LOPES, Reinaldo José. 1499. O Brasil Antes de Cabral. Rio de Janeiro: Harper Collins, 2017, 246p

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164 Eloína Prati dos Santos

Ele nos considera privilegiados


por vivermos nesta década de 2010,
uma vez que “as últimas décadas foram
marcadas por uma explosão de pesquisas
– em áreas tão diferentes quanto a
arqueologia, a genômica e a botânica –
que estão ajudando a retratar uma pré-
história brasileira infinitamente mais
vibrante e complexa do que tivemos
que engolir na escola” (p.12). E que
continuamos a engolir, principalmente
nas escolas públicas.
Ele divide este livro sobre a pré-
história do Brasil, em capítulos que
cobrem, retroativamente, de 13.501 A.C.
LOPES, Reinaldo José. 1499.
até o início da colonização, olhados a partir
O Brasil antes de Cabral. Rio
de vestígios encontrados no século XX e
de Janeiro: Harper Collins, aprofundados nestas primeiras décadas do
2017, 246p. século XXI, com o objetivo de promover a
tão necessária revisão do passado de nosso
Eloína Prati dos Santos¹
país e de seus habitantes, tornada possível
Submetido e aprovado em 6 de julho
por pesquisas científicas contemporâneas
de 2018.
que permitem que ele seja literalmente
“desenterrado” e de melhor explicar
Reinaldo José Lopes é repórter e
a ascensão e queda de seus primeiros
blogueiro da editoria de Ciência da Folha
habitantes. Como Lopes diz na Introdução,
de São Paulo, especialista em coberturas
“Este livro é uma modesta tentativa de tirar
de tópicos que investigam a arqueologia,
da sua cabeça a imagem, a um só tempo
a paleontologia e a biologia evolutiva, ou
clássica e profundamente equivocada,
seja, nosso passado remoto.
do Brasil pré-Cabral como um paraíso

Interfaces Brasil/Canadá. Florianópolis/Pelotas/São Paulo, v. 18, n. 2, 2018, p. 164-168.


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terrestre tropical [...]” (p. 12). O livro de Luzia, reconstruída pelo antropólogo
comenta a “explosão de pesquisas – em forense britânico Richard Neave em 1999.
áreas tão diferentes quanto arqueologia, Segue a discussão de suas características
genômica e botânica – que estão ajudando morfológicas próximas às da raça negra e
a retratar uma pré-história brasileira as dos habitantes encontrados no continente
infinitamente mais vibrante e complexa do pelos europeus, mais asiáticas, um impasse
que o estereótipo de imobilidade do nativo que a genômica talvez consiga desfazer.
que tivemos que engolir na escola” (p.12). A partir da página 37, aparecerem
O capítulo 1, de 13.501 A.C. a textos emoldurados, com aparência de
1499, aponta a data de 15 mil anos como papel antigo - as Explicações Técnicas -
o marco da chegada dos primeiros homo preciosas para leigos ao explicar métodos
sapiens ao continente mais tarde chamado de datação do carbono, DNA mitocondrial,
de Américas e descreve a biodiversidade níveis de complexidade social, diversidade
do continente através de de achados como linguística e eventos pré-históricos.
o da preguiça gigante da gruta de Cuvieri O capítulo 2, de 8.501 A. C. a
em julho de 2002, a uns 50 km de Belo 1499, é sobre sambaquis, catadores de
Horizonte. Onças também já existiam por conchas, zoólitos e o achado de Luzio, dois
aqui, bem como ursos-de-cara-curta, cerca milênios mais jovem e com morfologia
de dez vezes maiores e mais pesados do paleoamericana (ameríndia), no vale rio
que seus descendentes que ainda habitam o Ribeira do Iguape, em um sítio arqueológico
continente americano e das várias espécies com trinta sambaquis fluviais, em época
por eles consumidas. A diversidade anterior à domesticação de vegetais que
de mamíferos de grande porte que só pode ter alterado as relações entre grupos
existiam aqui - relata Lopes - superava populacionais pré-históricos.
até a da África e o capítulo fornece O capítulo 3, 6.501 A.C. a 1499,
explicações detalhadas sobre formações adentra a Amazônia, perto de Porto Velho,
geológicas que teriam favorecido este onde o autor é surpreendido pelos urucurizais,
cenário e como, juntamente com alguns densos círculos homogêneos de palmeiras
deles, foram encontrados fósseis de urucuris, de frutos comestíveis, o que levanta
seres humanos, como a conhecida face a hipótese de que partes extensas da mata

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sejam atropogênicas, ou que a domesticação hoje na região do que há cinco séculos, com
de vegetais tenha sido nossa primeira regiões densamente povoadas e ricas, aldeias
revolução agrícola, feita com frutos nativos, grandes como cidades e cerâmica de mais
ao contrário das fazendas de café e de cana qualidade que a de Málaga (segundo o frade
de açúcar, importadas da África e da Ásia, dominicano Gaspar de Carvajal, LOPES, p.
e fenômeno semelhante ao dos castanhais 128-129), ainda que as referências do frade
(castanhas-do-pará) na região Norte do sobre as amazonas guerreiras, nunca tenham
país. Aproximadamente 83 espécies nativas sido comprovadas.
apresentam populações cultivadas. Este trecho ainda viaja até Santarém,
O capítulo 4, 2.001 A.C. a 1499, onde o rio Tapajós deságua no Amazonas,
estuda situações mais peculiares, como e onde há indícios de presença humana na
a dos antigos marajoaras, entre o rio e o Amazônia de cerca de 10 mil anos; vai até
Atlântico, que deixaram mais pistas de sua os círculos de pedra do Amapá, ou estruturas
cultura, seu imaginário e seus rituais. Uma megalíticas e um impressionante conjunto de
de suas práticas foi o uso de “currais” para urnas funerárias pré-colombianas e ao Alto
impedir que os peixes coletados voltassem Xingu que hoje abriga uma dezena de etnias
ao rio e um gerenciamento hídrico que diferentes, com idiomas diferentes, mas uma
lhes permitiram sobreviver talvez por cultura compartilhada e quase homogênea.
milênios, conforme indicam resquícios de O autor ainda prossegue até o Acre e
cerimônias fúnebres elaboradas e também seus quase geoglifos – quadrados, círculos
a sobrevivência da arte marajoara. e losangos - supostamente escondidos
O capítulo 5, 2001 A.C. a 1499, não em uma floresta pré-desmatamento e
repete o anterior, mas investiga modelos de apontando para o aniquilamento de grupos
crescimento populacional amazônicos e suas populacionais nativos bem maiores.
dinâmicas estruturais e temporais, através dos O capítulo 6, o último antes do
vestígios encontrados quando os europeus Epílogo, 100 D.C a 1499 é intitulado Tupi
aqui chegaram nos séculos XVI e XVII. Seus or Not Tupi, lembrado a revolução cultural
relatos revelam que havia desenvolvimento promovida pelo Movimento Antropofágico
demográfico, econômico e político bem mais de 1922 e aponta para a análise linguística
significativo, que seria mais próximo ao de a seguir e a memória dos Tupinambás,

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extintos no inicio da colonização e que ainda aconteceu a cada povo indígena depois do
povoam nossa memória colonial dos povos que ele denomina de “distopia pós-contato”
indígenas como canibais. A Explicação para homens, animais e plantas e a encerrar o
técnica linguística aqui é extensa e muito livro deixando a impressão de que o “passado
rica, assim como a discussão sobre “as profundo” do Brasil é tão rico e complexo
grandes expansões linguísticas do passado quanto o do Velho Mundo (p. 232).
(pré-)brasileiro” (p.174), onde talvez 1.500 Segue uma longa lista de boas
línguas chegaram a ser faladas, das quais referências Para saber mais, com autores
350 idiomas continuam a ser falados na de várias nacionalidades e das várias áreas
modernidade. O aruak e o tupi foram os mais de conhecimento invocadas na publicação,
abrangentes do ponto de vista geográfico e mais um alista de artigos em periódicos
ainda são os mais estudados. Nos dias de hoje científicos internacionais.
estima-se a existência de 10 subfamílias do Uma única característica da
tupi-guarani, no Brasil, Argentina, Uruguai, publicação me distraiu da grande riqueza
Paraguai, Bolívia e Peru, e do Rio Grande do de informações e detalhes relevantes: a
Sul ao Maranhão no Brasil. escolha do tom do discurso, facilitado
O Epílogo discute hipóteses científicas para atingir um grande público leigo,
sobre “porque o Brasil pré-histórico foi em especial adolescentes ou jovens
derrotado” (p. 198). Lopes usa imagens d universitários, mas que abusa dos clichês,
“distopias pós-apocalípticas” recorrentes na como o próprio autor por vezes reconhece.
cultura atual em filmes videogames, séries Mas que mais publicações como
de televisão e best-sellers, Jogos Vorazes, esta venham auxiliar na muito atrasada
Walking Dead, Divergente...como metáfora descolonização do país e seus ultrapassados
capaz de nos fazer entender “o fim da pré- estereótipos sobre os povos indígenas e
história dos povos das Américas e do Brasil” como eles vivem no século XXI.
(p. 200), uma vez que é difícil aceitar que Uma única característica da
“as sociedades ameríndias pouco populosas publicação me distraiu da grande riqueza
e simples do presente” representem o que de informações e detalhes relevantes, o
havia no continente antes de 1500 e por isto discurso, facilitado para atingir um grande
este capítulo é dedicado a explicar o que público leigo, em especial adolescentes ou

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jovens universitários, que abusa dos clichês,


como o próprio autor por vezes reconhece.
Que mais publicações como
esta venham auxiliar na muito
atrasada descolonização do país e seus
ultrapassados estereótipos sobre os povos
indígenas e como eles vivem no século
XXI e que venhamos a conhecer pesquisas
feitas aqui, mais divulgadas e valorizadas
no exterior, como a doação de sangue de
membros de uma tribo do Xingu, do povo
Kuikuro, que possibilitaram identificar
e divulgar obras de seus antepassados
em revistas de prestígio, como a Science
(2003 e 2008), como redes de estradas e
de uma confederação de 50 mil habitantes
em um território sobre o qual a maioria dos
brasileiros pouco sabe até hoje.

Notas

¹ Professora aposentada da UFRGS, Porto Alegre,


RS. Editora Assistente da Revista Interfaces
[email protected]

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