A Insurgencia Autobiografica Uma Paisage

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A insurgência autobiográfica:

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uma paisagem íntima

A via das máscaras: as artes em Congresso no CSO 2021. Lisboa: Sociedade Nacional de Belas Artes.
The autobiographical insurgency:
an intimate landscape

MAURICIUS MARTINS FARINA

AFILIAÇÃO: Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Campinas, São Paulo, Brasil.

ISBN: 978-989-99822-7-7
Resumo: Este texto tratará da ocorrência de Abstract: This text will deal with the occurrence
argumentos autobiográficos presentes em of autobiographical arguments present in the
trabalhos da artista Marta Strambi, para ve- works of the artist Marta Strambi, to verify, from
rificar, desde uma atmosfera relacionada aos an atmosphere related to the artist’s contexts, how
contextos da artista, de que maneira a ex- the self-referential expression, related to place and
pressão autorreferente, relacionada ao lugar genre, can be presented. The artist, when relating
e ao gênero, poderá se apresentar. A artista, to dialectical processes of subjectivation, offers
ao se relacionar com processos dialéticos de us a production with intelligences and sensibili-
subjetivação, nos oferece uma produção com ties that are evidenced in the materiality of the
inteligências e sensibilidades que são eviden- forms that surround us as an act of confronting
ciadas na materialidade das formas que nos the dystopias of life.
contornam como um ato de enfrentamento às Keywords: autobiography / installation / object
distopias da vida. / Marta Strambi.
Palavras chave: autobiografia / instalação /
objeto / Marta Strambi.

Submetido: 19/02/2021 Aceitação: 01/03/2021


1. Uma arte, muitas artes: mulheres artistas
A história enuncia a longevidade do predomínio masculino durante a constru-
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ção sociocultural do Ocidente. Entretanto, no contexto múltiplo das experiên-


cias artísticas, produzidas a partir do século XX, é de se reconhecer o lugar de
destaque que será ocupado pela produção feminina, que se evidencia desde
princípios do modernismo, mas se afirma, de maneira abrangente, a partir dos
anos 1960: como se pode observar no livro/catálogo “Mulheres artistas”, publi-
A via das máscaras: as artes em Congresso no CSO 2021. Lisboa: Sociedade Nacional de Belas Artes.

cado em vários idiomas pela Editora Taschen, trabalho este organizado por Uta
Grosenick (2001).
A aparição das questões de gênero como argumento, no âmbito da produção
artística, será responsável pela introdução de novas possibilidades relacionais
nesse território. As questões femininas, propondo-se desde uma argumentação
implicada com histórias e subjetividades específicas, no curso dessa complexa
transição cultural, perpetraram na cena artística relatos que nos revelaram na-
turezas muito próprias, de intimidade, mas também de alteridade. As razões do
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pesado poderio masculino, imbricadas em contextos antropológicos, como to-


dos sabemos, são eticamente injustificáveis. Vivemos no tempo em que velhos
costumes estão a ser revirados. Na arte as mulheres são pioneiras, foi a partir
disso que outras minorias puderam relatar suas experiências.
Esse é um assunto que se abre em muitos pedaços, mas o que pretendo
acentuar refere-se ao fato de que questões de desigualdade, de gênero, de etnia,
de território, estão presentes como argumentos para a ação artística, incluindo
nesse tabuleiro cultural um campo poético que é essencialmente determinado
pelo político num sentido mais amplo, e a insurgência autobiográfica se liga a
tudo isso. Para Philippe Lejeune o conceito de “autobiografia” é elástico, para
ele isso é “o atributo das palavras e das ideias que estão vivas” (Lejeune, 222). O
que é autobiográfico, ou autorreferencial, e se manifesta como arte, diz respeito
também ao pertencimento de relações que não são apenas argumentos, mas
experiências complexas de enfrentamento com a materialidade das coisas.
Questões relacionadas à subjetividade do oprimido se tornaram visíveis ar-
tisticamente desde as questões feministas, e dessa maneira passaram a atuar
como parte de uma sublevação poética que conquistou lugares e nomes pró-
prios nas histórias da arte. Fronteiras difusas, entre causas e circunstâncias
políticas, não estão descoladas das demandas de uma propriedade poética
que se apresenta a partir de trabalhos artísticos que tem em si o próprio gênero
como questão. Dessa maneira, determinados contextos autobiográficos, mes-
mo que alargados, implicaram numa alteração de registros históricos nos mo-
dos de interlocução, abrindo novas potências conceituais para a arte. O relato
de mulheres artistas derivou de uma espécie de insubordinação do sujeitado,
implicou-se em incluir subterrâneos de uma realidade opressora que revelou

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distopias contraditórias sobre a própria condição do corpo incluído como um
objeto na superfície das coisas.
A expressão de uma opressão, no caso das mulheres artistas, mesmo que
tenha incorporado modos de uma tradição anterior no sistema da arte, deter-
minou-se para uma ação de enfrentamento direto de uma subjetividade social

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em crise, recalcada pela violência, nos corpos e nas subjetividades. As mulheres
artistas, em sua insurgência autobiográfica, devolveram ao mundo uma con-
cepção ativa em relação às experiências vividas.
A busca pela realidade da arte e o desprezo pelo artificial está presente em
muitas delas como uma condição de insurgência. Artistas como Frida Kahlo
(1907-1954), Luise Bourgeois (1911-2010), Eva Hesse (1936-1970), Letícia Pa-
rente (1930-1991), Clara Menéres (1943-2018), Helena Almeida (1934-2018),
Ana Mendieta (1948-1985), Marina Abramovic (1946), Kiki Smith (1954), ou

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mesmo em Cindy Sherman (1954) que ao atuar pelo simulacro se refere ao gê-
nero como identidade, são exemplares.
Estas artistas em seus trabalhos nos convocam para rever uma antiga no-
ção de corporeidade e de presença a partir do simbólico, não mais como uma
paisagem voyeur, mas como uma insurgência autobiográfica que denuncia a
opressão comum ao gênero, um relato de si que se revela como alteridade dian-
te de uma causa em comum que coabita pensamentos relacionados ao trauma,
às violências.
Desde a noção de inquietante estranheza, tal como definida por Sigmund
Freud foi assimilada pelo surrealismo e depois incorporada por Hal Foster
(1993) para pensar o contemporâneo. O contexto abjeto, ou traumático, de uma
espécie de arte que foi produzida entre os anos 1980 e 1990, ainda que bastante
diverso, ajudou a revelar a dimensão de uma experiência autobiográfica; que
teve seus rebatimentos na cena artística como um campo mórfico, onde muitos
artistas se situavam, desde suas próprias relações pessoais e com o seu desenho
de mundo.

2. A minha dor é também a dor do outro


Ao me aproximar dos trabalhos de Marta Strambi (1960), artista com um vas-
to currículo de experiências, compreendi que a artista também se referencia a
partir deste lugar pautado pela causa do feminino, o que é visível desde os seus
primeiros estudos. Sua atuação artística, do ponto de vista de seu processo cria-
tivo, tem como característica considerar um enfrentamento os materiais e com
as matérias, seja para promover uma transformação, mas fundamentalmente
para os ajustar na sua formação. Modelar, pintar, esculpir, desenhar, amolecer,
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derreter, queimar, apropriar, instalar, estão entre os procedimentos diversifica-


dos que a artista utiliza em sua produção.
Marta tem como princípio de motivação uma investigação inquieta traba-
lhando para descobrir novas possibilidades, como se tudo estivesse por co-
meçar. Trabalha com desenho, pintura, escultura, objetos, instalações, per-
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formances, relacionando-se com questões poéticas sensíveis, onde um corpo


autobiográfico se revela, do particular para o geral, como construto de memó-
rias e de causas demarcadas pela situação crítica de um sentimento de distopia
diante de um ambiente ecologicamente desajustado, seja o meio ambiente ou
as relações de subjetividade que nos envolvem.
Seus trabalhos são construídos desde uma atmosfera intimamente relacio-
nada com aspectos da sua vivência, nesse sentido há uma posição que se afirma
naquilo que vemos, não apenas no conexo da ideia ou da forma, mas no aconte-
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cimento desses corpos sensíveis que ela materializa e que desafiam esse lugar
comum que nos atravessa.
Ao se relacionar com seus processos privados transformados em coisa, a ar-
tista nos permite perceber a ocorrência de questões interconexas entre o corpo
e a substância, onde a dimensão conceitual procura sempre integrar-se à ação
material pela via da transformação, coisa que vai ocorrer na superfície do am-
biente vital onde as formas se apresentam como conceito de coisa que se quer
libertar do invisível que lhe angustia.
A realização artística, nesse caso, implica-se com uma série de exigências e
de preparações, não há uma simples continuação entre um objeto e outro, mas
um processo planeado que depende de muitas relações, e é nesse lugar da criação
que as matérias se transformam e as formas se submetem ao desejo de expres-
são. Segundo palavras da artista “a experiência da arte é impactada por instân-
cias complexas, decalcadas de uma realidade em crise”, essa condição aproxima
sua realização de um embate onde não há concessão para a rasa formalidade,
ou para os desvios de um arranjo prosaico na instauração da coisa. Toda causa
requer tempo e paciência, a condição premente da artista se põe em causa para
enfrentar o invisível na arte, quando o paradigma se revela como sintagma.
As experiências de Marta Strambi como artista são articuladas a partir de
argumentos críticos motivados pela vivência, para ela, prosseguir trabalhando
é constantemente desafiar sua relação com a facilidade da vida e das formas
prontas, com o esquema. Há uma motivação crítica que lhe impulsiona na cons-
tante experiência e na realidade cercada por uma fragilidade onde as opressões
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Figura 1 ∙ Marta Strambi, Campo de Forças, 2016, caixas


de medicamentos, saquinhos de chá, desenhos, remédios, tecido
e dispositivos multimídia, 145 x 285 cm. Instalação na Quase
Galeria, Espaço T, Porto, Portugal. Fonte: https://martastrambi.com/
campo-de-forcas/
Figura 2 ∙ Marta Strambi, In Resistência, 2018, silicone, lona e
medicamentos, 108 x 115 cm. Museo Histórico Municipal de Écija,
2018. Fonte: https://martastrambi.com/ins-resistencia/
se manifestam. Seu trabalho, ao tratar dos modos de resistência, do vazio, da
origem, da vida social em desequilíbrio, do veneno e do contraveneno, nos con-
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vida a refletir sobre uma resiliência necessária para sobreviver às emergências


que acontecem na vida como uma constante distopia.
Muitas de suas questões, materializadas em sua produção, têm relações
políticas evidenciadas por um apelo ao humano que age nos objetos que nos
contornam. Para a artista estas demandas “estão relacionadas com as condi-
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ções que escavamos, desde um território íntimo, para sobreviver”, ela prosse-
gue dizendo, na entrevista que me concedeu para este texto “que quando nos
posicionamos diante da vida, estamos diante de um campo em perigo”, e é por
essa razão “que a instabilidade cotidiana questiona o bem-estar e a necessidade
de segurança que sentimos como necessidade”. De fato, essas são questões nos
acompanham.
Na instalação Campo de Forças (Figura 1), composta por mais de uma cen-
tena de caixas de remédio pintadas, encobertas pelo preto, algo que podemos
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relacionar com o luto, mas também com a possibilidade de cura, nessas caixas
abertas com remédios de uso contínuo, com desenhos feitos à aguada pendu-
rados por linhas, desenhos onde se pode ver corações individualizados, e além
disso, dispositivos sonoros que emitem sons de pulsação, e ainda dispositivos
mp4 que apresentavam cenas da montagem durante o processo da instalação.
Na cena desta instalação há um cronograma de ação, quando com hora mar-
cada, uma vez por dia, durante o período da exposição, a artista vai ingerir os
remédios que estão ali estão pendurados.
Em “Campo de forças” vai ocorrer uma relação demarcada entre a vida da
artista e o seu cotidiano, apresentando-se uma relação dinâmica entre a própria
instalação e a vida da artista, uma aproximação autobiográfica condicionada à
relação da experiência artística com a intimidade, uma relação resiliente nos
termos da vida, da ciência e da própria sobrevivência quando se percebe que a
dor da artista é também a dor do outro.
Na instalação “In resistência” (Figura 2) há uma repetição onde fragmentos
de dedos em silicone, seguram “trouxinhas de remédios” que estão pendura-
dos por linhas brancas. Nessa obra os espaços vazios não se completam homo-
geneamente, na relação de diferenças entre os dedos (moldados pela artista a
partir de seus próprios dedos) ausências que proporcionam outra dinâmica e
movimentação. Em relação ao trabalho anterior temos agora o branco que atua
em oposição ao preto, o que permite considerar outra situação, considerada
como possibilidade de elevação.
3. Objetos na vida
Para Tadeusz Kantor (1915-1990), que trabalhou em muitas direções no campo

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artístico, da dramaturgia à escultura, a relação entre objetos e sujeitos vai além
de um simples acessório, por essa razão, seus “bio-objetos” não são funcionais,
mas se relacionam com a vida onde interagem. Jean-François Chevrier perce-
beu que a definição do “bio-objeto”, a partir de Kantor, diz respeito aos “múl-
tiplos intercâmbios entre escultura e cenografia”, e isso ocorria, segundo ele,

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“tanto em Kantor como em Beuys, Rauschenberg, etc.” Ele se referia “à drama-
tização do objeto encontrado. Uma vez que o bio-objeto não é um acessório da
ação, mas um companheiro” (Chevrier, 2013:275).
Ao nos referirmos a certos trabalhos de Marta Strambi, nessa relação com
os bio-objetos, percebemos que muitos deles se articulam a partir dessa noção
que a artista ativa a partir deles, arquivando, colecionando, preparando para
uma sobrevivência na obra onde, de fato, eles serão muito mais que acessórios.
Os objetos produzidos pela artista têm várias possibilidades, podem ser

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construídos, encontrados, recodificados, e assumindo formas escultóricas eles
são associados, partindo de uma relação fabulada pelo drama íntimo ou sua
própria relação com a vida. Com os seus objetos nos aproximamos das ideias
que nos põem a superar aquela simples relação entre uso e função. A materiali-
dade cerâmica em muitos deles, incorporada da tradição de suas técnicas, não
se submete lugar usual. Sua relação com os objetos tem um lastro relacional.
Em “Ponta entrega”, “Pronta entrega com gordura” e “Fala-me”, ocorre
uma relação com fragmentos do corpo feminino, incorporando objetos e for-
mas modeladas a partir da ideia do corpo e elementos orgânicos, faturados em
cerâmica de alta temperatura, porcelana e ferro. No fone de ouvido presente em
“Pronta entrega” se pode ouvir uma sonora com vozes múltiplas e palavras de
ordem numa manifestação feminista, o que permite incorporar uma atmosfera
de insurgência política num contexto íntimo que se ancora em determinações
de realidade. Essa é uma característica na poética da artista, articular uma re-
lação simbólica contextualizada na realidade e em seus processos autobiográ-
ficos, traduzindo plasticamente uma percepção sobre os dilemas inconclusivos
do outro também são seus. Nesses trabalhos a presença de um território do-
méstico, habitado, cotidiano, é visível. Para Leonor Archuf o “território da in-
timidade é ainda mais tangível no altar doméstico”, exatamente por ser “mais
reduzido e mais privado” ele serve aos “exercícios de uma escrita autografa”
(Arfuch, 2005:245).
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Figura 3 ∙ Marta Strambi, “Pronta entrega”, 2020, grés, porcelana,


ferro, tecido, fone de ouvido e áudio, 85 x 65 cm. Fonte:
https://martastrambi.com/pronta-entrega-instalacao/
Figura 4 ∙ Marta Strambi, “Pronta entrega com gordura”, 2020, grés,
ferro e pedra, 108 x 65 cm. Fonte: https://martastrambi.com/
pronta-entrega-com-gordura/
Figura 5 ∙ Marta Strambi, “Fala-me”, 2020, grés, ferro, tolha, tecido
e fone de ouvido, 90 x 62,4 cm. Fonte: https://martastrambi.com/
fala-me-instalacao/
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Figura 6 ∙ Marta Strambi, “Desígnio”, 2018, porcelana,


queima em anagama sobre tecido, 10×12 cm. Fonte:
https://martastrambi.com/designio/
Figura 7 ∙ Marta Strambi, “Movediça”, 2020, grés e
ferro, queima à lenha à 1320°C, 6 x 30 x 30,5 cm.
Fonte: https://martastrambi.com/movedica/
A presença da autorrepresentação nos trabalhos, muitas vezes diz respeito
ao corpo da artista, como se pode ver em “Desígnio” (Figura 6) cujos dedos são
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seus. Esse trabalho em pequena escala, foi capa da edição n. 30 da Revista Poié-
sis da Universidade Federal de Niterói/RJ, onde a artista coordenou um dossiê
relacionado com as questões da autobiografia.
Outro trabalho importante nessa relação é “Movediça” (Figura 7), que integra
uma série de “tabuleiros” articulando uma espécie de jogo entre os dedos, que a
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artista associou ao desígnio, mas que podemos também pensar como fatura, e
nessa relação entre a fundição e a transformação pela temperatura que instân-
cias diversificada pelo tipo de material, seja a argila ou o ferro, um jogo interno
de plasticidade envolvimento num argumento mais complexo sobre a tomada de
decisões que se relaciona ao próprio sentido da poética de um artista.

Conclusão
A presença de uma intimidade comum, ainda que fabulada, é participe de uma
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cena real, o que demonstra que as ações artísticas femininas estão ajustadas
politicamente no exercício de suas poéticas, quando atuam desde uma neces-
sidade de liberação que vai se impondo a partir da ocupação desse lugar que
lhes é devido. As ações autorreferenciais ofereceram uma nova vitalidade para
a arte, e é por essa razão que reconhecemos sua importância.
Ao argumentar que as experiências da arte feminina se referem aos aspec-
tos de uma cartografia íntima não se pode desconsiderar a abrangência dessas
relações ou sua exclusividade. Há um lugar de enfrentamento no corpo e na
memória subjugada que se colocou em causa a partir desse enfrentamento que
as causas do feminino ofereceram, transformando um estado de coisas quando
considerar a própria biografia, num sentido mais ampliado se tornou possível
configurando uma alteração de cenário que foi impulsionada pela possibilidade
contemporânea de relatar histórias de si.

Donde había antes un concepto, parece imponerse ahora una biografía. Y siempre con
la consideración de que la biografía no explica la vida, sino que corre paralela a ella,
como en paralelo corren los raíles del tren (Guasch, 2009:12).

As experiências que se estabelecem com fortes relações com a vida servi-


ram para superar os ismos presentes nos discursos hegemônicos, mas não por
isso são individualismos a se afirmarem sobre o coletivo. Quando uma ação co-
letiva se rebela contra as amarras de uma opressão pesada e secular, como no
caso das mulheres, é inegável reconhecer que a qualidade da experiência ar-
tística, ao requerer um lugar para si, se abre ao coletivo, atuando pelo sensível,
estes relatos da vida parecem se conectar ao outro para oferecer sua libertação.
Referências Guasch, Anna Maria. (2009) Autobiografías
Arfuch, Leonor. (2005) “Cronotopías de la visuales. Del archivo al índice. Madrid:
intimidad” In Pensar este tiempo, espacios, Ediciones Siruela. ISBN: 9788498412550

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afectos, pertenencias. Buenos Aires: Grosenick, Uta. (2001) Mulheres artistas
Paidós. ISBN 9501265528. nos séculos XX e XXI. Colónia: Taschen.
Chevrier, Jean-François. (2014) Formas ISBN: 3822824402
Biográficas. Construcción y mitología Lejeune, Philippe. (2008) O pacto
individual. Madrid: Museo Nacional autobiográfico: de Rousseau à internet.
Centro de Arte Reina Sofía. ISBN: Belo Horizonte: Editora da UFMG. ISBN:
9788415937395 9788570416834
Foster, Hal. (1993) Compulsive

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beauty. Cambridge, MA: MIT
Press. ISBN: 9780262560818

Nota biográfica
Mauricius Martins Farina, artista visual e professor Livre-docente no Instituto de Artes da
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Doutor em Ciências da Comunicação pela
Universidade de São Paulo, coordena o Grupo de Pesquisa Estudos Visuais, trabalha com
teoria e crítica da imagem, atuando principalmente com temas relacionados com a fotografia, a

ISBN: 978-989-99822-7-7
pintura, a história da arte e a semiótica da cultura.
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4751-5266
Email: [email protected]
Morada: Instituto de Artes; Departamento de Multimeios. Rua Elis Regina, 50, Cidade Universitária
“Zeferino Vaz”. CEP: 13080- 090. Barão Geraldo, Campinas, São Paulo, Brasil.

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