Do Prefácio Do Livro Reféns Do Demônio (Pe. Malachi Martin)

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Do Prefácio do livro Reféns do Demônio

Pe. Malachi Martin1

Se a descrença implica vulnerabilidade, o inverso é igualmente verdade. Dadas as


condições gerais que nos cercam em nossa sociedade atual, é importantíssimo perceber que,
mesmo nas piores condições, ninguém pode ser possuído sem ao menos algum grau de
cooperação de sua parte. É extremamente importante estar ciente de ao menos alguns dos
fatores que podem facilitar a colaboração entre um demônio possessor e um possuído.
Embora as causas de possessão demoníaca não possam ser fisicamente dissecadas, ou
reduzidas aos atuais padrões laboratoriais de “objetividade”, é e sempre foi possível e
necessário falar dessas causas com precisão teológica.
A possessão demoníaca não é uma condição estática, um estado imutável. Nem
tampouco sofre-se uma possessão súbita, como se pode quebrar a perna ou contrair sarampo.
Antes, a possessão é um processo contínuo. Processo que afeta as duas faculdades da alma: a
inteligência, pela qual um indivíduo recebe e internaliza o conhecimento, e a vontade, pela
qual um indivíduo escolhe agir segundo esse conhecimento.
A experiência nos permite identificar com clareza a existência de alguns fatores que
dispõem um indivíduo a colaborar, em inteligência e em vontade, com um demônio possessor.
Fatores dispositores, portanto.
A presença de tais fatores dispositores na vida de uma pessoa não indica
necessariamente que ela passará ao rol dos possessos. No entanto, e com apenas raras
exceções em minha experiência, um ou diversos desses fatores dispositores estão a operar nos
casos genuínos de possessão.
Alguns dos fatores dispositores mais comuns estão entre nós desde há muito, enquanto
outros são de lavra mais recente. Alguns são da ordem dos “instrumentos” exteriores ao
indivíduo – o tabuleiro ouija, por exemplo, e as sessões de espiritismo. Outros são da ordem

1 Malachi Martin (1921-1999) nasceu no condado de Kerry, na Irlanda. Foi um respeitável teólogo, professor
no Pontifício Instituto Bíblico do Vaticano, e sacerdote jesuíta até 1965, quando pediu dispensa dos votos,
mudou-se para os EUA e continuou exercendo suas funções apenas como sacerdote secular. Foi também um
eminente exorcista, talvez o mais conhecido de sua época, e um escritor aclamado de best-sellers como Os
Jesuítas, O Conclave e Vatican: A Novel – além deste, Reféns do Demônio, um dos mais vendidos. Era uma
figura bastante conhecida pelos americanos em virtude de suas frequentes aparições em programas de rádio
e televisão, além de ter publicado inúmeros artigos de revista e nos maiores jornais do país. Morreu em Nova
Iorque, quatro dias depois de completar 78 anos.
das “atitudes”, sejam elas auto-incorporadas ou ensinadas por um terceiro Meditação
Transcendental e o Método do Eneagrama são dois dos mais proeminentes nessa categoria. a
Na possessão, todos os fatores dispositores produzem, na pessoa, uma condição dessas
duas faculdades da alma – inteligência e vontade – mais apropriadamente descrita como
vácuo de aspirações. Vácuo, pois é criada uma ausência de conceitos claramente definidos e
humanamente aceitáveis para a inteligência. Aspirações, pois há uma correspondente ausência
de objetivos claramente definidos e humanamente aceitáveis na vontade desse indivíduo.
No caso do tabuleiro ouija, da sessão espírita, da Meditação Transcendental e do
Método do Eneagrama os participantes devem se colocar justamente numa disposição de
abertura de si próprios; tornar-se desejosos de tudo o que venha a acontecer e aceitá-lo.
O próprio termo ouija, por exemplo, é um indicador dessa abertura, pois ele é
composto de palavras francesas e alemãs – Oui e Ja – que querem dizer Sim. A atitude do
participante, na Ouija, é literalmente a de um “sim, sim”. A inteligência deve estar receptiva a
quaisquer sugestões ou conceitos que lhe venham a ser apresentados. Se os participantes
dispõem, também, suas vontades ao aceite desses conceitos e agem obedecendo-os, completa-
se então o circuito de predisposição. O vácuo de aspirações começa a operar, e tem poder
suficiente para encher a mente com conceitos, oferecendo-se ao consentimento da vontade.
Com muita frequência, a inteligência e a vontade abrem-se precisamente dessa mesma
maneira no quadro de possessão.
Dentre a vasta gama de fatores dispositores que podem levar à possessão, o Método do
Eneagrama é, hoje em dia, de longe o mais comum e pernicioso. Dado o estado geral da
religião, não é de surpreender a popularidade desse método, enormemente intensificada por
ter sido adotado e entusiasticamente propagado por teólogos e professores católicos de
importantes ordens religiosas – jesuítas, dominicanos e franciscanos – e por alguns dos órgãos
oficiais usados pelos bispos dos Estados Unidos e do Canadá encarregados do ensino da
doutrina religiosa aos jovens e adultos católicos.
Mais ainda, como o Método do Eneagrama é atualmente apresentado como
ensinamento autorizado pelo Fórum Norte-Americano sobre o Catecumenato - o órgão que
fornece, às paróquias e dioceses dos Estados Unidos e do Canadá, precisamente materiais que
tragam as comunidades e os indivíduos à maturidade da fé -, ele penetra profundamente nas
convicções e práticas religiosas, literalmente do berço à tumba dos fiéis.
A eficácia do Método do Eneagrama em sufocar a fé católica genuína é tal que alguns
o consideram como a ameaça mais letal já sofrida, até os dias de hoje, na campanha
empreendida para se liquidar a ortodoxia católica entre os fiéis.
Como o próprio nome diz – eneagrama significa “nove pontos", ou “marcos" -, o
eneagrama é uma mandala de nove pontas inseridas em um círculo. O perfil do eneagrama na
mandala quer representar uma flor de lótus e, como descrito pelo psicólogo suíço Carl Jung, é
“um símbolo que representa o esforço de reunificação do eu”.
O eneagrama chegou ao ocidente por meio do finado mestre espiritual orientalista
George Ivanovich Gurdjieff. Gurdijeff, por sua vez, afirmava que ele se originara entre os
mestres sufi do Islã. Ele chegou aos Estados Unidos por meio de “professores espirituais” do
Chile, da Bolívia e do Peru e, no início dos anos 70, foi disseminado pela primeira vez pelo
Esalen Institute em Big Sur, Califórnia, e pela Loyola University de Chicago. A literatura
existente hoje em dia sobre o tema é abundante.
De acordo com o ensinamento do eneagrama, existem exatamente nove tipos de
personalidade humana, cada uma das quais é representada por uma das nove pontas da figura
do eneagrama. Cada ser humano está, invariavelmente, confinado num e tão somente um
desses tipos de personalidade. Mas, no âmago de seu tipo psicológico, cada pessoa pode se
aperfeiçoar até o infinito.
Duas características do método do eneagrama comportam ensinamentos morais
inconciliáveis com os ensinamentos morais básicos particularmente católicos, e cristãos em
geral.
A presunção básica que o eneagrama apresenta à inteligência é de que cada indivíduo
pode se aperfeiçoar sozinho, moralmente falando, dentro dos limites do seu tipo de
personalidade.
Essa presunção é, na realidade, uma nova roupagem da antiga heresia conhecida como
pelagianismo. Ela está em conflito com o ensinamento cristão básico segundo o qual nós
somos absolutamente dependentes da ação da graça divina para toda perfeição moral. Por nós
mesmos, nós nada podemos. Nós não somente não somos capazes de nos autoaperfeiçoar ao
infinito; não poderemos nunca, por nós mesmos, escapar sequer do fardo de nossa natureza
pecadora. Somente a graça sobrenatural nos permite fazê-lo. E essa graça é, simplesmente,
gratuita da parte de Deus.
O ensinamento do Método do Eneagrama corta tanto Deus quanto a Sua graça da
jogada. De fato, não há mais nenhuma “jogada” de todo, O indivíduo é cortado do efetivo
conhecimento de sua dependência de Deus e de Sua graça sobrenatural, necessária à perfeição
última. Ele se vê confinado a um tipo inalterável de personalidade, o qual lhe foi revelado por
mestres do eneagrama.
A segunda característica moralmente errônea do Método do Eneagrama completa o
estrago causado pela primeira. Tendo aceito, de modo fatalista, suas próprias características
pessoais, o participante se vê dependente da perfeição dos exercícios eneagramáticos
adequados para o seu tipo de personalidade. Em outras palavras, a alma do discípulo está
aberta e dócil, com o objetivo de receber o prometido autoconhecimento adequado ao seu
tipo. A alma torna-se o receptor apto clássico – o vácuo de aspirações – pronto para a
abordagem de um pretendente possessor.
Numa tal configuração, o possessor pretendente pode se apresentar como aquilo que
São Paulo descreveu, com dramática precisão, como um Anjo de Luz. Mas o perigo é muito
mais insidioso por isso. Pois de tal situação pode resultar a condição comumente chamada
“perfeita possessão”.
Como o termo sugere, uma vítima de perfeita possessão é absolutamente controlada
pelo espírito maligno e não dá nenhum sinal exterior, nenhuma dica sequer, do demônio que a
habita. Ela não reagirá com aversão, como o farão outros possessos, ao sinal de símbolos
religiosos como o crucifixo ou o terço. O possesso perfeito não se furtará ao toque da água
benta, nem hesitará em discutir tópicos religiosos de forma serena.
Se condenado por algum crime, uma tal vítima irá, comumente, reconhecer sua
“culpa”, e mesmo a “maldade” dos atos cometidos. Com frequência, essa pessoa irá solicitar
que sua vida física lhe seja confiscada; que ela seja executada por seus crimes. Ela então, à
sua própria maneira, ecoa a insistente preferência satânica da morte sobre a vida, e o desejo
obstinado de ir ao encontro do Príncipe em seu reino.
Por conta de não haver mais vontade disponível para se recuperar a vítima - e por
conta de que uma parte, ao menos, da vontade da vítima é necessária para que haja esperança
de um exorcismo exitoso-, o remédio tem poucas chances de sucesso, mesmo no caso de que
a possessão seja de algum modo descoberta e identificada como o verdadeiro problema.

MARTIN, M. Reféns do Demônio. Cinco Casos de Possessão e Exorcismo. 1. ed. São


Paulo: Ecclesiae, 2016. pp. 16-19.

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