Hermeneutica Bíblica Feminista - Odja Dissertação
Hermeneutica Bíblica Feminista - Odja Dissertação
Hermeneutica Bíblica Feminista - Odja Dissertação
São Leopoldo
2010
ODJA BARROS SANTOS
São Leopoldo
2010
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
RESUMO.................................................................................................................................. 13
ABSTRACT ............................................................................................................................. 14
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 11
CONCLUSÃO .......................................................................................................................... 68
REFERÊNCIAS ....................................................................................................................... 70
RESUMO
The main goal of this dissertation is to consider the pedagogical, methodological and
hermeneutical implications of the reading of the Bible, in a popular and feminist perspective.
In the first two chapters are presented some implications involved in this reading. Concerning
the pedagogical implications we came back to some ideas on liberating education of Paulo
Freire‟s work Pedagogy of the oppressed. Concerning the methodological implications we
highlighted in the popular reading of the Bible as a reference for true popular Bible study
process, starting from a liberating and empowering pedagogy. Concerning the hermeneutical
implications, it was proposed a dialogue with the critical feminist liberation hermeneutics,
developed by Elisabeth S. Fiorenza, because of her political and ethical commitment with
women while historical subjects.
In the third chapter are presented a report of the Flor de Manacá group experience, and
the reflection conducted by that group on the text of the Gospel of John 8.1-12. It aimed not
only to show the popular methodology and feminist reading of the Bible, but also the whole
process of the group as a subject of the reading of the Bible in the context of Brazilian
Northeastern culture. This experience and research reveal the importance of the groups and of
the community in a process of a new pedagogy for biblical studies, committed to a reading of
the Bible that is liberating and empowering and, at the same time, sensible to the cultural
context in which it is inserted.
INTRODUÇÃO
A escolha do tema deste trabalho se deu primeiro pelo próprio caráter do curso de
mestrado profissionalizante, que tem por objetivo proporcionar aperfeiçoamento na reflexão
da prática teológica em seus campos de atuação profissional e ministerial. Sou pastora batista
e o tema da hermenêutica bíblica popular e feminista na perspectiva da mulher nordestina
reúne as questões às quais tenho me dedicado mais especificamente nos últimos anos: a
experiência como pastora, diretamente responsável pelo ensino bíblico na Igreja Batista do
Pinheiro há dezessete anos, a militância com a leitura popular da Bíblia como assessora do
CEBI e o meu envolvimento com a leitura bíblica feminista, que tem se tornado ênfase em
minha formação e atuação como assessora bíblica popular. Este é o contexto onde situo as
reflexões propostas neste trabalho.
Acredito que a Comunidade é espaço privilegiado para fomentar uma proposta de
leitura da Bíblia numa perspectiva libertadora e conscientizadora. Por isso, proponho neste
trabalho o resgate de princípios pedagógicos, metodológicos e hermenêuticos libertadores
como caminho possível para que se desenvolvam no espaço comunitário grupos de leitura da
Bíblia, a partir de uma perspectiva popular e feminista, que privilegie a mulher como sujeito
interpretativo, favorecendo uma leitura crítica, sensível e política da Bíblia e da sua realidade.
Por isso estabeleci como objetivo geral deste trabalho fazer uma reflexão sobre uma
proposta de hermenêutica popular e feminista a partir da experiência do grupo de mulheres da
igreja batista onde sou pastora, perguntando pelo modo de ler a Bíblia dessas mulheres
nordestinas, suas especificidades e peculiaridade contextuais.
Os dois primeiros capítulos se dedicam às implicações envolvidas no processo dessa
leitura. Nas implicações pedagógicas, resgato algumas das ideias de Paulo Freire como
caminho para um modelo educativo diferente dos modelos usuais em nossas igrejas, nos quais
a pessoa que ensina desempenha papel fundamental dentro de um processo de mera
transmissão de conhecimento. A sociedade e a Igreja em constante mudança conclamam a
novos desafios e exigem uma pedagogia fundada em uma nova consciência, que seja mais
humanizadora e mais includente das questões socioeconômicas, culturais, ecológicas e
espirituais, e os estudos bíblicos devem refletir essa nova pedagogia, capaz de criar uma nova
sociedade. Tal perspectiva deve influenciar todos os processos educativos e formativos,
inclusive os processos de formação bíblica das nossas igrejas.
Nas implicações metodológicas, busquei a inspiração na prática da leitura popular da
Bíblia por identificá-la como verdadeiro processo de educação popular, que parte de uma
pedagogia libertadora e transformadora. Uma leitura bíblica a partir do popular seria o
caminho para fazer de nossas comunidades espaços de crescimento, em que o grupo deve
realizar a tarefa de desvelamento da sua realidade e dos textos bíblicos estudados. E,
finalmente, nas implicações hermenêuticas, buscamos o diálogo com a hermenêutica crítica
feminista de libertação, pelo seu compromisso teológico, ético e político com a mulher
enquanto sujeito histórico e por ter sido uma hermenêutica construída a partir de um modelo
pedagógico-metodológico democrático, que torna a pessoa participante e ativa tanto da
interpretação bíblica como nos processos e lutas para transformar as estruturas e as relações
de poder na sociedade.
Como implicação prática da reflexão, proponho, no terceiro capítulo, um relato de
experiência do grupo Flor de Manacá e o estudo realizado pelo grupo com o texto do
Evangelho de João 8.1-121, buscando visibilizar não só a metodologia e a dinâmica do estudo,
mas todo o processo do grupo como sujeito da leitura da Bíblia no contexto da comunidade. A
experiência com a leitura popular e feminista da Bíblia indica que não é somente para
conhecer mais a Palavra escrita que nos comprometemos com a leitura da Bíblia. O
conhecimento bíblico é uma ferramenta para alcançar o fim almejado ao ler a Bíblia em
grupo, a saber, iluminar a realidade no sentido de buscar justiça e dignidade comunitária. Esta
iluminação nos estimula a continuar no caminho de transformação, não somente em nível de
grupo e igreja, mas também em nível da sociedade da qual somos parte.
1
Todos os textos bíblicos citados neste trabalho estarão de acordo com a tradução de João Ferreira de Almeida,
revista e atualizada no Brasil pela Sociedade Bíblica do Brasil em relação à tradução, forma de abreviatura dos
livros e forma das citações de capítulos e versículos.
10
I - LEITURAS BÍBLICAS FEMINISTAS: O DESPERTAR DA CONSCIÊNCIA
2
Circulo de Cultura - Eram espaços em que dialogicamente se ensinava e se aprendia. Em que se conhecia em
lugar de se fazer transferência de conhecimento. Em que se produzia conhecimento no lugar da justaposição ou
da superposição de conhecimentos feitas pelo educador a ou sobre o educando. Em que se construíam novas
hipóteses de leitura do mundo. (Freire, 1994)
3
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1987. p. 13.
11
pedagogia do oprimido e a Pedagogia da Leitura Popular da Bíblia, queremos refletir sobre
uma pedagogia libertadora para grupos de leitura bíblica feminista.
5 FELIX, Isabel. Anseio por Dançar Diferente: Leitura Popular da Bíblia na Ótica da Hermenêutica
Crítica Feminista de Libertação. 2010. 281 f. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Ciências da
Religião, Faculdades de Humanidades e Direito, Universidade Metodista de São Paulo - UMESP, São Bernardo
do Campo, 2010. p.34.
6
FIORENZA. Elisabeth Schussler. Caminhos da Sabedoria: Uma Introdução à Interpretação Bíblica
Feminista. São Bernardo do Campo: Nhanduti Editora, 2009. p. 26.
13
às ferramentas de investigação crítica dos discursos e saberes, que moldam a auto-identidade
das mulheres e determinam suas vidas.
A leitura bíblica conscientizadora é uma ferramenta de ajuda para a libertação de
mulheres. Através dela podemos tomar consciência das estruturas de dominação inseridas no
texto bíblico, nas interpretações e transmissões, bem como nas estruturas sociais, políticas,
econômicas e eclesiais nas quais estamos inseridas. Porém a pergunta que fazemos é: Como
fazer isso sem uma atitude meramente intelectual de transmissão de conteúdos? Como
envolver as mulheres de forma consciente no processo democrático de leitura
conscientizadora da Bíblia? Como fazer leitura bíblica que não esteja somente preocupada em
esclarecer textos da Escritura, mas libertar consciências, desenvolvendo compromisso com a
fé e também com a luta por justiça? É pensando nessas perguntas que propomos um encontro
com a pedagogia do oprimido e com a leitura popular da bíblia.
7
FREIRE. Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1987.
8
FREIRE, Paulo. A Educação na Cidade. São Paulo: Cortez, 1991. p. 63.
14
1.2.1 A conscientização como essência da educação libertadora
Alfabetizar-se é aprender a ler essa palavra escrita em que sua cultura se diz,
e, dizendo-se criticamente, deixa de ser repetição intemporal do que passou,
para temporalizar-se, para conscientizar sua temporalidade constituinte, que
é anúncio e promessa do que há de vir. O destino criticamente recupera-se
como projeto. Nesse sentido, alfabetizar-se não é aprender a repetir palavras,
mas a dizer a sua palavra, criadora de cultura. A cultura letrada conscientiza
a cultura: a consciência historiadora auto-manifesta à consciência sua
condição essencial de consciência histórica. Ensinar a ler as palavras ditas e
ditadas é uma forma de mistificarem-se as consciências, despersonalizando-
as na repetição – é a técnica da propaganda massificadora. Aprender a dizer
a própria palavra é toda a pedagogia e também toda a antropologia.10
9
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra. 1987. p. 18.
10
FREIRE, 1987, p. 18.
11
FREIRE, Paulo. Educação como Prática da Liberdade. Rio de Janeiro. Paz e Terra, 2002. p. 109-129.
12
FREIRE, Paulo e NOGUEIRA, Adriano. Teoria e Prática em Educação Popular. Petrópolis: Vozes, 2002. p.
33.
15
a Bíblia e como foram afetadas na sua auto-percepção e na sua compreensão do mundo, da
vida e da sua fé. É diferente dos grupos de estudos bíblicos tradicionais, cujo objetivo é
frequentemente a inculcação e a aceitação sem reflexão crítica sobre a experiência e o lugar
social de quem interpreta a Bíblia e também sobre o significado e o impacto deste livro em
suas vidas. Através de um processo de conscientização, a mulher é desafiada a assumir uma
atitude propositiva e transformadora, superando a visão fatalista ou vitimizante da história, da
sua realidade e diante da própria Bíblia. A recusa do fatalismo social, histórico e religioso é
fundamental para o processo de libertação e emancipação humana.
Por isso mesmo é que os reconhece como seres que estão sendo, como seres
inacabados, inconclusos, em e com uma realidade que, sendo histórica
também, é igualmente inacabada. Na verdade, diferentemente dos outros
animais, que são apenas inacabados, mas não históricos, os homens se sabem
inacabados. Tem a consciência de sua inconclusão. Aí se encontra as raízes
da educação mesmo, como manifestação exclusivamente humana. Isto é, na
inconclusão dos homens e na consciência que dela têm. Daí que seja a
educação um que/fazer permanente. Permanente na razão da inconclusão dos
homens e do devenir da realidade.13
Esta ideia vai permanecer por toda obra freiriana, sendo retomada em outros de seus
escritos, como Pedagogia da Esperança (1992), Pedagogia da Autonomia (1996) e Pedagogia
da Indignação (1996). Muitas categorias fundamentais vão surgir, tais como: “mudança”,
“consciência”, “liberdade”, “utopia”, “compromisso”, “esperança”, “transformação”,
“diálogo”, “práxis”, “luta”, “amor”, “comunhão”, porém todas estarão ancoradas nessa
primeira ideia de humanização lançada na Pedagogia do Oprimido. A ação educativa está
13
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra. 1987. p. 73.
16
localizada no coração da grande tarefa que é a restauração da humanidade, na qual oprimidos
e opressores são chamados para serem seres humanos melhores, mais humanos.
O primeiro passo para a superação da desumanização implica num reconhecimento
crítico da razão para essa situação. É o momento reflexivo que conduz através de uma ação
transformadora da realidade, a introdução de uma situação diferente que facilita a formação
de seres humanos melhores. A ação ligada à reflexão é a verdadeira prática de libertação dos
oprimidos, pois para Freire não pode haver ação sem a produção do conhecimento. É pela
práxis (ação reflexiva) que a consciência oprimida supera os erros do ativismo, do solipsismo
e o intervencionismo messiânico e colonizador. Não é imposta, transmitida ou depositada a
consciência crítica nos oprimidos, mas é construída através do diálogo e da interação. O ato
de aprender libertação não é ato passivo ou receptivo, mas é um ato total de ação e reflexão,
resultado de um processo de sensibilização em que os seres humanos são libertados em
comunhão. Não se atinge com transmissão de conteúdos em apostilas, discursos ou pressões,
mas por convicções, só então a ação transformadora é sólida e verdadeira. Portanto destaca-se
a natureza da libertação eminentemente pedagógica.
Sob essa perspectiva é que estudos bíblicos feministas assumem seu caráter de
atividade de educação libertadora, onde a meta não é transmitir conhecimentos bíblicos e
teológicos, é mais do que isso: é aprender a crescer em humanidade, aprender a “ser mais” em
contraste com o “ser menos” que a realidade apresenta. Fazer esse confronto é conduzir à
libertação das consciências.
Para uma educação libertadora, Freire propõe uma ruptura com a tradicional relação
pedagógica, em que os educadores detêm o conhecimento e os estudantes são depósitos que
não têm saber e devem se deixar encher. Freire critica uma educação por ele denominada de
bancária ou depositária, que reproduz os mecanismos opressores da sociedade capitalista,
mantendo a divisão entre os que sabem e os que não sabem, entre oprimidos e opressores. Ele
coloca em oposição as duas pedagogias: do colonizador e do oprimido, destacando as
seguintes diferenças:
Este tipo de relação pedagógica é chamado por Freire de “bancária”, pois reflete,
reproduz e estimula uma sociedade opressora, enquanto anula ou minimiza o poder criativo
das pessoas, incentivando sua passividade e sua criticidade. Esta visão de educação nunca vai
promover transformações sociais. Muito menos serão desenvolvidos sujeitos críticos,
participantes e protagonistas. Na melhor das hipóteses, serão objetos da ação do outro que
tenta impor libertação.
Para Freire, a educação libertadora tem sua razão de ser na superação da relação
professor-aluno da educação bancária, fundamentada no autoritarismo antidemocrático. Uma
nova relação pedagógica deverá estar baseada na reconciliação de seus polos, de modo que
ambos são feitos simultaneamente educadores e educandos. Transformar a relação educativa é
também transformar a relação de poder e autoridade pedagógica. .15 Inverter a relação vertical
do poder e desenvolver a capacidade de estar com as liberdades dos outros e não contra elas.
A relação deixa de ser vertical e passa a ser horizontal e igualitária. A relação do “educar
com” e em comunhão. Freire vai desenvolver amplamente esta ideia desde um modelo de
educação radicalmente democrático.
Esse princípio é fundamental para a compreensão de que modelos de aprendizagem
libertadores precisam superar os paradigmas autoritários de relação pedagógica da corrente
masculina dominante. É preciso o exercício de novos modelos de relação pedagógica que
superem a relação professor-aluno. Para os grupos bíblicos feministas, significa afirmar que
todas são intérpretes competentes da Bíblia. A autoridade interpretativa é partilhada numa
relação de aprendizagem radicalmente democrática.
14
MELLO, Marco (org). Perspectivas da Educação Popular: De Paulo Freire ao Fórum Social Mundial:
Horizontes ainda que seja noite. Em: Teologia da Libertação e Educação Popular: Horizontes Ainda Que Seja
Noite. p. 85.
15
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra. 1987. p. 62.
18
Educar em comunhão é provavelmente umas das intuições menos desenvolvidas da
pedagogia freiriana. Aí reside um dos antagonismos entre educação bancária e educação
libertadora. Enquanto a primeira mantém uma relação professor-aluno antidialógica e
antidemocrática, a segunda supera a dominação de uns sobre os outros, através de uma
relação dialógica na qual ambos tornam-se sujeitos de processo em que crescem juntos sem
sobreposições.
O conhecimento e o crescimento humano que está sendo procurado são construídos
em solidariedade e comunhão com os outros. A ação educativa para a liberdade e o ser mais
acontece em movimento que não pode ser feito de forma isolada ou individualista, mas em
comunhão. Na comunhão de ensino, o ser humano é libertado, humanizado. “Ninguém liberta
ninguém, ninguém se liberta sozinho: Os homens se libertam em comunhão”.16
Contrariamente aos estudos bíblicos tradicionais (educação bancária), que realça a
imagem do estudioso bíblico profissional e a “ignorância bíblica” dos estudantes (sem
conhecimento bíblico), criando uma relação pedagógica vertical dependente e competitiva, os
estudos bíblicos feministas pretendem fazer esforços para construir uma relação coerente com
as intenções educativas libertadoras. Alguns grupos de mulheres têm experimentado o
aprender em comunhão, num grupo seguro de iguais, em que o aprendizado é construído
numa relação não autoritária, num discipulado humilde de iguais.
É recorrente na abordagem de Freire a educação dialógica. O diálogo está relacionado
com a palavra entendida como práxis (ação - palavra) transformadora. O oposto da práxis é o
discurso de libertação (reflexão sem ação) e ativismo (ação sem reflexão). Unir a palavra e a
ação é o que faz com que os seres humanos entrem em comunhão com sua pronuncia numa
perspectiva transformadora. O diálogo é o encontro dos seres humanos para ser mais. “Para
Freire, as condições para o diálogo são o amor ao mundo, a vida e as pessoas, a humildade, a
fé nas pessoas e a esperança.” 17 Sem essas condições não pode haver diálogo efetivamente.
É através do diálogo que se gera pensamento crítico, sem o qual não há educação
libertadora. Paulo freire dizia que nosso papel não é falar com as pessoas sobre a nossa visão
do mundo ou tentar impor a elas, mas conversar com elas sobre a sua visão e a nossa visão.
Ou seja, num projeto dialógico de educação não se pode prescindir do conhecimento critico e
da visão do outro. Se o fizéssemos, estaríamos seguindo o modelo da educação bancária. O
conteúdo da educação libertadora vem do diálogo, não do monólogo. O ponto de partida de
qualquer processo educativo libertador é o próprio diálogo. O conteúdo do diálogo é
16
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra. 1987. p. 52.
17
SOUZA, Ana Inês (org). Paulo Freire: Vida e Obra. São Paulo. Expressão Popular. 2001. p. 136.
19
organizado e está na visão dos alunos que emergem através das pesquisas sobre os temas
geradores. Para investigá-los requer as seguintes etapas:18 a) Abordagem das contradições e
da percepção ou consciência que têm os participantes; b) Codificação de uma situação
existencial concreta em interação com os elementos constitutivos do grupo; c) Decodificação,
através da análise crítica da situação codificada; d) Um estudo sistemático e interdisciplinar
das codificações e dos resultados.
O conteúdo não é pré-definido ou arquivado em qualquer depósito. O mundo, a
mediação no diálogo educacional, dá origem a visões diferentes que envolvem "questões"
importantes, com base nas quais os conteúdos serão trabalhados. E o conteúdo de nenhuma
maneira é transmitido ou imposto. Fazê-lo seria cair na atitude de conquista e colonização da
educação bancária. Pelo contrário, é uma ação educativa libertadora, através do diálogo,
ajudando as consciências conquistadas e colonizadas a tornarem-se conscientes de sua
condição de infra-humanidade. Essa percepção mostra os níveis de autopercepção do mundo.
É a partir dessa consciência e da situação presente que se organiza o conteúdo programático
da ação educativa, devendo ser tomado como um problema desafiador. Investigar o tema
gerador é investigar o pensamento sobre a realidade. Investigar o pensamento do outro não
pode ser possível sem o outro como sujeito de seu próprio pensar.19
Os estudos bíblicos feministas não devem estar limitados à transmissão de
conhecimentos bíblicos, mas devem procurar animar uma postura dialogal e crítica. Busca-se,
assim, construir uma nova proposta que promova autoconsciência de si mesmo, da realidade e
da Bíblia, bem como dos pressupostos e lugares sociais de leitura e de interpretação. Isso vai
gerar novos conhecimentos, substituindo conteúdos e argumentos de dominação. Para isso, o
modelo dialógico e radicalmente democrático dos grupos é fundamental para que haja diálogo
para dentro e para fora. Diálogo com a teologia, com os movimentos sociais e eclesiais,
diálogo com o mundo. E é assim que se garantirá pensamento crítico e libertação de
consciências.
Para mim, uma das bonitezas do anúncio profético está em que não anuncia
o que virá necessariamente, mas o que pode vir ou não. O seu não é um
anúncio fatalista ou determinista. Na real profecia, o futuro não é inexorável,
é problemático. Há diferentes possibilidades de futuro. Reinsisto em não ser
possível anúncio sem denúncia e ambos sem o ensaio de certa posição em
face do que está ou vem sendo o ser humano. 21
Lutar por uma nova sociedade, por meio da denúncia e do anúncio profético, é a tarefa
que cabe a nós mulheres e homens que não aceitamos o fim dos sonhos, da utopia, da
esperança e que acreditamos na mudança do mundo e do ser humano como condição para a
humanização. Por tudo isso, precisamos incorporar à nossa práxis educativa de leitura bíblica
feminista a dimensão utópica da fé e da esperança.
Na busca por rever nosso jeito de ler e estudar a Bíblia em comunidade a partir de uma
pedagogia popular e libertadora, precisamos de uma metodologia que oriente o processo
educativo. Quando tratamos aqui de metodologia não entendemos apenas como procedimento
ou técnica, mas como princípios que guiam o caminho. Os princípios que caracterizam uma
determinada metodologia se originam de uma determinada visão de mundo, do ser humano,
da educação e do processo de aprendizagem. Portanto, estamos considerando a metodologia
20
SOUZA, Ana Inês (org.). Paulo Freire: Vida e Obra. São Paulo: Expressão Popular, 2001. p. 217.
21
SOUZA, 2001, p. 131.
21
enquanto maneira de conduzir o processo de formação. E, para uma nova pedagogia de
estudos bíblicos, precisamos de uma nova metodologia, coerente com uma proposta de
educação libertadora.
A leitura popular da Bíblia tem por objetivo captar a mensagem da Palavra de Deus
para nossa vida hoje; neste sentido, a metodologia ganha também uma dimensão de
espiritualidade imprescindível para o tipo de conteúdo com o qual trabalhamos: a Bíblia. Por
isso, no diálogo com a leitura popular da Bíblia, estamos em busca não só de um método, mas
de um jeito, uma atitude e uma prática que conduzam a um estudo dentro de uma
espiritualidade libertadora.
A Leitura Popular da Bíblia (LPB) desenvolvida no Brasil nasce das experiências das
comunidades do meio popular, onde a Bíblia torna-se instrumento de luta e organização do
povo. A LPB consegue devolver a Bíblia para a mão do povo, criando um espaço democrático
e comunitário de leitura da Bíblia. Surge num momento em que no Brasil e na América Latina
estão eclodindo movimentos populares de resistências aos regimes ditatoriais. É também no
auge da ditadura militar no Brasil, de 1964 a 1970, época de muita repressão, mas também de
muita resistência.
A leitura popular repercute no Brasil um movimento bíblico latino-americano de uma
leitura que rompe com os critérios e os métodos da exegese científica europeia e propõe uma
hermenêutica bíblica latino-americana, identificada com os pobres numa perspectiva de
libertação.
A leitura popular da Bíblia surge de encontros populares e das celebrações nas
comunidades eclesiais de base (CEBs) que buscavam uma correlação entre a leitura da Bíblia
e a vida do povo sofrido. As comunidades eclesiais de base que começam a surgir na metade
dos anos 60 no Nordeste do Brasil, tanto na zona rural como na zona urbana, é lócus
hermenêutico de onde surge essa forma de leitura popular da Bíblia. As CEBS são espaços
democráticos em que se pode fazer leitura da Bíblia fora do controle ideológico. As igrejas,
neste momento de perseguição, tornaram-se espaço de articulação da oposição, onde se podia
ainda trabalhar com certa liberdade. 22
22
FELIX, 2010, p. 17.
22
Surgem os círculos bíblicos para atender a necessidade de um trabalho bíblico mais
capilar. O método usado nos círculos bíblicos, segundo Carlos Mesters, era reflexo de três
influências: do método Ver-Julgar-Agir utilizado pela Ação católica, da Pedagogia de Paulo
Freire e do método sugerido pelo Evangelho de Lucas na descrição da caminhada dos
discípulos de Emaús, onde o próprio Jesus aparece interpretando a Escritura para os seus
amigos (Lucas 24.13-35). A metodologia inspirada no Evangelho de Lucas será abordada com
mais detalhes ainda neste trabalho.
Fruto dessa experiência das CEBs e de um contexto bastante específico, tanto religioso
como político no Brasil e na América Latina, é que a leitura popular da Bíblia foi garantindo
espaço para que mulheres e homens, jovens e crianças das classes populares pudessem
interpretar livremente a Bíblia a partir da sua realidade de luta e opressão.
Como se fazia leitura popular da Bíblia nas comunidades eclesiais de base na América
Latina? Carlos Mesters e Francisco Orofino escreveram um artigo com esse título e
apresentaram dez características dessa leitura, oferecendo uma visão global que caracteriza a
Leitura Popular da Bíblia na América Latina neste período.23
1. A fé como raiz ou tronco do trabalho bíblico na América Latina - A Bíblia é
reconhecida e acolhida pelo povo como Palavra de Deus, e a fé já existia antes da chegada da
leitura popular da Bíblia. Foi a partir dessa raiz que é a fé do povo que foi enxertado o
trabalho em torno da Bíblia. “É o que caracteriza a leitura que fazemos da Bíblia na América
Latina. Sem esta fé, todo o processo e todo o método teriam de ser diferentes.”24
2. A Bíblia aparece como espelho - Ao ler a Bíblia, o povo das Comunidades traz
consigo a sua própria história e tem nos olhos os problemas que vêm da realidade dura de suas
vidas. A Bíblia aparece como um “espelho-símbolo” daquilo que se vive hoje. Estabelece-se,
assim, uma ligação profunda entre Bíblia e vida.
3. Deus presente na nossa vida e na luta do povo - O novo jeito de ler a Bíblia ajuda o
povo a fazer a grande e maior descoberta: "se Deus esteve com aquele povo no passado, então
Ele está também conosco nesta luta que fazemos para nos libertar”25. Assim vai nascendo
imperceptivelmente uma nova experiência de Deus e da vida, que se torna o critério mais
determinante da leitura popular.
23
MESTERS, Carlos E OROFINO, Francisco. Sobre a Leitura Popular da Bíblia. Disponível em:
<www.cebi.org.br/noticias.php?secãoId=12¬iciaId=132>. Acesso em 08 jul. 2010.
24
MESTERS E OROFINO. Disponível em: <www.cebi.org.br/noticias.php?secãoId=12¬iciaId=132>.
Acesso em 08 jul. 2010.
25
MESTERS e OROFINO. Disponível em: <www.cebi.org.br/noticias.php?secãoId=12¬iciaId=132>. Acesso
em 08 jul. 2010.
23
4. A Palavra de Deus perto de nós! - Mesters afirma que “antes de o povo ter esse
contato mais vivido com a Palavra de Deus, a Bíblia ficava longe. Era o livro dos "padres" e
“pastores”. Mas agora ela chegou perto! O que era misterioso e inacessível começou a fazer
parte da vida quotidiana dos pobres. E junto com a sua Palavra, o próprio Deus chegou
perto!”26
5. Uma nova maneira de se olhar a Bíblia – Dessa maneira traçada acima é que
Mesters e Orofino dizem ter surgido essa nova maneira de se olhar a Bíblia e a sua
interpretação: “a Bíblia já não é vista como um livro estranho, mas como nosso livro”27. A
Bíblia, para alguns, se tornou o primeiro instrumento para uma análise mais crítica da
realidade.
6. Interpretar a Vida com a ajuda da Bíblia. Assim se deu a descoberta progressiva de
que a Palavra de Deus não está só na Bíblia, mas também na vida, e de que o objetivo
principal da leitura da Bíblia não é interpretar a Bíblia, mas sim interpretar a vida com a ajuda
da Bíblia. Descobre-se que Deus fala, hoje, através dos fatos.
7. Uma nova porta de entrada – A Bíblia deixa de entrar na vida do povo pela porta da
imposição autoritária, para entrar pela porta da experiência pessoal e comunitária. Ela se faz
presente não como um livro que impõe uma doutrina de cima para baixo, mas como uma Boa
Nova que revela a presença libertadora de Deus na vida e na luta do povo.
8. Ligação entre a Bíblia e a Vida – Segundo Mesters e Orofino, para que se produza
esta ligação profunda entre Bíblia e vida, é importante: a) Ter nos olhos as perguntas reais que
vêm da vida e da realidade sofrida de hoje, e não perguntas artificiais que nada têm a ver com
a vida do povo. Aqui aparece a importância de que o estudioso da Bíblia tem convivência e
experiência pastoral inserida no meio do povo. b) Descobrir que se pisa o mesmo chão, ontem
e hoje. Aqui aparece a importância do uso da ciência e do bom senso, tanto na análise crítica
da realidade de hoje, como no estudo do texto e seu contexto social. c) Ter uma visão global
da Bíblia que envolva os próprios leitores e leitoras e que esteja ligada com a situação
concreta das suas vidas. Lendo assim a Bíblia produz-se uma iluminação mútua entre Bíblia e
vida. O sentido e o alcance da Bíblia aparecem e se enriquecem a luz do que se vive e sofre na
vida, e vice-versa.
26
MESTERS e OROFINO. Disponível em: <www.cebi.org.br/noticias.php?secãoId=12¬iciaId=132>. Acesso
em 08 jul. 2010.
27
MESTERS e OROFINO. Disponível em: www.cebi.org.br/noticias.php?secãoId=12¬iciaId=132. Acesso
em 08 jul. 2010.
24
9. Atividade envolvente – A interpretação que o povo faz da Bíblia é uma atividade
envolvente que compreende não só a contribuição intelectual do exegeta, mas, também, e,
sobretudo, todo o processo de participação da Comunidade: trabalho e estudo de grupo, leitura
pessoal e comunitária, teatro, celebrações, orações, recreios,
10. Um ambiente de fé e fraternidade – Uma boa interpretação acontece em um
ambiente de fé e de fraternidade, através de cantos, orações e celebrações. Sem este contexto
do Espírito não se chega a descobrir o sentido que o texto tem para nós hoje. “Pois o sentido
da Bíblia não é só uma ideia ou uma mensagem que se capta com a razão e se objetiva através
de raciocínios; é também um sentir, uma consolação, um conforto que é sentido com o
coração.” 28
Lembramos que, mesmo neste período de efervescência dos movimentos populares e
das comunidades de base, apenas uma minoria de cristãos faziam essa leitura, enquanto a
grande maioria fazia uma leitura mais tradicional e mais fundamentalista, mas o impacto
dessa experiência influencia até hoje os movimentos e métodos populares na America latina.
Em síntese, essa é a forma como a leitura popular da Bíblia é praticada hoje no Brasil.
Essa tríade hermenêutica representa o jeito que o povo faz leitura popular da Bíblia.
29
GASS, Ildo Bohn. Uma Introdução à Bíblia: Porta de Entrada - Vol. I. São Leopoldo: CEBI e PAULUS,
2002. p.13.
26
1.4 Pedagogia do oprimido e leitura popular da Bíblia como prática de educação
libertadora
O que e como fazer para afirmar a vida? Cada um, a partir de seu lugar de atuação, vai
procurar resposta à mesma pergunta. Enquanto Paulo Freire desenvolve sua prática educativa
libertadora no âmbito cultural, político e educacional, Carlos Mesters desenvolve sua prática
no âmbito bíblico-eclesial. Mesters, influenciado pelo pensamento de Freire, propõe uma
pedagogia libertadora como principio para sua prática de leitura popular da Bíblia. Destaco
três pontos que se entrecruzam entre a Leitura Popular da Bíblia e o pensamento de Paulo
Freire:
30
O Pensamento de Paulo Freire como matriz integradora de práticas educativas do meio popular. Ciclos
de seminários organizados pela Rede de Educação Popular de São Paulo. Disponível em:
<www.polis.org.br/utilitarios/editor2.0/.../paulofreire-081106.pdf>. Acesso em 05 jun. 2010.
27
Trabalhar com uma leitura da Bíblia onde a pessoa possa dizer sua própria palavra sobre o
mundo, na história e diante de Deus.
28
experiências de opressão em um mundo marcado por uma cultura branca e patriarcal, buscam
exercitar o seu direito interpretativo. Brotam daí as diferentes releituras bíblicas: leituras
étnicas, ecológica, feminista e outras.
1.5 Síntese
Concluindo este primeiro capítulo, constatamos que não estamos construíndo no vazio
e nem sozinhos/as. Relembramos alguns caminhos pelos quais caminhamos, ancorados/as
por histórias, movimentos e ideias que nos iluminam e nos sustentam na caminhada.
Relembramos algumas ideias da Pedagogia do Oprimido que inspiraram uma prática
libertadora de moviemntos populares no Brasil e no mundo. Relebramos ainda o método da
leitura popular da Bíblia e sua relação com as teologias e os movimentos de libertação na
América Latina e no Brasil. Essa relação faz com que, hoje, em grupos de leitura bíblica,
mulheres possam ter “sua palavra”, baseadas numa postura participativa, contextualizada e
crítica. A leitura popular da Bíblia tem proporcionado que mulheres se aproximem da Bíblia
31
SCLAIR, Moacir. A mulher que escreveu a Bíblia. São Paulo: Companhia das letras, 2007, p. 108.
29
com novos olhares, novas luzes e perguntas, promovendo um resgate de autoestima e um
movimento de empoderamento em relaçao às situações de desumanização e “menos vida”
que enfrentam em suas realidades.
Entendendo que uma proposta de hermenêutica feminista necessita não somente de
modelo hermenêutico, mas também de um modelo pedagógico que oriente os estudos bíblicos
feministas, buscamos, nesse primeiro capítulo, lançar luzes sobre um modelo democrático de
aprendizagem, que seja capaz de romper com os modelos hegemônicos de dominação, indo
em direção a um modelo diferente de leitura/aprendizagem, que promova conscientização e
humanização e que se torne inspiração para um modelo feminista de estudos bíblicos
radicalmente democráticos.
O segundo capítulo se dedicará exclusivamente à Hermenêutica bíblica feminista,
reconhecendo suas abordagens, seus paradigmas, seus pressupostos e suas metodologias,
dando enfoque especial à hermenêutica libertadora feminista, que se caracteriza por seu
lugar e sua prioridade hermenêutica nas lutas feminstas por conscinetização e humanização.
30
II - HERMENÊUTICA FEMINISTA DE LIBERTAÇÃO
Como ler e interpretar a Bíblia desde um caminho de vida e libertação para mulheres
em suas lutas por dignidade e justiça? Existe uma pluralidade de abordagens feministas de
leitura da Bíblia que poderiam servir de referencial para o nosso trabalho. Porém, fizemos
escolha pela Hermenêutica crítica feminista da libertação por algumas razões.
Em primeiro lugar, por continuarmos a busca iniciada no primeiro capítulo por marcos
teóricos libertadores. Não queremos dialogar com modelos hermenêuticos academicistas,
descolados de um compromisso com as lutas concretas da vida de pessoas que ainda
procuram na Bíblia a força para construir uma vida melhor para elas mesmas e para pessoas
sofridas e “excluídas” deste mundo. Queremos entrar no caminho (método) com outras
pessoas e movimentos comprometidos com a justiça.
Em segundo lugar, pelas raízes históricas da hermenêutica crítica feminista. Essa
proposta hermenêutica feminista de libertação se desenvolveu como parte da segunda onda do
feminismo e a partir dos movimentos de base por libertação de mulheres. Elisabeth S.
Fiorenza diz não ter se inspirado nas teologias clássicas da academia européia e norte-
americana e nem nas lutas feministas das mulheres brancas de classe média, mas nos
movimentos abolicionistas do século XIX e nos distintos movimentos de libertação do século
XX: movimentos antiescravagistas, de operários, por direitos civis, anticolonialistas,
antiguerra e o movimento de mulheres. Esses movimentos, segundo Elisabeth S. Fiorenza,
constituem o lugar social para uma interpretação feminista. A linguagem e os discursos da
hermenêutica feminista de libertação foram fornecidos pela práxis libertadora desses
movimentos.32
Por fim, escolhemos a hermenêutica crítica feminista de libertação por ter como ponto
de partida as teologias de libertação e pela identificação com a luta de mulheres em diferentes
contextos e culturas, que têm suas experiências e vozes silenciadas pelos interesses de
32
FIORENZA, 2009, p. 100.
31
dominação políticos, econômicos ou religiosos. Este trabalho da experiência de um grupo de
mulheres no Nordeste do Brasil precisava de um referencial teórico que fornecesse uma
reflexão a partir de um paradigma de libertação dos grupos excluídos e marginalizados
socialmente, culturalmente e teologicamente.
Por muito tempo, no Brasil e na América Latina, a Bíblia era lida apenas pelos
critérios e métodos adotados pela exegese europeia de caráter extremamente científico ou pelo
método literalista e fundamentalista, mas alguns caminhos novos foram surgindo. As leituras
contextuais e a teologia da libertação sem dúvida trouxeram novos critérios e sujeitos para o
centro da teologia e da leitura da Bíblia na América latina.
A opção preferencial pelos pobres torna-se a “espinhal dorsal” da teologia da
libertação e faz emergir novos sujeitos e novas leituras, provocando desdobramentos
importantes. Teologias negras, indígenas e feministas surgiram como teologias de libertação
da opressão, baseadas na etnia e no gênero, dando face concreta e diversa à categoria dos
“pobres”. É por essa razão que se fala em teologias de libertação no plural e também podemos
falar de hermenêuticas de libertação no plural. Acontece, a partir daí, um movimento de
“descolonização teológica”, repercutindo diretamente na forma de ler e interpretar a Bíblia na
América latina.
O feminismo surge como movimento social em finais do séc. XIX, e, desde então, em
todo o mundo e na América latina, crescem o grito e a voz das mulheres, reclamando seus
direitos, e grupos de mulheres se organizam em torno da leitura libertadora da Bíblia.
Tivemos, no contexto de América latina, um chão fértil para o florescimento das teologias e
hermenêuticas de libertação. Na raiz do processo hermenêutico, estão agora os povos
oprimidos latino-americanos: camponeses e camponesas, mulheres, negros e negras, o povo
indígena. Estes são alguns dos novos sujeitos da leitura da Bíblia na América Latina.
Partindo dos pressupostos das leituras bíblicas libertadoras que surgem como
desdobramentos da teologia da libertação, conhecidas também como “teologias das margens”
ou “teologias de terceiro mundo” e das lutas feministas de libertação, surge a hermenêutica
crítica feminista de libertação como um instrumento capaz de reivindicar para as mulheres um
papel de sujeitos, não só na leitura e na interpretação bíblica, mas no seu lugar social, político
32
e religioso, pois traz um compromisso ético e político em favor da emancipação e da
dignidade da mulher, não só na Igreja, mas na sociedade.
34
CABRAL, Jimmy Cabral. Bíblia e Teologia Política: Escrituras, tradição e emancipação. Rio de Janeiro:
Mauad X: Instituto Mysterium, 2009. p.60.
35
FIORENZA, 1992, p. 27.
34
desinteressada e neutralidade de valores para controlar o que constitui o sentido verdadeiro do
texto.
Apóia-se mais nas razões científicas e não nas teológicas. Busca conseguir uma leitura
objetiva livre e universal. Esse paradigma ainda é bastante utilizado por especialistas em
muitas universidades, seminários teológicos e centros de estudos bíblicos, tanto no Brasil
como na América Latina.36
A partir do paradigma científico de interpretação bíblica, desenvolveram-se diferentes
linhas e paradigmas teóricos relacionados:37
Paradigma histórico: O paradigma histórico tenta diminuir a distância entre o mundo
antigo da Bíblia e o mundo de hoje, propondo o estudo do texto dentro do seu contexto
geográfico, sócio-político e religioso, fazendo uma descrição científica realista e neutra do
passado. Mas esgota sua interpretação na reconstrução do passado e assim aumenta o fosso da
história, pois não se interessa pela relevância atual do texto.
Paradigma literário: Já o paradigma literário está interessado na construção e na
reconstrução do texto. Quer saber como o texto foi elaborado. Para tanto, a atenção está para a
estrutura, a sistemática, a poesia, o gênero literário do texto, pois a partir dessa análise é que
se procura o sentido original. O textualismo positivista desconfia do discurso histórico,
afirmando que só se pode ter acesso à realidade histórica do texto através do próprio texto.
Sendo assim, o texto passa a ser um meio e a ênfase é colocada sobre o significante, uma vez
que o paradigma literário concebe o texto como uma mensagem do autor para as pessoas que
o leem. Fiorenza observa que a função deste paradigma é de ler e interpretar o texto como ele
se apresenta, submetendo-o a uma analise de caráter literário, sem a preocupação com o
caráter histórico ou ideológico e isso poderia conduzir simplesmente a uma identificação das
realidades presentes no texto, sem conseguir problematizar a sua função ideológica.38
36
FIORENZA, 2009, p. 55.
37
FELIX, 2010, p. 184.
38
FELIX, 2010, p. 184.
35
elaborados a partir de uma realidade cultural concreta, mas que o universo simbólico abre um
leque de possibilidades interpretativas. Elisabeth S. Fiorenza acredita que esse paradigma se
fortalece diante do vazio provocado pelo paradigma científico-positivista quando esvazia o
texto de sentido. Como resposta a este vazio, o paradigma hermenêutico-cultural utilizará o
elemento cultural para devolver o sentido atual do texto, criando pontes entre o sentido que o
texto tinha para a cultura do tempo bíblico e a realidade cultural contemporânea.
Para Elisabeth S. Fiorenza, as mudanças hermenêuticas pós-modernas são decorrentes
em grande parte da influência das teologias de libertação e hermenêuticas feministas que
conseguiram desestabilizar as certezas do paradigma científico-positivista; porém, considera
que, mesmo não defendendo o sentido unívoco do texto, não se leva em conta as situações
sociais e históricas que geraram o texto ou que determinam sua função hoje e, dessa forma,
não assume o compromisso com os desafios éticos dos movimentos emancipatórios que visam
transformar a realidade. Diante dessas análises, ela propõe um novo paradigma, que
denominou retórico-emancipatório.39
Sendo que esse paradigma ainda está em construção e ainda não conseguiu
criar suas próprias estruturas institucionais, foi difícil dar-lhe um nome
adequado. Chamei-o, à guisa de tentativa, de pastoral-teológico, libertador-
cultural, retórico-ético ou retórico-político.40
39
FIORENZA, 2009, p. 59.
40
FIORENZA, 2009, p. 59.
36
efeitos de realidade. Nesse sentido, então, compreende que o texto bíblico como
comunicações retóricas traz discursos, linguagens e retóricas que foram construídos
historicamente e que estão inscritos nos textos bíblicos. Sendo assim, o objetivo do paradigma
retórico-emancipatório seria o de desvendar e desnaturalizar esses discursos, analisando-os
criticamente. Para poder compreender a retoricidade presente no texto, o paradigma levanta
novas perguntas que serão desveladoras das questões de poder presente nos textos: Que tipo
de mundo o texto visualiza? Que papéis, direitos e valores são defendidos no texto? Que tipos
de relações de poder estão presentes no texto? Que efeito essas relações têm na vida das
pessoas? Que práticas sócio-políticas e religiosas são legitimadas? Discursos de quais
comunidades ou grupos são respeitados?41
Nessa abordagem, a Bíblia é compreendida como um lugar de luta sobre significados.
Vê-se a Bíblia como um discurso retórico perspectivo que constrói mundos teológicos e
universos simbólicos em situações histórico-políticas particulares. Entende-se a Bíblia em
termos de um protótipo de fim aberto e não como arquétipo. A compreensão da Bíblia não se
dá por meio de um padrão fixo mítico, mas como protótipo histórico que traz consequências
profundas na questão da autoridade e da revelação da Bíblia.
É fato que a crise na autoridade da Bíblia tem sido intensificada pelas hermenêuticas
feministas do século XIX, quando começaram a declarar que a Bíblia não só foi escrita por
mãos humanas como por uma “elite de varões”. E, além disso, ressaltavam que a Bíblia não é
somente produto de um passado cultural patriarcal, mas também é um texto utilizado para
inculcar desumanizações e violências como palavra de Deus. Para Elisabeth S. Fiorenza, esta
luta pela autoridade bíblica acompanha a luta de mulheres pela autoridade de interpretação da
41
FELIX, 2010, p. 148.
42
FIORENZA, 1992, p. 61.
37
Bíblia, tanto na igreja católica quanto na igreja protestante, sendo que na tradição protestante
o desafio e a luta de mulheres são ainda mais desafiadores pela ênfase na autoridade bíblica.
Segundo Fiorenza, o poder interpretativo não está na Bíblia, nem na Igreja e nem na
Academia, mas nos espaços democráticos por luta de transformação através do “discipulado
de iguais”43, conceito desenvolvido por ela que denomina uma forma de vida assumida por
aquelas pessoas que seguem uma visão comum, de luta, para tornar presentes os valores do
reino de igualdade, justiça e dignidade humana. O paradigma retórico-emancipatório, nesse
sentido, tem o objetivo de capacitar homens e mulheres como sujeitos leitores na construção
de significados e como agentes críticos da interpretação.44
Dessa forma, os textos bíblicos que reforçam e promovem a justificação do sofrimento
e o silenciamento de mulheres e homens, desumanizando-os, são desmitologizados e não
prontamente aceitos como Palavra de Deus, e, neste caso, somente aqueles textos que rompem
com a cultura e suas estruturas terão autoridade teológica de revelação.
O paradigma retórico-emancipatório se depara com um grande desafio, propondo para
os estudos bíblicos feministas um paradigma que compreenda a Bíblia não como arquétipo
fixo, mas como protótipo histórico dinâmico e uma proposta de um cânon revelatório
formulado no espaço radicalmente democrático da comunidade de iguais, tendo as lutas de
libertação pessoal e politicamente manifestas como critérios de interpretação bíblica e
avaliação das pretensas autoridades.
Sempre que lemos, ouvimos ou interpretamos um texto bíblico faremos isso a partir de
um ou mais desses paradigmas de interpretação aqui apresentados. Geralmente trabalhamos a
partir de um paradigma principal, mas os outros não estão inteiramente ausentes. Os
paradigmas não se excluem totalmente uns dos outros, mas se sobrepõem. 45 Esses paradigmas
estão presentes, consciente ou inconscientemente, em nossas práticas interpretativas e nos
estudos bíblicos tradicionais ou feministas. É preciso que a proposta de estudos feministas
comprometidos com a libertação e a conscientização possa partir não só de paradigmas
pedagógicos comprometidos com a emancipação humana, mas também com paradigmas
hermenêuticos mais críticos e libertadores. Conhecer os paradigmas de interpretação ajudará
na escolha e na construção dos métodos e caminhos para uma leitura bíblica feminista
libertadora.
43
FIORENZA, 2009, p. 42.
44
FELIX, 2010, p. 208.
45
FIORENZA, 2009, p. 64.
38
2.3 Métodos de interpretação feminista
Os métodos históricos trabalham com a distância que separa o/a leitor/a atual da época
em que o texto foi escrito. A reconstrução histórica feminista visa, neste sentido, oferecer
também uma aproximação da leitora contemporânea e o texto bíblico, superando, no entanto,
o paradigma positivista histórico.
39
A reconstrução histórica feminista tenta recuperar como herança de todas as mulheres
o agir histórico de mulheres no âmbito da religião como a memória de suas vitimações, lutas e
conquistas. Nas pesquisas históricas sobre mulheres na bíblia, os textos são entendidos como
“janelas para” e “espelhos da” realidade de mulheres na Antiguidade. O método histórico-
reconstrutivo concebe a história das mulheres não simplesmente como uma história de
opressão das mulheres pelos homens, mas como história do agir histórico das mulheres e de
suas lutas contra a subordinação e a opressão. Fiorenza considera que, dessa forma, o método
reinscreve a marginalidade histórica das mulheres, uma vez que os documentos textuais e
arqueológicos sobre o agir histórico de mulheres são limitados. 46
A compreensão teórica da historiografia moderna, que não compreende a história
apenas pelo sentido positivista da história oficial e escrita, mas como uma narrativa construída
conscientemente, agregou valor ao método de reconstrução histórico feminista. Ao reconhecer
a ausência de mulheres na história oficial, os estudos feministas começaram a se dedicar a
problema de como reinscrever as mulheres na história e como captar a memória das
experiências e contribuições históricas de mulheres. Assim começaram a fazer perguntas
históricas diferentes que procuram entender os mundos vivenciais sócio-religiosos das
mulheres na antiguidade. Algumas dessas perguntas são citadas por Fiorenza: O que sabemos
sobre a vida cotidiana das mulheres em Israel, na Síria, na Grécia, no Egito, na Ásia Menor ou
em Roma? Como viviam mulheres nascidas livres, escravas, mulheres ricas, mulheres
comerciantes? Mulheres sabiam ler e escrever? Temos notícias de filósofas, poetisas ou
pensadoras da religião? Quais os direitos que mulheres tinham? Como se vestiam? Quais
poderes e influências exerciam quando eram patrocinadoras? O que significava para uma
mulher em Corinto participar do culto a Isis, da sinagoga ou do grupo cristão? O que
significou para Junia sua prisão? Como mulheres de Filipos receberam a obra lucana (Lucas e
Atos.)?47
Concordo com o fato de que muitas dessas perguntas não tenham ainda sido
pesquisadas ou não venham a ser respondidas, mas o simples fato de fazê-las trouxe novas
perspectivas para o estudo histórico-reconstrutivo e traz contribuições importantes para uma
proposta de estudos bíblicos feministas.
46
FIORENZA, 2009, p. 165.
47
FIORENZA, 2009, p. 166.
40
2.3.3 Métodos imaginativos de interpretação
Elisabeth S. Fiorenza faz uma analise dos métodos acima mencionados e adverte sobre
o risco desses métodos de reinscrever a política dualista de gênero do texto em vez de
desfazê-la. Para ela os métodos corretivos, reconstrutivos históricos ou imaginativos do texto
bíblico precisam caminhar de mãos dadas com uma hermenêutica de suspeita que vise à
conscientização, desenvolvendo uma imaginação diferente e radicalmente igualitária.
48
FIORENZA, 2009, p. 169.
41
Apresenta o método de conscientização não como substituição aos métodos citados,
mas como um método que auxilia os outros a uma interpretação crítica que lê, reconstrói e
imagina conscientemente e criticamente os textos. Segundo Fiorenza, ler e pensar dentro de
um sistema simbólico kyriocêntrico49 induz leitores/as da Bíblia a alinhar-se e a identificar-se
com aquilo que é culturalmente normativo, isto é, culturalmente masculino. Desse modo, ler a
bíblia pode intensificar em vez de desafiar a inserção das mulheres nos discursos kyriarcais
que as alienam de si mesmas. Por isso a conscientização feminista procura deslocar a atenção
do texto kyriocêntrico para as mulheres como sujeitas da leitura, e promover métodos de
resistências que desenvolvam visões alternativas para desconstruir, desmascarar e rejeitar a
política kyriocentrica do texto. “O método de interpretação crítica seria aprender a ler
conscientemente „como uma mulher‟ ou „desde uma perspectiva de mulher‟.”50
Procuramos apresentar os métodos feministas de interpretação. Todos podem ser
usados como passos individuais ou podem ser combinados e usados no movimento da dança
hermenêutica feminista de libertação.
49
Kyriocentrismo – neologismo utilizado por Elisabeth Schussler Fiorenza que denomina o complexo sistema
piramidal de dominação que atua a nível simbólico-cultural, ideológico-cultural e socioinstitucional - Fiorenza,
2009. p. 142.
50
FIORENZA, 2009, p. 173.
42
2.4.1 Desconstrução: uma hermenêutica da suspeita
43
vamos crescendo juntamente com a história e a história passa a ser também a história de
mulheres, a história delas e nossas.
44
2.5.1 A Bíblia e a comunidade
45
2.5.2.1 A comunidade e a experiência de Deus
A visão de dois mundos – um santo dentro da igreja e outro fora dela – tem sido
obstáculo para que as comunidades de fé se envolvam na melhoria da sociedade e na
transformação de atitudes que vão contra a vida. A crença de que a vida cristã deve estar
afastada dos processos que tem lugar na sociedade impede, em ocasiões, aportar desde a fé,
soluções aos conflitos do mundo de hoje. O silêncio das igrejas diante das injustiças
existentes, a sua ausência em lugares que reclamam nossa atenção e nosso apoio, a desatenção
a dificuldades que atravessam os seres humanos têm reduzido a mensagem cristã e feito
perder a credibilidade no papel da igreja como construtora do reino de Deus. Por essa razão, a
leitura popular da Bíblia permite fomentar o compromisso de cada crente com o mundo em
que vivemos. Busca que atuemos nas transformações sociais e também que sejamos agentes
ativos no diagnóstico, na crítica, na denúncia e na transformação das injustiças sociais. Dessa
forma, nos converteremos em geradores de soluções desde a perspectiva de Jesus de Nazaré.
46
2.5.2.3 A comunidade e a opção pelos excluídos
Indiscutivelmente a leitura popular da Bíblia deve levar a uma opção completa por
todos os excluídos deste mundo. O reconhecimento de um mundo desigual haverá de conduzir
a solidariedade a cada pessoa vítima de uma sociedade em que subsistem princípios
patriarcais, adultocêntricos, racistas, homofóbicos e hegemônicos. Cada excluído deve
encontrar dignidade nas ações da igreja, a qual deve por no meio cada pessoa que tem sofrido
por sua condição social, sua situação geográfica, seu nível cultural, sua cor da pele, seu
gênero, sua idade, sua identidade sexual etc. A comunidade de fé deve ser espaço de
reconhecimento, aceitação, cura e boas vindas para cada pessoa que existe dentro e fora das
diferentes congregações. A leitura popular da Bíblia nos ajuda a reconhecer nosso papel de
vitimadores ou vitimados neste processo, ao mesmo tempo em que estabelece novas maneiras
de vinculação entre as diferentes pessoas.
2.5.3 Síntese
47
dados acerca da Bíblia, mas de comprometer-se responsavelmente na sociedade com a qual
vive, através da prática, somada a uma leitura constante e crítica da história local, nacional e
planetária.
Denomina-se leitura precisamente para diferenciar dos métodos exegéticos clássicos
(concentrados mais na compreensão da Bíblia, em si mesma) e, portanto, para salientar sua
intenção de relacionar o texto bíblico com a vida cotidiana. Em tal sentido, podemos dizer que
se trata de um tipo de hermenêutica desenvolvida desde o povo comprometido com as
transformações das estruturas do mundo no qual vive que recorre também aos aportes das
ciências bíblicas, com o fim de evitar interpretações ingênuas, pietistas ou fundamentalistas
que frequentemente consideram a Bíblia como um livro sem história.
O termo popular expressa, com acerto, a intencionalidade participativa e não elitista da
proposta, ainda que nem sempre seja apreendido em toda sua complexidade. Em numerosas
ocasiões temos escutado as pessoas identificaram a leitura popular como um exercício ameno,
diverso de técnicas de animação de grupos combinados com exegese. Uma espécie de
vulgarização ingênua dos métodos históricos críticos e das ciências bíblicas contemporâneas,
uma espécie de estudo bíblico sazonado com ingredientes lúdicos. Devemos insistir que o
conceito popular se refere aqui basicamente à busca de outras relações de poder, promotoras
de vínculos de horizontalidade e superadoras da relação sábio-ignorante, como a pretendida
monocultura do saber e do rigor científico.
E, finalmente, o termo feminista expressa o reconhecimento da mulher como sujeito
histórico e interpretativo que busca a superação de todas as espécies de dualismo que
marcaram a leitura e a interpretação da Bíblia. A hermenêutica feminista é uma hermenêutica
ética e política que se caracteriza como uma ética de contracorrente: da priorização do homem
como sexo masculino à igualdade entre homens e mulheres; da exclusão da diferença ou de
uma afirmação num esquema hierárquico à afirmação da diferença como fundamental a todos
os processos vitais.
48
III - LEITURA BÍBLICA POPULAR E FEMINISTA: UM RELATO DE
EXPERIÊNCIA
A mulher nordestina é mulher sempre em busca de uma vida melhor. A teóloga Ivone
Gebara, em seu livro A mobilidade da senzala feminina: mulheres nordestinas, vida melhor e
feminismo52, toma da obra Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre, romance que narra a
história da escravidão no Brasil, dois símbolos: a casa grande – espaço de dominação dos
senhores dos escravos, e a senzala – espaço dos escravos e escravas como inspiração para
51
MACHADO, Antonio. Disponível em: <http://ocanto.esenviseu.net/destaque/machado.htm>. Acesso em 12
set. 2010.
52
GEBARA, Ivone. A Mobilidade da Senzala Feminina: mulheres nordestinas. Vida melhor e feminismo.
São Paulo: Paulinas, 2000.
49
falar da existência de um novo tipo de senzala, marcada pela mobilidade, onde mulheres e
crianças pobres habitam. Ela faz uso dos símbolos da “senzala” e da “mobilidade” para
ilustrar, de maneira particular, a realidade e as experiências de mulheres nordestinas em busca
de uma vida melhor. Ela explica as metáforas:
Na leitura de Gebara, esse novo tipo de senzala é uma senzala psicológica introjetada,
que as escravas carregam dentro de si e projetam concretamente em espaços geográficos e
habitações concretas, onde são submetidas ao mesmo tipo de dominação. Nas histórias de
mulheres que ela ouviu na periferia da cidade de Camaragibe, em Pernambuco, observa que
as mulheres estão sempre migrando, estabelecendo um círculo de constante rompimento e
submissão. Foge de situações opressoras, no relacionamento com pais, maridos ou irmãos, ou
violentos, ou insensíveis, ou omissos, ou simplesmente entregues à vida desregrada de
cachaça e apatia. No novo lugar, experimentam um pequeno período de sensação de
liberdade. Entretanto, logo começam novos conflitos, envolvendo novos homens, sejam
familiares, primos, tios ou então um novo companheiro com as mesmas atitudes dominadoras.
Então, é preciso partir para recomeçar em outro lugar, e esse processo circular parece não ter
fim.
Os sonhos, nessa senzala que carregam onde forem, são pequenos, são sonhos de
sobrevivência. Subsistir, escapar de um destino histórico, escapar de uma dominação
masculina, em busca de uma vida melhor. Essa é uma realidade não só de mulheres pobres
das periferias das nossas cidades nordestinas, mas também de mulheres de classe média que
carregam também suas senzalas psicológicas, culturais e religiosas. A mulher nordestina,
apesar de reconhecidamente ser uma mulher forte e lutadora, também incorporou muito da
cultura de superioridade e dominação masculina como algo natural, uma espécie de “sina” ou
“lei social”. Força e fraqueza se misturam.
Como entender essa força e fraqueza na mulher nordestina? Gebara sugere o conceito
antropológico da mistura para buscar entender a vida e a realidade dessas mulheres. A mistura
53
GEBARA, 2000, p. 18-19.
50
é a complexidade de fatores e concepções não definidos sob a qual se move. Essa mistura está
presente na vida, no cotidiano dessas mulheres, na sua forma de viver e expressar sua fé, suas
crenças. Para Gebara, mistura é um conceito que expressa a complexidade da vida das
mulheres nordestinas:
54
GEBARA, 2000, p. 91.
51
“ser mais” e não menos. Isso demonstra que a cultura da mulher nordestina é uma cultura em
movimento.
Diante desses aspectos culturais, nos perguntamos como a leitura da Bíblia na
perspectiva popular e feminista pode ajudar as mulheres nordestinas em busca de uma vida
melhor?
O Grupo Flor de Manacá teve inicio no ano de 2006 na igreja batista do pinheiro, em
Maceió-AL, com um grupo de mulheres da própria igreja, que começou a se reunir com o
objetivo de ler a Bíblia a partir da realidade da mulher nordestina. O grupo surge provocado
por duas realidades: a primeira delas é a situação de vida de uma grande parte de mulheres
nordestinas que ainda sofrem com o peso cultural do discurso machista e violento perpetuado
por parte da cultura nordestina; a outra realidade que provocou o grupo diz respeito à forma
como o discurso bíblico e religioso é legitimador dessa cultura machista que foi e continua
sendo incorporado pela cultura nordestina. Muitos homens e principalmente mulheres vivem
debaixo do jugo das muitas leituras patriarcais, opressoras e violentas, que têm gerado
relações injustas, medo, dor e marcas profundas.
Flor de Manacá foi o nome decidido para o grupo e a revista que o grupo começou a
produzir reunindo os estudos e as experiências. A Flor de Manacá é o símbolo que expressa
força e fraqueza, luta e resistência, dor e alegria, mutação e beleza da mulher nordestina.
O grupo pretende desenvolver com as mulheres uma leitura bíblica que ajude na
desconstrução das leituras patriarcais aprendidas por meio de uma prática que estimule a
reflexão, o questionamento dos padrões culturais e bíblicos aprendidos, olhando para si
mesmo, para a realidade e para a Bíblia por uma ótica diferente, de tal forma que o grupo seja
um espaço onde cada mulher possa se posicionar como sujeito da leitura da Bíblia e da sua
própria história com uma nova consciência e uma nova atitude.
55
Revista Flor de Manacá. Maceió, Ano 1, n.1, abril 2008. p. 4.
52
Como as leituras conservadoras e patriarcais não são neutras, esta nova leitura também
não o é. Possui intenção de possibilitar a libertação da mulher das construções culturais e
religiosas que as oprimem e as mantêm em situação de “menos vida”, diminuindo sua imagem
e sua capacidade como ser humano. A leitura popular e feminista da Bíblia tem oferecido
recursos para que o grupo possa ler a Bíblia a partir de suas situações e contexto,
possibilitando que as mulheres tomem o lugar de sujeito interpretativo da leitura bíblica,
desenvolvendo uma consciência crítica e uma atitude política diante da Bíblia e da vida.
O Grupo Flor de Manacá busca caminho de libertação, de cura e de reconstrução que
traga vida melhor para mulheres nordestinas através da releitura da Bíblia. Nas comunidades
religiosas existem muito trabalho com grupos: grupos de estudos bíblicos, grupos de
comunhão e convivência, grupos de casais ou grupos familiares e muitos outros, dependendo
das características e particularidades da própria comunidade. O grupo Flor de Manacá se
formou dentro do contexto da Igreja Batista do Pinheiro como um grupo de mulheres com a
missão de estudar a Bíblia na perspectiva da mulher.
Lembrando a experiência dos grupos de autoconsciência56 na origem do movimento
feminista no Brasil, o grupo Flor de Manacá é um grupo formado só por mulheres que têm a
ideia de inter-relacionar as experiências de vida, inquietação e indagações com a leitura da
Bíblia e os conhecimentos feministas.
Maria José de Lima faz referência à importância desse tipo de formação dos grupos
feministas, no contexto da sociedade patriarcal, pois inclui a ideia de discutir o omitido,
pondo em evidência a discriminação. Além disso, fortalece a voz coletiva das mulheres,
rompendo o monopólio da palavra e o poder masculino, e alivia o medo da voz individual. 57
56
Os grupos de autoconsciência feminista eram formados por mulheres interessadas em descobrir as raízes
sociais de seus problemas individuais, ou seja, aquelas responsáveis pela segregação e discriminação da mulher.
57
LIMA, Maria José de. Linha de Vida ou grupo de autoconsciência: uma reflexão sob a ótica feminista. In.
Como Trabalhar com Mulheres. Petrópolis: Vozes, 1988. p. 39.
53
Os princípios que foram definidos pelo grupo são princípios comuns a outros grupos
da igreja que favorecem a realização dos objetivos do grupo.
54
O próprio grupo define seus objetivos. Quando alcança suas metas, surgem
novas motivações. Este ciclo acontece e se repete uma ou mais vezes. O
Grupo Flor de Manacá definiu ampliar seus objetivos para além da
comunidade local e decidiu espalhar a semente dessa leitura da Bíblia para
outras comunidades e grupos. Para isso, iniciou a publicação de uma revista
que compartilhe os estudos e as experiências do grupo. Além disso,
começamos a realizar seminários e oficinas de leitura da Bíblia na
perspectiva popular e feminista com igrejas e em congressos onde somos
convidadas.
Nem sempre as mulheres que procuram o grupo têm consciência do tipo de leitura
que é proposto pelo grupo, por isso os primeiros encontros sempre são dedicados à quebra
de barreiras. A barreira quanto à aproximação das pessoas é a primeira delas, pois mesmo o
grupo sendo da igreja, da mesma comunidade de fé, muitas nunca se aproximaram mais
intimamente para convivência no mesmo grupo. Por isso, sempre iniciamos com a
aproximação das pessoas.
A outra barreira é quanto ao tipo de leitura e à metodologia utilizada pelo grupo.
Como a maioria vem de uma experiência de leituras conservadoras e patriarcais da Bíblia, o
grupo tem o cuidado de perguntar sobre sua maneira de se relacionar com a Bíblia. O que
sabe a respeito da Bíblia? O que gostaria de saber? O que sente a respeito do feminismo ou
estudos de gênero, estudo de mulheres? O que quer ou precisa saber? Essas perguntas
ajudam a fazer um diagnóstico inicial do grupo e conhecer algumas expectativas, ao mesmo
tempo em que são apresentados os objetivos e a metodologia do grupo. Algumas luzes sobre
os pressupostos e a metodologia são colocadas, mas é no processo que o grupo vai se
apropriando dos instrumentais e da metodologia utilizada.
Algumas mulheres, ao conhecerem a proposta do grupo, percebem que não é bem o
que esperavam; outras, mesmo não sendo aquilo que esperavam, continuam para se inteirar
mais e acabam ficando no grupo e se identificando com a proposta; enquanto outras parecem
ter encontrado o que sempre procuravam.
Alguns depoimentos de mulheres depois de conhecerem a proposta do grupo:
55
“Na época de faculdade participei de um grupo que estudava gênero, em que
era discutida a condição da mulher, através de leituras e pesquisas; vejo
nesse grupo uma oportunidade de continuar esse estudo, através da leitura
bíblica, e gosto muito de ser mulher.”
“Gosto muito de ser mulher e de tudo que me ajude a ser melhor como
mulher.”
“Gosto muito de estudar e de ler, sempre tive um sonho que era ler a Bíblia
através de um estudo e agora encontrei esta oportunidade. Venho de uma
família patriarcal em que as mulheres são muito fortes e também gosto de ser
mulher.”
“Fiquei muito feliz, pois sempre quis participar de um grupo sobre o tema,
cujo objetivo principal é se apossar da palavra de Deus sobre a ótica
feminina.”
56
A escolha dos temas e textos se dá num processo democrático e aberto. A
coordenação traz sugestões e ouve sugestões do grupo e ao final chega-se aos temas e textos
a serem estudados. Algumas vezes a sequência do programa de estudos é interrompida para
se tratar temas ou textos que são trazidos diante de alguma demanda eventual. O primeiro
texto estudado pelo grupo foi Genesis, de 1-3, por escolha do próprio grupo, por entender
que as interpretações patriarcais desse texto continuam sendo problemática à vida das
mulheres. O “pecado de Eva” continua tornando a mulher culpada de todo o mal da
humanidade. É definida uma agenda de estudos para cada ano. Na tabela abaixo, estão
incluídos os temas e os textos estudados pelo grupo.
57
As desaprovadas pelo texto:
Dalila – Jz 16 – Seduziu Sansão e colaborou com seu povo para derrotá-lo
A concubina do levita – Jz 19 – deixou o levita e voltou para casa do pai. Foi
entregue para ser estuprada e morta
58
Analise do pré-texto – Pergunta pela situação original que pode ter dado origem ao
texto que se aborda, a sua provável intencionalidade, seu marco geográfico, social, histórico,
cultural, religioso, político, econômico, e ainda as tensões e interesses evidentes ou ocultos.
Temos experimentado com pessoas das comunidades a carência de bibliografia de qualidade
que ajude a iluminar este passo. Aprendemos nessas situações a usar o seguinte princípio
simples: “a Bíblia explica a Bíblia”, que consiste em trabalhar com textos bíblicos que
podem esclarecer aquele que desejamos investigar.
Retorno ao contexto vital atual – Trata-se da ação que relaciona os elementos
adquiridos nos passos anteriores com a vida real e concreta da pessoa e da comunidade de
fé, que pode incluir uma infinidade de formas, como: orações, celebrações litúrgicas, ações
mais amplas para comunidade.
É importante salientar que as quatro etapas mencionadas não são necessariamente
consecutivas. Qualquer uma delas pode começar primeiro ou inclusive sobrepor-se em uma
circularidade hermenêutica criativa.
Este é um texto que o grupo tem trabalhado em oficinas e seminários com diferentes
grupos do interior do Estado e na capital. É um texto que tem uma narrativa muito conhecida
e inclusive possui uma expressão que se tornou popular: “Quem não tiver pecado, atire a
primeira pedra!”. É um texto que por ser conhecido, tem muita reserva de sentido e
interpretação acumulada. Além disso, é um texto que trata da questão da violência contra a
mulher, legitimada pela sociedade e pela lei religiosa da época.
59
Sabe-se que a violência contra a mulher tem caráter universal, mas o destaque no
contexto da realidade da mulher nordestina é o fato dessa violência ser legitimada
culturalmente. A violência é ainda encarada como natural em função da ideologia do
patriarcado arraigado na cultura nordestina. O homem se sente autorizado pela cultura a
exercer impunemente o poder e a brutalidade sobre a mulher. O corpo da mulher ainda é o
lugar onde o homem realiza seus desejos e poderes, justificado pela cultura do “cabra-
macho” nordestino.
Outra razão pela qual escolhemos esse texto é que o grupo está preparando um
trabalho, que será publicado na próxima revista Flor de Manacá, sobre a questão da
violência contra a mulher, buscando, nas releituras bíblicas, alternativas e esperanças para
uma vida melhor e sem violência para as mulheres nordestinas. Com este estudo, iniciamos
um trabalho que terá continuidade com a ampliação do tema da violência.
Este estudo foi realizado com o Grupo Flor de Manacá em Maceió e depois foi
realizado em duas assessorias que o grupo realizou em duas comunidades batistas no sertão
de Alagoas: Palestina, que tem cerca de 5.000 habitantes, e Jacaré dos Homens, que tem
cerca de 6.500 habitantes. Para os ambientes de estudos foram preparadas salas com
cadeiras, painel com o tema do estudo e recortes de notícias de jornal sobre violência contra
a mulher. No centro da sala, algumas pequenas pedras.
O estudo foi iniciado com uma oração e cada participante foi convidada a pegar uma
das pedras no centro da sala. Em atitude de reflexão foi feita a leitura do texto de João 8.1-
12 e em seguinte reflexão bíblica:
- Nos coloquemos na situação dessa mulher que ia ser apedrejada. Pensemos em seu
tormento, em seus medos e sentimentos. Se você fosse essa mulher, como se sentiria?
- Nos coloquemos também no lugar dos que levaram a mulher para apedrejá-la, os escribas e
os fariseus. Tentemos ver essas pessoas sem julgá-las, desde nossos critérios até as leis que
regiam a sociedade.
- Pensemos também em alguém que não aparece no texto, o homem com o qual a mulher
cometeu adultério. Perguntemos por que não está também em meio do grupo para ser
60
julgado. Pensemos em possibilidades de lugares e situações em que ele poderia estar no
momento em que a mulher estava sendo condenada a morrer apedrejada.
- Pensemos também em Jesus. Por um lado, ele está preso pelas leis que são suas leis como
judeu. Os escribas e fariseus o chamam de “Mestre” e ele está ensinando no templo.
Podemos supor que não aceitava as leis que tratava essa mulher que está diante dele como
“uma coisa” sem sentimento nem direito à vida. Pensemos em como se sentiria Jesus sendo
também ele parte dessa sociedade? Por que será que se pôs a escrever na terra?
- Voltemos a pensar agora nos que acusavam a mulher com pedras nas mãos prontas para
atirar. Que haveriam feito para chegar a deixar as pedras e empreender o caminho de
regresso?
- Voltemos a pensar em Jesus diante da saída dos acusadores, reconhecendo o triunfo de sua
atitude. Imagine a alegria do encontro de Jesus com a mulher agora como um ser humano,
que até aquele momento era somente um objeto de acusação.
- Dirijamos agora o nosso olhar para aquela mulher sozinha com Jesus. Seguira sentindo
medo ou vergonha? Como a imaginamos no caminho de volta pra casa?
61
Com os grupos no sertão fizemos a leitura do cordel de Zé da Luz Cunfissão de
cabôco58, que fala de um caboclo que, por não saber ler, acaba matando sua mulher na
suspeita de que ela o estivesse traindo. Depois descobre, através de uma carta que ela tinha
escrito, que a mulher era inocente. Depois da leitura do cordel, o grupo foi convidado a
conversar sobre o cordel e a realidade em relação aos casos de violência contra mulher.
Neste estudo, juntamos os dois passos. Houve variação também na análise do texto
com os diferentes grupos. No grupo de Maceió foram discutidas as perguntas em pequenos
grupos, depois de uma leitura detalhada do texto.
1- Quem já ouviu a expressão “quem não tem pecado atire a primeira pedra”?
2- De onde vem essa expressão?
3- Vocês conhecem a história de onde foi tomada essa expressão?
4- Vamos contar a história como conhecemos.
5- Agora vou ler como diz na Bíblia
58
Cordel de Zé da Luz. Disponível em:< http//textos-legais,nireblog.com/post/2007/o1/05/confissão-de-
caboclo>. Acesso em 26 ago. 2010
62
3.3.6 Subsídios usados para análise do texto
Neste caso, em todos os estudos, foi usado apenas o princípio simples de “a Bíblia
explica a Bíblia”, mediante o fato de se trabalhar com textos bíblicos que podem esclarecer
aquele que desejamos investigar. Trabalhamos com texto Deuteronômio 22.22-29 para
conhecer como eram as leis que tratavam o caso de adultério no AT.
Os escribas e fariseus estão usando a lei de Moisés para acusar a mulher. O que diz a
lei sobre o adultério? Vejamos o que diz a lei. O texto apresenta algumas situações
específicas concernentes ao adultério. A primeira delas relaciona-se com uma mulher cujas
núpcias já haviam sido contraídas (22.22). A situação da mulher é descrita como “tendo
marido”, ou seja, é a mulher legitimamente casada que vive com o marido e é surpreendida
em flagrante delito do ato libidinoso, de forma que ambos (mulher e o ofensor) recebiam a
pena capital. A segunda trata-se de uma virgem, desposada, isto é, que muito embora não
tenha entrado em união física com seu marido por meio do laço do casamento, já estava
comprometida com seu noivo e ajustadas todas as formalidades do casamento. (22.23). Uma
vez feita a aliança entre as famílias e pago o dote, estava casada de forma contratual.
Portanto, seguindo os padrões culturais hebraicos, a donzela comprometida em casamento
com seu noivo, caso mantivesse relação sexual com outro homem, seria culpada de adultério
e, consequentemente, condenada à morte com o ofensor do marido.
Em casos de violação de uma virgem, a lei distingue duas situações: a primeira delas
trata do caso de uma jovem seduzida na cidade (22. 24-28). Neste caso, a lei obriga a mulher
a pedir auxilio, caso viva na cidade, senão presume-se cumplicidade com o violentador.
Levando em conta que as cidades eram pequenas, com ruas muito estreitas e casas
desordenadas, qualquer grito poderia ser facilmente ouvido. E se a mulher não pode gritar?
A lei era implacável! Esta lei encerra certa suspeita ainda vigente de que toda mulher
violentada consente de alguma forma a violação, salvo que explicitamente demonstre o
contrário.
A segunda situação seria quando a sedução ocorria fora dos limítrofes da cidade, isto
é, no campo (22. 25-29). Neste caso, quando a violação é no campo, presume-se que a
mulher é inocente. Mas, observe-se que o próprio fato da violação não é um delito tão grave,
mas sua possibilidade de adultério. Isso é mais bem observado quando a mulher violentada
não está comprometida (22. 28 e 29).
63
Voltando ao texto de João 8.1-12
1. O texto da lei é citado pelos escribas e fariseus de forma incompleta. A lei não trata
apenas da mulher. A lei inclui, em alguns casos, o apedrejamento dos dois.
2. A ausência física e discursiva do companheiro de adultério. Não se faz referência
alguma a ele.
3. Ausência de testemunhas como prescreve Dt. 17.6.
Todo episódio parece girar ao redor de Jesus e dos acusadores. A mulher, como um
objeto, é colocada em meio da multidão e exposta à vergonha pública. Embora fisicamente
esteja no centro do grupo, o interesse central dos seus delatores não seria ela, mas Jesus. O
centro do texto parece está no verso seis: “Isso diziam eles, tentando-o, para que tivessem de
que o acusar. Mas Jesus, inclinando-se, escrevia com o dedo na terra” (Jo 8.6). O narrador diz
que tudo é uma trama para pôr Jesus a prova. A estratégia dos acusadores de Jesus é a
utilização da lei, do que “está escrito”, para acusar e condenar Jesus e a mulher.
Não foi essa a única vez que, no evangelho de João, fez-se referências à tentativa de
apedrejamento, a pena capital dos judeus: vejamos outras: Jo 8.1-9; 10.31-33; 11.8 e 12.10.
Observe que são sempre as lideranças do judaísmo os maiores adversários e perseguidores de
Jesus. Parece que Jesus ameaça o sistema religioso e legal dos judeus, por isso sofre
perseguição e violência. Para os judeus, a lei era o caminho, a verdade e a vida. Mas no
Evangelho de João, Jesus de Nazaré é quem é o caminho, a verdade e a vida (Jo 8.12; 9.5;
14.6; 8.12).
64
Terceiro passo: retorno ao contexto atual.
Vivemos em uma sociedade patriarcal e violenta. Ainda as mulheres são vítimas das
“leis machistas” que imperam em nossa cultura. Em nome do que diz a Bíblia, muitas pessoas
desenvolvem atitudes violentas e condenatórias. Que experiências temos em relação à Bíblia?
Ela é mais usada para acusar e condenar ou para libertar e perdoar? Tomando outra vez as
pedras nas mãos, vamos refletir sobre que novos olhares há sobre esse texto. Que atitudes
novas podem desenvolver depois deste estudo?
Vamos refletir sobre a pedra e a Bíblia: as duas podem ser usadas para destruir ou
construir. Como aquela multidão tinha escolhas, nós também temos. O que fazer com a
Bíblia? Usá-la para destruir ou construir? Vamos também refletir sobre o desafio de
construir e reconstruir novas relações sem violência. A mesma Bíblia, tão usada às vezes
para acusar, julgar e destruir, pode ser usada para libertar, curar, restaurar e transformar. A
Bíblia pode também ser instrumento para construir novas relações de justiça e paz. De mãos
dadas, com uma canção e uma oração, encerramos o nosso estudo.
65
Observamos que os conflitos que vão surgindo entre as interpretações e os conceitos
aprendidos e a leitura atual que está sendo feita geram tensão e até resistências, mas é nesse
conflito que acontece o crescimento individual e o do grupo. São percebidas também, através
das falas, novas buscas, inquietações e percepções que vão surgindo. As mulheres tomam
consciência de realidades que antes não eram percebidas e sempre dizem: “agora percebo as
coisas de outro jeito”. E tudo isso acontece em torno do estudo da Bíblia.
3.3.8 Concluindo
Falar como se faz é mais difícil do que fazer. Falar sobre hermenêutica popular e
feminista da Bíblia é um processo que se requer dizer como se faz, fazendo. Essa experiência
é apenas um jeito, um caminho. Não é o único, nem o melhor e nem definitivo. Na
experiência de cinco anos do Grupo Flor de Manacá temos feito sempre novas descobertas e
desafios e, sobretudo, continuamos sempre aprendendo e desaprendendo. Depois de termos
apresentado alguns dos elementos que conformam nosso trabalho bíblico em nossa
comunidade como espaço formativo, é possível distinguir algumas chaves importantes e
pressupostos mais visíveis em nossa metodologia.
O grupo como sujeito da leitura popular e feminista da Bíblia - O grupo constitui uma
preocupação constante para o nosso trabalho. Por essa razão, foi indispensável abordar
algumas características do grupo. É nesse espaço vivo e dinâmico do grupo que é possível
encontrar a levedura que faz a massa do conhecimento e do espírito.
A relação Bíblia e vida – Essa relação constitui ponto importante para lograrmos
nossos objetivos. Para isso, o instrumental da Leitura popular da Bíblia é fundamental. Neste
sentido, o texto bíblico torna-se a mediação para a revelação de nós mesmas e de nossa
realidade. Não vamos ao texto pretendendo absolutizar uma interpretação, como se fosse a
única e a última possibilidade. Compreender o texto é expor-se a ele para que possamos
compreendê-lo de novo e nos compreender de novo. Dessa forma, a leitura que fazemos da
Bíblia é uma maneira de ser, de relacionar-se e de compreender a vida.
A politicidade da leitura da Bíblia- A Hermenêutica popular e feminista não é apenas
um esforço isolado para se ler a Bíblia de outro jeito, mas é uma hermenêutica política que
toca as bases de sustentação das estruturas sociais e religiosas legitimadoras de injustiça. Por
isso, a leitura que o grupo faz da Bíblia se define politicamente como feminista.
66
Uma leitura regionalista - A leitura da Bíblia que engloba os aspectos culturais
reconhece que a forma de ser e de viver é caracterizada não apenas pela realidade sexual, de
ser homem ou mulher de forma universalista. A nossa realidade cultural e regional influencia
na maneira que lemos e interpretamos a Bíblia e a vida. Por isso a importância de incluir a
nossa identidade regional na leitura que fazemos da Bíblia, como uma maneira de
compreender o texto compreendendo a existência das mulheres nordestinas, suas esperanças,
seus gritos de dor, sua cumplicidade com o mal do mundo e sua maneira de buscar uma vida
melhor.
67
CONCLUSÃO
68
foram mais recompensadores neste processo: o primeiro foi que, através da pedagogia e da
metodologia da leitura popular e feminista da Bíblia, ganharam espaço no grupo novos
sujeitos. A mulher nordestina, sujeito relegado, entra de forma pungente na leitura e
interpretação da Bíblia. É um desafio aos sujeitos tradicionais que se consideram “os
sujeitos”, que nos enganaram fazendo-nos crer que somos inferiores como mulheres, pobres,
negras ou nordestinas, pessoas com pouca educação formal ou porque temos pouco poder
econômico.
Este trabalho usa uma metodologia que parte das pessoas, de suas histórias, suas
crenças, seus valores, enfim, sua vida nos aspectos mais comuns. Não somos leitoras e
leitores imparciais: somos pessoas com corpos, cor, sexo e idade. Corpo que trabalha, que
sofre, que se alegra. Quando nos aproximarmos do texto bíblico a partir de uma hermenêutica
popular e feminista fazemos essa aproximação com toda a nossa vida, os trabalhos
domésticos, o cuidado dos filhos e filhas, as preocupações com a casa e a alimentação, a
saúde, a sobrevivência, o cansaço, a rotina, a sexualidade, os sonhos de uma vida mais
humana de amor e paixão, de alegria. Enfim, trazemos para a nossa leitura da Bíblia a nossa
cor, o nosso cheiro, o nosso jeito de ser e de viver.
O outro ponto que destaco como mais recompensador deste trabalho foi o de perceber
a sensibilidade libertadora da comunidade que aceitou o caminho para juntos e juntas
aprendermos a trabalhar, propor, discutir, lutar e, muitas vezes, sofrer. Respondendo a
situação de uma cultura de violência, tantas vezes justificada pela Bíblia e a religião, a
comunidade acolheu o projeto de uma nova proposta de estudo em que um processo de
conscientização, de visualização e de conhecer essa realidade conduz a uma transformação e
uma mudança para uma vida melhor para as mulheres nordestinas. A Bíblia e a comunidade
transformam-se, assim, em resgatadoras da cultura nordestina, buscando os sinais e os
projetos de vida e humanidade presentes na Bíblia e na vida. Essa mistura de vida,
comunidade e leitura da Bíblia pode ser muito transformadora.
69
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