.
Eu estava discordando da parte final da redação original, já que a confissão daquele que
cometera o crime não era logo após, era por tempo indeterminado. (...) Eu acho que é uma
inovação o flagrante provado, mas que se faz necessária, no tempo em que nós estamos
vivendo, até porque a tecnologia avançou (...). (Deputado Ronaldo Fonseca – PR/DF,
discurso na CCJC em 13/10/2015).
Sr. Presidente, quero cumprimentar o autor desse projeto, Deputado Delegado Éder
Mauro, da Polícia Civil do Estado do Pará, que, em razão da sua larga experiência na área
operacional, traz ao Parlamento um projeto de lei muito oportuno, preocupado com um
dos direitos garantidos na Constituição brasileira à sociedade, ao cidadão: a segurança
pública.
O direito à segurança pública está garantido na Constituição Federal. Penso que a
sociedade brasileira caminha, Deputado Delegado Éder Mauro, para encontrar uma
conformação, um equilíbrio, Deputado Marcos Rogério, entre as garantias e direitos
individuais e os direitos da coletividade.
Em determinado momento, o direito individual pareceu sobrepor-se ao direito coletivo. E
acho que a nossa democracia, o Estado de Direito, a nossa convivência permite que hoje
nós entendamos que não há que se revogar direitos e garantias individuais, mas é preciso
considerar o direito da coletividade. E esse projeto caminha nessa direção ao acrescentar
mais uma hipótese de prisão em flagrante. (Deputado João Campos – PSDB/GO, discurso
na CCJC em 13/10/2015).
O autor do projeto, delegado Éder Mauro, protestante, também defendeu sua ideia,
invocando o combate aos delinquentes:
“Portanto, essas duas situações são menos robustas do que a que está sendo criada em lei
para socorrer a população brasileira, que clama, exatamente, por essa questão. Em 95%
dos casos que hoje ocorrem nas delegacias de polícia envolvendo ação criminosa, o
delinquente e a vítima dizem respeito a esse tipo de coisa. O indivíduo pratica um crime e
foge da situação... Mas hoje, com a ajuda da tecnologia - vídeos ou fotos da ação criminosa
levados à delegacia -, a polícia chega ao criminoso logo após. E através desse vídeo ou
dessa fotografia pode-se autuar o criminoso em flagrante, não por presunção, mas pela
certeza, em razão da prova apresentada de que participou da ação criminosa. Então, nós
não podemos aceitar que hoje 95% do povo brasileiro, nos casos em que são vítimas da
125
delinquência, não possam ser socorridos. (Deputado Delegado Éder Mauro – PSD/PA,
discurso na CCJC em 13/10/2015).
Estou vendo é a receita de sempre, o receituário de sempre: mais penalidade, mais Direito
Penal, vendendo-se a ilusão à sociedade brasileira de que isso vai resolver os problemas
de corrupção.
É bom que a população entenda que esse pacote, que eu considero punitivista,
repressivista, como é da tradição de certo viés legislativo brasileiro, vai se estender para
todos os campos do processo penal. Isto não é só para combater a corrupção, não. Não é
só para, como se anuncia aqui, o grande criminoso de colarinho branco, o grande
corruptor.
E mais: eu tenho absoluto respeito - absoluto, e estou sendo aqui muito sincero -, pelas
boas intenções daqueles que propuseram estas 10 Medidas. Na verdade, é um conjunto de
muito mais do que dez medidas de extrema complexidade, e eu acho que questões de
extrema complexidade não devem e não podem ser tratadas simploriamente. Elas não
fogem do receituário tradicional.
(...)
E, repito: aqui na Casa nós nos recusamos a fazer a reforma política, nós nos recusamos a
enfrentar as mazelas do sistema político eleitoral brasileiro, que são, se não o principal
fator de corrupção aqui no Brasil, um dos principais fatores. A Operação Lava-Jato mostra
isso. Quem é que está lá na Lava-Jato? É o mundo político, em contubérnio com o mundo
empresarial.
Só com o Direito Penal... Ora, criminalidade sempre dá um jeito de burlar e driblar o
Direito Penal. E repito: isso depois vai penalizar quando os empresários fizerem as suas
delações premiadas.
Aliás, segundo matérias jornalísticas, não sou eu quem está dizendo, essas delações já
produziram uma despenalização de 326 anos. (...)
Quero dizer aqui que a Ordem dos Advogados do Brasil, ao examinar as chamadas 10
Medidas, rejeitou-as em sua grande maioria, mais de dois terços. Mais de dois terços delas
foram rejeitadas pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Diversos
126
Esse projeto, dos analisados nesta sessão sobre punitivismo, é o único que em tese não
afetaria particularmente a população pobre, já que é voltado para os crimes de colarinho branco.
Wadih Damous, porém, argumenta que sua lógica se estenderia a todos os domínios do direito
penal. Como se vê da passagem, o embate sobre as Dez Medidas é um embate entre, de um lado, a
concepção de que o direito penal pode resolver problemas estruturais da sociedade, e que para isso
é preciso aumentar o poder policial e judicial sobre indivíduos, e, de outro, uma crítica a essa visão.
Entre, maneira geral, o punitivismo e o garantismo.
Além disso, podemos extrair da fala, não são exatamente dez medidas; são incontáveis
medidas, espalhadas em 67 artigos. Há uma similaridade no nome da campanha com os “Dez
Mandamentos” bíblicos. Pelo menos é a opinião do deputado Zé Geraldo (PT/PA):
Eu estou terminando, Sr. Presidente. Quero dizer que, realmente, agora, os procuradores
Dallagnol, que, inclusive, quer emplacar as dez medidas como uma peça de marketing,
medidas que vêm lá dos dez mandamentos, esteve na Folha de S.Paulo com um
marqueteiro, com uma empresa de marketing que é do PSDB. (Zé Geraldo - PT/PA,
discurso em Plenário no dia 01/12/2016).
Desde o lançamento da campanha das ‘10 Medidas Contra a Corrupção’ pelo MPF, a
Aliança Cristã Evangélica Brasileira manifestou apoio a elas em suas linhas gerais, pelo
que representavam. Por isso, saiu a campo para coleta de assinaturas nas igrejas
evangélicas e foi a Brasília participar da entrega ao Congresso Nacional.
Lembrados das palavras do profeta Miquéias: ‘pratique a justiça, ame a fidelidade e ande
humildemente com o seu Deus’, em recente Declaração, afirmamos: ‘denunciamos as
artimanhas que não desejam reformas profundas e afirmamos todo o esforço possível para
que a transparência dos fatos seja buscada e a justiça seja exercida.’(Ace, 2016).
127
Foi membro de 10 CPIs, entre elas a CPMI dos Correios, a CPMI do Cachoeira e da CPMI
da Petrobras. Sua luta contra a corrupção no país é bastante conhecida.
A biografia de seu perfil nas redes sociais deixa claro quais são as suas prioridades na
vida: ‘Seguidor de Jesus, Marido e Pai Apaixonado, Procurador da República por Vocação
e Mestre em Direito por Harvard’ (Aragão, 2016a)
O portal também afirma que em palestra Dallgnol terminou sua fala citando versículo
bíblico. E explicou que sua visão de mundo acaba extravasando em como vê a profissão, ainda que
defenda o Estado laico:
Em palestra recente no Paraná, ele conversou com o portal Gospel Prime sobre sua atuação
como parte da Força-Tarefa que vem modificando o cenário político brasileiro.
No final de sua fala, citou o versículo de Gálatas 6:7 ‘porque tudo o que o homem semear,
isso também ceifará’. Questionado se vê Deus agindo em todo esse processo de mudanças
no país, faz questão de frisar que, como profissional defende o Estado Laico.
Porém, como indivíduo admite: ‘Minha visão de mundo faz parte de quem eu sou. Isso
acaba extravasando no modo como a gente exerce a profissão’. Explica também que, no
seu ponto de vista, ‘o cristão, em razão dos valores e princípios bíblicos é uma pessoa que
deve ser comprometida com a transformação da sociedade para o bem. Se nós vemos um
mal que sangra nosso pais, como é a corrupção, ele precisa ser estancado’. (Aragão,
2016a).
100
Disponível em http://lavajato.mpf.mp.br/entenda-o-caso, acessado em 22/06/2017.
128
O procurador associa sua visão de missão religiosa à sua missão de combater a corrupção,
“mal que sangra nosso país” e precisa ser estancado. As Dez Medidas, cuja campanha e redação
foi coordenada por Dallgnol, provavelmente vêm imbuídas do espírito de missão de combate à
corrupção, a qual, na visão do procurador, se comunicam com seus princípios cristãos.
Como se vê, novamente podemos identificar aí uma articulação de feição neoconservadora,
por unir religiosos no protagonismo de medidas de caráter punitivista. Mas precisamos sublinhar
que, assim como todas as outras matérias discutidas aqui, as medidas contra a corrupção não foram
endossadas só por esses setores da sociedade. Nesse caso em particular houve adesão forte da
mídia. As Medidas receberam mais de dois milhões de assinaturas, segundo documento assinado
pelos deputados autores.
Também os parlamentares evangélicos não aderiram unanimemente às medidas, que além
disso foram bastante modificadas até sua aprovação final pela Câmara, em 2016 – hoje também
aguardam deliberação do Senado. Mas esses setores, o policial e o religioso
pentecostal/carismático, protagonizaram sua apresentação.
O Governo nada fez e, por isso, o cidadão de bem está desarmado, mas os bandidos
continuam armados e o narcotráfico continua sendo uma atividade promissora. (Deputado
129
Cabe destacar que o deputado Flavinho (PSB/RJ), carismático, coerente com seu
pronunciamento a respeito da Comissão Nacional da Verdade citado acima, votou contra o
Estatuto. Os evangélicos, por sua vez, não são unânimes na pauta – por exemplo, o Pastor Pedro
Ribeiro (PMDB/CE) fez discurso em plenário em 17/10/2005 em que se posiciona pela proibição
do comércio de armas de fogo e munição no Brasil. Fora do parlamento, a liderança da Assembleia
de Deus Pastor Silas Malafaia se manifestou, em vídeo101, contra a proposta, considerando-a fruto
do lobby da indústria de armamento.
Mas, considerando a comissão especial sobre o PL 3722/2012, temos uma adesão
evangélica expressiva à proposta. Na votação sobre o mérito do parecer do relator, no dia 27 de
outubro de 2015, os três integrantes da bancada evangélica que participaram do pleito votaram
favoravelmente. Dos dez votantes presentes que assinam a Frente Parlamentar Evangélica, oito
votaram a favor do PL. Foram 14 votos favoráveis o Estatuto de Controle de Armas de Fogo e oito
votos contrários. Dos 14 favoráveis, oito assinam a FPE. Ou seja, 57% dos votos favoráveis à
revogação do Estatuto do Desarmamento vieram de integrantes da Frente Parlamentar Evangélica,
Ĥ晉 吀 阂l혅
101
Disponível em http://conscienciacristanews.com.br/o-cristao-pode-possuir-e-portar-arma-de-fogo-para-se-
proteger/, acessado em 13/06/2017.
130
Em 2015 a Câmara dos Deputados instaurou uma Comissão Parlamentar de Inquérito sobre
o sistema carcerário. Foram apresentadas seis recomendações em seu relatório final, de autoria do
deputado Sérgio Luís Lacerda Brito (PSD/BA). Quatro das recomendações se referiam à gestão
dos presídios em parceria entre o poder público e a iniciativa privada. A CPI apresentou ainda,
dentre outros, um projeto de lei sobre a parceria público-privada, e sugerindo um assento às
102
https://www.facebook.com/deputadopeninha/photos/a.608249585853647.1073741826.608246322520640/10196318
91382079/?type=1&theater, acessado em 13/06/2017.
131
Esses aspectos do relatório foram objeto de crítica dos deputados Paulo Teixeira (PT/SP) e
Subtenente Gonzaga, e de votos em contrário de Érika Kokay (PT/DF), Carlos Zarattini (PT/SP) e
de Edmilson Rodrigues (PSOL/PA). A fala de Kokay sintetiza as objeções ao relatório no que diz
respeito à terceirização da gestão penitenciária:
A pena de morte não é, pelo menos explicitamente, defendida por um conjunto articulado
de parlamentares. De 2003 a junho de 2017, foram proferidos 430 discursos em plenário com a
expressão “pena de morte”. Os discursos são, de regra, contrários à previsão da morte como
punição; eles usam a noção de pena de morte como argumento para, por exemplo, dizer que na
prática ela existe em tais ou quais circunstâncias.
É o caso do parlamentar que mais proferiu discursos com essa expressão, Luiz Couto
(PT/PB). Ele milita contra grupos de extermínio, e na maior parte de seus pronunciamentos diz
que, se esses grupos não foram enfrentados, o que existe é, na prática, “pena de morte” para as
vítimas dessas quadrilhas.
O que chama atenção é que o segundo parlamentar que mais se pronunciou em referência
ao tema foi Jair Bolsonaro. Ele, sim, defende a pena capital:
O preso não merece ser humilhado, mas ser condenado à pena de morte. Enquanto não
adotarmos no País a pena de morte, redução da maioridade penal e controle da natalidade,
não chegaremos a lugar algum no combate não só à violência, mas à fome e à miséria.
(Deputado Jair Bolsonaro, PTB/RJ, discurso em plenário em 29/04/2003).
Prezado Presidente, faço um alerta a quem está nos ouvindo, em especial aos
Parlamentares: atentem para a reforma do Código Penal apresentada no Senado. Está cheia
de absurdos.
Acredito que esse material não deveria nem ser analisado, e se o fosse que fizessem por
partes. Por exemplo, legalizam os prostíbulos. A que ponto chegamos legalizando casas
de prostituição e dando carteira de trabalho para prostituta, com o argumento de evitar o
preconceito e dar-lhe dignidade? Legalizam as drogas, quando em pesquisa no Brasil,
hoje, mais de 50% da população já aceita até a pena de morte e mais de 90% aceita punir
os menores de 18 anos, ou seja, diminuindo a maioridade penal, e no Senado vem essa
proposta desses juristas - que não foram escolhidos ao acaso, com toda certeza há o dedo
deste Governo -, legalizando as drogas.
Mais ainda, pega o PL 122, o tal que criminaliza a homofobia, e coloca todo ele dentro do
Código Penal. Chegará a um ponto que se eu não vender o meu relógio para uma pessoa,
porque sei que ela não vai pagar, mas depois se descobre que ela é homossexual, e eu
vendi para outra que vai pagar e mais barato, eu começo com 3 anos de detenção também.
É mais um absurdo!
Outro absurdo: legaliza o terrorismo para o MST. Ou seja, se nós dois, Presidente,
cometermos um ato de vandalismo lá fora, começamos com 8 anos de cadeia. Se for o
pessoal do MST não há punição.
Assim sendo, faço esse apelo aos meus colegas, para que prestem atenção a esta proposta
de reforma do Código Penal, que é absurdo dos absurdos. Inclusive, atenta contra a
família, os bons costumes e a religiosidade.
Muito obrigado, Sr. Presidente. (Deputado Jair Bolsonaro, PP/RJ, discurso em plenário
em 05/07/2012).
Buscaremos verificar, aqui, se existe uma articulação de feição neoconservadora no que diz
respeito à moral sexual e ao punitivismo. Assim, analisaremos a conduta dos protagonistas da ação
pró-família estudada no Capítulo II que exercem mandato na 55ª Legislatura103.
São 50 parlamentares nesse grupo, dentre os quais 68% pertence ao grande grupo religioso
evangélico; a denominação mais frequente é a Assembleia de Deus (34%). Todos eles, sem
exceção, têm ao menos um voto ou iniciativa (proposição ou discurso) coerente com o
neoconservadorismo penal, de acordo com os critérios elencados neste capítulo.
103
Como explicado anteriormente, o recorte temporal da 55ª legislatura se deve ao fato de ser nela que cresce o
tamanho das bancadas conservadoras e que se robustece a já consolidada ação pró-família.
134
104
Para explicação sobre a metodologia empregada, vide Apêndice.
135
Visto, portanto, que há uma atuação relevante da bancada evangélica e dos protagonistas
da reação pró-família no que seria uma agenda punitivista neoconservadora, e visto que os
105
Para explicação sobre a metodologia empregada, vide Apêndice.
136
argumentos usados na defesa das pautas têm características de uma mentalidade neoconservadora,
examinemos agora a articulação entre as bancadas.
A entrevista do Capitão Augusto (PR/SP), deputado conhecido por usar o uniforme militar
nas sessões parlamentares, à revista Exame, explica a articulação:
A bancada da bala, assim chamada pela imprensa para se referir aos parlamentares
financiados por indústrias de armas e munições, teve ao longo do ano passado
‘acréscimos’ de deputados que fizeram jus a serem incluídos pela veemência e repetição
com que defendem a redução da maioridade penal, o aumento de penas e, principalmente,
a revisão do Estatuto do Desarmamento – algumas vitórias parciais foram conseguidas em
2015.
Conhecido por ostentar um impecável uniforme militar pelos corredores e plenários da
Câmara, o PM e deputado federal Capitão Augusto fala com bom humor do epíteto
recebido pelo grupo.
‘Acabou que esse termo, que tinha um sentido pejorativo, se popularizou e com viés até
contrário, demonstrando que a bancada da bala está, sim, compromissada com a questão
da segurança, com o endurecimento da legislação penal, do Estatuto da Criança e do
Adolescente, e por aí vai. Hoje, já não nos incomoda mais esse termo ‘bancada da bala’,
mas nós somos, na verdade, da bancada da vida. O que a gente defende é a vida,
principalmente do cidadão de bem’, disse.
A relação entre a turma que em parte defende a linha do ‘bandido bom é bandido morto’
e a Frente Parlamentar Evangélica é um bom exemplo da força da articulação de grupos
conservadores.
‘As frentes de segurança pública e a evangélica correm juntas aqui. Nós temos os
mesmos valores. A gente se ajuda realmente, não integramos [a frente evangélica, da
qual Augusto também faz parte] apenas com o nome, para constar, mas para
efetivamente ajudar em todos os projetos que eles estão apoiando’, reconhece o PM.
Ele rechaça a ideia de os pontos que unem os dois grupos sejam de um conservadorismo
extremista.
‘Preservamos a questão da família, da moral, da ética, da honestidade. Não tem como
ser radical nesses valores – ou você tem, ou você não tem. Ou você é honesto, é um
cidadão de bem, ou você não é.’ (Medeiros e Fonseca, 2016) Sem grifos no original.
Capitão Augusto afirma que as bancadas da segurança e evangélica “se ajudam”, “correm
juntas”; possuem “os mesmos valores”, inclusive os da “família” e da “moral”. Sua fala sintetiza o
que verificamos nos exemplos estudados: a articulação é, em parte, estratégica, e em parte por
convergência de valores. Estratégica porque ambos os grupos são minoritários – nem mesmo a
maior bancada, a ruralista, possui mais da metade dos membros da Câmara – e precisam de apoio
recíproco. Aliança de valores porque defendem o conjunto do que chamamos aqui de agenda
neoconservadora.
A articulação contemporânea entre os grupos, descrita pelo Capitão Augusto, é mostrada
também em números. Vamos considerar, para avaliar isso, a pesquisa disponível sobre a totalidade
137
da atuação em temas sobre segurança pública. Trata-se de estudo do Instituto Sou da Paz (2016),
que tem como marco temporal o ano de 2015.
Em 2014, foram eleitos 19 policiais, incluindo militares, civis, federais, bombeiros e reserva
(Isp, 2016:23). Cruzando a relação desses policiais com a relação de integrantes da bancada
evangélica, temos que cinco dos 19 policiais são evangélicos. (Dos policiais evangélicos, 60% é
da Assembleia de Deus.) Aplicando-se a tabela de contingência, temos o seguinte resultado:
106
Para explicação sobre a metodologia empregada, vide Apêndice.
107
Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado, Comissão Especial que analisou a PEC
171/1993 (Redução da Maioridade Penal), Comissão Especial que analisou o PL 3722/2012 (Revogação do Estatuto
do Desarmamento) e Comissão Especial destinada a criar a Lei Orgânica de Segurança Pública.
138
A correspondência entre pertencer à FPE e ser atuante nas comissões de segurança pública
é o dobro da esperada, enquanto ser mais atuante em segurança pública e não ser membro da FPE
tem apenas 40% da frequência esperada. Isso demostra a associação na militância sobre os temas:
aqueles que mais atuam em segurança pública tendem a apoiar pauta evangélica.
Além disso, o ISP (2016:25) relaciona os oito parlamentares mais atuantes nas áreas de
segurança pública e justiça criminal, considerando as proposições que apresentaram e a
participação nas comissões. São eles Alberto Fraga, Laerte Bessa, Capitão Augusto, Pompeo de
Mattos, Lauidivio Carvalho, Cabo Sabino, Eduardo Bolsonaro e Ronaldo Martins. Todos eles são
subscritores da Frente Parlamentar Evangélica. (Dois deles são membros da bancada evangélica –
um Batista e um da IURD.) A subscrição massiva por parte dos deputados à FPE, apesar de não
serem efetivamente evangélicos, demostra o apoio que sistematicamente aqueles mais atuantes nos
temas de segurança pública dão à pauta evangélica.
Há mais evidências sobre a articulação. Em 2015, religiosos e profissionais da segurança
pública organizaram-se, de forma transversal aos partidos, para ter maioria expressiva na Comissão
de Direitos Humanos e Minorias. Esse foi o primeiro ano da Legislatura eleita em 2014. Dos 17
titulares, 9 eram evangélicos ou carismáticos e um era militar. Dos 15 suplentes, dois eram
evangélicos e cinco eram policiais ou militares. 58% dos titulares eram de uma das bancadas
temáticas. Naquele ano, o conjunto bloqueou a discussão sobre a efetivação do relatório da
Comissão Nacional da Verdade e permitiu a discussão sobre a experiência dos “ex-gays”, por
exemplo.
108
Para explicação sobre a metodologia empregada, vide Apêndice.
139
109
Imagem disponível em
http://www.camara.gov.br/internet/bancoimagem/banco/img20150225125304353044MED.jpg, acessado em
19/06/2017.
140
A Frente Parlamentar de Segurança Pública foi instalada na manhã desta quarta-feira (25).
A Frente será atuante e com o conhecimento dos parlamentares será possível encontrar
uma alternativa para frear o crescimento da violência. Não podemos deixar as coisas como
estão quem está mandando no Brasil são os bandidos.
Acabar com a impunidade do menor, reformulação do sistema prisional, valorização as
forças de Segurança e combate ao tráfico de drogas estão entre os principais temas da
Frente. A discussão sobre o Estatuto do Desarmamento também será retomada.110
O texto chama atenção, de um lado, porque cinco das três pautas que ele considera
prioritárias da FPSP tiveram significativo avanço na Câmara dos Deputados naquele ano, sob
presidência de Eduardo Cunha. A PEC da redução da maioridade penal foi aprovada por Comissão
Especial (a criação desse tipo de colegiado vem de decisão política do presidente da Câmara) e
pelo Plenário, com condução que foi severamente questionada; o homicídio de policiais tornou-se
crime hediondo, o que foi considerado uma valorização dos profissionais da segurança pública; a
revogação do Estatuto do Desarmamento foi aprovada naquele ano, também em comissão especial.
Também são notórias, no texto, as “tags”, ou expressões precedidas do símbolo “#”. Elas
incluem “bandido na cadeia” e “cidadão de bem”, em linguagem punitivista clássica. Além desses,
outro aspecto notório na postagem é a fotografia que a ilustra:
110
Disponível em https://www.facebook.com/albertofraga.oficial/posts/837427912996674:0, acessado em
14/06/2017
141
111
Disponível em https://www.facebook.com/albertofraga.oficial/posts/837427912996674:0, acessado em
14/06/2017.
112
Edital n° 13, de 7 de abril de 2017, publicado no DOU de 10/04/2017, p. 50, item 14.9.4.
142
(...) defesa de tortura, mutilação, execução sumária e qualquer forma de ‘justiça com as
próprias mãos’, isto é, sem a intervenção de instituições sociais devidamente autorizadas
(o governo, as autoridades, as leis, por exemplo); incitação a qualquer tipo de violência
motivada por questões de raça, etnia, gênero, credo, condição física, origem geográfica ou
socioeconômica; explicitação de qualquer forma de discurso de ódio (voltado contra
grupos sociais específicos). (Inep, 2017:10).
Usaram-se neste capítulo dois critérios principais para investigar se existe uma articulação
que envolva militância sobre a moral sexual e sobre o neoconservadorismo penal na Câmara dos
113
Medida cautelar na suspensão de liminar 1.127, em 04/11/2017.
143
Deputados brasileira. O neoconservadorismo penal foi entendido aqui por punitivismo (rigor penal
e encarceramento), flexibilização de garantias processuais, estigmatização, defesa de determinadas
pautas corporativas e ênfase na legítima defesa.
O primeiro critério consistiu no estudo dos projetos que representam o que seria essa agenda
neoconservadora punitivista. Verificou-se que são usados na justificação dessas pautas tanto
argumentos religiosos quanto argumentos neoconservadores (invocação da família, dos cidadãos
de bem contra os bandidos e da maioria). Verificou-se ainda papel de destaque dos evangélicos na
tramitação das proposições e apoio quantitativo desproporcionalmente positivo de parlamentares
evangélicos aos projetos examinados, tão grande ou maior do que de membros da Frente da
Segurança.
Foi também analisada a atuação dos protagonistas da ação pró-família nas pautas que
representam o neoconservadorismo penal. Dos 50 protagonistas da ação pró-família que exercem
ou exerceram mandato na 55ª Legislatura, todos tiveram ao menos um voto ou iniciativa coerente
com o neoconservadorismo penal; 88% dos protagonistas pró-família que participaram da votação
sobre a maioridade penal posicionaram-se a favor da PEC; 97% dos protagonistas da ação pró-
família que participaram da votação apoiaram o agravamento da sanção para o homicídio de
policial. Dentre os protagonistas pró-família mais ativos, 83% são signatários da Frente da
Segurança Pública; todos os que votaram o fizeram a favor da redução da maioridade penal e a
favor do homicídio de policiais. Todos apoiaram mais de uma pauta punitivista ou demanda
corporativa de policiais/militares.
O segundo critério foi a articulação entre as bancadas evangélica e da segurança a partir dos
protagonistas da militância na segurança. Verificou-se que existe uma correspondência
positivamente desproporcional: entre ser policial/militar e ser evangélico e entre ser mais atuante
nas comissões de segurança pública e apoiar a Frente Evangélica. Além disso, a Frente Parlamentar
da Segurança Pública, nas 52ª, 54ª e 55ª Legislaturas, foi presidida por delegado fiel da Assembleia
de Deus durante metade do tempo.
Na intersecção entre os militantes sobre os costumes e os militantes sobre segurança, não
há predomínio claro de nenhuma denominação evangélica, como em relação ao ativismo pró-
família. Mas, também no neoconservadorismo penal, em geral, como vimos, a atuação mais
frequente é de deputados ligados à Assembleia de Deus.
144
Vemos que existe na Câmara dos Deputados uma aliança neoconservadora, se tomarmos as
pautas estudadas até agora: gênero e justiça criminal. A aliança em parte certamente é estratégia,
já que ambas as bancadas, evangélica e da segurança pública, são minoritárias, e precisam de apoio
recíproco. Por outro lado, a aliança se dá por razões ideológicas: a luta do bem contra o mal, a
noção de que existem cidadãos de bem e bandidos, a defesa dos valores da família como eixo da
sociedade. A articulação entre os temas tem o amálgama neoconservador: os mecanismos de
agregação social são a religião e a família; o desvio deve levar à punição rigorosa.
Já no fim da década de 1980 Pierucci (1989:116) identificava a relação entre evangélicos e
adesão a políticas duras de segurança. Para ele, esses religiosos estariam detectando um profundo
mal-estar presente nas camadas sociais excluídas. Mal-estar esse que seria oriundo, de um lado, do
pluralismo comportamental e, de outro, da criminalidade crescente e da “inseguridade social
propriamente dita, dada a ausência de direitos sociais assegurados para todos”. Assim, os apelos
por “lei e ordem” e por “moralidade e decência” teriam “todas as chances de se transformar em
issues cruciais nas disputas políticas, sobretudo político-eleitorais”, como, de fato, se
transformaram.
Galdeano (2014:38-8) trata da literatura que aborda as práticas das organizações
pentecostais em relação à criminalidade, existentes desde a década de 1990. As pesquisas
identificam “rituais de exorcismo para resgatar jovens ameaçados de execução pelo tribunal do
tráfico”, assistência espiritual e trabalhos de prevenção e reeducação comunidades terapêuticas de
tratamento de usuários de drogas e conversão.
Mas, além disso, Galdeano (2014:40, 49, 51) identifica a adoção de um discurso militar.
Embora, como a autora aponta, isso não seja novo no cristianismo, o militarismo vem fazendo parte
do repertório da presença religiosa (sobretudo evangélica) na esfera pública. Ela observa que os
evangélicos adotam a noção de guerra, que permite o nexo entre a “Guerra de combate ao crime”
e a “Guerra entre Deus e o Diabo”; alia-se, assim, repressão e sacralização como mecanismos de
controle das populações. As semelhanças com o léxico neoconservador são muitas. Como a autora
aponta,
Haveria mesmo “uma correlação mimética” entre a ação religiosa e a ação militarizada das
instituições de segurança (Galdeano, 2014:49-53). A autora faz essas observações baseada na Igreja
Universal do Reino de Deus; mas, considerando a neopentecostalização das doutrinas, é possível
que esse raciocínio possa ser expandido. O fato é que essa relação identificada pela autora se reflete
na Câmara dos Deputados.
146
que são proposições assessórias, e não em iniciativas que alterem o ordenamento jurídico, como
projetos de lei ou de emenda à Constituição). Tampouco foram objeto de votação114.
Veremos que todos os protagonistas selecionados, com maior ou menor ênfase, se opõem
ao regime venezuelano ou a algum equivalente do “socialismo do século XXI”. Veremos também
que a maior parte deles adere a uma agenda pró-Israel. Antes de comentarmos os posicionamentos
dos deputados, porém, é preciso ressaltar que o objetivo aqui não é debater a correção, pertinência
ou adequação de seus argumentos. O objetivo é, simplesmente, verificar se aqueles identificados
como protagonistas das pautas punitivistas e pró-família aderem ideologicamente ao que seria o
neoconservadorismo na política externa do Brasil contemporâneo.
114
A Câmara votou, em 2008, o PDC 387/2007, que tratava do ingresso da Venezuela do Mercosul. Essa decisão
não será considerada aqui por duas razões. A primeira é que, temporalmente, essa votação se distancia muito da
legislatura iniciada em 2015. A segunda razão é que o PDC era de interesse do Governo Lula, forte à época. O
resultado foi bastante influenciado pela dicotomia governo/oposição, não sendo, portanto, um retrato da posição
ideológica dos parlamentares.
149
Ao criar a área bolivariana das Américas, o que o move é o sentido generoso, o que move
era uma integração, inclusive financeira, através de um banco da América, através de uma
rede de comunicação da América, através da unificação de companhias de petróleo que as
115
Em discurso em Plenário em 6/3/2013.
150
tornassem a maior companhia do mundo na América Latina, cedendo petróleo aos países
que não o têm, como Cuba, que passou por uma crise enorme, e a coragem política de
enfrentar aqueles que, em nome da indústria armamentista americana, fizeram várias
guerras, como a do Iraque e a do Afeganistão.
É por isso que o Presidente Hugo Chávez despertou na América Latina a ideia de que era
possível colocar o povo em movimento. Não é à toa que o Presidente do Equador, Rafael
Correa, agora foi reeleito com mais de 66% dos votos, com maioria na Constituinte lá,
69%, para fazer mudanças estruturais. Não é à toa que, depois de quase 200 golpes de
Estado na Bolívia e no Equador também, o Presidente Evo Morales, que segue a mesma
orientação, conseguiu estabilizar a Bolívia e dar hoje as mínimas condições para o povo
pobre e excluído, que foi explorado pelos donos do estanho e da prata desde os tempos da
colonização espanhola. (Deputado Ivan Valente, PSOL/SP, discurso em Plenário em
06/03/2013).
recorrer à estratégia gramsciana para conquistar o poder”. Assim, ele afirma que o governo
conduzido pelo PT estaria manipulando a democracia em prol da revolução socialista. E ele alerta
sobre a necessidade de rejeitar a “desgraça”:
O trabalho é gigantesco, mas acredito que no dia em que o cidadão brasileiro, sobretudo a
classe média, saber exatamente o que está acontecendo em nosso país, ela irá rejeitar essa
desgraça que vem em nome de boas intenções. O socialismo, onde foi implantado, causou
morte e sofrimento. Mais de 100 milhões de pessoas morreram sob este regime demoníaco
no século 20, na antiga União Soviética de Lênin e Stalin, na China de Mao, no Camboja
de Pol Pot, na Cuba de Fidel e Che Guevara, ícones dessa turma, e na Coreia do Norte.
Não queremos o socialismo versão século 21 no Brasil. (Rogério, 2014)
Agora, como é que se explica isso, no meio de uma situação como essa em que Cuba vive
há 50 anos, um Estado bloqueado na sua economia por um interesse norte-americano? E
o Brasil, durante o Governo do Presidente Lula, já se pronunciou várias vezes pelo
interesse da quebra desse bloqueio. Nós somos favoráveis, é a posição do nosso partido,
ao governo cubano. É um governo — e um país — que tem procurado uma relação
diplomática com todos os países do mundo, inclusive o Irã, inclusive com a Coreia do
152
Os partidos contrários à proposta tentaram impedir que houvesse quórum suficiente para
aprovação do requerimento – que acabou sendo arquivado justamente porque a obstrução
funcionou. Tentando angariar apoios para que o requerimento fosse aprovado, o deputado André
Moura (PSC/SE), líder do seu partido, invocou que os deputados comparecessem à votação, em
nome da democracia:
Portanto, Sr. Presidente, o PSC orienta o voto ‘sim’ a bancada e convoca todos os nossos
Deputados ao plenário para votarem ‘sim’, e, assim, fazermos justiça e mostrarmos que
nós respeitamos a Constituição, lutamos pela democracia, pela liberdade de expressão e
pelo direito livre de ir e vir de todos os cidadãos e de todas as cidadãs que vierem a este
País defender seus ideais, seus pensamentos e suas lutas, O PSC vota ‘sim’ e convida todos
os seus Parlamentares para virem ao plenário votar. (Deputado André Moura – PSC/SE,
discurso em Plenário em 20/02/2013).
A alusão negativa ao regime cubano foi enfatizada também por Pastor Eurico. No transcurso
do 367º aniversário do Exército Brasileiro, ele homenageou a instituição, inclusive negando que o
período do regime militar tenha sido uma ditadura, e afirmando que se não fosse a intervenção
militar a partir de 1964 o Brasil seria outra Cuba:
Nesses 367 anos, ninguém tem o que dizer contra o nosso Exército, mesmo no momento
que alguns apelidam de ditadura - eu não aceito esse tipo de tratamento; o governo militar
foi necessário para que o Brasil tivesse ordem e hoje tivesse a democracia. Se não fossem
os militares, nós seríamos hoje uma Cuba piorada no planeta Terra! (Deputado Pastor
Eurico – PSB/RJ, discurso em Plenário em 07/04/2015).
Espero que fique bem claro aos brasileiros que o feijão só está nesta carestia por conta da
Presidente Dilma, que enviou o produto para Cuba, e pagou inclusive o frete.
Espero que fique bem registrado, para que o brasileiro saiba quem são os culpados dos
desmandos e da carestia, do preço alto neste País. A culpa é do Governo do PT! Não
queiram culpar o Governo que entra neste momento. (Deputado Sóstenes Cavalcante –
DEM/RJ, discurso em Plenário em 28/06/2016).
O curioso é que a doação do grão a Cuba não foi a responsável pela respectiva inflação. A
doação ocorreu em 2015, quando o Brasil tinha em estoque 303 mil toneladas de feijão – 625
153
toneladas (0,2% do total do estoque) foram doadas a Cuba. O preço do feijão subiu em 2016 porque
a safra do feijão foi prejudicada pelo fenômeno El Niño (Conab, 2016; Fonseca, 2016a; Rural,
2015:150). A referência a Cuba, na fala, é um recurso retórico para associar o governo petista a um
regime socialista indesejado.
A crítica a Cuba e à Venezuela apareceu, na fala do deputado Pastor Marco Feliciano
(PSC/SP), em 02 de setembro de 2015, relacionada à crítica ao reconhecimento, por parte do
governo brasileiro, da “representação do povo palestino como Estado”; a crítica ao ex-presidente
Luiz Inácio Lula da Silva, que disse em discurso que os movimentos sociais precisariam brigar
pela democracia, o que seria feito com apoio do “exército” de João Pedro Stédile, líder do
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra; à crítica ao modelo de democracia "cubana,
venezuelana, bolivariana".
116
Publicação disponível em https://twitter.com/flavinhocn/status/770693296071012353, acessada em 01/07/2017.
Literalmente, Flavinho diz, na linguagem coloquial, utilizada comumente nas redes digitais: “Não seja ridículo
senhor senador! Aqui ñ é Venezuela e nem será! Somos uma nação democrática e respeitamos as leis”.
154
marxismo, e é por isso que se vê muita gente falando mal das elites, da imprensa burguesa, da
democracia burguesa”. Para Bulhões, os jovens não podem desprezar a democracia burguesa, que
“é muito superior às alternativas marxistas, como o bolivarianismo, outra tentativa fracassada de
construir o suposto verdadeiro socialismo”. Para o parlamentar, é “claro que cada um pode ter sua
posição política particular e acreditar, como Lula, que a Venezuela tem excesso de democracia.
Mas é inadmissível que professores ensinem esse tipo de mentira às crianças e aos jovens”.
A Venezuela também foi argumento utilizado pelo deputado Fernando Francischini
(SD/PR) em embate político que tocou na questão da educação. Esse deputado era Secretário de
Estado da Segurança Pública do Paraná em abril de 2015, quando a Polícia Militar de seu Estado
reprimiu manifestação de professores, resultando em muitos gravemente feridos. O deputado Paulo
Pimenta, então presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias, considerou a ação bárbara
e violenta:
“Ora, Sr. Presidente, até hoje o centro de Curitiba está manchado com sangue de centenas
de professores que foram espancados barbaramente numa ação violenta, jamais vista neste
País, no momento em que ele era Secretário de Segurança! (Palmas.) Por conta desse
episódio, ele foi corrido do Governo do Estado e mandado de volta a Brasília. (Palmas.)”
(Deputado Paulo Pimenta - PT/RS, discurso em Plenário em 17/06/2015.)
Francischini respondeu, dizendo que era o PT que tinha sangue nas mãos, o sangue do
regime venezuelano:
Sr. Presidente, eu acho que o Deputado Paulo Pimenta está com amnésia. Ele está se
esquecendo de que é do PT, do partido da Presidente Dilma Rousseff, que tem as mãos
sujas de sangue da Venezuela, onde todos os líderes da oposição estão presos, e ela não
recebe a esposa de um líder que está preso. (Apupos no plenário.) (...) A Presidenta Dilma
Rousseff apoia o regime da Venezuela, recebe um Ministro acusado de narcotráfico, e não
recebe a esposa de um líder preso; não apoia uma comitiva brasileira que defende os
direitos humanos! (Deputado Fernando Francischini – SD/PR, discurso em Plenário em
17/06/2015.)
Sr. Presidente, Sras. e Srs. Deputados, demais senhoras e senhores presentes e os que me
ouvem e ou me vêem pela Rádio ou pela TV Câmara, a situação política do Brasil tá preta,
como se diz na linguagem coloquial. Ainda assim, podemos analisá-la sob um prisma
positivo: poderia ser pior! Basta vermos alguns exemplos recentes relativos aos nossos
vizinhos sul-americanos. A Venezuela, a Bolívia e o Equador conviveram e convivem
com uma ordem institucional extremamente frágil. A situação brasileira nem de longe se
assemelha à desses países. (Deputado Lincoln Portela - PL/MG, discurso em Plenário em
26/09/2005).
A nossa crise econômica não nasceu agora, ela vem de algum tempo. Porque o Brasil,
através do PT, optou pelo viés ideológico para fazer seus negócios não com o mundo, mas
basicamente, na América do Sul, com o MERCOSUL. Obviamente mantemos comércio
com a China e com outros poucos países, mas foi essa âncora ideológica que nos levou a
esse estado de coisas, e sair dele não vai ser de hoje para amanhã.
156
(...)
O Brasil com o PT vem cada vez mais tornando-se dependente de outros países da
América do Sul. Por quê? Graças à grande pátria bolivariana, que nasceu no passado, em
1990, quando Lula e Fidel Castro criaram aqui, no Brasil, o Foro de São Paulo. Temos,
portanto, que romper essas amarras.
(...)
Costumo dizer que não foi à toa que esse Governo desarmou o cidadão de bem. Eles têm
um projeto de poder para não mais sair daí. E ouso dizer: eles não entregarão o poder
democraticamente, que é o que queremos, lógico, sem nos lançar, talvez, numa nova
aventura, semelhante àquela que começou em 1966.” (Deputado Jair Bolsonaro – PSC/RJ,
discurso em Plenário em 10/03/2016)
Sr. Presidente, o Governo da Sra. Dilma Rousseff, em 2013, assinou um acordo de armas
na ONU que vai colocar por terra todo o trabalho especial do Deputado Peninha no tocante
ao Estatuto do Desarmamento.
(...) Ou seja, estaremos fadados, nós os cidadãos de bem do País, a não possuir mais arma
de fogo. É o projeto bolivariano, comunista do PT de desarmar a nossa população.”
(Deputado Jair Bolsonaro – PP/RJ, discurso em Plenário em 08/07/2015).
O “processo de lenta e contínua bolivarização” do Brasil foi objeto de alerta por parte do
deputado Arolde de Oliveira (PSD/RJ), que, por sua vez, mencionou acordo entre o Movimento
dos Trabalhadores Sem Terra no Brasil, o MST, e o governo da Venezuela.
aos brasileiros” como a então presidenta tinha “dado um viés político-ideológico ao material
distribuído nas escolas públicas do país”; seria evidente a tentativa de seu governo de, “sob o título
de ‘bolivarianismo’, reprisar na América Latina estratégias usadas por governos comunistas no
passado” (Aragão, 2016b).
É interessante notar como o portal de notícias evangélicas faz uma relação lógica entre ser
cristão e lutar contra o marxismo. Isso não é aleatório. O viés conservador do pentecostalismo é
identificado desde sua chegada ao Brasil, como veremos no Capítulo VI. O anticomunismo
evangélico é manifesto desde a Guerra Fria. Por exemplo: o informativo pentecostal Mensageiro
da Paz revelava, na década de 1980, “alinhamento de forças para o iminente fim dos tempos,
levando a um dualismo geopolítico que rejeita qualquer ideal não-capitalista de sociedade”
(Freston, 1993:245).
Todos os protagonistas selecionados do que seria uma ação neoconservadora brasileira,
enfim, aderiram em algum nível ao combate ao socialismo do século XXI, ao bolivarianismo ou
aos exemplos de Cuba, Bolívia e Venezuela. Os argumentos são variados: às vezes em nome do
cristianismo, às vezes por razões econômicas, às vezes porque o bolivarianismo seria, em si, um
mal.
Há uma diferença importante entre o neoconservadorismo nos EUA e no Brasil no que diz
respeito ao anticomunismo. Lá, tratava-se de se sobrepor à então União Soviética para afirmar os
Estados Unidos como potência hegemônica. Já aqui o combate ao socialismo no século XXI vai
no sentido contrário de o Brasil atuar com vistas a maior projeção internacional, pelo menos em se
considerando algumas falas que criticam as parcerias com a América do Sul e Cuba de maneira
geral.
Isso pode ser entendido com as categorias de Maria Regina Soares de Lima (2005). A autora
trata de duas identidades da política externa de países como o Brasil, que têm capacidades limitadas
relativamente às grandes potências, mas que atuam como potências regionais.
A primeira identidade é a de “grande mercado emergente”, e faz referência países da
periferia que implementaram as reformas econômicas do Consenso de Washington. A ela se soma
158
uma estratégia de “busca de credibilidade” a partir de países com excedentes de poder como os
EUA (Lima, 2005:10-12, 24).
A segunda identidade é denominada de “system-affecting state”, que implica em um perfil
assertivo, valorização de arenas multilaterais e “ação coletiva entre países similares de forma a
exercer alguma meta de poder e influenciar nos resultados internacionais”. Essa identidade se
comunica com a “estratégia autonomista”, que é crítica dos frutos da liberalização comercial e
preconiza uma “política ativa de desenvolvimento” (Lima, 2005:1-2, 10-12, 24).
A primeira identidade, que corresponde a uma “integração hemisférica”, foi adotada na
década de 1990 por países da América do Sul que se engajaram em políticas externas alinhadas aos
Estados Unidos (Guimarães, 2008:241-3). Mas a onda rosa a partir dos anos 2000, ao lado do
fracasso das políticas neoliberais e da política externa de Bush após o 11/09, levaram à “revisão de
relações com os Estados Unidos em quase todos os Estados sul-americanos” (Monteiro, 2014:177).
A Venezuela inaugurou a fase revisionista pós-neoliberal na América do Sul, e o Brasil foi
elemento-chave na liderança regional (Monteiro, 2014:178). É a política externa que expressa esse
revisionismo por uma integração autônoma que os parlamentares citados atacam, direta ou
indiretamente.
O Brasil é um país de periferia; um país cujas capacidades são limitadas em relação às
potências hegemônicas e pelo próprio ordenamento do sistema internacional. Não faria sentido no
nosso caso, portanto, falar em disputa pela hegemonia global, como no caso do
neoconservadorismo norte-americano. Mas faria sentido falar em inserção global ativa, com vistas
criar espaços para serem ocupados por países emergentes como o Brasil. As críticas às parcerias
com Venezuela, Equador, Bolívia e Cuba, porém, afetam indiretamente a perspectiva autonomista
de política externa.
Nos Estados Unidos o neoconservadorismo foi um discurso bélico de afirmação dos EUA
como o centro de um império. O neoconservadorismo brasileiro, por sua vez, mantém o traço anti-
comunista norte-americano, mas critica a possibilidade de integração autônoma ou ativa,
fragilizando a possibilidade de projeção internacional.
Batista (2007:373-75) mostra que a revista da Frente Parlamentar Evangélica revelou que
um coletivo de parlamentares que passara dez dias em Israel em 2004 assumira “duas grandes
missões perante a Nação Israelita”. A primeira seria a de difundir a “verdadeira” versão do "conflito
milenar”, “divulgando os fatos reais”. A segunda seria a de promover a paz entre judeus e árabes
no Brasil. Os evangélicos, para a Frente, “serão o elo de ligação para promover um acordo de paz”.
Nos discursos dos evangélicos sobre o assunto no parlamento aparecem, de acordo com
Rafael Gonçalves (2017:154, 64), principalmente três ordens de argumentos: de que Israel é a
“Terra Prometida”; referências à amizade histórica entre Brasil e Israel com destaque para o papel
desempenhado pelo Brasil, na figura de Oswaldo Aranha na ONU, em defesa da criação do estado
de Israel (o que é objeto de ponderação por parte de Gonçalves); e a capacidade de Israel como
parceiro tecnológico do Brasil.
O autor aponta que, “em diversas ocasiões, o apoio evangélico pela predominância bélica e
domínio de Israel na região é sustentado por argumentos bíblicos” baseados no Velho Testamento,
e que “locuções adjetivas tipicamente religiosas” são “atribuídas pelos deputados evangélicos a
Israel, como ‘Terra Prometida’, ‘Milagre de Deus’, ‘Nação Escolhida’” (Gonçalves, 2017:125-27,
38). Como Gonçalves aponta, além do apego ao Velho Testamento, ambos os grupos se consideram
perseguidos:
é a que expressou prestígio de Eduardo Cunha pela pauta. Cunha, como vimos, é um dos principais
protagonistas da pauta pró-família, apoiador de pautas punitivistas e contra a Venezuela.
Em junho de 2015 ele, então presidente da Câmara, viajou para o país, em sua primeira
missão oficial externa no exercício do cargo. Para o primeiro-ministro de Israel, Benjamin
Netanyahu, ele afirmou: “Estou há pouco tempo no comando da Câmara, e esta é a nossa primeira
visita oficial. É justamente o simbolismo de estarmos aqui em Israel” (Shalders, 2015). Cunha,
acompanhado de outros 11 deputados, “recebeu honras de chefe de Estado por Netanyahu e pelo
presidente do Knesset” (Ac, 2015a).
Outro exemplo de visitas foram as feitas pelo deputado Arolde de Oliveira (PSC/RJ). Uma
delas, à Fierj - Federação Israelita. A entidade, em sua página na rede social Facebook, descreveu
o parlamentar como “membro da Frente Parlamentar Brasil-Israel e um ativo defensor do Estado
Judeu no Congresso Nacional” 117 . Esse parlamentar visitou Jeruralém no ano de 2012, para
participar de conferência promovida pela Fundação Internacional dos Aliados de Israel. Dentre as
pautas debatidas no evento, segundo ele, estavam a “escalada armamentista nuclear iraniana”, a
“consolidação de Jerusalém como Capital não dividida do Estado de Israel” e a “parceria cristã-
judaica”, considerada estratégica por Israel por conta da “origem de fé comum no Velho
Testamento, que é a Torá dos judeus” (discurso em Plenário em 09/10/2012).
117
No endereço
https://www.facebook.com/fierj.federacaoisraelita/videos/1202111566584419/?hc_ref=PAGES_TIMELINE,
acessado em 25/07/2017.
162
O povo brasileiro, em sua maioria de origem cristã, tem aliança com essa terra e povo que
será infinita, pois o Livro Sagrado cristão — a Bíblia —, nos transporta pelo menos em
pensamentos até Israel e todos aqueles lugares por onde Jesus passou. (Deputado Pastor
Eurico – PSB/PE, discurso em Plenário em 21/05/2014).
Sr. Tenente-Coronel Yossi Shelly, sou o Capitão Jair Bolsonaro. A minha continência ao
Estado de Israel.
Prezado Alan Rick, recursos minerais, água potável, terras agricultáveis, biodiversidade,
precipitação pluviométrica, extensão territorial - veja o que Israel não tem, e o que eles
são. Veja agora, no Brasil, o que nós temos e o que não somos.
A força de um povo que tem história, que tem cultura, que tem fé, que é uno, que planeja,
que ama a liberdade e que respeita a democracia, de um povo que é marco na resistência
de nossa civilização.
O que acontece comigo, como cristão, entendo ser uma missão de Deus. Eu sonho
alimentar, com Israel, muitíssimas parcerias.
O povo de Israel vive!
Shalom! (Deputado Jair Bolsonaro – PSC/RJ, discurso em Plenário em 10/05/2017).
E como não admirar a incrível capacidade de resistência desse povo [judeu], que mesmo
nas época de opressão e exílio conseguiu manter sua continuidade, sua identidade cultural,
sua fidelidade às origens? Talvez essa capacidade de explique pelo vínculo com Israel
prometido, a terra da qual deveria jorrar leite e mel, situada na confluência de oriente e
ocidente, de norte e sul, no lugar onde nasceram as grandes religiões e onde como, por
ironia, desde os primeiros registros históricos, vêm se alternando períodos de guerra e paz.
(Deputado Marcos Rogério – PDT/RO, discurso em Plenário durante Sessão Solene em
Homenagem à Data Nacional da Criação do Estado De Israel, em 20/05/2015)
Mais uma vez, ocupo a tribuna da Câmara dos Deputados para fazer um alerta. Esse alerta
já foi feito outrora, no anterior Governo, da ex-Presidente Dilma Rousseff, inclusive desta
tribuna, num dia em que comemoramos a autonomia e a volta do Estado de Israel.
(...)Ontem, a convite do Embaixador de Israel no Brasil, Sr. Yossi Shelley, nós da Frente
Parlamentar Evangélica, da Frente Parlamentar Católica e da Frente Parlamentar em
Defesa da Vida, e vários outros Parlamentares e Senadores, atendemos ao convite do
Embaixador, que manifestou, mais uma vez, sua preocupação - e aqui fica o alerta outra
vez -, haja vista que, pela segunda vez, o Brasil, neste Governo do Presidente Michel
Temer, através do seu Ministério das Relações Exteriores - outrora com o Ministro José
Serra e agora com o novo Ministro -, vira as costas para Israel e brinda o seu apoio aos
seus adversários. Nós já conhecemos onde essa história vai parar!
Eu quero aqui, em meu nome, e creio que também em nome da ampla maioria daqueles
que compomos a bancada evangélica na Câmara dos Deputados, externar a nossa
insatisfação. Honestamente, esperávamos outro tipo de comportamento do Ministério de
Relações Exteriores deste novo Governo, apesar de ser um Governo no qual também não
votamos, porque fazia parte da mesma chapa. Nós esperávamos, no mínimo, se nós, como
País, queremos viver um novo tempo, mudar o nosso eixo e buscar uma relação estreita
com o Estado de Israel.
Israel é um Estado que valoriza a democracia, é um Estado exemplo de democracia para
o mundo. É um Estado com avanços tecnológicos na agricultura e nas ciências.
Se hoje muitos de nós, nos grandes centros urbanos, usamos o Waze, ele foi desenvolvido
lá, e tantas outras coisas que trouxeram grandes contribuições à humanidade. (Deputado
Sótenes Cavalcante – DEM/RJ, discurso em Plenário em 04/05/2017).
A insatisfação expressa pelo deputado se refere ao Brasil ter votado a favor de resolução
“que indica que Israel não tem direitos legais ou históricos sobre Jerusalém”, segundo o portal
evangélico Guiame (2017). Sóstenes indigna-se também com o fato de o governo de Michel Temer
ter, diferente do esperado, seguido os mesmos passos de sua antecessora sobre o assunto.
Entre outros parlamentares, o Professor Victório Galli solicitou revisão desse
posicionamento do Brasil. Fê-lo por ocasião do transcurso do 69º aniversário de criação do Estado
de Israel. Justificou sua posição com base em Oswaldo Aranha e na Bíblia. Em sua visão, as Nações
Unidas defendem uma política “esquerdista”:
Osvaldo Aranha teve participação importante na criação do atual Estado de Israel, pois
presidiu a Assembleia Geral que rejeitou a proposta de estabelecimento de uma Palestina
árabe. Conhecedor da história, sabia que a Terra Santa pertencia ao povo judeu.
Quase 7 décadas depois, o mundo mudou muito. As Nações Unidas, hoje, defendem uma
agenda globalista, fortemente influenciada por uma agenda de viés esquerdista que impõe
suas ideias, em especial sobre os países que possuem cultura judaico-cristã. Isso é algo
que deveria nos gerar preocupação, colegas Deputados.
Na última reunião da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a
Cultura - UNESCO, realizada em Paris, no dia 2 de maio, nosso País votou novamente a
favor de resoluções que ferem de morte a história e a soberania de Israel. O Governo
brasileiro desconsiderou as provas históricas e arqueológicas a favor de Israel, sem falar
nos relatos bíblicos.
Fui eleito pelo Partido Social Cristão e, como a maioria dos brasileiros, sou cristão e creio
na Bíblia. Por isso, defendo esses valores que ajudaram a construir nossa civilização.
(Deputado Professor Victório Galli – PSC/MT, discurso em Plenário em 10/05/2017)
164
Lembro as tradições existentes entre o povo brasileiro e o povo judeu que, desde Oswaldo
Aranha que presidiu a memorável sessão Plenária da ONU que criou o Estado de Israel,
as sessões inaugurais dos trabalhos anuais desse importante órgão mundial são abertas por
Presidentes da República Brasileira. (Deputado Marco Feliciano – PSC/SP, RIC
876/2015).
A referência a Oswaldo Aranha é uma tônica dos discursos dos evangélicos, como
Gonçalves (2017) aponta. As outras ordens de argumento identificadas pelo autor são referências
a Israel como a Terra Prometida e à parceria tecnológica. Vimos esses argumentos nos discursos
acima. João Campos, líder das frentes evangélica e da segurança, se utiliza de todos esses tipos de
argumentos em seus discursos. Vejamos:
Muitos não supunham que, por profundo desejo de liberdade e justiça, assim como por
vontade atávica impressionante, enormes contingentes humanos se mobilizassem de
pronto a caminho de Canaã, a Terra Prometida, assim chamada, segundo a tradição, pela
promessa de Deus aos descendentes dos patriarcas Abraão, Isaque e Jacó. (Deputado João
Campos – PSDB/GO, discurso em Plenário em 15/06/2005).
Precisamos eliminar o mito de um Estado palestino anterior a Israel. O que houve foi uma
resolução da ONU, a partir de sessão presidida pelo brasileiro Osvaldo Queiroz Aranha,
em 14 de maio de 1948, criando o Estado de Israel, portanto, vinculando os judeus àquele
território. (Deputado João Campos – PSDB/GO, discurso em Plenário em 30/06/2009).
165
Neste capítulo não foi estudada a totalidade das manifestações contra e a favor de Israel, de
modo que, com dados próprios, não é possível averiguar um eventual protagonismo da direita cristã
brasileira no tema. Mas a pesquisa Rafael Gonçalves estudou a totalidade dos discursos, entre os
anos de 2003 e 2014, sobre a questão israelense. De acordo com ele, há uma atuação importante
dos evangélicos, ainda que não dominante:
A aliança com Israel ocorre por motivos confessionais, como podemos extrair das falas dos
religiosos – sete deles da Assembleia de Deus – citados. Trata-se da constituição de uma
comunidade internacional de fé a partir da Bíblia, particularmente do Velho Testamento.
A questão Israel/Palestina foi associada ao socialismo do século XXI na América Latina –
Cuba e Venezuela. Na votação, pela Câmara dos Deputados, do recebimento da denúncia por crime
de responsabilidade de Dilma Rousseff, em 17 de abril de 2016, Ronaldo Fonseca (PROS/DF)
orientando seu partido, afirmou que a “Frente Parlamentar Evangélica do Congresso Nacional”
vinha lutando no legislativo “contra uma agenda de esquerda que quer destruir a família brasileira”;
no seu voto pelo impeachment, ele afirmou: “pela nação evangélica e cristã e pela paz de Jerusalém,
eu voto ‘sim’”. Questionado por que optou por destacar a “paz em Jerusalém” como motivo do seu
voto, Ronaldo Fonseca afirmou:
O governo do PT virou as costas para Israel. Eles priorizaram os árabes. A única vez que
um presidente da República foi ao Oriente Médio e não pisou em Israel foi o presidente
Lula. A presidente Dilma rejeitou um embaixador indicado por Israel só porque ele foi
colono na Palestina, na Faixa de Gaza. O governo do PT priorizou os guerrilheiros,
priorizaram Cuba, Venezuela (...)” (Fonseca, 2016b).
166
Vimos que o governo Temer seguiu não reconhecendo a soberania de Israel sobre
Jerusalém. Fê-lo, segundo o deputado Sóstenes Cavalcante em discurso citado acima,
decepcionado a bancada evangélica, que esperava uma mudança de posição dele em relação à
antecessora. De qualquer maneira, existe uma ponte ideológica entre os temas feita por alguns
parlamentares, como Fonseca, que aderem a essa moldura interpretativa neoconservadora.
Aqueles que seriam nossos neoconservadores mais ativos têm, assim como os norte-
americanos, Israel como “amigo” externo preferencial. O Eduardo Cunha ter prestigiado o país em
sua primeira viagem internacional como Presidente da Câmara dos Deputados ilustra essa adesão.
Em relação ao inimigo externo, o que seria o neoconservadorismo brasileiro se opõe a uma
versão contemporânea e localizada do comunismo, o “socialismo do século XXI” na América do
Sul. Aqui os neoconservadores não o fazem, porém, com um viés imperialista; pelo contrário,
tendem a defender posições que fragilizam o Brasil nas relações internacionais.
Temos, até agora, confirmado que um núcleo de deputados que protagoniza uma agenda
pró-família também é militante de uma agenda punitivista, e que eles defendem um equivalente da
pauta externa neoconservadora. Passemos, portanto, à verificação do último tema do que comporia
o quadro político neoconservador: a defesa do neoliberalismo.
167
Até agora vimos que existe um movimento neoconservador na Câmara dos Deputados
brasileira, considerando a atuação de um grupo que pauta articuladamente agendas contra o
feminismo e o movimento LGBT, pelo punitivismo, contra o socialismo do século XXI e a favor
de Israel. Vimos também que o que seria a direita cristã brasileira adere majoritariamente esses
temas. Precisa-se verificar, agora, o posicionamento desses sujeitos sobre o último pilar
neoconservador a analisar: a defesa do neoliberalismo.
O neoliberalismo, como vimos no Capítulo I, apregoa o livre mercado e a intervenção
mínima do Estado na esfera econômica, apenas para garantia da propriedade. Nos países de centro,
implica em privatização e desmantelamento do Estado de bem-estar social; nos países de periferia,
solapa a soberania. Em ambos os casos, redunda em aumento dos níveis de desigualdade (Brown,
2006: 693).
Para avaliar a adesão dos parlamentares a políticas mais neoliberais ou mais no sentido do
Estado de bem-estar social, serão analisadas votações de projetos ideologicamente polarizados em
relação ao tema. A escolha de votações ocorre porque a defesa ou não do neoliberalismo em
discursos é difícil de ser delimitada: os deputados, no Brasil, não dizem textualmente ser a favor
do neoliberalismo, ou ser a favor do Consenso de Washington, ou ser a favor do Estado mínimo
(discutiremos adiante possíveis explicações para isso).
Considerar-se-á, nas votações, a posição da bancada evangélica, dada a centralidade da
direita cristã para o neoconservadorismo norte-americano, e dos deputados selecionados como
protagonistas principais da hipotética ação neoconservadora no Brasil. O apoio dos evangélicos a
políticas neoliberais, a partir da literatura especializada, será discutido no final deste capítulo a
partir de pesquisas anteriores que relacionam religião e adesão a valores de mercado.
168
O recorte temporal das votações estudadas será a 55ª Legislatura, por ser esse o critério
desta tese, e por outras razões expressas pela literatura, que serão abordadas a seguir.
Em 2002 o Brasil sofrera, com a iminência da eleição do PT, um “ataque especulativo”, que
implicou em forte depreciação do real e dos ativos brasileiros. Esse ataque foi lido de duas
maneiras: como uma resposta “racional” dos investidores às posições históricas do PT contra os
interesses do mercado financeiro; ou como uma forma de limitar as opções disponíveis ao novo
governo (Barbosa e Souza, 2010:58, 59). Seja como for, o ataque surtiu efeitos, e Lula, então
candidato, se comprometeu com pressupostos favoráveis ao mercado financeiro, como foi expresso
na Carta ao Povo Brasileiro daquele ano.
Assim, na primeira fase dos governos Lula, de 2003 a 2006, foram mantidos os postulados
neoliberais adotados nos mandatos de Collor e FHC. Isso significa dizer: contenção da despesa
pública, elevação dos juros, manutenção do câmbio flutuante, quase congelamento do salário
mínimo e reforma previdenciária com redução de benefícios. Lula o fez paralelamente a políticas
de redução da pobreza e ativação do mercado interno. Lula, portanto, de um lado, “manteve linhas
de conduta do receituário neoliberal e, de outro, tomou decisões no sentido contrário, isto é,
próprias da plataforma progressista” (Singer, 2012:30, 68, 73, 1100, 2553, 61).
169
A gestão da política fiscal protagonizada pelo governo Temer lançou sinais contraditórios
com relação à continuidade das políticas de austeridade. Para o curto prazo definiu-se o
‘keynesianismo fisiológico’ e para o longo prazo, a ‘austeridade permanente’. (21 et al.,
2016:9)
Esta pesquisa focará sua atenção nos projetos relacionados à redução do Estado e à
“austeridade permanente” mencionada. São eles: redução da participação da Petrobrás no pré-sal,
corte de gastos públicos e reforma trabalhista. A escolha dessas três propostas se dá por duas razões.
A primeira delas é que já foram votadas pelo Plenário da Câmara, pelo procedimento nominal e
não simbólico118, o que permite uma análise da posição individual de cada um dos deputados.
O segundo motivo para a escolha dessas propostas é que elas atendem a postulados
fundamentais da cartilha neoliberal: privatização, favorecimento do investimento estrangeiro,
desregulamentação do mercado de trabalho e a redução do papel do Estado na diminuição das
desigualdades. Esses princípios foram expressos no Consenso de Washington, do fim dos anos
1980.
Isso pode parecer anacrônico, especialmente depois da crise do capitalismo de 2008 – pior
depressão econômica desde a década de 1930. Os princípios do CW passaram a ser profundamente
questionados a partir de então, com o descrédito das prescrições centradas da hipótese da eficiência
de mercado (Wade, 2008). Em 2008, esses princípios deixaram de ser “normativos”, ou vistos
como ideais (Davies, 2016).
118
As Medidas Provisórias 727/2016, que criou o Programa de Parcerias para Investimentos, e a 777/2017, que foi
considerada uma privatização do BNDES, por exemplo, tiveram o mérito aprovado por votação simbólica – sem
identificação de cada voto individual --, de modo que não podemos avaliar a votação no mesmo método que os
outros itens.
171
Tais postulados não são mais defendidos sequer pelo Fundo Monetário Internacional. O
tema chegou a ser objeto de discussão entre a diretora-geral do FMI, Christine Lagarde, e Henrique
Meirelles, Ministro da Fazenda brasileiro, durante o Fórum Econômico Mundial de Davos, em
janeiro de 2017. Lagarde, em resposta à fala de defesa da austeridade Meirelles, enfatizou que o
FMI hoje privilegia a redução da desigualdade e da promoção de políticas que a combatam
(Wentzel, 2017). Segundo estudo da instituição, os cortes nos gastos públicos têm como
consequência justamente o aumento das disparidades sociais, ruins ao próprio capitalismo (Woo et
al., 2013).
Ainda assim, as premissas neoliberais clássicas, apesar de questionadas inclusive por seus
antigos promotores, continuam em vigência em determinados lugares do mundo e vêm sendo
implantadas pelo governo Temer, com suporte congressual. Trataremos agora da produção
normativa brasileira que expressa aqueles princípios.
soberania nacional e realinha o Brasil aos interesses dos Estados Unidos (Fup, 2016). Lindbergh
Farias (2016) criticou o texto aprovado por ferir o “domínio estratégico” do Brasil sobre o petróleo,
assentado na nacionalização das jazidas, no regime de partilha e em grandes operadoras nacionais.
Para ele, além disso, a cadeia de petróleo e gás, comandada pela Petrobrás, que seria a maior cadeia
produtiva do Brasil, não mais se sustentaria com o novo regime aprovado.
O debate sobre o assunto, como vemos, mobilizou um dos temas caros ao neoliberalismo
relacionado aos países de periferia: desnacionalização de recursos naturais e permissão ao
investimento estrangeiro. Como afirma Wendy Brown (2006: 693), nos países do Sul o
neoliberalismo solapa as tentativas de soberania econômica e autodeterminação, e é justamente
essa a crítica ao PL de Serra.
A fala de André Figueiredo (PDT/CE) sintetiza as objeções ao projeto:
Por isso, somos contrários a esse projeto do pré-sal, porque ele, acima de tudo, entrega à
iniciativa privada grandes regiões estratégicas que fazem parte do ativo não apenas da
PETROBRAS, mas de todo o povo brasileiro. Ele entrega a PETROBRAS nas mãos do
capitalismo internacional, de um sistema financeiro que não tem nenhuma consideração
com o povo brasileiro para investir em educação e saúde, que são as destinações dos
recursos do pré-sal. Por isso, nós do PDT vamos obstruir, vamos montar trincheiras,
juntamente com todos os companheiros dos partidos do nosso campo, para evitar a
desintegração da PETROBRAS. (Deputado André Figueiredo – PDT/CE, discurso em
Plenário em 05/10/2016).
Conforme o deputado expressa, o projeto de Serra foi criticado não apenas por conta da
soberania nacional, mas também por ser uma proposta que iria no sentido da privatização dos
recursos naturais e da Petrobrás. A privatização é outra característica do neoliberalismo. Os
neoliberais são, de acordo com Harvey (2005:65-66. 174), particularmente assíduos na busca da
privatização de ativos. Para eles, os serviços prestados pelo Estado e bens públicos devem ser
transferidos à iniciativa privada – a privatização, associada à desregulamentação e à concorrência
eliminaria a burocracia, aumentaria a eficiência, melhoraria a qualidade e reduziria custos e preços.
Isso inclui os recursos naturais – cuja exploração passa a ser calculada no curto prazo, naquele da
vigência de contratos.
Colocando os números em uma tabela de contingência, temos que apenas 10% dos evangélicos que
deveriam votar contra o PL caso não houvesse associação entre as variáveis o fizeram.
119
Para explicação sobre a metodologia empregada, vide Apêndice.
174
Ainda que exceção, não apenas Bolsonaro teve coragem de enfrentar esse “tabu”. Seu
partido, o PSC – importante protagonista das iniciativas pró-família, como vimos no Capítulo I –
foi o único a defender expressamente, na campanha presidencial de 2014, as privatizações. O
candidato a Presidente da República pela sigla, Pastor Everaldo, pregou o Estado mínimo e a
meritocracia; disse que tudo “o que for possível passar para iniciativa privada, nós vamos passar”;
manifestou-se contra o aborto e o casamento entre pessoas do mesmo gênero (Capital, 2014).
Enfim, defendeu todo o repertório neoconservador.
A PEC do teto dos gastos públicos (PEC 241/2016, PEC 55/2016, Emenda Constitucional
95/2016) foi também mencionada por Temer desde seu primeiro discurso sobre medidas
econômicas. A proposta, que instituiu um novo regime fiscal, foi enviada por ele ao Congresso em
junho de 2016, quando ainda era interino. Pela norma, os gastos públicos ficam limitados, nos
próximos 20 anos, ao gasto no ano anterior, corrigido pela inflação. O pagamento de juros fica
excluído da limitação.
A ênfase da PEC é a dívida pública. O novo regime fiscal controlaria o excesso de gastos e
a inflação, e recuperaria a confiança dos investidores. Como aponta Harvey (2005:29), a resposta
neoliberal à dívida pública é corte de despesas em programas de assistência social, flexibilização
de leis trabalhistas e privatização – justamente o conjunto de medidas propostas por Temer
analisadas aqui. A gestão da dívida pública à maneira neoliberal, de acordo com Wolfgang Streeck
(2013:2), vai na direção de um Estado "mais magro", menos intervencionista e, em particular,
menos receptivo às demandas populares de redistribuição – trata-se de uma verdadeira oposição
entre política de dívida pública, por um lado, e desigualdade social e econômica, por outro.
Como líder de seu partido PSC, André Moura defendeu a PEC do Teto de Gastos com base
na confiança dos investidores a partir do controle de gastos e de resultados fiscais consistentes
(discurso em Plenário em 10 de outubro de 2016). A gestão da dívida, para ele, é o ponto essencial:
A aprovação desta PEC evitará uma trajetória explosiva das despesas públicas ante a
receita, impedirá que se gaste mais com juros e impedirá, acima de tudo, que a dívida
pública continue seguindo uma trajetória não sustentável. A aprovação desta PEC é, acima
de tudo, como estamos vendo desde maio de 2016, a volta da confiança de empresários e
175
de consumidores no nosso País, por conta de uma política eficaz, eficiente, que combate
a inflação, que combate a recessão, que combate o desemprego. Essa é a política
econômica do atual Governo. (Deputado André Moura – PSC/SE, discurso em Plenário
em 25/10/2016).
Para Moura, a “meta de austeridade” foi posta em prática pelo Ministro Henrique Meirelles,
sem, entretanto, prejudicar programas sociais:
Sua fala indica um ponto importante: nenhum defensor das medidas de austeridade
concorda que essas tragam redução de direitos, benefícios ou polícias públicas. Pelo contrário;
sempre se argumenta que esses elementos benéficos ao cidadão serão aumentados.
Consideremos, para checagem de uma eventual ação neoconservadora, a votação do mérito
da PEC pela Câmara em primeiro turno, no dia 10 de outubro de 2016. Nessa votação, 89% dos
evangélicos presentes120 votaram a favor da PEC, enquanto 76% do quórum o fez. Colocando os
dados em uma tabela de contingência121, temos que menos da metade dos evangélicos que deveriam
votar contra PEC caso não houvesse associação entre os fatores o fizeram:
120
Uma PEC precisa do apoio de maioria qualificada, de modo que eventualmente as ausências podem ser
consideradas como estratégia para a derrubada da proposta. Não foi o caso da PEC 55/2016. Como sua aprovação era
considerada garantida e não se estimava possibilidade de ausência de quórum suficiente, os opositores foram
efetivamente votar, em vez de usar alguma estratégia de obstrução via falta de presenças. Além disso, muitos
deputados não estão presentes porque no dia da votação estão licenciados, por motivos diversos.
121
Para explicação sobre a metodologia empregada, vide Apêndice.
122
Para explicação sobre a metodologia empregada, vide Apêndice.
176
A PEC 241 não é a PEC da morte. Pelo contrário, é a PEC da ressureição, é a PEC que vai
colocar o País de volta nos trilhos e vai trazer crescimento para a Nação, que está neste
momento com metástase, à beira da morte.
Sr. Presidente, os partidos de oposição mantêm-se uníssonos a criticar a proposta e vêm a
esta tribuna às vezes vociferar em tom quase apocalíptico sobre uma possível perda de
direitos sociais. Não se trata de acabar com garantias; trata-se de proibir que se gaste mais
do que se ganha.
(...)
Mais do que colocar as contas em ordem, o objetivo da PEC, segundo mencionado pelo
próprio Ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, seria o de reconquistar a confiança dos
investidores. A aposta da equipe econômica é que a medida passe credibilidade e seja um
fator importante para a volta dos investimentos no Brasil, favorecendo o seu crescimento.
(...)
Para concluir, Sr. Presidente, quero transmitir uma mensagem de otimismo ao meu povo
e dizer-lhe que mantenho fé inabalável em Deus. Creio que, com a proteção divina e muito
trabalho, conseguiremos tirar o Brasil da situação em que se encontra.
Vamos ter fé na reconstrução do nosso País!
Na condição de Líder do Partido Social Cristão, falo em meu nome e em nome da bancada
do PSC e assevero que a nossa posição é absolutamente favorável à aprovação da Proposta
de Emenda à Constituição nº 241, de 2016, que é, sem sobra de dúvida, o melhor caminho
para o futuro da Nação.
(Deputado Pastor Marco Feliciano – PSC/SP, discurso em Plenário em 25/10/2016)
Seu discurso sintetiza os argumentos favoráveis ao novo regime fiscal. Não se trataria de
redução de direitos; pelo contrário, que a PEC seria benéfica aos setores mais pobres da população.
A PEC permitiria, sim, como afirma Feliciano, equilíbrio das contas e confiança dos investidores.
Feliciano acrescenta a isso o argumento de que a proteção divina, ao lado do trabalho, tiraria o
Brasil da crise, em uma aliança típica da teórica neoconservadora. Ele afirma por fim que seu
partido, o PSC “é absolutamente favorável” à PEC 241.
Aqueles que aqui agora se levantam contra esta votação são os que defenderam um
governo de 13 anos que levou sim a 13 milhões de desempregados. A responsabilidade
por aqueles que estão desempregados hoje é de um Governo que não teve responsabilidade
fiscal, que não teve responsabilidade com as contas públicas.
Nós precisamos sim de uma reforma trabalhista para trazer a modernidade para este País,
para o empregado e em especial para aqueles que estão desempregados, que não sabem
como fazer para colocar o feijão com arroz, a mistura, na mesa da sua família.
É por esses 13 milhões de desempregados que o Brasil precisa olhar para o futuro e
avançar em sua legislação trabalhista. Não podemos mais conviver com uma legislação
de 1950. Já é tempo de olharmos para os avanços e para a modernidade, garantindo aos
trabalhadores seus direitos, sem ignorar que o mundo mudou e que nós precisamos nos
atualizar. (Deputado Sóstenes Cavalcante – DEM/RJ, discurso em Plenário em
19/04/2017)
O Partido Social Cristão foi a favor da reforma, também porque ela iria no sentido da
modernização, entendida no sentido da flexibilização:
A legislação não deve estabelecer rigidez nas relações de trabalho. A proteção que o Estado
fornece deve ser flexível, permitindo a livre iniciativa privada e o empreendedorismo. Esses
178
argumentos, que pertencem à lógica neoliberal de maneira geral, não foram invocados apenas no
contexto do PL 6787. Fazem parte de uma noção geral de muitos dos protagonistas
neoconservadores.
Para o Professor Victório Galli, o fundamento da livre iniciativa é sagrado:
Para analisar como foi o protagonismo daqueles que seriam os neoconservadores, tomemos
a votação do mérito da proposta e a participação da bancada evangélica:
123
Para explicação sobre a metodologia empregada, vide Apêndice.
179
Embora a maioria dos evangélicos (63%) tenha votado “sim”, verificamos que a proporção
de evangélicos que apoiou a reforma trabalhista é praticamente a mesma proporção de votantes
“sim” no Plenário como um todo (62,5%). Ou seja, diferente dos outros itens estudados acima, o
fator evangélico não influenciou nem a favor nem contra as votações.
Doze parlamentares integrantes da amostra neoconservadora participaram da votação.
Nesse caso houve maioria, e não unanimidade como nos projetos vistos anteriormente. Nove (75%)
votaram a favor da reforma trabalhista – Andre Moura, Antonio Bulhões, Arolde de Oliveira, Jair
Bolsonaro, Marcos Rogério, Pr. Marco Feliciano, Professor Victório Galli e Sóstenes Cavalcante.
Quatro (25%) – Flavinho, Lincoln Portela, Pastor Eurico e Ronaldo Fonseca votaram contra. Trata-
se de uma proporção de votos “sim” maior do que a do Plenário em geral.
Eduardo Cunha124
Fernando
Sim Sim
Francischini
Flavinho Sim Sim Não
Jair Bolsonaro Sim Sim Sim
João Campos Sim Sim
Lincoln Portela Não
Marcos Rogério Sim Sim
Pastor Eurico Sim Sim Não
Pastor Marco
Sim Sim Sim
Feliciano
Professor Victório
Sim
Galli
Ronaldo Fonseca Sim Sim Não
Sóstenes
Sim Sim
Cavalcante
124
Eduardo Cunha não participou de nenhuma das votações porque já não era deputado à época.
181
ter dificuldade em apoiar medidas que reduzem diretamente os direitos desses grupos. Essa pode
ser uma explicação para o apoio decrescente às medidas estudadas.
Poderia se argumentar que o apoio aos projetos, tanto por parte da seleção de parlamentares
que seriam neoconservadores quanto por parte dos evangélicos, ocorreu por eles constituírem,
supostamente, base de sustentação do governo. Isso possivelmente é verdade em relação à reforma
trabalhista, já que a adesão desses grupos se deu na mesma proporção do Plenário em geral. Mas
seu apoio à alteração no regime do pré-sal e ao teto dos gastos foi desproporcional em relação ao
total de votos e, como mostram as tabelas de contingência, há associação entre as variáveis
“bancada” e “votação”. Portanto, em relação às primeiras propostas, o fator não é o governo.
Os números desta pesquisa mostram que, por parte da seleção de deputados que defendem
com ênfase uma pauta neoconservadora, e por parte dos evangélicos, há um apoio
desproporcionalmente positivo a medidas neoliberais, desde que elas não impliquem direta e
ostensivamente em consequências ao patrimônio jurídico e econômico do eleitorado. Mas, além
disso, há uma certa disjunção entre voto e discurso.
Os indivíduos dos grupos investigados, apesar de votaram massivamente pelo fim da
participação obrigatória da Petrobrás na exploração da reserva do pré-sal, dificilmente defendem a
privatização em seus próprios termos – o que, no Brasil, como explicitou Eduardo Bolsonaro, é
considerado um tabu. Esses indivíduos, a despeito de votaram amplamente a favor da política de
austeridade, afirmam que ela não implica em corte de garantias. Mas, embora avalizem a livre
iniciativa e o empreendedorismo até de maneira religiosa, não apoiaram expressivamente a
flexibilização da CLT.
Essa disjunção provavelmente é efeito de, de um lado, os evangélicos e neoconservadores
defenderem valores neoliberais mas, de outro, terem sua sustentação social vinda de setores
empobrecidos que demandam proteção estatal. Resulta da adoção de um pacote neoliberal em um
país de periferia.
Há um ponto particular que chama atenção na 55ª Legislatura, objeto desta tese. É nesse
período em que, como mostra o Gráfico 02, a quantidade de iniciativas pró-família tradicional
cresce expressivamente, impulsionadas sobretudo por evangélicos; é nesse período também que as
medidas neoliberais são aprovadas, com apoio relevante da bancada evangélica e também daquela
seleção de neoconservadores mais ativos.
Pierucci (1987:42) fez uma relação entre neoliberalismo e moralidade da família
tradicional. O que ele chamava de “cruzadas moralistas” da direita ocorreriam, para o autor, porque
a pauta socioeconômica que defende não conseguiria “legitimar-se de voto popular numa sociedade
periférica”. No mesmo sentido Flávia Biroli (2017) denomina contemporaneamente de “moralismo
compensatório” a “forma de canalizar politicamente frustrações e de desviar a atenção” das
políticas neoliberais em curso – parte de cujas votações vimos neste capítulo.
125
A Teologia da Prosperidade se originou nos Estados Unidos nos anos 1940, e foi reconhecida como movimento
doutrinário em 1970. Seu mentor foi Kenneth Hagin, que se tornou pastor da Assembleia de Deus em 1937. No
Brasil, foi recebida no fim dos anos 1970, e se espalhou por muitas Igrejas e ministérios evangélicos, especialmente
pela Igreja Universal do Reino de Deus. Hoje em dia, porém, a Teologia da Prosperidade é pregada também pelas
igrejas pentecostais. Essa doutrina religiosa promete saúde, prosperidade material e vitória sobre os sofrimentos. Para
obtê-los, deve-se obedecer ao princípio da reciprocidade e ter fé. O fiel não paga a promessa posteriormente, como
na tradição católica, mas doa antecipadamente, colocando-se na postura de credor de Deus. A TP enfatiza, portanto,
o retorno da fé na vida presente, e não na vida após a morte (Mariano, 1996:28-38).
183
A hipótese desses autores é coerente com os dados encontrados nesta pesquisa. Existe uma
ênfase em questões da vida particular que é capaz de, intencionalmente ou não, ofuscar temas de
política econômica que são muito sensíveis em um país periférico no qual a pobreza é tema
relevante.
“Sr. Presidente, Sras. e Srs. Deputados, um fenômeno político vem chamando tanto a
atenção de cientistas sociais, que repercutiu nos órgãos da imprensa. Reportagem destaca
que se começa a perceber a perspectiva política de uma maioria que não levanta bandeiras
nas ruas, mas exprime valores firmes. Essa maioria foi chamada de conservadores.
(...)
Na medida em que aumenta o poder econômico da população, a sociedade se sente mais
independente do Estado. Pesquisas trazidas pela reportagem informam que, à medida que
os brasileiros crescem na escala socioeconômica, atribuem maior peso a si próprio do que
ao Estado pelo sucesso financeiro que vêm alcançando. Nas classes A e B, o índice alcança
95%, e nas classes D e E, 56%. Esses dados jogam luz sobre o valor fundamental dessa
maioria silenciosa e conservadora: a liberdade de empreender.
O novo brasileiro valoriza a garantia de poder levar a própria vida, sem que alguém venha
lhe dizer o que deve ser feito. Com o empreendedorismo e a liberdade, um perfil das novas
classes socioeconômicas vai surgindo, o pragmatismo. Elas dão importância a políticas
públicas que tragam resultado concreto e não àquelas propostas programáticas de como o
Estado deve ser.
Liberdade, empreendedorismo e pragmatismo são a essência do pensamento conservador
da maioria silenciosa, que começa a sentir-se preparada para continuar a ascender na
escala social. Mas, ao mesmo tempo em que essa parcela da população se sente livre, ela
também quer que o Estado atue bem nas áreas que historicamente lhe cabem.
Há muito se sabe que a principal função do Estado é dar segurança para garantir a
liberdade e evitar que o homem se transforme no lobo do homem.
(...) O povo, tal como o delegado, já identificou a causa do problema. Ele está no
arcabouço jurídico que é produzido na Casa do povo, já que a Justiça somente pode agir
de acordo com a legislação. Segundo pesquisa trazida pelo jornal Valor Econômico, 90%
dos brasileiros são favoráveis à redução da maioridade penal de 18 para 16 anos.
(...)
Da mesma forma, como a redução da maioridade penal é matéria de natureza
constitucional, o princípio constitucional implícito de vedação ao retrocesso social
também não se enquadraria, porque esse princípio somente seria cabível em normas de
natureza infraconstitucional. Embora esse princípio não esteja explícito na Carta, por ser
184
uma ideia da doutrina jurídica, ele não pode ser considerado absoluto mesmo para as
normas infraconstitucionais. A crise europeia está aí para provar que muitas garantias
sociais foram abolidas para tentar-se resolver o problema da dívida pública dos países em
crise.
Assim, a Proposta de Emenda à Constituição no 171, de 1993, que dispõe sobre a redução
da maioridade penal para 16 anos, não tem inconstitucionalidade formal capaz de bloquear
o trâmite da matéria no processo legislativo do Congresso Nacional, dependendo apenas
da conhecida vontade política.
Muito obrigado!” (Deputado Antônio Bulhões – PRB/SP, discurso em Plenário em
10/05/2012).
Seu pronunciamento afirma que o sucesso econômico dos cidadãos se dá pelo esforço
próprio e não em decorrência de políticas públicas; que a “maioria conservadora” da sociedade
brasileira tem como valor fundamental a liberdade de empreender; que o Estado deve prestar
basicamente segurança, garantir a liberdade de cada indivíduo, de modo ao homem não se
comportar de maneira hobbesiana. Em síntese, elementos-chave do ideário neoliberal.
Mas não é só isso. O parlamentar faz sua fala defendendo valores capitalistas fundamentais
ao mesmo tempo em que argumenta que a maioridade penal deve ser reduzida, e que eventualmente
é necessário que garantias sociais sejam abolidas para resolver o problema da dívida pública. A
associação não é aleatória. É expressão do chamado “neoliberalismo punitivo” (Davies, 2016).
Como vimos no Capítulo I, a aliança entre neoliberalismo e rigor penal se dá justamente
em decorrência da concepção de Estado e de sociedade que informa ambas as visões: o crime não
é tratado como resultados de problemas estruturais tampouco se adota a concepção de que há
desagregação resultante da ausência de políticas de bem-estar; ao Estado cabe prover segurança e
garantir a liberdade de empreender; as pessoas devem, través de sua livre iniciativa, prover suas
necessidades; aqueles que destoarem das prescrições legais devem ser punidos rigorosamente.
Esse raciocínio é, de maneira geral, confirmado pelos dados desta pesquisa. Os deputados
que defenderam as medidas neoliberais argumentam que elas não retiram direitos e que são
benéficas à população. Eles também defendem medidas de rigor penal, contra os delinquentes e a
favor dos cidadãos de bem.
185
Nos capítulos anteriores verificou-se que existe um grupo de deputados que atua
consistentemente na defesa de pautas que, em conjunto, constituem um ideário neoconservador (a
promoção de valores morais associada à defesa do punitivismo e do neoliberalismo, e também a
relações internacionais centradas no combate ao socialismo do século XXI e na comunidade
Bíblica). Concluiu-se ainda que a bancada evangélica, equivalente da direita cristã no Brasil,
defende em maioria e desproporcionalmente essas agendas, com as peculiaridades expostas.
O neoconservadorismo brasileiro não é, porém, como foi exposto, monopolizado por
evangélicos. Há atuação, ainda que residual, de deputados sem religião identificada, e atuação
relevante de deputados católicos, sejam católicos “tradicionais” ou carismáticos. De qualquer
forma, o cerne da ação de ideário neoconservador reside nos evangélicos.
Dentro do campo evangélico, destacou-se, ao longo dos Capítulos II, III, IV e V, a
contribuição da Assembleia de Deus. Dos militantes da agenda pró-família que exercem mandato
na 55ª Legislatura, 34% é fiel da AD; 38% das iniciativas pró-família partiram de membros da AD.
A denominação que concentra mais deputados que atuam na pauta sionista é a AD -- há uma
atuação importante dos evangélicos no tema, ainda que não dominante. Considerando as votações
nominais analisadas, dentre os evangélicos, 30% dos votos sim à redução da maioridade e ao PL
do homicídio de policiais era da AD; 36% dos votos evangélicos ao PL do pré-sal, 35% dos votos
evangélicos à PEC do teto e 38% dos votos evangélicos da reforma trabalhista vieram da AD.
Isso não ocorre porque exista algum diferencial ideológico da AD em relação a outras
denominações. As denominações, aliás, são heterogêneas em seu interior. A participação mais
relevante da AD no universo pulverizado dos evangélicos – pelo menos 18 denominações contam
com fiéis deputados na 55ª Legislatura – ocorre simplesmente porque a AD tem mais deputados.
A contribuição da AD é proporcional ao seu tamanho – 38% da bancada evangélica eleita em 2015.
Desde a Assembleia Nacional Constituinte a Assembleia de Deus é a igreja evangélica com
maior representação no Congresso Nacional brasileiro (Campos, 2010:65. DIAP, 2014, Fonseca,
2008, 4160, Dantas, 2011:46-7). Maria das Dores Machado (2006:164; 2012b:36) identifica que
esse seria o “segmento parlamentar com maior capacidade de mobilizar e aglutinar os evangélicos”
186
na Câmara dos Deputados. Apesar de nunca ter tido um senador como a IURD teve, a Assembleia
de Deus chegou, entre 2015 e 2016, a ter um fiel na presidência da Câmara dos Deputados. Eduardo
Cunha (PMDB/RJ) é membro da Assembleia de Deus – Ministério de Madureira (Chagas, 2015).
A Assembleia de Deus é a maior não só no legislativo. Ela é a maior e a mais antiga
denominação pentecostal presente no Brasil, desde o início do século XX. Tem grande impacto no
cenário político nacional devido a seu peso (49% dos evangélicos, segundo o Censo de 2010). Para
se ter uma ideia, nas eleições de 2010, para cada voto conferido a candidato a deputado federal
ligado à IURD, 2,7 votos foram conferidos a outro ligado às Assembleias de Deus (Almeida,
2014:87). Por isso a AD será tratada em um capítulo à parte.
Os evangélicos em geral e a AD em particular, como vimos, são os atores centrais de uma
ação neoconservadora. Mas por que? Como isso se origina? Esta tese não procura responder a essas
perguntas de maneira definitiva, mas procura explorar caminhos. Neste capítulo se discutirá a
hipótese de que a AD foi um vetor de comunicação importante das ideias neoconservadoras dos
EUA para o Brasil.
Assim, busca-se explorar possíveis canais Brasil-Estados Unidos via Assembleia de Deus.
Para tanto, em primeiro lugar se tratará do histórico da presença da Assembleia de Deus no Brasil,
através de literatura acadêmica e de publicações da própria Casa Publicadora das Assembleias de
Deus. Depois será abordado o histórico da relação entre pentecostais e política no Brasil, também
através da revisão da bibliografia especializada. Por fim serão sintetizados os possíveis vasos
comunicantes entre a AD no Brasil e os Estados Unidos.
A Assembleia de Deus chegou ao Brasil em 1910 trazida por um casal de suecos que
recebeu, nos Estados Unidos, a profecia segundo a qual deveriam fazer trabalhos em nome de Jesus
em um lugar chamado Pará (Correa, 2013:265). Os missionários Gunnar Vingren e Daniel Berg
vieram, a princípio, para pregar o pentecostalismo, mas não para fundar uma nova Igreja. A notícia
das pregações desses missionários se espalhou, e ganharam alguns adeptos (Araujo, 2014:14-17).
Por conta de uma divergência a respeito do ensino pentecostal – as igrejas já estabelecidas
em Belém eram contrárias –, alguns dissidentes e os missionários estrangeiros fundaram a Missão
da Fé Apostólica, primeiro nome dado ao movimento pentecostal nos EUA. Em 1914 chegaram a
187
Belém os suecos Otto e Adina Nelson, procedentes dos Estados Unidos, para se juntarem a Vingren
e Berg. A partir dessa época adotou-se também no Brasil o nome Assembleia de Deus, já usado
desde 1914 naquele país (Araujo, 2014:14-17; Correa, 2013:33, 83).
Por muitos anos a Assembleia de Deus dos Estados Unidos decidira encaminhar os
candidatos a missões no Brasil à Missão Livre Sueca; porém, considerando a grande extensão do
território brasileiro, e considerando os muitos interessados, a AD-EUA passou a enviar diretamente
para cá seus próprios missionários em 1936 (Araujo, 2014:318-319). Dessa forma, os princípios
teológicos do pentecostalismo brasileiro têm influência direta de missionários suecos, noruegueses
e finlandeses e também de norte-americanos. Não há diferenças teológicas substanciais entre o
pentecostalismo estadunidense e o escandinavo; tratam-se de diferenças “mais de estilo do que de
conteúdo”126 (Correa, 2013:44-46).
Nos primeiros 15 anos a Assembleia de Deus limitou-se praticamente ao Norte e ao
Nordeste do Brasil. Depois disso, passou a expandir-se. Cresceu na fronteira da migração do campo
para a cidade e na possibilidade de cada membro ser um evangelizador. Ampliou capilaridade para
até o Sul. Em alguns lugares, pelo menos até a década de 1990, o protestantismo se reduzia a essa
igreja (Freston, 1993:34, 35 e 71)
126
Os missionários escandinavos eram mais práticos no ensino da bíblia, enquanto os norte-americanos eram mais
sistemáticos e voltados para a exegese. Na Suécia a formação durava apenas três meses; os norte-americanos
preferiam institutos bíblicos, com tempo de educação mais demorado. A partir dos anos 1950, “os brasileiros
adotaram os costumes dos missionários americanos, o que ocasionou uma maior sistematização e burocratização na
rotina da igreja” (Correa, 2013, p. 33, 44-46).
188
Numa linha inteiramente diferente, mesmo oposta, o grupo pentecostal dos brancos
estadunidenses deu particular ênfase ao batismo no Espírito Santo, na glossalia, e aos dons
de cura e de falar línguas estranhas. Não se cantava a libertação dos oprimidos. Antes,
louvava-se o poder do Espírito. A visão que os crentes brancos tinham de Cristo e do
Espírito Santo ia se tornando diferente da dos negros pentecostais. Enquanto a
religiosidade destes últimos reunia num todo indissociável praticas religiosas e práticas
sócio-políticas, aqueles se limitavam a uma experiência voltada para o sagrado.
Experiência em que mergulharam tanto a Assembleia de Deus como o Evangelho
Quadrangular (...). (Rolim, 1985: 70-71).
Note-se que Rolim é, para Freston (1993:18), o “autor da principal obra de macro-
sociologia do pentecostalismo”. E, para Rolim, é a experiência norte-americana mais favorável à
manutenção do status quo é que chega ao Brasil. E assim, a AD no Brasil, de maneira geral,
condenou a participação ativa na transformação social no sentido coletivo desde suas origens
(Alencar, 2010:39), e esteve, como veremos, ao lado dos setores políticos mais conservadores
também.
É importante sublinhar o papel da Assembleia de Deus na direita contemporânea dos
Estados Unidos. A direita cristã expressou-se, mais recentemente naquele país, com o surgimento
do Tea Party. O partido tornou-se conhecido com Sarah Palin, candidata a vice-presidente. Palin é
membro da Assembleia de Deus, e defende que a sociedade americana deveria ser governada com
base nos princípios bíblicos (Bandeira, 2013:232).
127
“Os brancos ordenados na Igreja de Deus em Cristo (predominantemente negra) saíram para fundar a Assembleia
de Deus (quase exclusivamente branca) em 1914” (Anderson 1979:189, apud Freston, 1993, p. 67). "Nos Estados
Unidos, as Assembleias de Deus são predominantemente brancas com uma considerável adesão hispânica (15%)"
(Blumhofer, 1993:2)
“Os seguidores de Assembleias de Deus refletiam as atitudes raciais de outros americanos brancos de similar classe
social e formação educacional. (...) Embora reivindicassem reverenciar os pentecostais negros, como Charles Mason,
Thoro Harris e Garfield T. Haywood, a maioria dos pentecostais brancos o faziam à distância. A princípio fortemente
sulista, e frequentemente liderada nacionalmente por homens sulistas, a denominação não conseguiu atrair uma
quantidade expressiva de membros afro-americanos” (Blumhofer, 1993: 246-247).
A exclusão de negros levou, em 1956, a um relatório preparado pelo Presbítero Geral da AD-EUA, intitulado
"Segregação vs. Integração. Os líderes da AD, porém, rejeitaram as ações propostas pelo documento, sob a razão,
conhecida posteriormente, de que eles não podiam nem registrar que reconheciam a integração nem assumir que
eram a favor da segregação. A Assembleia de Deus resistiu o quanto pode às demandas do movimento de direitos
civis, mesmo com o apelo do presidente, Jhon Kennedy. O primeiro avanço visível foi em 1967, quando a AD
publicou uma resolução em que desencoraja práticas discriminatórias. Em 1989 a AD publicou declarando o
preconceito racial como um pecado (Blumhofer, 1993:247-250).
128
Como a Azuza Street Mission (Rolim, 1985:69).
189
Além da origem norte-americana e da sede nos Estados Unidos, outros fatores indicam a
grande influência daquele país sobre a AD no Brasil. “As Assembleias de Deus no Brasil sempre
mantiveram laços fraternais com as Assembleias de Deus norte-americanas” (Daniel, 2004:383).
Muitos missionários norte-americanos vieram ao Brasil ajudar o desenvolvimento da obra
pentecostal, além de outras formas de intercâmbio que ocorreram. Vejamos alguns exemplos.
129
Conferência disponível em https://www.youtube.com/watch?v=hAEFukAIWfE, acessada em 19/03/2017.
191
sua participação em uma escola de líderes nos Estados Unidos, promovida pelo Pr. Morris Cerullo
– um dos principais tele-evangelistas americanos e divulgadores da Teologia da Prosperidade –, a
School of Ministry”. Foi nessa ocasião que Malafaia afirma ter sido convocado, pelo Espírito Santo,
para fazer uma escola semelhante no Brasil (Mauricio Junior, 2014:15-16)
A comunicação continuou. O principal conferencista da 4° edição da ESLAVEC não foi o
Pastor Silas Malafaia, seu líder. Foi, sim, o Reverendo Thomas Dexter Jakes (chamado de T. D.
Jakes), pastor norte-americano, líder da “mega-igreja The Potter’s House (com mais de 30.000
membros segundo seu website oficial, em Dallas)”, produtor de filmes e escritor, cujo ministério
lota estádios por todos os Estados Unidos. Jakes ministrou as quatro últimas conferências da
ESLAVEC. Em 2001, Jakes “foi eleito pela revista Time Magazine o melhor pregador americano,
sendo comparado por esta publicação ao maior fenômeno tele-evangelístico da história americana,
Billy Graham” (Maurício Júnior, 2014:17).
Esse intercâmbio constante com os Estados Unidos ecoa na política. Vejamos.
Julio Córdova Villazón (2014) esquematiza em quatro fases a relação entre protestantes e
política na América Latina. É nessa estrutura conceitual que as reflexões sobre política e
evangelismo serão apresentadas a seguir.
A primeira fase seria aquela de luta por liberdade de consciência, durou desde o final do
século XIX até o início do século XX, quando a agenda evangélica pregava o Estado Laico. Paul
Freston (2008) explica que esses religiosos chegaram à região carregando o princípio anabatista de
separação entre Igreja e Estado. Daniel Levine (2007) enfatiza que, nessa fase, a presença
protestante era limitada às comunidades de imigrantes, como os ingleses anglicanos ou metodistas,
os alemães luteranos, etc. Trata-se do protestantismo tradicional, diferente do pentecostalismo e do
neopentecostalismo que predominam nas fases posteriores.
A segunda fase seria de polarização ideológica, a partir da década de 1960, período durante
o qual a maioria das igrejas evangélicas na América Latina assumiu uma postura legitimadora das
ditaduras militares pelo continente. É a fase da influência do reaganismo. Esse período será
retomado a seguir.
A terceira fase compreenderia a emergência de partidos políticos evangélicos na
redemocratização de vários países, a partir da década de 80 (nesse sentido também Freston, 2008).
193
No Brasil o marcante dessa fase não é tanto o surgimento de partidos, mas sim o ingresso dos
evangélicos com mais peso na política congressual. O tema será abordado adiante.
Finalmente, a quarta fase abrangeria o surgimento de movimentos pró-família e pró-vida
no começo do século XXI, unificados pela rejeição da “agenda gay” e da “ideologia de gênero” –
assim como o movimento que existe na Câmara dos Deputados hoje. A defesa da família tradicional
já fazia parte do repertório evangélico desde antes disso, mas no Brasil essa luta se fortalece no
século XXI, como vimos no Capítulo II.
A esta pesquisa interessam as segunda, terceira e quarta fases. Esta última já foi bastante
tratada. A segunda e a terceira fases do esquema de Villazón serão abordadas agora um pouco mais
detidamente, não só porque ainda não foram tratadas, mas porque revelam a mentalidade norte-
americana influente nos religiosos brasileiros.
130
Não foram os evangélicos os únicos solicitados pelo regime. Maluf, por exemplo, procurou fortalecer os laços
com a umbanda e, Figueiredo, com os espíritas. Foi em 1980 que foi criado o feriado pelo dia da Padroeira do Brasil,
Nossa Senhora Aparecida, santa católica (Freston, 1993, p. 158).
131
Esses cursos foram parte relevante da estratégia de cooptação. Vários constituintes evangélicos de 1987 e outros
líderes proeminentes, como o "Billy Graham brasileiro", Nilson Fanini, e o pastor presbiteriano Guilhermino Cunha,
que foi representante protestante na Comissão Afonso Arinos, fizeram cursos na ESG (Freston, 1993:158). Por outro
lado, o ensino nas escolas e nos seminários religiosos foi também “um dos instrumentos de reprodução de valores e
ideias do regime” (Santos, 2005:162).
195
6.2.2. Redemocratização
132
A eleição de 1986 para a Assembleia Nacional Constituinte é o marco. Foram eleitos 33 ou 34 membros
protestantes; na legislatura anterior havia apenas entre 10 e 14 – os números variam conforme o autor. Os
pentecostais foram a grande novidade. De dois, passaram a ser 18, 14 deles da Assembleia de Deus. A partir de 1987,
a Assembleia de Deus passou a contar com 26 mandatos – contra quatro da Igreja Universal do Reino de Deus e três
da Igreja do Evangelho Quadrangular (Freston, 1993:1-2, 197; Mariano e Pierucci, 1992:93; Pierucci, 1989:105-09).
O Brasil passa a ser o “primeiro exemplo de presença eleitoral e parlamentar significativa por parte de minoria
protestante num país de tradição católica” (Freston, 1993:1).
196
Partido dos Trabalhadores com setores progressistas da Igreja Católica (Chesnut, 1997:160;
Mariano e Pierucci, 1992:92, 96 e 98).
Com o dito nesse item podemos concluir que, pelo menos desde a ditadura militar, a
influência da mentalidade da direita norte-americana em pentecostais brasileiros se repercute na
política, e que e desde a redemocratização a agenda pentecostal no Congresso já se assemelhava à
da direita cristã norte-americana: militância contra a pauta gay, o aborto e o comunismo, expresso
fortemente nas eleições de 1989.
133
Porém a seguinte observação merece registro: “O discurso ufanista da AD brasileira hoje, de que é a maior igreja
pentecostal do mundo, é completamente desconhecido fora do Brasil” (Alencar, 2010:90).
197
A perspectiva da oferta é criticada por tratar a conversão como uma imposição, negando a
agência individual dos fiéis, e por negar a validade das experiências religiosas (Steigenga e Cleary,
2007:15-16). As teorias que, de outro lado, enfatizam o lado da demanda para analisar a expansão
do protestantismo na América Latina apontam, além das questões místicas em si, a ascensão de
valores capitalistas, as patologias da pobreza decorrentes das mudanças drásticas experimentadas
com as migrações para as grandes cidades e a violência como fatores que causam insegurança, que
serão, então, compensadas pela fé, estimulando conversões (Chesnut, 2003; Levine, 2007).
A perspectiva da demanda, portanto, enfatiza fatores internos aos países da América do Sul
para o crescimento pentecostal (e não fatores geopolíticos externos). Coerente com essa leitura,
Freston (1993:9, 28, 219) considera equivocada a interpretação de que o crescimento pentecostal
seria uma “conspiração norte-americana”. Para ele, são várias as evidências de que não há essa
causalidade: “a AD tem poucos vínculos com os Estados Unidos, a IURD é totalmente brasileira e
o presidente norte-americano da IEQ foi contrário ao envolvimento político”. Stewart-Gambino e
Wilson (1997:229-30), por sua vez, reiteram que o pentecostalismo na América Latina assumiu
dinâmica própria, até mesmo enviando missionários aos Estados Unidos e a outros países.
De fato, são várias e complexas as razões da expansão pentecostal e o pentecostalismo em
países como Brasil tem dinâmica própria. O óptica da demanda e dos fatores internos, de um lado,
e a óptica da oferta e dos fatores externos, de outro, não são excludentes. As experiências religiosas,
místicas e transcendentais têm valor em si e são relevantes. Fatores sociológicos como a esperança
oferecida para pessoas em situação de pobreza também. Isso, todavia, não elimina eventuais
direções geopolíticas.
Nessa miríade de fatores, houve ação dirigida para expansão de igrejas pentecostais para a
América Latina e para o Brasil, como visto no Capítulo I. Além disso houve, e ainda há, vasos
comunicantes entre igrejas presentes no Brasil, em especial a Assembleia de Deus, e os Estados
Unidos: o fato de o centro de autoridade da AD sempre ter partido dos EUA; o estabelecimento,
por parte da sede nos EUA, de diretrizes de expansão no Brasil; e, sobretudo, permanente
intercâmbio de pastores, tanto na consolidação e expansão da AD no Brasil, quanto
contemporaneamente, com impactos na política. É o que vimos acima.
Na visão de Pierucci (1989:107), que escreveu há trinta anos, os evangélicos na política
brasileira constituíam naquele momento, tal como nos Estados Unidos, um setor da “nova direita”.
Porém para ele não havia – como ainda não há – evidência de uma ação orquestrada entre a New
198
Christian Right e a direita cristã brasileira; mas, como ele pontua, “as semelhanças e o parentesco
são mais que evidentes” – em 1987 e hoje, na segunda década do século XXI.
A comunicação ideológica central, que se identifica hoje com bastante força, mas que
Pierucci já identificava no fim da década de 1980, é os evangélicos como o cerne de uma ação
política em cujo centro manifesto está a ação contra o gênero, e em cuja orbita gravita um
conservadorismo sócio-econômico, incluindo um tipo de anticomunismo, a oposição à intervenção
do Estado na economia e intensificação do direito penal como resposta aos problemas sociais, além
de temas de política externa.
Freston (1993:288) discorda da abordagem. Para ele, que escrevia no início da década de
1990, o fenômeno brasileiro não seria o mesmo do norte-americano, porque “os líderes são chefes
denominacionais e não líderes de agências como a Moral Majority que mobilizam a opinião
protestante, elaboram agendas e monitoram a atuação até de congressistas não protestantes”. Se
isso era verdade em 1993 – já então Pierucci tinha outra opinião –, hoje não mais procede. Como
se viu, os evangélicos utilizam-se do argumento de maioria moral para elaborar uma agenda ativa
contra demandas de movimentos feministas e LGBT, dentre outros temas, e mobilizam parte da
opinião pública geral e também outros congressistas.
O movimento neoconservador não se reduz aos evangélicos, mas tem, nos Estados Unidos
e no Brasil, a direita cristã como parte essencial. No Brasil, a maior parte dos ativistas de feição
neoconservadora pertence à Assembleia de Deus, igreja norte-americana instalada no Brasil desde
o início do Século XX, com viés conservador desde sua origem. Não parece existir uma ação
orquestrada de transposição de um movimento neoconservador dos Estados Unidos para o Brasil;
o que existem, sim, são vasos comunicantes permanentes entre os países, inclusive via Assembleia
de Deus, que possivelmente servem de correia de transmissão político-ideológica. Os religiosos
assembleianos aqui são formados com uma mentalidade norte-americana, o que se espraia para sua
militância política quando alcançam o parlamento.
199
CONCLUSÃO
O objetivo desta tese foi analisar a articulação em torno de diferentes temas da agenda
legislativa contemporânea: por valores morais-sexuais, punitivista, em combate ao bolivarianismo
e em defesa do Estado de Israel. Há uma militância concertada em torno desses itens, informada
por uma ideologia neoconservadora de origem estadunidense.
O que o diferencia o neoconservadorismo de outras ideologias conservadoras e de direita é
a centralidade que atribui às questões sexuais, reprodutivas e sobre a família. Assim como o
movimento neoconservador norte-americano, o neoconservadorismo brasileiro se fortalece como
uma reação contra o feminismo e a agenda LGBT. No nosso caso, a reação é ao reconhecimento,
por instituições do Estado, de demandas desses movimentos, expresso em ações concentradas no
segundo mandato de Lula, no início do primeiro ano do mandato de Dilma Rousseff e no
julgamento da constitucionalidade do casamento homoafetivo em 2011.
Nos Estados Unidos o marco progressista que instigou a coalizão neoconservadora foi a
Emenda de Direitos Iguais (Diamond, 1995; Snyder, 2007). Aqui, houve os pronunciamentos do
Ministro da Saúde de Lula pela descriminalização do aborto, o 3º Plano Nacional de Direitos
Humanos, a mencionada constitucionalidade do casamento homoafetivo e o kit contra a homofobia
nas escolas. O neoconservadorismo se opõe a programas governamentais feministas ou pró-LGBT,
como foi o caso com a portaria da cirurgia de transsexualização pelo SUS ou à portaria que
regulamentou repasses para realização de aborto legal.
O neoconservadorismo rejeita interferência do Estado nos valores morais familiares e
religiosos: os neoconservadores brasileiros se opuseram à proibição de castigos corporais às
crianças. Tomaram, ainda, medidas na seara da educação, como lutando contra a referência à
identidade de gênero ou à diversidade de orientação sexual no Plano Nacional de Educação.
Coerente com o princípio neoconservador de proibição de materiais educativos que tratem de
diversidade de gênero e sexual, opuseram-se ao Programa Escola Sem Homofobia – e impulsionam
o que surgiu em reação a ele, o Escola Sem Partido, que restringe a ação dos professores e privilegia
os valores morais familiares e religiosos na educação.
Um dos pilares da contraofensiva neoconservadora nos EUA foi a proposta de Ato de
Proteção da Família, ou Laxalt Bill (Diamond, 1995; Petchesky, 1981). No Brasil há um verdadeiro
200
paralelo dessa proposta, o Estatuto da Família, aprovado em comissão especial em 2016. Ambos
restringem o aborto e restringem direitos das famílias formadas por casais homossexuais. Ambos
tomam a família patriarcal como o principal projeto para uma boa sociedade.
A “ideologia de gênero”, conceito criado nos anos 1990 pelo Vaticano, é usada no contexto
brasileiro para defender a ação pró-família, o que é um diferencial do neoconservadorismo
brasileiro. A um só tempo o rechaço ao que seria a ideologia de gênero enfrenta demandas
feministas por direitos sexuais e reprodutivos e reivindicações das pessoas LGBT, e defende os
papeis tradicionais de homens e mulheres na sociedade. A ideologia de gênero carrega ainda o
binômio defesa da família tradicional/anticomunismo, pois é tida, em essência, como uma
ideologia neo-marxista (O'leary, 1997), elemento que reforça sua conexão com um ideário
neoconservador. A “danosa” ideologia de gênero é combatida principalmente por dois projetos de
lei que podem ser considerados estruturais da ação neoconservadora brasileira: o Estatuto da
Família e o Programa Escola sem Partido, mencionados acima.
A posição neoconservadora é, para Silverstein e Auerbach (1999:3-5, 13), uma tentativa
dos homens heterossexuais de restabelecimento de suas posições de poder perdidas no interior da
família. Isso pode explicar o fato de que os protagonistas da ação neoconservadora no Brasil são
homens. Não se encontrou nenhuma mulher com participação significativa na militância nos temas
que constituem a ideologia neoconservadora.
Os argumentos utilizados na ação pró-família brasileira são, sobretudo, argumentos em
nome da maioria cristã, argumentos religiosos e argumentos jurídicos. O uso desses últimos pode
ser lido como estratégia de debate em um Estado laico, como forma de contrapor os argumentos
de seus opositores com base em suas próprias categorias ou como maneira de agregar elementos
de convencimento a reivindicações que em sua origem são religiosas. Religiosas não só em seus
argumentos manifestos, mas também considerando seus promotores, a maior parte religiosos
cristãos.
A defesa da família informa também o idealismo punitivo defendido por alguns
parlamentares. A maioridade penal deve ser reduzida no Brasil para que haja mais segurança às
famílias brasileiras; a lei de drogas deve ser mais rigorosa, para o bem das famílias brasileiras;
“bandido bom é bandido morto”, em nome da família brasileira; a defesa da própria família informa
o direito de possuir armas de fogo. É o que afirmam parlamentares protagonistas da ação pró-
família tradicional.
201
políticas públicas ou o direito penal; opta-se, nessa cosmovisão, pelo segundo. O neoliberalismo é
punitivo (Davies, 2016), tratando com o rigor criminal os efeitos de políticas de austeridade.
A simbiose entre neoliberalismo e neoconservadorismo é aparentemente paradoxal
(Himmelstein, 1983). Mas se explica. O neoliberalismo demanda formas de solidariedade que não
ameacem a competição e que sejam não-classistas (Harvey, 2005; Noble, 2007). A família não
ameaça a competição. A doutrina individualista do pentecostalismo não ameaça a competição. Pelo
contrário, a estimula. Falas de parlamentares evangélicos enfatizam que a livre iniciativa e o
empreendedorismo são dons de Deus. Além disso, o neoconservadorismo em parte é uma resposta
à erosão da moralidade no capitalismo (Brown, 2006; Drury, 1999); trata-se de um preenchimento
do vazio político com valores morais rígidos, com a vantagem de serem esses valores opostos ao
comunismo/bem-estar e à distribuição de renda. Ou, nas palavras de (Biroli, 2017), engendra um
moralismo compensatório pela perda de qualidade de vida a que políticas neoliberais levam.
Os neoconservadores brasileiros apoiaram em maioria e desproporcionalmente as medidas
neoliberais votadas pelo Plenário da Câmara, significando associação entre as variáveis “bancada”
e “voto” em relação ao regime de exploração do pré-sal e ao Novo Regime Fiscal. Há, porém, duas
peculiaridades no neoconservadorismo neoliberal brasileiro.
A primeira é que a adesão à reforma trabalhista, que afeta direta e imediatamente o
patrimônio jurídico e econômico de parcela expressiva da população, se deu, por parte dos
protagonistas neoconservadores e dos evangélicos, na mesma proporção do Plenário em geral.
Além disso há uma disjunção entre discurso e voto – dificilmente as privatizações são defendidas
em seus próprios termos, e as políticas de austeridade são tratadas em geral como garantidoras de
direitos. Isso se deve, provavelmente, aos neoconservadores no Brasil, de um lado, defenderem
valores pró-mercado, mas, de outro, terem sua sustentação política vinda de setores empobrecidos
que precisam de proteção estatal. Resulta da adoção de um pacote neoliberal em um país de
periferia.
O neoconservadorismo é conservador porque procura preservar a ordem social em um
contexto específico de ameaça. Nos Estados Unidos, essas ameaças eram as provenientes das
políticas de bem-estar social, que reduziam a desigualdade, e também dos movimentos LGBT e
feminista, cujas pautas passam a ser recebidas pelo poder público. No Brasil as coisas não se
passam exatamente dessa maneira.
203
A ação neoconservadora, entendida como aquela que tem seu foco principal nas questões
reprodutivas e sobre a sexualidade, nasce em reação aos avanços feministas e LGBT perante
poderes instituídos, como vimos. Uma ação com essa temática existe no parlamento brasileiro
desde a Assembleia Nacional Constituinte, mas passa a crescer mais significativamente em 2007 e
a partir de 2015 se consolida.
A reação a um Estado minimamente desenvolvimentista existe também, e ganha força
legislativa a partir de 2016, após o impeachment de Dilma Rousseff. Mas não é impulsionada pelo
grupo neoconservador. O grupo neoconservador apenas adere a essa reação, em forma de apoio na
disputa discursiva e em votos. A reação contra o Estado de bem-estar e a reação antifeminista são
as duas principais faces do neoconservadorismo (Petchesky, 1981). Isso se confirma no Brasil, mas
de forma progressiva e não instantânea.
A moldura ideológica neoconservadora se complementa com dois aspectos de política
externa. Um deles, de luta contra o comunismo. O outro, de apoio à causa sionista.
Nos EUA, chega-se em falar em “sionistas cristãos” (Mearsheimer e Walt, 2007), que são
os mais importantes defensores do Estado de Israel naquele país. A parceria se dá principalmente
por razões ideológicas – ambos veem a religião como cimento da sociedade (Drury, 1999) – e
religiosas, dentro da concepção bíblica de que o fim dos tempos ocorreria com a retomada de Israel
pelos judeus (Diamond, 1989).
No Brasil, o grupo político mais organizado no parlamento em defesa da causa sionista são
os evangélicos (Gonçalves, 2017). Os protagonistas mais ativos da ação neoconservadora são
ativos na defesa da Israel. Emblemático foi o fato de Eduardo Cunha, assembleiano, presidente da
Câmara, ter visitado Israel em sua primeira missão oficial; e ainda Bolsonaro, católico, ter sido
batizado pelo Pastor Everaldo nas águas do Rio Jordão por ocasião do 68º aniversário da
independência israelense.
Já a luta contra o comunismo tem peculiaridades no Brasil. Nos Estados Unidos, essa
agenda da política externa reaganista, no contexto da Guerra Fria, tinha dois vetores principais: o
primeiro, de busca de os EUA serem a potência hegemônica no âmbito internacional; o segundo,
de consolidação do capitalismo como o modo de produção vigente no mundo.
Hoje, décadas após a queda do Muro de Berlim, não há mais a URSS a ser combatida. Mas,
no Brasil, a agenda é a de combate ao “socialismo do século XXI”, ou ao bolivarianismo, ou a
Cuba. Todos os protagonistas mais ativos da ação neoconservadora se opuseram a alguma versão
204
desses elementos, seja por razões econômicas, seja por razões ideológicas, seja em nome do
comunismo. Mas, no Brasil, isso não se dá, como nos EUA, com vistas a projeção de poder. O
Brasil, país de periferia, se aproxima mais a uma posição de integração hemisférica do que a uma
estratégia internacional autonomista ao desprestigiar alianças com vizinhos (Guimarães, 2008;
Lima, 2005). Por isso o Brasil tem um conservadorismo subalterno.
Os protagonistas da ação neoconservadora no Brasil são em sua maioria evangélicos – ainda
assim, com participação católica relevante. Dentre os evangélicos, a presença maior é da
Assembleia de Deus. No universo pulverizado de denominações evangélicas – pelo menos 18, na
55ª Legislatura –, a AD é a que tem maior quantidade de membros, e sua participação na ação
neoconservadora é proporcional a seu tamanho.
Nos Estados Unidos as AD são tidas como particularmente conservadoras (Rolim, 1985).
A Assembleia de Deus é a mais antiga denominação pentecostal presente no Brasil, desde o início
do século XX. Trata-se de uma igreja norte-americana, com permanente influência da sede perante
suas filiais no Brasil, e permanente intercâmbio entre religiosos de lá e cá (Araujo, 2014; Correa,
2013; Daniel, 2004; Mauricio Junior, 2014; Stoll, 1990). Existem, portanto, vasos comunicantes
que podem explicar a importação, para o Brasil, de uma ideologia neoconservadora.
Na verdade, desde a ofensiva de Reagan em relação à América Latina no período da Guerra
Fria, tendo para isso as missões evangélicas como comissão de frente, foram financiadas, no Brasil,
a construção de rádios cristãs, uma escola de treinamento técnico de radiodifusões (Diamond,
1989). Além disso, editoras norte-americanas instaladas no Brasil desde a década de 1960
associavam o comunismo e a União Soviética com forças diabólicas confirmadas pelas profecias
bíblicas (Santos, 2005). Essa estratégia evangélica na formação da opinião visava sobretudo a
contrapor a Teologia da Libertação e a formular uma ideologia moral de livre mercado (Grandin,
2006). Tanto que a mentalidade norte-americana influenciou a postura evangélica de apoio à
ditadura militar, vista como um elemento de combate ao comunismo ateu (Chesnut, 1997) e que,
já em relação à atuação pentecostal na Assembleia Constituinte e as eleições de 1989 Pierucci
(1989; 1987) e Chesnut (1997) identificavam características da New Chistian Right e da direita
neoconservadora no Brasil.
A questão é: como um movimento religioso presente no Brasil desde o início do século XX
passa a refletir, na segunda década do século XXI, um ideário surgido nos Estados Unidos na
205
década de 1970? Por que esse ideário que já se manifestava na política durante a ditadura militar e
desde a redemocratização só aparece com força contemporaneamente?
Esta tese não se propõe a responder essa pergunta. A tese se propunha a responder se existe
um movimento neoconservador, quais os argumentos usados e quais seus protagonistas, sobre o
que já se falou acima. Mas a resposta para as questões remanescentes provavelmente reside em
dois fatores. Um deles é o crescimento da bancada evangélica no Congresso a partir de 2003 – o
que, por sua vez, se explica por fatores sociológicos que não serão comentados aqui. O segundo, e
mais relevante, é a dinâmica de reação, tratada amplamente.
Os movimentos LGBT e feminista já existiam, mas quando passam a ter suas reivindicações
recolhidas pelas instituições públicas é acionado o alerta de que a família e os valores morais
religiosos precisam ser defendidos. Trata-se da dinâmica própria de um movimento conservador:
preservar o status quo frente a uma ameaça concreta de mudança. E essa defesa da família e dos
valores religiosos é associada a outras pautas: a da criminalidade, do neoliberalismo, do
bolivarianismo e de Israel, como já explicado.
Antes da formação da coalizão conservadora, nos EUA, a nova direita secular já tinha como
bandeiras essenciais o militarismo anticomunista, o tradicionalismo moral e o libertarismo
econômico. Essa direita passou a alimentar a direita cristã por conta de seu poder eleitoral, de sua
capilaridade e de sua propensão à luta contra o comunismo e contra a intervenção do Estado pelo
bem-estar social, além de seu engajamento por valores religiosos (Diamond, 1995).
Algo parecido ocorre no Brasil. Setores do mercado financeiro passaram a contar com os
evangélicos para a aprovação de suas pautas centrais, devido à sua propensão em adesão à agenda
e também ao poder eleitoral crescente desses religiosos e à consequente força no Congresso. Ilustra
essa aproximação o fato de o Ministro da Fazenda de Temer, considerado o grande patrono das
medidas pró-mercado desse governo, ter participado da comemoração dos 106 anos da Assembleia
de Deus, no Pará, onde foi fundada no Brasil. Ele, na oportunidade, à imprensa local, defendeu as
reformas trabalhista e da previdência (Online, 2017). Meirelles usou uma linguagem religiosa na
ocasião. Pediu “oração pela retomada dos empregos no Brasil em vídeo enviado à Assembleia de
Deus”. Ele chegou a afirmar que se sentiria muito à vontade para conversar com aqueles fieis,
porque, em suas palavras, “temos os mesmos valores, que são valores da lei de Deus e dos homens
visando crescer, visando colaborar com o País” (Terra, 2017).
206
A pauta central dos evangélicos – sua agenda contra o feminismo e as reivindicações LGBT
– não passou, ainda, de comissões, embora tenham influenciado para o recuo dos governos petistas
em medidas de governo que atenderiam esses setores. Uma das propostas criminais
neoconservadoras que os religiosos protagonizaram foi aprovada pelo Plenário: o agravamento da
sanção para o homicídio de policiais, porque defendida prioritariamente pela bancada da segurança.
O apoio ao sionismo e a luta contra o bolivarianismo não tem maiores consequências legislativas;
trata-se de disputa de opinião. Mas a agenda neoliberal foi aprovada, porque promovida por
interesses do mercado financeiro, sustentada pelo governo e com apoio religioso.
Existe, na Câmara dos Deputados brasileira, uma articulação neoconservadora nos moldes
existentes nos Estados Unidos, mas com especificidades. Trata-se de um neoconservadorismo
periférico, subalterno e tardio. Não se trata, aqui, da maior força política. Mas se trata de uma força
política relevante, com capacidade de influência e com poder crescente.
207
REFERÊNCIAS
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de Economia Política e PPS, Plataforma Política Social. 2016. Austeridade e retrocesso -
finanças públicas e política fiscal no Brasil. São Paulo.
AC, Agência Câmara. 2007. "Audiência discute projeto que descriminaliza o aborto."
http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/NAO-INFORMADO/105868-
AUDIENCIA-DISCUTE-PROJETO-QUE-DESCRIMINALIZA-O-ABORTO.html.
—————. 2011a. "Bancadas católica e evangélica articulam convocação de Palocci se MEC
insistir no kit anti-homofobia."
http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/radio/materias/ULTIMAS-
NOTICIAS/397320--BANCADAS-CATOLICA-E-EVANGELICA-ARTICULAM-
CONVOCACAO-DE-PALOCCI-SE-MEC-INSISTIR-NO-KIT-ANTI-HOMOFOBIA-
(150).html.
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218
APÊNDICE
Esta tese se vale, nos Capítulos III e V, de tabelas de contingência para examinar a inter-
relação entre variáveis quantitativas (Silva e Ribeiro, 2015:24-30). Busca-se, com isso, identificar
em que medida as variáveis são associadas e em que medida são independentes.
Para explicar como funciona, um exemplo: a investigação da inter-relação entre a votação
em determinada matéria (votação i) e pertencimento a uma bancada temática (bancada j.
Em primeiro lugar verificam-se as frequências observadas (nij), ou seja, quantas ocorrências
se verifica em cada caso:
No exemplo, tem-se quantos indivíduos da bancada j votaram “sim” e “não”, e quantos não-
membros da bancada j votaram “sim” e “não”.
Pertencimento à bancada j
Total da variável
Votação i Sim Não
linha
“Sim” 65 250 315
“Não” 4 100 104
Total da variável coluna 69 350 419
219
SILVA, Nelson do Valle e RIBEIRO, Carlos Antonio Costa. 2015. "Introdução à Análise de Dados
em Ciências Sociais." Manuscrito.