Psicologia Humanista

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Psicologia Humanista:

uma tentativa de sistematização da denominada


terceira força em psicologia

Eliza Zaneratto Rosa


Edna Maria Peters Kahhale

O presente texto é uma tentativa de sistematização da chamada terceira força em


Psicologia, a Psicologia Humanista, tendo como parâmetro uma análise dos
antecedentes sócio-históricos e epistemológicos e as concepções de idealismo versus
materialismo, metafísica versus dialética. Para sua elaboração, partiu-se da leitura de
textos originais de autores que analisam e propõem a Psicologia Humanista.

Apresenta-se um panorama histórico-social das décadas de 1940 e 1950, de forma a


situar o surgimento da Psicologia Humanista, assim como um levantamento
epistemológico dos principais pensadores que parecem ter influenciado e propiciado o
advento desta teoria. Retratam-se as chamadas três revoluções em Psicologia: o
Behaviorismo, a Psicanálise e a Psicologia Humanista, e é realizada uma breve
passagem sobre as principais conceitualizações de dois representantes dessa linha:
Abraham Maslow (Psicologia da Auto-Atualização) e Carl Rogers (Terapia Centrada no
Cliente).

Momento de constituição – antecedentes históricos


No início da Idade Moderna, o termo Humanismo designou movimento de ruptura com
os ultrapassados valores medievais, cujo apogeu ocorreu durante o Renascimento
oriundo na Itália quatrocentista. Houve uma grande ênfase ao estudo de autores
clássicos greco-romanos, ao espírito de pesquisa e indagação e à valorização da
observação. Essas características foram os pressupostos necessários ao
desenvolvimento da ciência moderna, na medida em que refutavam as crenças
religiosas, anunciando, assim, uma cisão definitiva com a Igreja e com a filosofia
escolástica. O Antropocentrismo significou o deslocamento das atenções para o
homem; ele agora passa a ser encarado como "o centro das preocupações" e essa foi
mais uma marca da evolução do pensamento moderno, uma vez que, até então, vigorava
o "teocentrismo", segundo o qual Deus ocupava o centro do Universo e tudo ocorria "por
sua vontade", de modo que restaria ao homem voltar sua atenção para a fé, a religião e a
vida após a morte. Perante todas estas argumentações, não haveria motivos para se
alterar a ordem natural das coisas.

A partir daí é possível perceber o que simbolizou o Renascimento, e em particular o


Humanismo, para o desenvolvimento do pensamento moderno, a sua indiscutível
importância na evolução da humanidade em termos gerais. Foi necessário que esse
movimento ocorresse para que o homem fosse colocado no centro das preocupações e
descobrisse que os acontecimentos não se davam "graças a Deus", mas graças à sua
determinação em resolver os problemas que a vida lhe apresentava. Assim, conscientizou-
se de sua capacidade de atuação e modificação da realidade, sendo livre e responsável
pelas escolhas e alterações provocadas, despojando-se, portanto, do cômodo papel de
agente passivo frente ao mundo.

Embora o movimento renascentista tenha servido como pressuposto para o advento do


naturalismo, em muitos aspectos a Psicologia Humanista denota semelhanças com ele,
no que diz respeito a ter significado uma Revolução, em termos de pensamento, à sua
época e, além disso, por sua teoria se identificar, e muito, com as ideologias humanistas
e antropocêntricas.

Neste sentido, podemos pensar que as propostas da Psicologia Humanista resgatam um


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pouco a concepção de homem abalada pelas "crises" geradas nas rápidas reformulações
às quais a humanidade esteve exposta no decorrer da história, crises estas em que
ocorreu uma virada radical quanto à compreensão do que seria o ser humano. À
descoberta de Copérnico, no início do século XVI, de que a Terra não era o centro do
universo, mas um simples ponto em sua imensidão; a teoria da evolução das espécies
de Charles Darwin, que data do século XIX, baseada no mecanismo de seleção natural; e,
finalmente, a "descoberta" do inconsciente por Sigmund Freud, no início do século XX,
acarretando a idéia de que o homem não é tão "dono de si" ou "poderoso", devendo
reconhecer que muito de si está além de seu próprio controle, são idéias que
convergem para refutar o pensamento desenvolvido em meados do século XVI, com o
advento da Idade Moderna.

A eclosão da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) destruiu as ingênuas esperanças


dos que imaginavam que a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) acabaria de uma vez
por todas com as guerras. Embora os Estados Unidos tenham emergido como uma
grande potência econômica e bélica, ao término da guerra, o conflito entre ele e outra
superpotência — então União Soviética — já era aberto. A partir daí, os países do
mundo tenderiam a se alinhar como nações do "bloco socialista" e do "bloco capitalista".
O conceito "Guerra Fria", segundo o qual era necessário "conter a expansão do
comunismo no mundo", passou a ser utilizado para designar o confronto e a
competição entre EUA e URSS, que, devido ao perigo do uso de armas atômicas,
deslocaram-se para o plano militar, ideológico, cultural, desportivo, diplomático,
econômico e, sobretudo, tecnológico.

A psicóloga humanista americana Charlotte Buhler (in Greening, 1975) afirma ter
sido esta situação de constante tensão econômica, social e política vivida pelos povos de
todo o mundo e, em particular, pelos americanos a responsável pelo surgimento de um
estado de espírito novo, comparado com o tempo em que tudo o que as pessoas
buscavam era a "diversão". Diz existir na época uma introversão antes desconhecida,
um desespero absurdo. Psicólogos deste período, como Karen Horney (1885-1952) e Eric
Fromm (1900-1980), questionavam a possibilidade de confiar nessa sociedade que
constrói bombas atômicas para aniquilar populações. Dessa forma, esse momento
propiciava aos jovens duvidarem dos valores e da moralidade tradicional. As descobertas
científicas também propiciaram o surgimento de dúvidas a respeito de dogmas e
pregações da Igreja, como a existência de Deus.

Os sentimentos dos jovens e também as interrogações de adultos foram sacudidos e


expressos em termos tais como: "Qual é o significado de tudo?", "Quem somos nós, quem
sou eu?", "Qual o modo certo de viver?". A essas interrogações houve várias formas de
reações, como uma facção da juventude que lutou por reformas. Segundo Buhler (in
Greening, 1975), esse grupo possuía idéias e convicções definidas, as quais poderiam ser
políticas ou girar em torno da liberdade e dos direitos humanos, e, nesta última versão,
aproximavam-se mais, ainda que através de programas irrealistas, da Filosofia
Humanista. Buhler (in Greening, 1975) abordou ainda a importância de um outro grupo
de jovens, os quais denominou "construtivos", na formação dos ideais da Psicologia
Humanista, uma vez que estes viam a necessidade de aperfeiçoar as experiências
pessoais e sociais, procurando ajuda nas pessoas mais velhas em que confiavam para
encontrar valores e crenças mais profundas, a fim de liberar sua criatividade e expressar
suas potencialidades.

No início dos anos 60, no governo Kennedy, os Estados Unidos apresentavam-se em grande
ascensão econômica devido às transformações sociais pós-guerra. Gomes (in Aquino,
1986) afirma que o advento da Psicologia Humanista não pode ser dissociado deste quadro
de desenvolvimento, uma vez que foi este o responsável pelo surgimento de valores tais
como independência, hedonismo, dissidência, tolerância, permissividade, auto-expressão,
que cada vez mais reforçavam o clima de preocupação com o individual, em que o sujeito
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apresentava-se como centro das preocupações.

Nota-se, portanto, que os trinta anos que antecederam o advento da Psicologia


Humanista (1930-1960) foram anos marcados pela guerra, luta de poder, nos quais os
homens eram para o governo apenas mais um dentro dos batalhões do exército, a morte
era "a vizinha" sempre presente e muitas vezes infelizmente já esperada, em que não se
sabia sobre o dia futuro (seremos vencedores ou vencidos, encontraremos mais
miséria ou riquezas). Parecia não haver lugar para a esperança, uma nova chance ou
mudança de vida, especificamente nos EUA, onde cada homem é apenas mais uma
fonte de trabalho, que, se explorada, permitirá maior lucro ao opressor.

Estas questões, juntamente com a grande difusão da ideologia liberal, a qual pregava
serem todos os indivíduos iguais, mas absolutamente livres para defenderem seus
interesses particulares sem limitações, permeiam a vida das pessoas e sugerem um
campo de reflexão sobre o individual, que responda às angústias sobre a morte e a
massificação, as quais parecem "inundar" o mundo, sobre liberdade e possibilidade
existentes dentro de cada sujeito para ser e poder vencer o opressor e até tornar-se um
deles. É famosa a expressão "sovnho americano", sobre vencer e ser alguém na vida, ou
seja, retomar essa possibilidade que parece obscura e possuir liber dade para mudar de
lado, nessa constante luta de poder existente nas relações sociais.

A Psicologia Humanista surge então como uma forma de responder a esses anseios da
sociedade, com concepções que garantem a possibilidade de transformação que
dependa apenas da vontade individual, como uma forma de as pessoas conceberem-se
como "EUS" e não apenas como mais uns, como diferentes, devendo assim ser tratadas.
Uma resposta à "alienação de si próprio" que a situação pregava, contendo até a
possibilidade de uma "alienação do outro", na qual o indivíduo de tão singular acaba
por esquecer-se como constituinte de um todo maior do qual faz parte e que também o
determina, ou seja, não percebendo que sua vontade de transformação é a arma para
esta, mas que, como sabiamente nos diz o ditado popular, "não se ganha uma batalha
sozinho". Ela retoma, resgata a individualidade, a subjetividade, as emoções próprias
e particulares de cada ser humano.

Esse momento histórico, assim, propicia a erupção de novas perspectivas nas mais
diversas áreas do conhecimento, perspectivas estas que rompiam com a concepção
dominante e, no campo da Psicologia, permitiam uma nova teoria, constituindo-se a
partir da Filosofia, antes rejeitada como ciência. A Psicologia, que adotou o modelo das
ciências naturais como única forma de constituir-se como ciência independente,
agora proclama ser tal método reducionista e insuficiente.

Bases Epistemológicas
A Psicologia Humanista é caracterizada por possuir ramificações, tendo cada uma delas
diferentes maneiras de analisar seu objeto de estudo. Giovanetti (in Greening, 1975)
divide a Psicologia Humanista em duas grandes escolas: 1) a escola americana,
originária do Humanismo individual, onde encontram-se a Psicoterapia Humanista-
Existencial, embasada em Kierkegaard, tendo como principal representante Carl
Rogers e a Psicoterapia Fenomenológico-Existencial, com Rollo May como o principal
representante; e 2) a escola européia, berço das principais idéias fenomenológicas e
existenciais, encontrando-se aí também a Psicoterapia Fenomenológica Existencial
caracterizada pela Daseinsanalyse de Biswanger e a Análise Existencial de Medard Boss,
além das Psicoterapias Antropológicas e da Psicoterapia Antropológico-Fenomenológica.
Ou seja, parece haver uma ligação entre as Psicologias Humanistas e a Fenomenológica.

Giovanetti (in Greening, 1975) afirma que a diferença entre as várias abordagens está em
que cada uma delas destacará aspectos diferentes ao descrever as características
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fundamentais do homem. A partir daí, apontar matrizes comuns de pensamento para


todas as linhas torna-se muito difícil, se não impossível. Mas, apesar de todas essas
dificuldades, parece que um filósofo do século XIX desponta como o precursor das idéias
humanistas, as quais embasaram o pensamento posterior dos principais
representantes da escola americana: Abraham Maslow e Carl Rogers. Esse filósofo
chama-se Henri-Louis Bérgson (1859-1941).

Ele nasceu em Paris, a 18 de outubro de 1859. Numa época em que as investigações


científicas ditas positivas estavam no auge, o que o leva a exaltar e inovar a metafísica.
Na realidade, Bérgson (1979) fez uma crítica aos modelos mecanicista e finalista, os
quais, para ele, são fruto de um olhar inteligente frente aos fenômenos, um olhar que
busca a compreensão dos mesmos. Contrapondo-se a isto, afirma que a realidade se
define pelo movimento, em sua simplicidade indivisível e em sua totalidade, englobando
mais que as partes componentes às quais se referem as explicações mecanicista e
finalista. Tal movimento é conduzido pelo impulso vital ("élan vital") ou impulso
original da vida, o qual define como uma tendência a agir sobre a matéria bruta. Assim,
para ele, vida e matéria são indivisíveis: a vida evolui ligada à matéria e, caracterizada
pelo movimento e pela criação, atravessa a matéria inerte, destacando nela seres vivos.
Portanto, o impulso da vida consiste numa exigência de criação e, ao encontrar a
matéria, cujo movimento é oposto ao seu, introduz nela a indeterminação e a liberdade.

Bérgson (1979) compreende a inteligência e o instinto como duas formas diferentes,


mas complementares, de atuação sobre a matéria bruta. Uma das diferenças
apontadas pelo autor entre essas duas formas diz respeito ao fato de o instinto
caracterizar-se pela faculdade de utilizar e construir instrumentos organizados e,
portanto, mecanismos inatos, ao passo que a inteligência caracteriza-se pela
faculdade de fabricar e empregar instrumentos inorganizados; outra diferença é
que o instinto tende à inconsciência, enquanto a inteligência é orientada no sentido da
consciência e, portanto, envolve um conhecimento pensado (embora essa diferença seja
mais de grau que de natureza); no caso do instinto, o conhecimento inato recai
prioritariamente sobre as coisas e, na inteligência, sobre as relações.

Termina afirmando que a evolução ocorre pela penetração da consciência na matéria,


arrastando-a à organização, e aponta a inteligência como possibilidade de exteriorização
da consciência. A partir disso, Bérgson (1979) coloca a consciência como princípio
motor da evolução e acaba por conceber um lugar privilegiado ao homem entre os seres
conscientes, uma vez que nele a consciência encontrou saída para libertar-se, fazendo-o
a partir das complicações e embaraços da ação. Esta concepção espiritualista da
evolução, entendida como uma resposta ao evolucionismo materialista, é denominada
como a "evolução criadora".

Se o "élan vital" corresponde a uma tendência da realidade, enquanto movimento, ao


equilíbrio, crescimento e organização, também o ser humano é dotado desta tendência. A
idéia postulada por Bérgson (in Penna, 1991) referente ao "eu profundo" e "eu de
superfície" expressa a presença desta concepção em suas formulações acerca do ser
humano e seu psiquismo. O "eu de superfície" caracteriza-se por ser estático,
mecanizado e restrito ao que poderia se denominar "eu social" do indivíduo. O homem
pode ser capaz de viver apenas este "eu de superfície" e, neste caso, jamais chegará a
experimentar a liberdade, já que o "eu profundo" (que diz respeito ao "eu pessoal") quer,
se apaixona, evolui, cresce constantemente, sendo acima de tudo criador, livre e
dinâmico, e pode ou não ser atingido pelo homem.

O "eu profundo" caracteriza-se por ser uma duração pura e irreversível, em


permanente mudança qualitativa e irrepetição contínua, que mantém sua identidade
por intermédio da memória. A representação proposta por Bérgson acerca da ação
inconsciente esclarece a idéia da memória como manutenção de uma identidade no
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processo contínuo de transformação. Ele o faz através da imagem de um cone: a base


seria o inconsciente e cresceria sempre pela aquisição de novas experiências; o vértice
representaria o momento presente, de inserção do psiquismo na vida. No interior do
cone, os elementos psíquicos apresentam duplo movimento: do vértice para a base
(experiências presentes que passam para o inconsciente) e da base para o vértice (o
inconsciente emerge atuando sobre o plano da consciência). O crescimento incessante do
cone significa que cada qual carrega atrás de si todo o seu passado, que é conservado
integralmente.

O livre-arbítrio encontra-se no "eu profundo" e constitui a verdadeira personalidade


do homem. Assim, Bérgson apresentava-se como defensor e reformulador do livre-
arbítrio, contrapondo-se às teses deterministas que estavam em voga na sua época.
Reconhece, entretanto, que a maioria dos homens vive apenas o "eu de superfície", sem
jamais experienciar a liberdade.

Para Bérgson, exercitando-se na busca da liberdade e do livre -arbítrio o homem


poderia apreender a essência e a aparência dos fenômenos, de tal modo que,
propondo o princípio do “élan vital” como fundamento do homem e de sua
atividade, Bérgson o propõe também como fundamento do conhecimento. Assim, se
aponta que a inteligência e o instinto são formas diferentes mas complementares de
ação sobre a matéria, é na intuição que vai en contrar a síntese destas duas formas
(Penna, 1991). A inteligência, ao elaborar conceitos e ao trabalhar analiticamente,
fragmenta, espacializa e fixa a realidade, que é nela mesma um puro tornar-se. Essa
atividade do intelecto, típica do "eu superficial", não proporciona o conhecimento da
natureza mesma dos objetos, porque os conceitos não correspondem à essência do
objeto. As essências só podem ser atingidas através da intuição, que possibili ta o
encontro do "eu profundo" com a intimidade do objeto. A intuição permitiria a
apreensão do que é vida, dinamismo, mudança qualitativa, duração e criação. Por isso,
a metafísica teria na intuição o seu principal método.

Além de Bérgson, parece coerente apresentar aqui Husserl (1859-1938), criador da


Fenomenologia, como uma possível base epistemológica das Psicologias Humanistas. As
críticas da Psicologia Humanista às ciências naturais e às concepções deterministas da
Psicologia são partilhadas também por Husserl. Ele criticava um naturalismo das
ciências humanas, ou melhor, uma tendência em denominar todos os fenômenos como
materiais, toda realidade como física. No entanto, dizia ser este pressuposto dos
pesquisadores ditos materialistas uma concepção idealista, já que a objetividade que
supõem é essencialmente ideal, pois se seu método fosse aplicado a seu pressuposto,
este não se revelaria como válido. Ou seja, como provariam cientificamente, através da
experimentação, observação e com consenso de um ou mais pesquisadores, ser tal
método o único que permite conhecer e ser esse conhecimento correspondente ao real?!
Somente concebendo-o como um pressuposto, portanto, concebendo-o idealisticamente.
Contudo, Husserl criticava também o "psicologismo" que reinava, a tendência em reduzir
tudo, e conseqüentemente a possibilidade de conhecimento, a processos mentais, para
ele não há verdade independente do processo psíquico e sua organização e, vale
ressaltar, nesta medida esta crítica refuta a proposta bergsoniana.

Husserl pregava que o conhecimento só seria possível através de uma redução


fenomenológica por parte do sujeito que conhece, ou seja, um despojar-se de todas as
suas pré-concepções. O que o sujeito conhece refere-se àquilo que apreendeu do objeto
a partir de sua vivência e pressupostos, de tal modo que a redução fenomenológica
colocada como o único e imprescindível meio de se chegar à "essência" do objeto e não
apenas à sua "aparência", isto é, como se mostra a uma determinada consciência um
determinado objeto. Assim, todo fenômeno possui uma essência, que possibilita designá-
lo, e o conhecimento deveria visar, dessa forma, à apreensão da "coisa mesma" ou "coisa
em si".
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Esta concepção não pode ser entendida descolada da idéia de consciência intencional,
segundo a qual a relação sujeito-objeto refere-se a uma relação na qual o sujeito
constitui o objeto, sendo a consciência sempre consciência de alguma coisa e o objeto
sempre um objeto para uma consciência. É isto que se denomina Intencionalidade e
essa concepção tem como seu principal representante Franz Brentano (1838-1917). Para
este autor, "em qualquer fenômeno caracteristicamente humano deve se incluir a presença da
mente, (...) sendo tais pressupostos mentais irredutíveis e caracterizados pela intencionalidade, ou
seja, o psíquico é caracterizado pela diretividade em relação a um objeto ou referência a um conteúdo"
(Spugelberg, in Giorgi, 1978:41). Brentano irá enfatizar a questão da intencionalidade do
ato humano, que a experimentação teria dificuldade de apreender. "O ato de perceber
implica necessariamente a presença do objeto percebido e o ato de pensar supõe o objeto pensável"
(Penna, 1997:28).

Assim, de uma forma geral, pode-se dizer que a concepção fenomenológica implica em
limitar todo o conhecimento ao sujeito e suas significações, pois o que ele vê, percebe e
significa, a sua relação com o objeto não pressupõe uma existência independente deste
em relação ao sujeito que o percebe, mas, ao contrário, é como se o objeto existisse a
partir da maneira que o sujeito o percebe. O método fenomenológico, a redução
fenomenológica, assim, não pressupõe um conceito do que é verdadeiro ou falso ou
uma teoria e consenso válido para todos os indivíduos. Tal contribuição mostra-se de
extrema relevância para uma posterior caracterização do método humanista, já que
alguns de seus representantes estudados (Maslow e Rogers) possuem propostas
condizentes com esta concepção.

As três revoluções em Psicologia


Segundo os teóricos da Psicologia Humanista, no desenvolvimento do pensamento e das
teorias construídas no campo da Psicologia, identificam-se três momentos que são
apontados como momentos de revolução. Nestes momentos, encontramos vertentes que
rompem de algum modo com modelos predominantes no contexto em que surgem.

A primeira revolução na Psicologia eclodiu por volta de 1913, com o advento do


Behaviorismo. Segundo Greening (1975), o Behaviorismo surgiu em reação à excessiva
preocupação da Psicologia do século XIX com a consciência e com a introspecção como
método de chegar aos dados da atividade mental consciente. Contudo, os behavioristas
jogaram fora não só a consciência, mas também os recursos da mente: sendo o
comportamento manifesto aquele que podia ser visto e medido, ele era tudo o que
contava. Assim, esta vertente teórica, ao enfatizar os seus estudos no comportamento
humano, deixando de lado as preocupações com a consciência e os fenômenos mentais,
acabou por concebê-lo como produto das determinações ambientais, de forma que o ser
humano, sua subjetividade e sua constituição deveriam ser compreendidos como fru tos
das interações com a realidade na qual estavam inseridos. Assim, o behaviorismo,
embora tenha centrado seus empenhos no estudo do comportamento humano, não
deixou de seguir, em suas origens, os "passos ditados" pelos modelos mecanicista
e newtoniano. Os comportamentos humanos, os fenômenos psicológicos são vistos
como funções de estímulos do mundo externo e a preocupação com a descrição e o
registro objetivo por observadores independentes é bastante pertinente.

A segunda revolução foi a Psicanálise, a qual teve seus estudos pioneiros realizados por
Sigmund Freud (1856-1939). A Psicanálise descende também das ciências naturais: seu
fundador partiu de uma formação médica e preocupou-se em permanecer fiel aos
conceitos básicos da física clássica enquanto procurava descrever os fenômenos
psicológicos. O ponto de vista topográfico que baseou a proposição da divisão do
aparelho psíquico em três estruturas básicas (id, ego e superego), assim como os demais
pontos de vista que norteiam sua teoria — dinâmico, econômico e genético —,
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fundamentam-se nas leis físico-químicas da época.

No entanto, Freud tinha consciência da natureza limitada dos modelos científicos e


defendia modificações dentro da psicanálise a partir de progressos oferecidos pelas
outras ciências, ao que corresponde seu caráter inovador. Ele transcendeu as
limitações da estrutura newtoniana em seu trabalho clínico e, como conseqüência, em
suas formulações teóricas que deste descenderam. São palavras suas: "A influência
pessoal é nossa mais poderosa arma dinâmica", e ainda: "É o novo elemento que
introduzimos na situação e por meio do qual a tornamos fluida" (Freud, 1938, in Capra,
1994:176). Com isso, ao mesmo tempo em que procura estar vinculado às proposições
científicas tradicionais e manter seu compromisso com elas, demonstra que, em
determinados momentos, ainda que guiado basicamente por tais proposições, acaba
por transcendê-las. Segundo Bleger (in Ziziemsky, 1971), o trabalho de Freud tem um
caráter revolucionário na medida em que, além de seguir os modelos explicativos e
causais, inscreve a Psicanálise como uma hermenêutica, um estudo dos significados.
Assim, defende que ela seria capaz de levar as ciências da natureza ao
reconhecimento dos déficits e limitações de seus pressupostos e de suas exigências
metodológicas.

A Psicanálise tomará como objeto de estudo o inconsciente, que é então reconhecido


como a grande força que move muitos dos fenômenos mentais e dos comportamentos
humanos; minimiza-se, assim, o papel da consciência na constituição da pessoa, de
suas ações, seus desejos e sentimentos, em detrimento da força atribuída aos processos
e determinações inconscientes. Para Freud, o homem era uma criatura de instintos e,
em particular, de dois instintos primários, o de vida e o de morte (de Eros e de Tânatos).
Esses dois instintos estavam em conflito, não só entre si, mas também com o mundo e
com a cultura. A sociedade baseava-se na renúncia dos instintos, através do mecanismo
da repressão; mas os instintos não se rendiam sem luta.

Portanto, em ambas as propostas o ser humano é, essencialmente, um ser


determinado; no primeiro caso trata-se de um determinismo ambiental e no segundo, de
um determinismo psicogenético. A Psicanálise surgiu mais ou menos ao mesmo tempo
que o Behaviorismo e, assim como ele, se desenvolveu em reação à ênfase dada pela
Psicologia tradicional sobre a consciência. Segundo Matson (in Greening, 1975),
enquanto o Behaviorismo dava todo o destaque ao ambiente externo (aos estímulos
recebidos de fora) como fator determinante do comportamento, a Psicanálise
enfatizava o ambiente interno, ou os estímulos recebidos de dentro sob a forma de
impulsos e instintos.
Outras abordagens, que questionavam as concepções reducionista e mecanicista da
realidade e forneciam um modelo mais integrado e mais dinâmico de sua constituição,
foram ocupando espaço no campo científico e permitindo o desenvolvimento de escolas
e de idéias que exerceram grande influência nas tendências da psicologia e nas
psicoterapias que datam da segunda metade do século XX. Entre estas escolas estão as
contribuições da Psicologia Humanista.

A denominação terceira força dada à Psicologia Humanista vem expressar o rompimento


que esta escola pretendia estabelecer em relação às duas grandes tendências da
Psicologia dominantes até então: o Behaviorismo e a Psicanálise. Os pressupostos
mecanicistas, reducionistas e deterministas destas duas escolas assentavam as
principais "fontes de ataque" dos representantes da nova proposta. Além disso, as
respostas que o Behaviorismo e a Psicanálise vieram oferecer para a questão da
consciência seguiram linhas de pensamento e resultaram em teorias bastante diferentes,
ambas, contudo, insatisfatórias para as concepções humanistas.

A partir do exposto, é possível compreender melhor o produto intelectual da Psicologia


Humanista: em primeiro lugar, uma maior ênfase à consciência, oferecendo uma
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contribuição no sentido de fortalecer o reconhecimento de sua importância na


Psicologia acadêmica; depois, a consideração de que a vida humana possui uma
dinâmica na qual, em cada fase, o ser humano deve alcançar um certo grau de
realização, a fim de que possa se estruturar como pessoa plena e integrada, de forma
que o homem é entendido como processo e evolução; a preocupação em entender a vida
humana em sua totalidade e o homem enquanto um ser uno; por fim, o resgate das
possibilidades humanas — a valorização de sua força de vontade, de sua razão, sua
liberdade de escolha e compreensão, de sua responsabilidade pessoal, de aspectos da
experiência peculiarmente humana, como o amor, o ódio, o medo, a esperança, a
felicidade, o bom humor, a afeição e o sentido da vida — e a consideração da pessoa no
contexto da família, do trabalho e dos ambientes sociais.

A seguinte citação foi utilizada por Rogers (1902-1987) para definir sua posição em relação
ao ser humano e à construção de sua subjetividade. Tal citação pode ser representativa
das idéias da Psicologia Humanista de uma forma geral, sendo capaz de sintetizá-las:

"Se eu deixar de interferir nas pessoas,


elas se encarregarão de si mesmas,
Se eu deixar de comandar as pessoas,
elas se comportam por si mesmas,
Se eu deixar de pregar às pessoas,
elas se aperfeiçoam por si mesmas,
Se eu deixar de me impor às pessoas,
elas se tornam elas mesmas."

(Freedman, 1972, in Fadiman e Frager, 1986:225)

Fica claro, portanto, que o homem seria dotado das possibilidades de desenvolver, de se
realizar, tendendo naturalmente para o equilíbrio e a auto-organização e devendo
caminhar nesse sentido.

Se isto satisfaz as indagações individuais que as pessoas estão se colocando no período,


se representa uma saída para se encontrarem e se realizarem, por outro lado aponta
também para uma implicação importante em termos da constituição da sociedade e da
realidade da qual tais idéias estão emergindo. Figueiredo (1991) faz uma proposição
interessante, que talvez possa ser aplicada a este conjunto de conhecimentos que
representa a contribuição oferecida pela Psicologia Humanista e ao contexto em que ela está
se desenvolvendo:

“A natureza é sempre boa, é sempre positiva, é uma fonte inesgotável de criações


e prazeres; a sociedade pode não ser tão boa, mas nada impede que se torne, e
isto dependerá essencialmente da transformação do indivíduo, que nada mais é que a
sua autêntica realização, que a atualização infinita do potencial de vida que habita
cada sujeito. Tais concepções, naturalmente, legitimam o projeto de 'autocurtição'
e a auto-complacência, ao mesmo tempo que desautorizam qualquer projeto de
crítica racional e transformação da realidade." (Figueiredo, 1991:132)

Se as idéias da Psicologia Humanista se expandiram de maneira marcante para as


áreas organizacional, empresarial, educacional etc, elas deveriam estar, de alguma
forma, preenchendo as necessidades e ideais da época. Contudo, é interessante
mencionar que, segundo Schultz e Schultz (1994) e até mesmo para psicólogos
humanistas, a Psicologia Humanista não chegou a constituir uma escola de
pensamento. Ela teria sido, na realidade, uma grande experiência, mas sem conseguir
resultar em uma "escola de pensamento humanista em psicologia", ou em uma teoria
que pudesse ser reconhecida como filosofia da ciência.

Há uma série de razões apontadas como explicações para tal situação. Uma delas é o
fato de a maioria dos psicólogos humanistas trabalhar em clínicas particulares e não em
universidades, o que os levou a produzir um número de pesquisas bem inferior, assim
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como a formar muito menos alunos que seguissem sua tradição, do que o fizeram os
psicólogos acadêmicos, geralmente representantes de outras escolas. Outra explicação
pertinente é que os psicólogos humanistas estavam se opondo, na década de 1960, a
movimentos que já não dominavam em sua forma inicial e não tinham tanta
influência na Psicologia. A Psicanálise freudiana, como o Comportamentalismo
skinneriano, já estavam iniciando uma mudança na direção indicada pelos psicólogos
humanistas, na medida em que trabalhavam com as questões da interferência do sujeito
na construção de si e do conhecimento.

Precursores teóricos: Abraham Maslow e a psicologia da auto-atualização


"Eu penso no homem que se auto-atualiza não como um homem comum a quem
alguma coisa foi acrescentada, mas sim como o homem comum de quem nada foi
tirado. O homem comum é um ser humano completo com poderes e capacidades
amortecidos e inibidos." (Maslow, 1973, in Fadiman e Frager, 1986:262)

Abraham Maslow (1908-1970), considerado o pai espiritual da Psicologia Humanista, viveu em


Nova York num período em que esta cidade era um estimulante centro intelectual por
abrigar estudiosos europeus refugiados da perseguição nazista. Foi sobretudo durante a
Segunda Guerra Mundial que ele se deu conta da reduzida contribuição que a Psicologia
vinha fornecendo à solução de importantes problemas mundiais, quando procurou a
Psicologia Social e da Personalidade, dedicando-se a "descobrir uma psicologia para a
conferência da paz" (Hall, 1968, in Fadiman e Frager, 1986:260).

Assim, preocupou-se em desenvolver uma abordagem que pudesse ser usada como
instrumento de promoção de bem-estar psicológico e social. Considerou a questão do
crescimento e do desenvolvimento pessoais e, procurando compreender as mais elevadas
realizações que os seres humanos são capazes de alcançar, estudou uma amostra de
dezoito pessoas que considerava as mais saudáveis e criativas. O critério para a pessoa
participar da amostra desse seu estudo inicial consistia em não apresentar neuroses ou
outros problemas pessoais maiores e conseguir utilizar, da melhor forma possível, seus
talentos, capacidades e potencialidades. Faziam parte desta amostra figuras como Abraham
Lincoln, Thomas Jefferson, Albert Einstein, Jane Adams, William James, Baruch Spinoza e
outras pessoas que ele considerava saudáveis, criativas e altamente auto-atualizadas,
argumentando que seria mais exato generalizar a natureza humana a partir daqueles que
tivessem realizado melhor o potencial humano.

Desta forma, Maslow define a auto atualização, elemento central em sua teoria, como a
exploração plena de talentos, capacidades, potencialidades etc., levando a uma grande
realização. Auto-atualização significaria experienciar de modo pleno, intenso, fazendo de
cada escolha uma opção para o crescimento, realizando e concretizando o seu potencial, a
partir de uma sintonia com a própria natureza íntima e de um compromisso com os
próprios atos, a fim
de se reconhecer as defesas que impedem o processo de crescimento e de se trabalhar
para abandoná-las. Ela representa um compromisso com o crescimento e com o
desenvolvimento máximo das capacidades internas e individuais de cada pessoa.
Denominou as situações em que a auto-realização é alcançada como experiências
"cumbre", que são experiências de amor pleno, experiências religiosas, ou simplesmente
vivências cotidianas, pois o estado de auto-realização não é estático, de modo a não se
pressupor que uma pessoa que o alcance assim permanecerá – trata-se de estados que
podem ocorrer no dia-a-dia, voltando-se a um estado não auto-atualizado
posteriormente.

Segundo sua perspectiva, a sociedade e a cultura não são capazes de criar o ser
humano, apenas podem ajudá-lo a concretizar o que já existe em si, de forma que toda
pessoa possui, então, uma tendência inata para tornar-se auto-realizadora. O alcance
deste nível elevado da existência humana envolve justamente o desenvolvimento de
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suas qualidades e capacidades e a realização de seu potencial. Maslow definiu uma


hierarquia de necessidades que a pessoa deveria satisfazer para se tornar auto-
realizadora:

• necessidades fisiológicas (fome, sono, sede, sexo etc.);


• necessidades de segurança (estabilidade, ordem, proteção, libertação do medo e da
ansiedade etc.);
• necessidades de amor e pertinência (família, amizade);
• necessidades de estima dos outros e de si (auto-respeito, aprovação etc.);
• necessidades de auto-realização (desenvolvimento de capacidades).

Para ele, as neuroses e desajustamentos psicológicos seriam causados pela privação de


algumas destas necessidades básicas. Tais necessidades deveriam ser satisfeitas de
acordo com seu nível de preponderância. Satisfeitas as primeiras necessidades, vão
emergindo as mais superiores; e estas satisfeitas, emergem outras ainda mais "nobres".
Enquanto o indivíduo não estiver livre da dominação das necessidades inferiores, não
pode iniciar a busca da auto-atualização.

É importante frisar o fato de que a auto-realização só é possível através do Outro, pois é


este que provê e satisfaz as necessidades primárias da outra pessoa, possibilitando assim
que ela se auto-realize — como uma mãe que satisfaz a fome do bebê com alimento,
permitindo então que ele possa ter experiências cumbre, no caso, a de amor pleno. Dessa
forma, dizer que uma pessoa está auto-realizada não se refere ao fato de que esta não
possui necessidades, frustrações e sentimentos contraditórios, mas que em sua
experiência foi possível perceber a existência de uma totalidade maior do que a
coexistência de contrários.

Maslow (1989) faz uma distinção entre "motivação de deficiência" e "motivação do ser".
A primeira, na qual muitos psicólogos estão centrados, corresponderia a uma
necessidade de modificar uma situação que se mostra insatisfatória ou frustradora,
enquanto a segunda refere-se a uma motivação para o crescimento, a um desejo de
procurar uma meta considerada positiva. A partir desta idéia, ele distingue também
entre cognição S e D (Ser e Deficiência), valores S e D e amor S e D. Assim, apenas
indivíduos auto-realizados são capazes de conhecer, expressar um amor pleno sem
conceber o objeto a partir de suas necessidades satisfeitas ou insatisfeitas, pois se o
indivíduo estiver com alguma deficiência, ele conceberá o objeto a partir da função e
possibilidade de satisfazer-se, deformando este objeto.

Ele afirmou que considerava a Psicologia Humanista uma transição ou preparação para
uma "quarta força", a Psicologia Transpessoal, que iria além da identidade, do
humanismo, das necessidades e interesses humanos, estando mais centrada no cosmos.
Ela estaria preocupada com a investigação das capacidades e potencialidades
humanas máximas, incluindo o estudo da religião e da experiência religiosa. Na
verdade, pelo desenvolvimento de seu trabalho e de suas idéias, Maslow pode ser
considerado um pioneiro da psicologia do potencial humano.

Por fim, percebe-se que ele apontou para uma imagem essencialmente otimista do
homem, investigando as dimensões positivas da experiência humana. Suas
concepções de saúde psicológica e de realização são contrárias às muitas idéias e
aspectos doentios, hostis e preconceituosos que encontramos na vida cotidiana.
Segundo Schultz e Schultz (1994:397), "Muitas pessoas consideram tranqüilizador acreditar que
ao menos alguns de nós são capazes de alcançar um estado próximo da perfeição".

A teoria de Maslow foi muito aplicada nos negócios e na indústria, sustentando a crença
de que a necessidade de auto-realiza-ção é uma força motivadora e uma importante
fonte potencial de satisfação. No entanto, seu grau de validade científica é bastante
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baixo. Adquiriu mais força no mundo do trabalho, na educação, na medicina e nas


psicoterapias, apesar de Maslow se concentrar na escrita e na pesquisa muito mais
que no trabalho de terapia, por exemplo. Quanto a esta, considerava-a eficaz por
envolver um relacionamento íntimo e confiante com outro ser humano, representando
um modo de satisfazer as necessidades de amor e estima que foram frustradas,
geralmente em todos os que procuram ajuda psicológica. O terapeuta deveria ser capaz
de ajudar sem interferir, respeitando a individualidade de cada um e suas capacidades
particulares, cuidando da essência ou do ser daqueles com quem trabalha. Desta
forma, as relações humanas íntimas poderiam fornecer grande parte do mesmo apoio
encontrado na terapia. O método proposto centra-se em viabilizar que o indivíduo possa
realizar suas potencialidades internas e inatas, sendo, no entanto, o processo de auto-
realização impossível de descrição, pois é autodeterminado e justifica-se por si só.

Carl Rogers: a perspectiva centrada no cliente


"Começou a me ocorrer que a menos que eu tivesse necessidade de demonstrar
minha própria inteligência e aprendizagem, seria melhor confiar no cliente para a
direção do movimento no processo." (Rogers, 1967, in Fadiman e Frager, 1986:224)

Carl Rogers (1902-1987) desenvolveu sua teoria a partir principalmente de sua


experiência clínica. Não era seguidor de nenhuma escola específica. Desenvolveu
trabalhos se relacionando com psicólogos, psicanalistas, educadores, religiosos,
psiquiatras sociais, assistentes sociais, mas não destaca nenhum nome como sendo seu
antecessor. O seu trabalho questiona a autoridade do terapeuta e a suposta
neutralidade de consciência do cliente no processo terapêutico, na medida em que
sugere estar nele a grande força da relação; é ele quem dirige e conduz a terapia, como
é capaz de conduzir sua vida.

Defende que o comportamento humano é extremamente racional, capaz de evoluir no


sentido dos objetivos que seu organismo se esforça por atingir. Desta forma, nega a
concepção de um homem irracional, cujos impulsos, quando não controlados, levam à
destruição. A pessoa seria, para ele, responsável pelas mudanças que deveriam
acontecer em sua vida, sendo capaz de alterar consciente e racionalmente seus
pensamentos e comportamentos indesejáveis, de forma a torná-los desejáveis para si.

Como Maslow, Rogers defende que cada pessoa possui uma tendência inata para
atualizar as capacidades e potencialidades do eu, desenvolvendo uma teoria da
personalidade que se concentra numa única motivação avassaladora: a atualização do
eu. O impulso para a auto-atualização é inato, mas pode ser ajudado ou prejudicado por
experiências infantis e pela aprendizagem. A auto-atualização seria, então, o nível mais
alto da saúde psicológica, de forma que concebe as forças positivas em direção à saúde e
ao crescimento como inerentes ao organismo. Cada pessoa guarda em si um impulso
para ser competente, capaz, completa e auto-atualizada. O organismo tem uma
tendência geral para funcionar de maneira a se preservar e se valorizar.

Assim, pode-se dizer que, da mesma maneira que Maslow, Carl Rogers sustenta uma
visão bastante otimista e positiva da natureza humana, embora distingue-se dele em
dois pontos específicos: primeiro por desenvolver suas idéias a partir do trabalho com
indivíduos emocionalmente perturbados e não com indivíduos saudáveis; segundo, por
ter uma concepção um pouco diferente acerca das características das pessoas
psicologicamente saudáveis ou que alcançaram seu pleno funcionamento – elas "se
caracterizariam por uma abertura a toda experiência, uma tendência a viver plenamente cada
momento, a capacidade de serem guiadas pelos próprios instintos, e não pela razão ou pelas opiniões
dos outros, um sentido de liberdade de pensamento e de ação e um alto grau de criatividade."
(Schultz & Schultz, 1994:398)
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Esteve preocupado, acima de tudo, com a percepção, a tomada de consciência e a


experiência, uma vez que acreditava ser a personalidade moldada pelo presente e pela
maneira como o percebemos conscientemente. Concebe as pessoas como sendo
capazes de crescimento, mudança e desenvolvimento pessoal, de forma que este
crescimento pode ser muitas vezes impedido ou interrompido; por exemplo, na medida
em que os comportamentos e valores reais de um indivíduo distanciarem-se muito da
imagem do seu "self ideal" (características que ele gostaria de ter), eles podem se tornar
um obstáculo ao crescimento e desenvolvimento pessoais. Mas é importante ressaltar
que em sua concepção a personalidade que funciona plenamente é uma personalidade
em contínuo estado de fluxo, constantemente mutável, um processo.

Sua principal contribuição, no entanto, concentra-se na proposta de terapia


desenvolvida a partir destas concepções de homem: a terapia centrada no cliente. Na
verdade, pode-se dizer que é a sua teoria da personalidade que descende de seus
métodos e idéias sobre terapia. Segundo Rogers (1952, in Fadiman e Frager, 1986), o
indivíduo tem dentro de si a capacidade, ao menos latente, de compreender os fatores de
sua vida que lhe causam infelicidade e dor, e de reorganizar-se de forma a superar tais
fatores. Assim, coloca-se um peso maior sobre o impulso individual em direção ao
crescimento, à saúde e ao ajustamento. À terapia caberia libertar a pessoa para um
crescimento e desenvolvimento normais e o cliente seria alguém capaz de entender a
própria situação com uma mínima interferência do terapeuta. O indivíduo não é,
portanto, um organismo passivo a ser manipulado; ao contrário, é ele quem assume a
direção necessária: modifica as metas da terapia e inicia as mudanças
comportamentais que deseja que ocorram, sendo que as intervenções do terapeuta
seriam, em última instância, prejudiciais ao crescimento da pessoa. Ao terapeuta
caberia lutar por um relacionamento de aceitação e compreensão, sendo acima de tudo
autêntico, expressando-se verdadeiramente e, assim, preocupando-se com o
conhecimento dos próprios sentimentos, da forma como está vivenciando a situação.

Rogers é um grande valorizador dos relacionamentos. Eles seriam capazes de tornar


mais visível, para aqueles que se relacionam, sua personalidade, permitindo às
pessoas olharem para si próprias, conhecerem o outro e se autoconhecerem melhor.
Permitiriam, portanto, que os envolvidos funcionassem por inteiro, de forma plena. É
desta maneira que faz parte da contribuição rogeriana para a Psicologia as propostas de
trabalho com grupos. Todo o seu empenho com os grupos de encontro leva-nos a
destacá-lo como um defensor da capacidade terapêutica do grupo, que poderia
proporcionar um verdadeiro processo de encontro. O grupo é um espaço em que as
expressões emocionais vêm à tona e ficam sujeitas às reações dos outros componentes,
exigindo que a pessoa seja ela mesma e procure um encontro profundo e essencial
consigo mesma. Os grupos são, portanto, capazes de resultar em mudanças reais para os
membros que dele fazem parte.

O próprio Rogers afirmou que, embora não tivesse muito prestígio na Psicologia, suas
idéias foram muito bem aceitas e exerceram grande influência na educação, na
indústria, em dinâmica de grupo e trabalho social, na filosofia da ciência e em outros
campos. Há uma série de críticas direcionadas às concepções e propostas
desenvolvidas por ele, sobretudo no tocante ao papel secundário que destinava a
aspectos patológicos do ser humano, à sua ênfase na auto-atualização como uma
tendência inata ou mesmo aos critérios científicos de suas pesquisas. No entanto,
Rogers, assim como Maslow, não esteve muito preocupado com tais imposições;
apostava na utilidade geral de suas contribuições, na consideração que seu trabalho
adquiria dentro da Psicologia Clínica e pelas pessoas que liam cada vez mais suas
obras.

Ao conceber que a auto-atualização só é possível através de uma relação de


cumplicidade entre duas pessoas, assume que o conhecimento também o é, tendo
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caráter individual. Portanto, para o desenvolvimento de conhecimento a qualidade do


encontro entre as duas pessoas é fundamental, e para tal deve haver congruência,
empatia, consideração positiva, consideração incondicional e a percepção por parte do
outro das atitudes acima descritas. Como congruência, refere-se ao fato de ser
acessível a ambos os sujeitos da relação os sentimentos vivenciados, tornando-os
possível de serem comunicados. Por empatia entende-se a percepção do mundo e dos
sentimentos do outro como se fossem seus, sem jamais esquecer, porém, o fato de que
não são seus. A consideração positiva é a aceitação afetuosa e positiva do outro e seu
mundo. Como consideração incondicional entende-se o não julgamento do outro. O mais
fundamental, entretanto, é que este outro deve perceber conscientemente essas
considerações que permeiam a relação, pois somente esse sentimento de cumplicidade
poderá levá-lo à transformação e ao conhecimento.

Considerando que o próprio paciente deve decidir sobre sua vida e o rumo da terapia,
nota-se mais uma vez que Rogers conceitua o conhecimento como individual e que a
cumplicidade entre as pessoas apenas propicia que esse seja percebido. Não há assim
uma interferência do outro, ou um pressuposto daquilo que deve ser percebido ou
conceituado pelo paciente, pois somente cada indivíduo é capaz de perceber o seu modo
próprio e deve concebê-lo sozinho.

Assim como em Maslow, percebe-se então que o outro é o possibilitador de qualquer


forma de conhecimento e transformação, seja isso obtido através da cumplicidade ou
satisfação de suas necessidades básicas, porém é apenas o próprio sujeito que pode
perceber o processo e fazê-lo acontecer, caracterizando a possibilidade do conhecimento
como individual.

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