Fetichismo - SIGMUND FREUD

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 6

O FETICHISMO

(1927)
TÍTULO ORIGINAL: “FETISCHISMUS”.
PUBLICADO SIMULTANEAMENTE EM ALMANACH
1928, pp. 17-24 E INTERNATIONALE
ZEITSCHRIFT FÜR PSYCHOANALYSE [REVISTA
INTERNACIONAL DE PSICANÁLISE], V. 13,
N. 4, PP. 373-8. TRADUZIDO DE GESAMMELTE
WERKE XIV, PP. 311-7. TAMBÉM SE ACHA
EM STUDIENAUSGABE III, PP. 379-88.
ESTA TRADUÇÃO FOI PUBLICADA ORIGINALMENTE
EM JORNAL DE PSICANÁLISE, SOCIEDADE
BRASILEIRA DE PSICANÁLISE DE SÃO PAULO,
V. 30, N. 55/56, 1997, PP. 365-70.
ALGUMAS NOTAS DO TRADUTOR FORAM OMITIDAS
OU MODIFICADAS NA PRESENTE EDIÇÃO.
Nos últimos anos tive oportunidade de estudar analiticamente vários homens
cuja escolha de objeto era dominada por um fetiche. Não se suponha que essas
pessoas tenham recorrido à análise por causa do fetiche, pois ele é
reconhecido como anormalidade por seus adeptos, mas raramente percebido
como sintoma de doença; em geral parecem bem satisfeitos com ele, e chegam
a louvar as facilidades que traz à sua vida amorosa. Logo, o fetiche apareceu
geralmente como uma descoberta secundária.
Por razões evidentes os detalhes desses casos não devem ser publicados.
Por isso não posso mostrar de que maneira circunstâncias ocasionais
contribuíram para a escolha do fetiche. O caso mais curioso foi o de um jovem
que tinha elevado certo “brilho no nariz” [Glanz auf der Nase] à condição de
fetiche. A explicação surpreendente para isso era que o paciente havia sido
criado na Inglaterra, mudando-se depois para a Alemanha, onde esqueceu
quase completamente sua língua materna. O fetiche, originário de sua infância
mais recuada, devia ser lido em inglês, não em alemão; o “brilho no nariz” era
na verdade um “olhar para o nariz” (glance = olhar), o nariz era então o
fetiche, ao qual ele emprestava esse brilho peculiar que os outros não viam.
A resposta que a psicanálise deu sobre o sentido e propósito do fetiche foi a
mesma em todos os casos. E revelou-se de modo tão desimpedido, parecendo-
me tão categórica, que não me surpreenderei se deparar com a mesma solução
em todos os casos de fetichismo. Se eu afirmar agora que o fetiche é um
substituto para o pênis, certamente causarei decepção. Apresso-me então a
acrescentar que não é o substituto de um pênis qualquer, mas de um especial,
bem determinado, que nos primeiros anos infantis tem grande importância,
porém é perdido depois. Isto é: normalmente seria abandonado, mas o fetiche
se destina exatamente a preservá-lo. Colocando isso de maneira mais clara, o
fetiche é o substituto para o falo da mulher (da mãe), no qual o menino
acreditou e ao qual — sabemos por quê — não deseja renunciar.1
Sucedeu, então, que o menino se recusou a tomar conhecimento de um dado
de sua percepção, o de que a mulher não possui pênis. Não, isso não pode ser
verdade, pois se a mulher é castrada, o seu próprio pênis corre perigo, e
contra isto se rebela a porção de narcisismo de que a natureza, por cautela,
dotou precisamente esse órgão. Um pânico semelhante talvez experimente
depois o adulto, quando se ouve o grito de que o Trono e o Altar estão
ameaçados, pânico esse que trará consequências igualmente ilógicas. Se não
me engano, Laforgue diria nesse caso que o menino “escotomizou” a
percepção da falta de pênis na mulher.2 Um termo novo se justifica quando
descreve ou ressalta um fato novo. Este não é o caso; a mais antiga palavra de
nossa terminologia psicanalítica, “repressão” [Verdrängung], já se refere a
esse processo patológico. Querendo-se diferenciar mais firmemente o destino
da ideia daquele do afeto, reservando o termo “repressão” para o afeto, a
designação alemã correta para o destino da ideia seria Verleugnung [recusa,
repúdio].a “Escotomização” me parece particularmente inadequado, por dar a
entender que a percepção foi simplesmente apagada, tal como ocorreria se
uma impressão visual caísse no ponto cego da retina. A situação que
consideramos mostra, pelo contrário, que a percepção permaneceu e que uma
ação bastante enérgica foi realizada para sustentar a recusa. Não é certo dizer
que a criança, depois de fazer sua observação da mulher, manteve intacta a
crença de que ela tem um falo. Conservou esta crença, mas também a
abandonou; no conflito entre o peso da percepção indesejada e a força do
desejo contrário chegou a um compromisso, o que é possível apenas sob a
direção das leis do pensamento inconsciente — dos processos primários. Sim,
na psique a mulher continua a ter um pênis, mas este pênis já não é o mesmo de
antes. Outra coisa ocupou seu lugar, foi como que nomeada seu substituto e
veio a herdar o interesse que antes se dirigia a ele. Mas tal interesse
experimenta ainda um extraordinário acréscimo, porque o horror à castração
ergue para si um monumento, ao criar esse substituto. Também uma aversão
frente ao genital feminino real, jamais ausente num fetichista, permanece como
stigma indelebile da repressão ocorrida. Agora vemos o que o fetiche faz e de
que modo é mantido. Ele subsiste como signo de triunfo sobre a ameaça de
castração e como proteção contra ela; ele permite também que o fetichista não
se torne um homossexual, ao emprestar à mulher a característica que a torna
aceitável como objeto sexual. Em sua vida posterior, o fetichista acredita
desfrutar ainda de outra vantagem do seu substituto para o genital. A
significação do fetiche não é reconhecida pelos outros, portanto ele não lhe é
negado, é facilmente acessível, a satisfação sexual a ele relacionada pode ser
comodamente obtida. O fetichista não tem dificuldade em conseguir o que
outros homens têm de solicitar e buscar com empenho.
Provavelmente nenhum ser masculino é poupado do pavor da castração ao
avistar os genitais femininos. Por que alguns se tornam homossexuais em
consequência desta impressão, outros a rechaçam pela criação de um fetiche e
a grande maioria chega a superá-la, é algo que não conseguimos explicar. É
possível que ainda não conheçamos, entre os fatores que agem
simultaneamente, aqueles decisivos nos raros desenlaces patológicos; de resto
devemos nos dar por satisfeitos se podemos explicar o que aconteceu,
deixando provisoriamente de lado a tarefa de explicar por que algo não
aconteceu.
Pode-se esperar que, como substitutos do falo cuja falta se sente na mulher,
sejam escolhidos os órgãos ou objetos que em outros casos também
simbolizam o pênis. Isso pode ocorrer com frequência, mas certamente não é
determinante. A instauração de um fetiche parece antes obedecer a um
processo que lembra a detenção da memória na amnésia traumática. De modo
semelhante, o interesse como que se detém no caminho, a última impressão
antes do que foi traumático, inquietante, seria conservada como fetiche. Assim,
o pé ou o sapato deve sua preferência como fetiche — ou parte dela — à
circunstância de que a curiosidade do menino olhou a partir de baixo, a partir
das pernas, para o órgão genital da mulher; veludos e peles — como há muito
se presumia — fixam a visão dos pelos púbicos, à qual seguiria a ansiada
visão do membro feminino; as peças íntimas de roupa, tão frequentemente
tomadas como fetiche, retêm o instante do desnudamento, no qual ainda se
podia imaginar a mulher como fálica. Não pretendo afirmar, no entanto, que
toda vez se possa discernir com segurança a determinação do fetiche. A
investigação do fetichismo é recomendada a todos que ainda duvidam da
existência do complexo da castração ou acreditam que o pavor ao genital
feminino tenha outro motivo, que derive, por exemplo, da suposta lembrança
do trauma do nascimento. Para mim o esclarecimento do fetiche teve ainda
outro interesse teórico.
Recentemente descobri, por via especulativa apenas, que a diferença
essencial entre neurose e psicose está em que na primeira o Eu, a serviço da
realidade, suprimeb uma parte do Id, enquanto na psicose ele é levado a
desprender-se de uma parte da realidade pelo Id. Depois abordei mais uma
vez o tema.3 Mas logo tive ocasião de lamentar que tivesse me adiantado tanto.
A análise de dois jovens me revelou que ambos haviam se negado a
reconhecer, haviam “escotomizado” a morte do pai querido, quando tinham
dois e dez anos de idade — e no entanto nenhum deles desenvolvera uma
psicose. Uma significativa porção da realidade fora repudiada pelo Eu, tal
como, no fetichista, o desagradável fato da castração da mulher. Comecei
também a suspeitar que ocorrências desse tipo não são raras na vida infantil, e
me considerei culpado de um erro na caracterização da neurose e da psicose.
É certo que restava uma saída; minha fórmula precisava ser válida apenas num
grau mais elevado de diferenciação do aparelho psíquico; à criança talvez
fosse permitido o que traria sérios danos para o adulto. Mas novas pesquisas
conduziram a outra solução da contradição.
Verificou-se, de fato, que os dois jovens haviam “escotomizado” a morte do
pai tanto quanto os fetichistas a castração da mulher. Apenas uma corrente de
sua vida psíquica não reconhecera a morte do pai; havia também uma outra,
que tinha plenamente em conta esse fato; a atitude conforme ao desejo e a
atitude conforme à realidade existiam lado a lado. Em um dos dois casos, esta
cisão constituía a base de uma neurose obsessiva medianamente severa; em
todas as situações da vida ele oscilava entre dois pressupostos: o de que seu
pai ainda vivia e estorvava suas ações, e o contrário, de que ele tinha o direito
de ver-se como sucessor do pai falecido. Posso então conservar a expectativa
de que na psicose uma dessas correntes, aquela conforme à realidade, estaria
mesmo ausente.
Retornando à descrição do fetichismo, devo acrescentar que há outras
provas ainda, numerosas e de peso, para a atitude dividida dos fetichistas ante
a castração feminina. Em casos bem refinados, o próprio fetiche acolheu, na
sua construção, tanto a recusa como a afirmação da castração. Assim ocorreu
com um homem cujo fetiche era um suporte atlético que podia ser usado
também como calção de banho. Essa peça de roupa cobria totalmente os
genitais, e portanto a diferença entre eles. Como demonstrou a análise, isto
significava que a mulher era castrada e também que não era, e além disso
permitia supor a castração do homem, pois todas essas possibilidades podiam
se esconder atrás do suporte, cujo precursor tinha sido a folha de parreira de
uma estátua vista na infância. Um tal fetiche, duplamente sustentado por
opostos, é sem dúvida particularmente sólido. Em outros a divisão se mostra
no que o fetichista faz com o seu fetiche — na realidade ou em fantasia. Não
basta sublinhar que ele venera o fetiche; em muitos casos ele o trata de um
modo que claramente equivale a uma representação da castração. Isso ocorre
especialmente quando se desenvolveu uma forte identificação com o pai e ele
faz o papel do pai, pois a este o menino atribuíra a castração da mulher. A
ternura e a hostilidade no tratamento do fetiche, que correspondem à recusa e
ao reconhecimento da castração, misturam-se desigualmente em casos
diversos, de maneira que ora uma, ora outra é mais facilmente reconhecível.
Dessa perspectiva acreditamos entender, ainda que à distância, o
comportamento do “cortador de tranças”,c no qual a necessidade de efetuar a
castração negada colocou-se em primeiro plano. Seu ato reúne em si as duas
afirmações incompatíveis: a mulher manteve o pênis e o pai castrou a mulher.
Outra variante, também um paralelo etnopsicológico para o fetichismo, pode
ser vista no costume chinês de primeiramente mutilar o pé da mulher e depois
venerá-lo como um fetiche. É como se o homem chinês quisesse agradecer à
mulher por se haver submetido à castração.
Por fim, pode-se dizer que o modelo normal do fetiche é o pênis do homem,
assim como o do órgão inferior é o pequeno pênis da mulher, o clitóris.d

1 Em Uma recordação de infância de Leonardo da Vinci (1910), fiz essa interpretação sem
fundamentá-la.
2 Corrijo a mim mesmo, porém, afirmando que tenho boas razões para pensar que Laforgue não diria isso.
Segundo suas próprias observações, “escotomização” é um termo que se origina da descrição da
dementia praecox, que não surgiu do emprego de concepções psicanalíticas nas psicoses e não pode ser
aplicado aos processos de desenvolvimento e à formação de neuroses. A exposição se empenha em tornar
clara essa incompatibilidade.
a Nas versões estrangeiras consultadas há as seguintes equivalências para Verleugnung: renegación o
repudiación, desmentida, rinnegamento, déni, disavowal (além daquelas normalmente utilizadas,
dispusemos de uma antiga versão francesa realizada por Jean Laplanche e outros, num volume intitulado:
La Vie sexuelle, Paris: PUF, 1969). Ver nota sobre o termo na tradução do ensaio “A organização genital
infantil” (1923), no v. 16 destas Obras completas, p. 173.
b No original, unterdrückt; nas versões consultadas: somete, sofoca, reprime, réprime, suppresses. Ver
nota sobre unterdrücken e verdrängen (“reprimir”) no v. 10 destas Obras completas, p. 88.
3 “Neurose e psicose” (1924) e “A perda da realidade na neurose e na psicose” (1924).
c Cf. Uma recordação de infância de Leonardo da Vinci (1910), cap. III.
d Alusão ao conceito de “inferioridade de órgão”, de Alfred Adler; cf. Novas conferências introdutórias
à psicanálise (1933), no 31.

Você também pode gostar