Hermeneutica Bíblica Feminista - Odja Dissertação

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ESCOLA SUPERIOR DE TEOLOGIA

INSTITUTO ECUMÊNICO DE PÓS - GRADUAÇÃO EM TEOLOGIA

ODJA BARROS SANTOS

UMA HERMENEUTICA BÍBLICA POPULAR E FEMINISTA NA PERSPECTIVA DA


MULHER NORDESTINA: UM RELATO DE EXPERIENCIA

São Leopoldo
2010
ODJA BARROS SANTOS

UMA HERMENEUTICA BÍBLICA POPULAR E FEMINISTA NA PERSPECTIVA DA


MULHER NORDESTINA: UM RELATO DE EXPERIENCIA

DISSERTAÇÃO DE MESTRADO PROFISSIONALIZANTE

Para obtenção do grau de mestre em Teologia


Escola Superior de Teologia
Instituto Ecumênico de Pós Graduação
Área: Bíblia

Orientador: Nelson Kilpp

São Leopoldo
2010
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

S237h Santos, Odja Barros


Uma hermenêutica bíblica popular e feminista na
Perspectiva da mulher nordestina: um relato de experiência /
Odja Barros Santos; orientador Nelson Kilpp. – São
Leopoldo : EST/PPG, 2010.
73 f. : il.

Dissertação (mestrado) – Escola Superior de Teologia.


Programa de Pós-Graduação. Mestrado em Teologia. São
Leopoldo, 2010.

1. Bíblia – Hermenêutica. 2. Bíblia – Leitura. 3. Bíblia –


Crítica, interpretação, etc. 4. Bíblia – N.T. João 8 – Leitura. 5.
Teologia feminista. 6. Educação popular – Brasil. I. Kilpp,
Nelson. II. Título.

Ficha elaborada pela Biblioteca da EST


ODJA BARROS SANTOS

UMA HERMENEUTICA BÍBLICA POPULAR E FEMINISTA NA PERSPECTIVA DA


MULHER NORDESTINA: UM RELATO DE EXPERIENCIA

DISSERTAÇÃO DE MESTRADO PROFISSIONALIZANTE

Dissertação de Mestrado Profissional


Para obtenção do grau de Mestre em Teologia
Escola Superior de Teologia
Instituto Ecumênico de Pós-Graduação
Teologia Bíblica

Data: 19 de novembro 2010

Nelson Kilpp – Orientador - EST

Ma. Marcia Eliane Leindcker da Paixão - EST


Agradecimentos

Muitas pessoas me ajudaram a escrever este trabalho, me apoiando de


diferentes formas. Sou grata a todas elas. Peço licença para mencionar
algumas que sem elas certamente não teria conseguido chegar até aqui.
Agradeço ao meu orientador, professor Nelson Kilpp, que, mesmo da
Alemanha, esteve tão perto na orientação.
À Andréa e à Alana, minhas filhas, que foram parceiras e amigas todo o tempo,
me incentivando e compreendendo minhas presenças ausentes.
À minha mãe, carmelita, e ao meu pai, Espedito, que estiveram alguns
momentos comigo, me incentivando a prosseguir.
A todas as mulheres do Grupo Flor de Manacá, com as quais tenho
oportunidade de conviver e aprender.
À Igreja Batista do Pinheiro, que tem sido a comunidade com quem partilho
sonhos e esperanças, pela compreensão e apoio.
Ao meu esposo, Wellington, companheiro de horas boas e ruins.
SUMÁRIO

RESUMO.................................................................................................................................. 13

ABSTRACT ............................................................................................................................. 14

INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 11

I - LEITURAS BÍBLICAS FEMINISTAS: O DESPERTAR DA CONSCIÊNCIA ............... 11


1.1 Estudo bíblico e processo de libertação .............................................................................. 12
1.2 Diálogo com a pedagogia do oprimido............................................................................... 14
1.2.1 A conscientização como essência da educação libertadora ............................................. 15
1.2.2 O conceito de humanização e suas implicações educativas ............................................ 16
1.2.3 Outro modelo de relação pedagógica .............................................................................. 17
1.2.4 Educar em comunhão ...................................................................................................... 18
1.2.5 A Utopia como condição para uma educação libertadora ............................................... 20
1.3 Diálogo com a leitura popular da Bíblia ............................................................................. 21
1.3.1 Um pouco de história ....................................................................................................... 22
1.3.2 O Método da leitura popular da Bíblia ............................................................................ 25
1.4 Pedagogia do oprimido e leitura popular da Bíblia como prática de educação libertadora 27
1.4.1 Freire e Mesters: a afirmação da vida como ponto de partida ......................................... 27
1.4.1.1 O Pobre como sujeito no processo educativo libertador .............................................. 27
1.4.1.2 Alfabetização e leitura popular da Bíblia ..................................................................... 28
1.4.1.3 Novos espaços e novos sujeitos da leitura .................................................................... 28
1.4.2 A Bíblia lida por mulheres............................................................................................... 29
1.5 Síntese................................................................................................................................. 29

II - HERMENÊUTICA FEMINISTA DE LIBERTAÇÃO ...................................................... 31


2.1 A hermenêutica crítica feminista de libertação .................................................................. 32
2.2 Um novo paradigma hermenêutico..................................................................................... 33
2.2.1 Paradigma doutrinal-revelador: uma leitura colonizadora .............................................. 33
2.2.2 Paradigma científico-positivista: uma leitura cientifica .................................................. 34
2.2.3 Paradigma hermenêutico-cultural: uma leitura pós-moderna.......................................... 35
2.2.4 Paradigma retórico-emancipatório: uma leitura conscientizadora .................................. 36
2.3 Métodos de interpretação feminista .................................................................................... 39
2.3.1 Métodos corretivos de interpretação................................................................................ 39
2.3.2 Métodos históricos-reconstrutivos ................................................................................... 39
2.3.3 Métodos imaginativos de interpretação ........................................................................... 41
2.3.4 Métodos de conscientização ............................................................................................ 41
2.4 Passos da hermenêutica critica feminista de libertação ...................................................... 42
2.4.1 Desconstrução: uma hermenêutica da suspeita ............................................................... 43
2.4.2 Reconstrução: resgate das histórias ................................................................................. 43
2.4.3 Construção – tecendo novos fios ..................................................................................... 44
2.5 A Hermenêutica crítica feminista de libertação a partir dos horizontes da leitura popular
da Bíblia.................................................................................................................................... 44
2.5.1 A Bíblia e a comunidade ................................................................................................. 45
2.5.2 A prática sócio-comunitária como ponto de partida e de chegada da Leitura popular e
feminista da Bíblia .................................................................................................................... 45
2.5.2.1 A comunidade e a experiência de Deus ........................................................................ 46
2.5.2.2 A comunidade e o compromisso com o mundo ........................................................... 46
2.5.2.3 A comunidade e a opção pelos excluídos ..................................................................... 47
2.5.3 Síntese.............................................................................................................................. 47

III - LEITURA BÍBLICA POPULAR E FEMINISTA: UM RELATO DE EXPERIÊNCIA . 49


3.1 A mulher nordestina: em busca de uma vida melhor ......................................................... 49
3.2 Grupo Flor de Manacá: processo de formação do grupo.................................................... 52
3.2.1 Princípios de grupo .......................................................................................................... 53
3.2.2 Quebrando barreiras ........................................................................................................ 55
3.2.3 Temas e textos estudados pelo grupo .............................................................................. 56
3.2.4 A metodologia de estudo do texto bíblico ....................................................................... 58
3.3 Exemplo de um estudo: João 8. 1-12 .................................................................................. 59
3.3.1 Objetivo do estudo ........................................................................................................... 59
3.3.2 Como escolhemos o texto? .............................................................................................. 59
3.3.3 Onde e com quem foi realizado o estudo? ....................................................................... 60
3.3.4 Dinâmica do encontro ...................................................................................................... 60
3.3.5 Os passos do estudo do texto ........................................................................................... 61
3.3.6 Subsídios usados para análise do texto ............................................................................ 63
3.3.6 Aspectos e temas discutidos ............................................................................................ 65
3.3.7 Principais resultados ........................................................................................................ 65
3.3.8 Concluindo....................................................................................................................... 66

CONCLUSÃO .......................................................................................................................... 68

REFERÊNCIAS ....................................................................................................................... 70
RESUMO

O objetivo principal desta dissertação é fazer uma reflexão sobre as implicações


pedagógicas, metodológicas e hermenêuticas da leitura da Bíblia, a partir de uma perspectiva
popular e feminista. Nos dois primeiros capítulos são apresentadas algumas implicações
envolvidas nessa leitura. Nas implicações pedagógicas foram resgatadas algumas das ideias
de educação libertadora e conscientizadora presentes na Pedagogia do Oprimido, de Paulo
Freire. Nas implicações metodológicas foi destacada a leitura popular da Bíblia como
referência de verdadeiro processo de estudo bíblico popular, que parte de uma pedagogia
conscientizadora e libertadora. E nas implicações hermenêuticas foi proposto um diálogo com
a hermenêutica crítica feminista de libertação, desenvolvida por Elisabeth S. Fiorenza, pelo
seu compromisso ético e político com a mulher enquanto sujeito histórico.
No terceiro capitulo são apresentados um relato de experiência do grupo Flor de
Manacá e o estudo realizado pelo grupo com o texto do Evangelho de João 8.1-12, que
buscou visibilizar não só a metodologia da leitura popular e feminista da Bíblia, mas todo o
processo do grupo como sujeito da leitura da Bíblia no contexto da cultura nordestina. Essa
experiência e a pesquisa são reveladoras da importância dos grupos e da comunidade num
processo de uma nova pedagogia para os estudos bíblicos, comprometidos com uma leitura da
Bíblia que seja conscientizadora e libertadora e ao mesmo tempo sensível aos contextos
culturais nos quais estão inseridos.
ABSTRACT

The main goal of this dissertation is to consider the pedagogical, methodological and
hermeneutical implications of the reading of the Bible, in a popular and feminist perspective.
In the first two chapters are presented some implications involved in this reading. Concerning
the pedagogical implications we came back to some ideas on liberating education of Paulo
Freire‟s work Pedagogy of the oppressed. Concerning the methodological implications we
highlighted in the popular reading of the Bible as a reference for true popular Bible study
process, starting from a liberating and empowering pedagogy. Concerning the hermeneutical
implications, it was proposed a dialogue with the critical feminist liberation hermeneutics,
developed by Elisabeth S. Fiorenza, because of her political and ethical commitment with
women while historical subjects.
In the third chapter are presented a report of the Flor de Manacá group experience, and
the reflection conducted by that group on the text of the Gospel of John 8.1-12. It aimed not
only to show the popular methodology and feminist reading of the Bible, but also the whole
process of the group as a subject of the reading of the Bible in the context of Brazilian
Northeastern culture. This experience and research reveal the importance of the groups and of
the community in a process of a new pedagogy for biblical studies, committed to a reading of
the Bible that is liberating and empowering and, at the same time, sensible to the cultural
context in which it is inserted.
INTRODUÇÃO

A escolha do tema deste trabalho se deu primeiro pelo próprio caráter do curso de
mestrado profissionalizante, que tem por objetivo proporcionar aperfeiçoamento na reflexão
da prática teológica em seus campos de atuação profissional e ministerial. Sou pastora batista
e o tema da hermenêutica bíblica popular e feminista na perspectiva da mulher nordestina
reúne as questões às quais tenho me dedicado mais especificamente nos últimos anos: a
experiência como pastora, diretamente responsável pelo ensino bíblico na Igreja Batista do
Pinheiro há dezessete anos, a militância com a leitura popular da Bíblia como assessora do
CEBI e o meu envolvimento com a leitura bíblica feminista, que tem se tornado ênfase em
minha formação e atuação como assessora bíblica popular. Este é o contexto onde situo as
reflexões propostas neste trabalho.
Acredito que a Comunidade é espaço privilegiado para fomentar uma proposta de
leitura da Bíblia numa perspectiva libertadora e conscientizadora. Por isso, proponho neste
trabalho o resgate de princípios pedagógicos, metodológicos e hermenêuticos libertadores
como caminho possível para que se desenvolvam no espaço comunitário grupos de leitura da
Bíblia, a partir de uma perspectiva popular e feminista, que privilegie a mulher como sujeito
interpretativo, favorecendo uma leitura crítica, sensível e política da Bíblia e da sua realidade.
Por isso estabeleci como objetivo geral deste trabalho fazer uma reflexão sobre uma
proposta de hermenêutica popular e feminista a partir da experiência do grupo de mulheres da
igreja batista onde sou pastora, perguntando pelo modo de ler a Bíblia dessas mulheres
nordestinas, suas especificidades e peculiaridade contextuais.
Os dois primeiros capítulos se dedicam às implicações envolvidas no processo dessa
leitura. Nas implicações pedagógicas, resgato algumas das ideias de Paulo Freire como
caminho para um modelo educativo diferente dos modelos usuais em nossas igrejas, nos quais
a pessoa que ensina desempenha papel fundamental dentro de um processo de mera
transmissão de conhecimento. A sociedade e a Igreja em constante mudança conclamam a
novos desafios e exigem uma pedagogia fundada em uma nova consciência, que seja mais
humanizadora e mais includente das questões socioeconômicas, culturais, ecológicas e
espirituais, e os estudos bíblicos devem refletir essa nova pedagogia, capaz de criar uma nova
sociedade. Tal perspectiva deve influenciar todos os processos educativos e formativos,
inclusive os processos de formação bíblica das nossas igrejas.
Nas implicações metodológicas, busquei a inspiração na prática da leitura popular da
Bíblia por identificá-la como verdadeiro processo de educação popular, que parte de uma
pedagogia libertadora e transformadora. Uma leitura bíblica a partir do popular seria o
caminho para fazer de nossas comunidades espaços de crescimento, em que o grupo deve
realizar a tarefa de desvelamento da sua realidade e dos textos bíblicos estudados. E,
finalmente, nas implicações hermenêuticas, buscamos o diálogo com a hermenêutica crítica
feminista de libertação, pelo seu compromisso teológico, ético e político com a mulher
enquanto sujeito histórico e por ter sido uma hermenêutica construída a partir de um modelo
pedagógico-metodológico democrático, que torna a pessoa participante e ativa tanto da
interpretação bíblica como nos processos e lutas para transformar as estruturas e as relações
de poder na sociedade.
Como implicação prática da reflexão, proponho, no terceiro capítulo, um relato de
experiência do grupo Flor de Manacá e o estudo realizado pelo grupo com o texto do
Evangelho de João 8.1-121, buscando visibilizar não só a metodologia e a dinâmica do estudo,
mas todo o processo do grupo como sujeito da leitura da Bíblia no contexto da comunidade. A
experiência com a leitura popular e feminista da Bíblia indica que não é somente para
conhecer mais a Palavra escrita que nos comprometemos com a leitura da Bíblia. O
conhecimento bíblico é uma ferramenta para alcançar o fim almejado ao ler a Bíblia em
grupo, a saber, iluminar a realidade no sentido de buscar justiça e dignidade comunitária. Esta
iluminação nos estimula a continuar no caminho de transformação, não somente em nível de
grupo e igreja, mas também em nível da sociedade da qual somos parte.

1
Todos os textos bíblicos citados neste trabalho estarão de acordo com a tradução de João Ferreira de Almeida,
revista e atualizada no Brasil pela Sociedade Bíblica do Brasil em relação à tradução, forma de abreviatura dos
livros e forma das citações de capítulos e versículos.
10
I - LEITURAS BÍBLICAS FEMINISTAS: O DESPERTAR DA CONSCIÊNCIA

O que compreendemos ser a função conscientizadora dos grupos de mulheres que se


reúnem para ler a Bíblia, a partir de uma hermenêutica popular e feminista?
No livro Pedagogia do Oprimido, de Paulo Freire, é citado o seguinte exemplo: “uma
mulher simples do povo num círculo de cultura2, diante de uma situação representada em
quadro disse: „Gosto de discutir sobre isto porque vivo assim. Enquanto vivo, porém, não
vejo. Agora, sim, observo como vivo‟.3 O exemplo dessa mulher representa muito do que
ouvimos das mulheres quando começam a ler a Bíblia na perspectiva popular e feminista.
“Agora, sim, observo como vivo!” Há um tipo de desalienação da consciência. Os olhos são
abertos para perceber a realidade de forma crítica e consciente.
Neste primeiro capítulo, nos propomos a apresentar a leitura bíblica como processo de
conscientização-libertação, destacando que o rompimento provocado pela leitura feminista
não deve ser apenas de epistemologias, mas também de modelo pedagógico de estudo bíblico.
O método neste caso também se torna conteúdo. Pouco tem sido dito sobre as pedagogias
presentes nos métodos de leitura da Bíblia. É preciso maior esforço teórico para clarificar as
abordagens pedagógicas que fundamentam os estudos bíblicos quando vamos interpretar a
Bíblia com a comunidade. A pedagogia e a ação educativa são responsáveis pela formação
dos indivíduos e comunidades de acordo com os projetos e valores hegemônicos; logo, para
transformar valores e modelos sociais de relações são necessários métodos e pedagogias
libertadoras.
Pedagogia é o conhecimento teórico e prático sobre a atividade educacional.
Pedagogia é reflexão e educação é ação. Por isso, com a ajuda das ideias principais da

2
Circulo de Cultura - Eram espaços em que dialogicamente se ensinava e se aprendia. Em que se conhecia em
lugar de se fazer transferência de conhecimento. Em que se produzia conhecimento no lugar da justaposição ou
da superposição de conhecimentos feitas pelo educador a ou sobre o educando. Em que se construíam novas
hipóteses de leitura do mundo. (Freire, 1994)
3
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1987. p. 13.
11
pedagogia do oprimido e a Pedagogia da Leitura Popular da Bíblia, queremos refletir sobre
uma pedagogia libertadora para grupos de leitura bíblica feminista.

1.1 Estudo bíblico e processo de libertação

Nas sociedades regidas pelo patriarcado, a educação é formatada em geral pelos


interesses das classes dominantes. Os conteúdos ensinados e os métodos autoritários de
ensino visam à preservação das posições de mando. Quanto ao conteúdo do que é ensinado,
pode-se denominá-lo de história oficial. Trata-se de grandes feitos dos grandes homens. A
história real, feita por homens e mulheres, brancos e negros, ricos e pobres, dominadores e
dominados é considerada algo menos importante e não é visibilizada. Tais conteúdos oficiais
de ensino são transmitidos através de métodos autoritários, que impedem discussões e
questionamentos ou análises críticas.
As mulheres, nos seus papéis tradicionais de mães, filhas, irmãs, esposas, recebem
esse modelo de educação que visam formar pessoas “submissas”‟ e conformadas a esse
modelo na escola, na Igreja e até nas academias cientificas. O modelo de educação dominante
delimita espaços. Servindo-se de símbolos e códigos, essa educação afirma o que cada um
pode (ou não pode) fazer, ela separa e institui, informa o “lugar” dos pequenos e dos grandes,
dos meninos e das meninas, dos homens e das mulheres. Tudo isso é inscrito na “ordem das
coisas” colocadas como “naturalmente” estabelecidas. 4
Os conteúdos e as práticas feministas subvertem os modelos tradicionais, sexistas e
patriarcais. Os estudos bíblicos feministas procuram produzir não só um novo paradigma
epistemológico de leitura bíblica e teológica, mas também um novo processo
pedagógico/formativo nas instituições religiosas.
Em uma sociedade cuja dinâmica estrutural conduz à alienação das consciências,
mantendo as relações de poder e dominação e o monopólio da palavra de quem oprime, é
fundamental trabalhar com novos métodos de estudo, superando os modelos de estudo
bíblicos tradicionais, que, em sua maioria, usam processos pedagógicos que perpetuam e
reproduzem as desigualdades.
Ao trabalhar com grupos de leitura bíblica, precisamos de caminhos metodológicos
capazes de ajudar leitoras e leitores a dizerem sua própria palavra; aprender a tomá-la dos que
historicamente a detiveram. Precisamos perguntar não só pelo conteúdo dos estudos bíblicos,
4
LOURO, Guacira Lopes. Gênero, Sexualidade Educação: Uma perspectiva pós-estruturalista. Petrópolis:
Vozes, 1997. p. 61.
12
mas pelas pedagogias presentes nesses estudos. Como interpretar? Com quem interpretar? O
que interpretar? Para que interpretar?
Juan Luis Segundo já fazia essa mesma consideração a respeito de um método
teológico para teologias latino-americanas, destacando a importância da questão do método de
uma teologia libertadora. Para ele,

a proposta de libertação das teologias latino-americanas não está relacionada


precisamente com os conteúdos teológicos, que geralmente são os mesmos
ensinados pela teologia clássica, mas com uma questão de método. Ele
afirma que “tal teologia carece de critérios atuais para julgar nossa realidade
e isto se converte sempre em pretexto para aprovar o que já existe, ou então
para desaprová-lo por não corresponder a Cânones ainda mais velhos. 5

A leitura da Bíblia precisa de caminhos pedagógicos mais libertadores que devolvam


às comunidades o seu “poder interpretativo”. As comunidades de fé são espaços possíveis
para a construção teórica feminista emancipatória, promovendo conscientização e libertação
sem apagar a chama mística da fé da piedade que faz parte da caminhada. Os estudos bíblicos
feministas estão se tornando cada vez mais elitistas e academicistas, distantes das camadas
populares e das bases eclesiásticas. Diante dessa realidade é necessário, segundo Fiorenza:
“Tirar a leitura bíblica do âmbito espiritual individual do/a leitor(a) privado/a solitário/a e
construir um fórum, ou seja, um espaço público no qual a ekklesia, a assembleia radicalmente
democrática pode debater e decidir o significado político das escrituras”6. Os grupos de leitura
bíblica feministas podem ser esse espaço democrático de conscientização.
Os grupos, nas comunidades religiosas, conseguem reunir mulheres de diferentes
experiências e realidades. Mulheres que não têm estudo, mas têm rica experiência, mulheres
engajadas politicamente e mulheres que nunca se envolveram em qualquer movimento,
mulheres emancipadas e mulheres submissas, enfim mulheres com todos os tipos de
diferenças que têm em comum o fato de ser mulher e sofrer algum tipo de opressão. Por meio
dos grupos de leitura popular e feminista da Bíblia nas comunidades, pode-se dar acesso a
essas mulheres que ficam às margens das academias e dos círculos fechados, intelectualizados

5 FELIX, Isabel. Anseio por Dançar Diferente: Leitura Popular da Bíblia na Ótica da Hermenêutica
Crítica Feminista de Libertação. 2010. 281 f. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Ciências da
Religião, Faculdades de Humanidades e Direito, Universidade Metodista de São Paulo - UMESP, São Bernardo
do Campo, 2010. p.34.
6
FIORENZA. Elisabeth Schussler. Caminhos da Sabedoria: Uma Introdução à Interpretação Bíblica
Feminista. São Bernardo do Campo: Nhanduti Editora, 2009. p. 26.
13
às ferramentas de investigação crítica dos discursos e saberes, que moldam a auto-identidade
das mulheres e determinam suas vidas.
A leitura bíblica conscientizadora é uma ferramenta de ajuda para a libertação de
mulheres. Através dela podemos tomar consciência das estruturas de dominação inseridas no
texto bíblico, nas interpretações e transmissões, bem como nas estruturas sociais, políticas,
econômicas e eclesiais nas quais estamos inseridas. Porém a pergunta que fazemos é: Como
fazer isso sem uma atitude meramente intelectual de transmissão de conteúdos? Como
envolver as mulheres de forma consciente no processo democrático de leitura
conscientizadora da Bíblia? Como fazer leitura bíblica que não esteja somente preocupada em
esclarecer textos da Escritura, mas libertar consciências, desenvolvendo compromisso com a
fé e também com a luta por justiça? É pensando nessas perguntas que propomos um encontro
com a pedagogia do oprimido e com a leitura popular da bíblia.

1.2 Diálogo com a pedagogia do oprimido

Escolhemos o livro Pedagogia de Oprimido7como o texto mais representativo do


educador brasileiro Paulo Freire. Dialogar com a Pedagogia do Oprimido significa perguntar
pelas contribuições teóricas dessa pedagogia para os estudos bíblicos feministas como
proposta de conscientização e libertação? Aprender a ler a Bíblia numa perspectiva
libertadora é colocar as mulheres em condição de pensar e julgar, buscando dizer sua fé e sua
realidade com suas próprias palavras. Freire, certa vez, em uma entrevista, afirmou: “nunca
pude entender a leitura e a escrita da Palavra sem a “leitura” do mundo, que me empurrasse à
8
reescrita do mundo, ou à sua transformação.” Podemos afirmar também que não se pode
entender a leitura da Bíblia sem a leitura da vida e da realidade, que impulsione a uma
transformação e a uma reescrita; por isso, o papel dos estudos bíblicos feministas se torna
preponderante na formação da consciência e transformação da realidade das mulheres, numa
cultura de dominação e opressão.
Propomos, nesse diálogo com a Pedagogia do Oprimido, o resgate de algumas das
suas principais contribuições teóricas, para uma educação popular e libertadora que inspire os
estudos bíblicos feministas na sua tarefa de promover uma leitura libertadora da Bíblia.

7
FREIRE. Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1987.
8
FREIRE, Paulo. A Educação na Cidade. São Paulo: Cortez, 1991. p. 63.
14
1.2.1 A conscientização como essência da educação libertadora

Conscientização e alfabetização são duas palavras chaves na pedagogia de Paulo


Freire. A palavra conscientização foi trazida por Paulo freire para o contexto dos grupos de
alfabetização de jovens e adultos com os quais trabalhava na zona rural de Pernambuco. Para
Freire, alfabetização não é apenas aprender a ler e a escrever ou reconhecer vocábulo ou
palavras. É muito mais que isso. Alfabetizar-se é um processo em que “a vida como biologia
passa ser biografia”. É aprender a escrever a sua vida, como autor e como testemunha de sua
história.9

Alfabetizar-se é aprender a ler essa palavra escrita em que sua cultura se diz,
e, dizendo-se criticamente, deixa de ser repetição intemporal do que passou,
para temporalizar-se, para conscientizar sua temporalidade constituinte, que
é anúncio e promessa do que há de vir. O destino criticamente recupera-se
como projeto. Nesse sentido, alfabetizar-se não é aprender a repetir palavras,
mas a dizer a sua palavra, criadora de cultura. A cultura letrada conscientiza
a cultura: a consciência historiadora auto-manifesta à consciência sua
condição essencial de consciência histórica. Ensinar a ler as palavras ditas e
ditadas é uma forma de mistificarem-se as consciências, despersonalizando-
as na repetição – é a técnica da propaganda massificadora. Aprender a dizer
a própria palavra é toda a pedagogia e também toda a antropologia.10

Conscientizar-se seria o processo no qual o individuo “aprende a nomear e a mudar a


si mesmo e a sua situação”. Freire parte da realidade e das necessidades do educando e não de
categorias abstratas, entrelaçando quatro momentos interdependentes: ler o mundo, cultivando
o olhar crítico; compartilhar o mundo lido, o que implica em diálogo, produção e reconstrução
do saber e finalmente a libertação e a conscientização, que é a educação para a “prática da
liberdade”.11 Para Freire, a conscientização se dá na superação da consciência
ingênua/dominada a partir de um processo cuidadoso e respeitoso de investigação temática
que vai conduzir à conscientização da realidade.12
Conscientização é uma ideia fundamental na pedagogia freiriana e de grande
relevância para a leitura bíblica feminista, pois coloca a mulher não só como leitora ou
conhecedora da Bíblia, mas como uma interprete crítica e consciente. O objeto de estudo
deixa de ser somente a Bíblia, e passa a ser também as maneiras como as mulheres entendem

9
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra. 1987. p. 18.
10
FREIRE, 1987, p. 18.
11
FREIRE, Paulo. Educação como Prática da Liberdade. Rio de Janeiro. Paz e Terra, 2002. p. 109-129.
12
FREIRE, Paulo e NOGUEIRA, Adriano. Teoria e Prática em Educação Popular. Petrópolis: Vozes, 2002. p.
33.
15
a Bíblia e como foram afetadas na sua auto-percepção e na sua compreensão do mundo, da
vida e da sua fé. É diferente dos grupos de estudos bíblicos tradicionais, cujo objetivo é
frequentemente a inculcação e a aceitação sem reflexão crítica sobre a experiência e o lugar
social de quem interpreta a Bíblia e também sobre o significado e o impacto deste livro em
suas vidas. Através de um processo de conscientização, a mulher é desafiada a assumir uma
atitude propositiva e transformadora, superando a visão fatalista ou vitimizante da história, da
sua realidade e diante da própria Bíblia. A recusa do fatalismo social, histórico e religioso é
fundamental para o processo de libertação e emancipação humana.

1.2.2 O conceito de humanização e suas implicações educativas

O primeiro capítulo da Pedagogia do Oprimido é dedicado a levantar a questão da


humanização como preocupação inevitável, o que implica no reconhecimento da
desumanização como uma realidade histórica e não um destino determinado, mas como
resultado de uma ordem estabelecida na sociedade injusta que leva a desumanização. Neste
conceito, o ser humano é ser inconcluso consciente de sua inconclusão, em permanente
movimento de busca por ser mais.

Por isso mesmo é que os reconhece como seres que estão sendo, como seres
inacabados, inconclusos, em e com uma realidade que, sendo histórica
também, é igualmente inacabada. Na verdade, diferentemente dos outros
animais, que são apenas inacabados, mas não históricos, os homens se sabem
inacabados. Tem a consciência de sua inconclusão. Aí se encontra as raízes
da educação mesmo, como manifestação exclusivamente humana. Isto é, na
inconclusão dos homens e na consciência que dela têm. Daí que seja a
educação um que/fazer permanente. Permanente na razão da inconclusão dos
homens e do devenir da realidade.13

Esta ideia vai permanecer por toda obra freiriana, sendo retomada em outros de seus
escritos, como Pedagogia da Esperança (1992), Pedagogia da Autonomia (1996) e Pedagogia
da Indignação (1996). Muitas categorias fundamentais vão surgir, tais como: “mudança”,
“consciência”, “liberdade”, “utopia”, “compromisso”, “esperança”, “transformação”,
“diálogo”, “práxis”, “luta”, “amor”, “comunhão”, porém todas estarão ancoradas nessa
primeira ideia de humanização lançada na Pedagogia do Oprimido. A ação educativa está

13
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra. 1987. p. 73.
16
localizada no coração da grande tarefa que é a restauração da humanidade, na qual oprimidos
e opressores são chamados para serem seres humanos melhores, mais humanos.
O primeiro passo para a superação da desumanização implica num reconhecimento
crítico da razão para essa situação. É o momento reflexivo que conduz através de uma ação
transformadora da realidade, a introdução de uma situação diferente que facilita a formação
de seres humanos melhores. A ação ligada à reflexão é a verdadeira prática de libertação dos
oprimidos, pois para Freire não pode haver ação sem a produção do conhecimento. É pela
práxis (ação reflexiva) que a consciência oprimida supera os erros do ativismo, do solipsismo
e o intervencionismo messiânico e colonizador. Não é imposta, transmitida ou depositada a
consciência crítica nos oprimidos, mas é construída através do diálogo e da interação. O ato
de aprender libertação não é ato passivo ou receptivo, mas é um ato total de ação e reflexão,
resultado de um processo de sensibilização em que os seres humanos são libertados em
comunhão. Não se atinge com transmissão de conteúdos em apostilas, discursos ou pressões,
mas por convicções, só então a ação transformadora é sólida e verdadeira. Portanto destaca-se
a natureza da libertação eminentemente pedagógica.
Sob essa perspectiva é que estudos bíblicos feministas assumem seu caráter de
atividade de educação libertadora, onde a meta não é transmitir conhecimentos bíblicos e
teológicos, é mais do que isso: é aprender a crescer em humanidade, aprender a “ser mais” em
contraste com o “ser menos” que a realidade apresenta. Fazer esse confronto é conduzir à
libertação das consciências.

1.2.3 Outro modelo de relação pedagógica

Para uma educação libertadora, Freire propõe uma ruptura com a tradicional relação
pedagógica, em que os educadores detêm o conhecimento e os estudantes são depósitos que
não têm saber e devem se deixar encher. Freire critica uma educação por ele denominada de
bancária ou depositária, que reproduz os mecanismos opressores da sociedade capitalista,
mantendo a divisão entre os que sabem e os que não sabem, entre oprimidos e opressores. Ele
coloca em oposição as duas pedagogias: do colonizador e do oprimido, destacando as
seguintes diferenças:

O educador é o que sabe e os educandos os que não sabem.


O educador é o que diz a sua palavra e os educandos os que escutam
docilmente.
17
O educador é o que opta e escreve sua opção e os educandos os que seguem
a prescrição.
O educador escolhe o conteúdo programático e os educandos jamais são
ouvidos nessa escolha e se acomodam a ela.
O educador é o sujeito do processo e os educandos meros objetos14

Este tipo de relação pedagógica é chamado por Freire de “bancária”, pois reflete,
reproduz e estimula uma sociedade opressora, enquanto anula ou minimiza o poder criativo
das pessoas, incentivando sua passividade e sua criticidade. Esta visão de educação nunca vai
promover transformações sociais. Muito menos serão desenvolvidos sujeitos críticos,
participantes e protagonistas. Na melhor das hipóteses, serão objetos da ação do outro que
tenta impor libertação.
Para Freire, a educação libertadora tem sua razão de ser na superação da relação
professor-aluno da educação bancária, fundamentada no autoritarismo antidemocrático. Uma
nova relação pedagógica deverá estar baseada na reconciliação de seus polos, de modo que
ambos são feitos simultaneamente educadores e educandos. Transformar a relação educativa é
também transformar a relação de poder e autoridade pedagógica. .15 Inverter a relação vertical
do poder e desenvolver a capacidade de estar com as liberdades dos outros e não contra elas.
A relação deixa de ser vertical e passa a ser horizontal e igualitária. A relação do “educar
com” e em comunhão. Freire vai desenvolver amplamente esta ideia desde um modelo de
educação radicalmente democrático.
Esse princípio é fundamental para a compreensão de que modelos de aprendizagem
libertadores precisam superar os paradigmas autoritários de relação pedagógica da corrente
masculina dominante. É preciso o exercício de novos modelos de relação pedagógica que
superem a relação professor-aluno. Para os grupos bíblicos feministas, significa afirmar que
todas são intérpretes competentes da Bíblia. A autoridade interpretativa é partilhada numa
relação de aprendizagem radicalmente democrática.

1.2.4 Educar em comunhão

14
MELLO, Marco (org). Perspectivas da Educação Popular: De Paulo Freire ao Fórum Social Mundial:
Horizontes ainda que seja noite. Em: Teologia da Libertação e Educação Popular: Horizontes Ainda Que Seja
Noite. p. 85.
15
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra. 1987. p. 62.
18
Educar em comunhão é provavelmente umas das intuições menos desenvolvidas da
pedagogia freiriana. Aí reside um dos antagonismos entre educação bancária e educação
libertadora. Enquanto a primeira mantém uma relação professor-aluno antidialógica e
antidemocrática, a segunda supera a dominação de uns sobre os outros, através de uma
relação dialógica na qual ambos tornam-se sujeitos de processo em que crescem juntos sem
sobreposições.
O conhecimento e o crescimento humano que está sendo procurado são construídos
em solidariedade e comunhão com os outros. A ação educativa para a liberdade e o ser mais
acontece em movimento que não pode ser feito de forma isolada ou individualista, mas em
comunhão. Na comunhão de ensino, o ser humano é libertado, humanizado. “Ninguém liberta
ninguém, ninguém se liberta sozinho: Os homens se libertam em comunhão”.16
Contrariamente aos estudos bíblicos tradicionais (educação bancária), que realça a
imagem do estudioso bíblico profissional e a “ignorância bíblica” dos estudantes (sem
conhecimento bíblico), criando uma relação pedagógica vertical dependente e competitiva, os
estudos bíblicos feministas pretendem fazer esforços para construir uma relação coerente com
as intenções educativas libertadoras. Alguns grupos de mulheres têm experimentado o
aprender em comunhão, num grupo seguro de iguais, em que o aprendizado é construído
numa relação não autoritária, num discipulado humilde de iguais.
É recorrente na abordagem de Freire a educação dialógica. O diálogo está relacionado
com a palavra entendida como práxis (ação - palavra) transformadora. O oposto da práxis é o
discurso de libertação (reflexão sem ação) e ativismo (ação sem reflexão). Unir a palavra e a
ação é o que faz com que os seres humanos entrem em comunhão com sua pronuncia numa
perspectiva transformadora. O diálogo é o encontro dos seres humanos para ser mais. “Para
Freire, as condições para o diálogo são o amor ao mundo, a vida e as pessoas, a humildade, a
fé nas pessoas e a esperança.” 17 Sem essas condições não pode haver diálogo efetivamente.
É através do diálogo que se gera pensamento crítico, sem o qual não há educação
libertadora. Paulo freire dizia que nosso papel não é falar com as pessoas sobre a nossa visão
do mundo ou tentar impor a elas, mas conversar com elas sobre a sua visão e a nossa visão.
Ou seja, num projeto dialógico de educação não se pode prescindir do conhecimento critico e
da visão do outro. Se o fizéssemos, estaríamos seguindo o modelo da educação bancária. O
conteúdo da educação libertadora vem do diálogo, não do monólogo. O ponto de partida de
qualquer processo educativo libertador é o próprio diálogo. O conteúdo do diálogo é
16
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra. 1987. p. 52.
17
SOUZA, Ana Inês (org). Paulo Freire: Vida e Obra. São Paulo. Expressão Popular. 2001. p. 136.
19
organizado e está na visão dos alunos que emergem através das pesquisas sobre os temas
geradores. Para investigá-los requer as seguintes etapas:18 a) Abordagem das contradições e
da percepção ou consciência que têm os participantes; b) Codificação de uma situação
existencial concreta em interação com os elementos constitutivos do grupo; c) Decodificação,
através da análise crítica da situação codificada; d) Um estudo sistemático e interdisciplinar
das codificações e dos resultados.
O conteúdo não é pré-definido ou arquivado em qualquer depósito. O mundo, a
mediação no diálogo educacional, dá origem a visões diferentes que envolvem "questões"
importantes, com base nas quais os conteúdos serão trabalhados. E o conteúdo de nenhuma
maneira é transmitido ou imposto. Fazê-lo seria cair na atitude de conquista e colonização da
educação bancária. Pelo contrário, é uma ação educativa libertadora, através do diálogo,
ajudando as consciências conquistadas e colonizadas a tornarem-se conscientes de sua
condição de infra-humanidade. Essa percepção mostra os níveis de autopercepção do mundo.
É a partir dessa consciência e da situação presente que se organiza o conteúdo programático
da ação educativa, devendo ser tomado como um problema desafiador. Investigar o tema
gerador é investigar o pensamento sobre a realidade. Investigar o pensamento do outro não
pode ser possível sem o outro como sujeito de seu próprio pensar.19
Os estudos bíblicos feministas não devem estar limitados à transmissão de
conhecimentos bíblicos, mas devem procurar animar uma postura dialogal e crítica. Busca-se,
assim, construir uma nova proposta que promova autoconsciência de si mesmo, da realidade e
da Bíblia, bem como dos pressupostos e lugares sociais de leitura e de interpretação. Isso vai
gerar novos conhecimentos, substituindo conteúdos e argumentos de dominação. Para isso, o
modelo dialógico e radicalmente democrático dos grupos é fundamental para que haja diálogo
para dentro e para fora. Diálogo com a teologia, com os movimentos sociais e eclesiais,
diálogo com o mundo. E é assim que se garantirá pensamento crítico e libertação de
consciências.

1.2.5 A Utopia como condição para uma educação libertadora

Finalmente, o último tema que destaco da pedagogia freiriana é o da educação como


projeto utópico. A Utopia para Freire é mais que sonho. É um imperativo existencial e
histórico, a crença num projeto humanista, generoso, de inclusão de todos e todas, que requer
18
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra. 1987. p. 95-120.
19
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra. 1987. p. 83.
20
a participação direta dos sujeitos no processo de libertação. “Não há utopia verdadeira fora da
tensão entre denúncia de um presente tornando-se cada vez mais intolerável e o anúncio de
um futuro a ser criado, construído, político, estético e eticamente, por nós, mulheres e
homens”.20 Freire acredita que a mudança do mundo requer a utopia, o sonho, a capacidade de
imaginar um mundo diferente, um mundo menos feio, menos cruel, e a capacidade de
indignação diante das injustiças sociais, da discriminação de mulheres, de negros, de índios,
de toda e qualquer forma de violência que nega aos seres humanos o direito de ser mais. O
sonho de um mundo melhor requer nossa capacidade de irmos à luta para criarmos.
Assim, a educação como ação libertadora é feita de sonhos, de esperança crítica, de
indignação e de luta. Freire sublinha a importância da educação no processo de denúncia da
realidade perversa, bem como o anúncio de uma realidade diferente, gestada na transformação
da realidade denunciada.

Para mim, uma das bonitezas do anúncio profético está em que não anuncia
o que virá necessariamente, mas o que pode vir ou não. O seu não é um
anúncio fatalista ou determinista. Na real profecia, o futuro não é inexorável,
é problemático. Há diferentes possibilidades de futuro. Reinsisto em não ser
possível anúncio sem denúncia e ambos sem o ensaio de certa posição em
face do que está ou vem sendo o ser humano. 21

Lutar por uma nova sociedade, por meio da denúncia e do anúncio profético, é a tarefa
que cabe a nós mulheres e homens que não aceitamos o fim dos sonhos, da utopia, da
esperança e que acreditamos na mudança do mundo e do ser humano como condição para a
humanização. Por tudo isso, precisamos incorporar à nossa práxis educativa de leitura bíblica
feminista a dimensão utópica da fé e da esperança.

1.3 Diálogo com a leitura popular da Bíblia

Na busca por rever nosso jeito de ler e estudar a Bíblia em comunidade a partir de uma
pedagogia popular e libertadora, precisamos de uma metodologia que oriente o processo
educativo. Quando tratamos aqui de metodologia não entendemos apenas como procedimento
ou técnica, mas como princípios que guiam o caminho. Os princípios que caracterizam uma
determinada metodologia se originam de uma determinada visão de mundo, do ser humano,
da educação e do processo de aprendizagem. Portanto, estamos considerando a metodologia
20
SOUZA, Ana Inês (org.). Paulo Freire: Vida e Obra. São Paulo: Expressão Popular, 2001. p. 217.
21
SOUZA, 2001, p. 131.
21
enquanto maneira de conduzir o processo de formação. E, para uma nova pedagogia de
estudos bíblicos, precisamos de uma nova metodologia, coerente com uma proposta de
educação libertadora.
A leitura popular da Bíblia tem por objetivo captar a mensagem da Palavra de Deus
para nossa vida hoje; neste sentido, a metodologia ganha também uma dimensão de
espiritualidade imprescindível para o tipo de conteúdo com o qual trabalhamos: a Bíblia. Por
isso, no diálogo com a leitura popular da Bíblia, estamos em busca não só de um método, mas
de um jeito, uma atitude e uma prática que conduzam a um estudo dentro de uma
espiritualidade libertadora.

1.3.1 Um pouco de história

A Leitura Popular da Bíblia (LPB) desenvolvida no Brasil nasce das experiências das
comunidades do meio popular, onde a Bíblia torna-se instrumento de luta e organização do
povo. A LPB consegue devolver a Bíblia para a mão do povo, criando um espaço democrático
e comunitário de leitura da Bíblia. Surge num momento em que no Brasil e na América Latina
estão eclodindo movimentos populares de resistências aos regimes ditatoriais. É também no
auge da ditadura militar no Brasil, de 1964 a 1970, época de muita repressão, mas também de
muita resistência.
A leitura popular repercute no Brasil um movimento bíblico latino-americano de uma
leitura que rompe com os critérios e os métodos da exegese científica europeia e propõe uma
hermenêutica bíblica latino-americana, identificada com os pobres numa perspectiva de
libertação.
A leitura popular da Bíblia surge de encontros populares e das celebrações nas
comunidades eclesiais de base (CEBs) que buscavam uma correlação entre a leitura da Bíblia
e a vida do povo sofrido. As comunidades eclesiais de base que começam a surgir na metade
dos anos 60 no Nordeste do Brasil, tanto na zona rural como na zona urbana, é lócus
hermenêutico de onde surge essa forma de leitura popular da Bíblia. As CEBS são espaços
democráticos em que se pode fazer leitura da Bíblia fora do controle ideológico. As igrejas,
neste momento de perseguição, tornaram-se espaço de articulação da oposição, onde se podia
ainda trabalhar com certa liberdade. 22

22
FELIX, 2010, p. 17.
22
Surgem os círculos bíblicos para atender a necessidade de um trabalho bíblico mais
capilar. O método usado nos círculos bíblicos, segundo Carlos Mesters, era reflexo de três
influências: do método Ver-Julgar-Agir utilizado pela Ação católica, da Pedagogia de Paulo
Freire e do método sugerido pelo Evangelho de Lucas na descrição da caminhada dos
discípulos de Emaús, onde o próprio Jesus aparece interpretando a Escritura para os seus
amigos (Lucas 24.13-35). A metodologia inspirada no Evangelho de Lucas será abordada com
mais detalhes ainda neste trabalho.
Fruto dessa experiência das CEBs e de um contexto bastante específico, tanto religioso
como político no Brasil e na América Latina, é que a leitura popular da Bíblia foi garantindo
espaço para que mulheres e homens, jovens e crianças das classes populares pudessem
interpretar livremente a Bíblia a partir da sua realidade de luta e opressão.
Como se fazia leitura popular da Bíblia nas comunidades eclesiais de base na América
Latina? Carlos Mesters e Francisco Orofino escreveram um artigo com esse título e
apresentaram dez características dessa leitura, oferecendo uma visão global que caracteriza a
Leitura Popular da Bíblia na América Latina neste período.23
1. A fé como raiz ou tronco do trabalho bíblico na América Latina - A Bíblia é
reconhecida e acolhida pelo povo como Palavra de Deus, e a fé já existia antes da chegada da
leitura popular da Bíblia. Foi a partir dessa raiz que é a fé do povo que foi enxertado o
trabalho em torno da Bíblia. “É o que caracteriza a leitura que fazemos da Bíblia na América
Latina. Sem esta fé, todo o processo e todo o método teriam de ser diferentes.”24
2. A Bíblia aparece como espelho - Ao ler a Bíblia, o povo das Comunidades traz
consigo a sua própria história e tem nos olhos os problemas que vêm da realidade dura de suas
vidas. A Bíblia aparece como um “espelho-símbolo” daquilo que se vive hoje. Estabelece-se,
assim, uma ligação profunda entre Bíblia e vida.
3. Deus presente na nossa vida e na luta do povo - O novo jeito de ler a Bíblia ajuda o
povo a fazer a grande e maior descoberta: "se Deus esteve com aquele povo no passado, então
Ele está também conosco nesta luta que fazemos para nos libertar”25. Assim vai nascendo
imperceptivelmente uma nova experiência de Deus e da vida, que se torna o critério mais
determinante da leitura popular.

23
MESTERS, Carlos E OROFINO, Francisco. Sobre a Leitura Popular da Bíblia. Disponível em:
<www.cebi.org.br/noticias.php?secãoId=12&noticiaId=132>. Acesso em 08 jul. 2010.
24
MESTERS E OROFINO. Disponível em: <www.cebi.org.br/noticias.php?secãoId=12&noticiaId=132>.
Acesso em 08 jul. 2010.
25
MESTERS e OROFINO. Disponível em: <www.cebi.org.br/noticias.php?secãoId=12&noticiaId=132>. Acesso
em 08 jul. 2010.
23
4. A Palavra de Deus perto de nós! - Mesters afirma que “antes de o povo ter esse
contato mais vivido com a Palavra de Deus, a Bíblia ficava longe. Era o livro dos "padres" e
“pastores”. Mas agora ela chegou perto! O que era misterioso e inacessível começou a fazer
parte da vida quotidiana dos pobres. E junto com a sua Palavra, o próprio Deus chegou
perto!”26
5. Uma nova maneira de se olhar a Bíblia – Dessa maneira traçada acima é que
Mesters e Orofino dizem ter surgido essa nova maneira de se olhar a Bíblia e a sua
interpretação: “a Bíblia já não é vista como um livro estranho, mas como nosso livro”27. A
Bíblia, para alguns, se tornou o primeiro instrumento para uma análise mais crítica da
realidade.
6. Interpretar a Vida com a ajuda da Bíblia. Assim se deu a descoberta progressiva de
que a Palavra de Deus não está só na Bíblia, mas também na vida, e de que o objetivo
principal da leitura da Bíblia não é interpretar a Bíblia, mas sim interpretar a vida com a ajuda
da Bíblia. Descobre-se que Deus fala, hoje, através dos fatos.
7. Uma nova porta de entrada – A Bíblia deixa de entrar na vida do povo pela porta da
imposição autoritária, para entrar pela porta da experiência pessoal e comunitária. Ela se faz
presente não como um livro que impõe uma doutrina de cima para baixo, mas como uma Boa
Nova que revela a presença libertadora de Deus na vida e na luta do povo.
8. Ligação entre a Bíblia e a Vida – Segundo Mesters e Orofino, para que se produza
esta ligação profunda entre Bíblia e vida, é importante: a) Ter nos olhos as perguntas reais que
vêm da vida e da realidade sofrida de hoje, e não perguntas artificiais que nada têm a ver com
a vida do povo. Aqui aparece a importância de que o estudioso da Bíblia tem convivência e
experiência pastoral inserida no meio do povo. b) Descobrir que se pisa o mesmo chão, ontem
e hoje. Aqui aparece a importância do uso da ciência e do bom senso, tanto na análise crítica
da realidade de hoje, como no estudo do texto e seu contexto social. c) Ter uma visão global
da Bíblia que envolva os próprios leitores e leitoras e que esteja ligada com a situação
concreta das suas vidas. Lendo assim a Bíblia produz-se uma iluminação mútua entre Bíblia e
vida. O sentido e o alcance da Bíblia aparecem e se enriquecem a luz do que se vive e sofre na
vida, e vice-versa.

26
MESTERS e OROFINO. Disponível em: <www.cebi.org.br/noticias.php?secãoId=12&noticiaId=132>. Acesso
em 08 jul. 2010.
27
MESTERS e OROFINO. Disponível em: www.cebi.org.br/noticias.php?secãoId=12&noticiaId=132. Acesso
em 08 jul. 2010.
24
9. Atividade envolvente – A interpretação que o povo faz da Bíblia é uma atividade
envolvente que compreende não só a contribuição intelectual do exegeta, mas, também, e,
sobretudo, todo o processo de participação da Comunidade: trabalho e estudo de grupo, leitura
pessoal e comunitária, teatro, celebrações, orações, recreios,
10. Um ambiente de fé e fraternidade – Uma boa interpretação acontece em um
ambiente de fé e de fraternidade, através de cantos, orações e celebrações. Sem este contexto
do Espírito não se chega a descobrir o sentido que o texto tem para nós hoje. “Pois o sentido
da Bíblia não é só uma ideia ou uma mensagem que se capta com a razão e se objetiva através
de raciocínios; é também um sentir, uma consolação, um conforto que é sentido com o
coração.” 28
Lembramos que, mesmo neste período de efervescência dos movimentos populares e
das comunidades de base, apenas uma minoria de cristãos faziam essa leitura, enquanto a
grande maioria fazia uma leitura mais tradicional e mais fundamentalista, mas o impacto
dessa experiência influencia até hoje os movimentos e métodos populares na America latina.

1.3.2 O Método da leitura popular da Bíblia

O método da leitura popular da Bíblia ficou representado através do triângulo


hermenêutico: Realidade – Bíblia – Comunidade. Há 30 anos esse método vem sendo
popularizado no Brasil por Carlos Mesters e pelo Centro de estudo bíblicos (CEBI), que tem
assumido a leitura popular da Bíblia com seu carisma particular. A figura abaixo apresenta o
triângulo hermenêutico como hoje é apresentado nos cursos de formação do CEBI. Como
método é dinâmico e vivo. Desde as primeiras elaborações feitas por Carlos Mesters, vem
sendo enriquecido em permanente abertura de acordo com a realidade. Foi Carlos Mesters
quem primeiro articulou e sistematizou a teoria do triângulo hermenêutico, a partir dos três
critérios básicos para interpretação bíblica popular. O processo pode iniciar por qualquer um
dos três aspectos Realidade – Bíblia – Comunidade.
Carlos Mesters utilizou o texto dos discípulos no caminho de Emaús, no Evangelho de
Lucas 24.13-35, para mostrar a maneira como Jesus interpretava a Bíblia a partir da tríade
hermenêutica: realidade – texto – comunidade. É importante salientar que a leitura popular da
Bíblia nos últimos anos tem utilizado outros textos que são elucidativos para sua metodologia,
como o diálogo de Jesus com a samaritana (João 4.1-42), entre Filipe e o Etíope (Atos 8. 26-
28
MESTERS e OROFINO. Disponível em: <www.cebi.org.br/noticias.php?secãoId=12&noticiaId=132>. Acesso
em 08 jul. 2010.
25
40 e as parábolas de Jesus, entre elas a parábola da dracma perdida, que também é um texto
muito utilizado para apresentar os passos metodológicos da leitura popular e feminista da
Bíblia. Mas, sem dúvida, o texto que se tornou o mais exemplar e explicativo da metodologia
da leitura Popular da Bíblia foi o do caminho de Emaús. Segundo Mesters, Jesus utilizou três
passos metodológicos na conversa que teve com os discípulos no caminho que fizeram juntos
entre Jerusalém e a cidade de Emaús. Os passos são:29

 Partir da Realidade – Jesus entra no caminho e inicia a conversa com os


discípulos a partir da realidade. Ele chega interrogando sobre o que está
acontecendo? Quer ouvir a realidade a partir da visão dos discípulos de Emaús.
Por isso o primeiro passo da prática interpretativa popular é entrar no caminho
do povo, conviver e saber como eles sabem as coisas e juntos procurarem as
respostas assim como Jesus fez com os discípulos.

 Usar a Bíblia para iluminar a realidade – Depois de ouvir a realidade dos


acontecimentos, a Bíblia é trazida para “situar o presente daquelas duas
pessoas dentro da história da Salvação”. Jesus seleciona textos que fala ao seu
respeito, desde Moises até fazendo memória da história da salvação. Mas, ele
não faz isso numa postura de professor – aluno, mas como um amigo do
caminho, numa atitude humilde de diálogo, criando uma relação de troca de
saberes. A Bíblia é trazida para o diálogo, para que juntas, Realidade e Bíblia,
possam fazer revelar a palavra de Deus.

 Criar comunidade – O terceiro passo é o momento em que Jesus é convidado


a entrar na casa dos discípulos e a participar da mesa com eles. É através do
gesto da partilha do pão que os olhos dos discípulos são abertos e aquela
situação vista como sinal de morte é transformada em sinal de vida.

Em síntese, essa é a forma como a leitura popular da Bíblia é praticada hoje no Brasil.
Essa tríade hermenêutica representa o jeito que o povo faz leitura popular da Bíblia.

29
GASS, Ildo Bohn. Uma Introdução à Bíblia: Porta de Entrada - Vol. I. São Leopoldo: CEBI e PAULUS,
2002. p.13.
26
1.4 Pedagogia do oprimido e leitura popular da Bíblia como prática de educação
libertadora

O pensamento de Paulo Freire é matriz integradora de muitas práticas educativas do


meio popular, inclusive da leitura Popular da Bíblia. A Pedagogia do Oprimido e a Leitura
Popular da Bíblia partem de alguns pressupostos comuns:

1.4.1 Freire e Mesters: a afirmação da vida como ponto de partida

O que e como fazer para afirmar a vida? Cada um, a partir de seu lugar de atuação, vai
procurar resposta à mesma pergunta. Enquanto Paulo Freire desenvolve sua prática educativa
libertadora no âmbito cultural, político e educacional, Carlos Mesters desenvolve sua prática
no âmbito bíblico-eclesial. Mesters, influenciado pelo pensamento de Freire, propõe uma
pedagogia libertadora como principio para sua prática de leitura popular da Bíblia. Destaco
três pontos que se entrecruzam entre a Leitura Popular da Bíblia e o pensamento de Paulo
Freire:

1.4.1.1 O Pobre como sujeito no processo educativo libertador

Tanto a leitura popular da Bíblia como a Pedagogia do Oprimido partem da ideia de


participação ativa do povo no processo de transformação. Seja na proposta da pedagogia do
oprimido seja na leitura popular da Bíblia os pobres e as categorias sociais que sempre foram
consideradas subalternas, oprimidas (mulheres, negros, índios) tornam-se sujeitos no processo
educativo. “Ser sujeito para a teoria freiriana é ser sujeito do conhecimento e pensamento. É
uma palavra assumida com um caráter novo de autonomia, não um caráter só burguês, do
cidadão da revolução francesa, mas um significado mais de base.” 30 Tanto a pedagogia do
oprimido como a leitura popular da Bíblia trabalham a ideia de um movimento de baixo para
cima e não de cima para baixo. A teologia da libertação também foi responsável por colocar o
pobre como sujeito histórico e como a chave hermenêutica para teologia e para hermenêutica
bíblica na América latina. Essa também foi a chave hermenêutica da leitura popular da Bíblia.

30
O Pensamento de Paulo Freire como matriz integradora de práticas educativas do meio popular. Ciclos
de seminários organizados pela Rede de Educação Popular de São Paulo. Disponível em:
<www.polis.org.br/utilitarios/editor2.0/.../paulofreire-081106.pdf>. Acesso em 05 jun. 2010.
27
Trabalhar com uma leitura da Bíblia onde a pessoa possa dizer sua própria palavra sobre o
mundo, na história e diante de Deus.

1.4.1.2 Alfabetização e leitura popular da Bíblia

A pedagogia de Paulo Freire foi parceira de muitos movimentos em prol da libertação.


Nesse sentido, há uma vinculação entre Freire e a leitura Popular da Bíblia. A leitura da Bíblia
também foi influenciada pelas ideias revolucionárias da pedagogia do oprimido.
Não existe conscientização sem alfabetização e sem uma leitura crítica da realidade. O
milhão de analfabetos, de pessoas oprimidas e alienadas da sua própria realidade torna-se um
obstáculo para qualquer processo de educação libertadora. Como fazer leitura da Bíblia com
pessoas que não sabem ler? Como fazer leitura popular da Bíblia nesse contexto?
É bom destacar que uma das contribuições das Igrejas protestantes no Brasil foi a
democratização radical da leitura da Bíblia. Mas também enfrentaram o problema do grande
número de analfabetos nas comunidades. Por isso eram comuns escolas de alfabetização
funcionando nos prédios das igrejas protestantes para alfabetizar o povo, a fim de que
pudessem ler a Bíblia.
Com a leitura popular da Bíblia, foi devolvida a Bíblia para a mão do povo, e muitos
que não tinham leitura iam primeiro para a alfabetização de Paulo Freire. Aprendiam não só a
ler, mas também a fazer leitura crítica para depois tomar a Bíblia como sua chave de leitura da
realidade. Nesse sentido, há uma vinculação da proposta de educação libertadora da
alfabetização de Paulo Freire com a leitura popular da Bíblia.

1.4.1.3 Novos espaços e novos sujeitos da leitura

A leitura popular da Bíblia, enquanto caminho dinâmico em constante diálogo com a


realidade, para ser fiel ao próprio espírito do método, precisa estar sempre aberta a dialogar
com as novas realidades. Por isso se mantém em constante processo de construção e
reconstrução. É neste sentido que se foi agregando no decorrer do caminho novas dimensões
da leitura popular da Bíblia.
A leitura bíblica a partir do pobre foi sendo ampliada. A compreensão do significado
de “pobre e oprimido” como sujeito da leitura foi sendo ampliada e surgem novas percepções.
Outros grupos oprimidos, como: mulheres, negros e indígenas, que também vivem suas

28
experiências de opressão em um mundo marcado por uma cultura branca e patriarcal, buscam
exercitar o seu direito interpretativo. Brotam daí as diferentes releituras bíblicas: leituras
étnicas, ecológica, feminista e outras.

1.4.2 A Bíblia lida por mulheres

Escorraçada de um texto no qual já não me reconhecia, eu me


refugiava não nas linhas, mas nas entrelinhas. Ali eu deixaria uma
muda e criptografada mensagem, uma mensagem que, como garrafa
lançada ao mar, talvez chegasse a alguém, num futuro próximo ou
distante.31

A leitura popular da Bíblia, quando propôs um novo sujeito interpretativo, permitiu


um processo de reaproximação e um novo diálogo aberto entre as mulheres e a Bíblia. A
leitura popular da Bíblia favorece um espaço democrático com novos sujeitos interpretativos.
Por isso, a leitura popular tem sido motivadora e interlocutora da leitura feminista da Bíblia.
As mulheres, nos grupos populares e feministas, assumem seu lugar de sujeito na leitura da
Bíblia. Os grupos de leitura popular da Bíblia assumem papel importante para o protagonismo
de mulheres na leitura e interpretação da Bíblia. No processo de aprendizagem, a leitura
popular da Bíblia pode aprender da leitura feminista da Bíblia e vice-versa, ajudando-se
mutuamente a superar limites de ambas as partes.

1.5 Síntese

Concluindo este primeiro capítulo, constatamos que não estamos construíndo no vazio
e nem sozinhos/as. Relembramos alguns caminhos pelos quais caminhamos, ancorados/as
por histórias, movimentos e ideias que nos iluminam e nos sustentam na caminhada.
Relembramos algumas ideias da Pedagogia do Oprimido que inspiraram uma prática
libertadora de moviemntos populares no Brasil e no mundo. Relebramos ainda o método da
leitura popular da Bíblia e sua relação com as teologias e os movimentos de libertação na
América Latina e no Brasil. Essa relação faz com que, hoje, em grupos de leitura bíblica,
mulheres possam ter “sua palavra”, baseadas numa postura participativa, contextualizada e
crítica. A leitura popular da Bíblia tem proporcionado que mulheres se aproximem da Bíblia

31
SCLAIR, Moacir. A mulher que escreveu a Bíblia. São Paulo: Companhia das letras, 2007, p. 108.
29
com novos olhares, novas luzes e perguntas, promovendo um resgate de autoestima e um
movimento de empoderamento em relaçao às situações de desumanização e “menos vida”
que enfrentam em suas realidades.
Entendendo que uma proposta de hermenêutica feminista necessita não somente de
modelo hermenêutico, mas também de um modelo pedagógico que oriente os estudos bíblicos
feministas, buscamos, nesse primeiro capítulo, lançar luzes sobre um modelo democrático de
aprendizagem, que seja capaz de romper com os modelos hegemônicos de dominação, indo
em direção a um modelo diferente de leitura/aprendizagem, que promova conscientização e
humanização e que se torne inspiração para um modelo feminista de estudos bíblicos
radicalmente democráticos.
O segundo capítulo se dedicará exclusivamente à Hermenêutica bíblica feminista,
reconhecendo suas abordagens, seus paradigmas, seus pressupostos e suas metodologias,
dando enfoque especial à hermenêutica libertadora feminista, que se caracteriza por seu
lugar e sua prioridade hermenêutica nas lutas feminstas por conscinetização e humanização.

30
II - HERMENÊUTICA FEMINISTA DE LIBERTAÇÃO

Como ler e interpretar a Bíblia desde um caminho de vida e libertação para mulheres
em suas lutas por dignidade e justiça? Existe uma pluralidade de abordagens feministas de
leitura da Bíblia que poderiam servir de referencial para o nosso trabalho. Porém, fizemos
escolha pela Hermenêutica crítica feminista da libertação por algumas razões.
Em primeiro lugar, por continuarmos a busca iniciada no primeiro capítulo por marcos
teóricos libertadores. Não queremos dialogar com modelos hermenêuticos academicistas,
descolados de um compromisso com as lutas concretas da vida de pessoas que ainda
procuram na Bíblia a força para construir uma vida melhor para elas mesmas e para pessoas
sofridas e “excluídas” deste mundo. Queremos entrar no caminho (método) com outras
pessoas e movimentos comprometidos com a justiça.
Em segundo lugar, pelas raízes históricas da hermenêutica crítica feminista. Essa
proposta hermenêutica feminista de libertação se desenvolveu como parte da segunda onda do
feminismo e a partir dos movimentos de base por libertação de mulheres. Elisabeth S.
Fiorenza diz não ter se inspirado nas teologias clássicas da academia européia e norte-
americana e nem nas lutas feministas das mulheres brancas de classe média, mas nos
movimentos abolicionistas do século XIX e nos distintos movimentos de libertação do século
XX: movimentos antiescravagistas, de operários, por direitos civis, anticolonialistas,
antiguerra e o movimento de mulheres. Esses movimentos, segundo Elisabeth S. Fiorenza,
constituem o lugar social para uma interpretação feminista. A linguagem e os discursos da
hermenêutica feminista de libertação foram fornecidos pela práxis libertadora desses
movimentos.32
Por fim, escolhemos a hermenêutica crítica feminista de libertação por ter como ponto
de partida as teologias de libertação e pela identificação com a luta de mulheres em diferentes
contextos e culturas, que têm suas experiências e vozes silenciadas pelos interesses de

32
FIORENZA, 2009, p. 100.
31
dominação políticos, econômicos ou religiosos. Este trabalho da experiência de um grupo de
mulheres no Nordeste do Brasil precisava de um referencial teórico que fornecesse uma
reflexão a partir de um paradigma de libertação dos grupos excluídos e marginalizados
socialmente, culturalmente e teologicamente.

2.1 A hermenêutica crítica feminista de libertação

Por muito tempo, no Brasil e na América Latina, a Bíblia era lida apenas pelos
critérios e métodos adotados pela exegese europeia de caráter extremamente científico ou pelo
método literalista e fundamentalista, mas alguns caminhos novos foram surgindo. As leituras
contextuais e a teologia da libertação sem dúvida trouxeram novos critérios e sujeitos para o
centro da teologia e da leitura da Bíblia na América latina.
A opção preferencial pelos pobres torna-se a “espinhal dorsal” da teologia da
libertação e faz emergir novos sujeitos e novas leituras, provocando desdobramentos
importantes. Teologias negras, indígenas e feministas surgiram como teologias de libertação
da opressão, baseadas na etnia e no gênero, dando face concreta e diversa à categoria dos
“pobres”. É por essa razão que se fala em teologias de libertação no plural e também podemos
falar de hermenêuticas de libertação no plural. Acontece, a partir daí, um movimento de
“descolonização teológica”, repercutindo diretamente na forma de ler e interpretar a Bíblia na
América latina.
O feminismo surge como movimento social em finais do séc. XIX, e, desde então, em
todo o mundo e na América latina, crescem o grito e a voz das mulheres, reclamando seus
direitos, e grupos de mulheres se organizam em torno da leitura libertadora da Bíblia.
Tivemos, no contexto de América latina, um chão fértil para o florescimento das teologias e
hermenêuticas de libertação. Na raiz do processo hermenêutico, estão agora os povos
oprimidos latino-americanos: camponeses e camponesas, mulheres, negros e negras, o povo
indígena. Estes são alguns dos novos sujeitos da leitura da Bíblia na América Latina.
Partindo dos pressupostos das leituras bíblicas libertadoras que surgem como
desdobramentos da teologia da libertação, conhecidas também como “teologias das margens”
ou “teologias de terceiro mundo” e das lutas feministas de libertação, surge a hermenêutica
crítica feminista de libertação como um instrumento capaz de reivindicar para as mulheres um
papel de sujeitos, não só na leitura e na interpretação bíblica, mas no seu lugar social, político

32
e religioso, pois traz um compromisso ético e político em favor da emancipação e da
dignidade da mulher, não só na Igreja, mas na sociedade.

2.2 Um novo paradigma hermenêutico

As lentes pelas quais se lê e se interpreta a Bíblia são cultural e historicamente


condicionadas. A própria revelação de Deus nas Escrituras é estabelecida historicamente
através de uma linguagem humana que traz as marcas de uma sociedade patriarcal e sexista.
As mulheres aprenderam a ler e a interpretar a Bíblia com as lentes dos esquemas
teológicos masculinos e a partir de determinados paradigmas hermenêuticos desenvolvidos
historicamente. A hermenêutica bíblica feminista reconhece que a Bíblia exerceu e exerce
influência tanto positiva quanto negativa na vida de muitas mulheres e homens e que essa
influência não se dá somente através dos textos em si, mas também através da forma como
esses textos são lidos e interpretados.
Para ler a Bíblia através de lentes feministas é necessária uma mudança nos
paradigmas hermenêuticos tradicionais. Nem sempre estamos conscientes de que a maneira
pela qual nos aproximamos da Bíblia é determinada por certos paradigmas de leituras e
interpretações bíblicos historicamente construídos e que até hoje condicionam os nossos
olhares para o texto e para a vida de forma geral.
Foi Elisabeth S. Fiorenza que, nos anos de 1980, propôs uma revisão dos paradigmas e
modelos teóricos hermenêuticos tradicionais e apresentou um novo modelo hermenêutico
feminista de libertação. No livro As Origens Cristãs, a partir da mulher, ela apresenta e
analisa três modelos que são retomados em analises posteriores. Os modelos, hoje, são
classificados por ela como: doutrinal-revelador, científico-positivista e hermenêutico-cultural.
Em alternativa a estes modelos ela apresenta o paradigma retórico-emancipatório. Esses
modelos são apresentados a seguir.33

2.2.1 Paradigma doutrinal-revelador: uma leitura colonizadora

A leitura da Bíblia na América Latina é influenciada pela herança religiosa dos


colonizadores do ocidente. A Bíblia é lida a partir das lentes dos grupos colonizadores.
Missões católicas e protestantes trazem a Bíblia para America latina, através de um processo
33
FIORENZA, Elisabeth Schussler. As Origens Cristãs A Partir da Mulher: Uma Nova Hermenêutica. São
Paulo: Edições Paulinas. 1992. p. 27.
33
de evangelização-colonização que silenciou a voz dos povos dominados e oprimidos,
destruindo as expressões religiosas originárias.
A abordagem denominada de doutrinal-reveladora é a leitura praticada pela
hermenêutica de colonização. A leitura colonizadora entende a Bíblia em termos de revelação
divina e autoridade canônica. Em suas formas mais radicais insiste na inspiração verbal e na
inerrância literal-histórica das Escrituras. Esse tipo de leitura é reprodutora e legitimadora das
estruturas de dominação, inclusive a dominação do masculino sobre o feminino. Está
assentada numa lógica de poder e dominação política, religiosa e cultural e a utiliza para
legitimar teologicamente a hierarquia que se impõe sobre a Igreja e a sociedade, deixando
uma herança perversa conservadora de opressão, dominação e hierarquias sociais e religiosas,
não só para Igreja, mas para toda a sociedade.

O eixo hermenêutico da cristandade – Deus, pecado, tradição e poder


político – constitui o cerne de formação da identidade latino-americana,
transplantando uma história de dominação religiosa que perpassou a história
do ocidente, sendo, aqui, responsável pela assimilação e pela naturalização
das assimetrias de gênero, políticas sociais e também pela destruição e pelo
massacre dos símbolos dos povos dominados, possibilitando um etos cultural
constitutivamente assimétrico, herdado de uma cristandade que tem, em sua
constituição, uma hermenêutica canônica e autoritária dos textos sagrados da
tradição judaico-cristã.34

Essa forma de abordagem hermenêutica influenciou diretamente toda a estrutura da


sociedade e da Igreja, e ainda ressoam sobre a vida das mulheres e nas estruturas e discursos
cristãos os reflexos dessa abordagem doutrinal-reveladora. Por isso, Fiorenza defende uma
reconstrução e uma revisão desses paradigmas a fins de libertação.35

2.2.2 Paradigma científico-positivista: uma leitura cientifica

O segundo modelo ou abordagem desenvolveu-se em confronto com as leituras


dogmáticas da Bíblia e com a autoridade doutrinal da Igreja. Surge dentro do ambiente
cientificista do século XIX nas universidades da Europa e dos Estados Unidos em defesa de
uma neutralidade da investigação. Essa abordagem é modelada pela compreensão positivista e
racionalista. Para Fiorenza, o paradigma científico requer uma suposta objetividade, atitude

34
CABRAL, Jimmy Cabral. Bíblia e Teologia Política: Escrituras, tradição e emancipação. Rio de Janeiro:
Mauad X: Instituto Mysterium, 2009. p.60.
35
FIORENZA, 1992, p. 27.
34
desinteressada e neutralidade de valores para controlar o que constitui o sentido verdadeiro do
texto.
Apóia-se mais nas razões científicas e não nas teológicas. Busca conseguir uma leitura
objetiva livre e universal. Esse paradigma ainda é bastante utilizado por especialistas em
muitas universidades, seminários teológicos e centros de estudos bíblicos, tanto no Brasil
como na América Latina.36
A partir do paradigma científico de interpretação bíblica, desenvolveram-se diferentes
linhas e paradigmas teóricos relacionados:37
Paradigma histórico: O paradigma histórico tenta diminuir a distância entre o mundo
antigo da Bíblia e o mundo de hoje, propondo o estudo do texto dentro do seu contexto
geográfico, sócio-político e religioso, fazendo uma descrição científica realista e neutra do
passado. Mas esgota sua interpretação na reconstrução do passado e assim aumenta o fosso da
história, pois não se interessa pela relevância atual do texto.
Paradigma literário: Já o paradigma literário está interessado na construção e na
reconstrução do texto. Quer saber como o texto foi elaborado. Para tanto, a atenção está para a
estrutura, a sistemática, a poesia, o gênero literário do texto, pois a partir dessa análise é que
se procura o sentido original. O textualismo positivista desconfia do discurso histórico,
afirmando que só se pode ter acesso à realidade histórica do texto através do próprio texto.
Sendo assim, o texto passa a ser um meio e a ênfase é colocada sobre o significante, uma vez
que o paradigma literário concebe o texto como uma mensagem do autor para as pessoas que
o leem. Fiorenza observa que a função deste paradigma é de ler e interpretar o texto como ele
se apresenta, submetendo-o a uma analise de caráter literário, sem a preocupação com o
caráter histórico ou ideológico e isso poderia conduzir simplesmente a uma identificação das
realidades presentes no texto, sem conseguir problematizar a sua função ideológica.38

2.2.3 Paradigma hermenêutico-cultural: uma leitura pós-moderna

Esse paradigma é também conhecido como paradigma pós-moderno e o seu interesse


reside em conhecer os textos e seus povos sem nenhum interesse doutrinal. Parte do
pressuposto de que o texto fez sentido para as pessoas do passado e vai fazer sentido para
leitores e leitoras do texto bíblico hoje. Os textos são vistos como discursos que foram

36
FIORENZA, 2009, p. 55.
37
FELIX, 2010, p. 184.
38
FELIX, 2010, p. 184.
35
elaborados a partir de uma realidade cultural concreta, mas que o universo simbólico abre um
leque de possibilidades interpretativas. Elisabeth S. Fiorenza acredita que esse paradigma se
fortalece diante do vazio provocado pelo paradigma científico-positivista quando esvazia o
texto de sentido. Como resposta a este vazio, o paradigma hermenêutico-cultural utilizará o
elemento cultural para devolver o sentido atual do texto, criando pontes entre o sentido que o
texto tinha para a cultura do tempo bíblico e a realidade cultural contemporânea.
Para Elisabeth S. Fiorenza, as mudanças hermenêuticas pós-modernas são decorrentes
em grande parte da influência das teologias de libertação e hermenêuticas feministas que
conseguiram desestabilizar as certezas do paradigma científico-positivista; porém, considera
que, mesmo não defendendo o sentido unívoco do texto, não se leva em conta as situações
sociais e históricas que geraram o texto ou que determinam sua função hoje e, dessa forma,
não assume o compromisso com os desafios éticos dos movimentos emancipatórios que visam
transformar a realidade. Diante dessas análises, ela propõe um novo paradigma, que
denominou retórico-emancipatório.39

2.2.4 Paradigma retórico-emancipatório: uma leitura conscientizadora

Este é um paradigma ainda em construção e que recebeu diferentes nomes, conforme


declara a própria Elisabeth S. Fiorenza:

Sendo que esse paradigma ainda está em construção e ainda não conseguiu
criar suas próprias estruturas institucionais, foi difícil dar-lhe um nome
adequado. Chamei-o, à guisa de tentativa, de pastoral-teológico, libertador-
cultural, retórico-ético ou retórico-político.40

Finalmente decidiu-se por retórico-emancipatório. Esse termo busca redefinir a


autocompreensão da interpretação bíblica em termos éticos, retóricos, políticos, culturais e
emancipatórios. Para compreender o paradigma emancipatório é preciso tentar explicitar
dentro do contexto da hermenêutica crítica feminista de libertação o sentido de retórica e de
linguagem. A retórica aqui não quer dizer uma habilidade técnica e linguística de
manipulação e persuasão, mas tem haver com discurso e linguagens que exercem poder.
A linguagem no paradigma emancipatório possui um poder performativo, ou seja, ela
não descreve apenas uma realidade, mas prescreve. Ela tem poder de interferir e produzir

39
FIORENZA, 2009, p. 59.
40
FIORENZA, 2009, p. 59.
36
efeitos de realidade. Nesse sentido, então, compreende que o texto bíblico como
comunicações retóricas traz discursos, linguagens e retóricas que foram construídos
historicamente e que estão inscritos nos textos bíblicos. Sendo assim, o objetivo do paradigma
retórico-emancipatório seria o de desvendar e desnaturalizar esses discursos, analisando-os
criticamente. Para poder compreender a retoricidade presente no texto, o paradigma levanta
novas perguntas que serão desveladoras das questões de poder presente nos textos: Que tipo
de mundo o texto visualiza? Que papéis, direitos e valores são defendidos no texto? Que tipos
de relações de poder estão presentes no texto? Que efeito essas relações têm na vida das
pessoas? Que práticas sócio-políticas e religiosas são legitimadas? Discursos de quais
comunidades ou grupos são respeitados?41
Nessa abordagem, a Bíblia é compreendida como um lugar de luta sobre significados.
Vê-se a Bíblia como um discurso retórico perspectivo que constrói mundos teológicos e
universos simbólicos em situações histórico-políticas particulares. Entende-se a Bíblia em
termos de um protótipo de fim aberto e não como arquétipo. A compreensão da Bíblia não se
dá por meio de um padrão fixo mítico, mas como protótipo histórico que traz consequências
profundas na questão da autoridade e da revelação da Bíblia.

A teologia feminista desafia, pois, o estudo teológico bíblico a desenvolver


um paradigma para a revelação bíblica que não entenda o Novo Testamento
como um arquétipo, mas como um protótipo. O arquétipo e o protótipo
denotam ambos os modelos originais. Contudo, um arquétipo é uma forma
ideal que estabelece um padrão atemporal imutável, ao passo que um
protótipo não é um padrão ou principio temporalmente vinculante. Um
protótipo acha-se, pois, criticamente aberto para uma possibilidade de sua
própria transformação. “Pensar em termos de protótipo historiciza o mito”.
Uma compreensão hermenêutica da Escritura como protótipo não só dá
espaço como também requer a transformação de seus próprios modelos de fé
e comunidade cristã. 42

É fato que a crise na autoridade da Bíblia tem sido intensificada pelas hermenêuticas
feministas do século XIX, quando começaram a declarar que a Bíblia não só foi escrita por
mãos humanas como por uma “elite de varões”. E, além disso, ressaltavam que a Bíblia não é
somente produto de um passado cultural patriarcal, mas também é um texto utilizado para
inculcar desumanizações e violências como palavra de Deus. Para Elisabeth S. Fiorenza, esta
luta pela autoridade bíblica acompanha a luta de mulheres pela autoridade de interpretação da

41
FELIX, 2010, p. 148.
42
FIORENZA, 1992, p. 61.
37
Bíblia, tanto na igreja católica quanto na igreja protestante, sendo que na tradição protestante
o desafio e a luta de mulheres são ainda mais desafiadores pela ênfase na autoridade bíblica.
Segundo Fiorenza, o poder interpretativo não está na Bíblia, nem na Igreja e nem na
Academia, mas nos espaços democráticos por luta de transformação através do “discipulado
de iguais”43, conceito desenvolvido por ela que denomina uma forma de vida assumida por
aquelas pessoas que seguem uma visão comum, de luta, para tornar presentes os valores do
reino de igualdade, justiça e dignidade humana. O paradigma retórico-emancipatório, nesse
sentido, tem o objetivo de capacitar homens e mulheres como sujeitos leitores na construção
de significados e como agentes críticos da interpretação.44
Dessa forma, os textos bíblicos que reforçam e promovem a justificação do sofrimento
e o silenciamento de mulheres e homens, desumanizando-os, são desmitologizados e não
prontamente aceitos como Palavra de Deus, e, neste caso, somente aqueles textos que rompem
com a cultura e suas estruturas terão autoridade teológica de revelação.
O paradigma retórico-emancipatório se depara com um grande desafio, propondo para
os estudos bíblicos feministas um paradigma que compreenda a Bíblia não como arquétipo
fixo, mas como protótipo histórico dinâmico e uma proposta de um cânon revelatório
formulado no espaço radicalmente democrático da comunidade de iguais, tendo as lutas de
libertação pessoal e politicamente manifestas como critérios de interpretação bíblica e
avaliação das pretensas autoridades.
Sempre que lemos, ouvimos ou interpretamos um texto bíblico faremos isso a partir de
um ou mais desses paradigmas de interpretação aqui apresentados. Geralmente trabalhamos a
partir de um paradigma principal, mas os outros não estão inteiramente ausentes. Os
paradigmas não se excluem totalmente uns dos outros, mas se sobrepõem. 45 Esses paradigmas
estão presentes, consciente ou inconscientemente, em nossas práticas interpretativas e nos
estudos bíblicos tradicionais ou feministas. É preciso que a proposta de estudos feministas
comprometidos com a libertação e a conscientização possa partir não só de paradigmas
pedagógicos comprometidos com a emancipação humana, mas também com paradigmas
hermenêuticos mais críticos e libertadores. Conhecer os paradigmas de interpretação ajudará
na escolha e na construção dos métodos e caminhos para uma leitura bíblica feminista
libertadora.

43
FIORENZA, 2009, p. 42.
44
FELIX, 2010, p. 208.
45
FIORENZA, 2009, p. 64.
38
2.3 Métodos de interpretação feminista

Além de novos paradigmas, a interpretação feminista também necessita de novos


métodos de interpretação. Não existe uma única estratégia ou método feminista de
interpretação. As feministas analisam criticamente os métodos padrão de interpretação e
constroem metodologias feministas que se apresentam bastante abertas. Há vários caminhos e
múltiplos itinerários que podem ser tomados por referência para as leituras e os estudos
bíblicos feministas.

2.3.1 Métodos corretivos de interpretação

Esse método revisionista e corretivo de interpretação feminista da Bíblia é o mais


antigo. Foi desenvolvido e empregado no século XIX, em resposta aos estudos que
justificavam a ordem social hierárquica e patriarcal através da Bíblia. As feministas se
apropriaram das ferramentas da crítica textual e das línguas bíblicas para entender os sentidos
“não adulterados” do texto e para corrigir traduções e comentários patriarcais. Daí o termo
corretivo. Além disso, o método corretivo de interpretação feminista dedica-se à “ampliação
do conhecimento das mulheres da Bíblia.”. O método reformista revelou um vasto número de
mulheres na Bíblia. Para corrigir a ausência do conhecimento das mulheres na Bíblia, as
biblistas de abordagem corretiva realizaram pesquisas no sentido de redescobrir todos os
textos sobre mulheres contidos nos escritos bíblicos e também estenderam a pesquisa aos
escritos extra-canônicos e de mulheres da antiguidade.
A abordagem corretiva e revisionista trabalha a partir da crença de que a Bíblia, no seu
“cerne”, não é patriarcal e por isso se mantém leal à autoridade divina e à inspiração verbal
das Escrituras. Acredita-se, então, que o problema patriarcal das Escrituras pode ser corrigido
removendo as cascas patriarcais (palavra humana) sobrepostas pelas traduções e comentários
dos textos que distorceram ou negligenciaram o significado original.

2.3.2 Métodos históricos-reconstrutivos

Os métodos históricos trabalham com a distância que separa o/a leitor/a atual da época
em que o texto foi escrito. A reconstrução histórica feminista visa, neste sentido, oferecer
também uma aproximação da leitora contemporânea e o texto bíblico, superando, no entanto,
o paradigma positivista histórico.
39
A reconstrução histórica feminista tenta recuperar como herança de todas as mulheres
o agir histórico de mulheres no âmbito da religião como a memória de suas vitimações, lutas e
conquistas. Nas pesquisas históricas sobre mulheres na bíblia, os textos são entendidos como
“janelas para” e “espelhos da” realidade de mulheres na Antiguidade. O método histórico-
reconstrutivo concebe a história das mulheres não simplesmente como uma história de
opressão das mulheres pelos homens, mas como história do agir histórico das mulheres e de
suas lutas contra a subordinação e a opressão. Fiorenza considera que, dessa forma, o método
reinscreve a marginalidade histórica das mulheres, uma vez que os documentos textuais e
arqueológicos sobre o agir histórico de mulheres são limitados. 46
A compreensão teórica da historiografia moderna, que não compreende a história
apenas pelo sentido positivista da história oficial e escrita, mas como uma narrativa construída
conscientemente, agregou valor ao método de reconstrução histórico feminista. Ao reconhecer
a ausência de mulheres na história oficial, os estudos feministas começaram a se dedicar a
problema de como reinscrever as mulheres na história e como captar a memória das
experiências e contribuições históricas de mulheres. Assim começaram a fazer perguntas
históricas diferentes que procuram entender os mundos vivenciais sócio-religiosos das
mulheres na antiguidade. Algumas dessas perguntas são citadas por Fiorenza: O que sabemos
sobre a vida cotidiana das mulheres em Israel, na Síria, na Grécia, no Egito, na Ásia Menor ou
em Roma? Como viviam mulheres nascidas livres, escravas, mulheres ricas, mulheres
comerciantes? Mulheres sabiam ler e escrever? Temos notícias de filósofas, poetisas ou
pensadoras da religião? Quais os direitos que mulheres tinham? Como se vestiam? Quais
poderes e influências exerciam quando eram patrocinadoras? O que significava para uma
mulher em Corinto participar do culto a Isis, da sinagoga ou do grupo cristão? O que
significou para Junia sua prisão? Como mulheres de Filipos receberam a obra lucana (Lucas e
Atos.)?47
Concordo com o fato de que muitas dessas perguntas não tenham ainda sido
pesquisadas ou não venham a ser respondidas, mas o simples fato de fazê-las trouxe novas
perspectivas para o estudo histórico-reconstrutivo e traz contribuições importantes para uma
proposta de estudos bíblicos feministas.

46
FIORENZA, 2009, p. 165.
47
FIORENZA, 2009, p. 166.
40
2.3.3 Métodos imaginativos de interpretação

Um dos métodos mais antigos desenvolvidos pela interpretação feminista é o método


da identificação pessoal com as figuras de mulheres em narrativas bíblicas que são atualizadas
por meio de narração livre, bibliodrama, dança e canto etc. Essas estratégias visam desfazer as
tendências marginalizadoras e repressoras do texto bíblico. Esse método não se limita às
figuras de mulheres apresentadas nas historias bíblicas, mas imaginam figuras de mulheres
também nas chamadas histórias bíblicas “genéricas”, nas quais sua presença não é
mencionada explicitamente, mas deve ser presumida.
Para Elisabeth S. Fiorenza “essa maneira de contar histórias deixa claro, por exemplo,
que não só os filhos de Israel, mas também as filhas de Israel estavam reunidas no Sinai e
eram parceiras da aliança, ou que a audiência de Jesus consistia não só em homens, mas
também em mulheres.”48
Há diferentes modos de utilização de método de interpretação. Alguns dos mais
conhecidos são as formas do midrash utilizados pelas feministas judias, o bibliodrama
desenvolvido pelas feministas da Europa, os métodos culturais que utilizam representações
artísticas ou populares. Esse modo de interpretação bíblica valoriza não somente as formas
escritas do texto, mas dá importância a elaboração pictórica e artística. Conscientes de que
muitas mulheres não sabem ler e escrever, esta abordagem recorre ao poder de imagens
visuais que substituem a palavra impressa para um grupo contemporâneo que não tem leitura,
que tem muito pouco ou simplesmente que não quer fazer uso dela. Esse modo de
interpretação se torna muito adequado para realidades socioeconômicas de pessoas pobres do
Brasil e da América Latina.

2.3.4 Métodos de conscientização

Elisabeth S. Fiorenza faz uma analise dos métodos acima mencionados e adverte sobre
o risco desses métodos de reinscrever a política dualista de gênero do texto em vez de
desfazê-la. Para ela os métodos corretivos, reconstrutivos históricos ou imaginativos do texto
bíblico precisam caminhar de mãos dadas com uma hermenêutica de suspeita que vise à
conscientização, desenvolvendo uma imaginação diferente e radicalmente igualitária.

48
FIORENZA, 2009, p. 169.
41
Apresenta o método de conscientização não como substituição aos métodos citados,
mas como um método que auxilia os outros a uma interpretação crítica que lê, reconstrói e
imagina conscientemente e criticamente os textos. Segundo Fiorenza, ler e pensar dentro de
um sistema simbólico kyriocêntrico49 induz leitores/as da Bíblia a alinhar-se e a identificar-se
com aquilo que é culturalmente normativo, isto é, culturalmente masculino. Desse modo, ler a
bíblia pode intensificar em vez de desafiar a inserção das mulheres nos discursos kyriarcais
que as alienam de si mesmas. Por isso a conscientização feminista procura deslocar a atenção
do texto kyriocêntrico para as mulheres como sujeitas da leitura, e promover métodos de
resistências que desenvolvam visões alternativas para desconstruir, desmascarar e rejeitar a
política kyriocentrica do texto. “O método de interpretação crítica seria aprender a ler
conscientemente „como uma mulher‟ ou „desde uma perspectiva de mulher‟.”50
Procuramos apresentar os métodos feministas de interpretação. Todos podem ser
usados como passos individuais ou podem ser combinados e usados no movimento da dança
hermenêutica feminista de libertação.

2.4 Passos da hermenêutica critica feminista de libertação

Elisabeth S. Fiorenza descreve os passos metodológicos da hermenêutica critica


feminista como passos de uma dança. Essa imagem procura demonstrar uma proposta
metodológica que se movimenta, que gira de forma dinâmica. Enquanto a hermenêutica
clássica parece um circulo fechado, a interpretação feminista da Bíblia avança movendo-se
em espirais e círculos. São três passos fundamentais que não precisam ser sucessivos e nem
independentes entre si, podem ser repetidos e retomados sem uma sequência fixa e nem
linear.
 Desconstrução – Hermenêutica da suspeita
 Reconstrução – Resgate das histórias
 Construção – Tecer novos fios

49
Kyriocentrismo – neologismo utilizado por Elisabeth Schussler Fiorenza que denomina o complexo sistema
piramidal de dominação que atua a nível simbólico-cultural, ideológico-cultural e socioinstitucional - Fiorenza,
2009. p. 142.
50
FIORENZA, 2009, p. 173.
42
2.4.1 Desconstrução: uma hermenêutica da suspeita

Na hermenêutica feminista, a suspeita e a crítica são assumidas como categorias


imprescindíveis. Como mulheres, fomos ensinadas na hermenêutica do respeito, da aceitação
e da obediência ao texto. Este passo da dança hermenêutica parece ameaçador porque é um
convite a uma atitude que questiona e desmistifica. Trata-se da suspeita dos métodos, dos
conceitos e pressupostos da leitura bíblica tradicional, também da crítica ao texto, às
traduções, aos processos de formação, de redação e de canonização dos textos bíblicos. Inclui-
se ainda a critica ao patriarcado, à linguagem e à visão androcêntrica dos textos e a história de
interpretação.
É um passo muito difícil para quem aprendeu e interiorizou a autoridade bíblica. Por
isso é preciso ter muita sensibilidade ao aplicá-lo nos grupos de estudos bíblicos feministas,
lembrando que o objetivo final desse passo metodológico não é simplesmente levantar
suspeita, mas é, sobretudo, o compromisso de ler e interpretar a Bíblia a partir do
compromisso com a vida de mulheres que são ameaçadas pelos textos bíblicos e suas
interpretações violentas e desumanizantes.

2.4.2 Reconstrução: resgate das histórias

A hermenêutica da reconstrução feminista procura resgatar e reconstruir a participação


das mulheres na história, recuperar tradições alternativas; mesmo que seja através da costura
de retalhos, vai juntando pedaços que possam insinuar histórias não contadas.

- Resgata e reconstrói a participação das mulheres na história;


- Recupera tradições alternativas;
- Resgata o significado dessa participação;
- Rompe com o silencio das fontes androcêntricas;
- Resgata as resistências.

A hermenêutica da reconstrução é uma hermenêutica de memória perigosa e


subversiva, pois não somente mantém viva a memória da história, de sofrimentos e opressões,
como também recupera a história de luta por libertação, o que traz impulso de transformação
e projeta emancipação para o presente e para o futuro. Na hermenêutica da reconstrução,

43
vamos crescendo juntamente com a história e a história passa a ser também a história de
mulheres, a história delas e nossas.

2.4.3 Construção – tecendo novos fios

A hermenêutica feminista é crítica e reconstrutiva, mas também é construtivo-


propositiva. Todos os passos têm como objetivo contribuir com a construção de uma nova
história de mulheres. Ela provoca novas construções:
- Pessoais – as pessoas que interpretam o texto e sua comunidade local são
transformadas em seus valores, em sua visão do mundo e das relações de poder, de
linguagem.
- Nos textos bíblicos – O texto já não é mais o mesmo. São transformados pelos novos
olhares que recebem.
- Nas interpretações – aprende-se outra maneira de interpretar: os pressupostos, os
paradigmas e os métodos de interpretação são transformados.
- Teológicas – a hermenêutica bíblica feminista leva a uma mudança profunda nos
conceitos teológicos de: revelação, autoridade da Bíblia, doutrinas e dogmas.
- Estruturais – as estruturas patriarcais, desde a família, a igreja, e toda a sociedade
são alvo da mudança dos estudos bíblicos feministas.
Para Elisabeth S. Fiorenza, esse método exige que os intérpretes bíblicos que entram
nessa dança estejam comprometidos e desejosos de contribuir para a transformação da
sociedade e não em se tornarem pessoas “especialistas” de formação acadêmica.

2.5 A Hermenêutica crítica feminista de libertação a partir dos horizontes da leitura


popular da Bíblia

Os pressupostos da hermenêutica crítica feminista de libertação defendida por


Elisabeth S. Fiorenza trazem grandes contribuições para a hermenêutica popular e feminista,
porém apresentam algum limite em relação à proposta que pretende uma leitura bíblica
popular e feminista a partir de uma comunidade de fé. Sua ênfase recai muito mais na mulher
enquanto indivíduo de uma sociedade, enquanto a ênfase da leitura popular da Bíblia está não
no indivíduo, mas na comunidade. A leitura bíblica comunitária é peça chave para a
abordagem de uma leitura popular e feminista

44
2.5.1 A Bíblia e a comunidade

A comunidade é espaço de crescimento, que converte cada pessoa em sujeitos capazes


de transformar suas vidas e a sociedade a partir da reflexão e da ação comunitária.
Entendemos a leitura popular da Bíblia como uma forma de atuar, participar, interpretar e
viver em comunidade.
A Bíblia deve ser lida em comunidade. Ao compartilhar os textos bíblicos nos
aproximamos, nos conhecemos e estreitamos relações com os outros e as outras que vivem em
comunidade. Quando lemos a Bíblia em comunidade facilitamos que as pessoas se
reconheçam e estabeleçam relações mais saudáveis e afetivas. A leitura comunitária deve ser
um espaço onde compartilhamos nossas histórias de vida, saremos feridas, perdoemos
atitudes e ações que venham contra a liberdade de cada pessoa. Por outro lado, as diferentes
interpretações que cada pessoa dá aos textos nos ajudam a descobrir a sua riqueza e a perceber
como, em meio à diversidade de ideias, de histórias de vida, a cosmovisões, formações,
aspirações e projetos, podemos estabelecer diálogos e propósitos comuns para a
transformação de nossa sociedade.
Desta forma, podemos fortalecer as relações de amizade, em que cada membro de
nossa comunidade se sinta comprometido com a vida dos/as demais. De igual maneira, nos
apropriamos do texto bíblico como algo nosso, a Bíblia se faz próxima e, portanto, sua
mensagem mais profunda e viva.

2.5.2 A prática sócio-comunitária como ponto de partida e de chegada da Leitura


popular e feminista da Bíblia

Provavelmente, uma das características mais interessantes da proposta da leitura


popular da bíblia é a convocação a uma prática eclesial e social para grupos de leitura da
Bíblia. O novo saber se plenifica de sentido tanto quanto provoque novas atitudes, novas
condutas e transformações, que, por sua vez, voltarão a ser iluminadas oportunamente através
de outras reflexões a luz do texto sagrado. Trata-se, concretamente, de uma contínua
reinterpretação da Bíblia derivada das situações da vida diária, tanto no nível eclesial como no
social, para transformar, à medida do possível, essa realidade em um permanente caminhar
em direção à utopia expressada na categoria de reino de Deus.

45
2.5.2.1 A comunidade e a experiência de Deus

A leitura comunitária da Bíblia nos conduz a uma experiência de um Deus que se


aproxima. Durante muito tempo, a leitura bíblica praticada em nossas igrejas nos conduziu a
ideia de um Deus distante, a quem deveríamos temer. Era um Deus castigador e rancoroso e
com ele somente poderíamos entrar em comunicação com os olhos fechados ou olhando para
cima. A metodologia da leitura popular da Bíblia convida à experiência do Deus próximo, a
encontrá-lo em nossas angústias e alegrias, raivas e ansiedades, gozos e tristezas, sem sentir
vergonha de quem somos. Esse Deus começa a se manifestar como aceitação e não como juiz,
como companhia e não como castigo.
É o Deus que promove a plenitude de vida com a liberdade de cada ser humano para
escolher seu caminho e construir seu próprio projeto de vida. Deus que convida a comunidade
a respeitar, alentar e apoiar estes projetos sem julgamentos. Deus que se indigna diante da
opressão e da exclusão, que incita a lutar por justiça e pela dignidade de cada ser humano.
Deus que se traduz em compreensão, afirmação e amor compartilhados entre todos e todas.
Deus que nos convoca a abrir nossos olhos para descobri-lo nos outros e nas outras ao nosso
redor.

2.5.2.2 A comunidade e o compromisso com o mundo

A visão de dois mundos – um santo dentro da igreja e outro fora dela – tem sido
obstáculo para que as comunidades de fé se envolvam na melhoria da sociedade e na
transformação de atitudes que vão contra a vida. A crença de que a vida cristã deve estar
afastada dos processos que tem lugar na sociedade impede, em ocasiões, aportar desde a fé,
soluções aos conflitos do mundo de hoje. O silêncio das igrejas diante das injustiças
existentes, a sua ausência em lugares que reclamam nossa atenção e nosso apoio, a desatenção
a dificuldades que atravessam os seres humanos têm reduzido a mensagem cristã e feito
perder a credibilidade no papel da igreja como construtora do reino de Deus. Por essa razão, a
leitura popular da Bíblia permite fomentar o compromisso de cada crente com o mundo em
que vivemos. Busca que atuemos nas transformações sociais e também que sejamos agentes
ativos no diagnóstico, na crítica, na denúncia e na transformação das injustiças sociais. Dessa
forma, nos converteremos em geradores de soluções desde a perspectiva de Jesus de Nazaré.

46
2.5.2.3 A comunidade e a opção pelos excluídos

Indiscutivelmente a leitura popular da Bíblia deve levar a uma opção completa por
todos os excluídos deste mundo. O reconhecimento de um mundo desigual haverá de conduzir
a solidariedade a cada pessoa vítima de uma sociedade em que subsistem princípios
patriarcais, adultocêntricos, racistas, homofóbicos e hegemônicos. Cada excluído deve
encontrar dignidade nas ações da igreja, a qual deve por no meio cada pessoa que tem sofrido
por sua condição social, sua situação geográfica, seu nível cultural, sua cor da pele, seu
gênero, sua idade, sua identidade sexual etc. A comunidade de fé deve ser espaço de
reconhecimento, aceitação, cura e boas vindas para cada pessoa que existe dentro e fora das
diferentes congregações. A leitura popular da Bíblia nos ajuda a reconhecer nosso papel de
vitimadores ou vitimados neste processo, ao mesmo tempo em que estabelece novas maneiras
de vinculação entre as diferentes pessoas.

2.5.3 Síntese

A proposta de uma hermenêutica popular e feminista da Bíblia implica em certos


elementos fundamentais.
Em primeiro lugar, a leitura popular e feminista da Bíblia parte de uma eclesiologia
renovada, na qual o poder de interpretação não é exclusivo do clero, de padres ou pastores/as,
teólogos/as ou intelectuais, mas está também nas mãos da comunidade que se converte em
verdadeiro sujeito do processo. Devolve o livro sagrado ao povo que o escreveu em uma
dinâmica de reapropriação. Nesse sentido, procura superar o academicismo bíblico que limita
o labor exegético dos estudiosos ao âmbito das universidades, seminários ou instituições
especializadas.
Em segundo lugar, a leitura popular e feminista da Bíblia reclama uma mudança
metodológica em relação ao conhecimento que se gera não por transmissão vertical, mas a
partir da construção comunitária. O método da leitura popular e feminista da Bíblia,
independentemente das técnicas que se utilizem, é muito mais que um instrumental, se torna
também conteúdo. Enquanto caminho é portador de uma cosmovisão e uma intencionalidade
que incidem sobre esses conteúdos, mas em particular sobre as ações que se originam dela.
Em terceiro lugar, a leitura popular e feminista da Bíblia salienta a vida concreta como
horizonte hermenêutico, já que não se trata, em ultima instância, de aumentar a quantidade de

47
dados acerca da Bíblia, mas de comprometer-se responsavelmente na sociedade com a qual
vive, através da prática, somada a uma leitura constante e crítica da história local, nacional e
planetária.
Denomina-se leitura precisamente para diferenciar dos métodos exegéticos clássicos
(concentrados mais na compreensão da Bíblia, em si mesma) e, portanto, para salientar sua
intenção de relacionar o texto bíblico com a vida cotidiana. Em tal sentido, podemos dizer que
se trata de um tipo de hermenêutica desenvolvida desde o povo comprometido com as
transformações das estruturas do mundo no qual vive que recorre também aos aportes das
ciências bíblicas, com o fim de evitar interpretações ingênuas, pietistas ou fundamentalistas
que frequentemente consideram a Bíblia como um livro sem história.
O termo popular expressa, com acerto, a intencionalidade participativa e não elitista da
proposta, ainda que nem sempre seja apreendido em toda sua complexidade. Em numerosas
ocasiões temos escutado as pessoas identificaram a leitura popular como um exercício ameno,
diverso de técnicas de animação de grupos combinados com exegese. Uma espécie de
vulgarização ingênua dos métodos históricos críticos e das ciências bíblicas contemporâneas,
uma espécie de estudo bíblico sazonado com ingredientes lúdicos. Devemos insistir que o
conceito popular se refere aqui basicamente à busca de outras relações de poder, promotoras
de vínculos de horizontalidade e superadoras da relação sábio-ignorante, como a pretendida
monocultura do saber e do rigor científico.
E, finalmente, o termo feminista expressa o reconhecimento da mulher como sujeito
histórico e interpretativo que busca a superação de todas as espécies de dualismo que
marcaram a leitura e a interpretação da Bíblia. A hermenêutica feminista é uma hermenêutica
ética e política que se caracteriza como uma ética de contracorrente: da priorização do homem
como sexo masculino à igualdade entre homens e mulheres; da exclusão da diferença ou de
uma afirmação num esquema hierárquico à afirmação da diferença como fundamental a todos
os processos vitais.

48
III - LEITURA BÍBLICA POPULAR E FEMINISTA: UM RELATO DE
EXPERIÊNCIA

“Caminhante, não há caminho; o caminho se faz ao andar.”51

Cabe agora, em nossa abordagem, um terceiro aspecto: a questão prática. O último


capítulo deste trabalho volta-se para lançar algumas reflexões acerca de como se está fazendo
hermenêutica popular e feminista na prática. O que se pretende com o relato dessa experiência
é visibilizar uma maneira de „como? Onde? Para quê? E com quem?‟ se faz leitura popular e
feminista da Bíblia.
A apresentação da prática do Grupo Flor de Manacá dá a conhecer um processo
pedagógico/formativo de um grupo de mulheres que têm buscado desenvolver a leitura
popular e feminista da Bíblia. Na origem dessa experiência, estão mulheres que tomaram a
decisão de iniciar um estudo bíblico na perspectiva de aliar a isso uma reflexão sobre a
condição sócio-cultural e religiosa da mulher nordestina, ao mesmo tempo em que buscam a
sua própria vida e realidade.

3.1 A mulher nordestina: em busca de uma vida melhor

A mulher nordestina é mulher sempre em busca de uma vida melhor. A teóloga Ivone
Gebara, em seu livro A mobilidade da senzala feminina: mulheres nordestinas, vida melhor e
feminismo52, toma da obra Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre, romance que narra a
história da escravidão no Brasil, dois símbolos: a casa grande – espaço de dominação dos
senhores dos escravos, e a senzala – espaço dos escravos e escravas como inspiração para

51
MACHADO, Antonio. Disponível em: <http://ocanto.esenviseu.net/destaque/machado.htm>. Acesso em 12
set. 2010.
52
GEBARA, Ivone. A Mobilidade da Senzala Feminina: mulheres nordestinas. Vida melhor e feminismo.
São Paulo: Paulinas, 2000.
49
falar da existência de um novo tipo de senzala, marcada pela mobilidade, onde mulheres e
crianças pobres habitam. Ela faz uso dos símbolos da “senzala” e da “mobilidade” para
ilustrar, de maneira particular, a realidade e as experiências de mulheres nordestinas em busca
de uma vida melhor. Ela explica as metáforas:

A senzala aqui, embora seja um termo inspirado pela escravidão africana no


Brasil, é uma metáfora para expressar a prisão ou a prisão móvel que muitas
mulheres carregam. É a prisão imposta da condição humana acentuada pelos
mecanismos de uma sociedade construída sobre a injustiça e a exclusão. (...)
Mobilidade aqui é ter o “pé na estrada” para melhorar de vida. Mobilidade
em vista da sobrevivência humana no seu grau mais elementar. Mobilidade
para “salvar a pele”, para “não ser tratada como bicho desprezível.”53

Na leitura de Gebara, esse novo tipo de senzala é uma senzala psicológica introjetada,
que as escravas carregam dentro de si e projetam concretamente em espaços geográficos e
habitações concretas, onde são submetidas ao mesmo tipo de dominação. Nas histórias de
mulheres que ela ouviu na periferia da cidade de Camaragibe, em Pernambuco, observa que
as mulheres estão sempre migrando, estabelecendo um círculo de constante rompimento e
submissão. Foge de situações opressoras, no relacionamento com pais, maridos ou irmãos, ou
violentos, ou insensíveis, ou omissos, ou simplesmente entregues à vida desregrada de
cachaça e apatia. No novo lugar, experimentam um pequeno período de sensação de
liberdade. Entretanto, logo começam novos conflitos, envolvendo novos homens, sejam
familiares, primos, tios ou então um novo companheiro com as mesmas atitudes dominadoras.
Então, é preciso partir para recomeçar em outro lugar, e esse processo circular parece não ter
fim.
Os sonhos, nessa senzala que carregam onde forem, são pequenos, são sonhos de
sobrevivência. Subsistir, escapar de um destino histórico, escapar de uma dominação
masculina, em busca de uma vida melhor. Essa é uma realidade não só de mulheres pobres
das periferias das nossas cidades nordestinas, mas também de mulheres de classe média que
carregam também suas senzalas psicológicas, culturais e religiosas. A mulher nordestina,
apesar de reconhecidamente ser uma mulher forte e lutadora, também incorporou muito da
cultura de superioridade e dominação masculina como algo natural, uma espécie de “sina” ou
“lei social”. Força e fraqueza se misturam.
Como entender essa força e fraqueza na mulher nordestina? Gebara sugere o conceito
antropológico da mistura para buscar entender a vida e a realidade dessas mulheres. A mistura
53
GEBARA, 2000, p. 18-19.
50
é a complexidade de fatores e concepções não definidos sob a qual se move. Essa mistura está
presente na vida, no cotidiano dessas mulheres, na sua forma de viver e expressar sua fé, suas
crenças. Para Gebara, mistura é um conceito que expressa a complexidade da vida das
mulheres nordestinas:

Não se trata de um conceito abstrato ou de um ideal a partir do qual alguns


grupos eleitos definem-se, mas trata-se de uma palavra ou de um conceito
que tenta expressar a complexidade da vida. Ele é, de certa forma, a
mediação a partir da qual essas mulheres entendem ou não entendem a
própria vida.54

O machismo e outros traços da cultura nordestina dificultam a construção de uma vida


melhor para as mulheres. Traços como: a pobreza econômica que fragiliza as mulheres e as
tornam vulneráveis diante das dificuldades que a vida lhes impõe, mantendo-as ainda mais
suscetíveis aos processos de exploração e dominação; o analfabetismo que impera na região
nordeste, que não significa apenas não saber ler e escrever, mas a falta de estudos que
qualifiquem profissional e socialmente as mulheres, acentuando ainda mais a sua condição de
“pobreza” e seus sentimentos de inferioridade existencial e social. E ainda parte da cultura
religiosa predominante no nordeste, caracterizada pela ideia de um determinismo divino do
tipo “Deus quis assim”, mantenedor do modelo patriarcal, machista e opressor que atinge a
vida das mulheres no nordeste. O discurso religioso patriarcal de conformismo, abnegação e
submissão que atinge as classes populares também contribui para esse modelo de dominação e
opressão.
Mas, ao mesmo tempo em que a religião aparece como opressora e legitimadora da
estrutura machista da sociedade, também representa um caminho de segurança, esperança e
acolhimento para as mulheres em suas lutas, dores e agonias. Muitas mulheres buscam nas
igrejas e na religião a força para conviver ou superar os silêncios e as misérias sufocadas.
Misturada a toda esta realidade que em parte caracteriza a vida da mulher nordestina,
percebe-se cada vez mais um crescente senso de auto-estima, pois elas começam a questionar
a superioridade masculina e a reconhecer seu valor e suas capacidades. E mesmo sem fazer
muitas elaborações teóricas sobre feminismo, a maioria das mulheres começa a incorporar os
discursos feministas por meio de conversas e comportamentos concretos. As mulheres
nordestinas buscam cada vez mais igualdade de direitos: direito ao trabalho, à educação, à
saúde, à participação política, aos espaços eclesiásticos, ao prazer, ao lazer, enfim, o direito de

54
GEBARA, 2000, p. 91.
51
“ser mais” e não menos. Isso demonstra que a cultura da mulher nordestina é uma cultura em
movimento.
Diante desses aspectos culturais, nos perguntamos como a leitura da Bíblia na
perspectiva popular e feminista pode ajudar as mulheres nordestinas em busca de uma vida
melhor?

3.2 Grupo Flor de Manacá: processo de formação do grupo

O Grupo Flor de Manacá teve inicio no ano de 2006 na igreja batista do pinheiro, em
Maceió-AL, com um grupo de mulheres da própria igreja, que começou a se reunir com o
objetivo de ler a Bíblia a partir da realidade da mulher nordestina. O grupo surge provocado
por duas realidades: a primeira delas é a situação de vida de uma grande parte de mulheres
nordestinas que ainda sofrem com o peso cultural do discurso machista e violento perpetuado
por parte da cultura nordestina; a outra realidade que provocou o grupo diz respeito à forma
como o discurso bíblico e religioso é legitimador dessa cultura machista que foi e continua
sendo incorporado pela cultura nordestina. Muitos homens e principalmente mulheres vivem
debaixo do jugo das muitas leituras patriarcais, opressoras e violentas, que têm gerado
relações injustas, medo, dor e marcas profundas.
Flor de Manacá foi o nome decidido para o grupo e a revista que o grupo começou a
produzir reunindo os estudos e as experiências. A Flor de Manacá é o símbolo que expressa
força e fraqueza, luta e resistência, dor e alegria, mutação e beleza da mulher nordestina.

A Flor de Manacá é da Espécie: Tibouchina mutabilis, T. pulchra. Em outras


palavras poderíamos traduzir assim: Mutação e beleza! São características da
Flor de Manacá que originaram o nome científico da espécie. Por suas flores
mudarem de cor: mutabilis, e por sua rara beleza: pulchra (bela em latim).55

O grupo pretende desenvolver com as mulheres uma leitura bíblica que ajude na
desconstrução das leituras patriarcais aprendidas por meio de uma prática que estimule a
reflexão, o questionamento dos padrões culturais e bíblicos aprendidos, olhando para si
mesmo, para a realidade e para a Bíblia por uma ótica diferente, de tal forma que o grupo seja
um espaço onde cada mulher possa se posicionar como sujeito da leitura da Bíblia e da sua
própria história com uma nova consciência e uma nova atitude.

55
Revista Flor de Manacá. Maceió, Ano 1, n.1, abril 2008. p. 4.
52
Como as leituras conservadoras e patriarcais não são neutras, esta nova leitura também
não o é. Possui intenção de possibilitar a libertação da mulher das construções culturais e
religiosas que as oprimem e as mantêm em situação de “menos vida”, diminuindo sua imagem
e sua capacidade como ser humano. A leitura popular e feminista da Bíblia tem oferecido
recursos para que o grupo possa ler a Bíblia a partir de suas situações e contexto,
possibilitando que as mulheres tomem o lugar de sujeito interpretativo da leitura bíblica,
desenvolvendo uma consciência crítica e uma atitude política diante da Bíblia e da vida.
O Grupo Flor de Manacá busca caminho de libertação, de cura e de reconstrução que
traga vida melhor para mulheres nordestinas através da releitura da Bíblia. Nas comunidades
religiosas existem muito trabalho com grupos: grupos de estudos bíblicos, grupos de
comunhão e convivência, grupos de casais ou grupos familiares e muitos outros, dependendo
das características e particularidades da própria comunidade. O grupo Flor de Manacá se
formou dentro do contexto da Igreja Batista do Pinheiro como um grupo de mulheres com a
missão de estudar a Bíblia na perspectiva da mulher.
Lembrando a experiência dos grupos de autoconsciência56 na origem do movimento
feminista no Brasil, o grupo Flor de Manacá é um grupo formado só por mulheres que têm a
ideia de inter-relacionar as experiências de vida, inquietação e indagações com a leitura da
Bíblia e os conhecimentos feministas.
Maria José de Lima faz referência à importância desse tipo de formação dos grupos
feministas, no contexto da sociedade patriarcal, pois inclui a ideia de discutir o omitido,
pondo em evidência a discriminação. Além disso, fortalece a voz coletiva das mulheres,
rompendo o monopólio da palavra e o poder masculino, e alivia o medo da voz individual. 57

3.2.1 Princípios de grupo

A reflexão em grupo e em comunidade é parte fundamental do processo de estudo


bíblico na perspectiva popular e feminista. É a partir desse vínculo de união emocional, de
cooperação e confiança que vai sendo construída uma nova percepção da Bíblia e a
autoconsciência diante do mundo e da realidade.

56
Os grupos de autoconsciência feminista eram formados por mulheres interessadas em descobrir as raízes
sociais de seus problemas individuais, ou seja, aquelas responsáveis pela segregação e discriminação da mulher.
57
LIMA, Maria José de. Linha de Vida ou grupo de autoconsciência: uma reflexão sob a ótica feminista. In.
Como Trabalhar com Mulheres. Petrópolis: Vozes, 1988. p. 39.
53
Os princípios que foram definidos pelo grupo são princípios comuns a outros grupos
da igreja que favorecem a realização dos objetivos do grupo.

 Trata-se de um grupo de pessoas que coincidem em um lugar determinado


durante um período que tem limite de duração para cada sessão. O Grupo
Flor de Manacá se reúne quinzenalmente nas dependências da Igreja Batista
do Pinheiro durante cerca de duas horas a cada sessão.
 As pessoas integram voluntariamente o grupo. As pessoas vão à igreja porque
elas querem e porque encontram nela uma parte – ou muito – do que elas
buscam para suas vidas. Se em algum momento sentem que não há mais, se
retiram. A assistência no Grupo Flor de Manacá também funciona da mesma
forma. A participação está sujeita à motivação e à vontade das/os
participantes.
 O grupo é aberto. O grupo é aberto e, portanto, as pessoas podem entrar e
sair, ausentar-se de alguns encontros, e o grupo pode incorporar novos
integrantes ao processo quando este já está avançado. Esta situação supõe
desafios importantes para a vida do grupo, especialmente o de conservar a
motivação, modificar o espaço de um encontro a outro ou de uma atividade a
outra, a fim de manter a atenção e a unidade do grupo.
 O trabalho do grupo implica em uma comunicação face a face entre os
membros do grupo e, portanto, o número de integrantes deve facilitar este
tipo de comunicação. O Grupo Flor de Manacá tem, em média, 10 a 15
participantes em cada sessão.
 É importante que haja um sentido de pertença entre os membros. Que cada
integrante do grupo se sinta identificado com o espaço e o processo que
compartilha, assim como com as pessoas que fazem parte dele. Estas
desempenham papéis, funções que estão estreitamente relacionadas com
algum tipo de vínculo reconhecido pelo grupo. No Grupo Flor de Manacá
temos duas coordenadoras de estudos e as demais tarefas são sempre
partilhadas igualmente pelo grupo.
 Os membros do grupo decidem suas próprias normas e valores que assumem
como parte da vida do grupo. Estão em função do grupo e podem ser
modificados ao largo do processo.

54
 O próprio grupo define seus objetivos. Quando alcança suas metas, surgem
novas motivações. Este ciclo acontece e se repete uma ou mais vezes. O
Grupo Flor de Manacá definiu ampliar seus objetivos para além da
comunidade local e decidiu espalhar a semente dessa leitura da Bíblia para
outras comunidades e grupos. Para isso, iniciou a publicação de uma revista
que compartilhe os estudos e as experiências do grupo. Além disso,
começamos a realizar seminários e oficinas de leitura da Bíblia na
perspectiva popular e feminista com igrejas e em congressos onde somos
convidadas.

3.2.2 Quebrando barreiras

Nem sempre as mulheres que procuram o grupo têm consciência do tipo de leitura
que é proposto pelo grupo, por isso os primeiros encontros sempre são dedicados à quebra
de barreiras. A barreira quanto à aproximação das pessoas é a primeira delas, pois mesmo o
grupo sendo da igreja, da mesma comunidade de fé, muitas nunca se aproximaram mais
intimamente para convivência no mesmo grupo. Por isso, sempre iniciamos com a
aproximação das pessoas.
A outra barreira é quanto ao tipo de leitura e à metodologia utilizada pelo grupo.
Como a maioria vem de uma experiência de leituras conservadoras e patriarcais da Bíblia, o
grupo tem o cuidado de perguntar sobre sua maneira de se relacionar com a Bíblia. O que
sabe a respeito da Bíblia? O que gostaria de saber? O que sente a respeito do feminismo ou
estudos de gênero, estudo de mulheres? O que quer ou precisa saber? Essas perguntas
ajudam a fazer um diagnóstico inicial do grupo e conhecer algumas expectativas, ao mesmo
tempo em que são apresentados os objetivos e a metodologia do grupo. Algumas luzes sobre
os pressupostos e a metodologia são colocadas, mas é no processo que o grupo vai se
apropriando dos instrumentais e da metodologia utilizada.
Algumas mulheres, ao conhecerem a proposta do grupo, percebem que não é bem o
que esperavam; outras, mesmo não sendo aquilo que esperavam, continuam para se inteirar
mais e acabam ficando no grupo e se identificando com a proposta; enquanto outras parecem
ter encontrado o que sempre procuravam.
Alguns depoimentos de mulheres depois de conhecerem a proposta do grupo:

55
“Na época de faculdade participei de um grupo que estudava gênero, em que
era discutida a condição da mulher, através de leituras e pesquisas; vejo
nesse grupo uma oportunidade de continuar esse estudo, através da leitura
bíblica, e gosto muito de ser mulher.”

“Gosto muito de ser mulher e de tudo que me ajude a ser melhor como
mulher.”

“Gosto de participar de um grupo de mulheres e, como mulher, nunca me


senti excluída. Me realizo como mulher e mãe.”
“Gosto de desafios e em casa nunca me encaixei nos moldes tradicionais.
Participar deste grupo só vem acrescentar.”
“Estou aqui porque fui escolhida, era um sonho que vinha acalentando há
muito e que agora está sendo realizado. Adoro ser mulher!”

“Gosto muito de estudar e de ler, sempre tive um sonho que era ler a Bíblia
através de um estudo e agora encontrei esta oportunidade. Venho de uma
família patriarcal em que as mulheres são muito fortes e também gosto de ser
mulher.”

“Fiquei muito feliz, pois sempre quis participar de um grupo sobre o tema,
cujo objetivo principal é se apossar da palavra de Deus sobre a ótica
feminina.”

3.2.3 Temas e textos estudados pelo grupo

Na comunidade de fé, geralmente a aproximação da Bíblia é motivada pela


curiosidade sobre o testemunho do povo bíblico e o que traria como ensino para vida hoje.
Nessa leitura, espera-se encontrar alguma mensagem que ajude a enfrentar os desafios do
presente A tradição sobre o valor das escrituras faz com que as pessoas adentrem aos textos
com sentimento de confiança.
No caso do Grupo Flor de Manacá, o interesse principal que faz com que o grupo
seja procurado inicialmente é conhecer o testemunho bíblico útil para vida das mulheres.
Isso já supõe um tipo leitura e de temas que se relacionam com as questões da mulher.

56
A escolha dos temas e textos se dá num processo democrático e aberto. A
coordenação traz sugestões e ouve sugestões do grupo e ao final chega-se aos temas e textos
a serem estudados. Algumas vezes a sequência do programa de estudos é interrompida para
se tratar temas ou textos que são trazidos diante de alguma demanda eventual. O primeiro
texto estudado pelo grupo foi Genesis, de 1-3, por escolha do próprio grupo, por entender
que as interpretações patriarcais desse texto continuam sendo problemática à vida das
mulheres. O “pecado de Eva” continua tornando a mulher culpada de todo o mal da
humanidade. É definida uma agenda de estudos para cada ano. Na tabela abaixo, estão
incluídos os temas e os textos estudados pelo grupo.

Ano Temas e Textos Estudados

Eva e o pecado original – uma releitura de Gn. 1-3


Matriarcas na formação do povo: Um estudo a partir das personagens:
Sara e Hagar: Matriarcas do deserto (Gn. 24 a 28)
2006 Raquel e Lia: Parceria ou rivalidade Gn. 29 -- 35
Tamar: Corpo e resistência (Gn. 38. 1-38)

Mulheres da história da libertação – Êxodo – Uma releitura da história da


libertação enfocando a questão de gênero e de raça.
Sifrá e Puá: Parteiras e Parceiras na história de libertação: Êx. 1.13-20
2007 As mães subversivas de Moisés: Êx. 2.1-10
Miriam: celebrando a libertação: Êx. 15.20- 21
A mulher cuxita: Num. 12.1

Construindo novos olhares: Mulheres no livro de Juízes


Como o texto as olha como nós olhamos?
As aprovadas pelo texto:
Acsa – Jz 1. 12-15 – jovem casada que tem nome, opinião e posição
Débora – Jz 4 – Juíza, profetiza em Israel – liderou o povo na vitória
contra o povo inimigo
Jael - Jz 4 – Deu a vitória a Israel matando o inimigo dentro de sua casa
2008
A mulher de Manuá – Jz 13 - mãe de Sansão
Filha de Jefté – filha virgem de Jefté que foi dada em sacrifício de acordo com
uma promessa do seu pai, feita depois de uma vitória em uma guerra

57
As desaprovadas pelo texto:
Dalila – Jz 16 – Seduziu Sansão e colaborou com seu povo para derrotá-lo
A concubina do levita – Jz 19 – deixou o levita e voltou para casa do pai. Foi
entregue para ser estuprada e morta

Mulher: vida, cura e ressurreições: Narrativas nos Evangelhos


2009
A mulher encurvada – Lucas 13.10-17
Maria Madalena e outras Marias – Lucas 7.37-38; 8.2; 8.3-9 e João 11.1-2
Casa de Betânia: casa de cuidado e de cura: João 12.1-11

3.2.4 A metodologia de estudo do texto bíblico

Uma vez que vimos alguns elementos sobre o contexto e as características do


trabalho do grupo, é importante considerar certos pressupostos sobre a maneira que
desenvolvemos o estudo bíblico. Na abordagem do texto são seguidos geralmente quatro
passos:
Analise do contexto – O grupo observa criticamente a realidade, que pode aparecer
de forma mais ou menos ampla. Geralmente sempre focamos a realidade da mulher no
contexto da Igreja, da comunidade e do nordeste, podendo ampliar esse horizonte
dependendo do tema do estudo.
Analise do texto - Implica em aprofundar determinadas perícopes, livros ou sessões
das Escrituras que estão sendo estudados, com o fim de descobrir a reserva e a acumulação
de sentido ou descobrir o omitido. Isso acontece desde o ato de seleção do texto (que jamais
é uma ação neutra) até a leitura detalhada e respeitosa dos textos reais e sua comparação
com as versões bíblicas guardadas na memória e na prática da comunidade, as quais, em
muitas ocasiões, têm escassas relações com o texto escrito. Implica também no
desvelamento do texto escrito enquanto resultado de um longo e intricado processo histórico
de reflexão, aprovação, redação, emendas, releituras e celebração, que tampouco foi
desinteressado e ingênuo. Os extratos de analises dependerão das ferramentas e recursos
com os quais se contam (manejo de idiomas bíblicos originários, conhecimentos de
elementos da crítica literária e da redação, das formas e da tradição).

58
Analise do pré-texto – Pergunta pela situação original que pode ter dado origem ao
texto que se aborda, a sua provável intencionalidade, seu marco geográfico, social, histórico,
cultural, religioso, político, econômico, e ainda as tensões e interesses evidentes ou ocultos.
Temos experimentado com pessoas das comunidades a carência de bibliografia de qualidade
que ajude a iluminar este passo. Aprendemos nessas situações a usar o seguinte princípio
simples: “a Bíblia explica a Bíblia”, que consiste em trabalhar com textos bíblicos que
podem esclarecer aquele que desejamos investigar.
Retorno ao contexto vital atual – Trata-se da ação que relaciona os elementos
adquiridos nos passos anteriores com a vida real e concreta da pessoa e da comunidade de
fé, que pode incluir uma infinidade de formas, como: orações, celebrações litúrgicas, ações
mais amplas para comunidade.
É importante salientar que as quatro etapas mencionadas não são necessariamente
consecutivas. Qualquer uma delas pode começar primeiro ou inclusive sobrepor-se em uma
circularidade hermenêutica criativa.

3.3 Exemplo de um estudo: João 8. 1-12

3.3.1 Objetivo do estudo

Os objetivos estabelecidos para este estudo foram: compreender que a violência é um


produto da nossa cultura e que um dos seus alicerces é a religião e as interpretações bíblicas
legitimadoras da violência, provocar novas maneiras de enxergar o texto bíblico e incentivar
uma prática de vida sem violência a partir uma releitura da Bíblia.

3.3.2 Como escolhemos o texto?

Este é um texto que o grupo tem trabalhado em oficinas e seminários com diferentes
grupos do interior do Estado e na capital. É um texto que tem uma narrativa muito conhecida
e inclusive possui uma expressão que se tornou popular: “Quem não tiver pecado, atire a
primeira pedra!”. É um texto que por ser conhecido, tem muita reserva de sentido e
interpretação acumulada. Além disso, é um texto que trata da questão da violência contra a
mulher, legitimada pela sociedade e pela lei religiosa da época.

59
Sabe-se que a violência contra a mulher tem caráter universal, mas o destaque no
contexto da realidade da mulher nordestina é o fato dessa violência ser legitimada
culturalmente. A violência é ainda encarada como natural em função da ideologia do
patriarcado arraigado na cultura nordestina. O homem se sente autorizado pela cultura a
exercer impunemente o poder e a brutalidade sobre a mulher. O corpo da mulher ainda é o
lugar onde o homem realiza seus desejos e poderes, justificado pela cultura do “cabra-
macho” nordestino.
Outra razão pela qual escolhemos esse texto é que o grupo está preparando um
trabalho, que será publicado na próxima revista Flor de Manacá, sobre a questão da
violência contra a mulher, buscando, nas releituras bíblicas, alternativas e esperanças para
uma vida melhor e sem violência para as mulheres nordestinas. Com este estudo, iniciamos
um trabalho que terá continuidade com a ampliação do tema da violência.

3.3.3 Onde e com quem foi realizado o estudo?

Este estudo foi realizado com o Grupo Flor de Manacá em Maceió e depois foi
realizado em duas assessorias que o grupo realizou em duas comunidades batistas no sertão
de Alagoas: Palestina, que tem cerca de 5.000 habitantes, e Jacaré dos Homens, que tem
cerca de 6.500 habitantes. Para os ambientes de estudos foram preparadas salas com
cadeiras, painel com o tema do estudo e recortes de notícias de jornal sobre violência contra
a mulher. No centro da sala, algumas pequenas pedras.

3.3.4 Dinâmica do encontro

O estudo foi iniciado com uma oração e cada participante foi convidada a pegar uma
das pedras no centro da sala. Em atitude de reflexão foi feita a leitura do texto de João 8.1-
12 e em seguinte reflexão bíblica:
- Nos coloquemos na situação dessa mulher que ia ser apedrejada. Pensemos em seu
tormento, em seus medos e sentimentos. Se você fosse essa mulher, como se sentiria?
- Nos coloquemos também no lugar dos que levaram a mulher para apedrejá-la, os escribas e
os fariseus. Tentemos ver essas pessoas sem julgá-las, desde nossos critérios até as leis que
regiam a sociedade.
- Pensemos também em alguém que não aparece no texto, o homem com o qual a mulher
cometeu adultério. Perguntemos por que não está também em meio do grupo para ser
60
julgado. Pensemos em possibilidades de lugares e situações em que ele poderia estar no
momento em que a mulher estava sendo condenada a morrer apedrejada.
- Pensemos também em Jesus. Por um lado, ele está preso pelas leis que são suas leis como
judeu. Os escribas e fariseus o chamam de “Mestre” e ele está ensinando no templo.
Podemos supor que não aceitava as leis que tratava essa mulher que está diante dele como
“uma coisa” sem sentimento nem direito à vida. Pensemos em como se sentiria Jesus sendo
também ele parte dessa sociedade? Por que será que se pôs a escrever na terra?
- Voltemos a pensar agora nos que acusavam a mulher com pedras nas mãos prontas para
atirar. Que haveriam feito para chegar a deixar as pedras e empreender o caminho de
regresso?
- Voltemos a pensar em Jesus diante da saída dos acusadores, reconhecendo o triunfo de sua
atitude. Imagine a alegria do encontro de Jesus com a mulher agora como um ser humano,
que até aquele momento era somente um objeto de acusação.
- Dirijamos agora o nosso olhar para aquela mulher sozinha com Jesus. Seguira sentindo
medo ou vergonha? Como a imaginamos no caminho de volta pra casa?

3.3.5 Os passos do estudo do texto

Primeiro passo: análise do contexto.

Houve variação entre a proposta de análise do contexto realizada com o grupo em


Maceió e a que foi realizada com os grupos no sertão. No grupo em Maceió trabalhamos
com as seguintes perguntas:

1. O texto mostra uma sociedade injusta e violenta contra a mulher?


2. Como analisa a questão da violência contra a mulher em nossa sociedade?
3. Conhecemos algo sobre as leis atuais? Protegem ou discriminam a mulher?
4. Como nos sentimos em relação a essas leis que regem a nossa sociedade?
5. Como analisamos em nossa sociedade o adultério da mulher em relação ao adultério
do homem?

61
Com os grupos no sertão fizemos a leitura do cordel de Zé da Luz Cunfissão de
cabôco58, que fala de um caboclo que, por não saber ler, acaba matando sua mulher na
suspeita de que ela o estivesse traindo. Depois descobre, através de uma carta que ela tinha
escrito, que a mulher era inocente. Depois da leitura do cordel, o grupo foi convidado a
conversar sobre o cordel e a realidade em relação aos casos de violência contra mulher.

1. Vocês acham que ainda acontecem muitos casos como esse?


2. Como as mulheres são tratadas em caso de adultério? E os homens?
3. Como as mulheres se protegem da violência? A que ou a quem procuram para pedir
ajuda quando são agredidas?

Segundo passo: análise do texto e do pré-texto.

Neste estudo, juntamos os dois passos. Houve variação também na análise do texto
com os diferentes grupos. No grupo de Maceió foram discutidas as perguntas em pequenos
grupos, depois de uma leitura detalhada do texto.

1- O que estão usando para acusar e condenar a mulher?


2- Por que só trazem diante de Jesus a mulher e não o homem encontrado com ela?
3- O que dizia a lei sobre o caso de adultério? O que diz essa lei sobre os homens e
sobre as mulheres?
4- Em que caso na lei judaica a mulher era condenada a apedrejamento?

Com os grupos no sertão, pela dificuldade de leitura, privilegiamos a oralidade e a


dramatização. Três pequenos grupos prepararam uma dramatização criativa do texto depois
de conversarmos sobre as seguintes perguntas:

1- Quem já ouviu a expressão “quem não tem pecado atire a primeira pedra”?
2- De onde vem essa expressão?
3- Vocês conhecem a história de onde foi tomada essa expressão?
4- Vamos contar a história como conhecemos.
5- Agora vou ler como diz na Bíblia
58
Cordel de Zé da Luz. Disponível em:< http//textos-legais,nireblog.com/post/2007/o1/05/confissão-de-
caboclo>. Acesso em 26 ago. 2010
62
3.3.6 Subsídios usados para análise do texto

Neste caso, em todos os estudos, foi usado apenas o princípio simples de “a Bíblia
explica a Bíblia”, mediante o fato de se trabalhar com textos bíblicos que podem esclarecer
aquele que desejamos investigar. Trabalhamos com texto Deuteronômio 22.22-29 para
conhecer como eram as leis que tratavam o caso de adultério no AT.
Os escribas e fariseus estão usando a lei de Moisés para acusar a mulher. O que diz a
lei sobre o adultério? Vejamos o que diz a lei. O texto apresenta algumas situações
específicas concernentes ao adultério. A primeira delas relaciona-se com uma mulher cujas
núpcias já haviam sido contraídas (22.22). A situação da mulher é descrita como “tendo
marido”, ou seja, é a mulher legitimamente casada que vive com o marido e é surpreendida
em flagrante delito do ato libidinoso, de forma que ambos (mulher e o ofensor) recebiam a
pena capital. A segunda trata-se de uma virgem, desposada, isto é, que muito embora não
tenha entrado em união física com seu marido por meio do laço do casamento, já estava
comprometida com seu noivo e ajustadas todas as formalidades do casamento. (22.23). Uma
vez feita a aliança entre as famílias e pago o dote, estava casada de forma contratual.
Portanto, seguindo os padrões culturais hebraicos, a donzela comprometida em casamento
com seu noivo, caso mantivesse relação sexual com outro homem, seria culpada de adultério
e, consequentemente, condenada à morte com o ofensor do marido.
Em casos de violação de uma virgem, a lei distingue duas situações: a primeira delas
trata do caso de uma jovem seduzida na cidade (22. 24-28). Neste caso, a lei obriga a mulher
a pedir auxilio, caso viva na cidade, senão presume-se cumplicidade com o violentador.
Levando em conta que as cidades eram pequenas, com ruas muito estreitas e casas
desordenadas, qualquer grito poderia ser facilmente ouvido. E se a mulher não pode gritar?
A lei era implacável! Esta lei encerra certa suspeita ainda vigente de que toda mulher
violentada consente de alguma forma a violação, salvo que explicitamente demonstre o
contrário.
A segunda situação seria quando a sedução ocorria fora dos limítrofes da cidade, isto
é, no campo (22. 25-29). Neste caso, quando a violação é no campo, presume-se que a
mulher é inocente. Mas, observe-se que o próprio fato da violação não é um delito tão grave,
mas sua possibilidade de adultério. Isso é mais bem observado quando a mulher violentada
não está comprometida (22. 28 e 29).

63
Voltando ao texto de João 8.1-12

É fundamental descobrir nestas normas e nesta legislação o quanto há de resquícios de


tradições antigas sociais e tabus, geralmente em prejuízo da mulher, e quanto possa haver de
autêntica revelação divina. Toda esta lei ainda estava em vigência na época de Jesus, como
consta no relato de João 8.1-11. Os escribas e fariseus parecem aludir ao sistema legal
descrito acima. Confrontam Jesus quando levam diante dele a mulher surpreendida em
adultério. Em que caso da lei ela está incluída? Mulher casada, ou apenas prometida em
casamento? Foi surpreendida no campo ou na cidade? Gritou ou não gritou? Chamam atenção
três irregularidades na atitude dos escribas e dos fariseus na narrativa:

1. O texto da lei é citado pelos escribas e fariseus de forma incompleta. A lei não trata
apenas da mulher. A lei inclui, em alguns casos, o apedrejamento dos dois.
2. A ausência física e discursiva do companheiro de adultério. Não se faz referência
alguma a ele.
3. Ausência de testemunhas como prescreve Dt. 17.6.

Todo episódio parece girar ao redor de Jesus e dos acusadores. A mulher, como um
objeto, é colocada em meio da multidão e exposta à vergonha pública. Embora fisicamente
esteja no centro do grupo, o interesse central dos seus delatores não seria ela, mas Jesus. O
centro do texto parece está no verso seis: “Isso diziam eles, tentando-o, para que tivessem de
que o acusar. Mas Jesus, inclinando-se, escrevia com o dedo na terra” (Jo 8.6). O narrador diz
que tudo é uma trama para pôr Jesus a prova. A estratégia dos acusadores de Jesus é a
utilização da lei, do que “está escrito”, para acusar e condenar Jesus e a mulher.
Não foi essa a única vez que, no evangelho de João, fez-se referências à tentativa de
apedrejamento, a pena capital dos judeus: vejamos outras: Jo 8.1-9; 10.31-33; 11.8 e 12.10.
Observe que são sempre as lideranças do judaísmo os maiores adversários e perseguidores de
Jesus. Parece que Jesus ameaça o sistema religioso e legal dos judeus, por isso sofre
perseguição e violência. Para os judeus, a lei era o caminho, a verdade e a vida. Mas no
Evangelho de João, Jesus de Nazaré é quem é o caminho, a verdade e a vida (Jo 8.12; 9.5;
14.6; 8.12).

64
Terceiro passo: retorno ao contexto atual.

Vivemos em uma sociedade patriarcal e violenta. Ainda as mulheres são vítimas das
“leis machistas” que imperam em nossa cultura. Em nome do que diz a Bíblia, muitas pessoas
desenvolvem atitudes violentas e condenatórias. Que experiências temos em relação à Bíblia?
Ela é mais usada para acusar e condenar ou para libertar e perdoar? Tomando outra vez as
pedras nas mãos, vamos refletir sobre que novos olhares há sobre esse texto. Que atitudes
novas podem desenvolver depois deste estudo?
Vamos refletir sobre a pedra e a Bíblia: as duas podem ser usadas para destruir ou
construir. Como aquela multidão tinha escolhas, nós também temos. O que fazer com a
Bíblia? Usá-la para destruir ou construir? Vamos também refletir sobre o desafio de
construir e reconstruir novas relações sem violência. A mesma Bíblia, tão usada às vezes
para acusar, julgar e destruir, pode ser usada para libertar, curar, restaurar e transformar. A
Bíblia pode também ser instrumento para construir novas relações de justiça e paz. De mãos
dadas, com uma canção e uma oração, encerramos o nosso estudo.

3.3.6 Aspectos e temas discutidos

O tema principal do estudo era a questão da violência enquanto produto da cultura e da


religião, mas outros aspectos e temas foram se destacando durante o estudo: 1) As leis do
Antigo Testamento em relação às mulheres, 2) A questão do adultério na cultura nordestina.
Como tratam os homens e como tratam as mulheres? 3) As experiências de dor e de medo das
mulheres que cometem algum erro ou desobedecem alguma norma ou padrão religioso ou
cultural e 4) Experiências de leituras e interpretação da Bíblia que geraram medo e violência.

3.3.7 Principais resultados

Espera-se que o trabalho do grupo provoque transformações sociais, comunitárias e


pessoais, principalmente quanto à maneira de ler e interpretar a Bíblia. Através da experiência
com o grupo temos observado que as mulheres foram se posicionando como sujeitos de sua
própria leitura. Durante o estudo, elas falam, participam, saem do silêncio. Começam também
a ter mais liberdade de fazer perguntas sobre o texto sem medo, exercendo o seu direito de
suspeitar, imaginar, criar.

65
Observamos que os conflitos que vão surgindo entre as interpretações e os conceitos
aprendidos e a leitura atual que está sendo feita geram tensão e até resistências, mas é nesse
conflito que acontece o crescimento individual e o do grupo. São percebidas também, através
das falas, novas buscas, inquietações e percepções que vão surgindo. As mulheres tomam
consciência de realidades que antes não eram percebidas e sempre dizem: “agora percebo as
coisas de outro jeito”. E tudo isso acontece em torno do estudo da Bíblia.

3.3.8 Concluindo

Falar como se faz é mais difícil do que fazer. Falar sobre hermenêutica popular e
feminista da Bíblia é um processo que se requer dizer como se faz, fazendo. Essa experiência
é apenas um jeito, um caminho. Não é o único, nem o melhor e nem definitivo. Na
experiência de cinco anos do Grupo Flor de Manacá temos feito sempre novas descobertas e
desafios e, sobretudo, continuamos sempre aprendendo e desaprendendo. Depois de termos
apresentado alguns dos elementos que conformam nosso trabalho bíblico em nossa
comunidade como espaço formativo, é possível distinguir algumas chaves importantes e
pressupostos mais visíveis em nossa metodologia.
O grupo como sujeito da leitura popular e feminista da Bíblia - O grupo constitui uma
preocupação constante para o nosso trabalho. Por essa razão, foi indispensável abordar
algumas características do grupo. É nesse espaço vivo e dinâmico do grupo que é possível
encontrar a levedura que faz a massa do conhecimento e do espírito.
A relação Bíblia e vida – Essa relação constitui ponto importante para lograrmos
nossos objetivos. Para isso, o instrumental da Leitura popular da Bíblia é fundamental. Neste
sentido, o texto bíblico torna-se a mediação para a revelação de nós mesmas e de nossa
realidade. Não vamos ao texto pretendendo absolutizar uma interpretação, como se fosse a
única e a última possibilidade. Compreender o texto é expor-se a ele para que possamos
compreendê-lo de novo e nos compreender de novo. Dessa forma, a leitura que fazemos da
Bíblia é uma maneira de ser, de relacionar-se e de compreender a vida.
A politicidade da leitura da Bíblia- A Hermenêutica popular e feminista não é apenas
um esforço isolado para se ler a Bíblia de outro jeito, mas é uma hermenêutica política que
toca as bases de sustentação das estruturas sociais e religiosas legitimadoras de injustiça. Por
isso, a leitura que o grupo faz da Bíblia se define politicamente como feminista.

66
Uma leitura regionalista - A leitura da Bíblia que engloba os aspectos culturais
reconhece que a forma de ser e de viver é caracterizada não apenas pela realidade sexual, de
ser homem ou mulher de forma universalista. A nossa realidade cultural e regional influencia
na maneira que lemos e interpretamos a Bíblia e a vida. Por isso a importância de incluir a
nossa identidade regional na leitura que fazemos da Bíblia, como uma maneira de
compreender o texto compreendendo a existência das mulheres nordestinas, suas esperanças,
seus gritos de dor, sua cumplicidade com o mal do mundo e sua maneira de buscar uma vida
melhor.

67
CONCLUSÃO

Desde o início, o movimento feminista propôs a organização de grupos de reflexão e


conscientização para enfrentar as violências perpetradas contra as mulheres. Estes grupos se
tornaram espaços de discussão nos quais as mulheres questionavam aspectos da ideologia
patriarcal invisibilizada pela cultura. Nos grupos de leitura feminista da Bíblia, busca-se da
mesma forma uma re-conceituação das relações de poder quanto a sexo/gênero. A leitura da
Bíblia na perspectiva popular e feminista torna-se um elemento importante no projeto político
de uma sociedade em que sexo/gênero não sirvam mais de base de opressão/dominação. Neste
sentido, os grupos tornam-se utopicamente uma antecipação do que se pretende para toda a
sociedade. Nos grupos, ao se colocar no mesmo plano, com igual legitimidade, o saber
pessoal, as experiências vividas pelas mulheres e seu cotidiano e o saber acadêmico, estamos
rompendo com a classificação de saberes e o poder é democratizado, estimulando a fala
daquelas que foram silenciadas por não acreditarem que seus saberes podem ter alguma
importância ou sentido.
Nos grupos de leitura popular e feminista da Bíblia, as vidas e as histórias que, na
maioria das vezes, são tão comuns e banais e não merecem ser contadas constituem o tecido
sob o qual costuramos nossas leituras da Bíblia e da realidade. Assim como a vida, os textos
bíblicos são também resultado de muitas histórias cotidianas marcadas por mecanismos de
dominação e também por projetos e resistência, que podem ser objeto do sistema para
sustentar e manter as estruturas de poder ou podem ser lugar de obstinada resistência e
esperança. Uma hermenêutica popular e feminista que articula toda essa realidade e as
relações em sua aproximação do texto e das pessoas em suas realidades, com sua
subjetividade, história, cultura e particularidade, descobre que toda a vivência cotidiana lê,
interroga e interpreta os textos.
Dentro de o todo processo de leitura popular e feminista da Bíblia vivenciado com o
grupo Flor de Manacá tivemos produções, falhas e acertos, mas destacaria dois pontos que

68
foram mais recompensadores neste processo: o primeiro foi que, através da pedagogia e da
metodologia da leitura popular e feminista da Bíblia, ganharam espaço no grupo novos
sujeitos. A mulher nordestina, sujeito relegado, entra de forma pungente na leitura e
interpretação da Bíblia. É um desafio aos sujeitos tradicionais que se consideram “os
sujeitos”, que nos enganaram fazendo-nos crer que somos inferiores como mulheres, pobres,
negras ou nordestinas, pessoas com pouca educação formal ou porque temos pouco poder
econômico.
Este trabalho usa uma metodologia que parte das pessoas, de suas histórias, suas
crenças, seus valores, enfim, sua vida nos aspectos mais comuns. Não somos leitoras e
leitores imparciais: somos pessoas com corpos, cor, sexo e idade. Corpo que trabalha, que
sofre, que se alegra. Quando nos aproximarmos do texto bíblico a partir de uma hermenêutica
popular e feminista fazemos essa aproximação com toda a nossa vida, os trabalhos
domésticos, o cuidado dos filhos e filhas, as preocupações com a casa e a alimentação, a
saúde, a sobrevivência, o cansaço, a rotina, a sexualidade, os sonhos de uma vida mais
humana de amor e paixão, de alegria. Enfim, trazemos para a nossa leitura da Bíblia a nossa
cor, o nosso cheiro, o nosso jeito de ser e de viver.
O outro ponto que destaco como mais recompensador deste trabalho foi o de perceber
a sensibilidade libertadora da comunidade que aceitou o caminho para juntos e juntas
aprendermos a trabalhar, propor, discutir, lutar e, muitas vezes, sofrer. Respondendo a
situação de uma cultura de violência, tantas vezes justificada pela Bíblia e a religião, a
comunidade acolheu o projeto de uma nova proposta de estudo em que um processo de
conscientização, de visualização e de conhecer essa realidade conduz a uma transformação e
uma mudança para uma vida melhor para as mulheres nordestinas. A Bíblia e a comunidade
transformam-se, assim, em resgatadoras da cultura nordestina, buscando os sinais e os
projetos de vida e humanidade presentes na Bíblia e na vida. Essa mistura de vida,
comunidade e leitura da Bíblia pode ser muito transformadora.

69
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