O Atendimento Psicológico Ao Adolescente
O Atendimento Psicológico Ao Adolescente
O Atendimento Psicológico Ao Adolescente
RESUMO: Esse artigo apresenta o estudo de ABSTRACT: This paper is a case study about ETIENE OLIVEIRA
caso de um atendimento psicoterapêutico realiza- the individual systemic therapy with one teen- SILVA DE MACEDO1
do com uma adolescente e sua família, com base ager and her parents. It´s objective is to show
na terapia sistêmica individual. O objetivo é mos- to show the importance of individual systemic
ANALICE DE SOUSA
trar como a terapia sistêmica pode ser realizada therapy with children and adolescents also in-
ARRUDA VINHAL
com crianças e adolescentes de modo individual, cluding the family in the orientation of parents.
incluindo também a família no formato de orien- Metaphors, circular questions and therapeutic
CARVALHO2
tação de pais. Metáforas, perguntas circulares e games were used in individual sessions and
jogos terapêuticos foram utilizados ao longo do sessions of orientation of parents. Individual
atendimento, realizado em sessões individuais sessions and parenting sessions were focused 1
Instituto de Educação em
com a adolescente e sessões de orientação de on the dynamical relationships of the family Psicologia (Goiânia-GO)
pais. As sessões individuais e sessões de orien- group and their impact in adolescent develop- Universidade Paulista
tação de pais mantiveram o foco na dinâmica ment, emphasizing the complexity, instability (Campus Goiânia)
relacional do grupo familiar e suas ressonâncias and intersubjectivity that exist in the parents and 2
Instituto de Educação em
no desenvolvimento da adolescente, destacando children relationship.
Psicologia (Goiânia-GO)
aspectos da complexidade, instabilidade e inter-
Pontifícia Universidade
subjetividade presente na relação pais e filhos. KEYWORDS: Psychotherapy of Adolescent; Católica de Goiás
Orientation of Parents; Individual Systemic Universidade Paulista
PALAVRAS-CHAVE: Psicoterapia com adolescen- Therapy. (Campus Goiânia)
te; Orientação de pais; Terapia sistêmica individual.
INTRODUÇÃO
http://dx.doi.org/10.21452/2594-43632019v28n64a05
teóricas, compartilham da ideia de a complexidade, a instabilidade e a
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que os componentes familiares são di- intersubjetividade. Por complexidade
nâmicos e interativos. Sejam padrões se compreende a capacidade auto-or-
estruturais, formas de comunicação ganizadora do sistema em que o todo
ou produção de significados, os te- é indissociável da parte, ao mesmo
rapeutas familiares orientam-se do tempo em que, separadamente, a par-
déficit para o crescimento em busca te traz aspectos constitutivos do todo,
de reconhecer e ampliar o potencial sem, contudo, apresentá-lo por com-
construtivo da família nessa reinven- pleto. A instabilidade faz referência ao
ção da vida (Walsh, 2016). caráter dinâmico do conhecimento,
Este artigo apresenta um estudo não há verdades a priori, pois o mun-
de caso que mostra a contribuição da do é movimento e imprevisibilidade.
terapia sistêmica com foco no atendi- E o pressuposto da intersubjetividade
mento ao adolescente e sua família. Os entende que não há neutralidade entre
eixos teóricos desse artigo articulam observador e o fenômeno observado
os pressupostos do pensamento sistê- (Vasconcelos, 2010).
mico (Vasconcelos, 2010) com a tera- Assim, para a teoria sistêmica, uma
pia individual de orientação sistêmica queixa comparece como tal em função
(Boscolo & Bertrando, 2013). de sua própria relação na constituição
As reflexões foram construídas a do sistema familiar. O objetivo do te-
partir do atendimento psicoterapêuti- rapeuta sistêmico é interagir com os
co de uma adolescente e seus pais. O familiares, na criação conjunta de hi-
recorte deste trabalho será a tarefa da póteses e desenvolvimento de recur-
adolescência e a parentalidade, a par- sos a partir das interações no próprio
tir do atendimento psicoterapêutico sistema familiar, em lugar da interven-
de uma adolescente e sua família nesse ção diretamente voltada à remissão de
momento do ciclo vital. Trabalhos vol- sintomas ou modificação de compor-
tados ao atendimento infantil são mais tamentos-alvo.
comuns e têm um amplo escopo de Frente às queixas e conflitos gera-
publicações e métodos sistematizados. dores de sofrimento, a abordagem à
Estudos clínicos com foco no atendi- família é cuidadosa para não estabe-
mento do adolescente ainda não têm lecer objetivos terapêuticos irrealistas,
a mesma robustez, principalmente na baseados em padrões clínicos e cultu-
perspectiva do atendimento sistêmico. rais a partir do binômio saúde-doen-
Essa é a maior contribuição pretendi- ça, sem considerar o próprio modo de
da com este artigo. vida de cada família. Cada sistema tem
O objetivo é trazer alguns aponta- um funcionamento que lhe é peculiar
mentos sobre a adolescência no de- e a normalidade ou disfunção só tem
senvolvimento do ciclo vital familiar, a sentido no contexto específico dos
partir de um estudo de caso de um pro- subsistemas envolvidos (Walsh, 2016).
cesso de atendimento clínico realizado Por sistema compreende-se a orga-
com uma adolescente. Serão apresen- nização familiar e sua transformação,
tadas vinhetas ilustrativas agregadas a partir da regulação dos comporta-
às reflexões desenvolvidas ao longo do mentos de seus membros. A família
processo terapêutico realizado. é um sistema que possui subsistemas
O pensamento sistêmico contribui como o conjugal, parental e fraternal,
com a elucidação do fenômeno psico- que funcionam a partir de padrões
lógico a partir de pressupostos como transacionais e geracionais necessários
quarta geração (Carter & McGoldrick, cias familiares ao longo do tempo são Etiene Oliveira Silva
de Macedo
1995a; Nichols & Schwartz, 2007). marcadas por fluxos verticais e hori- Analice de Sousa Arruda
Vinhal Carvalho
Assim, compreender a dinâmi- zontais. Por fluxos verticais entende-
ca das relações entre os membros de -se os padrões de relacionamento e
uma família dentro de sua estrutura funcionamento transmitidos ao longo
é mais importante do que se ater ao do tempo, como tabus, crenças, mitos,
seu formato propriamente dito. São lealdades. Por fluxos horizontais com-
os laços relacionais que organizam as preende-se aqueles estressores previsí-
pessoas dentro de um grupo familiar veis e imprevisíveis ao longo do tempo
e as mantêm de alguma forma vin- que suscitam ansiedade e demandam
culadas. E essas relações são insubs- remanejamentos ao sistema familiar.
tituíveis. Famílias se arranjam e rear- A adolescência, por exemplo, é um
ranjam em formatos diferentes. Mas estressor horizontal, normativo, que
é a qualidade da relação construída qualquer família com filhos enfrenta.
quando os subsistemas interagem que Mas o grau de dificuldade da relação
as habilita para criarem seus próprios entre pais e filhos durante esse está-
caminhos, serem flexíveis e resilien- gio depende de como convergem os
tes (McGoldrick & Shibusawa, 2016; estresses verticais e horizontais em
Walsh, 2016). cada família. Ou seja, depende da
A partir da reflexão desses autores, confluência dos mitos, valores e le-
compreendemos que prover espaços gados com a vivência familiar sobre
relacionais de pertencimento e aceita- esse estágio. Assim, para determina-
ção entre adolescentes e seus pais em das famílias, a adolescência pode ser
meio aos conflitos geracionais é um vivenciada com maior sofrimento e,
dos, se não o maior desafio de tera- para outras, pode ser um estágio pro-
peutas infantojuvenis sistêmicos. missor para o crescimento coletivo e
Para compreender esses conflitos, a individual de cada membro (Carter &
noção de ciclo vital familiar é funda- McGoldrick, 1995a).
mental. A estrutura clássica do ciclo De acordo com o desenho formal
vital familiar compreende oito está- do ciclo de vida familiar, podemos di-
gios que são articulados aos eventos zer que primeiro os casais se juntam e
transicionais que a família vivencia: formam a família, depois se preparam
casamento, nascimento de filhos, para ter filhos, aprendem a cuidar des-
educação de filhos durante a primeira ses filhos e, em seguida, sentem que
infância, educação de filhos durante a desaprendem, quando a adolescência
pré-escola, educação de filhos duran- chega. Depois de crescidos, alguns
te a adolescência, o preparo e saída conflitos resolvidos, outros não, os fi-
do lar, o estágio do ninho vazio até o lhos saem de casa. E o casal tem novas
último estágio, com a aposentadoria e tarefas e o desafio de seguir como casal
falecimento de um dos cônjuges. e se preparar para a velhice e finitude
Em cada estágio existem tarefas (Carter & McGoldrick, 1995a).
esperadas que fazem parte do pro- A ideia de transição como uma
cesso normativo do desenvolvimen- passagem decisiva em momentos-
to familiar, que podem ser realizadas -chave do ciclo de vida é bem aceita
(Carter & McGoldrick, 1995b). bilidade, incerteza marca a passagem Etiene Oliveira Silva
de Macedo
O adolescente tem a tarefa de se para um novo equilíbrio funcional. Analice de Sousa Arruda
Vinhal Carvalho
aventurar em decisões próprias, fa- E quanto mais a família suporta esse
zer escolhas que podem ser diferentes processo, maior será a capacidade de
das escolhas dos pais. Algumas vezes diferenciação do indivíduo, em ter-
esse movimento desencadeia conflitos mos da aquisição de habilidades para
emocionais e o afastamento de pesso- as reconfigurações do sistema fami-
as até então tidas como fundamentais. liar e para seu crescimento pessoal
Os pais, sentindo-se “rebaixados” ao (Andolfi, 1984).
segundo plano, têm a tarefa de permi- A família precisa desenvolver a ca-
tir essa mudança, sem que isso impli- pacidade de tolerar e resolver os con-
que um abandono ou ausência na vida flitos, sem permitir o aniquilamento
dos filhos (Macedo, 2018). das individualidades. Adolescentes
Essa é uma das maiores dificulda- que vivem em ambientes onde se per-
des do sistema familiar: permitir uma mite contradições e peculiaridades
maior separação sem o rompimento tendem a construir um senso de si e a
de relações e vínculos, manejando os capacidade para relações de intimida-
estressores e riscos de perda da boa de, mais do que aqueles que vivem em
convivência familiar. Não há dúvida ambientes rígidos e punitivos (Kobac
de que esse período afeta os pais, os & Mandelbaum, 2003).
cônjuges, irmãos e todo o restante do Ou seja, se os pais podem permane-
sistema familiar. O quanto esse siste- cer amando durante o processo de in-
ma será ou não afetado vai depender dividuação, os adolescentes mantêm o
deles mesmos a priori (Guimarães & senso de sentirem-se amáveis ao alcan-
Costa, 2003). çar a individualidade. Quando podem
Abordar a família na perspectiva expressar raiva e tristeza em relação
relacional sistêmica não prescinde da aos pais, podem se desenvolver de for-
importância de compreendermos o ma mais autônoma, sem o enfraqueci-
comportamento individual em seu ci- mento dos vínculos entre pais e filhos.
clo evolutivo. Para isso, Andolfi (1984) Assim como na infância, os ado-
destaca a necessidade de diferencia- lescentes precisam ser afirmados por
ção como constitutiva do desenvolvi- seus cuidadores em três dimensões:
mento individual dentro do ciclo fa- que será possível e permitida uma co-
miliar. O indivíduo integra um grupo municação aberta com seus pais; que
familiar coeso o bastante para que ele eles são acessíveis; que fornecerão
possa gradualmente se diferenciar em apoio e presença quando necessário.
busca da autonomia e independência. A diminuição de contatos físicos, de
Essa individuação não leva ao rompi- que os pais se queixam, não é necessa-
mento dos vínculos familiares, mas riamente diminuição do afeto, mas se
sim a uma reconfiguração do sistema passa a uma negociação na expressão
com novas funções e tarefas. dos sentimentos, em que a relação en-
A capacidade de mudar, se deslo- tre pais e filhos precisa estimular a au-
car, participar, separar e juntar per- tonomia dos adolescentes (Diamond
mite a emergência de funções únicas, & Stern, 2003).
que aconteciam em casa. Por esse mo- disparar as conversas dos primeiros Etiene Oliveira Silva
de Macedo
tivo, evitava manifestar suas opiniões encontros. Com perguntas sobre au- Analice de Sousa Arruda
Vinhal Carvalho
e calava-se sempre que era corrigida toimagem, família, relacionamentos,
ou se sentia criticada pelo pai, mãe sentimentos, amigos, autoestima, en-
ou outro membro da família extensa. frentamento, esse instrumento facili-
Relatou que tinha um relacionamen- tou a abordagem à Aurora. As per-
to próximo com a avó materna. Mas guntas e respostas eram alternadas
algumas vezes havia conflitos, pois se entre a terapeuta e a adolescente, de
Aurora fizesse o que a avó desejava, modo que, por meio das respostas, a
então ela era recompensada com rou- terapeuta também buscava demons-
pas, acessórios ou outros objetos que trar sua disponibilidade para a cons-
lhe interessavam. trução de vínculo e confiança.
Na escola, relatou que mantinha À medida que se percebiam aspec-
relacionamentos significativos e dura- tos relevantes relacionados aos temas
douros já que convivia com o mesmo abordados, perguntas eram aprofun-
grupo desde quando estudava na Edu- dadas e a adolescente compartilhava
cação Infantil. À época da psicotera- seus interesses, impressões, opiniões,
pia, alguns conflitos entre ela e seus lembranças, medos e sonhos. Como
amigos começaram a acontecer, em ela se manteve interessada nos te-
decorrência de um posicionamento mas discutidos, o jogo foi utilizado
mais assertivo de Aurora sobre diver- ao longo de oito sessões. Ao final de
gências nas opiniões e preferências. cada encontro, a metáfora do baú
Aurora consentiu em participar era retomada com a pergunta: “o
de encontros terapêuticos semanais que você retira do seu baú hoje e o
e, por meio de uma metáfora, elen- que você coloca dentro dele?”. Nes-
camos os objetivos do atendimento. ses momentos, a adolescente refletia,
Utilizando a metáfora de um baú há avaliava e considerava suas possibili-
tempos guardado, de onde se reti- dades de uma ação diferente da que
ram objetos não utilizáveis e onde se vinha sendo apresentada na família
guardam objetos de valor, sugeriu-se e no grupo de pares. Esse momen-
à Aurora que refletisse sobre o que ela to também foi importante porque
desejava para o atendimento. Ela res- configurava-se como oportunidade
pondeu: “me conhecer e me entender para autoavaliação e avaliação do
mais e fazer com que meus pais me processo terapêutico em termos de
entendam”. Parafraseando, os objeti- alinhamento dos objetivos e hipóte-
vos do atendimento foram: desenvol- ses levantadas ao início do processo
ver o senso de segurança em si, dife- de atendimento.
renciar-se dos pais, construir limites Terminado o jogo, as sessões se-
para aprender a dizer não, conviver guintes foram para a confecção ma-
melhor com a família. Daí por dian- nual do baú, utilizando revistas e
te, os encontros seguintes utilizaram papelão, que, depois de pronto, foi
essa metáfora, no sentido de buscar entregue à adolescente como sím-
diferenciar entre necessidades dela e bolo daquele processo de aprendi-
necessidades dos pais. zagem. Nos encontros em que esse
termos de dificuldades e potenciali- importantes, que, sem dúvida, esta- Etiene Oliveira Silva
de Macedo
dades. Trata-se de um instrumento vam influenciando o relacionamento Analice de Sousa Arruda
Vinhal Carvalho
que faz parte de uma produção teó- com a adolescente. Esta, por sua vez,
rica ainda não publicada por uma das parecia estar caminhando para o lugar
autoras (Macedo, 2017). de filho parental, assumindo a respon-
Também se buscou criar um clima sabilidade pela boa convivência entre
de acolhimento e esclarecimento de pai e mãe.
dúvidas sobre o atendimento da ado- Os demais encontros de orienta-
lescente, bem como sobre a reflexão ção de pais tiveram como objetivo dar
acerca da parentalidade e coparen- continuidade às reflexões propostas
talidade. As conversas com os pais no acolhimento, bem como levantar
aconteceram no sentido de propiciar a demandas que estivessem emergindo
reflexão sobre seus papéis e a relação do processo terapêutico de Aurora. Os
do momento atual com suas histórias pais descreveram a filha como mais
de vida e família de origem. Tendo em motivada para estudar, responsável e,
vista que é preciso primeiro engajar os ao mesmo tempo, mais “respondona”,
pais, os encontros tiveram o objetivo o que para eles significava um maior
de acolher suas preocupações, bus- enfrentamento quando opiniões eram
car uma aliança que fosse terapêutica divergentes.
também para eles (Escudero & Muñiz Aqui um parêntese: observou-se
de La Peña, 2008). que esse termo foi referido pelo pai
Além do preenchimento da ficha para descrever as tentativas de enfren-
autoavaliativa, o primeiro encontro de tamento que Aurora fazia diante das
orientação de pais teve como objetivo imposições que, para ela, não eram
diferenciar aspectos da vida conjugal adequadas, como, por exemplo, as
e da relação parental, para, então, pro- constantes proibições para visitar co-
por um esquema de orientação. Eles legas, vestir certos estilos e roupas ou
conseguiram compreender como tais demonstrar preferências musicais com
conflitos estavam repercutindo nega- as quais os pais não concordavam. En-
tivamente no relacionamento com a tende-se que Aurora estava ensaiando
filha adolescente, bem como em seu formas diferentes de responder às si-
desenvolvimento. Eles também refe- tuações de conflito, pois, costumeira-
riram culpa, dificuldade no ajuste de mente, ela se retirava e silenciava, não
tarefas entre o pai e mãe na educação demonstrando aos pais sentimentos
da filha e foram encorajados a reco- de tristeza, hostilidade e decepção.
nhecer seus acertos e recursos para Em uma das sessões individuais, a
desenvolver estratégias alternativas mãe de Aurora foi convidada a parti-
àquelas que vinham sendo executadas cipar. Por meio do jogo “Será que co-
no processo de educação, como pu- nheço você?” (Moura, 2005), realizou-
nições e represálias. Foi um momen- -se a mediação de uma conversa entre
to oportuno para identificar padrões ambas. O jogo consiste em um con-
intergeracionais de relacionamento da junto de cartas com perguntas que são
família de origem e ensaiar novas for- respondidas alternadamente pelo filho
mas de atuação frente à adolescente. acerca dos pais e pelos pais acerca do
dos como mecanismos de punição e cia como filho também impedia uma Etiene Oliveira Silva
de Macedo
barganha, ele começou a criar regras maior intimidade com ela. Analice de Sousa Arruda
Vinhal Carvalho
e parâmetros mais realistas em rela- Aurora também observou mudan-
ção às expectativas sobre seu desem- ças no comportamento dos pais. Rela-
penho escolar, ampliando o tempo e tou, ao final das sessões, que se sentia
qualidade do diálogo reflexivo sobre mais feliz porque percebia nos pais a
os benefícios e prejuízos do uso de tentativa de dialogar com tolerância e,
eletrônicos. Essa medida reduziu sig- sobretudo, o real desejo de vinculação
nificativamente os conflitos entre pai com ela. De igual modo, ela mostrou à
e filha e possibilitou o início de uma família o desejo de participar da mu-
comunicação mais amorosa e toleran- dança familiar, a partir da mudança
te entre eles. de si mesma. Começou a aceitar as
Numa das sessões de orientação, orientações, sobretudo do pai, como
o pai refletiu sobre sua própria ado- tentativas de aproximação e não im-
lescência e as repercussões de suas posições arbitrárias.
vivências em seu modo de ver os ado-
lescentes, bem como no modo de se “Assim, eu gosto de conversar com
relacionar com sua filha. Segundo Es- meu pai sobre as coisas, ainda não falo
cudero & Muñiz de La Peña (2008), tudo não, mas eu sei que ele fala as coi-
perguntas sobre a adolescência dos sas pro meu bem.” (Aurora, 11 anos)
pais são importantes para conectá-
-los ao tempo presente, ajudando-os Essa mudança de paradigma, reali-
a serem mais objetivos em relação às zada pela adolescente e estendida aos
expectativas que têm sobre a adoles- pais, corrobora a afirmativa de Walsh
cência dos filhos. (2016) sobre a centralidade no poten-
cial cuidador da família. Ao final des-
“Eu não quero que aconteça com ela sa etapa do processo terapêutico, pai,
o que aconteceu comigo. Meu pai mãe e filha estavam construindo uma
nunca falou, nunca orientou e se eu relação alternativa àquela até então
tivesse tido o que ela tem, talvez hoje existente, mais afetuosa, num clima de
seria diferente.” (Pai, 44 anos) pertencimento, aceitação, escuta e diá-
logo reflexivo.
Visto de maneira ecológica, uma Em relação ao subsistema conjugal,
mudança de primeira ordem é en- os pais acolheram o convite de parti-
tendida como uma tentativa visível cipação em terapia de casal com outro
de algo novo, um comportamento ou profissional. Inicialmente, a proposta
ato. A mudança de segunda ordem era que, enquanto a adolescente esti-
demanda uma modificação no siste- vesse em psicoterapia individual, os
ma, como a relação com o filho, o que pais poderiam ser acompanhados em
inclui sua própria relação como filho. suas demandas conjugais, Cogitou-
O foco deixa de ser o comportamento -se, oportunamente, ampliar o aten-
problemático, por exemplo, para uma dimento para sessões de terapia fami-
compreensão de sua relação com esse liar com todos os membros do grupo,
filho (Berthoud, 2003). Por exemplo, mas o casal optou por suspender o
e certa permissividade no relaciona- em vez de estagnar, mobilizou outros Etiene Oliveira Silva
de Macedo
mento com ela e sua família. Cogita- recursos desse sistema para o cuida- Analice de Sousa Arruda
Vinhal Carvalho
-se a possibilidade de, oportunamen- do e proteção uns dos outros. A mãe
te, esse atendimento ser revertido em pareceu estar lidando melhor com sua
terapia familiar, quando assim a famí- ausência de casa, reconhecendo sua
lia demandar. importante colaboração no sustento
Como foi visto, o processo terapêu- familiar, e o pai conscientizou-se de
tico com Aurora teve efeito circular, que estaria subutilizado com as tarefas
beneficiando também o sistema fami- que realizava.
liar. O pai, que vivia um período de Finalizado esse estágio do atendi-
desequilíbrio emocional por não es- mento, soube-se que a família havia
tar à altura da condição de provedor, montado um negócio local para a
voltou-se aos recursos do momento venda de bolos caseiros, já que o pai
para manter uma relação satisfatória apresentou reconhecidas habilidades
com a filha: presença física por dispor culinárias. Ou seja, diante de uma situ-
de maior tempo em casa. Se o desem- ação crítica de desemprego e escassez,
prego do pai fosse visto unicamente novos recursos foram mobilizados e o
como um problema a ser resolvido sistema familiar inteiro se reorganizou
pela família, poderia ter imobilizado o para um funcionamento alternativo ao
processo de crescimento do grupo em modelo patriarcal.
relação ao tempo que eles viviam. Aurora também passou a reconhe-
A participação paterna na educa- cer como importantes as suas próprias
ção dos filhos é um dos fatores que experiências. Tem agora o desafio de
contribui para o desenvolvimento buscar sua autonomia, movimentar-
social humano, incluindo redução da -se com mais liberdade. Outro ganho
desigualdade de gênero e exercício da desse processo terapêutico foi o reco-
coparentalidade. A função do pai na nhecimento de sua própria compe-
família contemporânea vai além de tência interna. Deixou de se descrever
prover e proteger. Tem-se cada vez como criança e de sempre buscar a
mais reconhecida a importância da aprovação dos pais em seus compor-
participação paterna nas atividades tamentos. Ao final do processo tera-
educativas diárias, com impacto posi- pêutico, expressava o desejo de viven-
tivo para a saúde mental das famílias ciar experiências que são inerentes
e da sociedade (Beiras & Souza, 2015; a essa etapa: saber o que é gostar de
Walsh, 2016). alguém, iniciar relacionamentos amo-
Essas evidências justificam uma rosos, pertencer a um grupo.
mudança de perspectiva, de um mo- Considera-se como ganhos desse
delo patriarcal para a coparentalidade atendimento o estabelecimento de
e para a educação compartilhada entre fronteiras mais visíveis entre os sub-
todos os membros do grupo familiar. sistemas conjugais e parentais, bem
Isso mostra que na própria família como uma maior diferenciação de
há recursos para a mudança, em sua Aurora, na direção de fazer escolhas
diversidade de formatos. Nesse caso, mais autônomas e responsáveis, li-
embora desempregado, o pai de Au- berada da função de mediar os de-
(https://orcid.org/0000-0003-4363-1243)
É psicóloga com Mestrado em Family
Sciences pela BYA (EUA). Doutorado
em Psicologia pela PUC-Goiás.
Professora Adjunta na Universidade
Paulista (Campus Goiânia) e PUC-
Goiás. Terapeuta de Casais e Famílias.
Professora de Especialização em
Terapia de Casais e Famílias.
E-mail: [email protected]