Bará - Alan Alves Brito
Bará - Alan Alves Brito
Bará - Alan Alves Brito
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6 Primeiro Momento 8 7
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8 Região Central
Período Colonial 3
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Adaptado de Daniele Machado Vieira, 2017. Páginas 160 e 161. Adaptado de Cláudia Luisa Zeferino Pires e Lara Machado Bitencourt.
Atlas da Presença Quilombola em Porto Alegre, 2021.
Texto por Alan Alves Brito
Ilustrações de Brenda Klein
CORPOS-TERRITÓRIOS EM R(EXISTÊNCIA)
Pragmatha
São Paulo
2022
Projeto Zumbi-Dandara dos Palmares
Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros,
Indígenas e Africanos - PROREXT/UFRGS
ISBN 978-65-86926-74-3
1.Contos brasileiros. 2.Literatura brasileira – Rio Grande
do Sul. 3.Exu (Orixá). 4.Orixás. 5.Cultura afro-brasileira.
I.Klein, Brenda. II.Título.
CDU 869.0(81)-34
869.0(816.5)-34
299.6
Catalogação na publicação:
Bibliotecária Carla Maria Goulart de Moraes – CRB 10/1252
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- Quero falar com o senhor
Custódio Joaquim de Almeida.
- Joaquim quem?
- Custódio Joaquim de Almeida.
O Osuanlele Okizi Erupê. O
Príncipe de Ajudá.
- Do que você está falando?
Onde você pensa que está, gu-
ria? Estamos no meio da rua.
- E Oliveira Silveira? Você o
conhece?
- Minha filha, pelo amor de
Deus, em que mundo você anda?
Bahhhh! Que coisa! Quanto mais
eu rezo, mais assombração apa-
rece.
Sem ser ouvida, Bará teve náuseas.
Enjoada de fome, vomitou o vácuo que
levava no estômago. Desvaneceu-se ali
mesmo na encruzilhada, como se despa-
cho fosse. Passantes, em suas pressas
cotidianas, acelerados pelo tic-tac da
modernidade, caminhavam indiferentes
próximos ao corpo raquítico e desnudo
arriado na calçada, ao lado de um saco
de lixo encostado ao poste. Uma senho-
ra requintada, em sua caminhada corri-
queira do meio-dia, puxava com força a
coleira de sua cadela, tão fina quanto
a dona, antes que esta ousasse cheirar
aquele corpo sujo jogado à sorte.
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O Sol já estava a pino. Por-
to Alegre, 40 graus. Bará,
cambaleante e bêbada pelas
desilusões da vida, encon-
tra forças para sozinha se
levantar e caminhar solitá-
ria em direção ao Largo da
Forca, na Praça Brigadeiro
Sampaio.
Concorrendo com os pombos, desfalece o cor-
po fraco num banco público da praça e, sem
vontade de abrir os olhos, sente apenas a
luz do Sol arder a sua pele preta enquanto
o céu azul anil de Porto Alegre lhe prome-
tia dias melhores. Após algumas horas ali
esquecida, levanta-se. Pede pão e café com
leite na padaria da esquina.
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E assim o fez. Caminhou em direção ao Pelourinho,
na Igreja Nossa Senhora das Dores. Subiu as es-
cadas íngremes contando os degraus um por um,
numa obsessão que lhe era peculiar e, lá de
cima, olhando para as águas amareladas pelo tem-
po do Lago Guaíba, imaginou-se a noiva mais im-
ponente da cidade. Enxergou os seus convidados
e se projetou ouvindo a “Ave Maria” de Schubert,
naquela cidade orgulhosa de seus sobrenomes com
“esses-cês-agás”, “tês dobrados” e tantas tem-
poralidades alvas que contrastavam o “alvo” de
sua pele. Rindo da própria tristeza, inventou
que jogava para o alto os seus sonhos e a sua
própria vida, mas sem ninguém às suas costas
para agarrá-los. Não deveria haver continuidade
a sina tão cruel, pensava. Perto dali, ouviu os
sinos ensurdecedores da catedral que fizeram os
seus pensamentos um vulcão em erupção seguido de
um forte tsunami de sentimentos que arrasaram a
16 geografia da sua pobre existência, deixando morte
pelo caminho.
Bará não entrou na Igreja Nossa Senhora das
Dores. Não era bem-vinda.
Apressadamente, ela desceu as escadas do seu
18 martírio correndo feito um faminto leopardo
em direção ao Campo da Redenção. Lá chegan-
do, propagou-se livre entre as alamedas e a
vida selvagem por natureza, ouvindo os tam-
bores dos batuques de outrora que ali acon-
teciam. Tentou subir numa árvore. Deslizou.
Assustou-se com a quantidade de corpos ca-
bisbaixos, silenciados, mortos-vivos que ali
perambulavam, quase numa versão narcísica de
si mesma, refletida no seu próprio espelho,
meio a destinos imperfeitos e às sobras da
existência fragilizada. Acercou-se de uma
árvore e, conversando com ela, descobriu se-
gredos das pessoas que ali viviam, cochicha-
dos ao ouvido encostado no tronco da anciã.
Ouviu histórias de medo e de resistência.
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Deslocou-se em direção à
Ilhota, onde era o Teatro
Tesourinha. Naqueles lu-
gares ouviu histórias in-
críveis, que subvertiam
as bio-lógicas e lhe de-
volviam dignidade, ainda
que por uma fração milio-
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nésima de segundos de um
pulsar perdido numa rá-
dio-galáxia distante. E
eram elas, as ondas me-
cânicas plasmadas em sua
voz rouca abafada pela
violência que, uma vez
mais, se projetavam num
vazio sem fim:
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- Quero falar com o senhor Custódio
Joaquim de Almeida, o Osuanlele
Okizi Erupê, o Príncipe de Ajudá.
- Procure-o no Quilombo do Areal
da Baronesa, na Travessa Luiz
Guaranha.
- Ah, finalmente! Eu tinha certeza
que o encontraria. E onde posso en-
contrar a Liberdade?
- Ali, à esquerda, no Largo Zumbi
dos Palmares.
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Sem perder nem mais um instan-
te, Bará passou a noite comendo
carne assada na brasa e rindo
da vida com imigrantes africa-
28 nos. Conheceu um guri que veio
a Porto Alegre para uma consul-
ta no dia seguinte no Hospital
de Clínicas. Foi amor à primei-
ra vista.
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Se apaixonaram e foram viver na Restinga, a
26 km do centro da cidade. Após mais um longo
dia pelas ruas, sucumbiram ao cansaço, sem
antes deixar de partilhar, em pensamentos,
uma roda de chimarrão. Olhando para o céu
30 escuro e incerto, apontaram para as estrelas
brincando de ser uma. Nos ouvidos, a felici-
dade clandestina de Lupicínio Rodrigues e um
canto de palha acariciado pelo vento.
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SOBRE O PROCESSO DE ILUSTRAÇÃO
Brenda Klein
Artista ilustradora
Foto tirada no Largo da Forca, dezembro de 2021, brenda klein
PROJETO ZUMBI-DANDARA DOS PALMARES