Psicologia Humanista
Psicologia Humanista
Psicologia Humanista
pouco a concepção de homem abalada pelas "crises" geradas nas rápidas reformulações
às quais a humanidade esteve exposta no decorrer da história, crises estas em que
ocorreu uma virada radical quanto à compreensão do que seria o ser humano. À
descoberta de Copérnico, no início do século XVI, de que a Terra não era o centro do
universo, mas um simples ponto em sua imensidão; a teoria da evolução das espécies
de Charles Darwin, que data do século XIX, baseada no mecanismo de seleção natural; e,
finalmente, a "descoberta" do inconsciente por Sigmund Freud, no início do século XX,
acarretando a idéia de que o homem não é tão "dono de si" ou "poderoso", devendo
reconhecer que muito de si está além de seu próprio controle, são idéias que
convergem para refutar o pensamento desenvolvido em meados do século XVI, com o
advento da Idade Moderna.
A psicóloga humanista americana Charlotte Buhler (in Greening, 1975) afirma ter
sido esta situação de constante tensão econômica, social e política vivida pelos povos de
todo o mundo e, em particular, pelos americanos a responsável pelo surgimento de um
estado de espírito novo, comparado com o tempo em que tudo o que as pessoas
buscavam era a "diversão". Diz existir na época uma introversão antes desconhecida,
um desespero absurdo. Psicólogos deste período, como Karen Horney (1885-1952) e Eric
Fromm (1900-1980), questionavam a possibilidade de confiar nessa sociedade que
constrói bombas atômicas para aniquilar populações. Dessa forma, esse momento
propiciava aos jovens duvidarem dos valores e da moralidade tradicional. As descobertas
científicas também propiciaram o surgimento de dúvidas a respeito de dogmas e
pregações da Igreja, como a existência de Deus.
No início dos anos 60, no governo Kennedy, os Estados Unidos apresentavam-se em grande
ascensão econômica devido às transformações sociais pós-guerra. Gomes (in Aquino,
1986) afirma que o advento da Psicologia Humanista não pode ser dissociado deste quadro
de desenvolvimento, uma vez que foi este o responsável pelo surgimento de valores tais
como independência, hedonismo, dissidência, tolerância, permissividade, auto-expressão,
que cada vez mais reforçavam o clima de preocupação com o individual, em que o sujeito
3
Estas questões, juntamente com a grande difusão da ideologia liberal, a qual pregava
serem todos os indivíduos iguais, mas absolutamente livres para defenderem seus
interesses particulares sem limitações, permeiam a vida das pessoas e sugerem um
campo de reflexão sobre o individual, que responda às angústias sobre a morte e a
massificação, as quais parecem "inundar" o mundo, sobre liberdade e possibilidade
existentes dentro de cada sujeito para ser e poder vencer o opressor e até tornar-se um
deles. É famosa a expressão "sovnho americano", sobre vencer e ser alguém na vida, ou
seja, retomar essa possibilidade que parece obscura e possuir liber dade para mudar de
lado, nessa constante luta de poder existente nas relações sociais.
A Psicologia Humanista surge então como uma forma de responder a esses anseios da
sociedade, com concepções que garantem a possibilidade de transformação que
dependa apenas da vontade individual, como uma forma de as pessoas conceberem-se
como "EUS" e não apenas como mais uns, como diferentes, devendo assim ser tratadas.
Uma resposta à "alienação de si próprio" que a situação pregava, contendo até a
possibilidade de uma "alienação do outro", na qual o indivíduo de tão singular acaba
por esquecer-se como constituinte de um todo maior do qual faz parte e que também o
determina, ou seja, não percebendo que sua vontade de transformação é a arma para
esta, mas que, como sabiamente nos diz o ditado popular, "não se ganha uma batalha
sozinho". Ela retoma, resgata a individualidade, a subjetividade, as emoções próprias
e particulares de cada ser humano.
Esse momento histórico, assim, propicia a erupção de novas perspectivas nas mais
diversas áreas do conhecimento, perspectivas estas que rompiam com a concepção
dominante e, no campo da Psicologia, permitiam uma nova teoria, constituindo-se a
partir da Filosofia, antes rejeitada como ciência. A Psicologia, que adotou o modelo das
ciências naturais como única forma de constituir-se como ciência independente,
agora proclama ser tal método reducionista e insuficiente.
Bases Epistemológicas
A Psicologia Humanista é caracterizada por possuir ramificações, tendo cada uma delas
diferentes maneiras de analisar seu objeto de estudo. Giovanetti (in Greening, 1975)
divide a Psicologia Humanista em duas grandes escolas: 1) a escola americana,
originária do Humanismo individual, onde encontram-se a Psicoterapia Humanista-
Existencial, embasada em Kierkegaard, tendo como principal representante Carl
Rogers e a Psicoterapia Fenomenológico-Existencial, com Rollo May como o principal
representante; e 2) a escola européia, berço das principais idéias fenomenológicas e
existenciais, encontrando-se aí também a Psicoterapia Fenomenológica Existencial
caracterizada pela Daseinsanalyse de Biswanger e a Análise Existencial de Medard Boss,
além das Psicoterapias Antropológicas e da Psicoterapia Antropológico-Fenomenológica.
Ou seja, parece haver uma ligação entre as Psicologias Humanistas e a Fenomenológica.
Giovanetti (in Greening, 1975) afirma que a diferença entre as várias abordagens está em
que cada uma delas destacará aspectos diferentes ao descrever as características
4
Esta concepção não pode ser entendida descolada da idéia de consciência intencional,
segundo a qual a relação sujeito-objeto refere-se a uma relação na qual o sujeito
constitui o objeto, sendo a consciência sempre consciência de alguma coisa e o objeto
sempre um objeto para uma consciência. É isto que se denomina Intencionalidade e
essa concepção tem como seu principal representante Franz Brentano (1838-1917). Para
este autor, "em qualquer fenômeno caracteristicamente humano deve se incluir a presença da
mente, (...) sendo tais pressupostos mentais irredutíveis e caracterizados pela intencionalidade, ou
seja, o psíquico é caracterizado pela diretividade em relação a um objeto ou referência a um conteúdo"
(Spugelberg, in Giorgi, 1978:41). Brentano irá enfatizar a questão da intencionalidade do
ato humano, que a experimentação teria dificuldade de apreender. "O ato de perceber
implica necessariamente a presença do objeto percebido e o ato de pensar supõe o objeto pensável"
(Penna, 1997:28).
Assim, de uma forma geral, pode-se dizer que a concepção fenomenológica implica em
limitar todo o conhecimento ao sujeito e suas significações, pois o que ele vê, percebe e
significa, a sua relação com o objeto não pressupõe uma existência independente deste
em relação ao sujeito que o percebe, mas, ao contrário, é como se o objeto existisse a
partir da maneira que o sujeito o percebe. O método fenomenológico, a redução
fenomenológica, assim, não pressupõe um conceito do que é verdadeiro ou falso ou
uma teoria e consenso válido para todos os indivíduos. Tal contribuição mostra-se de
extrema relevância para uma posterior caracterização do método humanista, já que
alguns de seus representantes estudados (Maslow e Rogers) possuem propostas
condizentes com esta concepção.
A segunda revolução foi a Psicanálise, a qual teve seus estudos pioneiros realizados por
Sigmund Freud (1856-1939). A Psicanálise descende também das ciências naturais: seu
fundador partiu de uma formação médica e preocupou-se em permanecer fiel aos
conceitos básicos da física clássica enquanto procurava descrever os fenômenos
psicológicos. O ponto de vista topográfico que baseou a proposição da divisão do
aparelho psíquico em três estruturas básicas (id, ego e superego), assim como os demais
pontos de vista que norteiam sua teoria — dinâmico, econômico e genético —,
7
A seguinte citação foi utilizada por Rogers (1902-1987) para definir sua posição em relação
ao ser humano e à construção de sua subjetividade. Tal citação pode ser representativa
das idéias da Psicologia Humanista de uma forma geral, sendo capaz de sintetizá-las:
Fica claro, portanto, que o homem seria dotado das possibilidades de desenvolver, de se
realizar, tendendo naturalmente para o equilíbrio e a auto-organização e devendo
caminhar nesse sentido.
Há uma série de razões apontadas como explicações para tal situação. Uma delas é o
fato de a maioria dos psicólogos humanistas trabalhar em clínicas particulares e não em
universidades, o que os levou a produzir um número de pesquisas bem inferior, assim
9
como a formar muito menos alunos que seguissem sua tradição, do que o fizeram os
psicólogos acadêmicos, geralmente representantes de outras escolas. Outra explicação
pertinente é que os psicólogos humanistas estavam se opondo, na década de 1960, a
movimentos que já não dominavam em sua forma inicial e não tinham tanta
influência na Psicologia. A Psicanálise freudiana, como o Comportamentalismo
skinneriano, já estavam iniciando uma mudança na direção indicada pelos psicólogos
humanistas, na medida em que trabalhavam com as questões da interferência do sujeito
na construção de si e do conhecimento.
Assim, preocupou-se em desenvolver uma abordagem que pudesse ser usada como
instrumento de promoção de bem-estar psicológico e social. Considerou a questão do
crescimento e do desenvolvimento pessoais e, procurando compreender as mais elevadas
realizações que os seres humanos são capazes de alcançar, estudou uma amostra de
dezoito pessoas que considerava as mais saudáveis e criativas. O critério para a pessoa
participar da amostra desse seu estudo inicial consistia em não apresentar neuroses ou
outros problemas pessoais maiores e conseguir utilizar, da melhor forma possível, seus
talentos, capacidades e potencialidades. Faziam parte desta amostra figuras como Abraham
Lincoln, Thomas Jefferson, Albert Einstein, Jane Adams, William James, Baruch Spinoza e
outras pessoas que ele considerava saudáveis, criativas e altamente auto-atualizadas,
argumentando que seria mais exato generalizar a natureza humana a partir daqueles que
tivessem realizado melhor o potencial humano.
Desta forma, Maslow define a auto atualização, elemento central em sua teoria, como a
exploração plena de talentos, capacidades, potencialidades etc., levando a uma grande
realização. Auto-atualização significaria experienciar de modo pleno, intenso, fazendo de
cada escolha uma opção para o crescimento, realizando e concretizando o seu potencial, a
partir de uma sintonia com a própria natureza íntima e de um compromisso com os
próprios atos, a fim
de se reconhecer as defesas que impedem o processo de crescimento e de se trabalhar
para abandoná-las. Ela representa um compromisso com o crescimento e com o
desenvolvimento máximo das capacidades internas e individuais de cada pessoa.
Denominou as situações em que a auto-realização é alcançada como experiências
"cumbre", que são experiências de amor pleno, experiências religiosas, ou simplesmente
vivências cotidianas, pois o estado de auto-realização não é estático, de modo a não se
pressupor que uma pessoa que o alcance assim permanecerá – trata-se de estados que
podem ocorrer no dia-a-dia, voltando-se a um estado não auto-atualizado
posteriormente.
Segundo sua perspectiva, a sociedade e a cultura não são capazes de criar o ser
humano, apenas podem ajudá-lo a concretizar o que já existe em si, de forma que toda
pessoa possui, então, uma tendência inata para tornar-se auto-realizadora. O alcance
deste nível elevado da existência humana envolve justamente o desenvolvimento de
10
Maslow (1989) faz uma distinção entre "motivação de deficiência" e "motivação do ser".
A primeira, na qual muitos psicólogos estão centrados, corresponderia a uma
necessidade de modificar uma situação que se mostra insatisfatória ou frustradora,
enquanto a segunda refere-se a uma motivação para o crescimento, a um desejo de
procurar uma meta considerada positiva. A partir desta idéia, ele distingue também
entre cognição S e D (Ser e Deficiência), valores S e D e amor S e D. Assim, apenas
indivíduos auto-realizados são capazes de conhecer, expressar um amor pleno sem
conceber o objeto a partir de suas necessidades satisfeitas ou insatisfeitas, pois se o
indivíduo estiver com alguma deficiência, ele conceberá o objeto a partir da função e
possibilidade de satisfazer-se, deformando este objeto.
Ele afirmou que considerava a Psicologia Humanista uma transição ou preparação para
uma "quarta força", a Psicologia Transpessoal, que iria além da identidade, do
humanismo, das necessidades e interesses humanos, estando mais centrada no cosmos.
Ela estaria preocupada com a investigação das capacidades e potencialidades
humanas máximas, incluindo o estudo da religião e da experiência religiosa. Na
verdade, pelo desenvolvimento de seu trabalho e de suas idéias, Maslow pode ser
considerado um pioneiro da psicologia do potencial humano.
Por fim, percebe-se que ele apontou para uma imagem essencialmente otimista do
homem, investigando as dimensões positivas da experiência humana. Suas
concepções de saúde psicológica e de realização são contrárias às muitas idéias e
aspectos doentios, hostis e preconceituosos que encontramos na vida cotidiana.
Segundo Schultz e Schultz (1994:397), "Muitas pessoas consideram tranqüilizador acreditar que
ao menos alguns de nós são capazes de alcançar um estado próximo da perfeição".
A teoria de Maslow foi muito aplicada nos negócios e na indústria, sustentando a crença
de que a necessidade de auto-realiza-ção é uma força motivadora e uma importante
fonte potencial de satisfação. No entanto, seu grau de validade científica é bastante
11
Como Maslow, Rogers defende que cada pessoa possui uma tendência inata para
atualizar as capacidades e potencialidades do eu, desenvolvendo uma teoria da
personalidade que se concentra numa única motivação avassaladora: a atualização do
eu. O impulso para a auto-atualização é inato, mas pode ser ajudado ou prejudicado por
experiências infantis e pela aprendizagem. A auto-atualização seria, então, o nível mais
alto da saúde psicológica, de forma que concebe as forças positivas em direção à saúde e
ao crescimento como inerentes ao organismo. Cada pessoa guarda em si um impulso
para ser competente, capaz, completa e auto-atualizada. O organismo tem uma
tendência geral para funcionar de maneira a se preservar e se valorizar.
Assim, pode-se dizer que, da mesma maneira que Maslow, Carl Rogers sustenta uma
visão bastante otimista e positiva da natureza humana, embora distingue-se dele em
dois pontos específicos: primeiro por desenvolver suas idéias a partir do trabalho com
indivíduos emocionalmente perturbados e não com indivíduos saudáveis; segundo, por
ter uma concepção um pouco diferente acerca das características das pessoas
psicologicamente saudáveis ou que alcançaram seu pleno funcionamento – elas "se
caracterizariam por uma abertura a toda experiência, uma tendência a viver plenamente cada
momento, a capacidade de serem guiadas pelos próprios instintos, e não pela razão ou pelas opiniões
dos outros, um sentido de liberdade de pensamento e de ação e um alto grau de criatividade."
(Schultz & Schultz, 1994:398)
12
O próprio Rogers afirmou que, embora não tivesse muito prestígio na Psicologia, suas
idéias foram muito bem aceitas e exerceram grande influência na educação, na
indústria, em dinâmica de grupo e trabalho social, na filosofia da ciência e em outros
campos. Há uma série de críticas direcionadas às concepções e propostas
desenvolvidas por ele, sobretudo no tocante ao papel secundário que destinava a
aspectos patológicos do ser humano, à sua ênfase na auto-atualização como uma
tendência inata ou mesmo aos critérios científicos de suas pesquisas. No entanto,
Rogers, assim como Maslow, não esteve muito preocupado com tais imposições;
apostava na utilidade geral de suas contribuições, na consideração que seu trabalho
adquiria dentro da Psicologia Clínica e pelas pessoas que liam cada vez mais suas
obras.
Considerando que o próprio paciente deve decidir sobre sua vida e o rumo da terapia,
nota-se mais uma vez que Rogers conceitua o conhecimento como individual e que a
cumplicidade entre as pessoas apenas propicia que esse seja percebido. Não há assim
uma interferência do outro, ou um pressuposto daquilo que deve ser percebido ou
conceituado pelo paciente, pois somente cada indivíduo é capaz de perceber o seu modo
próprio e deve concebê-lo sozinho.
Referências Bibliográficas
AQUINO, Ronaldo & André. Fazendo a história: a Europa e as Américas nos séculos XIX e
XX. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1986.
BERGSON, H. A evolução criadora. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.
CAPRA, F. O ponto de mutação. São Paulo: Cultrix, 1994.
FADIMAN, F. e FRAGER, R. Teorias da personalidade. São Paulo: Harbra, 1986.
FIGUEIREDO, L. C. M. Matrizes ao pensamento psicológico. Petrópolis: Vozes, 1991.
GIORGI, A. A psicologia como ciência humana — uma abordagem fenomenológica. Belo
Horizonte: Interlivros, 1978.
GREENING, T. C. Psicologia existencial humanista. Rio de Janeiro: Zahar, 1975.
MASLOW, A. El Hombre Autorrealizado. Argentina: Kairós, 1989.
PENNA, A. G. História das ideias psicológicas. Rio de Janeiro: Imago, 1991.
______. Repensando a psicologia. Rio de Janeiro: Imago, 1997.
SCHULTZ, D. P. & SCHULTZ, S. E. História da psicologia moderna. São Paulo: Cultrix, 1994.
ZIZIEMSKY, D. Métodos de Investigación en Psicologia y Psicopatología. Buenos Aires:
Ediciones Nueva Vision, 1971.
Bibliografia Consultada
ARIES, P. & DUBY, G. História da vida privada — da Primeira Guerra aos nossos dias.
São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
FIGUEIREDO, L. C. M. Psicologia: uma introdução. São Paulo: Educ, 1992.
MARTINS, J. & BICUDO, M. A. V. A pesquisa qualitativa em psicologia — fundamentos e
recursos básicos. São Paulo: Moraes/Educ, 1989.
BÉRGSON, Henri. Cartas, conferências e outros escritos. A filosofia do não. O novo espírito
científico. A poética do espaço. São Paulo: Nova Cultural, 1974. (Coleção Os Pensadores)
ROGERS, C. R. Tornar-se pessoa. São Paulo: Martins Fontes, 1982.
ROGERS, C. R. & STEVENS, B. et alii. De pessoa para pessoa — o problema do ser humano.
São Paulo: Novos Umbrais, 1977.