Mutacoes - Entre Dois Mundos (Se - Adauto Novaes
Mutacoes - Entre Dois Mundos (Se - Adauto Novaes
Mutacoes - Entre Dois Mundos (Se - Adauto Novaes
MUTAÇÕES
ENTRE DOIS MUNDOS
Anos 70 (1979)
O nacional e o popular na cultura brasileira – música, cinema,
televisão, teatro, literatura e seminários (1982)
Um país no ar – televisão (1986)
Os sentidos da paixão (1987)
O olhar (1988)
O desejo (1990)
Rede imaginária – televisão e democracia (1991)
Ética (1992)
Tempo e História (1992) / Ganhador do Prêmio Jabuti
Artepensamento (1994)
Libertinos libertários (1996)
A crise da razão (1996)
A descoberta do homem e do mundo (1998)
A outra margem do Ocidente (1999)
O avesso da liberdade (2002)
O homem-máquina (2003)
A crise do Estado-nação (2003)
Civilização e barbárie (2004)
Muito além do espetáculo (2004)
Poetas que pensaram o mundo (2005)
Anos 70 (segunda edição – 2005)
Oito visões da América Latina (2006)
O silêncio dos intelectuais (2006)
L’autre rive de l’Occident (2006)
Les aventures de la raison politique (2006)
Ensaios sobre o medo (2007)
O esquecimento da política (2007)
Mutações: ensaios sobre as novas configurações do mundo
(2008)
Vida vício virtude (2009)
Mutações: a condição humana (2009)
Mutações: a experiência do pensamento (2010)
Mutações: a invenção das crenças (2011)
Mutações: elogio à preguiça (2012) / Ganhador do Prêmio Jabuti
Mutações: o futuro não é mais o que era (2013)
Mutações: o silêncio e a prosa do mundo (2014)
Mutações: fontes passionais da violência (2015) / Ganhador do
Prêmio Jabuti
Mutações: o novo espírito utópico (2016)
Agradecimentos
Apresentação
Exercício do pensamento crítico
DANILO SANTOS DE MIRANDA
A amizade
FRANCIS WOLFF
Os sentidos da paixão
Liberdade: afastar as paixões de tristeza
MARILENA CHAUI
O olhar
A visão de Deus e o olhar dos homens: uma leitura wittgensteiniana
do problema de Molyneux
JOÃO CARLOS SALLES
O desejo
A depressão e o desejo saciado
MARIA RITA KEHL
Ética
Da ética à antiética: notas para compreender a supremacia da
violência
FRANKLIN LEOPOLDO E SILVA
Tempo e história
MARCELO JASMIN
Artepensamento
Homero e a essência da poesia
ANTONIO CICERO
Libertinos libertários
O que foi feito dos libertinos?
PASCAL DIBIE
A crise da razão
OSWALDO GIACOIA JUNIOR
O homem-máquina
O amor na era digital
FRANCISCO BOSCO
Civilização e barbárie
Nós, os bárbaros
NEWTON BIGNOTTO
O esquecimento da política
A obediência e o esquecimento do político
FRÉDÉRIC GROS
A condição humana
PEDRO DUARTE
A experiência do pensamento
A sociedade à prova da promessa: as aporias do estrangeiro
OLGÁRIA MATOS
Sobre os autores
Índice onomástico
Apresentação
Exercício do pensamento crítico
Danilo Santos de Miranda
Diretor Regional do Sesc São Paulo
A RETOMADA
OS DESVIOS
MUTAÇÕES SILENCIOSAS
DA CRISE À MUTAÇÃO
MUTAÇÕES, ANO 10
Até agora foram dez ciclos sobre as mutações: Novas
configurações do mundo; Vida vício virtude; A condição humana; A
experiência do pensamento; A invenção das crenças; Elogio à
preguiça; O futuro não é mais o que era; O silêncio e a prosa do
mundo; Fontes passionais da violência e O novo espírito utópico.
Muitas foram as hipóteses que serviram de ponto de partida para
o trabalho de pensamento sobre as mutações, das quais uma se
destaca: é como se a vontade de poder tomasse um rumo diferente.
O que Nietzsche define como vontade de poder e encarna, de início,
no criador – o poeta, o pensador – toma outro rumo no próprio
Nietzsche, o que nos leva a pensar de maneira pouco convencional
hoje: o sujeito da história não seria mais o homem, e sim a técnica.
O livre espírito seria uma figura de transição. O homem das Luzes,
que antes andava com prudência, na realidade, segundo comentário
de Eugen Fink,
Por fim, outro fragmento que nos esclarece e que lemos como
uma previsão do que acontece: “O que é grande no homem é que
ele é uma ponte, não um fim; o que nele é amado é que ele é uma
passagem e um declínio” (Zaratustra). Seria uma referência à
possibilidade suprema do homem de lançar a ponte do humano ao
pós-humano? Vivemos uma contradição entre a ciência-saber e a
ciência-poder. É inegável o domínio da ciência-poder.
Günther Anders, filósofo alemão que foi o mais implacável crítico
da civilização técnica americana e escreveu dois livros sobre a
obsolescência do homem, vai além ao afirmar o que os pós-
humanos tomam hoje como verdade: a ciência como vontade de
poder. Chega mesmo a anunciar que:
1. Puisque c’est à la tombée de la nuit que prend son vol/ l’oiseau de Minerve,
c’est le moment de parler de vous,/ chemins qui vous effacez de cette terre
victime./ Vous avez été l’évidence, vous n’êtes plus que/ l’énigme. Vous
inscriviez le temps dans l’éternité, vous/ n’êtes que du passé maintenant, par
où la terre finit, lá,/ devant nous, comme un bord abrupt de falaise.
A amizade1
Francis Wolff
AMIZADE E ÉTICA
O QUE É A AMIZADE?
AMIZADE E AMOR
***
Espinosa parte de um conceito muito preciso, o de substância,
isto é, de um ser que existe em si e por si mesmo, que é conhecido
em si e por si mesmo e sem o qual nada existe nem pode ser
conhecido. Toda substância é substância por ser causa de si mesma
(causa de sua essência, de sua existência e da inteligibilidade de
ambas) e, ao causar-se a si mesma, causa a existência e a
essência de todos os seres do universo. Existente em si e por si,
essência absolutamente complexa, a substância absolutamente
infinita é potência absoluta de autoprodução e de produção de todas
as coisas. Há, portanto, uma única e mesma substância
absolutamente infinita constituindo o universo inteiro. Essa
substância é Deus.
Ao causar-se a si mesmo, fazendo existir sua própria essência,
Deus faz existir todas as coisas singulares que O exprimem porque
são efeitos de Sua potência infinita. Em outras palavras, a existência
da substância absolutamente infinita é, simultaneamente, a
existência de tudo o que sua potência gera e produz: Deus é causa
eficiente imanente de todos os seres que seguem necessariamente
de sua essência absolutamente infinita, não se separa deles, e sim
exprime-se neles, e eles O exprimem.
Há duas maneiras de ser e de existir: a da substância com seus
infinitos atributos infinitos – o que existe em si e por si – e a dos
efeitos imanentes à substância – o que existe em outro e por meio
de outro. A esta segunda maneira de existir, Espinosa dá o nome de
modos da substância. À substância e seus atributos, enquanto
atividade infinita que produz a totalidade do real, Espinosa dá o
nome de natureza naturante. À totalidade dos modos produzidos
pelos atributos, designa com o nome de natureza naturada. Graças
à causalidade imanente, a totalidade constituída pela natureza
naturante e pela natureza naturada é a unidade eterna e infinita cujo
nome é Deus. A imanência está concentrada na expressão célebre:
“Deus sive Natura” – “Deus, ou seja, a Natureza”.
Porque a substância é a unidade causal infinitamente complexa
produtora de si mesma e de todas as coisas, sua ação se realiza
diferenciadamente, pois cada um de seus constituintes é uma ordem
de realidade distinta das outras, e cada um deles em simultâneo
com os outros produz efeitos próprios e exprime de maneira própria
a ação comum do todo. Dessas infinitas ordens de realidade nós
conhecemos duas: a extensão ou a ordem de realidade das coisas
extensas, isto é, a natureza física, e o pensamento ou a ordem de
realidade da natureza psíquica. A atividade da extensão infinita dá
origem às leis da natureza física e aos corpos; a do pensamento
infinito, às ideias e à sua ordem e concatenação. Assim, a ação dos
constituintes da substância única produz regiões diferenciadas de
realidade, campos diferenciados de entes singulares, mas essas
regiões ou campos exprimem sempre o mesmo ser ou a mesma
substância. Corpos e ideias são modos e, como tais, efeitos
imanentes dos constituintes de uma só e mesma substância
internamente diferenciada, e por isso um corpo e a ideia desse
corpo são uma só e a mesma coisa que se exprime de duas
maneiras.
O ser humano é um modo finito da substância absolutamente
infinita ou uma expressão determinada da potência imanente de
Deus. É um modo singular finito de dois constituintes da essência da
substância absolutamente infinita – a extensão e o pensamento –,
uma maneira de ser singular, constituída pela mesma unidade
complexa que a de sua causa imanente, possuindo a mesma
natureza que ela: pela ação do pensamento, é uma mente; pela
ação da extensão, um corpo.
O corpo humano é uma singularidade extremamente complexa,
constituída por uma diversidade e pluralidade de corpos duros,
moles e fluidos relacionados entre si pelo equilíbrio de suas
proporções de movimento e repouso. É uma unidade estruturada:
não é um agregado de partes, mas unidade de conjunto e equilíbrio
de ações internas interligadas de órgãos, é, portanto, um indivíduo.
Sobretudo, é um indivíduo dinâmico. Em primeiro lugar, porque a
extensão espinosana é uma energia universal ou atividade infinita,
e, em segundo, porque o equilíbrio interno de cada corpo é obtido
por mudanças internas contínuas e por relações externas contínuas,
formando um sistema de ações e reações, que se transforma sem
perder a identidade toda vez e sempre que for conservada a
proporção de movimento e repouso entre seus constituintes. Isto
significa que o corpo não é uma unidade isolada que entraria em
relação com outras unidades isoladas, mas é um ser
originariamente e essencialmente relacional: é constituído por
relações internas entre os corpúsculos que formam suas partes e
seus órgãos e pelas relações entre eles, assim como por relações
externas com outros corpos ou por afecções, isto é, pela capacidade
de afetar outros corpos e ser por eles afetado sem se destruir,
regenerando-se, transformando-se e conservando-se graças às
relações com outros. O corpo humano, sistema dinâmico complexo
de movimentos internos e externos, não só está exposto à ação de
todos os outros corpos exteriores que o rodeiam e dos quais precisa
para conservar-se, regenerar-se e transformar-se, como ele próprio
é necessário à conservação, regeneração e transformação de
outros corpos. Um corpo humano é tanto mais forte, mais potente,
mais apto à conservação, à regeneração e à transformação, quanto
mais ricas e complexas forem suas relações com outros corpos, isto
é, quanto mais amplo e complexo for o sistema das afecções
corporais.
O que é a mente humana?
A tradição recebeu dois legados: o platônico, que define a alma
como o piloto no navio, isto é, uma entidade alojada numa outra
para comandá-la, mantendo-se à distância dessa outra que
simplesmente lhe serve de morada temporária; e o legado
aristotélico, que define o corpo como órganon, isto é, instrumento da
alma, que dele se vale para agir no mundo e relacionar-se com as
coisas. Espinosa subverte essa dupla tradição. Assim como o corpo
é um modo finito que exprime a potência da extensão infinita de
Deus, assim também a mente humana é um modo finito singular
que exprime a potência do pensamento infinito de Deus. Extensão e
pensamento são duas atividades simultâneas de uma única
substância que se exprime de duas maneiras diferentes, ou seja,
corpos e mentes. Isto significa que a comunicação entre corpo e
mente está dada de princípio – ambos são expressões simultâneas
de uma só e mesma substância – e, de outro lado, que a
singularidade do ser humano como unidade de um corpo e de uma
mente é imediata – a união não é algo que lhes acontece, mas
aquilo que um corpo e uma mente são quando são corpo e mente
humanos. Porque são efeitos simultâneos da ação de uma única
substância, corpo e mente não estão, como sempre afirmara a
tradição, numa relação hierárquica, em que a mente seria superior
ao corpo. O ser humano, como a substância, da qual é um efeito
imanente, é a unidade de duas ordens de realidade de potência
igual e internamente articuladas e cuja unidade se exprime
diferenciadamente pelas operações corporais e psíquicas.
A mente é uma potência pensante. Pensar é afirmar ou negar
alguma coisa, afirmando ou negando sua ideia. É ter consciência de
alguma coisa e ser consciente de alguma coisa. Isto significa que a
mente, como potência pensante, está natural e essencialmente
ligada aos objetos que constituem os conteúdos ou as significações
de suas ideias, os seus ideados. É da natureza da mente estar
internamente ligada a seu objeto porque ela não é senão atividade
de pensá-lo. A mente é uma ideia (atividade pensante) que tem ou
produz ideias (conteúdos ou significações pensados, os ideados).
Se assim é, podemos avaliar a revolução espinosana ao definir e
demonstrar que a mente é ideia de seu corpo.
O corpo constitui o objeto atual da mente, ou seja, é da natureza
da mente estar ligada internamente ao seu corpo porque ela é a
atividade de pensá-lo e ele é o objeto pensado por ela. Todavia, a
mente não é apenas a consciência de seu corpo e tudo quanto nele
acontece, mas é também consciente de si, ou seja, é ideia de si
mesma como ideia de seu corpo ou consciente de si ao ser
consciente de seu corpo. Consciência significa: a mente humana
reconhece seu corpo próprio no objeto que a constitui e nesse
conhecimento reconhece a si mesma como ato de pensá-lo e de
pensar-se.
Que significa dizer que a mente é ideia ou consciência de seu
corpo? Ela não é ideia de uma máquina corporal observada de fora
e sobre a qual formaria representações. Explica Espinosa: ela é
ideia das afecções corporais. Em outras palavras, a mente é
consciência dos movimentos, das mudanças, das ações e reações
de seu corpo na relação com outros corpos, das mudanças no
equilíbrio interno de seu corpo sob a ação das causas externas e
internas. A mente é consciência da vida de seu corpo e consciência
de ser consciente disso.
No entanto, não nos precipitemos. Dizer que a mente é ideia das
afecções de seu corpo e que só é ideia de si por meio delas não
significa, de maneira nenhuma, que por isso ela seria e teria
imediatamente um conhecimento verdadeiro de seu corpo e de si
mesma. Pelo contrário. Espinosa distingue entre ser cônscia de seu
corpo e ser o conhecimento verdadeiro de seu corpo. A mente vive
num conhecimento confuso de seu corpo e de si. Vive
imaginariamente.
Afetando outros corpos e sendo por eles afetado de inúmeras
maneiras, o corpo produz imagens de si (visuais, táteis, sonoras,
olfativas, gustativas) a partir da maneira como é afetado pelos
demais corpos e da maneira como os afeta. Imaginar exprime a
primeira forma da intercorporeidade, aquela na qual a imagem do
corpo e de sua vida é formada pela imagem que os demais corpos
oferecem do nosso e que nosso corpo forma deles. Por nascer do
sistema das afecções corporais, a imagem é instantânea e
momentânea, volátil, fugaz e dispersa, não oferecendo a duração
contínua da vida do próprio corpo, mas instantes fragmentados dela.
A imagem é o campo da experiência vivida como relação imediata
com o mundo. Consciente do corpo através dessas imagens, a
mente o representa por meio delas, tendo por isso um conhecimento
inadequado ou imaginativo dele, isto é, não o conhece tal como é
em si mesmo, nem tal como é a sua vida própria, mas o pensa
segundo imagens externas que ele recebe ou forma na relação
intercorporal. A mente pensa seu corpo e a si mesma a partir da
ação causal exercida sobre nosso corpo pelos outros corpos e pelo
nosso sobre eles. Por esse motivo, na experiência imediata, ela
também não possui uma ideia verdadeira dos corpos exteriores,
pois os conhece segundo as imagens que seu corpo deles forma a
partir das imagens que eles formaram dele, de sorte que há
espelhamento dele neles e deles nele, e é isto o objeto atual que
constitui o ser da mente.
Em si mesma, uma imagem nunca é falsa, pois exprime uma
operação corporal necessária, determinada por causas anatômicas,
fisiológicas e pelas leis naturais da física. Assim, por exemplo, é
verdadeiro e necessário que sempre vemos os objetos distantes
como menores do que realmente são. Presente ou passada, uma
imagem é uma vivência corporal, uma experiência dos dados
imediatos da percepção em conformidade com as leis físicas e
fisiológicas que regem os acontecimentos perceptivos.
Todo o problema trazido pelas imagens decorre do fato de que
ignoramos suas causas reais e verdadeiras: de fato, uma imagem
nasce na ignorância de sua causa real e verdadeira e, por esse
motivo, leva a mente a fabricar causas imaginárias para o que se
passa em seu corpo, nos demais corpos e nela mesma, enredando-
se num tecido de explicações ilusórias sobre si, sobre seu corpo e
sobre o mundo porque explicações parciais, nascidas da ignorância
das verdadeiras causas. A ideia imaginativa é o esforço da mente
para associar, diferenciar, generalizar e relacionar fragmentos
percebidos confusamente, criando conexões entre imagens para
com elas orientar-se no mundo. A mente é consciente dessa
vivência e a exprime numa ideia imaginativa.
A distinção entre a imagem corporal e a ideia mental levou a
tradição a afirmar que a mente está impedida do conhecimento
verdadeiro de seu corpo, de si e do mundo enquanto permanecer
ligada ao corpo, onde se encontraria como encarcerada numa
prisão. Muito pelo contrário, afirma Espinosa, trata-se de encontrar o
ponto de intersecção entre o conhecimento perceptivo e o
conhecimento intelectual, sem que este exclua aquele. Ou, como
lemos na Parte II da Ética, imaginar (ou seja, perceber por meio de
imagens) é uma potência do corpo todas as vezes em que sabemos
que estamos imaginando – vejo o Sol menor do que a Terra, mas sei
que essa percepção possui causas necessárias e que, de fato,
astronomicamente, o Sol é maior do que Terra. A unidade do corpo
e da mente que constituem um ser humano singular significa que o
aumento da potência corporal é também aumento da potência
psíquica ou intelectual:
***
***
9. Ou seja, o pecado não pode ser um ato de liberdade, pois é uma paixão e
não uma ação.
10. B. Espinosa, Tratado político, Capítulo II, §§ 7 e 11, Lisboa: Círculo de
Leitores, 2008.
O olhar
A visão de Deus e o olhar dos homens: uma
leitura wittgensteiniana do problema de
Molyneux
João Carlos Salles
5. Não quer dizer que o cego não vá acertar ou que esteja sendo
desonesto ao chutar uma resposta. Quer dizer apenas que não é
certo, que não se demonstra a prévia organização do sensível,
como anterior ao próprio sensível. Simplesmente, não é necessário
que veja. Pode dizer com sentido que sim ou que não. E aqui pouco
importa a porcentagem de acerto. Para a filosofia, a possibilidade de
resposta significativa é tudo. O efetivo não é o mais importante,
acertar com a verdade pura e simples não é o mais importante, mas
sim o sentido da verdade dos dois espaçamentos. O filósofo aqui, à
diferença talvez de um espírito cientificizante, deve optar por um
relógio que sempre está atrasado, que nunca acerta com a verdade,
mas sempre a persegue e dela se aproxima, a um relógio parado,
que acerta com a verdade duas vezes ao dia.
Tomemos mais um experimento, para salientarmos um traço
essencialmente perspectivo da visão. O que vemos? Uma moça ou
uma velha9?
A organização do sensível não é inocente, e temos instruções
expressivas, agarradas em uma linguagem, para fazer ver, quer
moça, quer velha – ou para fazer ver, para discernir um cubo de
uma esfera. Para quem vê a moça, podemos dar uma instrução:
veja então o queixo da moça como nariz da velha; veja sua
gargantilha como uma boca. Para quem vê a velha, podemos
indicar: vejam então o olho da velha como a orelha da moça; seu
nariz como um queixo. Logo, facilmente, alternaremos de moça a
velha e de velha a moça. Entretanto, se honestos, devemos admitir
que não veremos simultaneamente velha e moça. A visão conjunta,
talvez própria de um Deus, não seria como nosso olhar, que nota
aspectos, vê como, seleciona, acolhe instruções, banha-se e aviva-
se em linguagens. Não organizamos a experiência, inclusive de
notar aspectos, à revelia do modo como o mundo é entretecido na
linguagem. E não podemos deixar de ver como, não podemos ver
simultaneamente, pois elas, moça e velha, para nosso olhar, não
estão juntas, apesar de estarem no mesmo quadro.
Deus é o lugar da evidência. Para colher todos os objetos e
perceber todos os aspectos a um só tempo, paradoxalmente, Deus
desdenha o sensível. Por isso talvez precise às vezes de nossos
olhos, como a personagem de Moebius e Jodorowski, que deseja
apenas brincar de ver e, em um final impactante e cruel, pede à ave
Meduz que lhe traga, da próxima vez, os olhos de uma criança. Por
outro lado, podemos ousar dizer que, em nosso sentido ao menos,
Deus não consegue ver a ilusão de Müller-Lyer. Racional e fraco
dos olhos, desdenha a dimensão ilusória do sensível, que decifraria
internamente. Deus tampouco vê alternadamente moça e velha.
Entretanto, se as vê simultaneamente e, por definição, tem como
limite apenas a contradição, Deus é cego para o aspecto. E apenas
nessa sua cegueira Deus vê dispostos inteiros e todos os fios da
história, todas as possibilidades, que não são efetividade alguma e,
logo, nenhuma história.
Os que almejam o ponto de vista de Deus têm no tato a medida,
como se em algum tempo imemorial precisassem tocar as coisas,
como a afastar as teias do sensível. É como se afastassem os
predicados de Sócrates que o faziam sujo, gordo e feio, mas
sobretudo ateniense, para agarrá-lo em sua substância todavia
inefável e deveras intangível. Aceitar a perspectiva é saber que,
humanos, para aprendermos o significado de uma palavra, não
precisamos já tê-la empregada em todos os casos, porque do
contrário correria o risco de alguma contradição.
A contradição, afinal, é um obstáculo para os deuses, mas é um
alimento para os homens – ao menos, para os homens que aceitam
o jogo de luz e sombra, de calor e fuga, tão próprio da carne do
mundo. Conhecimento é uma forma de ação. Vemos com mãos e
também com palavras. Logo, é interior a uma gramática, pela qual
se ligam fragmentos de linguagem e pedaços do mundo. Em sendo
assim, não basta ver, se não vemos como, se não temos critérios e
coordenadas para o que vemos. E tudo ver é antes nada ver,
cabendo lembrar que só a interdição nos constitui, só a perspectiva
nos oferece também a margem de liberdade própria do olhar.
O SUJEITO E O DESEJO
Em psicanálise, é importante diferenciar o sujeito e o indivíduo.
Indivíduo, palavra que remete a não dividido, seria o exato oposto
de sujeito. Se nos apresentamos na vida social, perante os outros,
como indivíduos – portadores de um nome e de alguns atributos
(profissão, gênero, estado civil, idade etc.) que nos diferenciam
diante dos outros – isso não significa que sejamos unos. O sujeito,
para a psicanálise, é, por definição, dividido: a instância psíquica do
inconsciente, que se revelou a Freud através dos lapsos, dos atos
falhos, dos sintomas, das fantasias e dos sonhos de seus pacientes,
está fora do domínio egoico do indivíduo. A divisão subjetiva faz
parte da condição humana – ou, pelo menos, da subjetividade
moderna1.
Em termos gerais, a palavra inconsciente designa o estado de
uma representação mental que está fora do alcance da consciência.
Mas há uma diferença estrutural entre o que está fora da
consciência por alguma circunstância banal – memórias muito
antigas, assuntos atuais nos quais não estamos pensando no
momento – e o que está fora da consciência por estar recalcado. O
inconsciente é formado pelo conjunto das representações
recalcadas; Freud denominou pré-consciente o estado das
representações das quais nos esquecemos temporariamente
(ninguém pensa em tudo ao mesmo tempo o tempo todo), mas que
podem vir à mente com pouco esforço. Sem angústia. A angústia
sinaliza a iminência do retorno do recalcado.
Acontece que, ainda nos termos da psicanálise freudiana, o
desejo é, por definição, inconsciente. Aquilo a que chamamos
comumente de desejo – voltado a um objeto, a uma comida de
sabor delicioso, a um namorado ou namorada – não tem o mesmo
estatuto do desejo na psicanálise. Podemos chamá-los de objetos
das nossas fantasias conscientes, das nossas vontades, ambições,
carências, gulas. O objeto do desejo é outra coisa. O objeto do
desejo está ligado à condição universal da falta – pelo menos no
sujeito neurótico, que para a psicanálise é o sujeito “normal” (ou
outros seriam o perverso e o psicótico, dos quais não vou tratar
aqui).
Ser um sujeito a quem falta completude é o melhor que se pode
esperar, do ponto de vista da psicanálise. O filhote do homem e da
mulher tem a experiência de completude somente no útero materno,
onde de fato o feto e a mãe estão ligados, sem interrupções nem
faltas, até o momento do parto. Vir ao mundo é desfazer a unidade
com o corpo materno. É claro que essa perda de completude não se
revela de imediato à criança. É comum escutarmos, de parentes e
amigos, que o bebê recém-nascido parece “muito bonzinho” porque
não chora ou chora só quando tem fome. Isso dura alguns dias; é
que o bebê sadio demora um pouco para descobrir que nasceu. A
experiência de unidade com o corpo da mãe prolonga-se por alguns
dias, até que a fome, eventualmente o frio ou outras formas de
desconforto comecem a assolar o pequeno corpo que não tem
nenhum recurso para se defender ou se satisfazer a não ser –
chorar. A partir de agora a criança “calminha” começa a manifestar
suas insatisfações de maneira cada vez mais veemente. Pronto:
acabou-se a paz dos primeiros dias. Inicia-se, para a mãe ou o
cuidador responsável, a longa fase de tentar entender o que falta ao
serzinho recém-chegado ao mundo.
Dizem que chorar é bom para fortalecer os pulmões; pode ser.
Acrescento que é bom também para fortalecer o embrião de sujeito
presente no infans. Embrião de sujeito, sim, uma vez que, para a
psicanálise, o sujeito é sempre dividido – grosso modo, entre a
consciência e o inconsciente – através de um processo que se dá
aos poucos, durante a primeira infância, e se completa depois do
atravessamento do complexo de Édipo. É quando a criança perde
de vez a ilusão de que um dia voltará a se unir de forma indissolúvel
ao corpo materno do qual se separou ao nascer. É uma forma
esquemática de se resumir a travessia edípica, mas preserva o
essencial: se iniciamos a existência embrionária, e por um longo
tempo, em estado de perfeita completude (fase em que os parentes
e amigos elogiam o bebê “bonzinho”), há um momento em que a
insuficiência se manifesta. As tais cólicas dos três meses podem até
acontecer; mas a criança, com ou sem cólicas, há de chorar porque
se angustia com sua incompletude. Ela não reconhece, por
exemplo, o alarme do aparelho digestivo diante da falta de alimento:
apenas grita de desconforto, até que a mãe, ou alguma substituta,
venha a lhe oferecer alimento. Em um pequeno ensaio luminoso
chamado “Os dois princípios do funcionamento mental” (1911),
Freud nos oferece um modelo da formação do aparelho psíquico a
partir justamente do intervalo de tempo entre o alarme corporal
disparado pela fome (que nos primeiros dias a criança não tem
como entender) e a chegada salvadora do seio materno ou da
mamadeira.
O esquema freudiano não é difícil de entender. Depois de
algumas horas, ou dias, em que o recém-nascido ainda está
alimentado pelo líquido amniótico, seu pequeno corpo é assolado
por um desconforto desconhecido: a fome. A criança grita, por
reflexo; a mãe comparece e alimenta o bebê. Aos poucos, a
experiência da fome-choro-leite se inscreve no psiquismo como uma
forma rudimentar de linguagem; o grito da criança é sua primeira
forma de potência. Faz comparecer a mãe! Traz o leite que anula o
terrível desconforto da fome! O reflexo do choro se transforma em
linguagem. O bebê já não é tão desamparado como no início: ele
dispõe de um recurso que convoca a mãe. Seu choro é também o
exercício da pequena potência que traz a mãe de volta.
Mas a fome, ou a falta do leite, não é idêntica ao desejo. As
necessidades corporais, assim como os recursos vitais para
satisfazê-las, participam do circuito da pulsão. O desejo não se
instaura a partir das necessidades corporais, e sim através daquilo
que denominamos falta-a-ser. A incompletude do ser. O infans,
filhote de homem, não se dá conta de que nasceu logo após ser
expulso do corpo materno. O tal “bebê bonzinho” ainda não sabe
que “nasceu”. Ele ainda se sente completo, formando uma unidade
com o corpo materno. Aos poucos, a ausência da mãe, ou as
pequenas demoras da mãe, consolidam no infans a experiência de
separação iniciada no parto. Não é apenas de fome que se trata: o
que a criança perde, e precisa perder para evoluir como sujeito, é
seu lugar de objeto absoluto do desejo materno.
Não é tão difícil quanto parece. Uma mãe “suficientemente boa”
(a expressão é de Bruno Bettelheim) é aquela para quem o filho, ao
contrário do que rezam as crenças populares, não é o centro do
mundo. Ou melhor: se nos primeiros dias ou semanas depois do
parto o universo afetivo da mãe gira em torno do bebê, aos poucos
outros interesses, ou seus antigos interesses (a começar pelo pai da
criança, se ele existir), voltam a ocupar uma parte de seus
investimentos libidinais. Às vezes a mãe deixa a criança de lado por
alguns minutos por necessidade; mas às vezes deixa porque quer.
Porque o amor não é, nem deve ser, absoluto. A mãe quer
conversar por um tempinho com um ser humano adulto; quer fazer
amor com seu marido, se ele estiver por perto; quer sair na rua; quer
ir, pela primeira vez depois de meses, ao cinema... A mulher que se
tornou mãe descobre, não sem espanto, que a maternidade não
recobriu todos os outros aspectos de sua existência. Sorte do filho:
essa é a mãe que vai deixá-lo um pouco em falta. A mãe que vai
introduzir em seu incipiente cenário mental a experiência da falta.
Falta de quê? Falta-a-ser, diz Lacan. Não é a falta do leite, ou do
acalanto, do conforto, do carinho; outros cuidadores carinhosos
podem proporcionar isso ao bebê. O que a criança perde – e é
necessário que perca – à medida que a mãe se volta aos poucos
para outros interesses (excluo aqui o mais dramático dos casos,
responsável pela psicose melancólica, o da mãe que não se
interessa pela criança), não é nem o amparo materno nem, menos
ainda, seu amor. O que a criança perde é seu estatuto de objeto
absoluto desse amor. Ou, antes ainda: a condição fusional com o
corpo e a psique materna.
Vocês já devem ter adivinhado o quanto essa perda é
fundamental para que o infans se transforme em um sujeito.
Em primeiro lugar: sujeito é o oposto de objeto. O bebê deixa de
ser o objeto que completa sua mãe (mesmo que continue a ser um
objeto amado, por vezes o mais amado de todos) para se
transformar, aos poucos, em um ser separado da fusão primordial.
Nós, humanos, somos seres vivos desadaptados da natureza. Já
perceberam isso? Um bezerro recém-nascido em poucas horas se
ergue nas perninhas bambas e busca as tetas da vaca; o mesmo
para todos os outros mamíferos. E a vaca estará lá para isso. É
instintivo – ainda que, do ponto de vista de nossa cultura,
observemos o instinto do mamífero pela lente do amor.
Mas há uma segunda passagem a ser feita para que o bebê
humano se transforme em um sujeito. Não basta que a mãe
possibilite à criança a experiência da fome, que aos poucos há de
ajudá-lo a descobrir a potência do grito, embrião da linguagem. É
importante que a mãe tenha outros objetos de interesse além de seu
bebê; e que depois dos primeiros dias, ou semanas, de
enamoramento absoluto, ela se volte também para esses outros
objetos. Para efeitos de simplificação, chamemos o primeiro desses
outros objetos de pai. Pois é: o modelo mais frequente de família
pressupõe o casamento por amor entre um homem e uma mulher.
Mais dia, menos dia, o pai haverá de rivalizar com “sua majestade, o
bebê” pelo amor de sua mulher; ou talvez o encantamento da
maternidade aos poucos se frature um pouco (nem tudo são
alegrias nesse campo, como muitas leitoras devem saber), e a mãe,
recuperada das agruras do parto, volte a sentir desejo por seu
homem – esse mesmo desejo, aliás, que fez acontecer a gravidez.
O importante é que, no horizonte da criança, surja um rival. Um
objeto que já existia ali, mas que para ela não tinha nenhuma
importância até que se apresentou como rival. Alguém capaz de
dividir o interesse da mãe; alguém capaz de revelar ao bebê que ele
não é “tudo” para ela (perda sofrida essa – tanto que voltamos a
buscar esse estatuto, de ser “tudo” para alguém, na paixão
amorosa; que dura um tempo limitado e depois, no melhor dos
casos, se transforma em amor normal). O pai é o primeiro objeto de
ciúme do bebê – nem precisamos evocar a intrusão terrível do novo
irmãozinho. É claro que o bebê compete com o pai pelas atenções
da mãe. Só que é provável que esse rival assustador, de voz grossa
e grandão, ame seu filho também; por que os textos psicanalíticos
sobre os ciúmes infantis contemplam tão pouco essa possibilidade?
A entrada do pai no universo pulsional e afetivo do bebê não vem
apenas lhe roubar o amor da mãe: vem lhe trazer um amor novo,
outra forma de amor, outro corpo, outro cheiro, outras demandas
pulsionais. O pai brinca, o pai fala com seu rebento, o pai pega a
criança quando a mãe já está cansada e não consegue fazê-la
dormir (meu pai dançava samba comigo quando eu estava insone;
pena que eu não me lembre disso). Assim, o mesmo ser que rouba
um pouco as atenções que a mãe dedica ao bebê vem lhe trazer
uma nova experiência de conforto, de carinho, de amor. Refiro-me
ao que acontece em famílias “suficientemente boas”. Não precisam
ser perfeitas. Melhor que não sejam.
Bem, com pai ou sem pai – há mães solteiras, há jovens mães
viúvas, há mães divorciadas desde cedo – o fato é que a criança
precisa perder um pouco da plenitude inicial para se tornar – o quê?
Desejante. Ou, dito de outra maneira: a criança precisa cair de seu
lugar de objeto absoluto do desejo do outro (materno) para se tornar
– o quê? Sujeito. Sujeito de um desejo. Desejo de quê? Desejo de
ser aquilo que deixou de ser.
Não é paradoxal nossa condição humana? Precisamos ter sido o
objeto privilegiado do desejo do outro, mas só para cair desse lugar
e conservar a marca nostálgica dessa falta-a-ser; aí se inaugura a
fonte de nossa potência subjetiva, que é o desejo de voltar a ser o
que perdemos. Só que nunca mais seremos completos: a perfeição
só retorna na morte (a um morto não falta mais nada). Seremos, isto
sim, desejantes de completude. E quanta coisa os humanos fizeram
movidos por esse desejo. Potes de barro, campos floridos,
catedrais, sinfonias, sambas, alta-costura, tricô, invenções
tecnológicas, desenhos, ciência, guerras, cidades inteiras. O desejo
é nosso motor; mas desejo de quê? Ainda que nas sociedades
industriais contemporâneas se fale muito em objeto do desejo (na
verdade, se trata apenas de objetos de consumo), freudianamente,
o objeto do desejo não existe. Ele perdeu-se – para sempre! –
quando o bebê deixou de ser o objeto mais importante do desejo de
sua mãe. Ainda bem. É melhor ser alegre que ser triste e é melhor
ser sujeito do que objeto.
SACIEDADE E DEPRESSÃO
1. Discuto essa questão em meu livro Sobre ética e psicanálise, São Paulo:
Companhia das Letras, 2001.
Ética
Da ética à antiética: notas para compreender a
supremacia da violência
Franklin Leopoldo e Silva
No fundo, o mal na violência deriva
precisamente não de que ele destrói o
direito, mas sim de que ele o cria.
J. P. SARTRE
6. Cf. Hegel, La Phénomenologie de l’esprit, Paris: Auibier, 1941, pp. 145 ss.
7. Cf. Max Weber, Economia e sociedade, vol. 1, Brasília: Editora da UnB, 2000,
pp. 385 ss.
8. Cf. Lafayette Pozzoli, “Reconhecimento e fraternidade”, disponível em:
<http://www.uca.edu.ar/uca/common/grupo57/files/reconhecimento_e_fraterni
dade.pdf>, acesso em: mar. 2017.
9. A respeito do assunto, acompanhamos as considerações de Joachim
Jeremias, As parábolas de Jesus, São Paulo: Paulinas, 1976.
10. L. Pozzoli, op. cit., p. 3.
11. Ibidem, p. 4.
12. Axel Honneth, Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos
sociais, São Paulo: Editora 34, 2003, p. 63. Cf. também, para uma visão mais
geral, Rurion Melo (org.), A teoria crítica de Axel Honneth: reconhecimento,
liberdade e justiça, São Paulo: Saraiva, 2013.
13. A. Honneth, op. cit., p. 65.
14. Cf. Filipe Campello, “Do reconhecimento à liberdade social: sobre o ‘direito
da liberdade’ de Axel Honneth”, Cadernos de Ética e Filosofia Política, nº 23,
São Paulo: FFLCH-USP, 2013, p. 186.
15. Axel Honneth, O direito da liberdade, apud Filipe Campello, op. cit., p. 188.
16. Adauto Novaes, “Causas acidentais e causas permanentes da violência”,
apresentação do ciclo de conferências “Violência Interior”, realizado na
Escola de Oficiais da Polícia Militar do Rio de Janeiro.
17. Michel Foucault, Nietzsche, Freud e Marx – Theatrum philosophicum, São
Paulo: Princípio, 1997.
18. Thomas Hobbes, Leviatã, São Paulo: Abril, 1980, p. 123.
19. Lúcia Lemos, “A política de segurança pública entre o monopólio da força e
os direitos humanos”, tese de doutorado, Universidade Federal de
Pernambuco, 2010, p. 94.
Tempo e história
Marcelo Jasmin
Nenhuma história universal conduziu do
selvagem ao homem civilizado; muito
provavelmente há uma que leva da
funda à bomba atômica.
T. ADORNO
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***
***
Como não podia deixar de ser, a filiação materna das Musas produziu
inúmeras especulações sobre como os gregos arcaicos concebiam seus
poemas épicos – ou, como eles diziam, êpea (plural de epos, que quer
dizer palavra, poema, discurso reiterável). A hipótese mais comum,
baseada também no fato de que a Ilíada pretende relatar feitos passados
durante a Guerra de Troia, é que os êpea tinham a função de
seletivamente preservar a memória de uma comunidade. Eric Havelock
apresenta uma modalidade dessa concepção quando diz que
1. Martin Heidegger, “Die Zeit des Weltbildes”, in: Martin Heidegger, Holzwege,
Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1952, p. 81.
2. Ibidem, p. 82.
3. Idem, “Der Wille zur Macht als Kunst”, in: Martin Heidegger, Nietzsche, vol. 1,
Pfullingen: Neske, 1961, p. 93.
4. Ibidem, p. 66.
5. Idem, “Der Ursprung des Kunstwerkes”, in: Martin Heidegger, Holzwege, op. cit., p.
62.
6. Benedito Nunes. “Poética do pensamento”, in: Adauto Novaes (org.).
Artepensamento. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
7. M. Heidegger, “Hölderlin und das Wesen der Dichtung”, in: Martin Heidegger,
Erläuterungen zu Hölderlins Dichtung, Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann,
1951, p. 39.
8. Ibidem, p. 40.
9. Ibidem, p. 43.
10. Idem, “Der Ursprung des Kunstwerkes”, op. cit., p. 251.
11. Ibidem, p. 95.
12. Idem, “Hölderlin und das Wesen der Dichtung”, op. cit., p. 33.
13. Μοῡσαι’ Ολυμπιάδες, κοῡραι ΔιὸϚ αἰγιόχοιο. / τὰς ἐν Πιερίῃ Κρονίδῃ τέκε πατρἰ
μιγεῑσα / Μνημοσύνη, γουνοῑσιν’ ΕλευθῆροϚ μεδέουσα, / λησμοσύνην τε κακῶν
ἂμπαυμά τε μερμηράων. Hesíodo, Teogonia, México: Universidad Autónoma de
México, 1978, vv. 52 ss.
14. Homero, “In Mercurium”, in: T. Allen (ed.), The Homeric Hymns, Oxford: Clarendon
Press, 1936, v. 429.
15. Plutarco, “Quaestiones conviviales IX”, in: Plutarco, Moralia, vol. IX, Cambridge,
Mass.: Harvard University Press, 1993, p. 266.
16. Eric. A. Havelock, Preface to Plato, Cambridge, Mass.: Harvard University Press,
1963, p. 91. Observe-se porém que, em texto escrito quase vinte anos mais tarde,
Havelock reconhece que “a memória oral trata primariamente do presente; coleta e
recoleta o que está sendo feito agora ou o que é adequado à situação presente.
Relata as instituições do presente, não as do passado”. Cf. E. A. Havelock, “The
Oral and the Written Word: A Reappraisal”, in: E. A. Havelock, , The Literate
Revolution in Greece and its Consequences, New Jersey: Princeton University
Press, 1982, p. 23.
17. Idem, Preface to Plato, op. cit., p. 27.
18. .
Hesíodo, op. cit., v. 27.
19. .
Homero, Odyssée, Paris: Les Belles Lettres, 1924, xix, 203.
20. Friedrich Nietzsche,“Die Geburt der Tragödie aus dem Geiste der Musik”, in: H. H.
Holz (ed.), Friedrich Nietzsche. Studienausgabe in 4 Bänden, Frankfurt: Fischer,
1968.
21.
23. τὴν γὰρ ἀοιδὴν μᾶλλον ἐπικλείουσ᾽ ἄνθρωποι, / ἥ τις ἀϊόντεσσι νεωτάτη
ἀμφιπέληταi. Ibidem, i, 351-2.
24. Aristóteles, “De memoria et reminiscentia”, 450a, in: I. Bekker; O. Gigon, (eds.),
Opera, vol. 1, Berlin: Walter de Gruyter, 1960, pp. 24-70.
25. Tomás de Aquino, “In IV sententiarum”, in: R. Busa (ed.), Opera omnia, Genova:
Marietti, 1950, Quaestio 3, articulus 3.
26. Thomas Hobbes, Leviathan, Cambridge: Cambridge University Press, 1996.
27. E. Havelock, Preface to Plato, op. cit., p. 100.
28. Hermann Fränkel, Dichtung und Philosophie des frühens Griechentums, München:
Beck, 1993, p. 17.
29. Alfred B. Lord, The Singer of Tales, Cambridge, Mass.: Harvard University Press,
1968, p. 28.
30. Ibidem, p. 100.
31. Ibidem, p. 13.
32. Milman Parry, The Making of Homeric Verse, Oxford: Oxford University Press,
1987.
33. A. B. Lord, op. cit., p. 35.
34. Barry B. Powell, Homer and the Origin of the Greek Alphabet, Cambridge, Mass.:
Cambridge University Press, 1991, p. 224.
35. A. B. Lord, op. cit.
36. Ibidem, p. 4.
37. Heródoto, Historias, México: Universidad Autónoma de México, 1976, p. 148.
38. Aelius Aristides, Peri\ tou= parafqe/gmatoj, in: W. Dindorf, (ed.), Aristides, vol. 2,
Leipzig: Reimer, 1829, p. 508. Provavelmente ele se referia a um poema de Safo
do qual hoje nos resta apenas um fragmento: o nº 55. Cf. Safo, in: D. A. Campbell
(ed.), Greek Lyric, vol. 1, Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1982, p. 98.
39.
. Píndaro, “Nemean VII”, in: J. Sandys, (ed.), The Odes of Pindar, Cambridge,
Mass.: Harvard University Press, 1937, p. 382, vv. 20-1.
40.
Idem, “Pythian III”, in: J. Sandys, (ed.), op. cit., p. 194, vv. 112-5.
41.
42.
. Íbico, “Fragmenta”, in: D. L. Page, (ed.), Poetae melici graeci, Oxford: Clarendon
Press, 1962, fr.1a, 47.
43. Platão, “Io”, in: J. Burnet (ed.), Platonis opera, vol. 3, Oxford: Clarendon Press,
1903, 533 c-d.
44. É claro que, se não fosse a arte – téchne – que Sócrates, nesse trecho, despreza,
o performer não dominaria a língua poética e/ou musical; e que, sem dominar a
língua poética e/ou musical, ele não seria capaz de se entusiasmar ou de
entusiasmar os outros.
45. Homero, op. cit., viii, 487-91.
46. Ibidem, viii, 478-81.
47. Luciano de Samosata, “Quomodo historia conscribenda sit”, in: K. Kilburn (ed.),
Lucian, vol. 6, Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1968, § 8.
48. Arnold Hauser, The Social History of Art, New York: Vintage Books, 1951, p. 58.
49.
[...] a barrela das ilusões nos era mais útil que sua
decomposição [...]. Há muito deveríamos ter dado um lugar
ao durável, mas a sedução sempre se mostrou mais
imediatamente eficaz [...]. Logo deixamos de cantar, sem
compreender de início que o engajamento não é como um
comércio, e que as leis deste último provocam apenas
excitações efêmeras. [...] Queríamos iniciar o
compartilhamento e a reflexão num espaço
imperceptivelmente orientado por informações concebidas
para intensificar o egoísmo e satisfazer seus desejos
imediatos33.
42. Denis Diderot, Essais sur la peinture, citado em J. Starobinski, op. cit., p.
358.
43. J. Starobinski, op. cit.
44. Cf. P. Dibie, “A sexualidade como utopia”, in: Adauto Novaes (org.),
Mutações: o novo espírito utópico, São Paulo: Edições Sesc SP, 2016.
45. Subtítulo em P. Dibie, La passion du regard: essai contre les sciences
froides, Paris: Metailié, 1998.
A crise da razão
Oswaldo Giacoia Junior
9. Ibidem.
10. Ibidem, pp. 109 ss (§ 18).
11. Idem, “Nachgelassene Fragmente”, op. cit., pp. 239 ss.
12. R. Koselleck, Future Past, New York: Columbia University Press, 2004, pp.
83 ss. [Ed. bras.: Futuro passado: Contribuição à semântica dos tempos
históricos, Rio de Janeiro: Contraponto, 2006.]
13. F. Nietzsche, “Dyonisos-Dithyramben”, in: G. Colli und M. Montinari (Hrg.),
op.cit., Band VI, p. 381. [Ed. bras.: O anticristo/Ditirambos de Dionísio, São
Paulo: Companhia das Letras, 2007.] O verso retoma uma das passagens
conclusivas da Parte III de Assim Falou Zaratustra.
14. Idem, Genealogia da moral, São Paulo: Companhia das Letras, 1998, pp.
110 ss (III, 13).
SEGUNDA QUESTÃO
TERCEIRA QUESTÃO
Se nos ativermos a esses dois aspectos, teremos a impressão
de que não há nada fora do capitalismo e de que a terceira questão
não faz muito sentido. Eu recordo: há um mundo fora do
capitalismo? Pode-se formular a questão de outro modo: há um
mundo que não seja capturado nessa universal comercialização,
comprometido por ela, de uma maneira ou de outra? Levando em
conta o que precede, parece não haver nada fora do capitalismo. Ou
deveríamos dizê-lo de outro modo: o capitalismo não vê nada fora
do seu mundo, a não ser as imagens-clichê de uma natureza ou de
povos preservados (mas, por quanto tempo ainda? – é a questão
que acompanha melancolicamente essas imagens desde o início)
como reservas naturais, transformadas em santuários, destinadas
de qualquer modo a desaparecer. O capitalismo não sabe produzir
senão clichês.
Mas, em realidade, há um mundo fora do capitalismo. São todas
as populações que são “inúteis” para seu funcionamento e sua
expansão; são todos aqueles largados à sua sorte, dos quais nem
se pode dizer que estão excluídos do mundo capitalista;
simplesmente não se enquadram mais nele. Não se trata de eliminá-
los, trata-se apenas de empurrá-los para fora. Mas essas
populações são também certas forças que temos em nós e que
expulsamos, a fim de entrar ou de permanecer nos quadros que as
empresas e o novo mundo social nos impõem.
Então se descobre que o capitalismo tem, de fato, limites. Mas
esses limites não são da mesma natureza que os precedentes. Não
são mais limites internos, relativos, como o são as regulamentações,
os quadros econômicos, jurídicos e sociais que podemos chamar de
limites inclusivos. Inclusivos porque definem as normas que se
aplicam às condutas, aos bens, aos fluxos de materiais, e que têm
por função nos incluir nos universos de que falávamos. Mas o outro
limite, o que lança fora todos aqueles que as normas não integram
mais, convém chamá-lo de limite exclusivo. Qual a diferença entre
os dois? São muitas, mas me limitarei a uma só: é que eles não são
portadores do mesmo direito.
No primeiro caso, o direito é um direito positivo no sentido de
que enquadra ou regulamenta as transações financeiras, os
contratos de trabalho; uma parte relativa cabe ao Estado através do
“contrato” social que o liga a seus cidadãos. Claro que esses direitos
são inseparáveis de um conjunto de sanções e de punições que
constituem seu reverso repressivo. Pode-se deplorá-los, contestá-
los, obter sua evolução, mas não sua supressão; eles asseguram o
caráter coercitivo das normas. Não há normas sem sanções
eventuais, o que permite assentar sua força política e social e
conferir-lhes uma legitimidade. Mas essa repressão se exerce no
interior dos limites das sociedades capitalistas. Ela não nos faz sair
deles.
No caso do limite exclusivo, já não lidamos mais com o mesmo
direito nem com o mesmo exercício da força. O direito pode tornar-
se um direito de vida ou de morte. Não se trata apenas de eliminar
(e não mais julgar) indivíduos considerados como criminosos
(comprovados ou potenciais), mas de isolar os indivíduos em zonas
de não direito, do outro lado de um limite agora intransponível. Esse
direito consiste em tirar os indivíduos de toda zona de direito, de
toda sociedade. Literalmente, eles estão fora. São fora da lei
(outlaws). O que significa a ausência de direito? Significa que não
se pode mais reivindicar nenhum direito. Pode-se apenas reivindicar
o direito de viver. Mas se o poder é agora, segundo a hipótese de
Foucault, um biopoder que tem por objeto a “vida” dos indivíduos, a
vida, ao escapar à sua “gestão” biopolítica, se degrada em
sobrevivência nos meios desérticos ou abandonados: estepes,
florestas, favelas, no man’s land, zonas industriais abandonadas,
campos de refugiados etc.
Em realidade, sai-se da humanidade (e multiplicam-se as
imagens de acampamentos onde indivíduos vivem “como animais”,
em condições inumanas) e não se tem mais acesso aos direitos
elementares concedidos à humanidade. Os indivíduos não são mais
reconhecidos como humanos, no sentido de que seu direito à vida
não é tão “sagrado” quanto para os que vivem “protegidos” no
interior do sistema capitalista. Eles não estão mais cobertos pelo
biopoder; ao contrário, são definidos como uma ameaça para os que
estão do outro lado do limite. Isso nada tem de abstrato. Todo
aquele que sai do sistema capitalista conhece essa luta pela
sobrevivência e enfrenta os limites que o rechaçam ou o mantêm
sempre fora. São os países ricos que não querem acolher os
migrantes, as grandes cidades que rechaçam a miséria para as
favelas, toda uma periferia miserável em torno das sociedades
capitalistas amedrontadas com os que vivem fora, do outro lado do
limite, eventualmente interessadas apenas na mão de obra barata
que eles fornecem em caso de necessidade.
Percebe-se bem o que tal limite encarna. Ele exprime uma
alternativa exclusiva: capitalismo ou morte – seja morte rápida ou
lenta, interminável, seja morte social, econômica, cívica, ou tudo
isso ao mesmo tempo. É uma espécie de chantagem imunda em
que não se tem outra escolha senão aceitar trabalhos precários, mal
pagos, em condições de vida que se confundem com as da
sobrevivência. Sob muitos aspectos, estamos próximos da
descrição que faz Giorgio Agamben do traçado do limite no Império
Romano, num texto sobre Kafka6. O limite dos domínios imperiais,
tal como o traçava o agrimensor romano, era uma questão
considerável. O agrimensor era criador de direito, tinha uma função
sagrada. Podia mesmo ter direito de vida ou morte sobre quem
transgredisse o limite. Talvez o capitalismo reencontre algo desse
limite imperial, exceto que não o fundamenta mais em razões
astronômicas ou cosmológicas como no tempo do Império Romano,
mas em razões econômicas ou geoestratégicas. Para além desse
limite, sua vida não é mais garantida. Você está numa zona de não
direito onde o que se chama de biopoder desaparece. Você é
subtraído a esse “cuidado” tão particular que é também o dos
Estados e empresas que garantem o bem de seus cidadãos e
clientes. Não apenas é expulso do espaço virtual que o capitalismo
desdobra e estende sobre o espaço real que ele engloba, mas sai
também de sua temporalidade. Torna-se a imagem de um
anacronismo, de um mundo que imaginam findo: aquele de um
corpo que luta, com outros, num espaço real para viver e sobreviver.
Anacrônico, mas também obsoleto como o são os dejetos, os
detritos, os materiais usados. Essa exclusão mostra o imperialismo
do capitalismo. É nas fronteiras do “seu” mundo que o
reconhecemos, mais ainda, se é possível dizer, que em seu
englobamento da terra.
Mas essas imagens, por portadoras de real que sejam, são ainda
imagens. Elas têm uma função no interior mesmo do capitalismo: a
de nos impedir de acreditar que outro mundo possa existir, e a de
nos fazer acreditar que fora do capitalismo só há miséria, desolação
e morte, que não há nada vivo. Fazem-nos acreditar que nos
relacionamos com uma realidade quando temos informações
prévias sobre ela, que nos relacionamos com os corpos – inclusive
os nossos – quando temos informações sobre eles, sua saúde, seu
equilíbrio, sua beleza (comercial), sua sociabilidade, em suma, sua
imagem. Passar para o outro lado do limite é, talvez, não poder
acreditar nas imagens, mas ir ver no lugar o que se passa.
1. Tradução de Paulo Neves.
2. Fernand Braudel, Civilisation matérielle, économie et capitalisme — Le
Temps du monde, tome III. Paris: Armand Colin, 1979, pp. 245 e 391-400.
3. Gilles Deleuze e Felix Guattari, Mille plateaux, Paris: Minuit, pp. 34, 460 e
479.
4. Jeremy Rifkin, L’Âge de l’accès, Paris : La Découverte, 2005, p. 95.
5. Gilles Deleuze, Pourparlers, Paris: Minuit, 2003, pp. 243-4.
6. Giorgio Agamben, Nudités, Paris: Rivages poche, 2009, p. 33.
O homem-máquina
O amor na era digital
Francisco Bosco
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Desde pelo menos as duas últimas décadas, surgiram no espaço
digital inúmeros sites e APPs que têm o objetivo de propiciar matchs
entre pessoas que, em geral, não se conhecem fisicamente. Esses
sites e APPs podem ter o objetivo estrito de propiciar relações
duráveis, compromissadas, casamentos, ou encontros de natureza
mais efêmera, meramente sexual. Entre os primeiros, um dos
maiores do mundo é o eHarmony.
Fundado em 2000 por um psicólogo americano que atuava como
conselheiro de casais, o eHarmony, sediado em Los Angeles, atua
em 150 países, declara ter hoje mais de 33 milhões de membros e
afirma que, por meio de seu site, mais de quinhentas pessoas se
casam todos os dias, apenas nos Estados Unidos. O “diferencial” da
empresa está no algoritmo desenvolvido por ela, baseado na
crença, por seu psicólogo fundador, de que a identificação de
características pessoais permite associar os indivíduos, por um
princípio de compatibilidade, e produzir relacionamentos mais
satisfatórios e bem-sucedidos. Numa palavra, o princípio orientador
do site é o de que “opostos se atraem, depois se atacam”
(“opposites attract, then attack”). Tentemos pensar o que o sucesso
desse site – e de outros análogos – pode revelar enquanto sintoma
social, bem como pensar sua pertinência teórica e suas
possibilidades e limitações práticas.
Alain Badiou começa seu livro Elogio do amor contando que
ficara impressionado com uma publicidade de um site de encontros
francês, chamado Meetic. Os slogans de sua campanha publicitária
eram frases como essas: “Obtenha o amor sem o acaso”, “Pode-se
amar sem se apaixonar” (On peut être amoureux sans tomber
amoureux), “Você pode amar sem sofrer” etc. Essas frases
convergem para o que Badiou chama de concepção securitária do
amor33. Como se pode perceber, trata-se de uma estratégia
semelhante àquela dos casamentos arranjados em sociedades pré-
modernas, só que ela não é proposta “em nome da ordem familial
por pais déspotas, e sim em nome de uma segurança pessoal, por
um arranjo prévio que evita todo acaso, todo encontro, e finalmente
toda a poesia existencial, em nome da categoria fundamental da
ausência de riscos34”.
É preciso, portanto, primeiro compreender de que risco se trata,
o que esses cibercasamentos arranjados querem evitar; em
seguida, procurar entender por que essa estratégia subjetiva tem
conquistado tantos adeptos; e, finalmente, fazer a sua crítica, isto é,
apresentar as suas possibilidades e limitações.
Comecemos por essa frase: “Obtenha o amor sem o acaso”. Eis
um slogan um tanto enigmático; por que, afinal, o acaso seria
indesejável no encontro amoroso? Badiou, nesse pequeno livro,
estabelece quase que uma brevíssima teoria do amor, descrevendo
sua estrutura e dinâmica. Para ele, uma relação amorosa se
desenvolve em etapas distintas. A primeira delas é o encontro, a
que ele atribui o estatuto de acontecimento, isto é, de algo que
emerge de forma insuspeitada, com força de desestabilização.
Estamos aqui diante do momento inaugural da paixão. Já vimos que
a paixão é tradicionalmente compreendida como um estado de
fusão. Mas é preciso tanto entender o que significa essa metáfora,
quanto identificar um movimento simultâneo, porém de sentido
inverso, no interior desse mesmo estado.
Aqui devemos chamar Freud em nosso socorro. O sentimento de
fusão, no estado passional, é um fenômeno imaginário. Ele é uma
espécie de locupletação psíquica, em termos de economia libidinal e
narcísica. Da perspectiva da economia libidinal, estar apaixonado
significa investir uma enorme massa de energia libidinal (a paixão é
uma alteração drástica na distribuição da libido) num único objeto.
Ser correspondido significa, por sua vez, receber de volta todo esse
investimento. Assim, se, num primeiro momento, ocorre “um
empobrecimento do ego em relação à libido em favor do objeto
amoroso35”, em seguida, possuir o objeto amado enriquece-o mais
uma vez. A recompensa sendo proporcional ao investimento (daí,
portanto, um primeiro e óbvio risco da paixão: o de empobrecer
radicalmente seu ego, sem a garantia de recuperar o investimento).
Além disso, e de maneira mais singular (pois a recompensa do
investimento libidinal pode ser encontrada de outras maneiras, com
outros objetos), a paixão correspondida representa um estado
intenso de felicidade narcisista. Entendamos. Para Freud, há dois
paradigmas de escolha objetal amorosa: ou bem se ama a mãe, ou
se ama a si mesmo. No primeiro caso, chamado por ele de escolha
objetal de ligação, o sujeito buscará o objeto que reproduza as
condições do narcisismo primário da criança que ele foi, ou seja, vai
eleger como objeto de amor alguém em quem ele identifique os
traços essenciais do cuidado materno (ou paterno; em suma,
parental). No segundo caso, o sujeito buscará o objeto no qual ele
identifique traços fundamentais de seu eu ideal. O eu ideal é a
imagem de si que o sujeito gostaria de ter, gostaria que os outros
tivessem, e se esforça para atingir. Diferentemente do que se pode
pensar a princípio, a vida moral não é puro altruísmo; ela oferece
gratificações no interior do próprio sistema psíquico. Em outras
palavras: toda vez que o eu age à altura do eu ideal, ele encontra
uma satisfação narcísica (e a recíproca é verdadeira: toda vez que
age em desacordo com o eu ideal, se dá uma ferida narcísica).
Segundo esse paradigma, a paixão correspondida é uma
tremenda dopamina narcísica. Na escolha objetal de ligação, o
sujeito reencontra a satisfação de seu narcisismo primário, sendo
amado por alguém que o trata como sua mãe: um amor sem
arestas, todo feito de cuidados, e onde o desejo do outro é
extremamente previsível. Na escolha objetal narcisista, ao
apaixonar-se o sujeito dá ao objeto amado uma perigosíssima
procuração, que confere a esse último o direito de proferir a verdade
sobre sua autoimagem. Se o sujeito vê no outro o seu próprio eu
ideal, isso significa que, sendo a paixão correspondida, estará
confirmando o eu ideal do sujeito apaixonado. É como ser amado
intensamente pelo seu próprio eu ideal. Ou seja, é tornar-se, sem
sombra de dúvida, o seu ideal. Nesse estado, portanto, desaparece
a décalage habitual entre o eu e o eu ideal, que produz sofrimento.
Eu e eu ideal estão perfeitamente alinhados. É isso o sentimento de
fusão – e é por isso que a paixão tem uma tendência a sair do
mundo, a permanecer nesse circuito fechado de investimento
libidinal, em que a realidade exterior, com seus objetos hostis, não
pode ameaçar a plenitude da gratificação psíquica.
Por outro lado, e ao mesmo tempo, a completude imaginária
pode conviver com uma disjunção radical, produzida pelas
diferenças subjetivas dos dois indivíduos apaixonados. Cada sujeito
é uma totalidade muito mais complexa do que os traços eleitos pelo
amante como o espelho de seu eu ideal. Assim, à fusão imaginária
pode corresponder uma dificuldade extrema de alinhar, numa vida
em comum – isto é, numa relação – todo o conjunto de gostos,
hábitos, valores, idiossincrasias, sintomas, preferências sexuais etc.,
um conjunto que abrange desde aspectos conscientes e superficiais
(logo mais passíveis de serem voluntariamente modificados) a
outros inconscientes e frutos de identificações primitivas
(dificilmente modificáveis).
Compreendemos então o slogan “Obtenha o amor sem o acaso”.
É o acaso que torna o encontro uma roleta imponderável no que
concerne a todo o campo das características do outro que
ultrapassam aquelas que, inconscientemente, foram objeto da
escolha amorosa. E daí, consequentemente, o sucesso de um site
como o eHarmony: trata-se de garantir, via algoritmo, que a relação
não produza um choque de alteridade, difícil demais de lidar. A
operação, entretanto, apresenta uma importante lacuna e uma ainda
mais importante perda potencial, uma perda de natureza existencial.
Quanto à primeira, refiro-me a que o questionário enviado aos
candidatos a um encontro no eHarmony – que serve de base para
os cálculos do algoritmo – só pode contemplar, por definição, o
campo dos valores, preferências e características conscientes. Toda
a lógica do inconsciente passa batida por ele, e ela é decisiva tanto
da perspectiva do sujeito (do amante) quanto do objeto (do amado).
Ou seja, o candidato que responde às perguntas nunca poderá
senão dar uma ideia superficial de si; seus sintomas, ambiguidades,
fantasias, tudo isso escapará a si mesmo e, logo, ao outro que o
poderá escolher. Da mesma maneira, o que nos faz escolher um
objeto amoroso tem uma dimensão que geralmente não
identificamos, ou só o conseguimos fazer retrospectivamente. Em
suma, o algoritmo não sabe calcular o inconsciente, de modo que
muitas variáveis importantes ficam fora da equação final. Por isso
Badiou comenta que, a seus ouvidos, as promessas do casamento
securitário soam como aquela promessa do Exército americano de
uma “guerra sem mortes36”. O eHarmony não é a panaceia universal
do cibercasamento arranjado (diga-se ainda de passagem que os
casamentos tradicionais tinham sobre sua versão digital a vantagem
de contarem com uma ordem social que funcionava como um
suporte do outro).
Benéfico no que tange à atenuação do choque de alteridade
numa eventual relação amorosa, o algoritmo implica,
tendencialmente (só não digo constitutivamente porque a ausência
da lógica do inconsciente pode fazer aparecer essa dimensão de
forma inesperada), o que podemos chamar de uma perda
existencial. Refiro-me, justamente, ao choque de alteridade. O
encontro com um outro radicalmente diferente, com um outro que se
revela muito maior e mais complexo do que a dimensão de
espelhamento de nossa escolha objetal (narcísica ou de ligação),
esse encontro pode produzir um enriquecimento e uma
transformação inigualáveis de nossa subjetividade. Pois pode
acabar por demonstrar que entre nosso eu ideal – na sua versão
encarnada pelo outro – e nosso eu efetivo há uma diferença abissal.
Estar então à altura do outro, isto é, à altura de si, de seu eu ideal,
pode ser uma aventura imensamente sofrida – e imensamente
engrandecedora.
O que Badiou chama de ameaça securitária37 ao amor responde,
portanto, a esses dois problemas: o risco da disjunção (o choque de
alteridade) produzida por um encontro regido pelo acaso e entregue
à lógica do inconsciente; e o risco da paixão não correspondida
(“Você pode amar sem se apaixonar”), e até mesmo o risco da
paixão correspondida. Pois se, em um caso, o ego perde totalmente
o seu investimento libidinal, ficando miserável até que seja capaz de
retirar esse investimento (é o trabalho do luto), no outro a
recompensa geral não é capaz de evitar inesperadas derrubadas
das ações, que são experimentadas como feridas narcísicas,
embora breves, exasperantes.
Tudo somado, o mundo da paixão é um mundo em que o eu se
encontra radicalmente desprotegido, à mercê do outro, de quem sua
sorte passa a depender como em quase nenhuma outra experiência
psíquica. Ora, se há um lugar comum nas mais diversas teorias
sociais das últimas décadas, desde os anos 1970-80 – e que a
realidade cultural não cessa de comprovar – é que vivemos numa
época narcisista. Como observa Jurandir Freire Costa, “é
certamente plausível descrever a economia psíquica dos sujeitos
modernos como sendo narcísica38”. Da cultura do narcisismo, de
Lasch, ao capitalismo do eu, de Badinter; das evasões de
privacidade das subcelebridades ao fenômeno dos paus de selfie –
eis uma interpretação dificilmente questionável. Não há como
conciliar sem tensões o valor romântico ainda vigente do amor com
uma cultura cada vez mais devotada ao culto do eu. No caso desses
sites de encontro amoroso, o saldo é uma solução de compromisso,
ou seja, o sucesso do eHarmony e seu algoritmo se revela uma
tentativa de conciliação entre o valor do amor e a segurança
identitária: uma experiência de alteridade protegida por guardrails
identitários. Aqui, é a paixão, com seus traços arriscados de
dependência do outro, que é sacrificada. Mas o amor, digo, a
relação amorosa, compreendida como uma construção que não se
confunde com a fusão passional, também é uma forma profunda de
desafio ao culto do eu. Outras práticas contemporâneas no espaço
digital respondem a esse desafio recusando-o veementemente.
***
***
recusam o amor?
Uma primeira resposta, um pouco enganosa, é a de que o
espaço digital potencializará a tendência já contida nas diferentes
subjetividades. Ou seja, os sujeitos que, segundo a attachment
theory43, têm um perfil de relacionamentos seguros – isto é, desejam
a ligação, se entregam ao outro e procuram a mesma entrega etc. –,
se servirão do espaço digital para intensificar essa tendência. Já
aqueles designados com um perfil de relacionamentos inseguros –
que se incomodam com a excessiva intimidade, que afirmam uma
maior autonomia na relação etc. – o utilizarão segundo esse fim. O
primeiro, portanto, “se apoiará na tecnologia para se sentir mais
proximamente conectado todo o tempo, enquanto o último se sente
tranquilizado pela distância que a tecnologia propicia44”. Assim, um
serviço de encontros virtuais do Reino Unido alega que atualmente
“uma em quatro relações começam on-line45”, enquanto um artigo
publicado no New York Daily News afirma que “um terço dos casais
americanos se conhece on-line” (converge para o mesmo sentido o
fenômeno dos sites de encontros amorosos, como já vimos). Por
outro lado, “todos os dias existem aparentemente 68 milhões de
buscas por pornografia na internet e mais de 4 milhões de sites
pornográficos, que são parte de uma imensa indústria cujos lucros
superaram aqueles de Hollywood e da indústria da música46”.
Essas quantificações por si sós não nos permitem chegar a
conclusões quanto a tendências de recusa ao amor em nome de
experiências mais protegidas da alteridade, com seus riscos e
dificuldades (e grandes recompensas). Mas talvez seja possível
sustentar que, tendo como pano de fundo uma cultura narcísica – e
sendo parte fundamental dela –, o espaço digital concorre sobretudo
para aprofundá-la, e, logo, testemunha práticas cada vez mais
avessas à experiência da diferença. Basicamente, o espaço digital
oferece possibilidades nunca vistas no sentido de propiciar uma vida
rica para os que querem permanecer no registro da sua identidade.
Tomemos o caso da pornografia, por exemplo. A pornografia digital
não é apenas uma mera extensão e expansão da pornografia “real”.
“Acessibilidade, anonimato e baixo custo são os seus maiores
motores. On-line e se sentindo invisíveis, as pessoas não precisam
verbalizar seus desejos para outros que poderiam julgar suas
escolhas ou preferências47.” Isto é, o meio altera a experiência; no
caso, cria condições que tendem a estimulá-la. Com efeito, alguns
psicoterapeutas trazem relatos de pacientes cuja vida sexual é
exclusivamente feita de pornografia on-line. Muitos deles só se
excitam sexualmente com imagens, não com pessoas reais. Aqui,
não são apenas a intimidade e a relação amorosa que são
recusadas, mas mesmo a forma mais elementar de alteridade, o
contato direto com o outro, que obriga a reconhecê-lo como um
sujeito livre, no exercício de seu desejo.
Há um ponto em que as novas tecnologias digitais são
particularmente perigosas ao amor: refiro-me aos cuidados
parentais com bebês e crianças pequenas. Os smartphones
permitem que, por exemplo, uma mãe realize tarefas com seu bebê
fazendo outras coisas ao mesmo tempo. Assim, há mães que
amamentam enviando mensagens pelo WhatsApp, pais que dão
almoço aos filhos checando o Facebook, em suma, todo um
conjunto de atividades que é realizado de forma a reduzir as tarefas
à sua dimensão instrumental, alienando-as da atenção, da troca
psíquica, do afeto. Essas práticas, aparentemente inofensivas – e
progressivamente habituais – podem ser muito nocivas a bebês e
crianças pequenas ainda no início de seu desenvolvimento psíquico
e emocional. Tanto da perspectiva lacaniana quanto da
winnicottiana, o desenvolvimento dos bebês está ligado à sua
interação com o outro cuidador. Para Winnicott, “a experiência de
ser carregado com segurança e manipulado com prazer leva a que
o bebê tenha um corpo, que venha a habitar sua própria pele48”. O
desempenho atencioso dos aspectos ligados à fase do colo são
essenciais para que ocorra a integração entre o psíquico e o
corporal pelo bebê. Em termos lacanianos, se o que forma a
autoimagem do eu é o olhar do outro, um olhar disperso, cindido,
tende a produzir no bebê uma autoimagem igualmente dispersa,
com efeitos danosos a seu desenvolvimento.
O uso de gadgets eletrônicos por cuidadores na primeira infância
tem ainda uma outra dimensão grave. Christoph Türcke tem
mostrado que o que a psiquiatria chama de transtorno de déficit de
atenção e hiperatividade (TDAH) deve ser considerado não uma
patologia, uma anormalidade, mas apenas a manifestação em um
grau mais intenso de uma transformação da percepção humana que
atinge a todos nós, em alguma medida. Essa transformação decorre
da sobrecarga de estímulos sensoriais cada vez mais excitantes,
que fragmentam nossa percepção e vão tornando cada vez mais
difícil o desenvolvimento das capacidades de elaboração,
sedimentação psíquica, concentração, espera. Nosso cotidiano foi
dominado por esses estímulos, sobretudo visuais, que apagaram as
fronteiras entre o espaço profissional e o doméstico, o trabalho e o
lazer. Toda a vida contemporânea transcorre sob um bombardeio de
estímulos sensoriais vindos de múltiplas telas, de todos os
tamanhos. É essa a cultura do TDAH. Todos estamos expostos a ela,
mas os bebês e crianças, uma vez que ainda não desenvolveram
suas capacidades de elaboração, sedimentação, concentração,
espera e até mesmo imaginação, são os mais prejudicados. São
eles os candidatos favoritos a manifestações intensas de TDAH. É
preciso compreender que, se eles manifestam incapacidade crônica
de atenção, “a atenção que eles não são capazes de dar foi antes
retirada deles mesmos49”. Prossegue Türcke:
***
Uma das primeiras vezes em que a palavra bárbaro foi
empregada na literatura ocidental foi na Ilíada de Homero. Ao
descrever os exércitos que combatem, o poeta fala dos “carianos”,
conduzidos por Nastés, que tinham “a voz bárbara”1. Essa primeira
alusão a um povo com uma fala difícil de ser decifrada ainda não
implicava a separação radical entre os combatentes, mas fornece
uma pista para o que virá depois. Como mostra Jean-François
Mattéi: “A linha de separação entre a barbárie e a civilização passa
menos entre os povos da Europa e da Ásia e mais entre os que
dominam a língua e aqueles que não conseguem dominá-la2”. O que
já se encena, nesse primeiro momento, é a necessidade de se
estabelecer entre os povos uma distância capaz de significar não
apenas uma diferença de costumes e de história, mas uma
diferença radical, que implica possibilidades diferentes de
desenvolvimento e mesmo de identidades incompatíveis.
Como mostra Catherine Peschanski, o processo de afastamento
entre gregos e bárbaros foi paulatino, mas resultou na criação de
uma tópica que estaria destinada a durar séculos3. Para a
historiadora, aos olhos dos escritores gregos da Antiguidade, a
diferença entre gregos e bárbaros não se deveu a um vício de
origem desses. Ao contrário, não é incomum encontrar em autores
como Heródoto e Hesíodo referências elogiosas às obras de povos
como os egípcios e mesmo a afirmação de que os gregos haviam
aprendido algo com outros povos, e que isso havia sido decisivo
para seu desenvolvimento. O problema é que esses povos haviam
permanecido parados no tempo. Para eles a história não ocorreu, “o
tempo congelou4”. Essa é a visão que ganha força já em Tucídides e
que serviria de base para uma concepção a respeito da natureza do
bárbaro que acabaria por ser dominante no Ocidente. Para o
historiador grego, os bárbaros serão pouco a pouco associados com
a figura do inimigo5. Essa guinada foi essencial, pois criou a ideia de
uma diferença que não pode ser anulada e se transforma em uma
peça-chave da construção da identidade dos gregos e, mais tarde,
de outros povos ocidentais.
Para pensar a natureza do mundo helênico tornou-se importante
desvendar a natureza do que parecia ser seu oposto. “Os bárbaros
– afirma Peschanski – são frequentemente apresentados como
povos belicosos, até mesmo cruéis6.” Ao mesmo tempo, alguns
autores afirmam que a belicosidade dos bárbaros se funda em sua
fraqueza, não apenas espiritual, mas também física. Por isso, era
tão comum mostrar o corpo nu e desfigurado dos guerreiros
bárbaros derrotados, para que ficasse claro para os soldados
gregos, mas também para a população em geral, qual era a
natureza dos inimigos vencidos7. Esses seres, que pareciam cada
vez mais distantes no tempo, se caracterizavam também pela
desordem. Incapazes de se organizar para a batalha, acabavam por
se comportar como covardes no momento dos combates. Ao lado
dos exércitos que se mostravam disciplinados, os bárbaros
expressavam o caos em sua formação guerreira e a falsidade
natural dos povos que não evoluíram ao longo dos séculos8. Como
afirma Claude Mossé de maneira resumida, referindo-se ao bárbaro:
“O que o distingue inicialmente dos gregos é sua submissão a um
poder despótico, aquele do rei, enquanto o grego é um homem livre.
Em seguida é sua desmesura, sua hybris, oposta ao sentido da
ordem, própria do grego9”.
A operação de separar os povos entre bárbaros e civilizados
seria completada pelos romanos, que radicalizaram e
estabeleceram de forma definitiva a separação entre os dois
mundos. Lutando para manter um império que não cessava de se
expandir e, ao mesmo tempo, sentindo-se ameaçados por
verdadeiras hordas, que resistiam aos conquistadores, os romanos
reproduziam a representação grega do mundo, mesmo que, aos
olhos dos gregos dominados, o ato de civilizar, que muitas vezes era
o resultado da conquista empreendida pelos romanos, fosse na
verdade um ato de helenização dos povos. Como mostra Paul
Veyne: “Helenizar e civilizar são a mesma coisa, pois que a
civilização grega é a civilização por excelência. Os dois sentidos da
palavra ‘bárbaro’ convergem aqui: o bárbaro, sendo um não
civilizado, quando Roma o civiliza, ela o heleniza, uma vez que o
bárbaro é um não grego; civilizado ele se torna grego10”.
Pouco importa que a ideia que os gregos tinham deles mesmos
durante a ocupação e dominação romanas fosse ingênua e
produzisse poucos resultados práticos ao longo dos séculos. Os
romanos herdaram a tópica da divisão do mundo entre civilizados e
bárbaros e a transmitiram para as sociedades ocidentais que lhes
sucederam, sobretudo para as sociedades cristãs. Se a imagem que
eles tinham dos outros povos era muito parecida com aquela forjada
pelos gregos, a ela eles acrescentaram a distância geográfica.
Distantes no tempo, segundo os gregos, os bárbaros também
deveriam ser mantidos distantes no espaço. O ato da conquista era
assim, ao mesmo tempo, um produto da força e organização
superior de seus exércitos contra povos submetidos à hybris, e
também o resultado de uma cultura mais elevada que, no limite,
conduzia a uma redução da violência, apanágio dos povos não
civilizados.
Para nossos propósitos interessa notar que separar o mundo
entre civilizados (gregos ou romanos) e bárbaros (o inimigo exterior)
é antes de tudo uma operação de criação da identidade interior de
um povo. Como observa Peschanski no curso de suas análises, nos
textos gregos, “na maioria das vezes, enfim, os bárbaros são
apenas um nome11”. Ou seja, mesmo que nossa referência sejam os
autores da Antiguidade, historiadores ou outros, aprendemos
relativamente pouco sobre os povos que não são gregos, pois ao
“civilizado” interessa pouco saber como se comportam os outros e
quais são seus costumes e saberes. Ao grego, como aos povos que
ao longo da história iriam se servir da tópica referida, a presença no
horizonte da consciência de um outro, por vezes radicalmente
situado nos confins do que se considera como humano, serve para
forjar uma imagem do ser civilizado, que está sempre em oposição
frontal a uma identidade que só se diz no negativo. Nesse sentido,
não se trata de um esforço de comparação que, ao colocar em
contato os diferentes, ajuda a criar a identidade dos dois lados. Na
lógica da exclusão do bárbaro do mundo grego, tudo se passa como
se apenas um dos lados tivesse direito a uma identidade, a uma
imagem que se pode refletir e transmitir. Os que se situam do outro
lado são apenas negatividades que se esfumaçam num horizonte
distante e inacessível. Existem bárbaros, mas não existe
conhecimento verdadeiro sobre eles. Ou melhor, tudo o que de
interessante se pode saber deles serve apenas na medida em que
ajuda na compreensão do ser do civilizado. Com esse
procedimento, a diferença se torna incomensurável, pois não se
pode comparar o que se situa num horizonte temporal e espacial
diferente, e a identidade é única, pois apenas um dos polos pode
ser visitado pela razão.
Para resumir numa imagem essa abordagem da questão que
nos interessa, poderíamos recorrer à figura de um círculo que se
fecha ao mesmo tempo em que expulsa para longe o que lhe parece
diferente e incongruente com a identidade que pretende dar de si
mesmo. Nessa operação de distanciamento, que isola o outro no
tempo, tudo se passa como se o mundo existente no final das raias
que se distribuem a partir do centro do corpo político não pudesse
ter nenhum contato com o mundo do qual partem as vias que levam
ao desconhecido. O primeiro é o mundo do lógos e de suas
realizações. O segundo, o mundo do silêncio confuso de uma
linguagem que nem parece humana.
OS MODERNOS E A CIVILIZAÇÃO
***
***
1999, p. 326.
13. Hérodoto, L’enquête, Paris: Gallimard, 1985, Livre III, 80, p. 313.
14. Ibidem.
15. François Hartog, op. cit., p. 329.
16. Nicole Loraux, “A tragédia grega e o humano”, in: Adauto Novaes (org.),
Ética, São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 19.
17. Ibidem.
18. Ibidem, p. 20.
19. Jean-François Mattéi, op. cit., p. 131.
20. Ibidem, p. 134.
21. Jean Starobinski, “Le mot civilisation”, in: J. Starobinski et al., Le Temps de la
réflexion, Paris: Gallimard, 1983, IV.
22. Ibidem, pp. 4-47.
23. Ibidem, p. 51.
24. Marcelo Jasmin, “A moderna experiência do progresso”, in: Adauto Novaes
(org.), Elogio à preguiça, São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2012, p. 457.
25. Condorcet, Esquisse d’un tableau historique des progrès de l’esprit humain,
Paris: Garnier-Flammarion, 1988, p. 271.
26. Ibidem, p. 268.
27. Patrice Gueniffey, La politique de la Terreur, Paris: Gallimard, 2000.
28. Francis Wolff, “Quem é bárbaro?”, in: Adauto Novaes (org.), Civilização e
barbárie, São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 23.
29. Norbert Elias, O processo civilizador: formação do Estado e civilização, vol.
2, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993, p. 273.
30. Ilya Ehrenbourg; Vassili Grossman, Le Livre noir, Paris: Actes Sud, 1995, p.
100.
31. A esse respeito, cf. Jan T. Gross, La Peur: L’Antisémitisme en Pologne après
Auschwitz, Paris: Calmann-Lévy, 2006.
32. Johann Chapoutot, La Loi du sang: Penser et agir en nazi, Paris: Gallimard,
2014, p. 43.
33. Francis Wolff, op. cit., p. 43.
34. Xun Zi, in: Charles Le Blanc; Rémi Mathieu (eds.), Philosophes
confucianistes, Paris: Gallimard, 2009, p. 695 (I, 2); p. 1.249 (XXVII, 330).
35. Meng Zi, in: Charles Le Blanc; Rémi Mathieu (eds.), op. cit., p. 566 (VII, B-4).
36. Claude Lévi-Strauss. Raça e história, São Paulo: Editora Abril, 1980, p. 53.
37. Ibidem, p. 54.
Muito além do espetáculo
A mutação do capitalismo (ou simplesmente e =
ki)1
Eugênio Bucci
Falo dessa mutação capital, também ela,
que confere ao discurso do mestre seu
estilo capitalista.
JACQUES LACAN
***
***
***
1
Em 2005, estavam em pauta discussões de natureza muito
distinta. Em primeiro lugar, a memória de Sartre colocava em
questão, como ainda hoje, as transformações ocorridas no papel e
no prestígio dos intelectuais, desde os anos 1940-1960, quando o
autor de O ser e o nada estava no auge de sua influência. Não
parece haver intelectuais da mesma estatura nos dias de hoje, dizia-
se. Cabia verificar por quê.
Em segundo lugar, o ciclo se relacionava com uma forte
preocupação da parte de Adauto Novaes, que só veio a acentuar-se
desde então. Para Novaes, vivemos num período que não pode ser
mais considerado como de uma simples crise – política, econômica,
cultural –, uma vez que quem fala em crise pensa em superação,
distinguindo alguma perspectiva de futuro. Seria o caso, em seu
modo de ver, de falar não em crise apenas, mas sim de um período
de mutação, em que o avanço tecnológico parece acelerar-se sem
que nenhuma nova concepção de mundo, nenhum horizonte de
pensamento, nenhuma ideia de futuro esteja sendo formulada. O
silêncio dos intelectuais corresponderia, assim, a uma espécie de
domínio absoluto da materialidade tecnológica, que se impõe sobre
o corpo, o comportamento, a moral e a sociedade humanos, sem
que nenhuma atividade do espírito dê conta do que ocorre.
Em terceiro lugar, o tema sofreu uma coincidência infeliz naquele
ano. Dava-se a primeira grande revelação dos deslizes éticos do PT:
naquela época, a confissão (hoje banal) de que o partido recorrera a
expedientes de caixa dois em suas despesas de campanha
provocava lágrimas em muitos militantes. A perplexidade diante das
práticas petistas teria produzido, naqueles tempos, um “silêncio” por
parte dos intelectuais próximos ao partido, os quais, até pouco
tempo antes, insistiam especialmente no efeito de diferenciação que
o projeto do PT poderia trazer sobre a ética pública e o modo de
fazer política no país.
Minha participação naquele ciclo se concentrou na análise do
pensamento do francês Julien Benda, autor de um clássico sobre o
tema, intitulado A traição dos intelectuais, de 1926. Minha ideia era
contestar a visão que normalmente se tem desse autor. A saber, a
de que seria um defensor do não engajamento, uma espécie de
“anti-Sartre”, um adepto da torre de marfim, defensor da concepção
de que não cabe aos intelectuais misturar-se com disputas políticas,
mantendo-se apenas como cultores de ideais abstratos. O próprio
Sartre critica Julien Benda com base nesse tipo de interpretação,
que a meu ver não se sustenta1.
O que Julien Benda chama de traição dos intelectuais não é a
participação do intelectual no debate público; ele próprio foi um
reconhecido e veemente adversário do antissemitismo e do
militarismo, durante o caso Dreyfus. Sustentei que, para Benda, a
traição dos intelectuais consiste na atitude de colocar o pensamento
a serviço da razão de Estado; na atitude de agir como
propagandista e ideólogo em benefício daqueles que defendem o
uso da força, e não do pensamento, do debate, da persuasão, para
se sustentarem no poder. Eram os intelectuais de direita,
principalmente os abertamente fascistas, que para Julien Benda
traíam sua função ao fazer o elogio da guerra, da intimidação, da
força bruta, abandonando o primado da razão e do pensamento, e
subordinando a busca da verdade à consecução de objetivos
nacionais e partidários.
Naturalmente, também na esquerda predominou, e predomina, a
ideia de que falar a verdade pode ser contraproducente para a
“causa”, e que por uma questão de tática política, isto é, por razões
de Estado, é preciso silenciar, mentir, distorcer os fatos. Grandes
intelectuais, como o próprio Sartre, recaíram mais de uma vez nesse
tipo de traição, em nome do que eu considero uma ideia equivocada
de engajamento. O engajamento é necessário, como ocorreu no
caso Dreyfus, quando princípios básicos como verdade e justiça
estão em jogo. O engajamento é uma farsa quando o intelectual se
reduz a obedecer a raciocínios de tática política.
1. Ver Adauto Novaes (org.), O silêncio dos intelectuais, São Paulo: Companhia
das Letras, 2006, pp. 99-ss. As críticas de Sartre a Benda estão em Jean-
Paul Sartre, Que é a literatura?, São Paulo: Ática, 1989, pp. 188-94.
2. Cf., por exemplo, Jessé Souza, A radiografia do golpe, São Paulo: Casa da
Palavra/ Leya, 2016; Hebe Mattos; Tânia Bessone; Beatriz Mamigonian
(orgs.) Historiadores pela democracia, São Paulo: Alameda, 2016; Renato
Rovai (org.), Golpe 16, São Paulo: Publisher Brasil, 2016.
3. Sobre esse último tema, cf. meu artigo “Crença e opinião”, in: Adauto Novaes
(org.), A invenção das crenças, São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2011.
4. Para a narrativa desse episódio da Guerra Civil Espanhola, cf. Hugh Thomas,
The Spanish Civil War, Harmondsworth: Penguin Books, 1965, pp. 442-4.
5. Cabe mencionar, no espírito retrospectivo que orienta este volume, minha
contribuição “A guerra mecânica”, in: Adauto Novaes (org.), Fontes
passionais da violência, São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2015.
6. Jean-Paul Sarte, Em defesa dos intelectuais, São Paulo: Ática, 1994, p. 29.
7. Patrick Baert, The Existentialist Moment: The Rise of Sartre as a Public
Intelectual, Malden: The Polity Press, 2015.
8. J.-P. Sartre, “Paris sous l’occupation”, in: J-P. Sartre, Situations III, Paris:
Gallimard, pp. 17-9. [Tradução minha.]
9. R. W. Emerson, “The American Scholar”, in: George B. de Huszar (org.), The
Intellectuals: A Controversial Portrait, Glencoe: The Free Press, 1960, p. 135.
Congresso internacional do medo
Pânico e terror sagrado: sobre algumas figuras
do medo1
Jean-Pierre Dupuy
A Al-Qaeda ou o Estado Islâmico sabem
que jamais poderão vencer uma nação
tão forte como a América, então eles
tentam aterrorizar, esperando que o
medo nos colocará uns contra os outros.
BARACK OBAMA, 11 de setembro de 2016
INTERLÚDIO
AUTOPERTENCIMENTO
O PRAZER E O FORA
1. Pois: “O sexo não é uma inscrição biológica primeira, mas o elemento que
permite sistematizar os afetos e as intensidades do corpo. Ele impõe a esse
mesmo corpo a estrutura de uma subjetividade atravessada por uma
hermenêutica do desejo e constrói nossa identidade como esse segredo que
é preciso dizer” (Arianna Sforzini, Michel Foucault: une pensée du corps,
Paris: PUF, 2014, p. 67).
2. Para esse ponto, ver, principalmente, Ian Hacking, Historical Ontology,
Cambridge: Harvard University Press, 2004; e Arnold Davidson, The
Emergence of Sexuality, Cambridge: Harvard University Press, 2004.
3. Michel Foucault, Dits et écrits II, Paris: Gallimard, p. 1405. [Ed. bras.: Ditos e
escritos, vol. 2, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013.]
4. Apud John Rachjman, Érotique de la vérité: Foucault, Lacan et la question de
l’éthique, Paris: PUF, p. 22. [Ed. bras.: Eros e verdade: Foucault, Lacan e a
questão da ética, Rio de Janeiro: Zahar, 1994.]
5. Lembremos, por exemplo, de uma afirmação como: “O que está em jogo no
erotismo é sempre uma dissolução das formas constituídas. Repito-o: dessas
formas de vida social, regular, que fundam a ordem descontínua das
individualidades definidas que somos [...]. Trata-se de introduzir, no interior de
um mundo fundado sobre a descontinuidade, toda a continuidade que esse
mundo é capaz [...]. A própria paixão feliz acarreta uma desordem tão
violenta que a felicidade de que se trata, antes de ser uma felicidade de que
seja possível gozar, é tão grande que se compara a seu contrário, ao
sofrimento” (Georges Bataille, O erotismo, Belo Horizonte: Autêntica, pp. 42-
3).
6. M. Foucault, op. cit., p. 1560.
7. Tomo a liberdade de remeter a Vladimir Safatle, “Literatura como
contraepisteme: o lugar da experiência literária em Michel Foucault”, in:
Salma Muchail; Márcio Fonseca, O mesmo e o outro: cinquenta anos de A
história da loucura, Belo Horizonte: Autêntica, 2012.
8. Charles Baudelaire, Critique d’art, suivi de critique musicale, Paris: Gallimard,
2012, p. 369.
9. Ibidem, p. 371.
10. M. Foucault, op. cit., p. 1390.
11. Peter Bürger, Teoria da vanguarda, São Paulo: Cosac e Naify, 2008, p. 18.
12. M. Foucault, op. cit., p. 447.
13. A esse respeito, ver principalmente Ernani Chaves, “Corações a nu:
coragem da verdade, arte moderna e cinismo em Baudelaire, segundo
Foucault”, Viso – Cadernos de estética aplicada, nº 11, jan-jun 2012. É
provável que uma das razões dessa secundarização da temática da
transgressão tenha a ver com os desdobramentos de maio de 1968, ao
menos segundo a ótica de Foucault. Se nos fiarmos em Didier Eribon (Michel
Foucault, São Paulo: Companhia das Letras, 1994), uma das razões do
distanciamento entre Deleuze e Foucault estaria ligada a interpretações
distintas da guinada de maio de 1968 em direção à ação direta. É possível
que tal horizonte tenha influenciado a procura de Foucault por um modelo de
transformação que não seja mais a estetização violenta de uma ação
transgressora.
14. M. Foucault, L’hermeneutique du sujet, Paris: Gallimard/Seuil, p. 241. [Ed.
bras.: A hermenêutica do sujeito, São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.]
15. Foucault precisará que não se trata exatamente de retornar à ética greco-
romana: “Mas nós sabemos que é possível fazer uma pesquisa em ética,
construir uma nova ética, dar lugar ao que chamaria de imaginação ética,
sem referência alguma à religião, à lei e à ciência. É por tal razão que a
análise da ética greco-romana como estética da existência pode ter interesse”
(M. Foucault, Qu’est-ce que la critique? Suivi de La culture de soi, Paris: Vrin,
2015, p. 143).
16. M. Foucault, Histoire de la séxualité II, Paris: Gallimard, p. 120. [Ed. bras.:
História da sexualidade, vol. 2, São Paulo: Paz e Terra, 2014.]
17. Idem, Qu’est-ce que la critique? Suivi de La culture de soi, op. cit., p. 154.
18. Ibidem, p. 18.
19. Ibidem, p. 69.
20. Ibidem, p. 93.
21. Que um leitor de Nietzsche, como Foucault, tenha chegado a tal
configuração da ética como trabalho de si não nos deveria estranhar
completamente. Pois há que lembrar de colocações de Nietzsche como: “No
fundo é a mesma força ativa, que age grandiosamente naqueles
organizadores e artistas da violência e constrói Estados, que aqui,
interiormente, em escala menor e mais mesquinha, dirigida para trás, no
‘labirinto do peito’, como diz Goethe, cria a má consciência e constrói ideais
negativos, é aquele mesmo instinto de liberdade (na minha linguagem, a
vontade de poder): somente que a matéria na qual se extravasa a natureza
conformadora e violentadora dessa força é aqui o homem mesmo, o seu
velho Eu animal – e não, como naquele fenômeno maior e mais evidente, o
outro homem, outros homens. Essa oculta violentação de si mesmo, essa
crueldade de artista, esse deleite em dar uma forma, como a uma matéria
difícil, recalcitrante, sofrente, em se impor a ferro e fogo uma vontade, uma
crítica, uma contradição, um desprezo, um Não, esse inquietante e
horrendamente prazeroso trabalho de uma alma voluntariamente cindida, que
a si mesma faz sofrer, essa ‘má consciência’ ativa também fez afinal – já se
percebe –, como verdadeiro ventre de acontecimentos ideais e imaginosos,
vir à luz uma profusão de beleza e afirmação nova e surpreendente, e talvez
mesmo a própria beleza” (Friedrich Nietzsche, Genealogia da moral, São
Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 76).
22. M. Foucault, Qu’est-ce que la critique? Suivi de La culture de soi, op. cit., p.
116.
23. Ibidem, p. 29.
24. A esse respeito, ver M. Foucault, Qu’est-ce que la critique? Suivi de La
culture de soi, op. cit., p. 140.
25. Idem, Le courage de la vérité, Paris: Gallimard/Seuil, 2009, p. 149. [Ed.
bras.: A coragem da verdade, São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011.]
***
***
74. Cf. Aristóteles, Metafísica, livro IX, e as noções de potência (dynamis) e ato
(energeia), cada potência sendo “potência de ser e de não ser”, de fazer ou
não fazer. E Giorgio Agamben observa: “Na potência, a sensação é
anestesia, o pensamento não pensamento, a obra, inoperosidade” (G.
Agamben, Le feu et le récit, Paris: Payot & Rivages, 2015.
75. René Descartes, Discurso do método, São Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 49.
76. Idem, Oeuvres complètes, publiées par Charles Adam et Paul Tannery, tome
I, Paris: Vrin, 1996, p. 366.
CETICISMO E CRENÇA
Da suspeita
Do reconhecimento
MÁXIMA:
CONCLUSÃO:
CRENÇA E EVIDÊNCIA45
ANTROPOLOGIA DA CRENÇA57
57. Neste segmento final, utilizo de forma extensa passagens da seção “Do que
não nos é dado descrer”, de meu ensaio “Crença, descrença de si, evidência”,
in: Adauto Novaes (org.), Mutações: a invenção das crenças, op. cit. pp. 348-
57.
58. David Hume, Investigação acerca do entendimento humano, São Paulo:
Companhia Editora Nacional, 1972, p. 48.
59. Fernando Gil, “As inevidências do eu”, in: Fernando Gil; Helder Macedo,
Viagens do olhar: retrospecção, visão e profecia no Renascimento português,
Porto: Campo das Letras, 1998, p. 244.
60. Cf. António Marques, O interior: linguagem e mente em Wittgenstein, Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 2003.
61. Cf. Ludwig Wittgenstein, Últimos escritos sobre a filosofia da psicologia, II, 84,
apud António Marques, op. cit., p. 7.
62. Cf. David Hume, Tratado da natureza humana, São Paulo: Editora da
Unesp/Imprensa Oficial do Estado, 2001, especialmente a seção intitulada “Do
Ceticismo quanto à razão” (Parte IV, “Do Ceticismo e outros sistemas
filosóficos”, Livro I), pp. 213-220.
63. Ibidem, p. 240.
64. Ibidem, p. 285.
65. Ibidem, vol. 2, p. 311.
66. David Hume, “Diálogos sobre a religião natural”, in: David Hume, Obras sobre
religião, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2005, p. 47.
67. Idem, Tratado da natureza humana, vol. 1, op. cit., p. 284.
68. Ibidem, p. 291.
69. Ibidem, p. 295.
70. Para uma discussão pormenorizada das implicações dessa antropologia, ver
Frédéric Brahami, Le travail du scepticisme, Paris: PUF, 2001.
71. Cf. Roy Wagner, A invenção da cultura, São Paulo: Cosac & Naify, 2010.
O futuro não é mais o que era
Entre o trabalho e o labor: o devir aldeia das
cidades
Guilherme Wisnik
A PÓS-METRÓPOLE
que ela não se confundisse nem com a aldeia, por um lado, nem
com o império, por outro, garantindo uma ordem na interação entre
os cidadãos em prol da boa atividade política. É por isso que,
segundo o pensador de Estagira, pode-se apenas chamar de cidade
aos agrupamentos humanos cuja extensão não ultrapassem a
distância abarcável pelo olhar de uma pessoa, ainda que situada em
um promontório3. Como se pode perceber, trata-se de um critério de
definição que nós, há muito tempo, já desrespeitamos.
Hoje, para Jürgen Habermas, “a forma de vida exigida como
suporte e alimento do mundo público a ser recomposto à
contracorrente do capitalismo avançado já não pode contar mais
com a forma outrora abarcável da cidade. As aglomerações urbanas
deixaram de corresponder ao conceito de cidade; nelas predominam
as conexões funcionais não configuráveis, sem a visibilidade do
lugar público4”. E, de forma complementar, segundo a visão de Paul
Virilio: “Se ontem o arquitetônico podia ser comparado à geologia, à
tectônica dos relevos naturais, com as pirâmides, as sinuosidades
neogóticas, de agora em diante pode apenas ser comparado às
técnicas de ponta, cujas proezas vertiginosas nos exilam do
horizonte terrestre5”.
É diante do quadro de crise conceitual que enfrentamos hoje que
muitos teóricos têm empregado o termo pós-metrópole para
designar os agrupamentos urbanos gigantes e informes que definem
o nosso mundo, onde a distância entre os centros e as bordas se
expande tanto que atinge um ponto crítico de ruptura6.
Significativamente, muitos deles são italianos, oriundos de uma
tradição cultural que batizou a noção de cidade com a qual
trabalhamos no Ocidente7. Para Giulio Carlo Argan, por exemplo,
uma transformação profunda se deu no segundo pós-guerra,
quando as cidades deixaram de poder ser consideradas espaços
delimitados e objetivados em determinados territórios para se
configurarem mais como impalpáveis redes de fluxos viários e
sistemas de serviços praticamente ilimitados8. Não por acaso, esse
é o mesmo período histórico em que a arte vive uma profunda crise,
explodindo o seu suporte tradicional, rompendo sua autonomia,
lançando-se de forma impura e precária no ambiente, e tornando-se
passível de ser manipulada pelo público. É por causa dessa relação
de espelhamento que, para o grande teórico italiano, a história da
arte pode ser lida e contada como história da cidade, e vice-versa.
A propósito, como bem observa Lorenzo Mammì, “a unidade
pela qual Argan mede a rede de sentidos instaurada pela obra de
arte é a cidade”. Assim, contra uma concepção romântica de nação
e de povo, mas também contra um universalismo plácido, presente
em muitas das utopias modernas, “Argan propõe a cidade como
comunidade concreta de pessoas que moram no mesmo espaço,
compartilham os mesmos símbolos, veem a mesma paisagem”.
Portanto, em oposição ao campo, lugar da natureza, a cidade, no
Ocidente, é, por excelência, o lugar da história. Por isso, arremata
Mammì, “é a partir da cidade que é necessário defender a história
como princípio humanístico do fazer social9”.
Ora, mas é exatamente essa espessura do tempo histórico,
aliada ao aspecto modelar e generalizável da arte e da noção de
projeto, que se perdem irremediavelmente na segunda metade do
século XX, junto com a ideia de cidade como um agrupamento
orgânico, razoavelmente unitário e culturalmente coerente.
Claramente, é outra a ideia de cidade que temos hoje, quando
olhamos imagens aéreas das imensas e impermanentes periferias
de Kinshasa, Lagos, São Paulo, México, Daca ou Karachi. Ou, de
forma complementar, quando vemos o tecido urbano difuso e
esgarçado de Los Angeles, Las Vegas, Houston ou Dallas, por
exemplo.
Assim, voltamos à pergunta inicial: como redefinir as cidades no
momento histórico em que o mundo se tornou majoritariamente
urbano, e em que o agigantado espaço físico dessas ditas pós-
metrópoles vai sendo enormemente multiplicado pelos ciberespaços
virtuais? Sem poder responder diretamente a tais questões,
proponho retornarmos vários milênios para trás, em busca de uma
melhor compreensão da origem histórica das cidades, que possa de
alguma maneira iluminar as razões do que possa representar o ser
urbano, indicando-nos, ao mesmo tempo, o que sobreviveria ainda
hoje dessa presumida razão ontológica das cidades.
O TRABALHO E O LABOR
ALDEIA GLOBAL
APROPRIAÇÃO E RECICLAGEM
Piero di Cosimo, Vênus, Marte e Cupido, c. 1490, 72 × 182 cm. Staatliche Museen,
Berlim.
Almeida Júnior, Caipira picando fumo, 1893, 202 × 141 cm. Pinacoteca do Estado,
São Paulo.
O rigor na composição atinge seu apogeu com um achado,
necessário e coerente. Ao picar o fumo, o caipira usa uma faca fina e
longa. Ela está no centro do quadro, no meio exato de uma cruz
formada pelos antebraços, pela costura da braguilha, pela abertura
da camisa no peito, cujo V funciona como uma seta, apontando, de
cima para baixo. A faca indica a única transversal do quadro, como
uma hélice imóvel, fixada no centro, que é assinalado pela unha do
indicador direito ao se juntar à do polegar esquerdo. Ela reforça a
estrutura de modo singular e se interpõe entre o espectador e o
personagem. Impõe a distância. A faca é utilitária. Não apenas,
porém. Ela também é uma arma. Ela se situa no ponto fulcral, no
equilíbrio interno ao quadro. Mas não está apenas no eixo interno,
como é possível encontrar naquelas gangorras do Renascimento.
Ela se dispõe como uma barragem ao espectador.
No primeiro capítulo de seu livro clássico e admirável, Homens
livres na ordem escravocrata, Maria Sylvia de Carvalho Franco trata
das formas de violência entre os caboclos. Partindo da análise de
processos-crime, ela afirma de imediato: a violência não é exceção,
mas constitutiva da relação comunitária. É como se os caboclos
vivessem sobre a linha de uma fronteira perigosa, fácil e
constantemente atravessada. A paz é falsa. Ou, de um modo mais
rigorosamente formulado:
***
A
Abel, Karl, 1
Abensour, Miguel, 1
Abirached, Robert, 1, 2
Abramovic´, Marina, 1
Abreu, Kátia, 1
Adorno, Theodor W, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7
Agamben, Giorgio, 1, 2, 3, 4, 5
Al-Farabi, 1
Alighieri, Dante, 1, 2
Almeida Júnior, José Ferraz de, 1, 2, 3, 4
Althusser, Louis, 1, 2
Anders, Günther, 1, 2, 3, 4
Anderson, Perry, 1
Andrade, Carlos Drummond de, 1
Annas, Julia, 1, 2
Apuleio, 1
Aquino, Tomás de, 1
Arasse, Daniel, 1, 2, 3, 4
Arendt, Hannah, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16,
17, 18, 19, 20
Argan, Giulio Carlo, 1
Aristides, Aelius, 1
Aristóteles, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18,
19, 20, 21, 22, 23, 24
Asch, Solomon, 1
Assmann, Aleida, 1, 2
Averróis, 1
Avicena, 1
B
Bacon, Francis, 1
Badinter, Elizabeth, 1, 2
Badiou, Alain, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7
Baert, Patrick, 1
Baffo, Zorzi, 1, 2, 3
Bain, Alexander, 1, 2
Barnes, Jonathan, 1, 2, 3, 4
Bataille, Georges, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9
Baudelaire, Charles, 1, 2, 3, 4, 5
Bauman, Zygmunt, 1
Bayle, Pierre, 1, 2, 3, 4, 5
Beckett, Samuel, 1, 2
Benda, Julien, 1, 2
Benjamin, Walter, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9
Bergson, Henri, 1, 2, 3, 4, 5
Berkeley, George, 1, 2
Bettelheim, Bruno, 1
Bignotto, Newton, 1, 2
Blake, William, 1
Boccaccio, Giovanni, 1
Bonnefoy, Yves, 1
Borgeaud, Philippe, 1, 2
Borges, Jorge Luis, 1, 2, 3, 4
Bornheim, Gerd.115
Botticelli, Sandro, 1, 2
Boudon, Raymond, 1
Bourriaud, Nicolas, 1
Breivik, Anders Behring, 1
Bruno, Giordano, 1
Bürger, Peter, 1
Burnyeat, Myles, 1
C
Calímaco, 1
Candido, Antonio, 1
Canetti, Elias, 1
Canguilhem, Georges, 1
Carelli, Vincent, 1
Cassirer, Ernst, 1, 2
Cavaillé, Jean-Pierre, 1
Cézanne, Paul, 1
Chanut, Pierre, 1, 2
Chávez, Hugo, 1
Childe, Vere Gordon, 1, 2, 3, 4
Choderlos de Laclos, Pierre, 1
Chomsky, Noan, 1
Cícero, 1, 2, 3, 4
Cioran, Emil, 1
Clinton, Bill, 1
Coetzee, J, M, 1, 2
Condillac, Étienne Bonnot de, 1
Copérnico, 1, 2
Cosimo, Piero di, 1, 2
Cruz, São João da, 1
D
D’Ávila, Santa Teresa, 1, 2
Damon, Matt, 1
Darbo-Pechanski, Catherine, 1
Dario, 1
Darwin, Charles, 1, 2
Debord, Guy, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13
Deleuze, Gilles, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10
Derrida, Jacques, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16,
17, 18
Descartes, René, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13
Dibie, Pascal, 1, 2, 3
Diderot, Denis, 1, 2, 3, 4, 5, 6
Djandoubi, Hamida, 1
Dreyfus, Alfred, 1, 2
Dryden, John, 1, 2
Duarte, Rodrigo, 1
Duchamp, Marcel, 1
Dupuy, Jean-Pierre, 1, 2
Durkheim, Émile, 1, 2, 3
E
Ehrenbourg, Ilya, 1, 2
Einstein, Albert, 1
Emerson, Ralph Waldo, 1
Enesidemo, 1, 2, 3
Epicuro, 1, 2
Espinosa, Baruch, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16,
17, 18, 19, 20, 21
Ésquilo, 1
Étiemble, René, 1, 2
F
Fénelon, François, 1
Ferguson, Adam, 1, 2
Fermat, Pierre de, 1
Fink, Eugen, 1
Fontenelle, Bernard le Bovier de, 1
Foucault, Michel, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16,
17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31, 32, 33,
34, 35, 36, 37, 38
Franco, Maria Sylvia de Carvalho, 1, 2
Freire Costa, Jurandir, 1, 2, 3, 4, 5, 6
Freitas, Marie Machado de, 1
Freud, Sigmund, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16,
17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26
Frinício, 1
Fukuyama, Francis, 1, 2
Fuller, Richard Buckminster, 1
G
Galilei, Galileu, 1
Gassendi, Pierre, 1
Gauchet, Marcel, 1, 2
Gehlen, Arnold, 1, 2
Genet, Jean, 1
Gil, Fernando, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7
Gilding, Paul, 1
Girard, René, 1
Goebbels, Paul Joseph, 1
Goethe, Johann Wolfgang von, 1, 2, 3
Golde, David W, 1
Gould, Glenn, 1
Goya, Francisco, 1, 2
Granger, Gilles-Gaston, 1
Greenleaf, W, H, 1
Grossman, Vassili, 1, 2
Guattari, Félix, 1
Guillotin, Joseph-Ignace, 1, 2
H
Habermas, Jürgen, 1, 2, 3, 4, 5,
Hamel, Jacques, 1
Hanus, Gilles, 1, 2, 3
Hartog, François, 1, 2, 3
Hauser, Arnold, 1
Havelock, Eric, 1, 2, 3
Hazard, Paul, 1
Hegel, Georg Wilhelm Friedrich, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11
Heidegger, Martin, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16,
17, 18, 19, 20, 21, 22
Heisenberg, Werner, 1, 2, 3
Heráclito, 1, 2
Heródoto, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8
Hesíodo, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8
Hill, W. E, 1
Hipona, Agostinho de, (Santo Agostinho), 1, 2, 3
Hölderlin, Friedrich, 1, 2, 3
Hölscher, Lucian, 1
Homero, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18
Hong, Du, 1
Honneth, Axel, 1, 2, 3
Hooper, Tobe, 1
Horkheimer, Max, 1, 2, 3, 4
Houellebecq, Michel, 1
Hume, David, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11
Husserl, Edmond, 1, 2
I
Íbico, 1
J
Jabès, Edmond, 1
Jasmin, Marcelo, 1
Jefferson, Thomas, 1, 2, 3, 4
Jodorowski, Alejandro, 1, 2, 3
Joly, Henri, 1
Jonas, Hans, 1, 2, 3
K
Kafka, Franz, 1
Kant, Immanuel, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10
Kardashev, Nikolai, 1, 2, 3
Kavafis, Konstantínos, 1
Kojève, Alexandre, 1, 2
Koselleck, Reinhart, 1, 2, 3
Koyré, Alexandre, 1
Kracauer, Siegfried, 1
L
La Boétie, Étienne de, 1, 2
Lacan, Jacques, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16,
17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28
Lang, Fritz, 1, 2
Langman, Lioubov Mikhaïlovna, 1, 2, 3
Lasch, Cristopher, 1, 2
Lawrence, D, H, 1
Le Breton, David, 1
Lebrun, Gérard, 1
Lefort, Claude, 1
Leibniz, Gottfried Wilhelm, 1, 2, 3, 4
Lênin, Vladimir Ilyich Ulyanov, 1
Leopoldo, Franklin, 1
Lestringuant, Frank, 1
Lévinas, Emmanuel, 1, 2, 3, 4
Lévi-Strauss, Claude, 1, 2
Liu-Ling, 1
Llosa, Mario Vargas, 1, 2
Locke, John, 1, 2, 3, 4, 5, 6
Longus, 1
Lopes, José Leite, 1
Loraux, Nicole, 1, 2, 3
Lord, Alfred, 1, 2, 3
Lorenz, Chris, 1, 2, 3
Lotze, Hermann, 1
Lovelock, James, 1
Luís XIV, 1, 2, 3, 4
Lyotard, Jean-François, 1, 2
M
Mallarmé, Stéphane, 1, 2, 3
Mammì, Lorenzo, 1
Mann, Thomas, 1
Marat, Jean-Paul, 1, 2
Marcuse, Herbert, 1
Marx, Karl, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17
Mattéi, Jean-François, 1, 2, 3
Matos, Olgária, 1, 2
Megabizo, 1
Mello, Fernando Collor de, 1
Merleau-Ponty, Maurice, 1, 2, 3, 4, 5
Mersenne, Marin, 1, 2
Millán-Astray, José, 1, 2
Miller, Henry, 1
Miloševic, Slobodan, 1
Mirabeau, Honoré Gabriel Riqueti de, 1
Moebius, 1, 2, 3
Molière, 1
Molyneux, William, 1, 2, 3, 4, 5
Mondrian, Piet, 1
Monet, Claude, 1
Monfort, Simon de, 1
Montaigne, Michel de, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12
Moore, John, 1
Moscovici, Serge, 1
Mossé, Claude, 1
Mozart, Wolfgang Amadeus, 1
Müller-Lyer, Franz, 1
Mumford, Lewis, 1, 2, 3
Murko, Matija, 1
Musil, Robert, 1, 2, 3, 4, 5
N
Nerval, Gérard de, 1
Newton, Isaac, 1
Nietzsche, Friedrich, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15,
16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26
Noël, Bernard, 1
Novaes, Adauto, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16,
17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31, 32
Nunes, Benedito, 1, 2
O
Olender, Maurice, 1, 2
Otanes, 1, 2
Ovídio, 1
P
Parry, Milman, 1, 2
Pascal, Blaise, 1, 2
Pascal, Dibie, 1
Paz, Octavio, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10
Peirce, Charles Saunders, 1
Péricles, 1
Peschanski, Catherine, 1, 2
Pessanha, José Américo Motta, 1, 2
Petrarca, 1, 2
Picasso, Pablo, 1
Píndaro, 1
Pinochet, Augusto, 1
Platão, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19,
20, 21, 22, 23, 24
Plutarco, 1, 2, 3
Políbio, 1
Polícrates, 1
Powell, Barry, 1
Proust, Marcel, 1, 2
Ptolomeu, 1
R
Ratzinger, Joseph, 1
Reich, William, 1
Reid, Thomas, 1
Reis, José, 1
Renan, Ernest, 1
Rendueles, César, 1, 2
Roberval, Gilles Personne de, 1
Rosnay, Joel de, 1
Rougemont, Denis de, 1, 2, 3, 4, 5, 6
Rousseau, Jean-Jacques, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9
Russell, Bertrand, 1, 2
S
Sade, Donatien Alphonse François de, 1, 2, 3, 4, 5, 6
Safo, 1, 2
Sagan, Carl, 1, 2, 3
Said, Edward, 1
Samosata, Luciano de, 1
Sanzio, Rafael, 1, 2
Sarpédon, 1
Sartre, Jean-Paul, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12
Schmitt, Carl, 1
Schöenberg, Arnold, 1
Schopenhauer, Arthur, 1, 2
Sêneca, 1, 2
Sennett, Richard, 1, 2
Serres, Michel, 1
Seurat, Georges, 1
Shakespeare, William, 1
Sloterdijk, Peter, 1, 2, 3
Smith, Adam, 1
Smith, Cairns, 1
Sócrates, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9
Sófocles, 1, 2, 3
Sólon, 1
Sorel, Georges, 1
Sozzini, Fausto, 1
Stalin, Josef, 1, 2, 3
Starobinski, Jean, 1, 2, 3, 4
Steiner, George, 1
Stiegler, Bernard, 1, 2, 3, 4, 5
T
Temer, Michel, 1
Temple, William, 1
Tennyson, Alfred, 1
Teócrito, 1, 2
Teógnis, 1, 2
Tita, Ernesto de Carvalho e, 1
Tocqueville, Alexis de, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9
Tracy, Spencer, 1
Traverso, Enzo, 1, 2, 3, 4, 5
Trousson, Raymond, 1
Trump, Donald, 1
Tsé-tung, Mao, 1
Tucídides, 1, 2
Türcke, Christoph, 1, 2
U
Unamuno, Miguel de, 1, 2, 3, 4, 5
V
Valéry, Paul
Venter, Craig, 1
Veyne, Paul, 1
Virgílio, 1
Virilio, Paul, 1
Visconti, Luchino, 1
Viveiros, Eduardo, 1
Voltaire, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8
W
Wallace, Alfred Russel, 1
Weber, Karl Emil Maximilian, 1, 2, 3, 4, 5
Weil, Simone, 1, 2
Wilde, Oscar, 1
Wilson, Joe, 1
Wittgenstein, Ludwig, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11
Wolff, Francis, 1, 2, 3, 4, 5
Y
Yan, Wang, 1
Yeltsin, Boris, 1
Z
Zi, Meng, 1
Zi, Xun, 1
Zinn, Howard, 1
ŽiŽek, Slavoj, 1
SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO
Administração Regional no Estado de São Paulo
Conselho Editorial
Ivan Giannini
Joel Naimayer Padula
Luiz Deoclécio Massaro Galina
Sérgio José Battistelli
Diretor
Adauto Novaes
Tradução
Paulo Neves, Ana Szapiro
Preparação
Silvana Vieira
Revisão
Beatriz de Freitas Moreira, Maiara Gouveia
Capa
Moema Cavalcanti
Diagramação
Negrito Produção Editorial
Produção do arquivo ePub
fkeditorial
M98
CDD 121