Direito Sociedade e Solucao de Conflitos

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DIREITO,

SOCIEDADE
E SOLUÇÃO
DE CONFLITOS
O r g a n i z a d o r e s

F e l i p e A s e n s i
K l e v e r P a u l o L e a l F i l p o
M a r c e l o P e r e i r a d e A l m e i d a
C a r l a F a r i a d e S o u z a

DIREITO,
SOCIEDADE
E SOLUÇÃO
DE CONFLITOS

ágora21

EDITORA MULTIFOCO
Rio de Janeiro, 2017
EDITORA MULTIFOCO
Simmer & Amorim Edição e Comunicação Ltda.
Av. Mem de Sá, 126, Lapa
Rio de Janeiro - RJ
CEP 20230-152

CONSELHO EDITORIAL
Presidência:
Felipe Dutra Asensi
Marcio Caldas de Oliveira

Conselheiros:
André Guasti (TJES, Vitória) Pedro Ivo (MPES, Vitória)
Bruno Zanotti (PCES, Vitória) Ramiro Santanna (DPDFT, Brasília)
Camilo Zufelato (USP, São Paulo) Raphael Carvalho (Mercosul, Uruguai)
Daniel Giotti (Intejur, Juiz de Fora) Rogério Borba (UNESA, Rio de Janeiro)
Eduardo Val (UFF) Santiago Polop (Argentina)
Gustavo Senges (Coursis, Rio de Janeiro) Tatyane Oliveira (UFPB, João Pessoa)
Jeverson Quinteiro (TJMT, Cuiabá) Thiago Pereira (UFF, Rio de Janeiro)
José Maria Gomes (FEMPERJ, Rio de Janeiro) Victor Bartres (Guatemala)
Luiz Alberto Pereira Filho (FBT-INEJE, Porto Alegre) Yolanda Tito (Peru)
Paula Arevalo (Colômbia) Vinícius Scarpi (UNESA, Rio de Janeiro)
Paulo Ferreira da Cunha (Portugal)
REVISADO PELA COORDENAÇÃO DO SELO ÁGORA 21

Direito, Sociedade e Solução de Conflitos


ASENSI, Felipe
FILPO, Klever Paulo Leal
ALMEIDA, Marcelo Pereira de
SOUZA, Carla Faria de

1ª Edição
Fevereiro de 2017
ISBN: 978-85-5996-415-8

Todos os direitos reservados.


É proibida a reprodução deste livro com fins comerciais sem
prévia autorização do autor e da Editora Multifoco.
CONSELHO DO CAED-JUS
Adriano Rosa (USU)
Antonio Santoro (UFRJ/UCP)
Bruno Zanotti (PCES)
Claudia Nunes (UVA)
Daniel Giotti (PFN)
Denise Salles (UCP)
Edgar Fuentes (Universidad Jorge Tadeo Lozano, Colômbia)
Eduardo Val (UFF/UNESA)
Felipe Asensi (UERJ/USU/UCP)
Fernando Bentes (UFRRJ)
Glaucia Ribeiro (UEA)
Gunter Frankenberg (Johann Wolfgang Goethe-Universität - Frankfurt am Main, Alemanha)
João Mendes (Universidade de Coimbra, Portugal)
Jose Buzanello (UNIRIO)
Klever Filpo (UCP)
Luciana Souza (FMC)
Marcello Mello (UFF)
Nikolas Rose (King’s College London, Reino Unido)
Oton Vasconcelos (UPE/ALBCJ)
Paula Arévalo Mutiz (Fundación Universitária Los Libertadores, Colômbia)
Pedro Ivo Sousa (MPES)
Santiago Polop (Universidad Nacional de Río Cuarto, Argentina)
Saul Tourinho Leal (UNICEUB/IDP)
Sergio Salles (UCP)
Susanna Pozzolo (Università degli Studi di Brescia, Itália)
Thiago Pereira (UERJ/UCP)
Tiago Gagliano (ILAAJ)

5
6
SOBRE O CAED-Jus
O Congresso Internacional de Altos Estudos em Direito
(CAED-Jus) é iniciativa de uma rede de acadêmicos brasileiros
e internacionais para o desenvolvimento de pesquisas jurídicas e
reflexões de alta qualidade.
O CAED-Jus desenvolve-se exclusivamente de maneira virtual,
sendo a tecnologia parte importante para o sucesso das discussões e
para a interação entre os participantes através de diversos recursos
multimídia. Com a sua criação, o CAED-Jus torna-se um dos prin-
cipais congressos da América Latina com os seguintes diferenciais:

 Democratização da divulgação e produção científica


 Publicação dos artigos em livro impresso a ser en-
viado aos participantes
 Hall of fame com os premiados de cada edição
 Interação efetiva entre os participantes através de
ferramentas online
 Diversidade de eventos acadêmicos no CAED-Jus
(hangouts, palestras, minicursos, etc)
 Exposição permanente do trabalho e do vídeo do
autor no site para os participantes
 Coordenadores de GTs são organizadores dos li-
vros publicados

O Conselho Científico do CAED-Jus é composto por acadê-


micos de alta qualidade no campo do direito em nível nacional

7
e internacional, tendo membros do Brasil, Colômbia, Argentina,
Portugal, Reino Unido e Alemanha.
Em 2016, o evento ocorreu entre os dias 23 a 25 de novembro
e contou com 44 Grupos de Trabalho e mais de 400 participantes.
A seleção dos coordenadores de GTs e dos trabalhos apresentados
ocorreu através do processo de peer review, o que resultou na pu-
blicação dos cinco livros do evento:

- Direito público: desafios e perspectivas


- Efetividade dos direitos humanos e direito internacional
- Direito, sociedade e solução de conflitos
- Novos direitos e transformação social
- Direitos fundamentais e efetivação

Os coordenadores de GTs indicaram trabalhos para concorrerem


ao Prêmio CAED-Jus 2016. A Comissão Avaliadora foi composta
pelos professores Eduardo Manuel Val (UFF/UNESA), Mario Luis
Gambacorta (UBA, Argentina) e Deraldo Dias (UCS). O trabalho
premiado foi de autoria de Tatiana Lourenço Emmerich de Souza
sob o título “O crime de lavagem de dinheiro por meio da internet:
perspectivas e dificuldades da legislação brasileira”.

8
SUMÁRIO
CULTURA JURÍDICA........................ 15

REALIDADE IMPERFEITA: CONSIDERAÇÕES


SOBRE A SANHA INTERVENCIONISTA DO
ESTADO NA VIDA DO CIDADÃO.........................17
Morgana Paiva Valim, Mariana de Freitas Rasga e Christiane Schneiski

ARGUMENTAÇÃO E DECISÃO........31

EMBASAMENTOS SOBRE A TEORIA DA


DECISÃO JUDICIAL.................................................. 33
Igor Labre de Oliveira Barros e Lara Lívia Cardoso Costa Bringel

ANÁLISE DA ADI 4430 SOB A PERSPECTIVA


DE STEPHEN E. TOULMIN..................................... 49
Ivan Kaminski do Nascimento

A DEMOCRATIZAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO


COMO NOVA FORMA DE CONTROLE DAS
DECISÕES JUDICIAIS.................................................71
Thiago Braga Dantas

SOLUÇÃO DE CONFLITOS......... 91
9
ESTUDO DE CASO: AS EMOÇÕES NA
CONCILIAÇÃO EXTRAJUDICIAL....................... 93
Ana Siomara de Oliveira Ferreira

MEDIAÇÃO E CONCILIAÇÃO NO NOVO CPC:


UMA ANÁLISE À LUZ DAS CONTRIBUIÇÕES
DAS SOCIEDADES PRIMITIVAS .......................... 111
Francisco Dias de Oliveira Júnior e Tiago Seixas Themudo

A UTILIZAÇÃO DA ARBITRAGEM
POR EQUIDADE NAS DEMANDAS
EMPRESARIAIS...........................................................129
Robert Wallace Anjos Santos

MEDIAÇÃO E DIREITO FRATERNO EM UM


CENÁRIO DE LITÍGIOS: O DIÁLOGO COMO
INSTRUMENTO DE FOMENTO NA
ADMINISTRAÇÃO DE CONFLITOS E NA
PROMOÇÃO DA CIDADANIA ATIVA...............147
Tauã Lima Verdan Rangel

TRABALHO E CONFLITOS....... 165

A NECESSIDADE DO DESCANSO E A
INDISPENSABILIDADE DO TRABALHO........167
Armenia Cristina Dias Leonardi

DIÁLOGO ENTRE O PASSADO E O


PRESENTE SOBRE O TRABALHO
ESCRAVO......................................................................189
Carla Sendon Ameijeiras Veloso

10
A DIFUSÃO DO INSTITUTO DA MEDIAÇÃO
COMO INSTRUMENTO DE REFORMA DA
BASE LITIGIOSA PARA O ATENDIMENTO AO
DIREITO FUNDAMENTAL DA EFETIVIDADE DO
PROCESSO E PACIFICAÇÃO SOCIAL............. 211
Claudia Abbass Corrêa Dias

O JUS POSTULANDI NA JUSTIÇA DO


TRABALHO.................................................................225
Deisy Alves Teixeira

PENSANDO O COMBATE AO TRABALHO


ESCRAVO NA AMAZÔNIA..................................243
Emerson Victor Hugo Costa de Sá

IMIGRAÇÃO PARA O TRABALHO: ACESSO


DOS TRABALHADORES ESTRANGEIROS À
JUSTIÇA NO BRASIL .............................................267
Erica Ribeiro Guimarães

SOLUÇÃO EXTRAJUDICIAL DE CONFLITOS


PELA COMISSÃO DE MEDIAÇÃO E
ARBITRAGEM DA UNIVERSIDADE IGUAÇU —
UNIG................................................................................285
Henrique Lopes Dornelas e Vinícius Dornelas Camara

A TRANSFORMAÇÃO DAS RELAÇÕES DE


TRABALHO NA ATUALIDADE.......................... 307
Luiz Eduardo da Silva Pinto

O DESAFIO DO ADVOGADO NA MEDIAÇÃO


À LUZ DO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO
CIVIL................................................................................325
Márcia dos Santos Pimentel Nunes e Maria Cristina Ribeiro Dantas

11
CONDIÇÕES ANÁLOGAS À ESCRAVIDÃO
E A NÃO EFETIVIDADE DAS NORMAS
PROTETIVAS................................................................341
Renata Lima Sequeira D’Arrochella

A TUTELA COLETIVA DO MEIO AMBIENTE


DO TRABALHO..........................................................361
Vanessa Lima do Nascimento e Lorena Silva de Albuquerque

MÍDIA E CRIMES....................... 379

O CASO DO ESTUPRO COLETIVO NA


CIDADE DO RIO DE JANEIRO -
DISCURSOS SOBRE VIOLÊNCIA SEXUAL
E A SUA BANALIZAÇÃO NAS REDES
MIDIÁTICAS..................................................................381
Fábio Rodrigues Holanda, Natalia Pinto Costa e Paula Barbosa Venancio Alencar

MÍDIA E PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA ........397


Marx Alves de Oliveira Lima

OPERAÇÃO HASHTAG E A IMPRENSA: TENSÃO


ENTRE OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS
DE PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA E DIREITO À
INFORMAÇÃO ...........................................................421
Wagneriana Lima Temóteo Camurça, Mateus Natanael Targino Maurício e Na-
tália Pinto Costa

PROCESSO CIVIL
CONTEMPORÂNEO.................. 439

A INFLUÊNCIA DO PROCEDIMENTO MODELO


ALEMÃO MUSTERVERFAHREN PARA O IRDR

12
– INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DEMANDAS
REPETITIVAS DO NOVO CÓDIGO DE
PROCESSO CIVIL BRASILEIRO......................... 441
Cinthia da Silva Barros, Gustavo Igor Silva Montalvão e Tayonar Pereira Viana

ANALISE DA AÇÃO DE DESPEJO PREVISTA


DA LEI DE LOCAÇÃO DE IMOVEIS URBANOS
SOBRE O NOVO CODIGO DE PROCESSO
CIVIL............................................................................... 455
Eva Eulalia da Silva Almeida

RESPONSABILIDADE CIVIL SUBJETIVA


MÉDICA E ÔNUS DA PROVA NO CÓDIGO DE
DEFESA DO CONSUMIDOR E NO CÓDIGO DE
PROCESSO CIVIL DE 2015...................................473
Fernando Lúcio Esteves de Magalhães

DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE
JURÍDICA NO SISTEMA PROCESSUAL
BRASILEIRO VIGENTE............................................481
Gisele Leite e Eva Eulalia da Silva Almeida

O NOVO INSTRUMENTALISMO DO PROCESSO


CIVIL BRASILEIRO....................................................491
Gisele Leite

O INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DEMANDAS


REPETITIVAS NO NOVO CÓDIGO DE
PROCESSO CIVIL E A SUA RELAÇÃO COM
AS AÇÕES COLETIVAS........................................ 503
Luís Carlos de Sousa Amorim

INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DEMANDAS


REPETITIVAS: DO GROUP LITIGATION E DO

13
MUSTERVERFAHREN AO NOVO CÓDIGO DE
PROCESSO CIVIL...................................................... 517
Murilo Rodrigues da Rosa

ANALISE CRÍTICA QUANTO A


IMPORTANCIA DA EQUIPE MULTIDISCIPLINAR
EM AÇÕES DE ALIENAÇÃO PARENTAL
CONFORME O NOVO CÓDIGO DE
PROCESSO CIVIL.....................................................535
Sátina P. M. Pimenta Mello e Fabiana Campos Franco

PROCESSO PENAL E
SANÇÕES................................ 553

ANÁLISE DA COLABORAÇÃO PREMIADA À


LUZ DAS GARANTIAS CONSTITUCIONAIS
NO DIREITO PROCESSUAL PENAL................555
Murilo Rodrigues da Rosa

PROVAS EM PROCESSO PENAL: UMA ANÁLISE


TOCANTE AOS MEIOS DE RECONSTRUÇÃO
HISTÓRICA DOS FATOS....................................... 575
Thomaz Muylaert de Carvalho Britto

SELETIVIDADE DO SISTEMA PENAL:


GARANTIAS DO PROCESSO, POBREZA E A
SÚMULA Nº 70 DO TJRJ........................................591
Tiago Mascarenhas da Costa Marques
CULTURA JURÍDICA
REA L I DADE IMPERFEITA:
CO N SI D ERAÇÕES S OBRE A SA N HA
I N TERV ENCIONISTA DO ESTA D O N A
VI DA DO CIDADÃO.
Morgana Paiva Valim1, Mariana de Freitas Rasga2 e Christiane
Schneiski3

INTRODUÇÃO
A importância de debates acerca de ações tomadas por parte do
Estado, especialmente pelo Poder Judiciário, acirra tensões e emba-
tes de outras naturezas no campo jurídico. Em grande medida e o
é, que tais instrumentos coercitivos deixados ao alvedrio do Estado,
por interferir na vida dos cidadãos, geram repercussões sociais de
grandes proporções na medida que alegitimidade da atuação ju-
dicial ultrapassa a esfera daquilo que é ponderável, proporcional,
prudente e aceitável (BARCELLOS, 2005, p.37).
Procura-se examinar se determinadas decisões judiciais maqui-
nam sobre condutas privadas e propiciam imoderadamente uma in-
tromissão do Estado na esfera privada do cidadão, ou seja, se estão

1. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Veiga de


Almeida. Mestre em Direito do Programa de Pós-Graduação da Universidade Gama
Filho. Professora Auxiliar da Universidade Veiga de Almeida. [email protected].
http://lattes.cnpq.br/0747586676976718.
2. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Veiga de
Almeida. Mestre em Direito do Programa de Pós-Graduação da Universidade Veiga
de Almeida. Professora Auxiliar da Universidade Veiga de Almeida. mfrasga@hotmail.
com. http://lattes.cnpq.br/7335276875695463.
3. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Veiga de
Almeida. Mestre em Direito do Programa de Pós-Graduação da Universidade Veiga
de Almeida. Professora Auxiliar da Universidade Estácio de Sá. christianeschneiski@
hotmail.com . http://lattes.cnpq.br/4004330980438277.

17
ou não no campo da proporcionalidade ou razoabilidade. Em caso
positivo, manterá o paradoxo para a garantia do direito fundamental
de respeito aos direitos básicos de cidadania4 que reforçam o quadro
de marginalização social que por vezes se traduzem na inviabilidade
de uma justiça social igualitária para o cidadão.
A perscrutação das práticas forenses pressupõe como ponto de
partida uma análise da racionalidade prático-argumentativa no ter-
ritório jurídico que vai aproximar e distanciar a fusão de procedi-
mentos de raciocínio e de fundamentação em atos de interpretação,
de gestão e de poder para a determinação e aplicação das normas
jurídicas (VALIM; CALDAS, 2016, no prelo). Não se adapta, nesse
contexto, a aplicação inflexível do modelo de racionalidade silogís-
tico-subjuntivo-dedutiva do direito, que desnutre a hermenêutica
constitucional uma vez que sua operação carece do jogo concertado
dos princípios, instrumento central da atividade de tomada de de-
cisões dos magistrados na atualidade (GÓES; RASGA, 2014, p.402).
Deste modo, a metodologia utilizada é baseada num percurso
baseado na etnografia bibliográfica contida em manuais, ritos sen-
tenciais, atos de decisão tudo com vistas ao reconhecimento de um
modelo dito legitimador do direito, cujo poder nos permite com-
preender a determinação e subjetividade retirada da objetividade
do direito quando calcadas na interpretação de normas jurídicas.
Assim sua extensão evidencia uma faceta característica do poder
de decidir de modo pessoalizado e decisionista, bem como, suas
vicissitudes, mazelas e inconsistências.
Acentuou Roberto Romano5 que “Existem diversas leis que são,
na verdade, o Estado metendo o bedelho onde não deve”.
O Estado, através de seus órgãos e agentes, tem como tare-
fa a prestação de uma atividade estatal adequada, satisfatória,

4. Segundo Marshall, a cidadania é entendida como: “um status concedido àqueles


que são membros integrais de uma comunidade. Todos aqueles que possuem status
são iguais com respeito aos direitos e obrigações pertinentes ao status”. (1967, p.76)
5. http://www.gazetadopovo.com.br/vida-publica/quando-o-estado-se-mete-onde-
-nao-devebi9jrio8514vgs0ode6soz6fi

18
pro¬porcional e não lesiva aos interesses da sociedade. Posto que,
é a partir da vertente constitucional de apreciação de lesão ou ame-
aça de direitos de cidadania, que a decisão judicial questionada,
acaba por demonstrar que as ações ou omissões violadoras de di-
reitos no Estado Democrático de Direito representam uma fronteira
de domínios vagos, ambíguos e porosos para a alteridade da vida
privada. Certo é que todo e qualquer direito fundamental pode ser
limitado, porém o exame dessa restrição deve ser justificado no
caso concreto, através da promoção de outros bens jurídicos envol-
vidos. Tal exigência deriva do princípio da proporcionalidade.
O aplicativo WhatsApp, objeto do primeiro conflito mencio-
nado, foi criado e colocado à disposição gratuita dos usuários no
ano de 20096. Esse canal de comunicação virtualizado é um ser-
viço de comunicação peer-to-peer, que inicialmente era utilizado
para uso familiar e para rede de amigos. No entanto, atualmente
ele é utilizado também no mundo corporativo como ferramenta de
negócios e parcerias comerciais.
Nessa esteira, convém destacar que, qualquer medida do poder
público que restrinja o uso do aplicativo deve perpassar pela joeira
da proporcionalidade, já que o alcance desmedido das decisões pro-
feridas pelos magistrados7 atinge outros gradientes sociais.
CRISTÓVAM (2006, p.211) acentua que:

A proporcionalidade é uma máxima, um parâ-


metro valorativo que permite aferir a idoneidade
de uma dada medida legislativa, administrativa ou

6. Segundo dados 900 milhões de pessoas pelo mundo estão conectadas ao aplicati-
vo. http://www.techtudo.com.br/noticias/noticia/2016/01/facebook-revela-dados-do-
-brasil-na-cpbr9-e-whatsapp-vira-zapzap.html
7. Decisão proferida pelo juiz Luis Moura Correia, da Central de Inquérito da Comarca
de Teresina – Piauí, nos autos do processo 0013872-87.2014.8.18.0140. Decisão pro-
ferida pela juíza Sandra Regina Nostre Marques,da 1ª Vara Criminal de São Bernardo
do Campo – São Paulo, nos autos de processo sigiloso. Decisão proferida pelo ma-
gistrado Marcel Maia Montalvão, da Vara Criminal de Lagarto - Sergipe, nos autos
do processo nº 201655000183. Decisão proferida pela magistrada Daniela Barbosa
Assumpção de Souza, da 2ª Vara Criminal de Duque de Caxias – Rio de Janeiro, no
Inquérito Policial nº 062-00164/2016.

19
judicial.  Pelos critérios da proporcionalidade pode-
-se avaliar a adequação e a necessidade de certa me-
dida, bem como, se outras menos gravosas aos inte-
resses sociais não poderiam ser praticadas em subs-
tituição àquela empreendida pelo Poder Público.

Como sabido, a proporcionalidade foi decomposta em três ou-


tros sub-princípios, quais sejam, a adequação ou conformidade, a
neces¬sidade ou exigibilidade e a proporcionalidade em sentido es-
trito. Sob esse prisma, é possível aferir que as decisões tomadas pelos
magistrados não passam por nenhum desses testes, senão vejamos.
No primeiro deles deve se buscar o melhor instrumento para o
alcance da finalidade pretendida e, nesse ponto, restringir o aces-
so e o uso do aplicativo a todos os brasileiros, não se mostra
adequado para impedir práticas de crimes. Conforme ressaltou o
desembargador Raimundo Nonato da Costa Alencar, na análise do
caso proveniente de Teresina, no MS nº 2015.0001.001592-4, “em
uma analogia mais rústica, determinasse esse juiz a interrupção
da entrega de cartas e encomendas pelo correio, apenas basea-
do na suspeita de que, por exemplo, traficantes estariam fazendo
transitar drogas por esse meio”.8 Afinal, não se abatem pardais
disparando canhões.9 Por isso as decisões já transbordam esse
prisma como idoneidade do meio utilizado.
Num segundo momento, a necessidade ou exigibilidade deve
ser avaliada a partir da menor ingerência possível. Nesse aspecto as
decisões judiciais atigem imoderadamente a todos que não partici-
pam das investigações criminais.
Por fim, a proporcionalidade em sentido estrito, ou seja, a exi-
gência de verificação do ônus e bônus da medida para a sociedade.

8. MS nº 2015.0001.001592-4
9. O jurista Jellinek, no simpósio sobre Direito de Polícia, assim asseverou em 1791, na
França, antes de se retirar prematuramente da mesa onde discursava sobre o ocaso
do Estado de Polícia e o advento do Estado de Direito.

20
Nesse ponto reside a ponderação entre princípios constitucionais
em colisão. Trata-se da ponderação entre o gravame imposto e o be-
nefício adquirido pela medida. As vantagens trazidas pela restrição
ao direito de comunicação de todos os brasileiros não denotam o
equilíbrio necessário ao atingimento da finalidade última.
Enfim, ao impor medida drástica de restrição ao uso a todos os
brasileiros do aplicativo mencionado, os magistrados deixaram de
sopesar outros interesses privados e a proporcionalidade em seu
tríplice aspecto. Por isso que, no julgamento da medida cautelar na
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 403, pro-
movida pelo Partido Popular Socialista – PPS, o Supremo Tribunal
Federal, em 20 de julho de 2016, ainda em trâmite, que impugna
a ordem judicial da 2ª Vara Criminal da Comarca de Duque de
Caxias, Rio de Janeiro, deferiu a liminar porque se considerou que
a suspensão do serviço do aplicativo WhatszApp de forma abran-
gente, como foi determinada, parece violar o preceito fundamental
da liberdade de expressão. A decisão monocrática do então Minis-
tro Presidente Ricardo Lewandowski considera que “a extensão do
bloqueio a todo o território nacional, afigura-se, quando menos,
medida desproporcional ao motivo que lhe deu causa.”
Quanto à obra de Hitler para o juiz avaliador seria uma
justi¬ficativa plausível a censura por meio de proibição a divul-
gação de ideais nazistas no território nacional. No entanto, nos pa-
rece que combater a circulação de ideias é também uma forma de
intolerân¬cia. E mais, a decisão judicial foi insipiente, eis que, a
obra já se encontra em domínio público e acessível para download
gratuito a qualquer cidadão destes país, o que nos garante o direito
de livre expressão e autonomia de convicções pessoais.
Nos casos em tela, a execução das medidas judiciais impostas tor-
nou-se um terreno fértil de iniquidades ao galgar meios extremamente
gravosos para a efetividade do mandamus, que ultrapassa e interfere
abusivamente no próprio fim almejado ao ser desleal com o direito da

21
maioria dos usuários do aplicativo e dos eventuais leitores interessados
na obra hitleriana. Esse é o ponto do qual não se pode afastar.
Segundo CHIOVENDA (2008, p.46)“A efetividade da decisão judi-
cial só se concretizará quando se revelar capaz de assegurar ao titular
daquele direito exatamente aquilo que ele tem direito de conseguir”.
Assim é possível compreender que o Poder Judiciário não pou-
pa esforços para demonstrar que o monopólio das atividades de
julgar está sob sua batuta. E, o uso do processo como instrumento
de dominação política também é marca indelével dessa instituição,
onde o sacrifício de todos e, por consequência, dos seus direitos
fun-damentais, é atingido sobretudo porque as razões e a oportuni-
dade de ser o foco das atenções são seus principais ideais.
Com efeito, para além dos aspectos ventilados, tais fatos
afe¬tam a proteção constitucional apontada no capítulo ineren-
te aos direitos e garantias individuais, no qual são invulneráveis
a inti¬midade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas,
sendo inclusive assegurado o direito à indenização pelo dano ma-
terial ou moral decorrente de sua maculação. Essa regra deve ser
igualmente espargida a todos os sujeitos de direito. Além disso, é
importante destacar que a Constituição Federal protege a liberda-
de de expres¬são da atividade intelectual, artística, científica e de
comunicação, independentemente de qualquer censura ou licença.
Neste intento, o indivíduo não deveria sofrer limitação ou su-
pressão de direitos por ser atentatório ao seu exercício de sua cida-
dania em nenhum desses quadrantes.
Numa gestão moral eficiente de direitos não se guarda espaço
para a precarização do princípio da dignidade da pessoa humana
quando convém aos interesses do Estado. A dimensão da principio-
logia do interesse do bem coletivo não poderá subjugar o individual
retirando-lhe direitos ou rompendo com categorias analíticas, nor-
mativas ou práticas, para delas se apropriarem como mecanismos
de arbítrios e injustiças.

22
É justamente neste sentido que são apropriadas as palavras de
SARLET (2009, p. 34-35):

[...] onde não houver respeito pela vida e pela


integridade física e moral do ser humano, onde as
condições mínimas para uma existência digna não
forem asseguradas, onde não houver limitação do
poder, enfim, onde a liberdade e a autonomia, a
igualdade (em direitos e dignidade) e os direitos
fundamentais não forem reconhecidos e mini-
mamente assegurados, não haverá espaço para a
dignidade da pessoa humana e esta (a pessoa),
por sua vez, poderá não passar de mero objeto de
arbítrio e injustiças.

Nesse viés se desenha a opacidade e a lógica do segredo num


lugar onde os ritos sentenciais e afins se sedimentam erigindo
uma memória, por vezes, desoladora impossibilitando a ressig-
nificação dos conflitos onde a resolução de situações-problema
permanecem no espaço de forma e conteúdo sujeitos a extrema
precarização da subjetividade num duelo onde os dispositivos se
alinham entre o abstratos que não são descortinados.
No tocante ao caráter interpretativo do direito, eminentemente
subjetivo, é que são deflagrados os gradientes de ininteligibilidade
de ações no espaço jurídico, eis que, a impossibilidade de sentido
ou de questionamento em tais formulações argumentativas estão
contidas no interior das sensibilidades do julgador o que delimi-
ta um campo fértil para tensões e embates sociais. Desta forma,
muitos jurisdicionados estarão fadados à morte silenciosa de seus
direitos universais de primeira e segunda dimensões. A amplitude
dessas ações marcam, na arena jurídica, uma semiologia particula-
rizada do discurso de se “aplicar o direito” no mundo dos segredos

23
oficiais de normalização, neutralização e dominação da mecânica
de ordem imposta pelo Estado.
Nesse campo das práticas articuladas a teoria de Perelman
(1998, p.215) assenta que:

o juiz não procura tanto ser breve quanto ser


compreendido. Ele decide, é verdade, mas deseja
também convencer, e convencer, aqui, entende-
mos que diga respeito à legitimação de sua fala,
porque não lhe interessa convencer pelo seu re-
sultado em si, mas para que se acate sua ordem
como recomendação justa e equânime, para que
o seu proferimento pareça fundado na verdade
e seja jungido à legitimidade. E que pareça ver-
dadeiro é fundamental para que se lhe confira a
legitimidade do que é justo.

Nessa tarefa de convencimento sobressai-se a teoria haberliana


de que a interpretação poderá ser realizada pela sociedade aber-
ta. De modo geral, acredita-se que, para um magistrado organizar
seu raciocínio na fundamentação de suas decisões, este deve irre-
futavelmente fugir do lugar comum. O magistrado não poderia, em
tese, naturalizar-se diante dos fatos e sim constranger-se para cada
evento. E, esse seria o caminho menos tortuoso para a razão de
decidir para que o direito não se torne um instrumento de exclusão
social nem cause prejuízo aos direitos de cidadania10.

10. Apenas como movimento metodológico, necessário se torna necessário retomar


o entendimento de Marshall, para explicar que os direitos civis são aqueles que cor-
respondem aos direitos individuais de liberdade, igualdade, propriedade, de ir e vir,
direito à vida, segurança, etc. Há de se destacar que, neste aspecto, segundo o autor
os direitos civis são alcançados na perspectiva da justiça, e, o acesso à justiça está
fundado na existência da disseminação de tribunais, bem como, na possibilidade de
contratação de profissionais especializados que pudessem decifrar os “enigmas” dos
processos. Os direitos políticos cujos pressupostos demandam de entendimentos ín-
sitos do Poder Legislativo referem-se aos direitos à liberdade de associação e reunião,
de organização política e sindical, à participação política e eleitoral, ao sufrágio uni-
versal, etc. São também chamados direitos sociais os direitos aos desamparados, ao

24
Por vezes, o alijamento da fundamentação nas decisões judiciais
evidencia um discurso assimétrico imbuído de táticas, estratégias e
recortes totalizantes de desajustes e ilegalismos por meio da cha-
mada liberdade de decidir contida na interpretação e argumentação
das normas jurídicas para a disciplinarização dos jurisdicionados
como forma de controle das dinâmicas sociais na dimensão jurídica
de um consenso inalcançável, desarticulador de uma conexão de
jogos onde a consciência individual do magistrado transforma-se
num mandonismo eivado de uma(a)ética pragmática.
Tudo isso, apenas para demonstrar que a conjugação dos man-
dos e desmandos é ininteligível para o cidadão e insólita para as
promessas de cidadania.
Não restam dúvidas de que, mesmo diante de propagadas pro-
messas de transformação do campo de atividade do judiciário,
enquanto longa manus do Estado, a manifestação de atos como
os que são apresentados demonstram que a velha aparelhagem ju-
diciária ainda não está capacitada para se desfazer da identidade
aristocrática, formalista e bizantina.
SCHIER (2003, p.56), afirma que:

a assunção prática da supremacia do interesse


público sobre o privado, como cláusula geral de
restrição de direitos fundamentais tem possibilita-
do a emergência de uma política autoritária de rea-
lização constitucional, onde os direitos, liberdades
e garantias fundamentais devem, sempre e sempre,
ceder aos reclamos do Estado que, qual Midas,
transforma em interesse público tudo o que toca.

trabalho, saúde, educação, aposentadoria, seguro-desemprego, enfim, a garantia de


acesso aos meios de vida e bem-estar social, inserindo o indivíduo na dinâmica social
que são próprios dos comandos pertencentes ao Poder Executivo, taisdireitos foram
conquistados respectivamente nos séculos XVII, XIX e XX. (Marshall, T. H. Cidadania,
classe social e status. Rio de Janeiro. Zahar: 1967).

25
Na perspectiva ora apontada, vale consignar que, o labirinto
constitucional de busca de preservação dos direitos de cidadania
pode trazer de modo assincrônico uma formulação de medidas que
restrinjam estes direitos, ou seja, os interesses ditos da coletividade
podem colidir com direitos fundamentais. No entanto, para finalizar,
é preciso destacar que a concepção de proteção aos direitos funda-
mentais não pode ser esvaziada pelo decisionismo do judiciário.

Considerações Finais
Se é verdade que as modulações estruturantes do Poder Judici-
ário buscam compatibilizar a vida em sociedade e permitir que os
cidadãos possam ter seus direitos reafirmados e garantidos pelo Esta-
do, tal fato, S.M.J, não pode ser observado na decisão da magistrada
anteriormente citada para o apagão que a mesma promoveu em de-
zembro de 2015 para os usuários do aplicativo WhatsApp e os demais
que se seguiram, tampouco a decisão que impede a leitura de uma
obra episódica e histórica do século XX ainda que contenham ideais
discriminatórios, extremistas, autobiográficos ou reducionistas.
A fronteira entre o que é proporcional e razoável acaba por redefi-
nir as relações situadas entre o público e o privado. Essas convicções
ditas coletivas, por vezes, transitam numa seara arbitrária e totalitária,
o que não se coaduna com um Estado Democrático de Direito, especial-
mente pelos princípios e fundamentos contidos na Carta da República.
Assim o papel exclusivo de protagonista dos discursos judiciais
não cabe apenas ao magistrado, no sentido haberliano. Do contrá-
rio, esse juiz, poderia criar precedentes negativos ao utilizar-se so-
mente de suas convicções pessoais para de modo indevido refutar
as bases legais e fundamentar com seu discurso pessoal os feitos
judicializados, aprofundando o descompasso, o descrédito e a des-
crença no judiciário numa realidade imperfeita.
Nessa linha argumentativa há de se ter mente que os malfadados
equilíbrios instáveis típicos de uma realidade imperfeita brasileira

26
permanecem estruturando a dinâmica hierarquizante do Poder Judi-
ciário e igualmente sobrepujando os interesses privados do cidadão.
Desta feita, essas práticas que nos parecem tão comuns quando in-
vocadas em nome de interesses públicos transbordam os interesses
privados, refugindo os termos e os limites das normas vigentes.

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29
ARGUMENTAÇÃO E DECISÃO
EMB ASAMENTOS S OBRE A T E OR IA
DA DECISÃO J UDICIAL
Igor Labre de Oliveira Barros* e Lara Lívia Cardoso Costa Bringel**

1. INTRODUÇÃO
As teorias que possui a área jurídica expõe princípios e dire-
trizes que seriam ordinários a todas as divisões do direito. Dadas
conjecturas buscam ponderar o direito como um todo unificado e
comum, aplicando a este, princípios gerais do âmbito jurídico.
Quando dois indivíduos ou dois grupos de pessoas têm desor-
dem de mérito e não conseguem resolvê-lo, o Estado por meio de
um juiz de direito, é convocado para resolver a demanda e dizer
com quem está o direito.
Nesses casos, a capacidade para representar o Estado será do Po-
der Judiciário por meio dos órgãos que pertencem a sua composição.
Cada aparelho jurídico será ativado de acordo com as particularida-
des do caso, isto é, do objeto que está sendo tratado e do valor en-
redado, da localidade onde residem os componentes e entre outros.
As decisões judiciais só existem onde há conflitos, sendo que
essas decisões precisam de um conjunto de escolhas que neces-
sitam de uma fundamentação plausível. Segundo afirma Sabrina
Dourado a decisão judicial possui três escopos:

O escopo jurídico, que consiste na atuação da


vontade concreta da lei. A jurisdição tem por fim
primeiro, portanto, fazer com que se atinjam, em
cada caso concreto, os objetivos das normas de

33
direito substancial. O escopo social, consiste em
promover o bem comum, com a pacificação, com
justiça, pela eliminação dos conflitos, além de in-
centivar a consciência dos direitos próprios e o
respeito aos alheios. O escopo político, é aquele
pelo qual o estado busca a afirmação de seu po-
der, além de incentivar a participação democrática
(ação popular, ação coletivas, presença de leigos
nos juizados etc.) e a preservação do valor liberda-
de, com a tutela das liberdades públicas por meio
dos remédios constitucionais (tutela dos direitos
fundamentais). (DOURADO, Sabrina, 2012)

O litígio coloca em perigo a paz social e a ordem jurídica, o que


reclama a atuação do Estado, que tem como uma de suas funções
básicas, a tarefa fé resolver conflitos de interesse.

1.1 PRINCIPIOS PROCESSUAIS QUE


NORTEIAM AS DECISÕES
Quando as decisões não são acompanhadas de fundamentação,
é notória a arbitragem de quem profere a decisão. Essa arbitragem é
definida pelo autoritarismo do poder judiciário por meio dos seus re-
presentantes nas decisões. Com o nascimento da carta magna de 1988,
existem alguns princípios processuais quem reprimem a arbitragem do
judiciário, um deles são os próprios recursos para cortes superiores.
Existe o principio da inércia, em que o estado-juiz só atua se for
provocado, ou seja, o juiz não emana de ofício, por conta própria. A
idelegabilidade, em que o representante do Poder Judiciário não pode
delegar a outros, as funções que lhes foram atribuídas pelo Estado.
A imparcialidade que é citada como base para os fundamentos
de uma decisão em que possibilita aplicar o direito objetivo ao caso
concreto, o funcionário público tem de ser imparcial neste momen-
to, como afirma a Associação Brasileira de Advogados:

34
Para que o processo seja justo e válido, é pre-
ciso que o juiz atue de forma imparcial, ou seja,
não exibir-se de forma tendenciosa para qualquer
das partes. O juiz coloca-se entre as partes e acima
delas: esta é a primeira condição para que possa
exercer a sua função dentro do processo. A impar-
cialidade do juiz é pressuposto para que a relação
processual se instaure validamente. (ADVOGA-
DOS, Associação, 2008)

É visível em no ordenamento jurídico brasileiro quando é con-


cordado com certas decisões em que é observado autoritarismo por
parte do que tem o poder, isso pode ocorrer também na esfera ad-
ministrativa. Em 2009 o Ministério da Saúde foi obrigado a fornecer
medicamentos e tratamentos a determinadas esferas da sociedade.
O então ministro da saúde na época citada se sentiu coagido, por
não ter como suprir a demanda que estava solicitando o Judiciário,
mas mesmo assim mantiveram a decisão para e exigiram o cumpri-
mento. Observe as palavras do subprocurador-geral do estado do
Rio de Janeiro Rodrigo Mascarenhas sobre essa arbitragem:

“O número de ações em matéria de medica-


mentos que, segundo ele, “tem alcançado níveis
extremamente preocupantes”. Na Procuradoria-
-Geral do Rio de Janeiro são recebidas, em mé-
dia, cerca de 40 novas ações sobre medicamentos
por dia. Apenas em 2008, a Secretaria teria gasto
R$ 29 milhões com cumprimento de decisões ju-
diciais. Há uma dificuldade, de acordo com Mas-
carenhas, no cumprimento dessas decisões inclu-
sive por parte dos juízes de primeira instância.
Os juízes têm um sentimento de frustração e se

35
vêem tentados a tomar medidas que acabam di-
ficultando e prejudicando a gestão do sistema. As
conseqüências disso, segundo ele, são o seqüestro
de verba pública, o seqüestro de verbas na conta
do próprio secretário, as ameaças de prisão a se-
cretários de saúde, entre outros problemas. Mas-
carenhas destacou, ainda, que nenhum terço das
ações de medicamentos envolvem risco de morte
ou emergência que justifique a decisão judicial.
Dois terços das ações se referem a medicamentos
de uso contínuo ou exames, e ainda fraldas, su-
plementos alimentares, leite e outros insumos.”
(JUSBRASIL, vivodireito, 2009)

É uma problemática que está manifesta hoje no sistema po-


lítico-jurídico brasileiro, a interferência dos poderes nos âmbitos
distintos, para que se tenha a harmonia entre os poderes e assim
decisões judiciais que terão argumentos majoritários, são necessá-
rios que o controle de freios e contra pesos funcione com eficácia
entre os três poderes públicos das instituições brasileiras.

1.2 PENSAMENTOS DE AUTORES DE


TEORIAS DO DIREITO
Na teoria do direito chamam a atenção alguns pensamentos
de juristas de renome internacional, que fundaram de forma stric-
ta escolas de pensamentos.
Podem-se citar Kant, com o direito natural e a teoria axiológica,
Ihering com a teoria sociológica sobre movimento social e ordem
social, Kelsen com a teoria normativa com a norma fundamental,
Reale em sua teoria tridimensional sendo fato, valor e norma e Luh-
mann com a teoria da autopoiesel, sendo a idéia de um sistema
jurídico fechado e auto-suficiente. Todas essas presunções buscam
ajuizar o direito e as deliberações judiciais.

36
Segundo Coleman, Kramer, Herbert Hart, esperam que a deci-
são judicial descreva o fato e a melhor descrição do direito. Ainda
que a decisão judicial se submeta ao texto legal, a limitação formal
não consuma todos os requisitos necessários, pois que os valores
normalmente aceitos devem ser respeitados.
Assim descreve a decisão judicial de uma forma mais ampla,
Shaspiro, Marmor e Raz, em suas teorias a decisão judicial indepen-
de ou não da descrição do direito. Plauto Faraco de Azevedo, em Jus-
tiça distributiva e aplicação do Direito, diferencia claramente Direito
de lei, evidenciando a necessidade de submissão do juiz apenas ao
primeiro e apontando a idéia de que escolhas de fundo filosófico são
realizadas durante o processo judicial tendo em vista a neutralidade
axiológica impossível no exercício da função jurisdicional.
Karl Larenz, em sua Metodologia da Ciência do Direito argu-
menta que o Direito positivo deve ser entendido apenas como um
caminho para a realização da maior justiça possível.

1.3 LINHA HISTÓRICA DAS DECISÕES


JUDICIAIS
Analisando a história das decisões observa-se uma evolução
nas decisões judiciais e suas fundamentações, passando pelo di-
reito canônico, pelo direito romano, pelo humanismo racionalista,
pelo common law, chegando até às entradas do iluminismo.
A partir do adágio iluminista, a produção judicial do direito
deixou de ser vista como uma mera atividade de procedimento da
razão humana e sim como a amostra de uma vontade soberana tal
como pensava Thomas Hobbes.
Com a Revolução Francesa, estabelece o modelo liberal do direito
na conciliação dos conflitos sociais. A resolução judicial como fruto
do estado de direito é decretada por órgãos representativos da pró-
pria sociedade designados à aplicação, observe a seguinte vertente,

37
A Revolução Francesa teve relevante papel nas
bases da sociedade de uma época, além de ter sido
um marco divisório da história dando início à ida-
de contemporânea. Foi um acontecimento tão im-
portante que seus ideais influenciaram vários mo-
vimentos ao redor do mundo. O rei Luís XVI, com
povo que permanecia unido, tomando conta das
ruas. O slogan dos revolucionários era “Liberdade,
Igualdade e Fraternidade”. No dia 26 de agosto de
1789 a Assembléia Nacional Constituinte procla-
mou a  Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão. (GOMES, Cristiana, 2013)

Ressalta-se na linha histórica que a passagem do naturalismo


para o positivismo trouxe mudanças significativas para os sujeitos
responsáveis pela decisão judicial.
Hobbes e Locke protegeram que somente o contrato torna verda-
deiro o domínio do Estado, mas não avalia que o estado de nature-
za como uma circunstância de batalha, porém todos são juiz em causa
competente, o que pode desestabilizar as afinidades entre os homens.
Uma vez que Locke considera o meio de sobrevivência
como base oriunda da propriedade, o contrato é a resposta para o
seu cuidado, é a precisão de ultrapassar as presumíveis iminências
contra a propriedade que leva a sociedade a se vincularem e ins-
tituírem livremente entre si o contrato social, que atinge a via do
estado de natureza para a sociedade política ou civil.
O positivismo é um fluxo filosófico que surgiu na França no
século XIX, os fundamentais idealizadores do positivismo foram
os pensadores Augusto Comte e John Stuart Mill. O positivismo
protege o conceito de que o conhecimento científico é a única
forma de noção apropriada, de acordo com os positivistas apenas

38
pode-se assegurar que uma teoria é válida se ela foi evidenciada
através de processos científicos verdadeiros.
Acompanhando essas duas vertentes, existem no Sistema Jurí-
dico mundial duas configurações de comando e condução do apa-
relho jurídico, o comum Law e o Civil Law, o civil Law é notório
no Brasil e o comum Law nos Estados Unidos.
Civil law essencialmente constitui que as centrais fontes do
direito seguidas são a lei, o texto. Na estrutura common law o
direito se fundamenta mais na jurisprudência que norma jurídica
expressa, as jurisprudências trata-se do conjugado de interpreta-
ções das normas do direito enunciado pelo Poder Judicial. Vale
ressaltar que nos dois modelos civil law e comum law exigem a
fundamentação das decisões proferidas pelos magistrados.
Sobre as decisões judiciais existe uma corrente doutrinária
surgida nos Estados Unidos, em meados do século XX, que centra-
liza estudo do direito na atuação do juiz, a corrente do realismo
jurídico. Para essa doutrina o direito é fruto exclusivo da mente
dos juízes, e por isso é dotado de elevado grau de incerteza.
Essa corrente faz certa critica ao sistema comum law, pre-
ocupando com a norma jurídica como base para a definição do
direito. A teoria tem como base estudar se a norma é levada com
emoção no processo de decisão judicial, afirma que a decisão ra-
cional pode está ligada a emocionalidade, fazendo com que essa
relação transgrida os princípios jurídicos.
A área do pensamento é bastante importante para a funda-
mentação de uma decisão jurídica, e tal modo, embora que con-
fusamente, cada um de nós tem categoricamente a sua filosofia, e
facultamente segui-la inconscientemente, ou pensar sobre os seus
embasamentos, como um ser humano que filosofa.
As funções do pensamento em uma decisão judicial são exata-
mente a de buscar contrapor ou esclarecer os amplos problemas que a
sociedade coloca para si mesma nos momentos de suas ponderações.

39
Uma das funções da filosofia dentro do direito é mostrar de um
formato critico o conhecimento jurídico, na grandeza de seus ares
mediante a indagação dos princípios que confirmam as entidades
jurídicas, os direitos e os códigos. Conforme expõe Gisele Leite:

Portanto, a Filosofia do Direito é saber crítico


a respeito das construções jurídicas erigidas pela
Ciência do Direito e pela própria práxis do Direi-
to, buscando os fundamentos do Direito, seja para
cientificar-se de sua natureza, seja para criticar a
base de suas estruturas e do raciocínio jurídico,
provocando as vezes, fissuras no conhecimento ju-
rídico construído. (LEITE, Gisele, 2014)

A hermenêutica jurídica, é um instrumento de ajuda para fun-


damentar uma decisão, que tem como objeto de interpretação pri-
vilegiado o direito, a norma jurídica, buscando o espírito da lei
e suas finalidade. Interpretando assim pelos fatores lingüísticos,
psicológicos e culturais, cada um destes buscam a análise precisa
da lei, do comportamento do indivíduo e o vitalismo do agente.
Desde a transferência do teocentrismo para o homocentrismo,
analisa-se uma mudança para a valorização do pensamento na to-
madas de decisões, só não valeria mais a imposição era necessário
pensar e fundamentar a determinação.
Adverte-se que dos primórdios das arcaicas decisões de carac-
terística jurídica o homem busca uma teoria moral para que seu
convívio em sociedade seja sem grandes conflitos, e assim essa
teoria moral é incumbida a quem define as decisões sobre as lides.
Conforme diz David Hume em seus escritos intitulado “No Tratado
da Natureza Humana” de 1738:

Não é contrário à razão preferir a destruição do


mundo a arranhar o meu dedo […] Isto é tão pouco

40
contrário à razão como preferir um bem reconheci-
damente menor a um bem maior, e ter pelo primei-
ro uma afeição mais intensa do que pelo segundo.
(HUME, David, 1738)

As culturas se transformam em ritmos diferentes umas em re-


lação a outras, conforme o contato mais ou menos freqüente entre
elas e conforme novidades vão sendo produzidas no devir cultural.
Não se pode iludir, a cultura é um conceito para significar as
práticas que constituem o jeito de viver e de pensar das pessoas e
de grupos sociais. A cultura muda, portanto, quando as práticas so-
ciais mudam. No interior da cultura os homens e mulheres recebem,
aprendem, reproduzem, transmitem, transformam e criam o mundo
e a humanidade por meio das práticas e agir de seus pensamentos.
Segundo Dinamarco, o sistema processual é tutelado por uma
série de princípios e garantias constitucionais tidos como padrões
a serem atendidos pelo legislador. Ao situar preceitos processuais e
pelo juiz designado de segurar o sentido de tais normas.
Permanece um efeito processual nos direitos fundamentais, por
meio do qual o princípio constitucional fundamental do processo
civil, e o devido processo legal, expressamente previsto na Consti-
tuição Federal, no artigo 5º, LIV. Nery ensina que, a doutrina brasi-
leira tem interpretado e empregado o devido processo legal sob seu
viés processual, o que trouxe maiores repercussões para o devido
processo legal sobre o direito processual.
Em referência mais adequada ao contexto jurídico atual, Leo-
nardo Greco, afirma:

“Na Constituição brasileira, esse processo hu-


manizado e garantístico encontra suporte princi-
palmente nos incisos XXXV, LIV e LV do artigo 5º,
que consagram as garantias da inafastabilidade da
tutela jurisdicional, do devido processo legal, do

41
contraditório e da ampla defesa, sem falar nos já
citados princípios genéricos da administração pú-
blica de quaisquer dos Poderes, e ainda nos da iso-
nomia, da fundamentação das decisões e outros
hoje expressamente reconhecidos em nossa Carta
Magna”.(GRECO, Leonardo, 2005)

Portanto, há uma veracidade que a obrigação de fundamentar


as decisões judiciais é uma das seguranças fundamentais que unifi-
ca o teor mínimo para que se efetive um processo eqüitativo.

1.4 CONTROLES EXTERNOS E


INTERNOS DAS DECISÕES JUDICIAIS
Para instigar os aplicadores do direito a fundamentar as suas de-
cisões existe no sistema jurídico brasileiro o controle externo e inter-
no da criação de normas que servirão de fundamentação em ações
judiciais e também para o controle dos legisladores que no exercício
da sua atividade norteia o poder judiciário em suas decisões.
Para o controle externo dos fundamentos de uma decisão ju-
dicial que parte em sua maioria do poder legislativo, possuímos
dispositivos constitucionais como a Ação Direta de Inconstituciona-
lidade, Ação Direta de Constitucionalidade, Ação Direta de Incons-
titucionalidade por Omissão e Argüição de Descumprimento de
Preceitos Fundamentais, todas utilizadas para evitar a arbitragem
dos legisladores que interferem diretamente nas decisões judiciais,
conforme afirma o Ministro do STF, Gilmar Mendes,

É possível atribuir efeitos futuros e temporários


à lei inconstitucional e que a limitação dos efeitos
da declaração de inconstitucionalidade é aplicá-
vel no controle difuso, pois tal técnica decorre da
aplicação sistemática da Constituição e é ineren-
te ao próprio controle de constitucionalidade. É a

42
própria ordem constitucional que fundamenta a
concessão de efeitos futuros e a modulação dos
efeitos da declaração de inconstitucionalidade no
controle difuso para impedir o sacrifício excessivo
de um princípio ou direito constitucional. (MEN-
DES, Gilmar, 2005)

Para o controle externo exercido pela sociedade para impedir


arbitragem legislativa e de funcionários públicos que refletem no
mundo jurídico, possuí-se os remédios constitucionais como o
mandado de segurança, mandado de injunção e ação popular, as-
sim expõe Alexandre de Moraes sobre a importância deste controle
externo exercido pela sociedade,

Os Remédios constitucionais são garantias instru-


mentais destinadas à proteção dos direitos fundamen-
tais previstos na Constituição Federal. Servem como
instrumentos à disposição das pessoas para reclama-
rem, em juízo, uma proteção a seus direitos, motivo
pelo qual são também conhecidos como ações cons-
titucionais. (MORAES, Alexandre de, 2009)

Os controles constitucionais e os remédios constitucionais são


analisados sempre como meios repressores de atitudes do poder
legislativo, mas fica claro que, esse controle também afeta a decisão
jurídica que é baseada em leis, para que o magistrado tenha essa
base é necessário que antes se tenha uma norma legal, assim o con-
trole externo e interno se torna importante para as fundamentações
de uma decisão proferida por um membro do Poder Público.

1.5 JULGADOS
Dentre os julgados, existem decisões das cortes do estado de
São Paulo, em que favorecia a União ao não pagamento de algumas

43
cobranças sem fundamentos, enquanto não desobrigaria o INSS que
é uma autarquia da União. Ocorreu assim um conflito de decisões
judiciais, devido aos fundamentos dos julgadores serem distintos,

Ementa: PROCESSOCIVIL. CONFLITO DE DECI-
SÕES JUDICIAIS. CRITÉRIO. 1-Recorre a União para
que prevaleça a decisão posterior que lhe fora favo-
rável (concessão de efeito suspensivo a agravo de
instrumento por ela interposto) em detrimento da
decisão anterior desfavorável ao INSS, seu litiscon-
sorte (denegado tal efeito em agravo anteriormente
interposto pela Autarquia). 2-A decisão que conce-
dera efeito suspensivo em favor da União deve ser
compreendida nos termos do seu próprio pedido:
exclusão da lide. Logo, sua exclusão não inibe a
eficácia da decisão contra o INSS, que permanece
integrado à relação processual e tem o dever de dar
continuidade ao pagamento do benefício de presta-
ção continuada, pois assim determinado ao lhe ser
indeferido efeito suspensivo em seu agravo. 3-Agra-
vo de Instrumento desprovido. Agravo Regimental
prejudicado. (TRF-3 - AGRAVO DE INSTRUMENTO
102783 AG 7938 SP 2000.03.00.007938)

As presunções jurídicas têm como um objetivo específico descobrir


procedimentos que possam ser utilizadas em todas as áreas legais, bem
como analisar os melhores elementos de decisão de fatos concretos.
Isto vai arrastar a uma abordagem que se compõe das regras, do esboço
das regras concentradas as considerações éticas, e usos práticos.

CONCLUSÃO
A teoria explica a forma que foi tomada a decisão e o fundamento
das escolhas, conjunto de teorias que se ocupam no campo das deci-

44
sões. Organiza a quantidade de métodos e de resolução de problemas.
Existem vários modelos de exemplo de decisão judicial que ser-
vem como exemplo bom, será que se tem a faculdade de interferir
qual é o melhor modelo para a decisão de um magistrado, a liber-
dade do juiz pode trazer o melhor modelo. A decisão judicial é um
objeto complexo, o que significa dizer que são vários os componen-
tes a serem verificados do direito.
O cuidado da arbitrariedade na justificação das deliberações
judiciais realiza-se pela exposição de suas razões, o que lhes atri-
bui maior legitimidade. Como as razões não possuem condição de
validez universal, estarão acessíveis à crítica e à probabilidade de
sua revisão, assim como também a seleção de uma das decisões
plausíveis pode ser argüida. Esta análise é formidável porque per-
mite apontar para disposições alternativas, instiga a meditação e a
ampliação da compreensão judicial do desempenho judicante.
Fundamentar uma decisão judicial é uma garantia de legitimi-
dade para todas decisões jurídicas, na cultura jurídica do Brasil, é
apelado de uma forma correta a racionalidade nas decisões judi-
ciais, sendo que a justificação depende da lei.

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46
HART, Herbert. L.A. O conceito de Direito. Tradução de A. Ribeiro
Mendes.

LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do Direito. Tradução de


José Lamego.Universitaires de Bruxelles, 1970.

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giseleleite2.jusbrasil.com.br/artigos/121943883/a-importancia-
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Pressesou lê cultedesvertusmoyennes. Paris: L.G.D.J., 1993.

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mes 1,2,3,4,5, e 6) Editora Método, São Paulo.

WRÓBLEWSKI, Jerzy. Constitución y teoria general de lainterpretaci-


ón jurídica.Traducción de Arantxa Azurza. Madrid: Civitas, 1985.

47
48
A N Á L I SE DA ADI 4430 SOB A
PERSPECTIVA DE STEPH EN E .
TO UL MIN
Ivan Kaminski do Nascimento11

1. INTRODUÇÃO
Pretende-se analisar neste trabalho os argumentos dos votos
na ADI 4430 sob a perspectiva de Toulmin12, utilizando-se da pers-
pectiva de Manuel Atienza13, na interpretação dada por este, no
seguinte esquema14:

11. Advogado
Mestrando em Direito Constitucional no IDP – Instituto de Direito Público.
12. TOULMIN, Stephen E. Os usos do argumento. Trad. Reinaldo Guarany. 2. ed. São
Paulo: Martins Fontes, 2006.

I) C - Alegação ou conclusão (claim) - é ao mesmo tempo o ponto de partida e de


chegada da argumentação. É aquilo que pretendemos afirmar, cujo mérito pretende-
-se estabelecer no decurso da argumentação.
II) D - Dados (data) - são os fatos ou informações aos quais recorremos como funda-
mento para alegação que estamos defendendo.
III) W - Garantia (warrant) - são proposições gerais que servem como ponte entre os
dados e a conclusão, de forma incidental e explanatória, para mostrar a pertinência e
legitimidade em se passar dos dados à conclusão apresentada.
IV) B - Apoio (backing) - são “avais” das garantias, que garantem a validade, relevân-
cia e vigência destas. Podem variar consideravelmente de acordo com o campo da
argumentação.
V) Q - Qualificadores modais (qualifiers) - são referências ao grau de força que os da-
dos conferem à alegação, tendo em conta a garantia. São exemplos: necessariamente,
provavelmente, presumivelmente.
VI) R - Condições de refutação (conditions of rebuttal): são circunstâncias nas quais
se afasta a autoridade geral da garantia. Afastam a aplicabilidade da garantia no caso,
refutando a conclusão garantida.
13. ATIENZA, Manoel. As razões do direito: teorias da argumentação jurídica. São Pau-
lo: Landy, 2003.

G – Grounds – As razões envolvidas.


14. ATIENZA, Manoel. As razões do direito: teorias da argumentação jurídica. São Pau-
lo: Landy, 2003, Pág. 100.

49
Quando houver, os fatos decorrentes dos dados15 (D) serão indica-
dos antes do apoio (B), considerando que aquele é premissa, da mesma
forma que esse. Com base nos argumentos apresentados, serão indi-
cadas algumas possibilidades de refutações (R), estas não indicadas
necessariamente no voto, mas deduzidas a partir da análise deste autor.
Será analisada a ADI 4430, julgada pelo Supremo Tribunal Federal
em 29/06/2012, sob a relatoria do Ministro Dias Toffoli, em que se de-
clarou a inconstitucionalidade da exclusão dos partidos políticos sem
representação na Câmara dos Deputados do tempo de propaganda
eleitoral. Na ADI – 4430 (Ação Direta de Inconstitucionalidade 4430), o
Partido Humanista da Solidariedade – PHS e outros, requereram a de-
claração de inconstitucionalidade dos artigos 45, §6º, da Lei 9.504/97
e artigo 47 (redação atual16), incisos I e II do §2º da mesma Lei.

15. (...) os fatos aos quais chamarei de nossos dados (D). TOULMIN, Stephen E. Os usos
do argumento. Trad. Reinaldo Guarany. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 140.
16. Art. 47. As emissoras de rádio e de televisão e os canais de televisão por assinatura
mencionados no art. 57 reservarão, nos trinta e cinco dias anteriores à antevéspera
das eleições, horário destinado à divulgação, em rede, da propaganda eleitoral gratui-

50
Os artigos questionados continham a seguinte redação:
Art. 45.  Encerrado o prazo para a realização das convenções
no ano das eleições, é vedado às emissoras de rádio e televisão, em
sua programação normal e em seu noticiário: (Redação dada pela
Lei nº 13.165, de 2015)
(...)
§ 6º. É permitido ao partido político utilizar na propaganda
eleitoral de seus candidatos em âmbito regional, inclusive no horá-
rio eleitoral gratuito, a imagem e a voz de candidato ou militante
de partido político que integre a sua coligação em âmbito nacional.

Art. 47. As emissoras de rádio e de televisão e os canais de


televisão por assinatura mencionados no art. 57 reservarão, nos
quarenta e cinco dias anteriores à antevéspera das eleições, horário
destinado à divulgação, em rede, da propaganda eleitoral gratuita,
na forma estabelecida neste artigo.
(…)
§ 2º Os horários reservados à propaganda de cada eleição, nos
termos do parágrafo anterior, serão distribuídos entre todos os par-
tidos e coligações que tenham candidato e representação na Câma-
ra dos Deputados, observados os seguintes critérios:

ta, na forma estabelecida neste artigo.


(...)
§ 2o Os horários reservados à propaganda de cada eleição, nos termos do § 1o,
serão distribuídos entre todos os partidos e coligações que tenham candidato,
observados os seguintes critérios:
I - 90% (noventa por cento) distribuídos proporcionalmente ao número de repre-
sentantes na Câmara dos Deputados, considerados, no caso de coligação para
eleições majoritárias, o resultado da soma do número de representantes dos
seis maiores partidos que a integrem e, nos casos de coligações para eleições
proporcionais, o resultado da soma do número de representantes de todos os
partidos que a integrem;
II - 10% (dez por cento) distribuídos igualitariamente.
(...)
§ 6º Aos partidos e coligações que, após a aplicação dos critérios de distribuição
referidos no caput, obtiverem direito a parcela do horário eleitoral inferior a trinta
segundos, será assegurado o direito de acumulá-lo para uso em tempo equivalente.

51
I - um terço, igualitariamente;

II – dois terços, proporcionalmente ao número de representan-


tes na Câmara dos Deputados, considerado, no caso de coligação,
o resultado da soma do número de representantes de todos os par-
tidos que a integram.

Nessa ADI foi declarada a inconstitucionalidade da expressão “re-


presentação na Câmara dos Deputados” prevista no caput do artigo
47 da Lei em referência, a constitucionalidade do § 6º do artigo 45 e
foi dada interpretação conforme a Constituição Federal para garantir
aos partidos novos, criados após a realização de eleições para a Câ-
mara dos Deputados, o direito de acesso proporcional aos dois terços
do tempo destinado à propaganda eleitoral no rádio e na televisão.

2. PRELIMINARES
Algumas preliminares de condição da ação foram motivo de
debate: impossibilidade jurídica do pedido e advogado com pode-
res específicos.
A impossibilidade jurídica do pedido foi a preliminar mais de-
batida diante de ação anterior proposta (ADI nº 1.822/DF) cujo
relator foi o Ministro Moreira Alves. Nesta ação a Corte foi unânime
em acolher a preliminar de impossibilidade jurídica do pedido sob o
argumento principal de que o Poder Judiciário somente atua como
legislador negativo e não como legislador positivo.
A seguir destacam-se alguns argumentos nos votos dessa preli-
minar que restou afastada para que o STF analisasse o mérito da ADI.
O Ministro Gilmar Mendes argumentou nos seguintes termos
quanto a essa preliminar:

52
Percebe-se que o Ministro Gilmar Mendes afasta a preliminar em
face de uma indeterminação sobre a atuação da corte e a confusão
do seu papel diante dos termos “legislador negativo” e “legislador
positivo”, principais argumentos para se acolher a preliminar na ação
anterior. Não houve identificação de apoio nesta decisão consideran-
do que o as razões se apoiam na ausência de um aval que determine
de forma objetiva e clara o papel da Corte constitucional.
A Ministra Carmen Lúcia argumentou no seguinte sentido:

53
Observa-se que de pronto a Ministra Carmen Lúcia se declarou
vencida nesta questão, em que pese haver votos pendentes. Não con-
seguimos identificar nos votos que fator pudesse ter levado à Ministra
a ter uma prévia ideia de que seu voto seria vencido. Isto pode indicar
que talvez exista previa análise e conhecimento acerca dos votos.
Os votos dos demais ministros foram curtos e sem muita cons-
trução a ponto de ensejar uma análise mais profunda e uma cons-
trução nos termos do quadro proposto. Nesse sentido, seguem as
análises simplificadas:
O Ministro Luiz Fux: condição da ação é questão processual
e, portanto, o reconhecimento da possibilidade jurídica do pedido

54
pode depender da formulação. E, neste caso, não há óbices para
o exame de mérito.
Ministro Marco Aurélio Mello: Votou pela manutenção da im-
possibilidade jurídica do pedido sob o argumento de que o STF
não pode ser legislador positivo e, portanto, deve-se respeitar a
separação dos 3 poderes.
Ministro Ricardo Lewandowski: simplesmente acompanhou o
Ministro Marco Aurélio e a Ministra Carmen Lúcia quanto a im-
possibilidade jurídica do pedido.
Ministro Joaquim Barbosa: votou pelo não conhecimento pela
impossibilidade jurídica do pedido.
Foram, portanto, 4 votos divergentes quanto a esta preliminar:
Ministro Marco Aurélio, Joaquim Barbosa, Carmen Lucia e Ricar-
do Lewandowski.
Quanto a preliminar de necessidade de poderes específicos dos
advogados, o Ministro Marco Aurélio restou vencido, ocorreu, po-
rém, uma situação interessante: este Ministro concordou com a so-
lução do Ministro Relator (Dias Tofolli) para afastar a preliminar de
necessidade de poderes específicos e conhecer da ação, mas diver-
giu das razões propostas. Ou seja, ele concordou que a ação deveria
ser conhecida, da mesma forma que o Ministro Relator, porém res-
tou vencido, por ter discordado das razões envolvidas.
As razões do Ministro Dias Tofolli (relator) quanto a esta pre-
liminar, foram no entendimento de que deveria haver poderes es-
pecíficos na procuração para a atuação de advogados nas ações
diretas de inconstitucionalidade. Mas como se tratava de apenas
um demandante com problemas e se formou um litisconsórcio
ativo na ADI, o Ministro não viu problemas em dar prazo para
a parte que outorgou procuração com poderes gerais apresentar
uma procuração com poderes específicos.
Já o Ministro Marco Aurélio entendeu que não havia problema
em ser apresentada procuração com poderes gerais e, portanto, de-

55
veria ser afastada a preliminar. Entendeu o Ministro que o critério
de representatividade estava satisfeito, em que pese constar como
“voto vencido”, votou pela continuidade da ação com o afastamen-
to do impedimento suscitado desta preliminar.

3. NO MÉRITO
Quanto ao mérito da questão, destaca-se o voto o Ministro rela-
tor, o qual restou vencedor. Neste voto foram votadas três questões:
acesso de integrantes da coligação em âmbito nacional, criação de
partidos e partidos com representação na Câmara. Estes três pontos
definiram a decisão que declarou a constitucionalidade do §6º do
art. 45 da Lei nº 9.504/1997, a inconstitucionalidade da expressão
“e representação na Câmara dos Deputados”, contida no § 2º do
art. 47 da Lei nº 9.504/1997 e deu interpretação conforme à Cons-
tituição Federal ao inciso II do § 2º do artigo 47 da mesma lei, para
assegurar aos partidos novos, criados após a realização de eleições
para a Câmara dos Deputados, o direito de acesso proporcional aos
dois terços do tempo destinado à propaganda eleitoral no rádio e na
televisão, considerando-se a representação dos deputados federais
que migrarem diretamente dos partidos pelos quais foram eleitos
para a nova legenda no momento de sua criação.
Restaram vencidos os Ministros Joaquim Barbosa e Cármen
Lúcia, que julgaram totalmente improcedente a ação, e os Minis-
tros Cezar Peluso e Marco Aurélio, que acompanharam o Relator
quanto à inconstitucionalidade da expressão “e representação na
Câmara dos Deputados” e declaravam a inconstitucionalidade da
expressão “um terço” contida no inciso I do referido art. 47, bem
como de todo o seu inciso II.
O voto do relator foi no seguinte sentido quanto a inconstitucio-
nalidade da expressão “e representação na Câmara dos Deputados”:

56
Já o voto do Relator quanto ao acesso de integrantes da co-
ligação em âmbito nacional, utilizando-se do tempo da coligação
regional, seguiu-se nos seguintes fundamentos:

57
Segue abaixo, o voto do Relator quanto à interpretação confor-
me à Constituição para assegurar aos partidos novos criados após
a realização de eleições para a Câmara dos deputados o direito de
acesso proporcional à propaganda eleitoral no rádio e na televisão,
considerada a representação dos deputados federais que migrarem
diretamente dos partidos pelos quais foram eleitos para a nova le-
genda no momento da criação:

58
O Ministro Joaquim Barbosa antecipou seu voto, sob o argumento
de que talvez não estivesse até o final da sessão. Destacou, inicialmen-
te, que a ação direta estava resolvendo um problema pontual de certas
agremiações e que a Ação Direta não se presta a esse tipo de jurisdição.

59
Ressalta-se que o Ministro Joaquim Barbosa nem ao menos
adentrou no mérito da questão, manteve o posicionamento quan-
to ao não conhecimento da ADI, mas, apesar de superada essa
preliminar, não se posicionou sobre as questões envolvendo as
outras questões debatidas.
O Ministro Luiz Fux inicia seu voto destacando o caráter pós-
-positivista da CF/88, sob o argumento de que esta trouxe inúmeros
princípios que “hoje estão situados no centro do sistema jurídico e
irradiam as suas forças para a interpretação e aplicação do direito
em si” e acompanha o voto do Relator.

60
A Ministra Rosa Weber, inicialmente, destaca a garantia de
acesso as minorias (ponto também levantado pelo Ministro Luiz
Fux) e acompanha o voto do Relator. A ministra chegou a cogitar
a necessidade em se declarar a inconstitucionalidade também
do inciso II do artigo 47 da referida Lei. Indicou, ainda, que a
migração do candidato com justa causa poderia acarretar a pos-
sibilidade de se estender o mandato eletivo ao candidato e não
ao partido, mas em regra, o mandato eletivo pertence ao partido
e não ao candidato. Em que pese a manifestação desse entendi-
mento, a Ministra esclareceu que deixará para casos futuros esse
posicionamento e acompanhou o relator.

61
O Ministro Lewandowski destacou que, com relação à incons-
titucionalidade do § 6º do art. 45, já tinha se manifestado no Tri-
bunal Superior Eleitoral (TSE) pela constitucionalidade. Quanto ao
art. 47, § 2º, I e II, da Lei das Eleições entendeu pela inconstitucio-
nalidade da expressão “representação na Câmara dos Deputados” o
Ministro foi sucinto e explicitou apenas que essa expressão ofende
o artigo 17 da CF e por isso deve ser declarada inconstitucional, ao
final cita o artigo 1º, V, da CF como respaldo da decisão.
Quanto à interpretação conforme à CF, o Ministro se estendeu
um pouco mais do que os outros ministros, lançando os seguintes
argumentos:

62
O Ministro Cezar Peluso iniciou anunciando um posicionamen-
to contrário e, partindo do pressuposto de que a CF não distingue
partidos políticos, exarou seu voto no seguinte sentido:

63
No voto do Ministro Gilmar Mendes, este voltou a falar sobre
legislador positivo e negativo e defendeu que é quase impossível que
a técnica de decisão “não envolva uma eventual prestação normativa
por parte do legislador em casos determinados, ou que, eventualmen-
te, as Cortes não adotem decisões de caráter normativo ou de caráter
positivo”. Outro ponto destacado pelo Ministro é o entrecruzamento
entre o processo de controle concreto e o processo de controle abstra-
to, dizendo que não há como fazer uma separação completa. Citando
alguns autores como Kelsen e Heineken o Ministro destaca que o
processo objetivo afeta as situações subjetivas, dando o exemplo da
modulação dos efeitos: se modula para afetar as situações concretas.
Quanto ao caso especificamente, o Ministro inicia citando Carl
Schimitt, que diz “que a igualdade de chances é uma base do princí-
pio democrático e que o partido minoritário só não vai para o direito

64
de resistência porque ele pode fazer a alternância de poder e é preciso,
portanto, que essa alternância seja devidamente institucionalizada”.
Destaca, ainda, a decisão no caso de fidelidade partidária “em
que se admitiu a saída do partido quando houvesse deslealdade pro-
gramática ou quando houvesse o propósito de constituir-se uma ou-
tra agremiação”.
Dito isso, o Ministro elogiou o voto do relator, destacando que,
em que pese seu entendimento da necessidade de igualdade, con-
siderou que o voto do relator foi interessante do ponto de vista da
transição entre duas alternativas e, assim, acompanhou o voto do
relator nos seguintes termos:

Já o Ministro Marco Aurélio destaca, principalmente, o princí-


pio da igualdade, nos seguintes termos:

65
O Ministro Ayres Brito inicia seu voto enaltecendo a decisão
do relator, destacando a soberania popular e o voto direto e secre-
to. Após, diz que a previsão constitucional “na forma da lei”, tem
sim o condão de possibilitar ao Congresso realizar diferentes pesos
entre partidários e parlamentar. O Ministro cita Vinicius de Moraes
quando se refere à justiça e aos princípios da razoabilidade e pro-
porcionalidade que, segundo o Ministro, “servem de ponte entre os
valores jurídicos, os bens jurídicos, as figuras de Direito e a justiça”.
Destaca, ainda, que a Lei “ficou autorizada a fazer a distinção
entre os partidos políticos em matéria de fundo partidário e de aces-
so aos programas “gratuitos” de rádio e televisão”, mas “laborando
nos planos de razoabilidade e proporcionalidade”.
Ao fim, acompanha o relator, sob o argumento de que este apli-
cou de forma feliz os princípios da proporcionalidade e razoabilida-
de. Segue-se o resumo do voto do Ministro Ayres Brito:

66
Por fim, concluem-se os votos com o voto da Ministra Carmen
Lúcia que destacou a importância do julgamento e considerou que
o Brasil tem situações paradoxais, argumentando que “todos são a
favor da república, desde que seja para o outro, todo mundo é a favor
de concurso público, desde que seja para o outro; todo mundo é a fa-
vor de licitação, mas quer inexigibilidade de licitação; todo mundo é
a favor de eleição, mas quer contar com eleitos que o foram por outro
partido. Eu tenho muita preocupação com essas situações paradoxais
do Brasil”. Defendeu que “não haja apenas eleitos, mas a presença do
povo que elege e que pode ser apontado em determinado momento,
que é o da eleição. Democracia se faz com o povo, com o cidadão e
isto se mostra na eleição”. Continuou o voto focando principalmente
na criação de partidos, nos seguintes termos:

67
Assim, restaram vencidos os Senhores Ministros Joaquim Bar-
bosa e Cármen Lúcia, que julgaram totalmente improcedente a
ação, e os Ministros Cezar Peluso e Marco Aurélio, que acompa-
nharam o Relator quanto à inconstitucionalidade da expressão “e
representação na Câmara dos Deputados” mas declaravam também
a inconstitucionalidade da expressão “um terço” contida no inciso I
do referido art. 47, bem como de todo o seu inciso II.

4. CONCLUSÃO
Houve diversos pontos de reflexão nesta decisão, dentre eles os
limites de atuação do legislador, a função dos princípios da propor-
cionalidade e razoabilidade como limites de atuação do legislativo,
a possibilidade da Corte Constitucional adotar posições de caráter
normativo positivo, também se é possível fazer a distinção entre
caráter normativo positivo e negativo, se há possibilidade de se
diferenciar completamente o controle abstrato do controle concreto,

68
se há algum ponto de congruência mais do que afastamento ou,
ainda, se pode-se falar em entrecruzamentos de controle.
Percebe-se que, em que pese a ADI versar sobre 3 pontos (in-
constitucionalidade da expressão “representação na Câmara”, inter-
pretação conforme e constitucionalidade do § 6º) alguns ministros
votaram apenas sobre um item, principalmente sobre a expressão
“representação na Câmara”, acompanhando ou não o relator nos
demais, não sendo possível extrair os fundamentos das decisões
sobre os demais pontos de várias decisões.
Alguns ministros se respaldam na legislação infraconstitucional
e na Constituição Federal, outros citam diversos autores, fazendo
menção inclusive a poesias, argumentando de forma muitas vezes
abstrata e vaga.
Nesse sentido o voto, de tão vago, poderia justificar qualquer
outra questão envolvida. Os princípios da proporcionalidade e ra-
zoabilidade, por exemplo, foram trazidos pelo Ministro Ayres Britto
como critério para se aferir a justeza da decisão. Sendo que justifica
essa proporção citando uma frase de Vinícius de Moraes “a beleza
que não é só minha, que também passa sozinha”, extraindo dessa
frase que a justiça não existe sozinha, mas, sim, os outros valores
como intimidade, privacidade, imagem, honra. O quantum para
que sejam considerados esses valores vai depender a aplicação das
“cotas” de proporcionalidade e razoabilidade.
Percebe-se um alto grau de subjetividade na estipulação desse
quantum, ficando prejudicados os dados e o respaldo, sendo que não
se pode extrair uma qualificadora forte, necessária, mas apenas de
presunção, não sendo necessariamente apropriado e cuja legitimida-
de provém muito mais da autoridade de quem emite a decisão do que
pelo argumento e por isso ficou propositadamente em branco esse
quadro no esquema. Não significa, com isso, que a garantia esteja
necessariamente errada, mas certamente ela não é auto-autenticante.

69
Da mesma forma é o voto do Ministro Gilmar Mendes, que tam-
bém foi difícil de identificar uma qualificadora. Além disso, a garantia
se revela mais por uma necessidade identificada pelo próprio julga-
dor: a necessidade de uma cláusula de transição. Nesse sentido, sendo
necessária uma cláusula de transição, o Relator decidiu corretamente.
Ocorre que não se vislumbra, pelo voto, qualquer fundamento quan-
to ao mérito da decisão, apenas justificativas para toma-la, sendo isso
suficiente para que o Ministro acompanhasse o Relator.
Como já destacado, em que pese o debate de três questões na
ADI, vários votos se restringiram a um ponto de debate, um princi-
pal, acompanhando o relator quanto aos outros pontos.
Apresenta-se, portanto, neste trabalho, um resumo em forma
de esquema utilizando-se da metodologia de análise de Stephen
Toulmin, de cada decisão dos Ministros que votaram a ADI 4430,
inclusive quanto aos principais debates envolvendo preliminares,
para análise da coerência interna.

5. REFERÊNCIAS
ATIENZA, Manoel. As razões do direito: teorias da argumentação
jurídica. São Paulo: Landy, 2003.

TOULMIN, Stephen E. Os usos do argumento. Trad. Reinaldo Gua-


rany. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

70
A DEMOCRATIZAÇÃO DO P OD E R
JUDI C I ÁRIO COMO NOVA FOR M A D E
CO N TROLE DAS DECISÕES J UD IC IA IS
Thiago Braga Dantas17

Introdução
Na pós-modernidade, com a perda de referências para o com-
portamento social, o Direito, até em razão de sua aproximação
com as outras ciências sociais, e também com a Moral, restou
mais dinâmico e complexo, o que começa a gerar mudanças no
seu comportamento científico.
Na modernidade, quando ainda imperava o movimento do po-
sitivismo jurídico, a lei era tida como fonte única da aplicação do
Direito. Na pós-modernidade, à legalidade estrita, acrescentaram-
-se inúmeras influências, como elementos jurídicos não normati-
vos (decisões judiciais, doutrina) e até extrajurídicos (moral, reli-
gião, influência econômica e política, por exemplo).
Essa multiplicidade de fatores ficou evidente a partir da Se-
gunda Guerra Mundial, quando, durante o período nazista, a cena
de horror do holocausto teve base legal, em razão do confinamen-
to jurídico na estrita legalidade, que precisou ser superada.
O Direito, cientificamente, teve de expandir o seu fenômeno
para não se restringir à estrita legalidade. A lei, antes com cláusulas
taxativas, passou a se utilizar de conceitos jurídicos mais vagos

17. Professor Assistente da Universidade do Estado do Amazonas. Mestre em Ciências


Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba. E-mail: [email protected]

71
com o advento das garantistas constituições do Século XX, quando
o papel do Judiciário na sua aplicação se tornou exponencial.
A maior participação do Poder Judiciário na implementação
do Direito tem alterado a sua institucionalidade, antes concebido
como órgão estritamente técnico à luz da clássica tríplice divisão
de poderes, agora tendo os seus integrantes na condição de teóri-
cos políticos, pois, dada a ampla margem de atuação, acabam por
definir importantes questões do seio social, muitas vezes próprias
ao Poder Legislativo, mas que, em razão da delicadeza desses te-
mas, não se alcança consenso político.
A Sociedade deve se apoderar do procedimento, dos fatores, das
influências de como são construídas as decisões judiciais, porque a
sua natureza técnica, então defendida com base no pensamento po-
sitivista, passa a perder espaço para juízo de índole mais pragmática,
em prestígio às situações fáticas dos casos concretos (com menos va-
lor às normas abstratas), fase que é denominada de pós-positivista, a
concretização da pós-modernidade no campo jurídico.
O Judiciário deve ser analisado externamente, com o apoio das
ciências sociais, no intuito de que essa importante estrutura jurídi-
co-social seja compreendida no contexto da pós-modernidade, até
para que se possa verificar até em que medida ele goza de legitimi-
dade para assumir esse papel ou é utilizado como mantenedor da
superestrutura jurídica enquanto mecanismo de dominação social.
Apesar de a mudança desse perfil começar a ser percebida cien-
tificamente, grande parte da doutrina e do Judiciário ainda insistem
em se apegar ao antigo papel de técnico, de que as suas decisões
podem ser justificadas por inúmeras teorias argumentativas, que,
ao fim, não conseguiram tracejar caminho científico a ponto de
demonstrar como as estruturas jurídicas poderiam ser aplicadas de
forma neutra, sem influências políticas.
Essa percepção clássica do funcionamento do Poder Judiciário
tenta camuflar a sua influência na formação dos juízos políticos,

72
na perspectiva de imunizá-lo das consequências de suas decisões.
O objetivo deste trabalho é demonstrar a mudança do perfil ins-
titucional do Poder Judiciário quando da sua entrada na arena
política para que, na democracia, com seu contínuo processo de
aprimoramento, seja possível avaliar até que ponto essa nova atu-
ação é legítima no regime democrático e estabelecer novas formas
de controle de sua atuação.

Desenvolvimento
A pós-modernidade é conceito ambíguo que significa o que
vem depois ou o estado de transição que disseca o fim da moder-
nidade, que caracterizaria o estado de reflexão sobre a experiên-
cia da modernidade (KUMAR, 2006, p. 106). Beck (2003, p. 20)
acrescenta que “a palavrinha pós é a bengala de cego de intelec-
tuais”. Essa percepção decorre dos diagnósticos parciais acerca
dos conceitos já ultrapassados sem a concomitante construção de
novos. A complexidade da sociedade contemporânea não se deixa
apreender pelos antigos paradigmas modernos.
A complexidade é um fenômeno quantitativo, a extrema quan-
tidade de interações e de interferências entre um número muito
grande de unidades, além de incertezas, indeterminações e fenôme-
nos aleatórios, enfim, uma cautela contra a clarificação, a simplifi-
cação e o reducionismo excessivo (MORIN, 2011, p. 33-35).
Edgar Morin, importante interlocutor do pensamento comple-
xo, insta o movimento científico a sair do confortável mundo da
hiperespecialização dos saberes, ao apontar a necessária mudança
da postura de conceber os problemas de forma parcelável, uma
vez que na vida eles são globais. A cultura científica clássica se-
para as áreas do conhecimento. O desafio da globalidade represen-
ta também o desafio da complexidade, conjunto dos componentes
inseparáveis. Esse confinamento acaba por estagnar a capacidade
de reflexão e nos atrofia na ignorância, pois a capacidade de con-

73
textualizar e de integrar é aptidão fundamental da mente humana
(MORIN, 2003, p.13-14).
Com o referido autor se afirma que o saber tornou-se esotérico
(somente os especialistas têm acesso) e anônimo (quantitativo e
formalizado), o que acaba por excluir o cidadão do conhecimento.
Essa realidade pode ser observada, sobretudo, no campo da políti-
ca, que, quanto mais técnica, mais regride a competência democrá-
tica. É necessária a democracia cognitiva (MORIN, 2003, p.18-19).
Como adverte Bobbio (2015, p. 59-60), “Tecnocracia e democracia
são antitéticas: se o protagonista da sociedade industrial é o espe-
cialista, impossível que venha a ser o cidadão comum”.
O desenvolvimento do pensamento deve estar pautado na dú-
vida, na opinião crítica. Deve-se valorizar a ligação, a síntese e a
organização do conhecimento, quando ainda hoje nos detemos na
separação e na análise. É urgente o “pensamento ecologizante”, que
se demonstra necessariamente complexo, uma vez que situa o co-
nhecimento com o seu meio ambiente, na procura de relações e inter-
retroações entre cada fenômeno e o seu contexto, sem menosprezar
as relações de reciprocidade todos / partes (MORIN, 2003, p. 25).
Nesses casos de múltiplos elementos a considerar, os aplica-
dores das estruturas jurídicas ainda não estão preparados para
correlacioná-las de forma clara. Como dito, com Morin e o pensa-
mento complexo, é preciso aprender a religar.
A ordenação da vida, a sua modelagem, não pode ser vista
apenas pela sua embalagem (estrutura jurídica), o procedimento
de formalização ou de ordenação das expectativas dominantes. É
preciso considerar as suas fontes materiais, que é a vida cultural
empreendida no seio social. A cultura jurídica já se ressentiu des-
sa deficiência, mas não aprendeu a desenvolver conscientemente
as suas relações com as outras estruturas sociais.
Na sua evolução, o homem primeiro satisfez as suas necessida-
des físicas, o que não foi suficiente, pois, diferentemente dos outros

74
animais, possui racionalidade, e então surgiram outras necessida-
des: as do espírito. É quando se forma a cultura.
As estruturas jurídicas são complexas, porque visam a ordenar
a vida em sociedade. Elas nos servem para propiciá-la, já que são
instrumentos de pacificação social. As suas finalidades essenciais
residem na segurança jurídica e na justiça. Essa duplicidade fina-
lística é uma relação complexa por essência, porque nem sempre
é possível determinar qual deve ser a sua finalidade fundante, por
mais que, comumente, propugne-se que só existe justiça numa se-
gurança fundante (NADER, 2015, p. 119).
Ao longo de toda a sua evolução, as estruturas jurídicas são
permeadas pelo embate ideológico entre a rigidez (positivismo, se-
gurança) e a flexibilidade (jusnaturalismo, justiça). Com o fortaleci-
mento dos Estados Absolutistas e das grandes Codificações Moder-
nas, o positivismo jurídico ganhou o seu esplendor e, apesar de ter
sofrido certa decadência no final desse século XIX (pois a realidade
é dinâmica e se perdeu a conexão com os anseios do tecido social),
a lei foi instrumento ideológico ou ingrediente de uma das maiores
atrocidades da história da humanidade no Século XX: o holocausto.
As estruturas jurídicas então tornaram-se dúcteis, com influ-
ência da Moral, Filosofia, Sociologia etc., exatamente para que
houvesse a sua religação com o ser humano, a sua finalidade pri-
mordial. Era preciso permeá-las pela eticidade. O sistema jurídico,
enfim, concebeu-se complexo, no sentido da religação dos saberes.
A Sociedade hoje está centrada na ideia do Direito e do Siste-
ma Judicial em razão de, no final da década de 80, o Judiciário,
centro de legitimação do Estado, ter adquirido proeminência por
meio de mudança política proporcionada pelo modelo de desen-
volvimento que se assenta nas regras de mercado e nos contratos
privados, bem como em função da precarização dos direitos eco-
nômicos e sociais. Isso tudo ainda foi associado ao aumento da
consciência dos direitos (SANTOS, 2011, p. 12-14).

75
O Poder do Judiciário ainda aumentou o seu poder de influên-
cia porque as leis e a Constituição começaram a se valer de concei-
tos legais mais abertos ao abandonar a técnica de regras taxativas,
a fim de possibilitar maior papel criativo do magistrado, justamente
para que as normas jurídicas fossem aplicadas em contexto mais
amplo, a ponto de espelhar a riqueza do fenômeno social. Esse con-
junto de fatores que exerce influência nas estruturas jurídicas pode
ser evidenciado com a exposição de Costa (2016, p. 2):

Nada é mais inapropriado do que dizer que a


interpretação dos textos normativo-processuais é
uma técnica de subsunção dos fatos à norma. O
equívoco seria duplo: não há subsunção alguma; a
interpretação não parte de normas, mas de textos.
Mesmo assim, os operadores do processo não se
socorrem apenas dos textos normativos. Ledo en-
gano pensar que juiz, advogados, integrantes do
Ministério Público e doutrinadores, por exemplo,
atuam estrategicamente escorando-se somente no
Código de Processo Civil ou nas leis processuais
extravagantes. A interpretação processual está
longe de ser o resultado da soma dos sentidos par-
ciais frasais que integram esses textos de direito po-
sitivo. Não se trata, enfim, de uma apreensão linear
somatória dos “efeitos de sentido” emergentes de
“partes” do texto. Decididamente, a interpretação
é um fenômeno transproposicional, enunciativo. Os
operadores sempre “trabalham” um complexo de
bases extralinguísticas e intralinguísticas. Essas ba-
ses são formadas por três tipos de matéria-prima:
textos, cotextos e contextos.

Trata-se de elementos: 1) jurídico-normativos


(por exemplo, Constituição, Código de Processo

76
Civil, leis processuais civis extravagantes, regi-
mento interno dos tribunais); 2) jurídicos não nor-
mativos (por exemplo, jurisprudência, doutrina);
3) extrajurídicos normativos (por exemplo, moral,
religião); 4) extrajurídicos não normativos (por
exemplo, utilidade econômica, conveniência polí-
tica); 5) contextuais objetivos culturais (por exem-
plo, senso comum, cultura local); 6) contextuais
objetivos naturais (por exemplo, quadro espaço-
-temporal); 7) contextuais subjetivos enunciáveis
(por exemplo, convicções próprias, erudições pes-
soais); 8) contextuais subjetivos não enunciáveis
psíquico-individuais (por exemplo, desejos, medos,
sentimentos); 9) contextuais subjetivos não enunci-
áveis psíquico-sociais (por exemplo, grau de instru-
ção, nível cultural, pressão social, preconceitos de
classe). Daí porque o sistema de processo civil não
é um subsistema rigidamente fechado, que parte
só de textos normativo-processuais (dialogismo in-
tertextual monologal), mas um sistema com algum
grau de abertura, pois usa bases textuais não ju-
rídicas, textuais jurídico-normativas e não textuais
(dialogismo interacional plurilogal).

Como se vê, a constituição do produto da inter-


pretação processual não se exerce a partir de um
monólogo com a Constituição, o CPC e as leis pro-
cessuais extravagantes. Enfim, ela não depende
somente das determinações referenciais do texto.
Os elementos extratextuais são “coconstitutivos”
dos discursos tecidos pelos operadores do pro-
cesso, motivo pelo qual não se trata de condições
externas de índole sociológica ou psicológica [=
perspectiva extrinsicalista]. Em verdade, há um di-

77
álogo, uma conjugação inseparável entre elemen-
tos determinantes textuais (lógicos, semânticos,
sintáticos, hermenêuticos, etc.) e contextuais (qua-
dros situacionais, existenciais, sociais, históricos,
psicológicos, etc.) na formação da significação
jurídico-processual (= perspectiva intrinsecalis-
ta). Daí porque há quem afirme que o texto nada
mais é do que uma unidade de uso em situação de
interação, uma unidade semântica em contexto.
Isso permite que o direito processual civil (e não,
simplesmente, o texto normativo-processual) seja
incessantemente inserido na realidade, enfim, que
o juiz e as partes lhe confiram contemporaneida-
de, fazendo-o adaptativo. Interpretar não signifi-
ca, simploriamente, “atualizar” o texto normativo.
Não se trata de converter conceitos em representa-
ções particulares inscritas no espaço-tempo. Trata-
-se de um permanente trabalho de “atualização”
e de “reatualização” do próprio subsistema pro-
cessual civil. Trata-se, em outros termos, de um
movimento sem fim, em que o direito processual
civil positivo é reengendrado pela prática forense
quotidiana por meio de um contínuo processo in-
telectivo, em que a Constituição Federal, o CPC e
as leis processuais civis extravagantes são coparti-
cipantes, não o limite do possível.

Contemporaneamente, em superação ao risco de aplicação es-


trita das normas, até pelos muitos elementos que influenciam as es-
truturas jurídicas, vivencia-se o outro extremo: o grande empodera-
mento dos magistrados. O Judiciário, na figura do Supremo Tribunal
Federal, a partir de 2004, passou a se tornar mais ativista, ao investir
na valorização dos elementos extrajurídicos ou mesmo nos jurídicos
não normativos, em desprezo, muitas vezes, aos elementos textuais.

78
Críticas são observadas quanto à invasão da competência do Poder
Legislativo. Ao aplicar a lei, o ator jurídico não se limita a interpre-
tar o texto pré-existente, mas avança ao adscrevê-lo, porque sempre
acrescenta um sentido ao texto interpretado (MITIDIERO, 2016).
A despeito da rigidez da separação dos Poderes, é o Judiciário
quem se depara com os desafios da aplicação das normas, em razão
da riqueza dos fatos sociais e da omissão do Legislativo em discutir
temas impopulares (aborto, casamento homoafetivo, descrimina-
lização do uso pessoal de drogas etc.). O Judiciário, destinado a
proteger a Constituição, por vezes, tem que operacionalizar obriga-
toriamente a defesa dos direitos dos cidadãos.
Do ponto de vista epistemológico, pretende-se unir positivismo
(estrutura jurídica reconhecida e imposta pelo Estado) e certa cor-
reção moral de inspiração jusnaturalista (estrutura jurídica que in-
depende do reconhecimento do Estado, pois é extraído da natureza
humana) no movimento que se denomina de neoconstitucionalis-
mo, quando o texto constitucional deixa de possuir uma figuração
de mera carta de intenções e passar a gozar de imperatividade e de
centralidade no ordenamento jurídico.
A Constituição, permeada de valores morais, não é mais texto
meramente político para se tornar parâmetro obrigatório de crítica
à atuação do Poder Legislativo (controle de constitucionalidade
formal e material), em garantia de que a estrutura jurídica abar-
que segurança e justiça sem os excessos de cada finalidade em
separado. O dilema de sempre é dosá-las, circunstância tão carac-
terística da complexidade. Nesse movimento integrador ainda não
se questiona a neutralidade política.
Em viés mais crítico, a estrutura jurídica pode ser encarada en-
quanto eficiente tecnologia de dominação social. O seu desenvol-
vimento foi propiciado em razão das necessidades do capitalismo
moderno, que precisou conferir segurança às suas práticas. A força, a
coação, como método propiciador da interação social, não favorecia

79
mais os anseios do capitalismo. Era necessário que o ser humano se
tornasse sujeito de direitos a fim de participar livremente do movi-
mento cíclico do trabalho e do consumo. A força passou a ter papel
coadjuvante e de salvaguarda, na figura político-jurídica garantidora
da estrutura jurídica moderna: o Estado (MASCARO, 2015).
A Escola Crítica do Direito sempre propugna que, na sua apli-
cação, a estrutura jurídica deve sempre permear outros interesses
além daqueles subjacentes ao capital, para fugir, o quanto possível,
da dominação. A segurança e a rigidez devem ceder margem ao
livre desenvolvimento do ser humano, em exercício crítico, carac-
terístico da mudança de pensamento, da opinião crítica. Foucault
(2013, p. 34-35) pondera que as condições políticas e econômicas
não seriam um obstáculo ao sujeito do conhecimento, mas os cami-
nhos que formam esses sujeitos e as relações de verdade.
Na segunda metade do século XX, a estrutura jurídica vem sen-
do utilizada em demasia como discurso legitimador de várias deci-
sões políticas, que não seriam técnicas numa concepção mais for-
malista (literalidade dos textos das leis). Não se trata apenas da lei,
mas da Política, da condição subjetiva do juiz, das consequências
da decisão a tomar, das pressões feitas pela sociedade e pela mídia.
Segundo Mascaro (2015), as cortes constitucionais passaram a se
comportar como cortes majestáticas, pois o controle da sua atuação
não se dá mais pela análise da fundamentação das suas decisões, mas,
sobretudo, pelas consequências delas. Trata-se, como lembra Robert-
son (2010, p. 348), da transformação dos juízes em teóricos políticos.
Santos (2011, p. 6-7) alerta que somos herdeiros de várias pro-
messas da modernidade (igualdade, liberdade e fraternidade) que
não foram cumpridas e propõe a formatação de novo senso co-
mum jurídico, cujas premissas são a crítica ao monopólio estatal
e científico do Direito, com a necessidade de sua repolitização
(dadas as novas funções políticas e simbólicas assumidas pelo
Judiciário) e de sua valorização enquanto instrumento universal
da transformação social politicamente legitimada.

80
Essa repolitização do Direito é extremamente necessária, uma
vez que a sua naturalização, iniciada com o positivismo (ao res-
tringir seu conteúdo acriticamente à lei), agora, mesmo com o ne-
oconstitucionalismo, com grande ampliação do fenômeno jurídi-
co, pela influência de valores morais, ainda assim é naturalizado a
partir da argumentação jurídica exercida pelos Tribunais, não mais
singelos órgãos técnicos, mas com clara função política.
Não se deseja o retorno ao determinismo do positivismo jurídi-
co, apenas mais clareza na construção da relação entre as estrutu-
ras jurídicas e políticas, em franco processo de acoplamento (LUH-
MANN, 2016, p. 377). De acordo com Foucault (2013, p. 31), para
conhecer o conhecimento, deve-se aproximar dos políticos, para se
compreenderem as relações de luta e de poder.
Como assevera Rodriguez (2016, p. 42), em crítica ao posicio-
namento enviesado quanto ao formalismo (positivismo) e ao idea-
lismo (neoconstitucionalismo):

No realismo jurídico, por contraste às posições


acima, regras e decisões judiciais expressam “op-
ções políticas”, não neutras, não naturais e não
necessárias. Os elementos de discricionariedade
associados ao método dedutivo de decisão judicial
e a seu exercício são expostos, assim como é o
conflito constante entre os diferentes ideais e prin-
cípios de organização da vida em sociedade, de
maneira a procurar demonstrar que o formalismo
e o idealismo, em suas expressões de então, e ape-
sar de suas diferenças e de sua pretensão à neutra-
lidade, naturalidade e necessidade, representam
tentativas de justificar papel específico do Estado
(limitado) e determinada organização das relações
patrimoniais (conservadora ou oligárquica).

81
Essa divergência quanto ao método interpretativo ou o papel
da subjetividade na aplicação das estruturas jurídicas já se exauriu
sem que se consiga consenso entre as posições antagônicas, pois no
Direito se quer segurança, método capaz de sempre oferecer a solu-
ção correta para vários casos concretos. Há vários pontos de partida
como visto (positivismo, idealismo ou realismo), mas haverá possi-
bilidade de preestabelecer um que seja correto para todos os casos?
A incerteza permeia as estruturas jurídicas como aflige todos os
campos científicos. A estrutura jurídica é uma ficção e existe menos do
que o que realmente existe (onde logicamente tudo pode acontecer).
Mas não é totalmente uma ficção, pois diz respeito a um possível esta-
do de coisas a se realizar, porque é uma realidade deôntica, que requer
a crença no dever ser (GUERRA FILHO; CARNIO, 2013, p. 201-202).
Nas relações estabelecidas entre as estruturas jurídica e políti-
ca, a primeira nasce da segunda e, dada a riqueza nas trocas dos
signos linguísticos entre os participantes da prática social, a estru-
tura jurídica torna a ser política na aplicação, porque dependente
sempre de um ato de vontade, de escolha.
O exaurimento desse problema científico do seguimento jurídico,
a tentativa de controle da sua aplicação a partir de teorias argumentati-
vas ou da lei a fim de reduzir o grau de subjetividade na sua aplicação,
se visto de forma complexa, só pode levar a reformar a própria insti-
tucionalidade do Judiciário, para passarmos a vê-lo como um poder
político tal como o Executivo e o Legislativo e analisar a possibilidade
de revisão de sua organicidade, sem a falha insistência de justificar a
sua atuação a partir de ponto de vista pretensamente neutro.
A incerteza ou a influência da subjetividade é sabidamente
existente no fenômeno jurídico como em todos os outros. A postura
de controlá-la, no entanto, não deve ser a de simplesmente camu-
flar a sua existência a partir da técnica. É preciso tratar o Judiciário
como órgão político para ser possível democratizá-lo.

82
A Justiça deve ser democratizada para que no seu seio formem-
-se consensos esclarecidos. É a partir disso que se podem questio-
nar também os limites da legitimidade democrática para a atuação
jurisdicional em determinados casos.
Poder-se-ia até fomentar nova categoria na morfologia política
básica (regime de governos, formas de Estado, formas de governo e
sistemas de governo), o sistema de poderes, pois hoje o Judiciário
acaba acumulando tarefas que podem requerer novas plataformas
institucionais (SOUZA JÚNIOR; REVERBEL, 2016, p. 159-160), em
detrimento da clássica tríplice divisão de poderes.
Rodriguez (2016, p. 26), em linha argumentativa que se poderia
apontar como complexa, destaca que o problema da indeterminação
jurídica não advém da estrutura institucional-normativa do processo
de aplicação do Direito, que é variável, mas da configuração institucio-
nal do Poder Judiciário. Ressalta-se, ainda, que esse grau de indeter-
minação jurídica ainda pode aumentar se houver tensão entre a socie-
dade e o seu direito, pois sua fonte real serão os conflitos sociais e não
uma questão meramente de linguística (RODRIGUEZ, 2016, p. 104).
Rodriguez (2016, p. 143-144) cita alguns exemplos de reformas
institucionais. A primeira é a nova separação dos poderes proposta
por Bruce Ackerman, inspirada na especialização funcional que pri-
vilegiasse a legitimidade democrática, especialização funcional e a
proteção a direitos fundamentais, com a proposta de criação de um
poder distributivo, com restrição à atuação do Poder Judiciário em
decisões de realocação de verbas orçamentárias.
Há ainda o poder desestabilizador de Roberto Mangabeira Unger,
que atuaria quando os órgãos não pudessem agir segundo proce-
dimentos regulares de participação política, agindo, sobretudo, me-
diante sistemáticas reformas estruturais (RODRIGUEZ, 2016, p. 147).
Há excessiva cobrança em relação ao Judiciário, refém do atraso
institucional proporcionado pela tripartição dos poderes. Algumas
matérias não caberiam a ele decidir (pelo menos sob a camuflagem

83
da técnica), que não poderia decidir sobre questões relativas à or-
denação social, como as de cunho distributivo (direitos sociais) ou
mesmo quando necessário empreender grandes reformas ou trans-
formações sociais (reforma política).
O Judiciário vem sendo compelido a tomar esses tipos de
decisões. Há reconhecimento de que essas matérias não seriam
estritamente jurídicas, mas também políticas. Nesses casos de in-
discernibilidade entre o político e o jurídico, essa nova institu-
cionalidade exigida do Poder Judiciário deve ser discutida, pois a
sociedade pós-moderna precisa de novos arranjos e isso deve ser
feito antes que o Judiciário seja vítima do seu próprio protago-
nismo político, já que se deslocou para ele a legitimação estatal
antes presente nos Poderes Executivo e Legislativo. Por mais que
a confiança do seio social na justiça não seja ampla, o Judiciário
é o último guardião do regime democrático.
A saúde do regime democrático na América Latina e no Brasil
não vai muito bem. O nível de apoio à democracia na América
Latina caiu a um patamar histórico, pois, desde 2010, o índice caiu
de 61% para 54%. No Brasil, no contexto da crise política, em
2015, em apenas um ano, caiu de 54% para 32% (CORPORACIÓN
LATINOBARÓMETRO, 2016, p. 8-12).
Santos (2011, p. 24) destaca que a Justiça precisa ser democrati-
zada, o que somente será possível se o Direito for operado em uma
sociedade democrática. O Judiciário, após a saída do regime ditato-
rial, não foi objeto de discussão de como democratizá-lo.
Os principais vetores da transformação jurídico-política do Ju-
diciário são:

profundas reformas processuais; b) novos me-


canismos e novos protagonismos no acesso ao di-
reito e à justiça; c) o velho e o novo pluralismo
jurídico; d) nova organização e gestão judiciárias;

84
d) revolução na formação profissional, desde as
faculdades de direito até a formação permanente;
e) novas concepções de independência judicial; f)
uma relação do poder judicial mais transparente
com o poder político e a mídia, e mais densa com
os movimentos e organizações sociais; g) uma cul-
tura jurídica democrática e não corporativa. (SAN-
TOS, 2011, p. 25).

A democracia, do ponto de vista material, apenas seria atingida se


os tribunais procedessem à ligação entre as disputas individuais e os
conflitos estruturais que dividem a sociedade (SANTOS, 2011, p. 69).
As Constituições procederam ao acoplamento estrutural entre
os sistemas jurídico e político (LUHMANN, 2016, p. 785). Apesar
de sistemas autopoiéticos, que são autoprodutores de suas estru-
turas e de sua posterior regeneração, não são totalmente fechados.
Permite-se que a solução dos problemas de cada sistema seja in-
fluenciada pelo outro. Essa interligação representa o acoplamento
entre esses sistemas.
A sociedade precisa promover a criação de instrumentos de
vigilância política do Poder Judiciário uma vez que, segundo pes-
quisa da Fundação Getúlio Vargas, o Índice de Confiança na Jus-
tiça (IPJ-Brasil), no segundo semestre de 2015, ficou em 4,5, em
uma variação de 0 a 10.
No cálculo desse índice, há dois subíndices: o de percepção e
de comportamento. O de percepção foi de 2,9 e ele leva em con-
sideração aspectos que tangenciam o tema já discutido, como a
independência política do Poder Judiciário. O subíndice de com-
portamento foi de 8,2, o que demonstra a utilização dos serviços
judiciários para a resolução dos conflitos mesmo que com grande
desconfiança (FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS, 2016, p. 11).
O acoplamento entre as estruturas jurídica e política requereu
nova feição política do Poder Judiciário na pós-modernidade, o

85
que torna indispensável o conhecimento das estruturas de poder
que permeiam as suas decisões judiciais.

Conclusão
Pelo estágio das discussões que envolvem a epistemologia
jurídica, é essencial a percepção de que o Direito já se concebeu
enquanto entidade complexa, o que foi proporcionado pelo ama-
durecimento teórico do neoconstitucionalismo, principalmente no
Brasil, o qual propiciou correção moral ao Direito, ainda que neutro
quanto ao aspecto político.
Com o exacerbamento do poder criativo dos juízes, houve reas-
cendimento crítico de viés formalista, com certo clamor de retrocesso
formal e, desta maneira, tudo continua ainda voltado ao processo de
aplicação do direito no contexto da subjetividade do aplicador.
A partir da influência do pensamento complexo, apreende-se que
a incerteza é inata ao conhecimento científico e o direito, mesmo que
preze pela segurança jurídica, tem de aprender a lidar com ela.
É preciso procurar a solução para a indeterminação jurídica em
outros aspectos, a partir da reforma institucional do Poder Judiciário.
Na pós-modernidade, observou-se que a tripartição dos Poderes
vivencia certo exaurimento, quando a sociedade contemporânea
requer novas estruturas institucionais, pois o Poder Judiciário foi
delineado organicamente para decisão de questões sem indiscer-
nibilidade entre direito e política. Em razão da omissão do Poder
Legislativo em tomar decisões para os novos problemas e da modi-
ficação na estrutura das normas jurídicas, o Poder Judiciário vem
sendo utilizado para tanto mesmo assim.
O enfoque para a resolução dos problemas de indeterminação
jurídica não deve ser o da neutra utilização de teorias argumenta-
tivas, mas o da reformulação institucional do Judiciário decorrente
de sua nova concepção enquanto agente político.

86
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der. O Tribunal Constitucional como Poder. 2. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2016.

89
SOLUÇÃO DE CONFLITOS
ESTUDO DE CAS O: AS EMO Ç ÕE S N A
CO N C I LIAÇÃO EXTRAJ UDIC IA L
Ana Siomara de Oliveira Ferreira18

INTRODUÇÃO
O termo Conciliação tem origem do latim conciliabulum, “que
significava nos tempos da Antiga Roma um local para se buscar um
acordo” (NETO, 2016, p. 1). Trata-se de um método autocompositivo
de solução de conflitos, ou seja, por meio do qual os envolvidos di-
retamente no conflito podem, eles mesmos, encontrar uma solução
consensual, com o auxílio de um terceiro imparcial, que pode agir su-
gerindo soluções possíveis, que podem ou não ser aceitas pelas partes.
No Direito Brasileiro, a Conciliação já se encontrava presente na
Constituição Imperial brasileira – de 25 de Março de 1824 -, que pre-
conizava a tentativa de conciliação antes da instauração de qualquer
processo. Ela também pode ser encontrada na Consolidação das Leis
do Trabalho – Decreto-Lei n° 5.452/46 -, que inclui duas tentativas
de Conciliação em reclamações trabalhistas; assim como, no Código
de Processo Civil de 1973, e no que entrou em vigor em 2016.
A criação e entrada em vigor de leis responsáveis por enfatizar
o uso de mecanismos consensuais nos últimos anos, como a Reso-
lução nº 125/10 do CNJ; a Lei de Mediação – Lei nº 13.140/15 -;
e o Código de Processo Civil – Lei nº 13.105/15 -, têm conseguido
promover discussões diversas envolvendo temas como o acesso à

18. Graduanda do Curso de Direito da Universidade de Fortaleza – UNIFOR. Email:


[email protected]

93
Justiça; as características, vantagens e limitações dos diversos mé-
todos extrajudiciais, dentre os quais se encontra a Conciliação.
Segundo Calmon (2013, p. 133) Conciliação pode ser conside-
rada judicial quando a função de conciliador é exercida por juiz, ou
pessoa que faça parte da estrutura judiciária que se destine a esse
fim. O referido autor, também, chama a atenção para a diferença
existente entre os termos Conciliação e autocomposição, sendo que o
primeiro pode ser definido como “a atividade tendente a incentivar e
coordenar um acordo entre as partes”, não se confundindo com o se-
gundo, que representa apenas o resultado (CALMON, 2013, p. 133).
É processual a Conciliação que acontece concomitante ao pro-
cesso, ocorrendo em ambiente judicial. O art. 165 do Código de
Processo Civil prevê a criação dos CEJUSC’s, Centros Judiciários
de Solução Consensual de Demandas, responsáveis pelas audiên-
cias de Mediação e Conciliação.
A Conciliação é considerada pré-processual quando ocorrente
sem que exista processo judicial em curso. Já o que define a Con-
ciliação extraprocessual “é o fato de não haver processo em curso
tratando do mesmo conflito e de não estar sendo conduzida direta-
mente por um juiz” (CALMON, 2013, p. 136).
Portanto, temos que, o conciliador pode ser judicial e extrajudicial.

O conciliador pode ser judicial, atuando como


auxiliar da justiça nas audiências de conciliação
(CPC, art. 334), nos termos dos arts. 165 a 175 do
CPC, ou extrajudicial, sem que haja, nessa hipóte-
se, lei específica para regular o procedimento ou re-
quisitos para a sua atuação (JUNIOR, 2015, p. 279)

Segundo Almeida (2016, p. 5), atuam como terceiros facilita-


dores em audiências de conciliação primordialmente profissionais
da área do Direito, o que restringe a compreensão de aspectos
importantes como a condução do diálogo e análise do conflito. No

94
âmbito extrajudicial, principalmente, tem-se uma maior participa-
ção de profissionais de outras áreas como a Psicologia e o Serviço
Social, que colaboram para o enriquecimento da Conciliação en-
quanto método de solução de conflitos.

DESENVOLVIMENTO
Os métodos de gestão de conflitos podem ser classificados
em autocompostivos e heterocompositivos, com base na pessoa
responsável pela solução da disputa. “Nos métodos autocompo-
sitivos, como o termo indica, as partes buscam uma solução sem
a decisão ou determinação de um terceiro. Cooperativas por ex-
celência, (...) destacam-se a negociação, a conciliação e a me-
diação”. Já os métodos heterocompositivos se caracterizam por
delegar a um terceiro a responsabilidade por determinar o que as
partes devem ou não fazer, destacando-se o processo judicial e a
arbitragem (FIORELLI; FIORELLI; JUNIOR, 2008, p. 51).
Esses diversos métodos possuem características próprias, que
os tornam mais aptos, ou mais eficientes portanto, a determinadas
situações.
O Sistema de Múltiplas Portas, termo criado originalmente
por Frank Sander em 1985, serve para designar a possibilidade de
ofertar diferentes métodos de solução de conflitos integrados ao
Judiciário. No Brasil, esse sistema implica, também, na possibili-
dade da utilização de diferentes métodos de solução de conflitos
em diferentes momentos, seja pré ou endoprocessual, extrajudi-
cial ou judicial (ALMEIDA, 2016, p. 1).

[...] Visa o sistema multiportas de acesso à jus-


tiça – disponibilização de diferentes métodos de
resolução de conflitos – poder ampliar o número
de portas de que dispomos e, sobretudo, adequar
o encaminhamento de nossas questões à que for
mais apropriada (ALMEIDA, 2016, p. 2)

95
De modo que, assim como os demais métodos de solução de
conflitos, a Conciliação precisa ser bem compreendida, para que ela
possa ser utilizada de forma adequada, extraindo dela o máximo de
benefícios possíveis.

1 Aspectos Particulares da Conciliação


A Conciliação é considerada como uma “autocomposição indireta
ou triangular, posto existir um terceiro que auxilia na composição”
(JUNIOR, 2016, p. 1). Definição que torna evidente a existência de
algumas semelhanças entre a Conciliação e a Mediação de Conflitos,
motivo pelo qual é comum a confusão entre os dois procedimentos;
pois ambas possuem propósito semelhante, o de auxiliar as partes para
que cheguem a um consenso, com a ajuda de um terceiro imparcial.
Apesar disso, a Conciliação possui características próprias, que
a diferenciam da Mediação e dos demais métodos de solução de
conflitos. Temos, por exemplo, que a Conciliação é um procedimen-
to considerado célere; fundamentado em práticas de negociação; se
restringindo, muitas vezes, a apenas uma reunião entre as partes
e o conciliador; sendo que este pode sugerir soluções, que não po-
dem ser consideradas impositivas ou vinculativas.
Outro aspecto importante da Conciliação refere-se ao tipo de
conflito mais adequado à sua prática, que são os não derivados de
relações continuadas. “É muito eficaz para conflitos onde não existe
relacionamento significativo no passado ou contínuo entre as partes
a futuro, que preferem buscar um acordo de forma imediata para por
fim a controvérsia ou ao processo judicial” (JUNIOR, 2016, p. 1).
Esse critério, responsável pela distinção quanto ao uso da Media-
ção ou da Conciliação se encontra especificado, inclusive, no art. 165,
§§ 2 e 3 do CPC, segundo o qual deve ser utilizada a Conciliação pre-
ferencialmente quando não houver vínculo anterior entre as partes.

96
O objetivo da Conciliação é o acordo. Sendo importante levar em
consideração que, muitas vezes, no esforço de alcançar esse acordo, o
conflito termina ainda mais acirrado. Apresentando, portanto, sintonia
com o paradigma adversarial, onde importa a cada uma das partes
envolvidas na contenda alcançar somente a sua satisfação pessoal.
Dentro dessa perspectiva individualista, a satisfação quanto ao re-
sultado da Conciliação se encontra vinculado à análise, objetiva e sub-
jetiva, do custo benefício do que foi conseguido em caráter individual.
Quanto à construção do acordo, temos que este é construído
com a participação do conciliador. “À partir do que está sendo ne-
gociado, espera-se que o conciliador ofereça sugestões e propostas
de acordo, assim como marcos legais” (ALMEIDA, 2016, p. 5).
Além disso, importa para a ocorrência e a motivação da Conci-
liação a identificação da responsabilidade em relação à causa - ou
causas -, do conflito, ocorrido no passado, visando a proposição de
soluções reparadoras ou corretivas.
Ademais, temos que a Conciliação privilegia a pauta objetiva,
ou seja, os conteúdos materiais, substanciais, em detrimento da
pauta subjetiva, que seriam os derivados do relacionamento entre
os envolvidos, e que o conflito produziu.
Inicialmente, o estudo dessas características promove uma com-
preensão geral acerca do que seja a Conciliação. Na busca por uma
maior compreensão acerca desse meio de solução de conflitos, e de
como deve transcorrer o seu procedimento, de forma a obter melho-
res resultados, faz-se necessário analisar em seguida suas etapas.

2 Etapas da Conciliação
Adolfo Braga (2016) divide a audiência de Conciliação em qua-
tro etapas, ou momentos lógicos, de forma a produzir uma melhor
compreensão sobre o método, assim como facilitar a obtenção de
acordos eficazes. As etapas são: apresentação, esclarecimentos,
criação de opções e acordo.

97
A primeira etapa corresponde ao momento em que as par-
tes são informadas sobre o funcionamento do processo. Cabe ao
conciliador informar sobre o que acontecerá durante a audiência;
regras de conduta; sobre o seu papel, assim como o das partes e
seus advogados, caso estes estejam presentes; e conversar sobre
possíveis dúvidas existentes.
Na etapa de esclarecimentos as partes vão falar sobre o confli-
to, de forma que o conciliador possa tomar conhecimento de to-
dos os fatos, do relacionamento existente entre as partes; cabendo
ao conciliador fazer perguntas com o fim de estimular reflexões
importantes nos participantes.
Na etapa da criação de opções o conciliador busca estimular a
criação do maior número possível de opções de solução para que
sejam, então, debatidas pelas partes. O autor aponta a necessida-
de de buscar opções que atinjam o efetivo interesse das partes,
cabendo aos advogados, ou representantes legais, a assistência
jurídica necessária para a observação dos requisitos legais, já que
o acordo tem, em geral, consequências jurídicas.
Por fim, a etapa do acordo representa o momento de formali-
zação dos compromissos assumidos, que devem ser resumidas à
termo de forma clara e objetiva, respeitando a vontade das partes,
desde que não desrespeite a legislação vigente. É, portanto, a par-
te final da audiência ou procedimento de Conciliação.
O procedimento de Conciliação, por envolver seres humanos,
não pode prescindir de elementos humanos, dentre os quais se
encontram as emoções. De forma que, torna-se imprescindível co-
nhecer o papel das emoções na Conciliação para que esse elemen-
to possa ser útil ao procedimento.

3 O Papel das Emoções na Conciliação


Os conflitos, de forma geral, são produzidos na interação entre
as pessoas, que não podem ser desvinculadas do seu aspecto emo-

98
cional, de forma que “[...] a necessidade de demonstrar que se tem
razão, de receber do outro um pedido de desculpas, de cuidar da
auto-estima maculada pelo destrato que a postura do outro provo-
cou, tudo isso de parte a parte” precisa ser considerada na solução
de uma contenda (ALMEIDA, 2016, p. 7).
Mudando de perspectiva, a Conciliação pode ser concebida den-
tro de uma dinâmica menos adversarial, menos destrutiva. A dinâmi-
ca adversarial propõe um jogo que tem como objetivo “fazer pontos,
confirmar impressões negativas e atribuir culpas, em detrimento dos
interesses substantivos de ambas as partes (FISCHER; URY; PATTON,
2014, p. 41). Azevedo (2015, p. 49) define um processo destrutivo
como sendo o que provoca o rompimento ou enfraquecimento do re-
lacionamento das pessoas em conflito, com a acentuação do conflito,
em função da forma como o processo é conduzido.
No entanto, apesar dos participantes buscarem satisfazer in-
teresses particulares, dentro de uma perspectiva individualista, a
Conciliação trata-se de um método consensual, e, portanto, não
precisa ser um processo destrutivo, e no qual os interesses das par-
tes possam sim coexistir.
O Projeto de Negociação de Harvard desenvolveu o método de
negociação baseada em princípios, que consiste em:

[...] deliberar sobre as questões em pauta le-


vando em conta seus méritos e não promovendo
um processo de regateio focado naquilo que cada
lado afirma que fará ou deixará de fazer. O método
sugere que se busquem ganhos mútuos, sempre
que possível, e que, no caso de conflito de inte-
resses, se insista que o resultado tenha por base
padrões justos, independentes da vontade de cada
lado. (FISCHER; URY; PATTON, 2014, p. 22)

99
Esse modelo de negociação demonstra as vantagens da cola-
boração entre as partes em conflito, da busca por propostas de be-
nefícios mútuos, contrabalançando o aspecto adversarial de uma
negociação. Uma dessas vantagens é que acordo obtido por meio
desse modelo “deve ser sensato, caso um acordo seja possível; deve
ser eficiente; e deve melhorar – ou, pelo menos, não piorar – o rela-
cionamento entre as partes (FISCHER; URY; PATTON, 2014, p. 27).
Segundo Fischer, Ury e Patton (2014, p. 40), o aspecto humano
representado pelas emoções pode ser tanto útil quando desastroso
no contexto de uma negociação, e precisa ser melhor compreendido.

[...] as pessoas ficam zangadas, deprimidas,


amedrontadas, hostis, frustradas e ofendidas. Seus
egos podem facilmente ficar ameaçados. Eles vêem
o mundo à partir de seus próprios pontos de vista
e frequentemente confundem suas percepções com
a realidade. (FISCHER; URY; PATTON, 2014, p. 41)

Além disso, a situação conflituosa pode vir a se estendem por


muito tempo, até mesmo pelo excessivo envolvimento emocional,
derivada da compreensão da situação como sendo uma competição.
Mal entendidos, comumente agravadas por falhas na comunicação,
podem agravar o conflito em que ações produzem reações em círculo
vicioso, configurando o que foi chamado de espirais do conflito.

[...] Cada reação torna-se mais severa do que a


ação que a precedeu e cria uma nova questão ou
ponto de disputa. Esse modelo, denominado de
espirais do conflito, sugere que com esse cresci-
mento (ou escalada) do conflito, sãs causas origi-
nárias progressivamente tornam-se secundárias a
partir do momento em que os envolvidos tornam-
-se mais preocupados em responder a uma ação

100
que imediatamente antecedeu sua reação (AZE-
VEDO, 2015, p. 48)

Outro ponto importante quanto às emoções durante a Con-


ciliação é o conceito de contágio emocional, por meio do qual
somos influenciados pelas emoções de outras pessoas, e em que o
inverso também ocorre. Esse processo de influenciação recíproca
pode envolver todos os participantes de uma Conciliação, o que
implica na responsabilidade do conciliador quanto à sua postura
na condução do procedimento.

[...] sem o adequado treinamento, ou com fins in-


devidos em mente [...] em regra, o contágio emocio-
nal ocorre do usuário aborrecido ou frustrado pelo
fato de estar em conflito para o conciliador ou me-
diador que passa a ficar aborrecido ou frustrado pelo
fato de não conseguir chegar a um acordo. (AZEVE-
DO, 2015, p. 153)

As emoções também tendem a se embaralhar com a substância


do conflito, de modo que, a raiva sentida por uma coisa que seja a
origem do conflito, passa a ser atribuída à pessoa que estiver vin-
culada a essa coisa. Portanto, o relacionamento entre as partes se
embaralha com o conteúdo do conflito discutido.
Na mesma perspectiva, “o conflito apresenta custos financeiros e
emocionais” Custos esse que vão se acumulando – e se agravando por
meio das espirais do conflito – em uma “caderneta de poupança de
sofrimentos”, que não possui fundamentos racionais, mas sob argu-
mentos falsos como o de que “depois de tudo o que passamos não po-
demos voltar atrás” (FIORELLI; FIORELLI; JUNIOR, 2008, p. 41-42).
Essa forma de compreensão distorcida da realidade embasa, de
forma geral, muitos pedidos de indenização por danos morais, que
na verdade traduzem desgastes emocionais com o conflito.

101
Sobre o dano moral, temos que:

[...] o mero aborrecimento, irritação ou mu-


dança de humor decorrente de entrechoques co-
tidianos não caracterizam dano moral. As ações
de indenização não são panacéias para os desen-
tendimentos do dia-a-dia. Também não podem
servir de pano de fundo para o enriquecimento
sem causa de pessoas detentoras de sensibilidade
extremada [...] (SARMENTO, 2009, p. 23)

Outra contribuição proposta pelo modelo da negociação baseada


em princípios é a diferença entre posição e interesses. Segundo esse
modelo, o objetivo de uma negociação é satisfazer os interesses sub-
jacentes dos envolvidos, ou seja, o que se oculta por trás das posições
manifestas, do que se afirma desejar, ou seja, o que leva um sujeito a
escolher determinada posição. Esse aspecto também foi discutido por
Adolfo Braga (2016), em relação à etapa da criação de opções, que
devem, segundo ele, buscar atender aos interesses efetivo das partes.
A barganha posicional, onde cada parte se aferra a uma posi-
ção, funciona como uma disputa de vontades, agravando o conflito,
assim como o embaralhamento entre o relacionamento e a substân-
cia do conflito.
Inegavelmente, temos que a descoberta dos interesses das partes,
o que de fato eles desejam, é extremamente importante. Para alcan-
çar esse objetivo as emoções não podem ser ignoradas, cabendo ao
conciliador, inclusive, estimular o desabafo, pois este é um modo efi-
caz de lidar com emoções negativas. “As pessoas obtém uma descar-
ga psicológica por meio do simples processo de relatar suas mágoas
para uma audiência atenta”, favorecendo uma conversa mais racio-
nal em momento posterior (FISCHER; URY; PATTON, 2014, p. 51).

102
As emoções podem mesmo exercer papel significativo nos mo-
mentos iniciais de uma Conciliação, podendo por si só impossibili-
tar a obtenção de um acordo.

As pessoas normalmente chegam a uma nego-


ciação se sentindo ameaçadas e conscientes de
que há muito em jogo. Emoções de um lado in-
duzirão emoções no outro. O medo poderá gerar
raiva e a raiva, medo. As emoções poderão levar
rapidamente a negociação a um impasse ou ao seu
fim. (FISCHER; URY; PATTON, 2014, p. 49)

Percebe-se, portanto, que apesar de possuir características


particulares como a adequação a conflitos que não se derivam
de relações continuadas, foco na pauta objetiva e na satisfação
pessoal das partes, a Conciliação é um procedimento permeado e
continuamente influenciado pelas emoções de todos os envolvi-
dos, o que exige um maior conhecimento sobre o assunto. Cabe,
em particular, ao conciliador ser capaz de conduzir o procedi-
mento de Conciliação de forma adequada, possuindo os conheci-
mentos necessários, que incluem o conhecimento acerca do papel
exercido pelas emoções ao longo do procedimento.
Um estudo, tendo como base um caso real, pode proporcionar
uma visão mais ampla de fenômeno complexo, como é o relacio-
namento interpessoal, e a solução de um conflito por meio de uma
Conciliação Extrajudicial.

4 Estudo de Caso Encaminhado ao Núcleo


de Mediação e Conciliação da UNIFOR
Participaram da sessão de conciliação dois alunos de gradu-
ação em Direito como observadores; a conciliadora; um casal de
assistidos – que deram entrada no Núcleo de Mediação e Concilia-

103
ção da Unifor com a reclamação -; e o vendedor do consórcio de
motos, como a outra parte convidada.
A conciliadora designada para o caso iniciou a sessão explican-
do sobre o Núcleo de Mediação e Conciliação, sobre a ausência de
processo judicial instituído sobre o assunto até o momento, sobre
as possíveis formas de resolver a questão, assim como as vantagens
da conciliação. Foi discutido, também, como deve ser a conduta
dos participantes e qual o papel do conciliador.
Além disso, a conciliadora informou aos assistidos sobre a rea-
lização de anotações ao longo do procedimento. Momento em que
se encerra a primeira etapa da audiência, ou etapa da apresentação.
Em seguida, foi passada a palavra à esposa do assistido que
relatou a seguinte situação: ela e seu marido desejavam comprar
uma moto por meio de um consórcio de marca específica, conhe-
cida de ambos como sendo de qualidade. Pesquisando na internet,
ela encontrou um representante que afirmou ser da referida marca
de consórcios, vendedor este que foi na casa do casal para a cele-
bração do contrato de compra de uma moto, em 30 parcelas de R$
330,31. Sendo que, a primeira parcela foi dada como entrada no
dia da celebração do contrato.
Neste mesmo dia, por meio da identificação do nome da em-
presa impresso no contrato, a assistida percebeu que o vendedor
não estava diretamente vinculado à marca de consórcios desejada,
e sim fazendo parte de um grupo representante, que realiza negó-
cios indiretamente com a referida marca. Situação que a deixou
desconfiada de possível má-fé por parte do vendedor. Foi ainda
informado aos assistidos, pelo mesmo vendedor, que uma pessoa
da central de atendimento da empresa ligaria para o casal, por um
número 0800, para informar os dados necessários ao prossegui-
mento da transação. A ligação em questão foi realizada por uma
pessoa, que o assistidos identificaram como sendo de número da
operadora TIM, informando que o plano de pagamento no qual

104
haviam sido inscritos correspondia à 36 parcelas, e não 30; mo-
mento em que decidiram desistir do consórcio.
O casal ligou diversas vezes para o vendedor, na tentativa de
reaver o dinheiro dado como entrada no consórcio cancelado, sen-
do ignorados. Quando, finalmente, conseguiram entrar em conta-
to com o vendedor, este pediu que o casal o encontrasse em um
posto de gasolina próximo à casa destes. Durante o encontro, sem
sair de seu veículo, o vendedor pegou o contrato que estava com
os assistidos, riscou todas as folhas; e propôs a devolução de R$
250,00 - pois R$ 50,00 seriam referentes à taxa de cancelamento,
e R$ 30,00 para a sua gasolina, pois não iria trabalhar para o casal
de graça -. O dinheiro foi recusado.
Passando a palavra para o vendedor, este explicou que o nome
utilizado por ele na internet devia-se ao fato de ter trabalhado
sete anos na empresa de consórcios desejada pelo casal, nome
pelo qual era conhecido no Mercado. Tendo deixado esta empresa,
passou a trabalhar em outra; que seu fardamento, cartão profissio-
nal, crachá e contrato exibiam a logomarca da nova empresa de
consórcios, motivo pelo qual considerava estar claro que não teve
a intenção de enganar os assistidos.
O fato de ter ignorado as ligações do casal representou sua ten-
tativa, como vendedor, de desestimulá-los a desistir do cancela-
mento do contrato, dando mais tempo para que a decisão fosse
repensada. O distrato, ou cancelamento do contrato, representava
fato comum na empresa, e que segundo sua perspectiva não justifi-
cava o fato do assistido ter buscado o Núcleo. Quanto à multa por
cancelamento, trata-se de protocolo da empresa, e que não houve a
intenção de lesar os assistidos.
A mudança no prazo de consórcio de 30 meses para 36 meses acon-
teceu porque não haviam mais vagas no prazo desejado pelo casal, e
cuja mudança, em sua percepção, não traz prejuízo ao consumidor.

105
Ao longo do diálogo entre as partes, que ficaram bastante exal-
tadas, a conciliadora chamou a atenção para a falha na comunica-
ção presente entre os envolvidos. Embora houvesse concordância
quanto à essa falha, o vendedor apontou como sendo de respon-
sabilidade de outros setores da empresa, que não cumpriram sua
função de forma adequada.
A conciliadora reduziu o clima adversarial, em momento de
acusações recíprocas, chamando a atenção para o fato de que todos
os presentes estavam de boa-fé. E tentou colocar o vendedor no lu-
gar dos assistidos, que receberam do suporte - no caso a central de
atendimento -, informações conflituosas, assim como do vendedor.
Em seguida, o assistido afirma que seu maior aborrecimento
deveu-se ao acontecido no posto de gasolina, à forma como foi
tratado; e que, se o vendedor houvesse devolvido a parcela integral-
mente nesse dia, ele não teria buscado o Núcleo.
O vendedor ignorou o que foi dito pelo assistido, perguntando o
que de fato o assistido buscava ali, que não iria pagar indenização,
considerada por ele indevida. Ele reconhecia que o assistido estava
insatisfeito com o atendimento dele, vendedor, e não com a empresa.
Que foi feito o cancelamento, não havendo mais nada que ele pudesse
fazer. A confusão devia-se a uma “chateação” por parte do assistido.
A conciliadora intervém novamente, deixando claro que o pas-
sado foi explorado, a situação foi compreendida e que os envolvidos
devem pensar em como pode ser construída uma solução para o fu-
turo. Que aquele é o momento de resolver o conflito amigavelmente.
Passa-se nesse momento à fase de criação de opções.
O assistido propõe, então, a devolução da parcela integral de
uma única vez. Ele diz que não tem a intenção de prejudicar o ven-
dedor, que sabe ser -como ele -, pai de família e casado. O vendedor
concorda com a restituição do valor pago, contanto que seja preen-
chido um termo reconhecido firma, em que conste o recebimento
da parcela paga e outros dados requisitados pela empresa.

106
O assistido exalta-se diante do aborrecimento de ter que regis-
trar firma do documento desejado pelo vendedor. A conciliadora
pergunta, imediatamente, como ele gostaria, então, que a situação
fosse solucionada, redirecionando o foco do debate e proporcionan-
do uma maior participação do assistido na formulação do acordo.
Diante das dificuldades apresentadas, a conciliadora começa a
oferecer algumas opções de solução, que são discutidas por todos;
até que o vendedor sugere o ressarcimento do valor da parcela,
além do valor do reconhecimento em firma pago ao cartório, me-
diante apresentação de nota fiscal.
Ressurgem, nesse momento, diversos aspectos emocionais refe-
rentes aos aborrecimentos sofridos com a situação no discurso dos
envolvidos. O assistido pede R$ 350,00 como ressarcimento, porque
“ele também não trabalhava de graça” – fazendo referência ao que
lhe havia sido dito pelo vendedor -; e no momento do agendamen-
to para a concretização do acordo, o vendedor disse que poderia
ocorrer em qualquer dia à tarde, e, mesmo estando desempregado,
o assistido disse que só poderia comparecer pela manhã.
Por fim, na fase do acordo, temos que, depois de algumas dis-
cussões, o acordo final resume-se na restituição do valor da parcela
de R$ 330,31 à vista, além do valor do reconhecimento em firma
pago ao cartório, mediante apresentação de nota fiscal pelo assiti-
do; em troca do termo assinado por este, abrindo mão da exigên-
cia de qualquer outro valor decorrente do contrato de consórcio
cancelado. O dia e horário para a concretização do acordo foram
agendados e tudo ficou registrado em termo extrajudicial de acordo.

CONCLUSÃO
Temos o caso de uma Conciliação Extrajudicial bem sucedida,
em que papel exercido pelas emoções fica claro ao longo de todo o
discurso das partes, principalmente por meio das acusações contí-

107
nuas, na menção recorrente do assistido ao acontecido no posto de
gasolina, e nos momentos finais elaboração do acordo.
Temos, em resumo, a constatação de que o conhecimento acer-
ca do papel que as emoções desempenham em uma Conciliação
é de extrema importância, pois podem ser componentes decisivos
para a obtenção ou não de um acordo. Além disso, o conciliador
precisa estar capacitado e consciente, de forma a exercer o seu pa-
pel, inclusive, no que tange aos aspectos emocionais, pois sua con-
duta é capaz de influenciar a conduta das partes, em virtude da
ignorância e do contágio emocional.

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tas, dois paradigmas diversos. Disponível em: <http://www.
integrawebsites.com.br/versao_1/arquivos/d04950c37715e-
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Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/des-
taques/arquivo/2015/06/c276d2f56a76b701ca94df1ae0693f5b.
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CINTRA, Antônio Carlos de A.; GRINOVER, Ada Pellegrini; DI-


NAMARCO, Cândido R. Teoria Geral do Processo. São Paulo:
Malheiros, 2013.

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108
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Sim: como negociar acordos sem fazer concessões. Rio de
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NETO, Adolfo Braga. A Mediação de Conflitos e suas Diferenças


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br/trf4/upload/editor/rbb_artigo%20adolfo.pdf>. Acesso em:
01 jun. 2016.

SARMENTO, George. Danos Morais. São Paulo: Saraiva, 2009.

109
MEDI A ÇÃO E CONCILIAÇÃO N O
N OVO CPC: U MA ANÁLIS E À LUZ DAS
CO N TRIBUIÇÕES DAS S OCIE DA D E S
PRI MI TIVAS
Francisco Dias de Oliveira Júnior19 e Tiago Seixas Themudo20

INTRODUÇÃO
Sabe-se que a solução extrajudicial de conflitos é uma poderosa fer-
ramenta em face de um Poder Judiciário marcado pela lentidão e pela
enorme quantidade de litígios pendentes de uma decisão definitiva.
Atualmente, o cidadão que recorre ao Judiciário sabe – ou de-
veria saber – que a decisão do litígio pode perdurar por anos, ou
até mesmo por décadas. E, ao final, a decisão pode ser favorável
ou desfavorável para uma das partes ou, até mesmo, para ambas.
Essa demora, não se pode olvidar, tem um custo financeiro, social,
psicológico que deve ser considerado.
Por outro lado, na solução extrajudicial dos conflitos há um
consenso, ou, pelo menos, uma tendência ao consenso pelas par-
tes. Elas é que conduzem o processo ao seu final, cujo objetivo é a
convergência dos interesses conflitantes.
Os mecanismos autocompositivos de conflitos não são uma ne-
gação ao Judiciário, nem tampouco uma mitigação do direito cons-

19. Mestrando em Direito Privado (Faculdade 7 de Setembro – FA7). Professor do


curso de pós-graduação lato sensu MBA em Logística da FA7. E-mail: fdoj2009@
hotmail.com.
20. Doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará – UFC e mestre em
Psicologia pela PUC-SP. Professor do Mestrado de Direito em Direito Privado da FA7.
E-Mail: [email protected]

111
titucional à inafastabilidade da jurisdição. Afinal, é do Estado-juiz
o monopólio da jurisdição. Portanto, tais mecanismos não se apre-
sentam como um substituto do poder constituído (Judiciário), mas
como um meio complementar ao mesmo.
Também não se pode olvidar que a escolha dos mecanismos de
resolução extrajudicial de conflitos, em detrimento da escolha do
Estado-juiz, não representa um pactum de non petendo, entendido
como cláusula de negócio jurídico, pelo qual os contratantes se
comprometem a não recorrer ao Poder Judiciário caso surja algum
litígio entre os pactuantes.
Dentre os meios de solução extrajudicial de conflitos, a conciliação
e a mediação são instrumentos efetivos de pacificação social, de solu-
ção e de prevenção de litígios, e que a sua apropriada disciplina em
programas já implementados no país tem reduzido a excessiva judicia-
lização dos conflitos de interesses (litígios) e a quantidade de recursos
e de execução de sentenças, conforme se pode observar na motiva-
ção da Resolução n° 125/2010-CNJ, de 29/11/2010, que dispõe sobre
a Política Judiciária Nacional de tratamento adequado dos conflitos
de interesses no âmbito do Poder Judiciário e dá outras providências.
Portanto, o objetivo desta pesquisa é analisar os instrumentos ex-
trajudiciais de resolução de conflitos à luz do novo Código Processual
Civil (CPC), enfatizando, por oportuno, quais as origens destes institu-
tos podem estar associadas aos ensinamentos da instituição da chefia
indígena das sociedades tribais primitivas (sociedades sem Estado).
Buscam-se aqui as respostas para as seguintes indagações: que
ensinamentos das sociedades primitivas podemos associar aos atu-
ais mecanismos de solução de conflitos? Que semelhanças das so-
ciedades primitivas, na solução de conflitos entre seus membros,
podem ser associadas às sociedades atuais?
Procura-se, também, investigar, e de certa forma demonstrar que
as sociedades primitivas (orais) não são primitivas em qualquer aspec-
to, pois podemos extrair ensinamentos e comportamentos que podem

112
ser replicados pela sociedade moderna. Afinal, alerta Anthony Giddens
(2003, p. 284) que “[d]evemos ser cuidadosos até com a suposição de
que as civilizações são mais complexas do que as culturas orais”.
Como delimitação do escopo de estudo, levar-se-á em consi-
deração apenas os institutos da mediação e da conciliação. Outros
métodos de solução consensual de conflitos, inclusive a arbitragem,
não serão considerados neste estudo. Inclusive, a arbitragem, um
dos métodos mais conhecidos e mais utilizados, assemelha-se a
decisão judicial típica, no sentido de que vincula as partes e não
necessariamente satisfaz todas as partes litigantes. Por outro lado,
na mediação e na conciliação, a decisão integralmente é construída
pelas partes e com consentimento mútuo dos litigantes.
Na mediação e na conciliação, diferentemente do que ocorre
com o processo judicial tradicional e na arbitragem, o terceiro nada
decide. Ele não tem poder para aplicar o direito, quer por força de
lei, quer por delegação das partes envolvidas no litígio. Existe a
presença do terceiro, mas este não julga, não profere uma decisão a
respeito do conflito de interesses.
A problemática se perfaz por meio da busca em relacionar quais
características comuns as soluções de conflitos nas sociedades tri-
bais foram trazidas, ou resistiram, até os dias atuais, e, portanto, fo-
ram assimiladas pela sociedade moderna brasileira, principalmente,
por meio da aplicação do novo CPC.

O NOVO CPC E OS MÉTODOS


ALTERNATIVOS DE RESOLUÇÃO DE
CONFLITOS: MEDIAÇÃO E CONCILIAÇÃO
Uma tendência das legislações modernas é o incentivo à solução
dos conflitos de forma extrajudicial. Dentro dessa nova perspectiva,
e de forma muito mais enfática que no código anterior, o novo CPC
(vigente desde 18/03/2016) prevê a criação de centros judiciários
de solução consensual de conflitos, responsáveis pelas audiências

113
de conciliação e mediação (art. 165, CPC); estabelece os princípios
que informam a conciliação e a mediação (art. 166, CPC); faculta ao
autor da demanda revelar, já na petição inicial, a sua disposição para
participar de audiência de conciliação ou mediação (art. 319, CPC); e
recomenda, nas controvérsias de família, a solução consensual, pos-
sibilitando inclusive a mediação extrajudicial (art. 694, CPC).
Não se pode olvidar que entre as principais mudanças trazi-
das pelo novo CPC está a ampla instigação à autocomposição, os
denominados meios aucompositivos. No novo Código, a concilia-
ção, a mediação e a arbitragem deverão ser estimuladas por juízes,
advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público,
inclusive no curso do processo judicial.

Mediação
Além do estabelecido no novo CPC, a Lei n° 13.140/2015, que
dispõe sobre a mediação entre particulares como meio de solução
de controvérsias, que entrou em vigor em 26.12.2015, estabelece, no
parágrafo único do art. 1°, o seguinte: “[c]onsidera-se mediação a
atividade técnica exercida por terceiro imparcial sem poder decisório,
que, escolhido ou aceito pelas partes, as auxilia e estimula a identifi-
car ou desenvolver soluções consensuais para a controvérsia”.
Estabelece ainda a lei que a mediação deve ser orientada pelos
seguintes princípios (art. 2°): imparcialidade do mediador, isono-
mia entre as partes, oralidade, informalidade, autonomia da vonta-
de das partes, busca do consenso, confidencialidade e boa-fé.
Conforme art. 165, do novo CPC, é função do mediador atuar
de forma a auxiliar os interessados a compreender as questões e
os interesses em conflito, de modo que eles possam, pelo resta-
belecimento da comunicação, identificar, por si próprios, soluções
consensuais que gerem benefícios mútuos.
A mediação, diferentemente da decisão judicial, busca a solu-
ção do conflito, e não somente do processo. Através do reequilíbrio

114
entre as partes litigantes e não pela vitória de um em detrimento do
outro. Retorna o protagonismo da resolução das divergências para
as partes. Ela é uma das formas de pacificação autocompositiva e
voluntária, em que terceiro imparcial será atuante, proporcionando
a retomada do diálogo entre os litigantes. O mediador não fornecerá
soluções diretas, mas sim, se utilizará de maneiras de orientação e
estimulação de uma solução adequada.
A mediação consiste na atividade de facilitar a comunicação entre
as partes para propiciar que estas próprias possam, visualizando me-
lhor os meandros da situação controvertida, protagonizar uma solução
consensual. A proposta da técnica é proporcionar um outro ângulo de
análise aos envolvidos: em vez de continuarem as partes enfocando
suas posições, a mediação propicia que elas voltem sua atenção para
os verdadeiros interesses envolvidos (TARTUCE, 2008, p. 208).
Segundo Adolfo Braga Neto e Lia Regina Sampaio (2007), a
mediação possui como princípios: a autonomia da vontade das
partes, imparcialidade, independência, credibilidade, competên-
cia, confidencialidade, diligência e acolhimento das emoções dos
mediados. A autonomia faz referência a ideia de que a mediação
possui caráter voluntário, pois é opção dos mediados seguirem
esse método. Também são eles que escolhem o mediador, a esco-
lha do procedimento e a solução do conflito. As partes são ges-
toras de seu destino. A imparcialidade recai sobre o mediador,
que como terceiro deve resguardar seus valores pessoais para que
esses não interfiram no andamento do procedimento.
Além do mais, no que se refere à mediação, o envolvimento
das partes no processo de superação das divergências promove o
comprometimento delas na eficácia do acordo, gerando assim, na-
turalmente, o cumprimento espontâneo das obrigações assumidas
(CAHALI, 2013, p. 43).

115
Conciliação
No sentido de favorecer e de fomentar o instituto da concilia-
ção, o CNJ, comprometido com o sistema multiportas21 de solu-
ção dos litígios, instituiu a Semana Nacional da Conciliação, que
constitui um esforço concentrado para conciliar o maior número
possível de demandantes em todos os tribunais do país. Essa é,
certamente, uma das principais ações institucionais do CNJ, que
foi regulamentada pela Resolução n° 125/2010.
Conforme art. 165 do novo CPC deve-se atuar no sentido de suge-
rir soluções para o litígio, sendo vedada a utilização de qualquer tipo
de constrangimento ou intimidação para que as partes conciliem.

Dos pontos comuns entre conciliação e


mediação
Entende-se que a conciliação não se confunde com mediação.
Embora possam produzir, para as partes, efeitos ou consequências
semelhantes, no decorrer do seu desenvolvimento constatam-se di-
ferenças entre uma e outra. Assim, se nos fins, resultados, podem
ser tidos como semelhantes, não o são quanto aos meios, já que
são coisas distintas. A diferença, como se demonstrará, é de forma.
Parte da doutrina já existente acerca da mediação a confunde com
a conciliação, tratando-as como se fossem o mesmo fenômeno ou ob-
jeto de estudo. Há muita cizânia a respeito. No entanto, numa análise
detalhada, chega-se à conclusão de que se trata de institutos distintos.
Embora instituto diferentes e com finalidades diversas, é pos-
sível estabelecer vários pontos de convergências entre a mediação
e a conciliação, como por exemplo, ambas pressupõem a inter-
venção de uma terceira pessoa. Enquanto aquela tem a missão
de orientar (auxiliar) as partes, para que as mesmas alcancem a

21. O Tribunal Multiportas ou sistema multiportas é um meio pelo qual o Estado coloca
à disposição da sociedade alternativas variadas, para se buscar a solução adequada
de controvérsias. Nesse sistema, cada uma das opções (mediação, conciliação, etc.)
representam uma porta, daí o nome sistema multiportas. Referido sistema é baseado
no modelo norte-americano denominado multidoor courtroom. (CAHALI, 2013, p. 53).

116
solução da pendência, esta, pelo contrário, o terceiro imparcial se
incumbe, não apenas de orientar as partes, mas, ainda, de sugerir-
-lhes o melhor desfecho do conflito.
Estabelece o art. 166, da Lei n° 13.105/2015, que a “conciliação
e a mediação são informadas pelos princípios da independência, da
imparcialidade, da autonomia da vontade, da confidencialidade, da
oralidade, da informalidade e da decisão informada”. Além disso,
conforme o art. 168, da Lei n° 13.140/2015, as partes podem esco-
lher, de comum acordo, o conciliador/mediador.

Princípios gerais aplicáveis à mediação e


à conciliação
Podem ser relacionados como princípios da mediação e da con-
ciliação os seguintes: autonomia privada ou da voluntariedade, inter-
venção neutra de terceiros, neutralidade no mérito, imparcialidade ou
igualdade das partes, autoridade das partes, flexibilidade do processo,
informalidade, competência e qualificação do mediador/conciliador,
boa-fé, confidencialidade, eficácia, não-adversariedade, dentre outros.
Princípio da voluntariedade: as partes devem participar do pro-
cedimento de forma livre, voluntária, exercendo assim em plenitu-
de a autonomia privada da vontade que deve regular essas relações.
Significa dizer que as partes devem realizar o procedimento sem
qualquer interferência em sua esfera de vontade, ou seja, não pode
existir nenhuma coação ilegal.
Princípio da não-adversariedade: as partes, livremente, desejam
chegar a um acordo. Elas querem solucionar o problema existente e
não meramente discutir, questionar e impor a sua posição. Em suma,
busca-se a solucionar o problema existente e não criar outros.
Princípio da intervenção neutra de terceiro: esse princípio deve
ser exercido logo no início do procedimento de mediação na fase
ainda pré-mediação, quando o mediador antes de iniciar a media-

117
ção deve perguntar se existe alguma circunstância que possa vir a
gerar parcialidade no desenvolvimento da mesma
Princípio da neutralidade no mérito: procura-se preservar o pro-
cedimento de mediação/conciliação, independentemente do tipo de
questão que se apresente diante do mediador/conciliador, este de-
verá agir com neutralidade, já que para as partes aquela questão é
importante e por isso merece ser respeitada e solucionada.
Princípio da imparcialidade: por esse princípio temos que o media-
dor se encontra acima das partes e de forma equidistante, isso significa
dizer que ele irá ouvir as duas partes de forma igual e não irá represen-
tar ou aconselhar nenhuma das partes. Ele é imparcial porque não está
do lado de nenhuma das duas partes, ele não tem interesse próprio em
nenhuma das questões que estão envolvidas nos conflitos.
Princípio da autoridade das partes: por esse princípio temos
que as partes, sempre em conformidade com o princípio da auto-
nomia da vontade podem dispor livremente, desde que não venha
a contrariar a ordem pública. Vale dize, quem detém o poder de
decisão são as partes envolvidas no processo.
Princípio da informalidade: como a mediação se caracteriza pela
ausência de uma estrutura previamente estabelecida e a inexistência
de qualquer norma substantiva ou de procedimento, novamente cabe
as partes decidir qual é o caminho a percorrer e como percorrê-lo. 
Princípio da competência do mediador: esse princípio também
é estruturante da mediação haja vista que se o mediador não tiver
competência para realizar a mediação não deverá se envolver nesse
procedimento. É preciso que o mediador tenha uma formação com-
patível com a mediação a ser realizada, isso significa que deverá
estar em constante atualização para que a sua formação não fique
desatualizada e defasada.
Princípio da consensualidade: esse princípio nos remete a pró-
pria essência da mediação onde não é possível impor uma decisão
às partes, mas sim se deve levar em consideração o resultado dos

118
debates entre as partes e dessa vontade é que será extraída a essência
do acordo que elas pretendem firmar. Na mediação as partes chegam
a um acordo, nada é imposto ou decidido por elas. É preciso que a
mediação seja então norteada pelo consenso entre as partes.
Princípio da oralidade: resgata a importância do diálogo entre
as partes, intermediada pelo terceiro (mediador/conciliador).

SOCIEDADES TRIBAIS PRIMITIVAS:


A CHEFIA INDÍGENA E OS MEIOS DE
SOLUÇÃO DE CONFLITOS

A chefia indígena e os meios de solução


de conflitos. Como solucionar conflitos
sem uso da força?
A instituição da chefia, segmento político-jurídico a ser analisa-
do, se apresenta como a principal força responsável pela manutenção
da paz social, da unidade social nas sociais primitivas. No entanto,
esta instituição de poder carece do elemento que, em nossa socie-
dade, aparece como a essência mesma do poder político-jurídico: a
capacidade de, em última instância, impor suas decisões ao corpo
social. Entretanto, deste tipo de poder, o chefe indígena não dispõe.
O chefe indígena não possui poder, não pode impor sua von-
tade política ao conjunto da sociedade. Ele atuará mais como uma
espécie de mediador/conciliador, tendo como finalidade essencial-
mente a preservação da unidade social. A vontade do chefe não
se constitui como vontade política separada, como corpo político
desvinculado do corpo social.
Neste tipo de sociedade, a “instituição da justiça” atua sem vio-
lência. O uso da força, no ordenamento das relações privadas, é
rejeitado. Não se admite nem mesmo o uso da força, mesmo que
moderada, na educação das crianças ou nas relações entre gêneros.
Derivaram desta máxima – ou seja, da não violência, no sentido de

119
não coerção –, todas as características da Justiça Restaurativa mo-
derna22. Portanto, fazer a comparação do chefe indígena com o juiz
estatal não se constitui em ato arbitrário, nem irresponsável, mas
empiricamente possível.

Chefia indígena: características


marcantes
O antropólogo francês Pierre Clastres, em seu livro A Sociedade
Contra o Estado, analisa a instituição da chefia indígena identificando
e caracterizando os traços distintivos dessas chefias tribais primitivas.
Verifica-se que, na maioria das sociedades primitivas, a lei era
considerada parte nuclear do controle social, sendo, portanto, o
“elemento material para prevenir, remediar ou castigar os desvios
das regras prescritas. A lei expressa a presença de um direito orde-
nado na tradição e nas práticas costumeiras que mantêm a coesão
do grupo social” (WOLKMER, 2006, p. 16).
Não se pode olvidar que, quando se trata das sociedades primi-
tivas, alguns autores, como John Gilissen (apud WOLKMER, 2006,
p.17), questionam o uso da expressão direito primitivo. Por isso,
aqui nesta pesquisa não se questionará o uso de tais expressões,
nem mesmo, se se pode falar em direito primitivo ou arcaico.
Inclusive, Pierre Clastes (2003, p.207), classificou inicialmente as
sociedades primitivas como sociedade sem Estado, ou seja, sociedades
não dividas em seu corpo social entre dominados e dominantes, co-
mandados e comandantes. Ou seja, são sociedades unas e indivisas,
e que concentram a atuação de seus dispositivos políticos-jurídicos
na preservação desta unidade. No entanto, a preservação da unidade,
valor jurídico fundamental destas sociedades, se faz sem a presença de
uma instituição de caráter repressivo e policial como o Estado23.

22. Os autores Amanda Rodrigues e Tiago Themudo, em excelente paper, traçam


as características da justiça tribal que foram incorporadas pela justiça restaurativa
moderna. (RODRIGUES; THEMUDO, 2015, p. 302).
23. Para maiores detalhes ver também Pierre Clastres (2004, p. 145).

120
O cerne está – justamente, por meio da análise das práticas de
controle social de tais sociedades – em buscar investigar quais as
características da instituição da chefia indígena ultrapassaram os
tempos e podem ser relacionadas às práticas atuais da concilia-
ção/mediação no Brasil.
Dentre as civilizações arcaicas ou primitivas pesquisadas, po-
dem ser relacionadas as dos aborígenes da Austrália ou da Nova
Guiné, dos povos da Papuásia ou de Bornéu, de certos povos ín-
dios no Brasil (GILISSEN, 1988, p.35).
Vale destacar que a sociedade primitiva possuía um direito
único que não se confundia com as demais formas de associação.
No que dia respeito à instituição da chefia, é possível relacionar
algumas características comuns.
Vale ressaltar que o direito primitivo não pode, obrigatoria-
mente, ser qualificados como “antigo”, pois muitas sociedades,
até hoje, organizam-se longe dos auspícios do Estado, ainda que,
oficialmente, estejam submetidas ao controle estatal. É o caso, por
exemplo, dos povos indígenas que se encontram protegidos em
reservas legais, ali observando, em maior ou menor grau, um Di-
reito Ancestral, diferentemente do Direito positivo regulado pelo
Estado (PALMA, 2011, p. 32).
Segundo Pierre Clastes (2003, p. 46), o atributo mais notável
do chefe indígena consiste na ausência completa de autoridade,
de poder de comando. Destaca que a autoridade indígena só é
explicitamente atestada em alguns grupos localizados no noroeste
da América do Sul, vinculada a circunstâncias excepcionas. Em
condições normais, o chefe, apesar de reconhecido como tal, não
dispões de maior institucionais, tampouco psicológicos, de impor
sua vontade ao conjunto da sociedade. A pergunta que pode ser
formulada é: de que forma, então, a chefia atua para garantir o
vínculo das pessoas a um código social comum, como consegue

121
garantir a preservação da unidade social, apesar da existência de
forças sociais e naturais de desequilíbrio.
Robert Lowie (apud CLASTES, 2003, p. 47) – ao analisar os
traços distintivos do tipo de chefe indígena, em estudos pertinen-
tes as sociedades indígenas sul americana e norte americana, por
ele denominado titular chief –, destacou três propriedades princi-
pais do chefe índio, recorrente ao longo das sociedades estudadas.
Quais sejam: a) o chefe é um fazedor de paz (instância modera-
dora do grupo), b) ele deve ser generoso, e c) somente um bom
orador deve ter acesso à chefia.
Ao se referir as características citadas, aduz Pierre Clastes (2003,
p. 48), “mais que um juiz que sanciona, ele é um árbitro que busca
conciliar”. Nesse sentido, pode-se concluir que o chefe indígena é
um conciliador por natureza.
A posição mediadora dos velhos é descrita em muitas outras
sociedades indígenas por Seeger (1980). Em relação aos Kayapós
setentrionais (especialmente os Gorotire), Terence Turner escreve:
“Os mê be ngê-ê-tê são os indivíduos de maior prestígio e autorida-
de na comunidade, depois dos chefes... (Eles) o papel mais passivo
de pacificadores e reconciliadores de disputas[...]”. O autor destaca
também a posição mediadora dos velhos das sociedades tribais das
terras baixas da América do Sul (Apud SEEGER, 1980, p. 74-78).
Pierre Clastes (2003, p. 62) ao falar sobre a qualidade oratória
do chefe indígena, deixa claro o poder da palavra como forma de
combate ao uso da força e da coerção: “a palavra deve ser inter-
pretada, mais do que como privilégio do chefe, como meio de que
dispõe o grupo para manter o poder fora da violência coercitiva,
como garantia repetida a cada dia de essa ameaça está afastada”.
Ao valorizar a fala, a comunidade desvaloriza o uso da força, da
violência e do poder. Esse era a mola mestre da mediação nas
sociedades tribais e deve ser a mola mestra também na socieda-
de moderna. Fazer deste atributo traço distintivo da instituição

122
política, revela o intuito da sociedade de negar a possibilidade de
emergência de um poder desvinculado, de um poder de Estado.
Recusa-se ao chefe indígena o que seria a essência mesma do po-
der em nossa sociedade, a capacidade de mandar.
Essas características são opostas em tempos de guerra e em
tempos de paz. Quando estão em expedição guerreira, o chefe
dispõe de um poder que pode ser até absoluto sobre os guerreiros.
Mas com o retorno da paz, o chefe perde esse poder. Logo, o poder
coercitivo só é aceito nas relações externas de caráter belicoso.
Essa união entre poder e coerção cessa desde que o grupo esteja
em relação somente consigo mesmo. Se ela existisse, já atestaria
a presença de um corpo social dividido, hierarquizado, marcado
pela presença de relações de dominação.
A autoridade dos chefes tupinambás, por exemplo, incontes-
tada durante a guerra, é submetida ao controle coletivo durante
a paz. O poder civil é fundado na sua capacidade de produção de
consenso, a função do chefe é, na mesma medida, de pacificador
dos interesses em jogo. Ele deve manter a paz e a harmonia. Ele
deve apaziguar disputas, regular divergências. Não usando força,
pois ele não a possui, e não seria reconhecida, mas com base no
seu prestígio. Ele é um árbitro que busca reconciliar. Se o chefe fa-
lhar na reconciliação, o conflito permanece, e buscar-se-á outro que
ocupe o seu lugar. (CLASTRES, 2003)
Outro traço distintivo da chefia indígena é a generosidade. Todo
chefe tribal deve ser generoso, qualidade atestada pela concessão de
pequenas dádivas, materiais e simbólicas, do chefe para a comunida-
de. Tamanho foi o constrangimento dos portugueses eu, ao chegar ao
Brasil, procuraram pelo detentor do poder político através de signos
de distinção e privilégio. Este tipo de chefe, suposta réplica atrofiada
dos reis europeus, os portugueses não encontraram. Normalmente,
eram a singeleza e a humildade dos pertences que marcavam a figura

123
do chefe indígena, a ponto de alguns, esgotados pelas demandas da
comunidade, gritarem: que outro seja chefe em meu lugar.
Mas qual a relação da generosidade do chefe com a preservação
da unidade social? Por que o chefe, justamente por ser chefe, deve
possuir menos, e não mais, que todos os outros indivíduos? É como
se as sociedades primitivas negassem à autoridade política justamen-
te aquilo que poderia transformá-la em rei. Recusa-se ao chefe um
lugar social que possa associar autoridade política com poder eco-
nômico. A generosidade atua como qualidade psicológica que tem
como propósito final conjurar, bloquear a emergência de um corpo
social dividido. A generosidade, neste sentido, seria contra a emer-
gência do Estado. Lição indígena: poder político como fonte de poder
econômico desvirtua a função mediadora e pacificadora da chefia.

A MEDIAÇÃO E CONCILIAÇÃO E AS
CONTRIBUIÇÕES ADVINDAS DAS
SOCIEDADES TRIBAIS PRIMITIVAS
Se o chefe indígena, em tempo de paz, não dispunha de poder
e, portanto, da autoridade coercitiva, como era possível a solução
de conflitos dos membros da tribo? Não se pode negar que essa é
justamente uma das características do mediador/conciliador que
também não dispõe de poder de coerção nem de coação das partes.
Conforme se observou, uma das características do chefe indíge-
na era a qualidade oratória, a capacidade de mobilizar, através da
palavra, uma memória comum, um conjunto de valores e normas
reconhecido por todos. Não é a força da lei, pois lei não há, mas
a força de uma memória comum que atuará como termo de con-
ciliação. Sendo, por seu turno, esta, também, uma das principais
características do mediador/conciliador, no novo CPC.
Outra característica marcante da chefia indígena era a pacifica-
ção social; ele é um fazedor de paz. Na mediação e na conciliação,
ao se buscar a solução do conflito por empenho das próprias par-

124
tes envolvidas, sem a coerção de um terceiro (Estado-juiz), não há
dúvidas de que há uma grande tendência na busca da pacificação
social, uma vez que a relação entre as partes após a solução do
conflito certamente será mais amistosa do que se o conflito fosse
resolvido de forma unilateral pelo Judiciário.
Destaca-se, também, que as características da voluntariedade e
da não-adversariedade também estavam presentes na solução dos
conflitos das sociedades tribais primitivas e atualmente no CPC.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conclui-se que os atuais institutos de autocomposição de litígios,
mediação e conciliação, guardam em suas estruturas princípios ou en-
sinamentos das sociedades primitivas. Alguns desses ensinamentos,
por demais explícitos, saltam aos olhos como: a oralidade, o sentido de
pacificação (fazedor de paz), a competência e o preparo do mediador/
conciliador, a confiança em torno da pessoa do mediador/conciliador.
A autonomia da vontade das partes, tanto na sociedade tribal como
no novo CPC, pois a busca pela mediação ou conciliação é das partes.
Noutros, não tão explícitos, mas perfeitamente demonstráveis
por meio de uma análise hermenêutica, podem ser citados como, por
exemplo, o princípio da imparcialidade e da neutralidade do medidor/
conciliador, pois este, assim como o chefe indígena, precisam gozar
de prestígio perante as partes. Portanto, sempre devem buscar agir de
forma neutra e imparcial para manter esse status e prestígio. Ou, dito
de outra forma, a parcialidade do chefe indígena só será aceita se ela
estiver vinculada à vontade geral, e não à sua vontade de chefe.
A mediação e a conciliação transcendem a solução da contro-
vérsia, dispondo-se a transformar um contexto adversarial em cola-
borativo, preservando o relacionamento das partes.
Por fim, não é preciso registrar que, à luz desse novo horizonte
que se descortina sob a égide do novo CPC, os aludidos operadores
do Direito não devem medir esforços em prol da autocomposição

125
dos litígios, deixando ao Judiciário apenas as situações mais críticas
e que sejam de difícil consecução de acordo entre as partes.
A autocomposição dos litígios afigura-se como a maneira mais jus-
ta, equânime e pacificadora, uma vez que, as próprias partes, constro-
em em conjunto a decisão final. Portanto, há uma maior possibilidade
de satisfação de ambos os lados do litígio, fato que quase nunca ocorre
quando a decisão é do Estado-Juiz, no qual apenas uma das partes
satisfaz seus anseios, restando à outra, apenas lastimar a derrota.

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128
A UTI L I ZAÇÃO DA ARBIT RAGE M
PO R EQUIDADE NAS DEMAN DAS
EMPRESARIAIS
Robert Wallace Anjos Santos24•

1 Introdução
Atualmente, ante ao excesso de processos em tramitação no Po-
der Judiciário, tem havido um estímulo pela solução extrajudicial dos
conflitos, como meio de acesso a solução dos litígios, sendo elas de
quatro tipos reconhecidos pelo ordenamento pátrio: autotutela, auto-
composição, mediação e arbitragem (NEVES, 2011, p. 56.), o objetivo
deste artigo é discorrer sobre o instituto arbitragem e demonstrar que
ele pode ser mais aplicado como acesso do cidadão à justiça.

2 Natureza da arbitragem
A arbitragem é técnica na qual: “os conflitantes buscam em
uma terceira pessoa, de sua confiança, a solução amigável e “im-
parcial” (porque não feita pelas partes diretamente) do litigio. E,
portanto, heterocomposição.” (DIDIER JÚNIOR, 2012, p. 110.), ela
pode se dar de duas formas: de direito ou por equidade (BRASIL,
Lei 9.307, 1996, art. 2º), no último caso: “Ao aplicar a equidade o
árbitro se coloca na posição de legislador e aplica a solução que
lhe parecer razoável, ainda que haja lei disciplinando a matéria,
desde que não se trate de norma cogente.” (SCAVONE JUNIOR, p.
51). O conceito de equidade tem sido disputado, tendo ela algumas

24. Bacharel em direito pela Unisal/Campinas, mestrando em direito pela Escola
Paulista de Direito, procurador da Câmara Municipal de Campinas, e-mail roberttsan-
[email protected]

129
concepções diferentes, pois não é um termo unívoco (DINIZ, 1999,
p. 242), as diversas acepções do termo equidade ocorrem devido a
sua aplicação ao longo do tempo, para Alípio Silveira:

Sob o ponto de vista racional, a eqüidade vem


a equiparar-se ao próprio fundamento do direito e
da justiça, fundamento esse que varia com as vá-
rias doutrinas jurídico-filosóficas: direito natural
(em suas várias concepções), direito justo, direi-
to racional; trata-se de um fundamento de caráter
valorativo ou deontológico. Quanto ao ponto de
vista social, a equidade considera a realidade so-
cial subjacente25.

Eis a razão pela qual Pontes de Miranda disse que ela é “apenas
palavra-válvula, com que se dá entrada a todos os elementos inte-
lectuais ou sentimentais que não caibam nos conceitos primaciais do
método de interpretação.” (MIRANDA, 1958, p. 213), de forma que:
“aparece insistentemente no campo jurídico, mas envolta, com fre-
qüência, numa certa névoa de imprecisão e ambiguidade.” (CHORÃO,
2000. v. 1, p. 95), Teixeira de Freitas trilha na mesma senda e observou
que a palavra é muito utilizada, porém não se consegue satisfazer o
seu veraz sentido (FREITAS, 1883, p. 66), na literatura também há a
linha diametralmente oposta, pois ela é: “por muitos, objeto de sim-
ples notas marginais, enquanto que outros chegam mesmo a apontá-la
como um conceito inútil, superado pela certeza das normas, segundo
diretrizes objetivas do progresso científico.” (REALE, 1974, p. 9).
Tal dificuldade terminológica é igualmente verificável nos di-
cionários jurídicos26, mesmo quando se busca a raiz etimológi-

25. SILVEIRA, Alípio. Hermenêutica Jurídica – seus princípios fundamentais no Di-


reito Brasileiro. v. 4. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 20.
26. No linguajar de Sérgio Sérvulo da Cunha, equidade é: “1. Critério básico da justiça,
que através das diferenças busca a igualdade (CPC 127; CLT 8º). 2. Critério de julgamen-
to em que, no interesse da justiça, há liberdade para aplicar ou não a norma legal. 3. A
justiça do caso concreto.” CUNHA, Sérvulo da Cunha. Dicionário compacto do Direito.
10ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 135.

130
ca27. Insta ressaltar que as diversificadas nuances do sentido da
equidade não inviabilizam o uso do instituto jurídico, já que, nas
palavras de Ferreira Borges: “a lei sem equidade é nada; os que não
veem o que é justo ou injusto senão através da lei, nunca se enten-
dem tão bem, como os que o veem pelos olhos da equidade.” (BOR-
GES, 1843, V. I., p. 50). Há posicionamentos doutrinários28 e juris-
prudenciais29 que defendem a natureza jurisdicional da arbitragem,
sendo esta a posição prevalecente na jurisprudência, no entanto,
há quem propugne pela inexistência de caráter jurisdicional30. Uma
importante característica da sentença arbitral é que ela está obrigada
a ser fundamentada ante ao princípio constitucional da fundamenta-
ção das decisões (Brasil, Constituição Federal, 1988, art. 93).

3 A inter-relação direito empresarial e a


arbitragem por equidade
27. AMARAL, Francisco. A Eqüidade no Código Civil Brasileiro. In ALVIM, Arruda;
CÉSAR, Joaquim Portes de Cerqueira; ROSAS, Roberto (coord.). Aspectos Contro-
vertidos do Novo Código Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 202: Aequi-
tas significa basicamente igualdade, proporção, simetria. Embora não fosse sinônimo,
tinha um sentido próximo, paralelo ao da epieikeia grega, ambas as palavras utilizadas
com sentido de uma solução que contorna a rigidez da norma geral e abstrata. A
epieikeia era, precisamente, uma manifestação da Justiça, antes, um melhoramen-
to, dessa, pois servia para mitigar os excessos decorrentes de seu absolutismo. A
sua essência estava na adaptação da lei geral ao caso concreto, no substituir-se ao
legislador interpretando-lhe a vontade e a orientação. Enquanto a epieikeia grega,
aristotélica, criava a norma como princípio ético que se identificava com a Justiça, a
aequitas romana não criava a norma, apenas adaptava o ius aos fatos concretos. Não
era superior ao ius, estava nele.”.
28. Por exemplo, os autores Humberto Teodoro Júnior, Francisco José Cahali e Carlos
Alberto Carmona nas obras: THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Pro-
cessual Civil. v. III, Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 373;
CAHALI, Francisco José. Curso de Arbitragem. 2ª Edição. São Paulo: Revista dos Tri-
bunais, 2012, p. 84-85, p. 88; CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e Processo: um
comentário à Lei nº 9.307/96. 3ª Edição. São Paulo: Atlas, 2009, pp. 26, 27.
29. BRASIL, Superior Tribunal de Justiça: “PROCESSO CIVIL. ARBITRAGEM. NATU-
REZA JURISDICIONAL. CONFLITO DE COMPETÊNCIA FRENTE A JUÍZO ESTATAL.
POSSIBILIDADE. MEDIDA CAUTELAR DE ARROLAMENTO. COMPETÊNCIA. JUÍZO
ARBITRAL. 1. A atividade desenvolvida no âmbito da arbitragem tem natureza juris-
dicional, sendo possível a existência de conflito de competência entre juízo estatal
e câmara arbitral. (...)”. (CC 111.230/DF, Rel. Min. NANCY ANDRIGHI, DJe 03.4.2014).
30. Vide Luiz Guilherme Marinoni e Sílvio de Salvo Venosa, nas obras: MARINONI, Luiz
Guilherme. Teoria Geral do Processo. São Paulo: RT, 2006, p. 147; VENOSA, Sílvio de
Salvo. Direito civil teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos. São
Paulo: Atlas, 2003, pp. 586, 587.

131
Uma forte justificante para o uso da arbitragem por equidade na
solução dos conflitos empresariais se dá pelos princípios regentes
do direito empresarial, ramo do direito especializado para tratar da
atividade empresarial, pois:

É no direito empresarial que iremos encontrar


as regras jurídicas especiais para a disciplina do
mercado, e para tanto é fundamental que essas
regras, em função de sua especialidade, estejam
assentadas em uma principiologia própria, que
destaque a imprescindibilidade da empresa como
instrumento para o desenvolvimento econômico e
social das sociedades contemporâneas, nas quais
as bases do capitalismo – livre-iniciativa, proprie-
dade privada, autonomia da vontade e valorização
do trabalho humano – já estão enraizadas e solidi-
ficadas como valores inegociáveis para a constru-
ção e manutenção de uma sociedade livre.31

O direito empresarial, ramo que mantêm sua autonomia (COS-


TA, 1956, p. 10), apesar do desejo de unificação do direito privado
(BITTAR FILHO, 2006, p. 77)32, tem fundamento constitucional33,
princípios e características próprias, tais caracteres reclamam e me-
lhor se ajustam à arbitragem em detrimento de uma ação judicial.
A doutrina enumera algumas características, sendo as mais comuns
(BERTOLDI, 2014. p. 41): cosmopolismo, onerosidade, informalis-
mo e fragmentarismo, conceitos doravante abordados.

31. RAMOS, André Luiz Santa Cruz. Direito empresarial esquematizado. – 4ª ed. rev.,
atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2014, p. 42.
32. BITTAR FILHO, Carlos Alberto; BITTAR, Marcia Sguizzardi. Código Civil 2002 –
Inovações, 1ª ed. IOB Thomson, São Paulo/SP, 2006, p. 77: “Com efeito, o legislador
pátrio, nesse particular, perfilhou a sistemática italiana, procedendo a unificação do
Direito Privado no texto da codificação civil. Por consequência, restou revogada toda
a primeira parte do velho Código Comercial (CC, art. 2045).”.
33. BRASIL, Constituição Federal, 1988: “Art. 22. Compete privativamente à União
legislar sobre: I - direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo,
aeronáutico, espacial e do trabalho;”.

132
Também conhecido como internacionalidade e universalista, o
cosmoposlismo é predicado que trata da natureza de expansão do
direito empresarial, uma vez que a atividade não se encerra num
determinado país já que se relaciona com outros povos, gerando
daí usos e costumes próprios da atividade empresarial desconside-
rando as fronteiras geopolíticas e assim coaduna com a arbitragem,
que é o instrumento mais utilizado para sanar conflitos em direito
empresarial internacional34. Concernente à onerosidade, o âmago
da atividade empresarial é o lucro e seus influxos da economia35, e
é justamente este o ponto diferenciador dentre outros ramos jurí-
dicos (BORBA, 2015, p. 19.), já que a onerosidade é presumida em
contraste com o direito civil, por exemplo, onde a presunção é de
gratuidade; daí exsurge a relevância do lucro, onde está baseado
todo o sistema, interligado pelo chamado elemento de empresa:

(...) o fim último do direito comercial é o lucro,


daí falar-se na sua onerosidade. Ela é a regra e se
presume nas relações empresariais. O empresário,
via de regra, age movido por um fim de lucro, daí
falar-se também em individualismo.36.

34. REQUIÃO, Curso de Direito Comercial. Vol. 1, pg. 29: “Em dissertação anterior
acentuamos o traço cosmopolita que caracterizou o direito comercial, desde o seu sur-
gimento. Em Roma aplicava-se ao comerciante o direito dos estrangeiros, o jus gentium;
o direito marítimo, universalista por excelência, inspirou a criação de diversos institutos
mercantis, como a sociedade em comandita, o seguro e, segundo alguns, as próprias
sociedades anônimas. Ferreira Borges, um dos clássicos do direito comercial, perfilhou
opinião de que os comerciantes constituem um só povo. De fato, a persecução do lucro,
que é a meta do comerciante, é um fato universal e desconhece fronteiras.”.
35. NUSDEO, Fábio. Curso de Economia – introdução ao direito econômico. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 30: “Direito e Economia devem ser vistos, pois,
não tanto como duas disciplinas apenas relacionadas, mas como um todo indiviso,
uma espécie de verso e reverso da mesma moeda, sendo difícil dizer-se até que ponto
o Direito determina a Economia, ou, pelo contrário esta influi sobre aquele. Existe, isto
sim, uma intrincada dinâmica de interação recíproca entre ambos, donde tornar-se
indispensável para o jurista o conhecimento, pelo menos, de noções básicas de Eco-
nomia e vice-versa para os economistas.”.
36. TOMAZETTE, Marlon. Curso de direito empresarial: teoria geral e direito socie-
tário, v. 1 - 5ª ed. - São Paulo : Atlas, 2013, p. 33.

133
Tal característica apontada depõe favoravelmente pela arbi-
tragem, que, embora num primeiro momento possa se mostrar
mais cara, em cotejo com a jurisdição estatal se torna mais barata.
Saliente-se também que é justamente essa análise econômica, seja
na interpretação, seja na resolução de uma lide é levada em con-
sideração pelo empresário e/ou sociedade quando contraem obri-
gações, logo, devem ser preponderantes quando da resolução de
conflitos, “generalizando, podemos dizer que a economia fornece
uma teoria comportamental para prever como as pessoas reagem
às leis.” (COOTER, 2010. p. 25).
Por informalismo se quer contrapor ao formalismo, embora am-
bos sirvam à mesma finalidade como comprovantes da existência
ou ausência de boa-fé:

Também o Direito Comercial se caracteriza pela


boa-fé em que, sem formalismo, são considerados
justos os atos praticados por quem ignorava que o
dolo ou a má-fé os viciava. Esse princípio da boa-
-fé a imperar sobre os atos comerciais dá maior
rapidez às operações mercantis e maior segurança
aos que delas participam. Já no Direito Civil tal
não acontece em semelhante escala. A posse de
boa-fé, em Direito Civil, para gerar efeitos aquisi-
tivos da propriedade, requer um dilatado espaço
de tempo, ou seja, o prazo prescricional, enquanto
que em Direito Comercial a posse de boa-fé pro-
duz “função legitimadora amplíssima, prescri-
ção instantânea.” Por isso, a própria lei confere
a quem detém o título ao portador a presunção
de legítimo proprietário, sem maiores indagações
sobre o modo de aquisição do título, a não ser que
se comprove a posse de má-fé.37

37. MARTINS, Franz. Curso de Direito Comercial. 38ª ed. São Paulo: Forense, 2015, p. 50.

134
Por fim, há o fragmentarismo o que se quer dizer é da existên-
cia de subdivisões, cada uma com suas peculiaridades, por exem-
plos, societário, cambiário, falimentar, propriedade industrial (RA-
MOS, 2014, p. 50). Assim, pelo acima exposto, com a utilização da
equidade, a técnica arbitragem pode comtemplar as aspirações do
direito empresarial, pois:

(...) a arbitragem tem muitas vantagens na rela-


ção entre o sistema do direito e o sistema da eco-
nomia. Enquanto o direito tem uma racionalidade
própria, com procedimentos de tomadas de decisões
que incluem princípios constitucionais inalienáveis,
a racionalidade econômica é exclusivamente voltada
para o aumento de capital, o que pode ser muitas
vezes proporcionalmente inverso ao tempo “gasto”
em um litígio. Ademais, a arbitragem admite outra
função além de ser mais rápida que o direito Estatal,
desenvolvendo a forma do desse próprio “direito pa-
ralelo” da lex mercatoria, formando seus princípios
e construindo contratos internacionais38.

4 Dever jurídico de fundamentação da


sentença arbitral
Se não bastasse o comando constitucional, o dever de funda-
mentação das decisões arbitrais dar-se-ia por imposição da lei re-
gente (Brasil, Lei 9.307, 1996, art. 26): A razão de tal imposição é
simples, a sentença arbitral substitui a vontade das partes litigan-
tes39, se cria uma verdadeira norma ao caso concreto40, já que:

38. LUZ, Cícero Krupp da. A globalização e o ressurgimento da Lex Mercatoria.


Revista Scientia Iuris – Revista do curso de mestrado de direito negocial da UEL -
Londrina, V. 11, p. 23
39. CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de Direito Processual Civil, v. 2, n. 137, p. 11, tra-
dução de J. Guimarães Menegale, Ed. Saraiva, 1943: “Pode definir-se a jurisdição como
a função do Estado que tem por escopo a atuação da vontade concreta da lei por
meio da substituição, pela atividade de órgãos públicos, da atividade de particulares ou
de outros órgãos públicos, já no afirmar a existência da vontade da lei, já no torná-la,
praticamente, efetiva.”.
40. VILANOVA, Lourival. Causalidade e Relação no Direito. 4. ed. São Paulo: Revista dos

135
O ato de decidir implica a eleição entre várias
possibilidades. É, por isso, contingente. Quem de-
cide colocar no sistema do direito um novo enun-
ciado escolhe uma opção possível entre as existen-
tes, excluindo as demais alternativas. Pressupõe,
portanto, valoração. Tal peculiaridade faz com
que a decisão jurídica possa ser observada em
dois aspectos, indissociáveis entre si: (i) o elemen-
to decisório, puramente volitivo – noeses, e (ii) o
conteúdo do que foi decidido – noema. Enquanto
a primeira perspectiva toma como foco o valor em
sua subjetividade, a segunda, dirigindo sua aten-
ção ao que se plasmou no texto, centra-se no va-
lor objetivado. É este último, por estar registrado
linguisticamente, que ingressa no ordenamento.41

Assim a declinação das razões será a exposição dos motivos


que inclinaram o julgador a decidir de um ou de outro jeito, portan-
to, as decisões arbitrais devem seguir tal princípio42, que, na visão
de Uadi Lammêgo Bulos:

Tribunais, 2000. pp. 188,189: “Em reescritura reduzida, num corte simplificado e abstrato,
a norma jurídica apresenta composição dúplice: norma primária e norma secundária. Na
primeira, realizada a hipótese fática, i.e., dado um fato sobre o qual ela incide, sobrevém,
pela causalidade que o ordenamento institui, o efeito, a relação jurídica com sujeitos em
posições ativa e passiva, com pretensões e deveres (para nos restringirmos às relações
jurídicas em sentido estrito). Na segunda, a hipótese fáctica, o pressuposto é o não-cum-
primento, a inobservância do dever de prestar, positivo ou negativo, que funciona como
fato jurídico (ilícito, antijurídico) fundante de outra pretensão, a de exigir coativamente
perante órgão estatal a efetivação do dever constituído na norma primária.”.
41. TOMÉ, Fabiana Del Padre. Ética e Direito - uma análise pela perspectiva do
construtivismo lógico-semântico. In: LIMA, Fernando Rister de Sousa; GOES, Ricardo
Tinoco de; GUERRA FILHO, Willis Santiago (Coord.). Compêndio de Ética Jurídica
Moderna. Curitiba: Juruá, 2011. p. 373.
42. GOMES FILHO, Antonio Magalhães. A motivação das decisões penais. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2001. p. 85: “a legalidade de uma decisão não resulta da simples
referência ao texto legal, mas deve ser verificada “in concreto” pelo exame das razões
pelas quais o juiz afirma ter aplicado a lei, pois somente tal exame é que pode propi-
ciar o efetivo controle daquela demonstração.”.

136
(...) as decisões devem ser motivadas, sob pena
de nulidade, porque em um Estado Democrático
de Direito não se admite que os atos do Poder Pú-
blico sejam expedidos em desapreço às garantias
constitucionais, dentre elas a imparcialidade e a
livre convicção.43.

O dever de justificar ganha mais relevo nas decisões arbitrais ante


a inexistência de recurso (BRASIL, Lei 9.307 1996, art. 18), e redobra a
sua exigência na decisão arbitral por equidade, onde não vige a estrita
legalidade (LIMA, 1998, p. 6.) e onde deve ser redobrada a precaução
com o contraditório44. Ocorre que apenas expor as motivações não re-
volve o problema da qualidade da justificativa, já que remanesceria a
possibilidade de decisões irracionais, eivadas de absurdos jurídicos, o
que é oposto ao desejado, que é a correção das decisões; nessa esteira,
o direito já foi majoritariamente influenciado pelas correntes jusnatura-
lista e positivista45, atualmente a corrente majoritária é pós-positivista:

Dentro desta proposta a teoria jurídica deve


desempenhar, ao mesmo tempo, uma função des-

43. BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de direito constitucional - 8. ed. rev. e atualizada
de acordo com a Emenda Constitucional n. 76/2013 - São Paulo: Saraiva, 2014, p. 707.
44. LEAL, André Cordeiro. O contraditório e a fundamentação das decisões no
direito processual democrático. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002, p. 20: “(...) o
princípio constitucional do contraditório determina, por um lado, que às partes sejam
dadas iguais oportunidades de atuação no procedimento que prepara o provimento
e, por outro lado, que essas partes, a partir da reconstrução e interpretação compar-
tilhadas também dos próprios fatos, possam efetivamente contribuir argumentativa-
mente para a escolha da norma aplicável ao caso concreto, gerando repercussões
obrigatórias na atividade de fundamentação desenvolvidas pelos órgãos judicantes.”.
45. ADERLAN, Crespo. In Constituição, Estado e Direito: reflexões contemporâneas.
Orgs. AZAR FILHO, Celso Martins; FONSECA, Maria Guadalupe Piragibe da. Rio de Ja-
neiro: Qualitymark, 2009, p.131: “O Jusnaturalismo, como o conjunto de direitos funda-
dos na racionalização dos direitos, primados pela natureza, representa todo o esforço
de se reconhecer direitos plasmados na própria vida humana, como superior a todo
e qualquer Direito Positivo. Já foi presenciado no período clássico como também na
Idade Média. (...) O Positivismo jurídico, próprio do pós-iluminismo, localizado no final
do século XIX, revelou o sentido institucional do poder político concedido ao Estado,
através de seu poder de legislar a favor de seus cidadãos, como também de punir.
Assim o positivismo jurídico quer dizer o direito posto pelo legislador, segundo os inte-
resses coletivos, mesmo que seja o direito e privar a liberdade, ou mesmo, retirar a vida
de uma pessoa, seja em sociedades mais punitivas, seja em um governo de exceção.”.

137
critiva e prescritiva, por deixar de ser mero ins-
trumento de cognição do direito vigente para se
tornar também um auxiliar indispensável para o
juiz. A teoria jurídica assume uma dimensão prá-
tica e funcional extremamente importante para a
redução da incerteza do direito, fornecendo os ele-
mentos necessários para a solução de problemas
estabelecidos por casos difíceis.46.

Após o fim da Segunda Grande Guerra, o positivismo jurídico


perdeu adeptos, já restando claro que o direito meramente formal
poderia trazer enormes agruras à humanidade, pois “a lógica formal
é insuficiente para a justificação de enunciados jurídicos” (BUS-
TAMANTE, 2005, p. 59), até então o direito era visto como uma
moldura: “dentro da qual são apresentadas várias possibilidades
de execução, de modo que todo ato é conforme a norma desde que
esteja dentro dessa moldura, preenchendo-a de algum sentido pos-
sível.47.” (KELSEN, Hans. 2009, p. 150).
Ou seja, caso a norma fosse criada pelo órgão competente e tives-
se seguido o procedimento pré-estabelecido, então ela seria válida, ao
julgador cabia utilizar o silogismo48 para resolução das lides. Visando
uma guinada na situação anterior, aparecem o pós-positivismo e as
teorias da argumentação introduzindo razão ao discurso, consideran-
do que “um enunciado normativo será correto somente se puder ser
o resultado de um procedimento comunicativo capaz de lhe conferir
um grau satisfatório de racionalidade” (BUSTAMANTE, 2005, p. 68),
até pelo fato de se conceituar o direito diferente de antes:

46. NOVELINO, Marcelo. Manual de direito constitucional - 9. ed. rev. e atual. - São
Paulo: MÉTODO, 2014, pp. 256.
47. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito: introdução à problemática científica do
Direito. Tradução de J. Cretella Jr. e Agnes Cretella. 6. ed., rev. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2009, p. 150.
48. VILANOVA. Lógica jurídica. São Paulo: José Bushatsky, 1976. p. 36: “Sempre
que três termos estejam entre si em relações tais que o menor esteja contido na
totalidade do maior e o médio na totalidade do maior, então há necessariamente
entre os extremos silogismo perfeito.”.

138
Não menos antigo que o reconhecimento do
Estado de Direito como ideal político é o reconhe-
cimento do Direito como o campo da argumen-
tação, um ambiente em que a retórica se desen-
volve com toda a sua elegante e persuasiva, mas
às vezes também dúbia, arte. A retórica, então,
pode voltar-se contra si mesma. (...) O Direito é
uma disciplina argumentativa. Qualquer que seja
a questão ou problema que tenhamos em mente,
se os colocarmos como uma questão ou problema
jurídicos, procuraremos uma solução ou resposta
em termos de uma proposição que pareça adequa-
da do ponto de vista do Direito (ao menos discu-
tivelmente adequada, ainda que o preferível seja
uma proposição definitivamente adequada)49.

Com a saturação, ou seja, exposição da fundamentação, é que


se abre a oportunidade ao controle da correção da decisão arbitral
prolatada:

Apresenta-se destarte a equidade, no momento


da adaptação da norma à situação de fato, como
atenuação do rigor e da rigidez da lei, pois sua apli-
cação, crua e simples pode revelar-se de uma dure-
za injusta e, muitas vezes, cruel, conduzindo a uma
inconveniência, a um absurdo, a uma iniquidade50.

A decisão arbitral por equidade pode também equivaler as par-


tes litigantes, como colmatar as aporias e antinomias, com isso se
percebe a sua importância, pois:

49. MACCORMICK, Neil. Retórica e Estado de Direito. (Trad. de Conrado H Mendes e


Marcos Paulo Veríssimo). 1ª ed. São Paulo: Editora Campus/Elsevier, 2008, p. 19.
50. ESPÍNOLA, Eduardo; ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. A lei de Introdução ao Código
Civil Brasileiro comentada na ordem de seus artigos, v. 1, 1943. Ed. Freitas Bastos, p. 246.

139
A concepção do ordenamento como sistema di-
nâmico envolve, por fim, o problema de saber se
este tem a propriedade peculiar de qualificar norma-
tivamente todos os comportamentos possíveis ou
se, eventualmente, podem ocorrer condutas para as
quais o ordenamento não oferece qualificação. (...)
Trata-se da questão da completude (ou incomple-
tude) dos sistemas normativos também conhecida
como problema das lacunas do ordenamento.51

Nesse sentido se perfila a lição de Luiz Antônio Rizzatto Nunes,


que diz:

Haverá situações em que o caso concreto apon-


tará um real conflito entre normas ou entre prin-
cípios ou entre estes e as normas (...) É como se
estivéssemos falando de uma espécie de lacuna se-
mântica ou axiomática. A equidade, então, aí apa-
rece, colmatando esse estranho vazio do sistema,
resolver a questão sem tornar ou declarar nenhuma
lei inconstitucional nem alguma norma ilegal.52.

5 Conclusão
A Equidade está umbilicalmente ligada à justiça (ABBAGNANO,
2007, pp. 339,340), seja ela no caso concreto, além da lei escrita, ela
possui a qualidade de direito que é mais que um direito, possuido-
ras de múltiplas funções, busca do avanço do direito na colmatação
e integração das normas, integra o sistema jurídico direito, equilibra
as partes demandantes, ante sua função corretiva. Assim, ao árbitro
não é dado desbordar das balizas já assentadas e inverter a essência

51. FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, de-
cisão, dominação. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 218.
52. NUNES, Luiz Antônio Rizzatto. Manual de introdução ao estudo do direito. 4ª ed.
São Paulo: Saraiva, 2006, p. 283

140
da técnica cometendo injustiça53. Como toda e qualquer decisão, a
por equidade esbarra em limites jurídicos, seja o respeito à digni-
dade da pessoa humana e seus consectários, seja a necessidade do
contraditório (PORTANOVA, 2001, pp. 160, 161), seja a decisão res-
peitar os bons costumes e a ordem pública. Considerando o acima
exposto, da exigência de correta aplicação da técnica, obrigatorieda-
de de saturação, dever-se-ia haver ampliação do uso da arbitragem
por equidade como método da resolução das lides contratuais.

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145
146
MEDI A ÇÃO E DIREITO FRATE R N O
EM UM CENÁRIO DE LITÍGIOS: O
DI Á LO GO COMO INSTRU ME N TO D E
FO MEN TO NA ADMINISTRAÇ Ã O D E
CO N FL ITOS E NA PROMOÇÃO DA
C I DA DANIA ATIVA
Tauã Lima Verdan Rangel54

1 O SISTEMA ADVERSARIAL BRASILEIRO E


O ACIRRAMENTO DA LITIGIOSIDADE
Em um primeiro comentário, faz-se notório destacar que o con-
flito é algo intrínseco à condição humana, tendo o seu nascedouro
desde os primórdios da formação da sociedade e se consolidando
com as pretensões adversas apresentadas pelos indivíduos em con-
tínua convivência. Neste sentido, o conflito materializa o dissen-
so, decorrendo das expectativas, valores e interesses contrariados.
“Embora seja contingência da condição humana, e, portanto, algo
natural, numa disputa conflituosa costuma-se tratar a outra parte
como adversária, infiel ou inimiga”, como complementa Vasconce-
los (2012, p. 19). Desta feita, é oportuno assinalar que a percepção
do conflito experimentada pela sociedade contemporânea transmuda
a parte como adversária, apenas por apresentar objetivos distintos
e dissonantes, tal como responsabiliza aquela como causadora do

54. Bolsista CAPES. Doutorando vinculado ao Programa de Pós-Graduação em


Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense (2015-2018). Mestre em
Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal Fluminense (2013-2015). Tele-
fone: (28) 999836721. Link do Lattes: http://lattes.cnpq.br/8802878793841195. E-mail:
[email protected]

147
conflito, sendo, portanto, a raiz do problema que atenta contra a pa-
cificação social, devendo, pois, ser expurgado. Ao lado disso, a partir
de uma perspectiva puramente legal, “o conflito é resultado de uma
violação da lei ou de uma desobediência a um padrão, fato que lhe
confere uma aversão social”, conforme pondera Foley (2011, p. 246).
É verificável uma conjunção de esforços, por vezes sobre-hu-
manos, para concentrar todo o raciocínio e elementos probatórios
na busca insaciável de alcançar novos fundamentos para fortalecer
o posicionamento unilateral, com o objetivo único de enfraquecer
e destruir os argumentos apresentados pela parte ex-adversa. O crí-
tico cenário descrito é plenamente observável, especialmente, em
processos judiciais, nos quais o desgaste das pessoas diretamente
afetadas pelo litígio é ofuscante, quer seja em razão da morosidade,
quer seja em decorrência do comprometimento psicológico daque-
les na questão discutida. A visão tradicional que envolve o conflito,
como sendo algo ruim, é tão arraigada na sociedade contemporânea
que obsta os envolvidos de analisarem a questão de forma madura,
compartilhando a responsabilidade sobre a questão, mas sim pro-
movendo uma constante busca em transferir “ao outro” a culpa pelo
surgimento e o agravamento do conflito. Ao invés de envidar esfor-
ços para tratar o conflito, por meio de estratégias sóbrias e racionais,
a abordagem tradicional do dissenso concentra todos os empenhos
em identificar o culpado pelo surgimento do conflito e puni-lo.
Seguindo as ponderações apresentadas por Pinho e Paumgartten
(s.d.), a explosão de litigiosidade que caracteriza, de maneira geral,
as sociedades contemporâneas é dotada de elevada complexidade,
sendo, sem dúvidas, alimentada, de maneira abundante, por siste-
mas extremamente normativos, que de forma isolada, sem a inter-
venção do Poder Judiciário, não consegue prevenir o surgimento e,
por vezes, agravamento do conflito. É experiência peculiar de países
com ordenamento jurídico pouco efetivo e diminuta credibilidade
social, que dificulta o conhecimento ou confunde a população, tor-

148
nando, comumente, verdadeiro obstáculo ao cumprimento de tal
arcabouço jurídico. Há que reconhecer que a litigiosidade encontra
caudalosa fonte no fato de algumas sociedades ao desenvolvimento
e emprego da autocomposição dos conflitos, seja por uma cultura
demandista/adversarial ou em razão da atuação do Poder Judiciário
que, em um contínuo processo de inchaço, não admite a perda do
controle e poder sobre a sociedade, culminando em uma sobrecarga
e o exaurimento da capacidade produtiva jurisdicional.
O sistema jurídico apresenta como robusto aspecto a confronta-
ção entre as partes em litígio, agravando, corriqueiramente, confli-
tos inúteis, alongando as batalhas e fomentando o confronto entre
os envolvidos no dissenso causador da lide. Trata-se da valoração
do dualismo perdedor-ganhador fomentado pelo sistema processual
adotado, no qual, imperiosamente, a morosidade do processo acar-
reta o desgaste ainda maior, comprometendo, por vezes, o discer-
nimento dos envolvidos para uma abordagem madura da questão.
No sistema vigente, pautado na conflituosidade que caracteriza os
procedimentos judiciais, os litigantes são obrigados, comumente,
a apresentar motivos justificadores a existência do dissenso, bus-
cando se colocar em situação de vítima e a parte ex-adversa como
culpada pela ocorrência do conflito, utilizando, por vezes, de ar-
gumentos que são hipertrofiados e que não refletem, em razão do
grau de comprometimento psicológico dos envolvidos, a realidade
existente, aguçando, ainda mais, a beligerância entre os envolvidos.
A solução transformadora do conflito reclama o reconhecimento
das diferenças e do contorno dos interesses comuns e contraditórios,
subjacentes, já que a relação interpessoal está calcada em alguma ex-
pectativa, valor ou interesse comum. Já restou devidamente demons-
trada que a visão tradicional não produz os resultados ambicionados,
já que a eliminação do conflito da vida social é algo que contraria a
existência e interação em sociedade. O mesmo pensamento vigora
com a premissa de que a paz social só pode ser alcançada, essencial-

149
mente, com a erradicação do conflito; ao reverso, a paz é um bem
precariamente conquistado por pessoas e sociedades que apreendem
a abordar o conflito de forma consciente e madura, dispensando um
tratamento positivo, em prol do crescimento e amadurecimento dos
envolvidos e não como elemento de destruição.
Segundo Foley (2011, p. 246), toda situação conflituosa deve
ser analisada como uma oportunidade, na proporção em que pos-
sibilita a veiculação de um processo transformador. Os conflitos
são detentores de sentidos e, quando compreendidos, as partes
neles envolvidas têm a possibilidade de desenvolver e transfor-
mar a sua vida, logo, como são elementos constituintes da vida
humana, não podem ser concebidos como exceção, mas sim como
mecanismos oriundos da coexistência em sociedade que permite o
amadurecimento dos envolvidos e, por vezes, a alteração da ótica
para analisar as situações adversas a que são submetidos. Conce-
ber o conflito como uma aberração social é contrariar a própria es-
sência do convívio em sociedade, no qual indivíduos complexos,
com entendimentos e posturas variadas e plurais, em convívio
contínuo, tendem a apresentar interesses opostos, os quais, inevi-
tavelmente, entram em rota de colisão.
É imperioso a ressignificação do vocábulo “conflito”, adequan-
do-o à realidade contemporânea, de modo que não seja empregado
apenas em um sentido negativo, mas sim dotado de aspecto posi-
tivo, permitindo aos envolvidos o desenvolvimento de uma análise
madura e sóbria da questão, de modo a enfrentar o dissenso como
algo corriqueiro e integrante da vida em sociedade e não como uma
exceção a ser combatida. Ressignificar o conflito é extrair a moldura
tradicional que desencadeia a incessante busca dos envolvidos em
determinar o culpado e demonizá-lo, mas sim assegurar que haja o
tratamento dos motivos e causas que desencadeiam os dissensos,
propiciando a estruturação cultural de uma nova visão do tema.

150
2 O DIREITO FRATERNO COMO ALICERCE
TEÓRICO DOS MÉTODOS EXTRAJUDICIAIS
DE TRATAMENTO DE CONFLITOS
Cuida estabelecer uma crítica a oferta monopolista de justiça
que foi incorporada no interior do sistema de jurisdição, delegado
a receber e a regular uma escalada de conflitualidade. Entretanto,
o que culminou a altos índices de ineficiência do sistema de juris-
dição está arrimado no crescimento vertiginoso das expectativas e
das perguntas a isso referidas. “Em sentido técnico, chama-se ex-
plosão da litigiosidade, possuindo muitas causas, nunca analisa-
das com profundidade. O fato é que a atenção sempre esteve mais
voltada para os ‘remédios’ (no sentido de constantes reformas nas
normas)” (SPENGLER, 2006, p. 51), em detrimento da abordagem
das causas da litigiosidade crescente, que, tradicionalmente, en-
contra tradução na linguagem jurídica e que se dirige à jurisdição
sob a forma irrefreável de procedimentos judiciários.
É cristalina que a regulação dos conflitos, dentro de uma socieda-
de, se transforma no tempo e no espaço, estabelecendo os remédios
a serem aplicados, sendo que a ineficácia em sua aplicação desen-
cadeia a novação equivocada de que a causa é a falta de recursos
estruturais, materiais e pessoais, além de outros. Ora, o remédio age
apenas sobre a ferida existente, não atacando a causa desencadeado-
ra. É justamente, nesse cenário, impulsionado pela cultura adversa-
rial abordada anteriormente, que o problema tende a ser agravado,
porquanto reafirma uma cultura adversarial, pautada na ideologia do
ganhador-perdedor e alimentada pela rivalidade geradora do confli-
to. Assim, em busca do estabelecimento de uma resposta, na grande
maioria dos conflitos, ocorre a demanda processual, em que, como
dito algures, a arena da litigiosidade ganha contornos mais robustos
e as partes processuais passam a se encarar como rivais.
Resolver o conflito judicialmente, porém, significa recorrer ao
magistrado e atribuir a ele o poder de dizer quem ganha e quem

151
perde a demanda. É oportuno consignar, em tal cenário, o fortale-
cimento da estadania e o enfraquecimento da cidadania ativa, na
qual os envolvidos no conflito possuem um comportamento ama-
durecido apto a conduzir a administração do litígio e, em conjunto,
apresentar soluções. “Vai nesse sentido a afirmativa de que quando
se vai ao juiz se perde a face, uma vez que, imbuído do poder con-
tratual que todos os cidadãos atribuem ao Estado, sendo por ele
empossado, o magistrado regula os conflitos graças à monopoliza-
ção legítima da força” (SPENGLER, 2006, p. 52).
Em alinho com as ponderações apresentadas até o momento, cui-
da assinalar que a proposta fraterna substancializa, segundo as pon-
derações apresentadas por Ghisleni e Spengler (2011), o embasamento
teórico da mediação e dos demais métodos extrajudiciais de tratamen-
to de conflitos sociais, porquanto insere uma parcela de complexidade
no primado do justo sobre o bom, buscando estabelecer contornos
dessemelhantes daqueles que tender a emoldurar as relações. Sem
embargo, há que sustentar, também, que ao postulado da fraternida-
de está atrelado, imperiosamente, o ideário de amizade, “na medida
em que prevê a ‘comunhão de destinos derivada do nascimento e
independente das diferenças’” (GHISLENI; SPENGLER, 2011, p. 24).
Para Eligio Resta (2004), o Direito Fraterno compreende um modelo
de direito que abandona a tradicional visão fechada da cidadania e
passa a olhar em direção à nova forma de cosmopolitismo que não
é representada pelo mercado, mas pela necessidade universalista de
respeito aos direitos humanos que vai se impondo ao egoísmo ou pe-
los poderes informais que à sua sombra governam e decidem.
Entretanto, é imprescindível destacar que o vocábulo fraterni-
dade, em tal contexto, possui um sentido vagamente anacrônico,
porquanto, quando comparada a outros ideais presentes no cenário
da revolução iluminista, pode ser considerado dotado de menor pro-
eminência, eis permaneceu inédita e não resolvida em relação aos
demais temas da liberdade e da igualdade. Mais que isso, a fraterni-

152
dade indicava apenas um dispositivo de etérea solidariedade entre as
nações; guardando maior vinculação com os princípios de um direi-
to internacional nascente, que deixava intacta, tal como pressupu-
nha uma comunidade política assentada nos corolários dos Estados
nacionais, porém sua solidificação é capaz de inaugurar uma nova
oportunidade no tratamento de conflitos (RESTA, 2004, p. 09-12).
A vinculação entre direito e fraternidade, além de ser uma tenta-
tiva de valorizar uma possibilidade diferente, recoloca em destaque
um modelo de regra da comunidade política: modelo não vencedor,
mas possível. Destarte, é um trecho do direito vivo que não deve ser
analisado sempre como o direito vencedor. Ora, por meio do binô-
mio em comento retorna um modelo convencional de direito, “‘ju-
rado conjuntamente’ entre irmãos e não imposto, como se diz, pelo
‘pai senhor da guerra’. Jurado conjuntamente, mas não produzido
por um ‘conluio’” (GHISLENI; SPENGLER, 2011, p. 25). Em decor-
rência disso, é decisivamente não violento, ou seja, capaz de não se
apropriar da caracterizadora violência pertencente ao querer com-
bater. Em arremate, Humberto Dalla Bernardina de Pinho e Michele
Paumgartten (s.d.) evidenciam que um dos pilares mais relevantes
do Direito Fraterno encontra consolidação sob o alicerce de uma
sociedade humana, retratando um Direito não violento, despido da
beligerância e dos enfrentamentos desnecessários, buscando, dou-
tro viés, a inclusão e a ruptura do binômio ganhador-perdedor/ami-
go-inimigo, convenção arraigada do processo judicial tradicional.
É oportuno, ainda, apontar que o Direito Fraterno encontra sus-
tentação por meio dos direitos humanos, que se estabeleceram com
o decurso da história da humanidade e que possuem aspecto de
universalidade, eis que são aplicados a todos os cidadãos. Ao lado
disso, os direitos humanos resultaram, por consequência, de múl-
tiplos processos históricos e que ainda hoje sofrem alterações em
decorrência da globalização mundial. Em complementação, Resta
(2004) sublinha que o Direito Fraterno coincide com o locus de re-

153
flexão associados ao tema dos Direitos Humanos, conferindo uma
consciência a mais, a saber: a de que a humanidade é apenas um
lugar comum, somente em cujo interior é possível pensar no reco-
nhecimento e na tutela. É necessário, também, estabelecer a dife-
rença existente entre ser homem e ter humanidade. Há que se desta-
car, nesta linha de exposição, que o fato de ser homem não assegura
que haja o sentimento singular de humanidade; a linguagem, com
a variabilidade de sentido que encerra, substancializa um infinito
observatório dos paradoxos com os quais o ser humano convive.
O novo modelo de composição dos conflitos que floresce no
Direito Fraterno está centrado na criação de regras de compartilha-
mentos e de convivência mútua que desbordam dos tradicionais lití-
gios judiciais, arvorando formas de inclusão de proteção dos direitos
fundamentais. Em uma seara essencialmente judicial, existem meca-
nismos extrajudiciais de tratamento das demandas, sendo possível
citar a conciliação, a arbitragem e a mediação. Cuida-se, portanto,
de elementos que possuem como ponto comum serem extrajudiciais,
porém não estranhos ao Poder Judiciário, operando na busca da face
perdida das partes processuais numa relação de cooperação pactuada
e convencionada, estabelecendo uma justiça de proximidade e, so-
bremaneira, uma filosofia de justiça calcada no modelo restaurativo
que compreende estruturas de composição e gestão do conflito me-
nos autoritariamente decisivo, como observa Resta (2004).
Mais que isso, há que reconhecer que o conflito também se
tornará essencialmente prejudicial quando os mecanismos para tra-
tamento são considerados inadequados, por retirar do conflito o que
ele tem de melhor, a saber: sua capacidade de gerar a satisfação de
interesses e resoluções construtivas. “Quando esses mecanismos são
descartados, a função do conflito é a produção de violência ou outros
conflitos. A decisão judicial pode interromper ou acelerar o processo
de causa e efeito, mas não propicia a mudança necessária para a
evolução que o conflito pode provocar” (PINHO; PAUMGARTTEN,

154
s.d., p. 08). Ora, o processo competitivo adversarial estabelece ga-
nhadores e perdedores, ao passo que o processo cooperativo, assen-
tado na doutrina do Direito Fraterno, determina apenas ganhadores.
“Entende-se até de um modo amplo, que mesmo a parte vença uma
disputa, não logra um conflito construtivo, pois a satisfação de obje-
tivos unilaterais, unicamente individuais, cristaliza o egocentrismo,
auxiliam o totalitarismo e provocam com o tempo, consequências
sempre destrutivas” (PINHO; PAUMGARTTEN, s.d., p. 08).
Em tal trilha de insatisfação, cujo nascedouro está ancorado na
insuficiência estatal para atender as demandas sociais e os conflitos
de interesse, de maneira geral, estão delineados, com entusiasmo,
o sistema de métodos alternativos à jurisdição ou alternative dis-
pute resolution (ADR) para o tratamento dos conflitos, assentado
numa prática discursiva, criando através do diálogo e não da força
coercitiva, um tratamento para o conflito, cuja legitimidade deste
resultado encontra suas bases no próprio processo comunicativo
que lhe originou. Assim, com o escopo de avançar no exame da
temática, faz-se imprescindível analisar, pormenorizadamente, a
mediação como método extrajudicial de tratamento de conflito e a
valorização do diálogo para administrar o conflito e na promoção
da cidadania ativa, o que será feito na seção subsequente.

3 O EMPREGO DA MEDIAÇÃO
EM UM CENÁRIO DE LITÍGIOS: O
EMPODERAMENTO DOS INDIVÍDUOS NA
ADMINISTRAÇÃO DOS CONFLITOS
Ao partir da necessidade de mudança de paradigmas no tocante
ao tratamento dispensado ao conflito, é possível, utilizando a defi-
nição apresentada por Roberto Portugal Bacellar (2003, p. 174), que
mediação consiste em uma técnica lato senso que tem como assento
a aproximação das pessoas interessadas no tratamento de um con-
flito, induzindo-as a encontrar, por meio do estabelecimento de um

155
diálogo, soluções criativas, com ganhos mútuos e que preservem o
relacionamento entre elas. Em mesmo sentido, Vasconcelos (2012,
p. 42) descreve mediação como “um meio geralmente não hierar-
quizado de solução de disputas em que duas ou mais pessoas, em
ambiente seguro e ambiência de serenidade, com a colaboração de
um terceiro [...], expõem o problema, são escutadas e questionadas”,
estabelecendo um diálogo construtivo e identificando interesses em
comuns, opções e, de maneira eventual, estabelecer um consenso.
Distintamente do sistema adversarial processual que vigora, a
mediação busca a estruturação de uma mudança cultural, especial-
mente no que se refere ao poder dos indivíduos de tomar às deci-
sões que influenciam a realidade em que se encontram inseridos.
Conforme Waltrich e Spengler (2013, p. 172) apontam, a mediação,
na condição de espécie do gênero justiça consensual, permite uma
acepção ecológica de tratamento dos conflitos sociais e jurídicos, na
qual o escopo de satisfação do desejo substitui a aplicação coercitiva
e terceirizada proveniente de uma sanção legal. A mediação possi-
bilita um tratamento igualitário entre os envolvidos, na condição de
seres humanos, observando as características de cada indivíduo, não
comportando qualquer forma de julgamento, mas sim fomentando
uma compreensão recíproca e uma responsabilidade compartilhada.
A mediação é considerada, contemporaneamente, como forma
ecológica de tratamento dos conflitos sociais e jurídicos, uma forma
na qual o intuito de satisfação do desejo substitui a aplicação coer-
citiva e terceirizada de uma sanção legal. Está assentado na ótica
segundo a qual um terceiro neutro tenta, por meio da organização
de trocas entre as partes, permitir a estas confrontar seus pontos de
vista e procurar, com seu auxilia, uma solução para o conflito que
os opõe. “Atualmente a mediação é considerada um salto qualita-
tivo para superar a condição jurídica da modernidade, baseada no
litígio e apoiada em um objetivo idealizado e fictício como é o de
descobrir a verdade, que não é outra coisa que a implementação da

156
cientificidade como argumento persuasivo” (SPENGLER, 2006, p.
53). Ora, diz-se dela que é uma forma consensuada de tratamento
do litígio, porquanto o terceiro mediador é dotado de um poder de
decisão limitado ou não autoritário, ajudando as partes envolvidas
a chegarem voluntariamente a um consenso, mutuamente aceitável
com relação às questões colocadas em disputa.
Desconstrói-se a figura da vítima e do agressor, do autor e do réu,
erigindo, em seu lugar, os “mediandos”, em situação de igualdade e,
a partir da edificação de diálogos e responsabilização compartilhada,
amadurecidos para promover, culturalmente, a mudança de paradig-
mas no enfrentamento do conflito, de modo que não há uma busca
sedenta pelo estabelecimento do culpado, mas sim na construção de
um consenso proveniente da vontade dos envolvidos. Opondo-se à
dogmática tradicional, que busca a eliminação do conflito por meio
da simples emissão de um pronunciamento do Estado-juiz, a me-
diação, alçado a método transformador de uma cultura adversarial,
objetiva o enaltecimento da dimensão afetivo-conflituosa, tratando
as origens, as causas e as consequências advindas do conflito.
Supera-se o ranço tradicional de transferir para o Estado-juiz,
de maneira exclusiva, a possibilidade para a resolução dos confli-
tos, notadamente os inseridos na esfera privada, assegurando, por
consequência, o empoderamento dos envolvidos, de modo a de-
senvolver a cidadania e autonomia para a construção de consensos
e promover a cultura de paz. Trata-se, com efeito, de privilegiar a
autonomia da vontade das partes, ao invés de recorrer a um terceiro
que decida por eles, sendo que o Estado-juiz é o último recurso,
quando todas as vias de negociação fracassaram. Com destaque,
o provimento jurisdicional prestado pelo Estado-juiz, comumente,
está revestido apenas da técnica processual, pautado na legislação
fria e em precedentes jurisprudenciais, poucas vezes volvendo um
olhar sensível para as peculiaridades e nuances que emolduram a
situação concreta levada a Juízo. Por mais uma vez, há que se res-

157
gatar que, diante da política de números e estatísticas que passou
a inundar o Judiciário, o qual busca incessantemente demonstrar
a concreção do acesso à justiça e a duração razoável do processo,
o que importa é a finalização de processos, sem que isso, necessa-
riamente, reflita na construção de consensos entre os envolvidos.
A visão transformativa propiciada pela mediação, consoante
Foley (2011, p. 247), permite que o conflito seja encarado como
uma oportunidade dúplice, na qual, concomitantemente, há o de-
senvolvimento e exercício da autodeterminação, consistente no
empoderamento dos mediandos, e na confiança mútua, por meio
do fomento à reciprocidade entre os envolvidos no conflito. Com
destaque, a resposta ideal ao conflito não consiste em buscas de-
senfreadas e beligerantes de extirpá-lo para promover a resolução
do problema; ao contrário, o conflito reclama uma gestão madura,
a fim de materializar um processo de transformação dos indivíduos
nele envolvidos. Neste passo, a mudança paradigmática de ótica no
tratamento do conflito é responsável por alterar o comportamento
dos mediandos diante do dissenso, fomentando a responsabilidade
compartilhada e solidarizada, de modo a não estabelecer polos an-
tagonistas, mas sim partes complementares.
Warat (2001, p. 80-81) já se posicionou no sentido que a me-
diação não está cingida a somente o litígio, ou seja, com a verdade
formal contida nos autos, alheia à moldura factual que enquadra o
dissenso entre os envolvidos. De igual maneira, a mediação, na con-
dição de método extrajudicial de tratamento de conflitos, não busca
como única finalidade a obtenção de um acordo que, corriqueira-
mente, não reflete substancialmente a vontade das partes nem per-
mite a responsabilização solidária dos envolvidos. Ao reverso, o fito
maior é ajudar os interessados a redimensionar o conflito, compre-
endido como conjunto de condições psicológicas, culturais e sociais
que foram responsáveis por causar a colisão entre as atitudes e os
interesses no relacionamento de pessoas envolvidas. A perspectiva

158
valorada não está assentada no ideário puramente acordista, que
concebe o acordo como o fim último do processo, o qual transmite
o ideário mascarado de tratamento do conflito, colocando fim em
mais um número que tramita nos sistemas de gerenciamento de
dados dos Tribunais de Justiça. Ao reverso, a ótica privilegiada está
calcada na construção paulatina e imprescindível do consenso, no
qual o mediador atua na construção de uma relação alicerçada no
diálogo, possibilitando o entendimento de sentidos, a partir da de-
terminação da autonomia e empoderamento dos indivíduos.
É necessário colocar em destaque, também, que a mediação,
na condição de método de tratamento extrajudicial de conflitos,
combate a escalada de desentendimentos decorrentes do moroso
e litigioso procedimento adotado no cenário jurídico vigente, não
permitindo que as partes alcancem o conflito extremo, permitido
pelo sistema adversarial. “A ideologia ganhador-perdedor vigente
no sistema tradicional judiciário é substituída por uma nova abor-
dagem baseada na cooperação entre as partes envolvidas e não
na competição” (SANTA CATARINA, 2004, p. 04). Deste modo,
a mediação, apesar de ser método com longo percurso de aplica-
ção, apresenta-se como forma inovadora, no território nacional,
de abordagem jurídica e também como alternativa ao sistema tra-
dicional judiciário adotado para tratar os conflitos, nos quais se
valoram a cooperação e a disponibilidade em promover a solução,
destacando-se, via de consequência, como elementos imprescindí-
veis para a construção de um consenso entre os mediandos.
É plenamente perceptível que a mediação exige terreno próprio
para atuação, em decorrência dos aspectos a que se propõe, notada-
mente a mudança cultural no tocante ao enfrentamento do conflito,
já que suas bases se pautam na busca de um consenso qualitativo
que só pode ser alcançado com o tempo e com a mudança cultural
das partes que preferencialmente esperam ouvir, atender uma or-
dem do Estado a tomar uma decisão por si. Sobre tal assunto, Dier-

159
le José Coelho Nunes (2011, p. 174) afirma “que existem situações
em que os acordos são impostos, mesmo quando sejam inexequíveis
para permitir a pronta “resolução do caso”, com a adequação à lógica
neoliberal de produtividade”, e isso, por óbvio, não é o que se espera
da mediação de conflitos. Neste passo, a mediação propõe a respon-
sabilização dos envolvidos para tratarem o conflito, de maneira que
consenso seja resultante da conjunção de esforços e reflita as vonta-
des dos mediandos, não se traduzindo, via de consequência, em um
pronunciamento emanando por um terceiro (Estado-juiz), alheio às
nuances e particularidades que emolduram o dissenso.

4 PONDERAÇÕES FINAIS: O DIÁLOGO


COMO INSTRUMENTO DE FOMENTO NA
ADMINISTRAÇÃO DE CONFLITOS E NA
PROMOÇÃO DA CIDADANIA ATIVA
Diante do cenário apresentado, é possível pontuar que, con-
quanto a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988,
também nomeada de “Constituição Cidadã”, assegurar, formalmen-
te, o acesso à justiça, há que se salientar que o Poder Judiciário,
em decorrência do pragmatismo existente e da visão processual
adotada, diariamente, frustra a promoção de tal direito. Na realida-
de, a busca insaciável por diminuição de processos, com emissões
de pronunciamentos do Estado-juiz, pautado, corriqueiramente, na
distorcida visão do acordo como elemento de satisfação das par-
tes, apenas atende o aspecto quantitativo de índices e dados que
buscam demonstrar que o Judiciário, como zeloso e sensível Poder
constituído, trava uma batalha pela materialização do princípio da
duração razoável do processo. Ora, a falaciosa cultura acordista,
adotada no modelo nacional, não trata o conflito nem as causas
que o desencadeiam; ao reverso, fomenta apenas o tradicionalismo
adversarial arraigado que, imperiosamente, agrupa os envolvidos
em polos conflitantes que, uma vez infantilizados pelo monopólio

160
na solução dos litígios, transferem ao terceiro, Estado-juiz, a ca-
pacidade de gerir o dissenso e determinar, a partir do arcabouço
jurídico posto, qual dos envolvidos é detentor do direito pleiteado
ou mesmo quem ganha e quem perde.
Não mais vigora a ideologia dualística do ganhador-perdedor,
mas sim uma ótica segundo a qual o diálogo estruturado permi-
te que ambos os envolvidos experimentem uma nova percepção
do conflito, algo intrínseco e inseparável da convivência em socie-
dade. A cultura de empoderamento dos indivíduos possibilita que
seja desenvolvida uma autonomia participativa que refletirá dire-
tamente na construção dos consensos formados, eis que derivarão
da conjunção de esforços e anseios dos envolvidos. Trata-se, com
efeito, de reconhecimento e fortalecimento da cidadania ativa como
instrumento capaz de conferir amadurecimento aos indivíduos, in-
clusive na condução e administração do conflito, sem que isso se
reflita no fortalecimento da tradicional infantilização social e esta-
dania. Neste cenário, o consenso é fruto da vontade dos envolvidos
que, uma vez empoderados, logram êxito na gestão do conflito e no
melhor mecanismo para tratá-lo, distinguindo-se, via de consequ-
ência, do pronunciamento estatal que, corriqueiramente, é imposto
pelo julgado, alheio às nuances e aspectos caracterizadores dos en-
volvidos, estando atrelado apenas ao arcabouço jurídico.
Ora, há que reconhecer que em prol da edificação de um sis-
tema pautado no empoderamento dos mediandos e no fortaleci-
mento, por consequência, da cidadania ativa, o protagonismo está
vinculado àqueles em detrimento do Estado-juiz. Mais que isso,
em tal cenário, inexiste a figura do juiz togado, cuja legitimidade é
proveniente do reconhecimento dispensado pelo Estado e pelo sis-
tema burocrático, mas sim o mediador, o terceiro imparcial, escolhi-
do consensualmente pelos envolvidos, cuja legitimação decorre do
próprio reconhecimento da comunidade que, ao invés de emanar
uma decisão, apenas orientará a condução do diálogo, permitindo

161
que os mediandos alcancem o tratamento mais adequado ao confli-
to existente. Assim, a mediação, em tal cenário, se apresenta como
instrumento capaz de resgatar a capacidade do indivíduo de se ex-
pressar ativamente, manifestando-se na administração dos conflitos
em que está envolvido, tal como permitir que o litígio não fosse en-
carado como algo destrutivo, uma arena de combate, mas sim um
campo de amadurecimento, emancipação e cidadania ativa.

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163
WARAT, Luis Alberto. O oficio do mediador. Florianópolis: Habitus
Editora, 2001.

164
TRABALHO E CONFLITOS
A N EC ESSIDADE DO DESCAN SO E A
I N DI SPENSABILIDADE DO TR A BA LHO
Armenia Cristina Dias Leonardi

INTRODUÇÃO
A pesquisa será realizada através da análise histórica da vida das
pessoas idosas no Brasil, através do estudo da obra A Velhice no Bra-
sil, de Mário Filizzola, utilizando como base documentos históricos
que descrevem até hoje a atual situação de muitos idosos no Brasil.
Será analisada a forma como a sociedade pode reconhecer na pessoa
idosa o reflexo de sua própria pessoa e a importância de sentir
A conexão entre a pesquisa histórica e os dados atuais pos-
sibilita e facilita a investigação social em relação à necessidade e
importância do trabalho para os idosos.
A metodologia aplicada, inicial e principal, será a pesquisa bi-
bliográfica e os dados estatísticos a respeito do trabalho dos idosos,
que pode causar benefícios e malefícios trabalho para os idosos.

1 - IDOSO NA HISTÓRIA DO BRASIL: A


PROTEÇÃO AOS IDOSOS DO SÉCULO XVII
AO XIX
Na década de 1970, Mario Filizzola1, em seu livro A velhice no
Brasil (1972), faz um relato histórico da trajetória da proteção aos
idosos na História do Brasil. Inicia definindo como “Etarismo” o
preconceito contra a velhice e equipara-o ao racismo.

167
O indivíduo é utilizado como um meio para atingir um fim,
contrariando a teoria de Immanuel Kant, não há humanismo e
sim utilitarismo, o envelhecimento desamparado e marginalizado
se torna doloroso e a dor na alma é lancinante para um indivíduo
que construiu toda uma existência.
A primeira ação executada pelo Estado de proteção ao idoso na
história do Brasil é a criação da “Casa dos Inválidos” pelo Quinto
Vice Rei, Conde de Resende, em 1792, para proteger os “soldados
avançados em anos e cansados de trabalho” vindos de Portugal para
lutar nas guerras de proteção ao território do Rio Grande do Sul.
(FILIZZOLA, p. 26, 1972).
O termo “inválido” foi importado da França pelo Conde de
Resende e possuía um significado diferente do atual. As ideias
iluministas difundidas na França do século XVIII pregavam o hu-
manismo como forma de evolução cultural de uma sociedade atra-
vés do conhecimento do individuo e de suas condições humanas.
O ser humano e sua conduta ética são as bases da dignidade e
racionalidade o que justifica o respeito e solidariedade entre os
indivíduos. (FILIZZOLA, p. 26, 1972)
O exército Francês utilizava o termo “invalide” para se referir
aos soldados incapacitados para o trabalho por velhice ou ferimen-
tos de guerra, porém eram respeitados pelo Estado Francês e pela
sociedade, que reconheciam os trabalhos prestados em favor da
pátria e admitia o dever de assistência a esses indivíduos, prestando
tratamento diferenciado e especial. (FILIZZOLA, 1971, p. 24)
A preocupação inicial com os soldados idosos e doentes nasce
a partir da determinação de Portugal ao Quinto Vice Rei Conde de
Resende para priorizar as questões militares, em virtude da necessi-
dade de defesa do Brasil de possíveis ataques estrangeiros e a preo-
cupação do Conde, posteriormente, estende-se a toda a população.
Evidentemente, o objetivo da corte não era a proteção dos sol-
dados idosos e doentes, como na França, mas sim a revitalização

168
da tropa e a diminuição das “despesas” com um efetivo que não
possuía condições físicas para defender o Brasil, o que corrobora a
questão do descaso histórico do Estado com as pessoas idosas.
Os idosos e doentes eram chamados de “tropa morta” e os sol-
dados ativos eram chamados de “tropa viva” (FILIZZOLA, p. 44,
1972), cujo termo é pejorativo e demonstra a discriminação contra
os idosos e não uma preocupação com sua dignidade. Os militares,
para receber pela prestação do serviço, continuavam nas “fileiras
das tropas pagas”, ou seja, não havia descanso para os militares
idosos, lutavam até sua morte mesmo que natural:
A situação encontrada no Brasil pelo Vice Rei Conde de Re-
sende era decadente, e debilitada não somente para os militares,
mas também para toda a cidade, assolada por diversas doenças
endêmicas e epidêmicas, mas, apesar de receber ordens inflexíveis
da Corte para que priorizasse as forças militares e diminuísse as
despesas, confrontou todas as normas da época para criar a “Casa
dos Inválidos”, uma nova instituição, para proteger os militares ido-
sos e enfermos que não possuíam condições de trabalho. Era uma
sociedade ausente de solidariedade e o amparo aos necessitados era
incentivado pela religião através do sentimento de “pena”, incenti-
vo da mendicância e oferta de esmolas. (FILIZZOLA, 1972)
O exemplo dos militares idosos e feridos de guerra no Brasil do
século XVIII demonstra o indivíduo utilizado como um meio para
atingir um fim, neste caso, lutar em defesa do território sem qualquer
reconhecimento e respeito pelo Estado e sociedade, contrariando a
teoria de Immanuel Kant, em nome da dignidade humana, que afir-
ma que o ser humano deve ser o fim e não um meio: “age de tal for-
ma que trates a humanidade, na tua pessoa ou na pessoa de outrem,
sempre como um fim e nunca apenas como um meio.” (KANT, 2003.)
Em 1793, o Conde de Resende escreve a Portugal dizendo que
“os soldados velhos pelos seus serviços se fazem dignos de uma des-
cansada velhice”, surgindo a partir do sentimento deste Vice-Rei o in-

169
centivo ao sentimento de gratidão aos velhos, o que significa desen-
volvimento cultural de um povo. O Conde de Resende, aos 42 anos,
traz para o Brasil “um sentimento novo”, desconhecido pelo povo
e pelo Estado, a “gratidão aos velhos”, considerado na Europa uma
evidência de “desenvolvimento cultural”. (FILIZZOLA, p. 70, 1972)
Ao difundir o pensamento humanista diante da situação do des-
prezo aos “velhos” e desamparados, não só aos militares, mas aos
integrantes idosos e demais pessoas excluídas da população civil, o
Conde de Resende semeia a “gratidão” como um “novo sentimen-
to” entre a sociedade e o Estado.
Anteriormente à chegada do Conde de Resende ao Brasil, em
1794, nenhuma autoridade preocupou-se com os “direitos da ve-
lhice”, até então nunca reconhecidos pelo Estado “sem que nesses
direitos se misturassem quaisquer vestígios de caridade pública”, ou
seja, a assistência prestada pela sociedade e pelo Estado era pura-
mente baseada na “caridade pública” (FILIZZOLA, p. 71, 1972)
Até a intervenção do Conde de Resende, o amparo social predo-
minante era exercido mediante o incentivo religioso ao “sistema de
esmola”, a prática da “caridade pela piedade”, isto é, o costume da
sociedade no século XVIII encontrado pelo Conde de Resende era o
hábito de “pedir esmolas”, cuja estrutura assistencialista não mais
satisfazia a carência da sociedade da época. A conduta de “pedir
esmolas” foi instituída pelo clero e era normal entre várias classes
sociais, mas principalmente entre as pessoas humildes, grupo cons-
tituído por escravos velhos e “estropiados”, marinheiros estrangei-
ros que abandonaram os navios para permanecer no Rio de Janeiro
e pessoas que não desejavam trabalhar (FILIZZOLA, p. 72, 1972).
A assistência social não era organizada e o Estado não desem-
penhava seu dever de amparo aos doentes, apesar de haver várias
leis, decretos e outros documentos legais que obrigassem a pres-
tação do amparo aos necessitados, porém, que ficava a cargo da
iniciativa social, principalmente, pelas irmandades.

170
Evidencia-se que os ideais de solidariedade foram transmitidos
pela sociedade brasileira pelas autoridades vindas da Europa, Vice-
-Reis, utilizando como meio a divulgação e conscientização social
sobre as necessidades da “velhice”, porém, não obstante a propa-
gação das ideologias humanitárias, de valorização da vida humana
e da liberdade a partir do século XVIII, não progrediu no século XIX
em relação à situação das pessoas idosas excluídas.
Após os esforços do Conde de Resende para ressaltar os serviços
prestados pelos soldados e instituir uma política assistencialista em
substituição à mendicância sob a égide da piedade, retorna-se à pre-
cariedade da caridade e da esmola através da religião que “prometia
aos velhos uma recompensa em outro mundo” (FILIZZOLA, 1972).
Os idosos continuam carentes de um amparo eficaz também
no século XX. A Constituição 1967, em seu artigo 167, § 4, insere
a família, conceituando-a como aquela proveniente do casamento,
garante o amparo à maternidade, infância e adolescência e a cul-
tura, inclusive aos “documentos, obras e locais de valor histórico”,
previsto no artigo 172, da Constituição de 1967, sob a proteção do
Estado, mas omite os idosos. Estabelece a relevância da cultura e
desvaloriza o idoso quando coloca a “cultura” sob a proteção do
Estado sem incluir os idosos, o que significa mais um retrocesso
em relação ao “Direito dos Velhos” e mais uma vez a coisificação
da vida humana: “(...) concluindo-se que a Carta Magna de 1967 a
“coisa” tem precedência sobre a “pessoa humana”, doutrina eviden-
temente materialista e anticristã. (FILIZZOLA, p. 152, 1972)
O ser humano é protegido enquanto pode servir ao regime, ao Es-
tado, à sociedade, após sua vida produtiva, é abandonado à própria
sorte. É o valor da “coisa” sobrepondo-se ao valor do “ser humano”.
Durante a década de 1970, o Estado da Guanabara começa a
elaborar políticas de desenvolvimento do Estado com objetivos es-
pecíficos para atender aos jovens, crianças, idosos e deficientes

171
físicos, com base na inclusão social, medicina preventiva e constru-
ção de hospitais destinados a doentes crônicos.
O preconceito etarista é predominante também no século XX
e a política assistencial para os idosos não tem como objetivo a
inclusão social que é tão importante para sua sobrevivência digna.
(FILIZZOLA, p. 195, 1972)
A Secretaria de Saúde na década de 1970 era a responsável pela
assistência ao “velho doente” e a Secretaria de Assistência Social
era responsável pelas ações de integração social do idoso desam-
parado, porém, não havia entrosamento entre as duas secretarias,
o idoso continuava sem a assistência necessária de forma plena. A
velhice continua em “uma espécie de zona de ninguém” por pura
luta burocrática entre órgãos estatais. (FILIZZOLA, p. 193, 1972)
A política assistencial para os idosos não se resume a recolhi-
mento em albergues ou hospitais sem as mínimas condições de
tratamento digno, o idoso doente necessita de tratamento adequado
e o idoso ainda saudável necessita de medicina preventiva, ações
políticas e sociais que não são aplicadas até os dias atuais.
A primeira Constituição Brasileira a tratar dos direitos sociais
foi o documento de 1824, que mencionava os “socorros públicos”,
em seu artigo 179, inciso XXXI, no entanto, não previa meios para
indivíduo cobrar esta garantia do Estado, o que tornava a norma ab-
solutamente ineficaz. (NOLASCO, disponível em http://www.am-
bito-jurídico.com.br/site/?_link=revista_artigos_leitura&artigo_
id=11358revista_caderno=20 pesquisado em 29 de maio de 2016.)
Em 1891, a Constituição Brasileira inseriu duas normas referen-
tes aos direitos sociais: o artigo 5º, que estabelecia sobre o dever da
União em prestar de socorro aos estados em calamidade pública e
o artigo 75, que ordenava sobre a aposentadoria por invalidez aos
funcionários públicos totalmente custeada pelo Estado, sem a ne-
cessidade de contribuição do funcionário. Também normas que não
previam exigibilidade, porém, ineficazes. (NOLASCO, 2012)

172
A Constituição de 1934 foi a primeira a prever o sistema tri-
partido da previdência A social, em que havia a contribuição do
empregador, do empregado e do Estado para garantir um meio de
sobrevivência, a aposentadoria, àqueles que não possuíam mais
condições de trabalhar. A Constituição de 1937, em seu artigo 137,
alínea “m”, normatizou os seguros para acidentes de trabalho, se-
guros de vida e de velhice, mencionando o termo “seguro social”.
A Constituição de 1946 deixa de mencionar o termo “seguro
social” e o substitui pelo termo “Previdência Social”, responsável
pela edição da Lei Orgânica da Previdência Social, em 1960, que
compilou todos os dispositivos infraconstitucionais relativos à Pre-
vidência Social. A Emenda Constitucional n. 1 de 1969, Constitui-
ção de 1967, institui o seguro desemprego e o salário família, an-
teriormente somente com previsão infraconstitucional. A partir
da Emenda Constitucional n.1 de 1969, nascem vários decretos
referentes à assistência social. (NOLASCO, 2012)
A Constituição Federal de 1988, que institui o Estado Democrá-
tico de Direito, prevê os direitos fundamentais e sociais especifican-
do a proteção ao idoso, porém, apesar de todo o contexto histórico
da situação dos idosos desamparados, a formulação de leis e a pre-
visão constitucional para garantia de seus Direitos.

2 - A DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS


DIREITOS HUMANOS E A LEGISLAÇÃO
ESPECÍFICA DESTINADAS AOS IDOSOS
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada pela
Resolução n. 217 A (III) da Assembleia Geral da Organização das
Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1948, delimitou os Direitos
Humanos essenciais após a Segunda Guerra Mundial, período em
que a humanidade encontrava-se extremamente abalada e teme-
rosa com o futuro dos seus direitos elementares e fundamentais

173
à existência humana. (Disponível em https://nacoesunidas.org/
docs/ - pesquisado em 07 de junho de 2016.)
A Convenção Interamericana sobre a proteção dos Direitos
dos Idosos, em seu preâmbulo, reconhece que o idoso “À medida
que envelhece, deve seguir desfrutando de uma vida plena, inde-
pendente e autônoma, com saúde, segurança, integração e parti-
cipação ativa nas esferas econômica, social, cultural e política de
suas sociedades.” (Disponível em https://nacoesunidas.org/docs/
pesquisado em 07 de junho de 2016.)
Ressalta a dignidade humana do idoso e garante os mesmos di-
reitos humanos e fundamentais em termos de igualdade aos demais
seres humanos, não sendo permitida a discriminação em razão da
idade. (Disponível em https://nacoesunidas.org/docs/ pesquisado
em 07 de junho de 2016.)
Celso Campilongo afirma que os direitos humanos encontram
dificuldade para sua efetivação nas “sociedades mais complexas,
como a atual” por ausência da compreensão de seus integrantes
no tocante aos idosos, principalmente, pela junção entre “produti-
vidade e custos pessoais dos idosos”.
No âmbito previdenciário, os idosos têm direito ao Benefício
Assistencial ao Idoso e à Pessoa com Deficiência (BPC/LOAS)- Lei
Orgânica de Assistência Social, mas a maioria dos idosos não tem
conhecimento deste benefício previdenciário. O idoso maior de 65
anos que nunca contribuiu para a Previdência social possui a ga-
rantia de um salário mínimo mensal, porém, por ser um benefício
e não estar atrelado às contribuições ao Instituto Nacional de Se-
guro Social, não há direito a pagamento de décimo terceiro salário
e não deixa pensão por morte. (Disponível em http://mtps.gov.
br – pesquisado em 17 de junho de 2016.)
Para ter direito ao benefício, o idoso deve comprovar idade
maior de 65 anos, renda familiar até ¼ do salário mínimo por
pessoa do grupo familiar, inclusive o próprio idoso, pois será con-

1 74
siderada a renda familiar como um todo, ser brasileiro, possuir
residência fixa no país e não receber outro tipo de benefício da
Previdência Social. (Disponível em http://mtps.gov.br – pesquisa-
do em 17 de junho de 2016.)
O Estatuto do Idoso possui como proposta inicial, em sua justi-
ficativa, de consolidação de inúmeras leis e decretos federais, esta-
duais e municipais já existentes e ignoradas, bem como disseminar
os direitos dos idosos para conhecimento de todos e assim conceder
eficácia à lei e a concretização dos direitos, com a criação de políti-
cas sociais públicas para “aproveitamento de seu potencial produti-
vo, respeito à cidadania e às suas características físicas, intelectuais
e psíquicas”. (PAIM, Paulo. Lei 10.741/03, p.7/8, 1997 – disponível
em https://www12.senado.leg.br/institucional/arquivo/arquivos-
-pdf/idoso - pesquisado em 17 de junho de 2016.)
O idoso passa a sentir-se inútil e desvalorizado, quando exclu-
ído pela sociedade por não possuir mais a capacidade de produzir,
e é levado à depressão, atualmente derivada pela estimulação do
sistema capitalista somente privilegia os jovens e adultos capazes
de trabalhar: “É o trabalho que permite o ato de existir enquanto
cidadão e auxilia na questão de se traçar redes de relações que ser-
vem, determinando, portanto, o lugar social e familiar.” (MENDES,
p.424, 2005 – Disponível em http://www.scielo.br/pdf/ape/v18n4/
a11v18n4.pdf - pesquisado em 12 de junho de 2016).
Sua sabedoria provém da essência da vida e sente-se valorizado
ao transmitir sua experiência aos mais jovens. O idoso é o agente
transmissor responsável por essa memória a qual desenha a identi-
dade do ser humano.
Em decorrência deste desamparo histórico, muitas pessoas ido-
sas precisam continuar trabalhando, mesmo com sua saúde abala-
da pela idade, para garantir o mínimo para sua sobrevivência. Em
outra vertente, o trabalho também enobrece o idoso que ainda tem
saúde e ainda pode e quer se sentir útil.

175
3- A NECESSIDADE DO DESCANSO E A
INDISPENSABILIDADE DO TRABALHO
O trabalho para a pessoa idosa possui duas faces. Há idosos que tra-
balham por opção, por terem boa saúde e sentirem-se bem com o ofício
que exercem e outros idosos trabalham por necessidade. Aqueles que
têm aposentadoria não conseguem sobreviver com os baixos valores
e, neste caso, o trabalho é necessário para a manutenção de sua vida.
Quando o idoso trabalha por ter ainda condições físicas e psi-
cológicas, a atividade funciona como um instrumento fundamental
para sua qualidade de vida, porém, quando existe a necessidade de
trabalhar por sobrevivência, quando o cansaço da idade já alcançou
o indivíduo idoso, o trabalho passa a ser um malefício, pois o descan-
so é imprescindível a uma velhice digna.
O idoso tem o direito de trabalhar, mas não deve trabalhar até o
fim da vida se não possui condições físicas e mentais, já que o des-
canso também é seu direito. O idoso tem direito ao trabalho e ao des-
canso, ou seja, exercerá estes direitos de acordo com suas condições.
Quando o idoso trabalha por necessidade, retorna-se aos dados
históricos a respeito da situação dos idosos nos séculos iniciais da
história do Brasil: o “soldado velho sem direito a descanso”, os
idosos que viviam da mendicância e da caridade por não possuir
nenhum tipo de auxílio do Estado, vez que este não desejava “des-
pesas” com aqueles que não mais serviam ao trabalho.
Segundo as estatísticas, no Brasil há, aproximadamente, quin-
ze milhões de idosos no mercado de trabalho, de acordo com o
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE – indicando
as pesquisas que esse número tende a aumentar. (Disponível em
http://www.ibge.gov.br/home/pesquisa/pesquisa_google.shtm?cx
=009791019813784313549%3Aonz63jzsr68&cof=FORID%3A9&ie
=ISO-8859- pesquisado em 07 de outubro de 2016)

176
As ações que resguardam a formação do ser humano ou a des-
construção de seu “ser” para uma integração à sociedade devem
ser compostas por condutas que salvaguardem tanto a integridade
física quanto a integridade emocional, por isso, a importância do
amor e do afeto por parte dos indivíduos que lidam com seres hu-
manos, principalmente aqueles em situação de risco e vulnerabili-
dade como os idosos.

CONCLUSÃO
As regras estabelecidas pela legislação garantem os direitos hu-
manos, fundamentais a uma existência digna, porém, são somente
regras práticas, utilitaristas, que não bastam, não satisfazem as ne-
cessidades do ser humano.
A construção da identidade humana percorre o caminho das ações
e reações do ser humano, suas experiências e aprendizado adquirido
no mundo até atingir a alteridade, e, consequentemente, a solidarieda-
de, elemento substancial à alteridade e componente de uma sociedade
saudável, cumpridora dos direitos humanos fundamentais, constituin-
do um ciclo de vivência humana. O ciclo da vivência humana inicia-se
com o nascimento do indivíduo e termina com a morte, passando por
várias fases: a criança, o adolescente, o jovem, o adulto e o idoso.
Os direitos humanos decorrentes do princípio da dignidade hu-
mana são direitos de todos, independente da idade do ser humano,
porém, durante toda a história, não só do Brasil, mas em todo o
mundo, o idoso sempre foi menosprezado e discriminado.
Atualmente existem leis protetivas aos idosos, tanto em no ordena-
mento jurídico pátrio como internacional, mas não bastam para suprir
suas necessidades, pois o amor e o afeto devem estar presentes.
O idoso tem esperança sempre, pois não há como prever a hora
da morte, o idoso quer contar suas experiências, histórias, estórias
e memórias, e através delas é que a sabedoria será propagada às de-
mais gerações, que um dia também envelhecerão e terão a mesma

177
necessidade de atenção, amor e afeto para propagar também suas
memórias. É esse o ciclo da vida.
Apesar de não ser possível a imposição de amor aos idosos
pelo Estado, pelas leis, estes sentimentos devem estar presentes em
todas as pessoas, principalmente, nos indivíduos que lidam dire-
tamente com os idosos através do Imperativo Categórico de Kant.
Com o aumento dos anos de vida, muitos idosos sofrem sem
acesso à saúde e a uma sobrevivência digna causada pelo despre-
paro da própria do Estado, da sociedade e das famílias para rece-
ber, aceitar e amparar estes idosos, em razão, muitas vezes, da
mudança social e econômica, justificada pela necessidade de todos
os seus familiares estarem inseridos no mercado de trabalho e não
dispensar ao idoso a atenção, o carinho e as necessidades físicas
fundamentais ao seu envelhecimento digno.
A análise da teoria de Immanuel Kant possui uma estreita rela-
ção com o ideal de uma sociedade equilibrada, justa e igualitária.
Immanuel Kant tem como base de sua ética o imperativo categóri-
co: o indivíduo moralmente responsável deve agir de acordo com sua
consciência, sobrelevando os valores morais em relação ao seu desejo
natural, o homem não deve ser um meio e sim o fim. A tomada de de-
cisões deve ser baseada em atos morais, sem afetar seus semelhantes.
Para atingir o ideal de sociedade almejado, com os direitos hu-
manos garantidos, por meio da construção do ser humano e da
compreensão do “outro” por cada indivíduo integrante do grupo
social, deve ocorrer a integração entre estes dois elementos: identi-
dade e alteridade, que resultam na solidariedade. Entretanto, para
que efetivamente a sociedade justa e igualitária se concretize, a so-
lidariedade deve estar aliada ao amor a ao afeto ao idoso excluído.
As regras estabelecidas pela legislação que garantem os direitos
humanos, fundamentais a uma existência digna, porém, somente
práticas utilitaristas não bastam. As ações que resguardam a forma-
ção do ser humano ou a desconstrução de seu “ser” para uma in-

178
tegração à sociedade devem ser compostas por condutas que salva-
guardem tanto a integridade física quanto a integridade emocional,
por isso, a importância do amor e do afeto por parte dos indivíduos
que lidam com seres humanos, principalmente aqueles em situação
de risco e vulnerabilidade, como os idosos.
Conclui-se que é por meio da conscientização, dos ensinamentos
dos princípios morais,éticos e culturais de uma sociedade que o ser
humano constroi ou reconstroi sua identidade, logo, é indispensável
que os indivíduos integrantes desta sociedade e responsáveis pela
integração deste “ser” exerçam conduta não somente conforme o que
a legislação estabelece, mas também com a dose de amor inerente à
alteridade e solidariedades necessária à composição positiva do ser.
O idoso tem esperança sempre, pois não há como prever a hora
da morte, o idoso quer contar suas experiências, histórias, estórias
e memórias, e através delas é que a sabedoria será propagada as
demais gerações, que um dia também envelhecerão e terão a mesma
necessidade de atenção, amor e afeto para propagar também suas
memórias. É esse o ciclo da vida.
As famílias, a sociedade e o Estado devem se conscientizar que
os idosos merecem e necessitam de amor e atenção, como qualquer
outro ser humano em qualquer fase da vida, com o agravante sua
fragilidade mental e emocional trazidas pela longevidade.
Não é possível admitir a exclusão e o abandono dos idosos como
uma atitude normal dos seres humanos. Não há mais, no século XXI,
espaço para a desumanidade contra os grupos minoritários da socie-
dade e não é aceitável o final de vida dos idosos como a trajetória
da personagem “mocinha” narrada por Lispector (1999), em que a
última família para a qual foi levada, em Petrópolis, colocou-a na rua:
Clarisse Lispector, ao narrar este conto, ecoa sensivelmente a
voz da solidão de inúmeros idosos, que apesar de todos os bons e
maus momentos vividos, a esperança e a vontade de viver são as

179
últimas a morrer. A morte para os idosos chega com a ausência de
significado e importância para sua vida.
Apenas com a edificação de um ser humano com princípios
morais e éticos é possível uma sociedade equilibrada, justa, iguali-
tária e, consequentemente, respeitadora dos direitos humanos, di-
reitos de todos.

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187
DI Á LO GO ENTRE O PASSAD O E O
PRESENTE S OBRE O T RABA LHO
ESC RAVO
CARLA SENDON AMEIJEIRAS VELOSO55

INTRODUÇÃO
O trabalho escravo contemporâneo é um tema que enseja re-
centemente uma preocupação no Estado Brasileiro. Tal fato se
justifica, pois o Estado Brasileiro precisa após denúncia na Corte
Interamericana de Direitos Humanos, confessar a existência, em
pleno século XXI, deste tipo de trabalho.
Através disso, este trabalho procura demononstrar a especifi-
cidade do trabalho escravo no Brasil.
Há uma questão cultural muito forte em nosso país referen-
te a escravidão, assim como na atualidade podemos destacar o
analfabetismo, exclusão social, abismo econômico que acarreta
na pobreza e desemprego. Tudo isso é somado a ausência eficaz
estatal em todos os recantos do nosso país.
Além disso, o aspecto psicológico do escravizado e o medo
da denúncia aos órgãos competentes dificulta o flagrante e conse-
quentemente a sua libertação.
A luta pela sobrevivência de um lado pelo trabalhador e a visão de
um lucro exorbitante pelos empregadores facilita a mitigação de cus-
tos, a violabilidade dos direitos e a perpetuação do trabalho escravo.

55. PROFESSORA DA UNIVERSIDADE ESTÁCIO DE SÁ. MESTRE EM DIREITO PELA


UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PETRÓPOLIS. E-MAIL: [email protected]

189
O intuito de estabelecer as notas históricas serve para dife-
renciar o tratamento e a dinâmica que ocorria no passado e que
ocorre atualmente.
Enquanto desde a antiguidade a escravidão era um fato legisla-
do e permitido, na atualidade é proibido e imoral.
No mundo contemporâneo, não há mais distinção entre a etnia,
raça, cor, idade, origem para o aliciamento do trabalhador escravo,
que, vai voluntariamente prestar serviços em busca de uma vida me-
lhor, e, se depara com uma rede indissolúvel e que parece sem fim.
Utilizamos a metodologia bibliográfica através da análise de li-
teratura sobre o tema.

ESCRAVIDÃO NA ANTIGUIDADE:
Existem relatos que a escravidão teve seu início na Pré-História
há aproximadamente dez mil anos, ou seja, há muito tempo a es-
cravidão está presente na história da humanidade.
Conforme preceitua Suely Robles Reis Queiroz (QUEIROZ,
1987, p. 5 - 6), a escravidão é instituição tão antiga quanto o gê-
nero humano e de amplitude universal, posto que, legitimada pelo
direito do mais forte, ocorreu em todos os tempos e em todas as so-
ciedades. Basta a leitura da Bíblia ou de outros livros que também
tratem de épocas remotas para se ter uma ideia de sua antiguidade.
Não há consenso quanto ao início da escravidão na civiliza-
ção. Há quem sustente que a escravidão surgiu no final do Período
Neolítico e no início da Idade dos Metais, por volta do ano 6000
a.C, com a descoberta da agricultura, quando o homem deixou
de ser nômade para se fixar à terra. Este fato, conhecido como
Revolução Agrícola, ocorreu inicialmente no Oriente Médio, em
um local conhecido como crescente fértil, região com forma de
meia-lua, banhada pelos rios Tigre, Eufrates, Nilo e Jordão (BELI-
SÁRIO, 2005, p. 85; SANTOS, 2003).

190
Já para outra corrente, entretanto, os primeiros registros históri-
cos da escravidão remontam ao ano 3000 a.C, no Egito e no Sul da
Mesopotâmia. (SHWARZ, 2008, p. 89).
Durante os anos 3000 a.C a 2001 a.C, o sistema escravagista
expandiu-se a outros países da região, como AcaadeUr, assim como
ao Vale do Rio Indo (Oriente Antigo). No período de 2000 a.C a 1001
a.C, o escravismo atingiu também a Assíria, a Fenícia, a Pérsia, a
Índia e a China. Na Europa, o sistema escravagista intensificou-se,
por volta dos anos 800 a.C a 501 a.C, na Grécia, e de 500 a.C a 301
a.C, em Roma (ANDERSON, 1994, p. 21)56.
A escravidão no início consistia em um meio de subjugação
do vencedor pelo vencido, como consequência direta das guerras
que os diversos povos travavam entre si. Na região da Mesopotâ-
mia, por exemplo, sumérios, acádios, amoritas, assírios e caldeus
combatiam uns aos outros, sucedendo-se no domínio da região,
mediante a escravização dos sucedidos. (SANTOS, 2003). Outros-
sim, informações históricas retratam a escravidão ou servidão por
dívida, como bem salienta Perry Anderson (1994, p. 21).
O Código de Hamurabi é um conjunto de leis criadas na Me-
sopotâmia, por volta do século XVIII a.C, pelo Rei Hamurabi da
primeira dinastia Babilônica. O Código é baseado na lei de Talião,
“olho por olho, dente por dente”.
É composto por duzentos e oitenta e uma leis que foram ta-
lhadas numa rocha de diorito de cor escura. Escrita em caracteres
cuneiformes, as leis dispõem sobre regras e punições para eventos
da vida cotidiana. Tinha como objetivo principal unificar o reino
através de um código de leis comuns. Para isso, Hamurabi mandou
espalhar cópias deste código em várias regiões do reino.

56. De acordo com Anderson (1994, p. 21), embora o Mundo Antigo nunca tenha sido
continuamente marcado pela predominância do trabalho escravo, suas grandes épo-
cas clássicas, quando floresceu a civilização na Antiguidade, a Grécia, nos séculos V e
IV a.C, e Roma, do século II a.C ao século II d.C, foram aquelas em que a escravidão foi
generalizadamente explorada entre outros sistemas de produção.

191
Pode-se, asseverar através da leitura do Código de Hamurabi,
que há leis que possibilitam a utilização da escravidão.
Há previsão legislando sobre a licitude da escravidão, in verbis:

“se uma dívida pesa sobre um awilume ele ven-


deu sua esposa, seu filho ou sua filha ou entregou
em serviço pela dívida, durante três anos traba-
lharãona casa de seu comprador ou daquele que
os têm em sujeição, no quarto ano será concedido
sua libertação”57

No direito Hebraico surge a Lei de Deuteronômio que estabelece


que em Israel, os prisioneiros de guerra não israelitas são vendidos
como escravos (BÍBLIA, Deuteronômio, 21:10) ou podem ser com-
prados em tiro, gaza ou aço; o tráfico esta principalmente, nas mãos
dos fenícios. É proibida a compra de escravos israelitas por israelitas,
embora um israelita possa se vender para pagamento da dívida como
escravo. A lei indica que esta escravidão não poderia ser eterna:

“Quando um dos teus irmãos, hebreu ou hebréia,


for vendido a ti, ele te servirá por seis anos. No sé-
timo ano tu o deixarás ir em liberdade, não o des-
peças de mãos vazias: carrega-lhe o ombro como
presentes do produto do teu rebanho, da tua eira
e do teu lugar (BÍBLIA, Deuteronômio, 15: 12-14)”
“mas se ele (escravo) diz: não quero deixar-te,
se ele te ama e à tua casa, e está bem contigo,
tomarás então um sovela e lhe furarás a orelha
contra a porta, e ele ficará teu servo para sempre.
O mesmo farás com tua serva”(BÍBLIA, Deutero-
nômio, 15: 16-17)

57. awilum quer dizer “homem livre, com todos os direitos de cidadão. este é maior grupo
da sociedade hammurabiana e compreendia tanto ricos quanto pobres que fossem livres.

192
Datada de 450 a.C, a Leis das XII Tábuas também estabelecem
previsão acerca da escravidão:

“Tábua Segunda - dos Julgamentos e dos Furtos


4. Se o furto ocorre durante o dia e o ladrão é fla-
grado, que seja fustigado e entregue como escravo
à vítima. Se é escravo, que seja fustigado e precipi-
tado do alto da rocha tarpéia.”

Analisando e história da humanidade pode-se afirmar que sem-


pre houve escravidão. Embora o trabalho compulsório tenha assu-
mido, ao longo do tempo, uma variedade considerável de formas,
essas são bem diferentes daquela resultante do trabalho assalariado,
que exige a abstração conceitual da força de trabalho do trabalhador
que a detém. Nas sociedades mais antigas, o trabalho assalariado
livre ocorre apenas casual e marginalmente, tanto que no grego ou
no latim não existe uma palavra que expresse a noção de trabalho
como função social geral. Foi apenas com o desenvolvimento do
capitalismo que o trabalho assalariado alcança a forma caracterís-
tica de labor para outrem, tornando-se a força de trabalho uma das
principais mercadorias à venda. No caso da escravidão, no entanto,
a mercadoria é o próprio trabalhador (FINLEY, 1991, p. 70-71).
Oportuno, destacarmos, que são os gregos e os romanos que
transformam a escravidão, de forma inédita na história da huma-
nidade, em um sistema institucionalizado de uso, em larga escala,
tanto no campo como na cidade (FINLEY, 1991, p. 69).
No mundo Grego Antigo, o escravo não possui cidadania, sen-
do, alijado do processo político e desconstituido de direitos civis. O
seu Senhor em contrapartida figura com superioridade e em razão
desse fato possui cidadania, direitos e obrigações, constituindo par-
te integrante da sociedade.

193
Tanto na Grécia Clássica quanto em Roma é o sistema da es-
cravidão, que predomina sobre os demais sistemas de trabalho
(ANDERSON, 1984, p. 99-111).
Na Antiguidade Clássica é irrelevante para a condição de es-
cravo a cor da pele, forma dos olhos ou lugar de origem. O que
é predominante e relevante é a conquista, nascimento ou dívida.
Os antigos defendem a escravidão com uma forma de subdi-
visão de ocupações para a manutenção da vida, desvinculando-se
da lucratividade.
Importante, salientar, que na antiguidade não há a utilização
dos escravos com o intuito de obtenção de mão de obra barata,
ou seja, lucro.
Vale asseverar, que a escravidão para a sociedade patriarcal
grega, torna-se cada vez mais necessária e a polis grega, com
a sua democracia e liberdade emergentes, jamais a questionou;
os cidadãos passam a dedicar-se aos negócios públicos, às artes,
à guerra e à filosofia, enquanto que o trabalho manual é com-
pulsoriamente transferido aos escravos, visto que estes jamais se
tornariam cidadãos, pois estavam fora da esfera dos direitos de-
mocráticos (MELTZER, 2004, p. 58).
Aos poucos, a escravidão, passa a representar um meio de
enriquecer as elites, aumentar o exército ou garantir o serviço
público, torna-se a quantidade de escravo uma das medidas do
poder de um império (VIANA, 2007).
Com o declínio da escravidão surge na Europa as servidões
que se caracterizam pelo senhor e o servo. O servo deve obediên-
cia ao dono da terra e é atrelado a esta. Embora seja livre passa a
condição de servo para seus herdeiros.
Após a ruína da servidão emerge as corporações de ofício que são
compostas pelos mestres, companheiros e aprendizes. O desenvolvi-
mento da obra mestre é o que caracteriza a figura do mestre que irá
determinar as funções e comercializar internamenteas mercadorias.

194
Nos modelos de produção anteriores ao capitalismo o que se
observa é a relação de submissão entre o trabalhador e o detentor
dos meios de produção.
Tanto na época da escravidão quanto no período do regime ser-
vil e, até mesmo, nas corporações de ofício instauradas na Idade
Média, o obreiro sujeita-se pessoalmente ao senhor ou ao mestre.

“A Europa de Marx e Engels se caracterizavam


por uma transformação social, econômica e polí-
tica radical, com o fim da servidão e das relações
sociais feudais, com o advento da moderna in-
dústria fabril e da urbanização, com a propaga-
ção de ideias iluministas questionadores de pri-
vilégios naturais e com a emergência de conflitos
sociais acirrados. Os temas do trabalho fabril, da
polarização entre as classes sociais e das trasns-
formações que a nova ordem capitalista impunha
se revelaram centrais nas preocupações dos au-
tores, embora contrastassem com a realidade em
que viviam na Alemanha que não acompanhava
seus vizinhos no desenvolvimento político e eco-
nômico, embora permitisse um desenvolvimento
cultural relevante”. (RISQUES et al., 2015, p. 30).

A Revolução Francesa condena a existência das Coorporações


de Ofício e lança os ideais de Igualdade, Liberdade e Fraternidade,
e, com isso passa a compreender que os cidadãos são livres para
negociar suas condições de trabalho, sem a interferência do Estado.
O “Estado Liberal” caracteriza-se pelo ditame da não interven-
ção estatal, tanto na economia como nas relações socias.
Ao Estado cabe apenas criar as condições necessárias para que
a indústria prosperasse. Sua única preocupação é a de manter a
ordem pública. Vigora o laissez-faire e o laissez-passer do Código

195
de Napoleão. A livre concorrência dita, por si só, as regras da socie-
dade contemporânea (OLIVEIRA, 1997, p. 63)
Não existe Direito do Trabalho, e, portanto normas que regulem
especificadamente as relações de trabalho. O que há é o Direito
Civil, originário do Direito Romano.
O que ocorre nas relações contratuais trabalhistas é a aplica-
bilidade do Direito Civil. Neste, as partes individuais são consi-
deradas em um patamar de igualdade, sendo certo que isso não
corresponde a realidade trabalhista, visto ser o trabalhador hipos-
suficiente na relação contratual.
Com a descoberta da máquina à vapor surge a Revolução In-
dustrial que possui com o característica marcante a opressão dos
trabalhadores que são denominados proletários frente aos empre-
gadores que se denominam burguesia. Comprova-se através de ma-
nifestações a necessidade de uma intervenção estatal nas relações
de trabalho e daí surge o direito do trabalho.
Várias leis são criadas no continente antigo para a regulamen-
tação do trabalho livre.
Coexiste, neste período, a utilização dos escravos como meio
de produção e geradores de lucros e trabalhadores livres. As socie-
dades vão se desenvolvendo através da utilização da mão de obra
escrava, fato este visto pelo próprio Marx.
Karl Marx acredita que o trabalho é um processo vital do qual
participam o homem e a natureza e, dessa forma, um meio de satis-
fazer anecessidade física de cada ser humano, identifica diferentes
formas de trabalho, que se desenvolvem de acordo com a categoria
das sociedades em que são realizados, pensamento esse que pode
ser aplicado perfeitamente à escravidão. A esse respeito, menciona:

“A sociedade antiga, a sociedade feudal, a so-


ciedade burguesa, são exemplos de conjuntos de
relações de produção, em que cada um deles ca-

196
racteriza ao mesmo tempo uma etapa específica
de desenvolvimento na história da humanidade”.
(MARX, 1982, p. 32)

E falando mais especificamente sobre a escravidão, Octávio Ian-


ni (1988, p. 65) ensina que,

“O regime econômico social escravista funda-se


em um modo peculiar de conexão entre os meios
de produção e o trabalho produtivo. A maneira
pela qual a força de trabalho é cristalizada em pro-
duto de valor define a escravatura como uma for-
ma singular de organização das atividades econô-
micas, gerando uma configuração histórico social.
Em outros termos, as estruturas econômico-sociais
dependem diretamente da maneira pela qual os
meios de produção (terra, ferramentas, máquinas,
matéria-prima, etc.) combinam-se com força de
trabalho (escravo, servo, trabalhador livre, artesão
doméstico, sitiante etc.). “Quaisquer que sejam as
formas sociais de produção”, diz Marx, “seus fa-
tores são sempre os meios de produção e os traba-
lhadores”, sendo que “as duas diversas combina-
ções distinguem as diferentes épocas econômicas
da estrutura social”.

Ao ler a Introdução à Leitura de Hegel de Alexandre Kojève


(Kojève, 2002) pudemos perceber que Hegel pensa a dialética do se-
nhor e do escravo na perspectiva da luta pela sobrevivência e pelo
reconhecimento do Outro. Sendo que, o escravo e o senhor possue
uma relação de interdependência buscando um a morte do outro.
Marx retira a ideia da angústia da morte e mostra como se dá esta
relação entre o senhor e o escravo nos meios de produção.

197
São dois os grandes comentadores importantes das obras de
Hegel que influenciam gerações e gerações do século XX, sendo
esta a razão de utilizarmos o Alexandre Kojève e Jean Hyppolite.
O senhor detém os meios de produção e o escravo somente
possui a força bruta do trabalho.
Observamos, a partir da revolução industrial que várias leis vão
sendo criadas, principalmente na Inglaterra e França, para a prote-
ção dos trabalhadores livres.
Vale asseverar que as primeiras leis são direcionadas a catego-
rias específicas, como produtores de moinhos, menores e mulheres.
Aos poucos, as leis se ampliam para todos os trabalhadores.
Essa visão vai se expandindo pelo Mundo e a primeira Constitui-
ção Federal que estabelece direitos trabalhistas é do México em 1917.
Enquanto isso, coexiste em nosso país a escravidão colonial.
Embora a Constituição Federal do Império fale timidamente das
coorporações de ofício e do trabalho, a realidade é a escravidão.
O Brasil vive na contramão dos movimentos mundiais, tendo
em vista que perpetua a utilização dos escravos como meio de de-
senvolvimento comercial.
No Estado Moderno há uma série de direitos conferidos aos
trabalhadores livres, que se inicia através dos movimentos sociais,
principalmente na Inglaterra.
No Brasil, ainda há a escravidão colonial que se perpetua até
1888 com a abolição da escravatura.
Pode-se afirmar que a base econômica brasileira durante o Brasil
Colônia é a mão de obra escrava. Os senhores possuem enorme influ-
ência política, o que permite a perpetuação desta situação contraditória.
Para tanto, se faz necessário um estudo sobre as diferenças en-
tre a escravidão colonial que se funda no trabalho escravo, sendo
este considerado coisa e propriedade do senhor por meio de legis-
lação, e, a do Estado Contemporâneo, em que há uma expressa
vedação legal, mas uma realidade mascarada.

198
No Estado Contemporâneo, o trabalho escravo possui como
similitude a ausência da dignidade da pessoa humana e de sua
liberdade de ir e vir. A mera ausência do cumprimento dos direitos
trabalhistas não caracteriza o escravo contemporâneo. É necessário
demonstrar a falta de liberdade.

(LALANDE, 1993, p. 615) Em um sentido pri-


mitivo o homem “livre” é o homem que não é
escravo ou prisioneiro. A liberdade é o estado da-
quele que faz aquilo que quer e não aquilo que
outrém pretende que faça; é a ausência de cons-
trangimento alheio.

Podemos afirmar que o sentido negativo de liberdade utilizado


nesta dissertação é o caracterizador do trabalhador escravizado na
contemporaneidade.
Para melhor entender a prática do trabalho escravo contemporã-
neo faz-se necessário remontar ao histórico da escravidão no Brasil.

ESCRAVIDÃO NO BRASIL COLÔNIA


O território descoberto pelos portugueses, em 1500, denomina-
do, primeiramente de Terra de Vera Cruz, e, posteriormente, Brasil,
é o lugar onde os portugueses trazem aqueles que já não eram bem-
-vindos ao continente europeu, ou seja, os degredados, que são os
que, posteriormente capturam escravos para venderem aos senho-
res de engenho, que visam apenas o lucro (BUENO, 1999, p. 14).
O tráfico negreiro é ampliado e passa a servir como principal fonte
de mão de obra, o que traz posteriormente o massacre dos indígenas.

A ESCRAVIDÃO CONTEMPORÂNEA
A sujeição do ser humano do passado vem sendo adaptada ao
mundo atual. Se, por um lado, não existem mais correntes ou senza-

199
las, por outro, são inúmeras as semelhanças relatadas por trabalha-
dores de condições que remetem a uma escravidão contemporânea. 
Ameaças de morte, castigos físicos, dívidas que impedem o li-
vre exercício do ir e vir, alojamentos sem rede de esgoto ou ilumi-
nação, sem armários ou camas, jornadas que ultrapassam 12 horas
por dia, sem alimentação ou água potável, falta de equipamentos
de proteção, promessas não cumpridas, ou seja, uma pressão psi-
cológica tão forte e degradante que impossibilita que o trabalhador
se permita sair da condição de escravo e consequentemente seja
liberto, tornando-se um ciclo vicioso de submissão.
Para melhor distinção e criação de um novo conceito de escra-
vidão, o sociólogo americano Kevin Bales, especialista no tema,
traça paralelos entre a escravidão histórica e a escravidão contem-
porânea (Quadro 1).

Quadro 1 – Comparação entre a escravidão histórica e a es-


cravidão contemporânea:

ESCRAVIDÃO
ESCRAVIDÃO HISTÓRICA
CONTEMPORÂNEA

Propriedade legal Permitida Proibida

Muito baixo. Não há com-


Custo de aquisição de mão Alto. A quantidade de escra-
pra e muitas vezes gasta-se
de obra vos era medida de riqueza.
apenas o transporte.

Descartável. Devido a um
Escassa. Dependia do tráfi- grande contingente de tra-
Mão de Obra
co negreiro balhadores desemprega-
dos.
Longo período. A vida in- Curto período. Terminado
Relacionamento teira do escravo e seus des- o serviço não é mais neces-
cendentes. sário prover o sustento.

200
Pouco relevantes. Qualquer
pessoa pobre e miserável
Diferenças étnicas Relevante para a escravidão são o que se tornam escra-
vos, independente da cor
da pele.
Manutenção Violência Física Violência Psicológica
Ameaças, violência psi-
Punições exemplares e até cológica, coerção física,
Ordem
assassinatos punições exemplares e até
assassinatos

Adaptado de BALES (1999).

Maurício Godinho Delgado e Gabriela Neves Delgado (2012,


p.43), estabelecem que a pessoa humana, com sua dignidade, cons-
titui o ponto central do Estado Democrático de Direito. Daí que
estabelecem determinadas constituições o princípio da dignidade
da pessoa humana como a diretriz cardeal de toda a ordem jurídica,
com firme assento constitucional.

CONCLUSÃO
Os relatos de escravidão contemporânea no Estado Brasilei-
ro remontam ao ano de 1971, embora somente a partir do acor-
do firmado no Caso José Pereira, perante a Corte Interamericana
de Direitos Humanas, é que o Brasil tornou-se uma referência ao
combate ao trabalho escravo.
A problemática sobre a aplicabilidade dos mecanismos de com-
bate ao trabalho escravo contemporâneo, inicia-se na dificuldade
em estabelecer um conceito preciso para caracterizar esta temática,
o que incide muitas vezes, na inviabilidade da sua concretização.
Um dos elementos que evidencia a ineficácia destes mecanis-
mos diz respeito ao aspecto subjetivo do trabalhador envolvido,
uma vez que muitos dos trabalhadores não se sentem escravos e
por isso impedem as ações de combate. Somado a isso há uma

201
cultura do medo que é instaurada para evitar denúncias sobre a
existência nos locais de trabalho escravo.
Há outros elementos impeditivos que reforçam a falta de su-
cesso em várias operações, tais como, locais de trabalho em difícil
acesso, país com densidades demográficas complexas, redes gigan-
tescas envolvidas nesta operação e mitigação do psicológico do tra-
balhador que passa a ver que não há outra solução senão perpetuar
sua vida em escravidão.
Há o medo da denúncia devido aos inúmeros assassinatos que
ocorrem nas tentantivas de fuga dos trabalhadores escravizados.
Estes que permanecem em cativeiro são vigiados constantemente e
tem totalmente suprimido qualquer raio de liberdade.
Observamos que as pessoas aliciadas não encontram trabalho
em seus locais de moradia e dada a ausência do Estado são facil-
mente enganadas e aliciadas pelos “gatos” e quando percebem já
estão presas na rede do trabalho escravo.
Embora já tenha havido uma valorização crescente das conden-
çaões de danos morais, inexiste condenação penal ou mesmo pecuni-
ária que cause impacto suficiente para coibir a prática da escravidão.
Mesmo com vários libertados, ainda estamos longe do fim, e,
o índice de reincidência é muito grande. Tal fato ocorre, tendo em
vista que o trabalhador escravizado tem suprimida toda a sua dig-
nidade e não se vê em uma situação de recolocação como cidadão.
Apesar de todos os esforços resta constatada a existência em
pelo século XXI de trabalho escravo contemporâneo em nosso ter-
ritório nacional.
As limitações na conceituação do trabalho escravo prejudica a
libertação de trabalhadores em condições de escravidão e a puni-
ção com a desapropriação das terras que foram flagradas com mão
de obra nesta condição.
A realidade é que constatamos mais de 125 anos após a abo-
lição da escravatura, que o Estado Brasileiro ainda é insuficiente

202
e ineficaz no combate ao trabalho forçado, valendo destacar, que
muitas pessoas são libertadas todos os anos no país em condições
análogas à de escravos, e, tantas outras permanecem sem a efetiva
aplicação da proteção estatal.

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tina Ferreira Stummer e Lygia Araujo Watanabe. São Paulo: Dis-
curso Editorial, 1999.

209
A DI FUSÃO DO INSTIT UTO DA
MEDI A ÇÃO COMO INSTRU M E N TO
DE REFORMA DA BASE LITI GIOSA
PA RA O ATENDIMENTO AO D IR E ITO
F UN DA MENTAL DA EFETIVI DA D E D O
PRO C ESSO E PACIFICAÇÃO SOC IA L
Claudia Abbass Corrêa Dias58

Introdução
O objeto de estudo do presente trabalho é a difusão do instituto
da mediação de conflitos como instrumento de reforma da base
litigiosa para o atendimento ao direito fundamental da efetividade
do processo, insculpido no art. 5°, inciso LXXVIII da Constituição
da República e consequentemente a pacificação social.
Insta observar que a pacificação social constitui um dos es-
copos do Direito, eis que o objetivo primeiro da norma jurídica é
prevenir conflitos, e não sendo possível passa-se a composição do
mesmo. Isso se dá por uma necessidade de organização social, sob
pena de romper-se a ordem e resultar num estado de caos social.
O estudo do instituto da mediação de conflitos revela-se como
um instrumento de grande valia para obtenção da paz social, eis
que objetiva a satisfação das partes envolvidas no conflito, ou seja,
seu escopo fundamental é a pacificação social através do desenvol-
vimento da escuta ativa dos litigantes que através da interlocução de

58. Mestranda em Direito pela Universidade Católica de Petrópolis. Especialista em Di-


reito Civil e Direito Processual Civil pela Universidade Estácio de Sá. Professora do curso
de Direito da Universidade Estácio de Sá – UNESA. E-mail: [email protected]

211
um terceiro, imparcial, que identifica pontos convergentes e retoma
a comunicação não violenta, tira o véu da contenda para que os pró-
prios contendores possam sair da posição de vítima e acusador para
a posição de mediandos e busquem a melhor solução para ambos.
Nesta seara, faz-se mister observar que a mediação visa evitar
o chamado perde-ganha tão comum na modalidade de resolução de
conflitos tradicional em que o Estado, através de seu poder de tute-
la jurisdicional declara quem tem o direito, o que acarreta a figura
do vencido e do vencedor, imprimindo um sentimento de injustiça
para uma das partes.
Notáveis juristas e pesquisadores de áreas como a Sociologia,
Antropologia e Psicologia demonstram a efetividade da mediação,
sobretudo, narrando que uma das missões desta forma de solução de
conflitos é a satisfação das partes, através do chamado ganha-ganha
em antagonismo a modalidade tradicional de resolução de conflitos
estatal. Isso, porque as partes ao retomarem a escuta produtiva, per-
cebem que almejam, em primeira análise, um objetivo comum, qual
seja, resolver o conflito, e a partir daí, analisam de forma mais clara
e objetiva alternativas viáveis para atingir o fim comum.
Curial destacar que a análise do presente tema visa demons-
trar a efetividade da mediação de conflitos na sociedade brasileira,
notadamente o impacto das Leis 13.140/2015, que institui o Mar-
co Legal da Mediação no Brasil e Lei 13.105 de 16/03/2015 que
instituiu o Novo Código de Processo Civil, sendo certo que este
último diploma legal prestigia e fomenta a mediação de conflitos,
seja em etapa pré-processual, seja dentro do processo, bem como
visa-se traçar um paralelo com outros sistemas jurídicos que já
utilizam a mediação e seus resultados.
No que tange a metodologia será feita uma análise de textos le-
gislativos, jurídicos e de outras disciplinas afins, eis que a mediação
de conflitos é um instrumento multidisciplinar, além da análise de
dados estatísticos coletados com base em resultados obtidos no Tri-

212
bunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, que desde o ano de
2009 (dois mil e nove) instalou o Centro de Mediação da Capital,
através do Ato Executivo TJ n° 5555/2009, bem como será utilizado
dados constantes de cadastros nacionais que deverão ser instituídos
pelos Tribunais em atendimento a norma ínsita no art. 167, §§ 3° e
4º do Novo Código de Processo Civil, que determina a sistematização
de dados sobre a performance do profissional da mediação, o suces-
so e insucesso da atividade e sobre a matéria que versar o conflito.

2. Fundamentação Teórica
O Direito como ciência social e através da norma jurídica possui dois
objetivos bem delineados, o primeiro referente à prevenção do conflito e
o segundo, se não for possível o cumprimento do primeiro, que haja a
composição do conflito, como forma de obter a pacificação social.
Todavia, como é sabido, a norma jurídica possui como consec-
tário um preceito maior que traduz a eficácia primária, isto é, a nor-
ma é cumprida pela sociedade devido ao respeito espontâneo por
parte dos indivíduos, ao passo que possui um preceito secundário,
em que a eficácia da norma resulta da repressão do Estado.
Neste diapasão assevera-se que se a norma jurídica não é es-
pontaneamente observada por parte dos cidadãos, o Estado através
do poder de tutela jurisdicional age de forma repressiva para resol-
ver o conflito e retomar a paz social.
Todavia, este poder-dever de tutela de jurisdicional que é inves-
tido o Estado, acarreta numa sobrecarga demasiada para o Poder Ju-
diciário, que não consegue cumprir de forma escorreita sua missão,
posto que o processo judicial, como instrumento da jurisdição torna-
-se cada vez mais demorado, não satisfazendo o ideário de justiça.
Mister destacar que um processo considerado justo e eficaz é
aquele em que é prestado dentro dos ditames legais e com rapidez,
pois de nada adianta ter assegurado o direito no caso concreto, após

213
longos 20 (vinte) anos de trâmite processual, pois a parte reclaman-
te sofreu com a lesão durante todo esse período.
Nessa esteira, renomados juristas, como, Mauro Cappelletti, Hum-
berto Bernardino Dalla, Luís Roberto Barroso, lecionam acerca da onda
renovatória do neoprocessualismo, investigando a crise do Direito, eis
que não vem conseguindo atender aos anseios sociais no que pertine a
pacificação social, com a entrega do processo justo e efetivo.
Hodiernamente, o legislador constitucional erigiu a categoria
de direitos fundamentais, além do princípio do devido processo le-
gal, os princípios da celeridade e da razoável duração do processo,
insculpidos no art. 5°, incisos LIV e LXXVIII da Constituição da
República, como forma de realizar o ideário de justiça.
Imperioso se faz analisar que baseado no fenômeno do neopro-
cessualismo, foram criados métodos alternativos de resolução de
conflitos, com vistas a entregar uma prestação justa à sociedade,
situando-se nesta esteira a mediação de conflitos.
Atento a eficácia da mediação de conflitos ínsita em outros orde-
namentos jurídicos como, por exemplo, Estados Unidos da América,
Inglaterra, Itália, Espanha e Argentina, onde vários cases foram solu-
cionados, os Tribunais pátrios passaram a instituir centros de mediação
de conflitos, sendo o pioneiro o Tribunal de Justiça do Distrito Federal.
Imperioso trazer à baila que o legislador pátrio interessou-se
pelo instituto da mediação a partir da década de 1990, devido à for-
te influência da legislação argentina sobre o assunto e que entrou
em vigor em 1995.59
No Brasil, o primeiro Projeto de Lei recebeu o nº 4.827/1998,
proposto pela Deputada Zulaiê Cobra, sendo certo que o texto ini-
cial que foi levado à Câmara propunha uma regulamentação conci-
sa estabelecendo a definição do instituto da mediação e arrolando
algumas disposições a respeito.

59. Ley nº 24.573, posteriormente substituída pela Ley nº 26.589/2010.

214
Vale destacar que na Câmara dos Deputados o aludido projeto,
em 2002, foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça e
enviado ao Senado, onde recebeu o nº PLC 94, 2002
Já no ano de 2005, o Governo Federal, a partir do Pacote Repu-
blicano, por ocasião da Emenda Constitucional n° 45, datada de 8
de dezembro de 2004, que institui a aclamada “Reforma do Poder
Judiciário”, apresentou vários projetos de reforma do então vigente
Código de Processo Civil de 1973, o que culminou com um novo re-
latório do PLC nº 94, mudando substancialmente suas proposições.
Nessa esteira, insta salientar que foi aprovado o Substitutivo do
PLC 94, conhecido como Emenda nº 1- CCJ, restando prejudicado o
projeto inicial, e sendo enviado à Câmara dos Deputados no dia 11
de julho de 2006. Já no dia 1º de agosto, o projeto fora encaminha-
do à CCJC, que o recebeu em 7 de agosto. No entanto, tal projeto
não fora movimentado, “caindo no esquecimento”, o que culminou
com o seu arquivamento, frustrando a expectativa do marco legal
da mediação no Brasil, tão aguardada pela classe jurídica.
Ainda dentro deste contexto, é importante trazer à destaque que
na última versão do PL nº 94, o artigo 1º, propunha a regulamenta-
ção da mediação paraprocessual, que poderia assumir as seguintes
feições: a) prévia; b) incidental; c) judicial; e d) extrajudicial. A
mediação prévia poderia ser feita no âmbito do processo judicial ou
extrajudicialmente. Já em se tratando de mediação judicial, o seu
requerimento seria suficiente para interromper a prescrição e deveria
ser concluído o aludido procedimento no prazo inferior a 90 dias.
A mediação incidental seria obrigatória, como regra, no proces-
so de conhecimento, exceto em casos como: a) ação de interdição;
b) quando o autor ou ré fosse pessoa de direito público e o litígio
versasse sobre direitos indisponíveis; c) na recuperação judicial,
falência e na insolvência civil; d) no arrolamento de bens e no in-
ventário; e) nas ações que tenham por base a imissão na posse,
reivindicatória e de usucapião de bem imóvel; f) na ação de retifica-

215
ção de registro público; g) quando o autor optar pelo procedimen-
to especial da arbitragem ou do juizado especial; h) nas ações de
natureza cautelar; i) quando na mediação prévia não tiver ocorrido
acordo nos 180 dias anteriores ao ajuizamento da ação.
O projeto determinava que a mediação deveria ser realizada no
prazo máximo de 90 dias e, não sendo obtido acordo, dar-se-ia conti-
nuação ao processo judicial. Desta feita, a mera distribuição da petição
inicial ao juízo interromperia a prescrição, induziria litispendência e
produziria os demais efeitos previstos no Código de Processo Civil.
Caso houvesse pedido liminar, a mediação só iria ser iniciada
após o exame dessa questão pelo juiz da causa.
Em 2009 (dois mil e nove), o Tribunal de Justiça do Estado do
Rio de Janeiro, através do Ato Executivo TJ n° 5555/2009, criou
o Centro de Mediação da Capital, e posteriormente em 2010 (dois
mil e dez), através do ato Executivo TJ n° 1597/2010, instalou os
demais Centros de Mediação no Estado do Rio de Janeiro.
Consoante várias práticas frutíferas no âmbito dos Tribunais de
Justiça acima mencionados, o Conselho Nacional de Justiça, em
atenção aos reclamos sociais e da frustação do PL nª 94, que culmi-
nou com o arquivamento por “descuido” do legislador, normatizou
para o Poder Judiciário, através da Resolução n° 125/2010, a me-
diação para todos os tribunais do país, constituindo um importante
avanço na efetividade do processo justo.
A Resolução nº 125 do CNJ, institui as seguintes premissas fun-
damentais para a mediação:
a) O direito do Acesso à Justiça insculpido no art. 5º, inciso
XXX da Constituição da República, além da vertente formal perante
os órgãos judiciários implica no acesso à ordem jurídica justa;
b) Assim, cabe ao Judiciário estabelecer política pública de
tratamento adequado dos problemas jurídicos e dos conflitos de
interesses, que ocorrem em grande escala na sociedade, de modo
a organizar no âmbito nacional, não apenas os serviços prestados

216
nos processos judiciais, mas também os que possam sê-los através
de outros mecanismos de solução de conflitos, em especial dos con-
sensuais, como a conciliação e a mediação;
c) A necessidade de se consolidar uma política pública per-
manente de incentivo e aprimoramento dos mecanismos consensu-
ais de solução de conflitos;
d) A conciliação e a mediação são instrumentos efetivos de
pacificação social, solução e prevenção de litígios, e que a sua apro-
priada disciplina em programas já implementados no Brasil tem
reduzido a demasiada judicialização dos conflitos de interesses, o
volume de recursos e de execução de sentenças;
e) É imprescindível o estímulo, apoio e difusão da sistemati-
zação e o aperfeiçoamento das práticas já adotadas pelos tribunais;
f) A relevância e necessidade de organização e uniformização
dos serviços de conciliação, mediação e outros métodos consensuais
de resolução de conflitos, a fim de evitar disparidades de práticas e
orientações, bem como para salvaguardar a boa execução da política
pública, respeitando-se as peculiaridades de cada segmento da Justiça.
A norma contida no bojo do art. 1º da Resolução em epígrafe,
instituiu a Política Judiciária Nacional de tratamento dos conflitos
de interesses, cujo objetivo precípuo é o de assegurar a todos os
indivíduos o direito à solução dos conflitos através de métodos
adequados, consignando ainda, que é dever do Poder Judiciário,
além da resolução dos litígios mediante sentença, ofertar outras
formas de solução de lides, com destaque especial para os chama-
dos métodos consensuais, como a conciliação e a mediação, assim
como prestar atendimento e orientação ao cidadão.
Ficou determinado que os Tribunais de todo o país deveriam
instituir os Núcleos Permanentes de Métodos Consensuais de So-
lução de Conflitos assim como a instalação dos Centros Judiciários
de Solução de Conflitos e Cidadania, capacitação dos conciliadores

217
e mediadores, bem como o registro e acompanhamento estatístico
de suas atividades e da gestão dos referidos Centros.
Consoante a necessidade de prementes mudanças das formas
de pacificação social, em 2009 começaram os trabalhos da Comis-
são de Juristas, capitaneada pelo Ministro Luiz Fux, cujo fim coli-
mado era apresentar um Anteprojeto do Novo Código de Processo
Civil, com objetivos bem definidos no sentido de imprimir maior
celeridade e efetividade do processo. Tal Anteprojeto foi recebido
como Projeto de Lei nº 166/2010, no Senado Federal.
Nessa esteira,em dezembro de 2010, foi apresentado um Subs-
titutivo que foi aprovado naquela casa legislativa e então foi enca-
minhado à Câmara dos Deputados como Projeto de Lei 8.046/2010.
Já em 2011 muitas discussões sobre o referido projeto tomaram
corpo, e principalmente em torno dos métodos de solução de con-
flitos, notadamente com relação a mediação já praticada por vários
tribunais pátrios, e que se apresentavam excelentes resultados, o
que chamou a atenção para a necessidade de uma regulamentação
com status de “lei” para o referido instituto.
Em 2015, o legislador promulgou a lei 13.105 de 16 de março,
que institui o Novo Código de Processo Civil, e que consagra den-
tro da norma processual a mediação, não mais como forma alter-
nativa de resolução de conflitos, mas sim como forma efetiva de
resolução de litígios.
Mister destacar que durante o processo de tramitação do Novo
Código de Processo Civil, e que culminou com a sua festejada
aprovação, nesse interim tramitou no Congresso Nacional projeto
de Lei que institui o Marco Legal da Medição no ordenamento
jurídico brasileiro, sendo aprovado em 2 de junho de 2015, resul-
tando na esperada Lei 13. 140/2015.
Nesse diapasão cabe trazer à lume que o Novo Código de Pro-
cesso Civil consigna sete princípios norteadores da mediação e con-
ciliação, no bojo se seu artigo 166, a saber: a) independência; b)

218
imparcialidade; c) autonomia da vontade; d) confidencialidade; e)
oralidade; f) informalidade; g) decisão informada.
O novel Código de Processo Civil com o objetivo de delinear o
contorno dos institutos, sobretudo quanto a função dos profissio-
nais envolvidos nestes métodos de solução de controvérsias, no
seu artigo 165, §§2º e 3º estabelece traços distintivos entre con-
ciliadores e mediadores, por dois critérios objetivos: pela postura
do terceiro e em razão do tipo de controvérsia.
Desta forma, vislumbra-se que o conciliador é aquele pro-
fissional que pode apontar soluções para a lide, ao passo que o
mediador auxilia os envolvidos a identificarem os pontos conver-
gentes e divergentes, a fim de que por si próprios enxerguem al-
ternativas para benefícios mútuos. Isso é uma legítima atividade
de cooperação entre os envolvidos que abandonam a atividade de
contenda para construírem a melhor solução para si.
Desta feita, consoante a importância do instituto da mediação,
sobretudo, valendo destacar que nesta modalidade de resolução
de conflitos, ainda tida como alternativa até então, a pacificação
social revela-se eficaz, pois são as próprias partes em litígio que
constroem o acordo, o que resulta no cumprimento do mesmo e a
eliminação do conflito do seio social, eis que se tem uma genuína
restauração de vínculos na maioria dos casos.

2. Resultados alcançados
No que tange a atual discussão sobre o assunto, cabe observar que
o neoprocessualismo está intimamente ligado ao neoconstitucionalis-
mo, cujo foco do estudo se explica, em primeiro lugar, pelo fenômeno
da expansão da judicialização do litígio, vivenciada nas últimas déca-
das, decorrente da ampliação e fomento do acesso à justiça.
Não se pode olvidar que a grande crise da prestação jurisdicional
consiste na realização de sua missão, qual seja, prevenir e compor
os conflitos. Um processo efetivo e justo é aquele que entrega a pres-

219
tação jurisdicional de forma ágil e eficaz. Todavia, o conceito de efi-
cácia da pacificação torna-se relativo, pois nem sempre a imposição
da decisão judicial extirpa o conflito do seio social, notadamente,
quando há demora na entrega da tutela jurisdicional, o que acaba
fomentando o crescente sentimento de injustiça e impunidade.
Ora, tais sentimentos acabam por insuflar a desordem e o caos
social, fruto da falência institucional, sem contar que atingem um
dos mais caros bens jurídicos, como a dignidade da pessoa huma-
na, igualmente insculpida na Constituição da República, no bojo
de seu artigo 1°, inciso III.
Nessa linha de pensamento, curial trazer à baila a lição do estu-
dioso Eduardo Cambi, em seu artigo Neoprocessualismo e Neocons-
titucionalismo, que assim leciona:

A Constituição brasileira de 1988 ao contemplar


amplos direitos e garantias fundamentais tornou
constitucional os mais importantes fundamentos
dos direitos materiais e processuais (fenômeno da
constitucionalização do direito infraconstitucional).
Deste modo, alterou-se, radicalmente, o modo
de construção (exegese) da norma jurídica. Antes
da constitucionalização do direito privado, como
a Constituição não passava de uma Carta Política,
destituída de força normativa, a lei e os Códigos se
colocavam no centro do sistema jurídico.60

A mediação de conflitos ganhou força e amplo destaque com


a constitucionalização do direito processual civil resultando no es-
tudo e implementação desta forma de resolução de conflitos como
alternativa em primeira análise, para desafogar o Poder Judiciário.

60. CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e neoprocessualismo, in, Panóptica, Rio


de Janeiro, ano 1, n. 6.

220
Todavia, constatou-se que o instituto da mediação é eficaz na com-
posição do conflito e na pacificação da sociedade, evitando, inclusive a
reincidência do litigio, sobretudo na área de Direito de Família.
Nesta esteira, cabe inclusive destacar que o Tribunal de Justiça
do Estado do Rio de Janeiro, em 2009 ao instalar o Centro de Me-
diação da Capital, concentrou o foco do procedimento de mediação
de conflitos em processos oriundos das Varas de Família da Capital.
Posteriormente, em 2010 foram instalados outros Centros de Media-
ção de Conflitos nas Varas Regionais e Comarcas com o mesmo fito.
Cabe ilustrar que a Defensoria Pública do Estado do Rio de Ja-
neiro, em consonância com a tendência do Tribunal de Justiça, igual-
mente se organizou e vem atuando em processos de mediação de
conflitos, como forma de atender ao jurisdicionado hipossuficiente.

3. Conclusões
Vislumbra-se que o Direito, como ciência social, possui como
missão prevenir e compor os conflitos surgidos na sociedade. Cabe
ao Poder Judiciário a função de restaurar a paz social através da
composição dos conflitos, sendo seu dever, posto que o Estado in-
voca para si o poder de dizer quem tem o direito no caso concreto.
Contudo, como é notório o Poder Judiciário encontra-se asso-
berbado de demandas que se arrastam durante anos, sem a devida
solução, o que causa grande insatisfação e instabilidade social, pois
não há a entrega justa e efetiva da prestação jurisdicional.
Assim, atento aos reclamos sociais de uma efetividade na reso-
lução de conflitos, surge no ordenamento jurídico pátrio, o instituto
da mediação que possui como foco a restauração do diálogo pro-
dutivo entre os litigantes, que passam da atividade de concorrência
para a atividade de cooperação, na intenção de resolverem o confli-
to da melhor forma para ambos, acabando, destarte, com a cultura
do perde-ganha, vencido e vencedor, para se ter a cultura do ganha-
-ganha, em que ambas as partes sentem-se aliviadas com a solução
encontrada, e sobretudo, com a satisfação do seu ideário de justiça.

221
Principais referências bibliográficas:
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dina; PELAJO, Samantha. A mediação no Novo Código de Pro-
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WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo, justiça e legitimidade dos


novos direitos. Revista Seqüência, no 54, p. 95-106, jul. 2007

223
O JUS POSTU LANDI NA J U ST IÇ A D O
TRA B A LHO
Deisy Alves Teixeira61

1 INTRODUÇÃO
O presente artigo científico objetiva conceitualizar o jus postu-
landi na esfera trabalhista e ainda pretende abordar questões dou-
trinárias relevantes sobre o tema e a importância do advogado bem
como a permanência do instituto na Justiça do Trabalho.
Para o melhor compreensão o presente trabalho o tema será abor-
dado analisando a evolução histórica da Justiça do Trabalho, a concei-
to do instituto do jus postulandi, definições e capacidade postulatória.
Abordarei, outrossim, as principais discussões entre o jus pos-
tulandi e seus conflitos legislativos, tais como o disposto no artigo
133 da Carta da República, Lei Ordinária número 8096/2004, Esta-
tuto da Ordem dos Advogados do Brasil, artigo 114, da Constituição
da República Federativa do Brasil, após a edição da EC 45, bem
como a Súmula 425, TST.
O tema possui imensa relevância para a academia, tendo em
vista a previsão legal inserta da Consolidação das Leis do Trabalho
e sua inaplicabilidade no meio jurídico.
A pesquisa possui cunho bibliografia, bem como estudo juris-
prudencial, destacando, os principais questionamentos, trazidos
pelos nossos doutrinadores.

61. Professora da Universidade Estácio de Sá. Especialista em Direito pela Universida-


de Cândido Mendes. E-mail: [email protected]

225
2. BREVE EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA
JUSTIÇA DO TRABALHO
Desde a pré-história o homem teve a necessidade de exercer
alguma atividade laborativa para manter-se vivo, seja ela para me-
lhorar o ambiente habitado, defender-se, abrigar-se ou para simples
manutenção de sua subsistência e de sua família.
Com o passar do tempo, o homem ainda primitivo aprimorou
os seus instrumentos de trabalho, que antes eram desenvolvidos
de forma primitiva, aprendeu a polir suas armas para a caça como
também para a luta e notou a necessidade de cooperação, o que
originou uma organização social e divisão de trabalho.
Neste contexto afirma Carlos Alberto Barata Silva:

“O trabalho, além de ser um dos direitos natu-


rais do homem, é um dever pessoal e um dever
social. Como direito, a dedução é logica. Tem por
fim a conservação da vida. Logo, tem o ser huma-
no direito ao meio de conservar a vida. Devemos,
pois reconhecer o direito ao trabalho, direito este
que radica no próprio direito a vida”. 162

A evolução do homem continuou com a “Era dos Metais”,


depois com a invenção da roda, de forma que a humanidade ca-
minhava com passos largos rumo à civilização, reconhecendo que
seria impossível viver de forma isolada.
Com o passar dos anos, o trabalho continuou a modificar-se
influenciado pelas questões sociais e humanistas de cada época,
sendo por um período, até mesmo considerado, uma atribuição
apenas de servos e escravos.

62. SILVA, Carlos Alberto Barata. Aspectos Fundamentais do Direito do Trabalho. São
Paulo: Ltr, 1991, p 9.

226
Nota-se que nesta época o trabalhador não possuía direito
algum, apenas o direito de trabalhar sem qualquer garantia, re-
ferente aos seus direitos sociais.
Com relação à servidão podemos citar a época do feudalis-
mo, em que os senhores feudais exigiam dos servos, parte de sua
produção rural em troca de proteção política e militar que estes
recebiam como também do uso da terra.
Outro momento histórico marcante foi a Revolução Francesa
ocorrida em 1789 na França,tal fato foi considerado o primeiro
grande movimento popular e de massa na articulação de reivin-
dicações brilhantes e consistente sendo a responsável pelo ad-
vento do trabalho livre, de acordo com Mozart Victor Russoma-
no63, pois a partir de tal movimento foi implantado nas relações
de trabalho o principio da vontade e a liberdade de contratar.
Da Revolução Burguesa ocorrida nos séculos XVII e XVIII surgiu
o Estado Liberal, o qual é caracterizado pela subordinação total ao
direito positivo, contudo ainda não havia o intervencionismo estatal.
No modelo político liberal são reconhecidos os direitos humanos de
primeira dimensão, ou seja, direitos civis e políticos. Outra caracte-
rística importante do processo no Estado Liberal é o conceitualismo
em que todos são tratados em Juízo como sujeitos de direito, neste
contexto, todos indiscriminadamente são tratados como iguais.
Com o passar do tempo, o modelo político liberal perdeu força
devido ao quadro de injustiças e desigualdades sociais.
Na Inglaterra em meados do século XVIII adveio a Revolução
Industrial, com o surgimento de máquinas na produção. Houve
uma grande mudança no ambiente de trabalho, o que fez necessá-
ria a implantação de nova condição laboral para adaptar os obreiros
à nova mecanização industrial.
A partir de então os próprios obreiros que estavam empregados
buscaram reivindicações para melhorar suas condições de trabalho

63. RUSSOMANO, Mozart Victor, Curso de Direito do Trabalho, 9° ed. 7° reimpr.


Curitiba: Juruá, 2010 p.26

227
e melhores salários, iniciando desde então os conflitos trabalhistas
entre o empregador e os empregados.
Em busca dos direitos coletivos de trabalho iniciou-se a sus-
tação da prestação de trabalho como o exercício coercitivo de um
direito, ou seja, os obreiros paravam a produção e prometiam vol-
tar ao trabalho apenas depois de atendidas suas reivindicações, é
o início do que chamamos de greve.
Com a Revolução Industrial houve a mecanização dos meios de
produção face à invenção da máquina a vapor e a substituição da
mão de obra pela máquina.
Neste contexto histórico, nasceu o Estado Social, sendo um tipo
de organização política e econômica que coloca o Estado como agente
da promoção social e organizador da economia. Tem como o objetivo
a adoção de políticas públicas para melhorar as condições de vida dos
mais necessitados, em especial a classe trabalhadora. A característica
deste Estado, também chamado de Estado de providência, é o consti-
tucionalismo social, a função social da propriedade, participação polí-
tica dos trabalhadores na elaboração da ordem jurídica e intervenção
do Estado na economia por meio de leis que criam direitos sociais,
assim cabem a este garantir serviços públicos e proteção aos cidadãos.
Como consequência do Estado Social o Brasil percebeu a neces-
sidade da intervenção estatal na Justiça do Trabalho. Os legislado-
res, então elaboraram algumas leis que se aplicam a seara trabalhis-
ta, a assistência judiciária gratuita com a lei n° 1.060 de 1950, o jus
postulandi das partes.
Surge então, o Estado Democrático de Direito cujos fundamentos
são embasados nos direito de primeira (direitos civis e políticos),
segunda (direitos sociais e econômicos) e terceira dimensão (direitos
difusos). Desta forma, afirma Carlos Henrique Bezerra Leite:

“Podemos dizer, portanto, que o Estado Demo-


crático de Direito tem por objetivos fundamentais

228
a construção de uma sociedade mais livre, justa
e solidária, a correção das desigualdades sociais
e regionais, a promoção do bem estar e justiças
sociais para todas as pessoas, o desenvolvimento
socioambiental, a paz e a democracia”.64

A partir daí o Estado iniciou a preocupar-se e a legislar sobre


os assuntos trabalhistas limitando a autonomia da vontade, ou
seja, procurou buscar o equilíbrio nos contratos de trabalho, com
a imposição de regras conformadoras da vontade das partes. Desta
forma, o trabalhador passou a ser protegido pelo Estado, através
do intervencionismo estatal que objetivava o bem estar social e a
melhora nas condições de trabalho protegendo o menos favore-
cido para compensar a desigualdade econômica, buscando uma
relação mais igualitária entre as partes.
Assim surge a Justiça do Trabalho com o objetivo de solucionar
controvérsias existentes entre empregador e empregados, decorrentes
da relação de trabalho sejam eles conflitos individuais ou coletivos.
Após as inúmeras mudanças sociais, econômicas e políticas
ocorridas na Europa no século XIX, a sociedade brasileira sentiu a
necessidade de aprimorar suas leis para mediar tais conflitos que
poderiam surgir com a industrialização e tecnologia que chegava ao
país, já no início do século XX, contrapondo-se ao modelo agrícola
que se encontrava na oligarquia cafeeira base de sustentação políti-
ca econômica da época.
Portanto, com as inovações e com elas o surgimento de inú-
meros conflitos trabalhistas houve a necessidade da regulamen-
tação das leis trabalhistas no país como também a criação de um
órgão julgador, pois até o presente momento prevalecia à figura do
mais forte, no caso empregador.

64. LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Curso de Direito Processual do trabalho. 10 ed.
São Paulo: LTr, 2012, p. 39

229
Assim, no Brasil entre 1907 e 1911, foram instituídos os pri-
meiros órgãos para tentar mediar tais conflitos os Conselhos Per-
manentes de Conciliação e Arbitragem, mas não foram colocados
em prática, contudo tal fato foi considerado o primeiro marco le-
gislativo no país, nossa primeira tentativa de criar um órgão espe-
cializado para julgar demandas trabalhistas.
O Estado de São Paulo tornou-se o precursor na criação de um
órgão especializado, os Tribunais Rurais, para solucionar conflitos,
tendo em vista que a economia de nosso país era eminentemente
rural. Os Tribunais Rurais foram criados pela lei n° 1.869 de 1922,
e eram compostos por um Juiz de Direito e representantes dos
trabalhadores e dos proprietários rurais, tal tribunal funcionava de
forma semelhante como uma Junta de Conciliação, tal experiência
não produziu resultados satisfatórios.
Entretanto, em 1931, havia no país milhões de desempregados
principalmente nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo, de for-
ma que foi imprescindível que o governo ajustasse as políticas em
relação a essa parte significativa da população.
Apenas em 1930 com presidente Getúlio Vargas o país deu
os primeiros passos decisivos para a origem da Justiça do Traba-
lho no país, através de uma legislação trabalhista como também
de uma instância do poder público, para procurar solucionar os
conflitos entre empregados e empregadores. No período compre-
endido como Era Vargas, entre 1930 e 1943, foi elaborada toda a
estrutura da Justiça do Trabalho e da legislação trabalhista no Bra-
sil, sendo que a partir de então todas as Constituições dispuseram
sobre os direitos sociais do trabalhador.
Um dos primeiros atos de Vargas, como chefe do Governo pro-
visório, foi à criação do Ministério do Trabalho, Indústria e Co-
mércio em 26 de novembro de 1.930, com tal medida o governo
interveio fortemente na questão trabalhista que foi o marco do
intervencionismo estatal no país.

230
O Decreto 22.132 de 1932 deu origem as Juntas de Conciliação
e Julgamento, constituídas em instância única, a fim de dirimir
os dissídios individuais de trabalho, porém, só poderiam propor
ações os trabalhadores sindicalizados.
Até tal momento histórico a Junta não fazia parte do poder
judiciário e não possuía autonomia, portanto o Juiz do Trabalho
poderia avocar qualquer processo, no período de seis meses, a pe-
dido da parte interessada, nos casos de flagrante de parcialidade
dos julgadores ou violação do direito.
A Constituição de 1934 em seu artigo 122 previu a instituição
da Justiça do Trabalho, contudo não chegou a ser criada por lei.
Da mesma forma a Constituição de 1937 em seu artigo 139 repe-
tiu o preceito, porém apenas em 1° de maio de 1941 a Justiça do
Trabalho era instalada em todo país, vinculada ao Ministério do
Trabalho Indústria e Comércio como parte administrativa Federal.
Assim, em 1° de maio de 1943 foi sancionado o decreto lei
n° 5.452, a Consolidação das Leis Trabalhistas, que esta em vigor
até hoje, a partir de então foram criadas as primeiras Juntas em
cidades do interior.
Apenas na Constituição Federal de 1946, ocorreu à integração
da Justiça do Trabalho ao Poder Judiciário Federal, encerrou as-
sim o vínculo com o Ministério do Trabalho na vida funcional da
Justiça do Trabalho.
Com relação à integração da Justiça do Trabalho ao Poder Judi-
ciário, segue entendimento de Amauri Mascaro Nascimento:

“(...) é consequência natural da evolução his-


tórica dos acontecimentos. Na sociedade empre-
sarial, as controvérsias entre trabalhadores e em-
presários assume especial significado. O Estado,
intervindo na ordem econômica e social, não
pode limitar-se a dispor sobre matéria trabalhista.
Necessita, também, de aparelhamento adequado

231
para a solução dos conflitos de interesses, tanto
no plano individual como no coletivo. Assim, a
existência de um órgão jurisdicional do Estado
para questões trabalhistas é o resultado da própria
transformação da ideia de autodefesa privada em
processo judicial estatal, meio característico de de-
cisão dos litígios na civilização contemporânea”. 65

A Carta magma de 1967 e a partir de novembro de 1968, em


virtude do recesso do Congresso Nacional, o retorno dos decretos
leis expedidos pelo Poder Executivo, tornaram possível a elabora-
ção mais rápida de novas leis. Essas leis alteravam, profundamente,
trechos bastante longos da CLT, quer quanto à identificação pro-
fissional, quer quanto à regulamentação do contrato individual do
trabalho, a reforma da legislação sindical e as normas processuais
que aperfeiçoaram o funcionamento da Justiça do Trabalho.
Com a promulgação da Carta Constitucional de 1988, basica-
mente protecionista, são tratados direitos trabalhistas em mais de
40 dispositivos legais que versam sobre direitos individuais e coleti-
vos do trabalho, incluindo o trabalho como um direito social.
A Emenda Constitucional 24 de 1999, extinguiu a representação
classista, transformando as Juntas de Conciliação em Julgamento
em Varas do Trabalho, entretanto, os mandatos classistas em anda-
mento a época foram garantidos até seu cumprimento.
Logo após, com o advento da EC n. 45/2004 publicada em
31 de dezembro de 2004, a competência da Justiça do trabalho
foi ampliada, pois passou a processar e julgar as ações oriundas
da relação de trabalho, nos termos do art. 114 da CF, e não mais
apenas da relação de emprego.

65. NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de Direito Processual do Trabalho, 15 ed.


São Paulo: Saraiva, 2009, p.50; 8 RUSSOMANO, Mozart Victor, Curso de Direito do
Trabalho, 9° ed. 7° reimpr., Curitiba: Juruá,2010 p.33; 9 MARTINS, Sergio Pinto, Direito
do Trabalho, 28 ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 12.

232
Ademais, a Emenda 45 de 2004 além da reforma do poder judi-
ciário, trouxe inovações ao criar o Conselho de Justiça do Trabalho,
que vinculado ao TST, exerce a supervisão administrativa e financei-
ra dos TRTs, dotadas suas decisões em caráter vinculante. E ainda
procedeu a recomposição no número de Ministros para 27 e eliminou
e existência de pelo menos um TRT por Estado, além de prever a pos-
sibilidade de atuarem por meio de câmara descentralizadas.
Tal assunto, no decorrer deste trabalho será abordado nova-
mente, contudo, sem o objetivo de exaurir o tema.

3. A ORIGEM DO JUS POSTULANDI NA


JUSTIÇA DO TRABALHO NO BRASIL
A Justiça do Trabalho, desde a criação da sua estrutura, era con-
siderada parte administrativa federal vinculada ao Ministério do Tra-
balho Indústria e Comércio, portanto não se tratava de uma esfera
judicial e sim administrativa não havendo a necessidade de ser pa-
trocinado por advogado.
O governo provisório de Getúlio Vargas instituiu as Juntas de Con-
ciliação Prévia para solução de dissídios individuais, a época compos-
tas por um Juiz Presidente com exercício de dois anos podendo ser
reconduzidos e dois vogais, sendo um representando os empregados e
outro os empregadores, que deveriam ser imparciais, contudo inúme-
ras vezes atuavam em defesa do interesse de algumas classes.
Outra criação da Era Vargas foi as Comissões Mistas para solu-
ção de conflitos coletivos que eram somente órgãos julgadores, sem
poder impositivo.
O jus postulandi é considerado, sem dúvida nenhuma, uma
conquista democrática juntamente com a elaboração da Consolida-
ção das Leis Trabalhistas, mas como é sabido, não é uma conquista
exclusiva do poder judiciário de nosso país, posto que o instituto
está presente em demais legislações estrangeiras, sendo que em
nenhum outro país tentou extinguir tal direito.

233
O jus postulandi das partes adveio com os artigos 40 a 44 da
Lei n° 1.237 de 1939, ainda em 1940 foi instituído o Decreto Lei
n° 6.596 de 12 de dezembro de 1940 que confirmou em seu artigo
90 e ss., a possibilidade das partes comparecerem em juízo sem
a presença de advogado, ou seja, a capacidade postulatória dos
litigantes. Logo após, foi mantido o instituto através da criação
das leis trabalhistas a nossa CLT.
O jus postulandi na Justiça Comum em regra é que as partes
não podem requerer pessoalmente a tutela de seus direitos, de-
vendo fazê-lo por intermédio de advogado, salvo exceções nos
Juizados Especiais e nas ações de alimentos.
Na seara trabalhista o “jus postulandi” é conceituado como a
capacidade das partes, sujeitos da relação de emprego, postularem
em juízo sem a necessidade de outorgar mandato a advogado, ou
seja, trata-se de autorização legislativa, disposta no artigo 791 da
CLT, para praticar atos processuais.
Essa capacidade postulatória é facultativa aos sujeitos da re-
lação de emprego, tanto para empregados como empregadores,
conforme disposto no artigo 791 da CLT.
Nesse diapasão, o artigo 839, CLT estabelece que a reclamação
pode ser apresentada de maneira verbal ou escrita.
Portanto, tal instituto tem sua origem fundamentada na Con-
solidação das Leis Trabalhistas, com a finalidade de proteger a
parte, em especial o trabalhador, a fim de abstê-lo dos ônus pro-
cessuais, bem como à custa do processo trabalhista e principal-
mente dos honorários advocatícios.
Ressalta-se que com a EC n° 45 de 2004, conforme entendi-
mento do TST, os sujeitos que podem utilizar do instituto do jus
postulandi são apenas empregados e empregadores da relação de
emprego, de forma que, os trabalhadores das ações oriundas da
relação de trabalho devem estar representados por advogado.

234
Neste sentido, o TST elaborou a IN 27 de 2005, a qual conclui
que nas novas demandas que passaram a ser competência da Justi-
ça do Trabalho é indispensável o patrocínio de advogado.
O instituto do jus postulandi também é garantia para micro em-
presário e empregadores domésticos nos casos em que estes não
tenham condição de contratar advogado. Também não é obrigatória
a participação do advogado nos dissídios coletivos conforme o §2°
do artigo 791 da CLT, que dispõe: “nos dissídios coletivos é faculta-
da aos interessados a assistência de advogado”.
O jus postulandi foi inspirado nos princípios que destacam as ca-
racterísticas do processo trabalhista, quais sejam: da celeridade, econo-
mia processual, informalidade e simplicidade processual, diante disso
o legislador procurou proteger o trabalhador e o bem jurídico por ele
valorado no caso em questão “o trabalho” tendo em vista que o crédito
trabalhista tem natureza alimentar o que impossibilita a espera exa-
cerbada para a efetivação do adimplemento por parte do empregador.
Com o advento da Constituição Federal de 1988 e logo após
com a Lei n° 8.096 de 1994 adveio varias críticas sobre este insti-
tuto bem como divergências doutrinárias que serão abordadas em
momento oportuno.

4. CAPACIDADE POSTULATÓRIA
A capacidade postulatória, nada mais é do que a capacidade
para postular em juízo, ou seja, a capacidade de requerer em juízo
e de acompanhar o desenvolvimento do processo.
A CLT em seu artigo 791 dispõe “os empregados e os em-
pregadores poderão reclamar pessoalmente perante a Justiça do
Trabalho e acompanhar suas reclamações até o final”, sendo este
o traço marcante na seara trabalhista.
O doutrinador civilista Ovídio A. Batista da Silva, ensina:

235
“Além da capacidade de ser parte e da plena
capacidade processual (Legitimatio ad proces-
sum), nossa lei veda que os interessados realizem
pessoalmente os atos processuais e requeiram em
juízo sem a assistência de uma pessoa especiali-
zada e legalmente habilitada, dotada do chama-
do ius postulandi. As partes desde que dotadas
de capacidade processual, devem, mesmo assim,
estar representadas em juízo por advogado habi-
litado, o que significa dizer advogado em pleno
gozo de suas prerrogativas profissionais, a quem a
parte haja outorgado o competente mandato para
representa-lo em juízo.”66

5. O JUS POSTULANDI E OS CONFLITOS


ATUAIS
O jus postulandi desde sua origem na Justiça do Trabalho em
nosso país convive com inúmeras críticas, pois a doutrina majoritária
entende que tal instituto pode trazer danos irreparáveis as partes.
Muitas foram as tentativas de extinguir o jus postulandi das partes
no processo trabalhista, afirmando que o instituto é não foi recepcio-
nado por nossa constituição atual, contudo todas foram infrutíferas
devido ao reconhecimento de constitucionalidade pelo STF.
Com o advento da Constituição Federal de 1988, discutiu a con-
tinuação do jus postulandi diante a redação do artigo 133, o qual
determina que “o advogado é indispensável à administração da jus-
tiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da
profissão, nos limites da lei”.
Alguns Tribunais após a redação passaram, até mesmo, a res-
tringir o serviço encarregado de receber petições verbais, enquan-
to, alguns juízes chegaram até mesmo a rejeitar as reclamações
não subscritas por advogados, embasados, precipitadamente, no

66. SILVA, OVIDIO A. Batista da Silva. Curso de Processo Civil. Vol1. 4° ed.São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1998, p.246

236
entendimento de que o artigo 791 da CLT não era recepcionado
pela Constituição Federal vigente.
A partir disso o instituto do jus postulandi sofreu inúmeras
críticas, pois muitos operadores do direito acreditavam que a apli-
cação da redação causava um desequilíbrio na relação jurídica,
haja vista, a ausência de conhecimentos técnicos das partes, in-
clusive do empregado que move uma ação trabalhista contra o
empregador que na maioria das vezes comparece em audiência
acompanhado e instruído por advogado.
Com relação à discussão envolvendo o jus postulandi e o dese-
quilíbrio processual decorrente do conflito de normas, a 4° Turma
do TST, julgou o Agravo de Instrumento, firmando o seguinte en-
tendimento:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO DE RE-


VISTA. REPRESENTAÇÃO PROCESSUAL. JUS POS-
TULANDI. Trata-se de agravo de instrumento in-
terposto contra despacho que denegou seguimento
ao recurso de revista, que, também, veio subscrito
pelo reclamante. O jus postulandi está agasalhado
no art. 791 da CLT, que preceitua: “Os empregados
e os empregadores poderão reclamar pessoalmen-
te perante a Justiça do Trabalho e acompanhar as
suas reclamações até o final”. A expressão “até o
final”, portanto, deve ser interpretada levando-
-se em consideração a instância ordinária, já que
esta é soberana para rever os fatos e as provas dos
autos. O recurso de revista, por sua natureza de
recurso extraordinário, exige seja interposto por
advogado devidamente inscrito na OAB, a quem é
reservada a atividade privativa da postulação em
juízo, incluindo-se o ato de recorrer – art. 1º da
Lei nº 8.906/94. Agravo de instrumento não co-
nhecido. (TST-AIRR-886/2000-401-05-00.1)

237
Na jurisprudência acima nota-se a necessidade do conhecimen-
to técnico de advogado para interpor recurso extraordinário na Jus-
tiça do Trabalho, no caso, o Recurso de Revista, de forma que o
artigo 791 da CLT deve ser interpretado de uma maneira que o jus
postulandi das partes prevaleça apenas até o Recurso Ordinário.
Porém, tal entendimento a época da redação do artigo não era
unânime no TST, uma vez que, existia ainda perante tal tribunal
julgamentos de processos pautados no artigo 791 da CLT, na qual
permanecia a aplicabilidade da expressão “até o final”.
Portanto, o jus postulandi das partes, disposto no artigo 791 da
CLT, não foi revogado pelo artigo 133 da Constituição Federal per-
manecendo inaplicável na esfera trabalhista qualquer norma que
com este entre em conflito.
A EC n° 45 de 2004 ampliou a competência da justiça do traba-
lho com a nova redação do artigo 114 da Constituição Federal, antes a
Justiça do Trabalho estava limitada apenas à solução de litígios entre
empregados e empregadores. Destaca-se que a EC n° 45 de 2004 é de
competência do Congresso Nacional, pois trata de Lei Federal.
Com a ampliação da emenda a redação do artigo 114, caput, da
Constituição Federal, a competência da Justiça do Trabalho passou
a conciliar e julgar além dos dissídios individuais e coletivos entre
empregados e empregadores e outras controvérsias decorrentes da
relação de trabalho. Ainda, incluiu na competência os entes de di-
reito público externo, da administração pública direta e indireta da
União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Contudo,
preliminarmente, é oportuno, para entender melhor a ampliação da
competência na seara trabalhista discorrer sobre jurisdição e com-
petência. Na visão de Leonardo Greco a jurisdição é um serviço
público essencial, vejamos:

“(...) é a tutela, a proteção, o reconhecimento


ou a prevalência das situações fático-jurídicas de

238
são titulares determinados sujeitos em relação a
outros ou em relação a toda sociedade. Mesmo
quando esses interesses possuem a mais ampla
extensão subjetiva, abrangendo todos os cida-
dãos, como, por exemplo, quando o Ministério
Publico propõe a ação penal publica ou ação
civil publica em defesa da qualidade do ar, a fi-
nalidade da jurisdição, exercida por um juiz equi-
distante entre esses interesses e qualquer outro
de qualquer sujeito que a ele se contraponha, é
tutela aquele interesse que vier a ser reconhecido
pela lei como prevalente, público ou privado, de
toda sociedade ou de apenas um individuo”. 67

Na visão do autor a jurisdição nada mais é que a tutela de di-


reitos ou interesses individuais, reconhecidos pelo ordenamento ju-
rídico aos indivíduos que diretamente ou através de representantes
legais invocam a prestação do serviço público jurisdicional.
Portanto, a EC 45 de 2004, adveio com o preceito de aprimorar
o acesso à justiça no país, ampliando a competência da Justiça do
Trabalho não apenas para as relações de emprego e sim para todos
os trabalhadores, profissionais que prestam serviços em troca de
uma contraprestação e não necessariamente possuam vínculo tra-
balhista, ou seja, nos casos de relação de trabalho.

6. O JUS POSTULANDI E A POSIÇÃO DA


SUMULA N° 425 DO TST.
No transcorrer do trabalho ficou claro que o jus postulandi,
nada mais é que a possibilidades das partes de postular em juízo
sem a obrigatoriedade da assistência de profissional com forma-

67. GRECO, Leonardo. Instituições de Processo Civil. V I. 3 ed. Rio de Janeiro: Forense,
2011. p. 62; 35 RODRIGUES, Marcelo Abelha. Elementos de Direito Processual Civil. V. I.
São Paulo: RT, 2000. P. 135. 36SARAIVA, Renato. Direito do Trabalho para Concursos
Públicos. 13° ed. ver. E atual. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2011. P.46;

239
ção técnica, ou seja, advogado. Embora, o Tribunal Superior do
Trabalho pondere a importância e a complexidade dos Recursos
Extraordinários no processo do trabalho, compreende a necessida-
de da elaboração de uma Súmula a qual teria a função de limitar a
abrangência da norma do artigo 791 da CLT.
Nesta linha de pensamento o TST, após um conjunto de deci-
sões jurisprudenciais a respeito do tema, aprovou através de seu
plenário a Súmula n° 425 que limita a capacidade postulatória.
Nota-se que a Súmula restringiu o jus postulandi das partes na jus-
tiça do Trabalho, limitando o instituto,apenas até o Recurso Ordinário,
ou seja, pode a parte ingressar com reclamação trabalhista junto a Vara
do Trabalho e acompanhar o processo sem assistência profissional de
advogado até o TRT na interposição de Recurso Ordinário.
Desta forma, caso a parte tenha necessidade de interpor recur-
sos a outros órgãos do Poder Judiciário terá a necessidade de con-
tratar os serviços de um advogado, devidamente habilitado, inscrito
nos quadros da Ordem dos Advogados do Brasil.

CONCLUSÃO
Após pesquisa desenvolvida para este trabalho, pode-se afirmar
que o instituto do jus postulandi é que a possibilidade das partes,
sujeitos de uma relação oriunda de emprego, atuarem na Justiça do
Trabalho sem opatrocínio de advogado.
Nota-se, que o jus postulandi é um instituto que tende a proteger
a parte menos favorecida nos processos trabalhistas, o empregado.
No entanto, não podemos, atualmente, dizer que seu objetivo é
alcançado, ou seja, à proteção do hipossuficiente ao invés de bene-
ficiá-lo vem prejudicando-o, pois coloca o empregado em condição
desvantajosa quando em audiência encontra se com um emprega-
dor acompanhado de advogado e muito bem instruído.
Em contrapartida, alguns doutrinadores defendem a permanên-
cia do instituto na Justiça do trabalho, pois consideram o jus pos-
tulandi uma conquista do empregado, sendo que mesmo aquele

240
que não possui recursos financeiros pode reclamar a tutela de seu
direito junto ao judiciário, não necessitando arcar com custas pro-
cessuais e honorários advocatícios.
No entanto, verifica-se que mesmo com a criação do instituto al-
mejando um maior acesso a justiça pelas partes, é indiscutível a com-
plexidade dos processos tanto na Justiça Comum quanto na Especia-
lizada, fato este que dificulta as partes envolvidas, êxito na demanda.
Ademais, entre os deveres constitucionais do Estado esta a pres-
tação de assistência jurídica as pessoas carentes, ressalta-se ainda,
a obrigação dos sindicados, considerados complemento do jus pos-
tulandi, em dar total assistência aos seus associados.
Muitos doutrinadores defendem esta posição e ainda anseiam
a extinção do instituto bem como o arbitramento de honorários
advocatícios de sucumbência.
Na tentativa de amenizar os arquivamentos processuais e o prejuízo
das partes, o TST elaborou a Súmula 425, limitando a abrangência do
jus postulandi apenas ao Recurso Ordinário e não mais “até o final” do
andamento do processo trabalhista, como dispõe o artigo 791 da CLT.
Assim para interpor Recurso de Revista a parte terá a necessida-
de de contratar os serviços de um advogado, devidamente habilita-
do, inscrito nos quadros da Ordem dos Advogados do Brasil.
Tal Súmula é totalmente compreensível tendo em vista as par-
ticularidades do processo trabalhista, em especial, na fase recur-
sal, de forma que, é difícil imaginar um leigo a interpor um Recur-
so de Revista e obter êxito.
Portanto, verifica-se que o instituto em apreço está em decadên-
cia, pois nos dias atuais, diminuiu muito o número de pessoas que
utilizam o jus postulandi no âmbito trabalhista, uma vez que é uma
justiça especializada e está em constante modificação, exigindo das
partes maior desenvoltura e conhecimentos técnicos jurídicos.
Ante todas as considerações elencadas neste trabalho, é indis-
cutível a importância do advogado no mundo jurídico em especial
na justiça especializada como o processo trabalhista.

241
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÀFICAS
BUENO, Silveira. Minidicionário da Língua Portuguesa. São Paulo:
FTD, 2000.

CARION, Valentim. Comentários à Consolidação das Leis do Traba-


lho. 34 ed. atual. Por Eduardo Carion. São Paulo: Saraiva, 2009.

GIGLIO, Wagner D. Direito Processual do Trabalho, 16 ed. ver. Am-


pliada. Atual. E adaptada - São Paulo: Saraiva, 2007.

GRECO, Leonardo. Instituições de Processo Civil. V I. 3 ed. Rio de


Janeiro: Forense, 2011.

JORGE NETO, Francisco Ferreira. Manual de Direito Processual do


Trabalho. Tomo I. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004.

242
PEN SA NDO O COMBAT E AO
TRA B A LHO ES CRAVO NA
A MA Z Ô NIA 6 8
Emerson Victor Hugo Costa de Sá69

INTRODUÇÃO
A dinâmica produtiva global impacta diretamente na conformação
das relações laborais. O sistema capitalista realinha-se constantemente
para superar as barreiras surgidas, o que geralmente resulta em preju-
ízo a quem se encontra na base da cadeia produtiva e ao aparato pro-
tetivo trabalhista, sujeitando a classe obreira vulnerável a condições
inadequadas de trabalho, como ocorre no caso do trabalho escravo.
Marca negativa da história brasileira, a cultura escravocrata ba-
seia-se na exploração do labor humano e corresponde a uma prática
conhecida nessas terras desde a chegada dos portugueses, tendo
negros e índios como vítimas. O Brasil viu-se compelido a abolir a
escravidão, por pressão comercial inglesa motivada pela necessida-
de de expansão do mercado consumidor dos bens produzidos em
maiores quantidades depois da Revolução Industrial. Surgiram nes-
se contexto a Lei do Ventre Livre, de 1871, e a Lei Áurea, de 1888.
No entanto, o encerramento da escravidão ocorreu apenas no
plano formal. A exploração do labor humano ainda persiste, ago-
ra com diferente roupagem. Escravidão moderna, contemporânea,

68. Artigo submetido, aprovado e defendido no Grupo de Trabalho “Direitos Humanos


e Desenvolvimento Sustentável” do “IV Congresso Internacional de Direito Ambien-
tal”, realizado em Belo Horizonte - MG, no período de 21 a 23 de setembro de 2016.
69. Auditor Fiscal do Trabalho, mestrando em Direito Ambiental pela Universidade do
Estado do Amazonas. E-mail: [email protected]

243
neoescravidão ou trabalho análogo ao de escravo são algumas das
nomenclaturas utilizadas para referenciar o contexto pós-abolição.
Entretanto, o termo trabalho escravo continua sendo largamente
empregado, inclusive ao longo do presente texto.
O regime vigente apresenta-se mais cruel que o anterior. No
passado, o escravo era visto como um bem oneroso a ser preserva-
do. Hodiernamente, o desprezo em relação ao trabalhador acontece
por ser considerado descartável e de baixo custo. A inadmissibili-
dade dessa prática resulta da ofensa ao postulado da não mercanti-
lização do labor, estampado no Anexo à Declaração de Filadélfia70
– referente aos fins e objetivos da Organização Internacional do
Trabalho (OIT) – como símbolo da luta pelo trabalho decente.
No contexto da Amazônia brasileira, a grande concentração de
casos de trabalho análogo à escravidão necessita de maior atenção
por envolver aspectos sociais e ambientais, vinculados ao avanço
do arco do desmatamento em direção ao extremo norte do país. As
principais atividades econômicas atreladas a essa frente de explo-
ração consistem na comercialização da madeira, na extração para
uso em carvoarias e na derrubada de floresta para a instalação de
monoculturas (soja, milhos e outras) e a criação de gado.
Com previsão em instrumentos normativos internacionais – como
a Convenção 81 da OIT, ratificada pelo Brasil –, a Auditoria Fiscal do
Trabalho apresenta-se como instituição essencial para a erradicação
do trabalho escravo. Isso porque desempenha o poder de polícia esta-
tal em defesa dos direitos fundamentais do trabalho, com amparo no
art. 21, XXIV, da Constituição da República de 1988 (CR/88).
O desenvolvimento da pesquisa compreende, inicialmente, a ex-
posição do panorama normativo internacional e doméstico acerca do
trabalho escravo. Nesse ponto, destaca-se a prioridade do tema no
âmbito da OIT e a evolução política e legislativa interna, posterior-

70. A Conferência reafirma os princípios fundamentais sobre os quais repousa a Orga-


nização, principalmente os seguintes: a) o trabalho não é uma mercadoria; […] (grifei).

244
mente à assunção de compromissos pelo Brasil perante a Comissão
Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) – órgão componente da
estrutura da Organização dos Estados Americanos (OEA) –, no caso
José Pereira. Em seguida, trata-se da questão amazônica associada à
intensa retomada da exploração da força laboral, sobretudo na base
das cadeias produtivas. Por fim, abordam-se as medidas de preven-
ção e repressão, momento em que são versados assuntos como o
papel da fiscalização trabalhista e das políticas públicas.
Estudar o aumento das situações de trabalho escravo na Re-
gião Amazônica e as medidas de combate mostra-se imprescindí-
vel. Nesse sentido, questiona-se: Quais os motivos para a elevada
incidência dessa prática na Amazônia? Como combater o trabalho
escravo? Que medidas podem ser adotadas pelo Estado brasileiro
para romper o ciclo da escravidão?
A abordagem metodológica desenvolveu-se a partir de pesquisa
bibliográfica e documental, tendo como parâmetros livros, artigos
científicos e textos normativos.

1. PANORAMA NORMATIVO
INTERNACIONAL E DOMÉSTICO SOBRE A
VEDAÇÃO AO TRABALHO ESCRAVO
O trabalho apresenta-se como direito humano e suporte para o
acesso a outros bens jurídicos não menos importantes, reunindo os
conceitos de dignidade, cidadania e justiça social. Há significativo
respaldo nas diretrizes da OIT e no tratamento normativo interno
conferido aos direitos e garantias fundamentais do trabalhador para
se afirmar a preferência pelo labor digno e socialmente includente,
que permita o desfrute de bens materiais e da vida profissional,
familiar e comunitária (DELGADO e RIBEIRO, 2014).
A comunidade internacional estimula o combate ao trabalho
forçado em documentos como a Convenção sobre Escravatura de
1926, o Protocolo de 1953 e a Convenção Suplementar sobre Abo-

245
lição à Escravatura de 1956, todas da Organização das Nações Uni-
das (ONU); a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH),
de 1948 (art. 4º, 23 e 29); o Pacto Internacional de Direitos Civis
e Políticos (PIDCP), de 1966 (art. 8º); o Pacto Internacional de Di-
reitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), de 1966 (art. 6º e
7º); e a Declaração Sociolaboral do MERCOSUL (art. 5º).
Dentre as pautas prioritárias da OIT, tem-se a eliminação do tra-
balho forçado. É o que se depreende da leitura do art. 2º, “b”, da
Declaração de Direitos e Princípios Fundamentais do Trabalho de
1998. Antítese do trabalho decente, a escravização configura grave
violação aos direitos humanos e fundamentais do trabalho (SCHMI-
DT, 2014) e sua eliminação compõe o núcleo duro que vincula os Es-
tados membros da OIT pelo simples fato de a integrarem, ainda que
não tenham ratificado os documentos específicos (core obligations).
Sobre o tema, os principais documentos são as Convenções 29 e 105.
Labor forçado ou obrigatório é aquele exigido de uma pessoa, sob
a ameaça de sanção e para a qual não tenha se oferecido espontanea-
mente (GUNTHER, 2011, p. 63), vontade que não pode ser entendida
como livre quando a pessoa se encontra em condição de vulnerabili-
dade social e econômica. Trabalho escravo configura crime (art. 149
do Código Penal) e caracteriza-se pelo vício de consentimento.
Geralmente representado pela figura do “gato” (intermediador
de mão-de-obra), o empregador ilude a vítima com falsas promessas
de boas condições de emprego e remuneração. O obreiro aceita o tra-
balho. Todavia, o desenvolvimento da atividade dá-se em condições
aviltantes à dignidade (CALVET e GARCÍA, 2013, p. 13), em nada se
aproximando do quadro narrado no momento da oferta. Além do
intermédio dos “gatos” no aliciamento e na contratação e das falsas
promessas de boas condições de trabalho e salário, o trabalho escra-
vo contemporâneo também se caracteriza pela servidão por dívidas
(truck system) – aprisionamento moral dos trabalhadores, os quais se

246
veem obrigados a quitar a dívida assumida, ainda que excessiva; pela
coação física; pelo abuso sexual; pelo abandono do trabalhador em
local isolado; e pela vigilância armada (FLAITT, 2014).
A escravidão contemporânea nasce da ameaça associada à miséria
e à ignorância do trabalhador e impede a livre movimentação dos tra-
balhadores, por meio da vigilância ostensiva e da coação psicológica
(CIRINO, 2014, p. 105). Além da restrição de liberdade ou da exigência
de trabalhos forçados – constrangimento físico ou moral –, com a alte-
ração promovida pela Lei 10.803/2003, o conceito passou a abranger
expressamente a jornada exaustiva e as condições degradantes.
A adoção de condições de trabalho análogas às de escravo tem
a finalidade de reduzir os custos de produção e a maximizar os
lucros. Ou seja, a principal causa da escravidão continua sendo
a exploração econômica. Encontra-se vinculada a fatores sociais e
possui como pressupostos as precárias condições de vida na região
de origem do indivíduo trabalhador. Jornadas extensas, salários irri-
sórios, discriminação e outras ofensas são suportadas pelas pessoas
sem alternativa de trabalho digno, compelidas pela necessidade de
subsistência própria e familiar. É um contexto que facilita a negação
aos direitos fundamentais laborais, não obstante a figura do explo-
rador geralmente se confunda com a do proprietário rural instruído,
que vive nos grandes centros urbanos do país e possui assessoria
contábil e jurídica (PALMA e GEREMIAS, 2015, p. 238 e 242).
Como direitos frequentemente suprimidos, citam-se a ausência de
registro formal (art. 41 da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT); a
falta de anotação da Carteira de Trabalho (art. 29 da CLT); a violação
do salário (art. 462 da CLT); o abuso quanto aos limites de jornada
(art. 59 da CLT); e o descaso relativo às normas de saúde e segurança,
consubstanciadas nas Normas Regulamentadoras (NR) – expedidas
pelo Ministério do Trabalho, com respaldo nos art. 157, I, e 200 da CLT
–, evidenciado pela falta de proteções coletivas e individuais e pelas
precárias condições sanitárias, de alojamento e de alimentação.

247
A preservação da dignidade humana é condição para a pacifica-
ção social dos conflitos, fim maior do Direito. Ao lado da postura de
abstenção quanto aos comportamentos ofensivos, a proteção e a pro-
moção desse valor fundamental (art. 1º, III, CR/88) demandam a in-
tervenção estatal e particular. Trata-se de norma jurídica cogente que
possui função unificadora – confere unidade de sentido à ordem cons-
titucional – e hermenêutica – ponto de partida e de chegada de normas
jurídicas voltadas à regulação das relações sociais, influenciando na
sua criação, interpretação e aplicação (BELTRAMELLI NETO, 2014).
Os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa são colocados no
mesmo plano pela Constituição Republicana (art. 1º, IV). Significa que
o desenvolvimento econômico não deve ser atingido por meio da con-
sideração do ser humano como mero fator produtivo. Pelo contrário,
deve ser concebido como sujeito que busca no labor a realização ma-
terial, moral e espiritual (SILVA NETO, 2005). Como fundamentos do
Estado brasileiro, a livre iniciativa e a valorização do trabalho precisam
ser compatibilizadas, de modo que a solução para eventuais impasses
seja equilibrada e observe a dignidade intrínseca ao homem.
O art. 23 da DUDH71 consagra o direito ao trabalho e tutela
da qualidade do emprego, que deve ser realizado em condições
justas e favoráveis. O art. 7º do PIDESC72 segue o mesmo caminho

71. Art. 23. I) Toda a pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha do trabalho, a
condições equitativas e satisfatórias de trabalho e à proteção contra o desemprego.
II) Todos têm direito, sem discriminação alguma, a salário igual por trabalho igual. III)
Quem trabalha tem direito a uma remuneração equitativa e satisfatória, que lhe per-
mita e à sua família uma existência conforme com a dignidade humana, e completada,
se possível, por todos os outros meios de proteção social. IV) Toda a pessoa tem
o direito de fundar com outras pessoas sindicatos e de se filiar em sindicatos para
defesa dos seus interesses.
72.
Art. 7º. Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa de
gozar de condições de trabalho justas e favoráveis, que assegurem especialmente: a)
Uma remuneração que proporcione, no mínimo, a todos os trabalhadores: i) Um salá-
rio eqüitativo e uma remuneração igual por um trabalho de igual valor, sem qualquer
distinção; em particular, as mulheres deverão ter a garantia de condições de trabalho
não inferiores às dos homens e perceber a mesma remuneração que eles por traba-
lho igual; ii) Uma existência decente para eles e suas famílias, em conformidade com
as disposições do presente Pacto; b) A segurança e a higiene no trabalho; c) Igual
oportunidade para todos de serem promovidos, em seu Trabalho, à categoria supe-
rior que lhes corresponda, sem outras considerações que as de tempo de trabalho e
capacidade; d) O descanso, o lazer, a limitação razoável das horas de trabalho e férias

248
de outras normas infraconstitucionais, que defendem a superação
do desemprego, eliminação do trabalho precário e a promoção do
trabalho decente, em prol dos direitos fundamentais e da dignidade
humana (SANTOS e BORGES, 2015, p. 245).
Em conjunto com outros instrumentos internacionais (art. 5, §
2º)73, a Constituição deve ser visualizada como um patamar mínimo
de direitos, passível de ampliação para o alcance da dignidade pelo
trabalho (art. 7º, caput). É nesse quadro de progressividade dos di-
reitos humanos que o labor escravo merece a conjugação de esforços
estatais e privados para identificação e tratamento apropriados.

2. NEGAÇÃO E RECONHECIMENTO DO
TRABALHO ESCRAVO NO BRASIL
Em 1994, ganhou destaque na comunidade internacional o caso
José Pereira. As organizações não governamentais Americas Watch e
Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) apresentaram uma
petição à CIDH, contra o Estado brasileiro, na qual expuseram uma si-
tuação de trabalho escravo e violação do direito à vida e à justiça, no
sul do estado do Pará. Segundo o documento, na tentativa de escapar
da Fazenda Espírito Santo em 1989, José Pereira foi gravemente feri-
do e outro trabalhador rural foi morto. Esses empregados, juntamente
com outros sessenta, foram atraídos por falsas promessas de boas con-
dições de trabalho, mas terminaram submetidos a trabalhos forçados,
sem liberdade de locomoção, em condições desumanas e ilegais.
A petição mencionou a falta de proteção e garantias do Estado
brasileiro, que não agiu adequadamente frente às denúncias e con-
sentiu tacitamente com a persistência da irregularidade. Afirmou-se
o desinteresse e a ineficácia das investigações e dos processos refe-
rentes aos assassinos e responsáveis pela exploração. As peticioná-

periódicas remuneradas, assim como a remuneração dos feridos.


73.
Art. 5º [...] § 2º. Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem
outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados
internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

249
rias aduziram que o Brasil violou os artigos I (direito à vida, à liber-
dade, à segurança e à integridade pessoal), XIV (direito ao trabalho e
a uma justa remuneração) e XXV (direito à proteção contra a deten-
ção arbitrária) da Declaração Americana sobre Direitos e Obrigações
do Homem; e os artigos 6º (proibição de escravidão e servidão); 8º
(garantias judiciais) e 25 (proteção judicial), conjugados com o artigo
1º, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos.
Em 2003, o Estado brasileiro assinou um acordo de solução
amistosa, no qual reconheceu perante a comunidade internacio-
nal a responsabilidade pela omissão e assumiu compromissos re-
lacionados ao julgamento e punição dos responsáveis, às sanções
pecuniárias de reparação, às ações de prevenção, às modificações
legislativas, às medidas de fiscalização e penalização, e à conscien-
tização social acerca do trabalho escravo.
O caso José Pereira foi emblemático e consolidou a mudança
de comportamento do Brasil diante da exploração do labor humano
em condições de escravidão. A partir de então, o combate ao traba-
lho escravo ganhou força. No que tange à repressão, destacam-se as
seguintes posturas: intensificaram-se as ações de fiscalização, com
a criação do Grupo Especial de Fiscalização Móvel de Combate ao
Trabalho Análogo à Escravidão (GEFM), no âmbito da Secretaria de
Inspeção do Trabalho (SIT); promoveu-se o resgate de quase cin-
quenta mil trabalhadores; ampliou-se o conceito de trabalho escravo
para abranger a jornada exaustiva e as condições degradantes; e pos-
sibilitou-se a informação da sociedade e a restrição de crédito em ins-
tituições públicas (art. 4º da Lei 11.948/2009 e art. 106, § 1º, IV, da
Lei 13.080/2015), mediante a divulgação do Cadastro de Empresas e
Pessoas Autuadas por Exploração do Trabalho Escravo (“lista suja”).
Relativamente à prevenção e ao acolhimento do trabalhador
resgatado, listam-se as seguintes medidas: garantiu-se renda aos
trabalhadores libertados pela fiscalização laboral, com a instituição
de uma modalidade específica de seguro-desemprego; viabilizou-

250
-se o controle dos movimentos migratórios, com a implantação da
Certidão Declaratória de Transporte de Trabalhadores (CDTT), a ser
apresentada aos órgãos do Ministério do Trabalho nas localidades
de origem e de destino, no transporte de pessoas contratadas para
trabalhar fora da região de domicílio; fortaleceu-se a prevenção e a
reinserção do obreiro no mercado de trabalho em condições dignas,
com a assinatura do Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho
Escravo no Brasil e a implantação de projetos específicos baseados
na articulação interinstitucional e na participação da iniciativa pri-
vada, como o Movimento Ação Integrada.
O Movimento Ação Integrada corresponde a uma iniciativa do
Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (SINAIT), da
OIT e do Ministério Público do Trabalho (MPT), e ganhou o nome
do exitoso projeto desenvolvido pela Superintendência Regional do
Trabalho e Emprego no Mato Grosso (SRTE/MT). Em cinco anos de
funcionamento, o projeto qualificou profissionalmente e alfabeti-
zou 643 trabalhadores dos 1.648 abordados. O projeto de referência
compreende a articulação dos parceiros envolvidos, para formar
uma rede de proteção, qualificação e reinserção dos egressos do
trabalho escravo no mercado. Objetiva-se encerrar o ciclo do traba-
lho escravo, por meio da eliminação da reincidência e do direciona-
mento de atenção ao trabalhador resgatado e seus familiares, para
afastá-los de condições precárias de empregabilidade.
Destaca-se, ainda, a alteração promovida pela Emenda Cons-
titucional 81 de 2014 (EC 81/2014). A partir dessa modificação, o
art. 243 da CR/88 passou a conceber a expropriação de propriedade
urbana ou rural utilizada para fins de exploração do trabalho escra-
vo, destinando-as à reforma agrária e aos programas de habitação
popular, sem qualquer indenização ao proprietário e independente-
mente de outras sanções previstas em lei.
De imediato, formou-se no Congresso Nacional um movimen-
to em defesa da alteração do conceito de trabalho escravo, com a

251
pretensão de esvaziamento da tipificação contida no art. 149 do
Código Penal, para afastar a jornada exaustiva e as condições degra-
dantes. Todavia, ressalta-se que não falta regulamentação. Eventual
sucesso desse movimento ocasionará a redução do alcance do texto
constitucional e o retrocesso da noção vanguardista que o Brasil
desenvolveu acerca do tema, notadamente depois do caso José Pe-
reira. Trata-se, na verdade, de mais um instrumento à disposição da
rede de combate para auxiliar na busca pela eliminação do labor
escravo no território nacional.

3. CAPITALISMO, PRECARIZAÇÃO
LABORAL E ENVOLVIMENTO DAS CADEIAS
PRODUTIVAS
O trabalho escravo apresenta-se como efeito colateral do avan-
ço do sistema capitalista pelo mundo. A consolidação do regime
promoveu a integração dos mercados e a modificação das estrutu-
ras econômicas. Revoluções industriais incentivaram a globaliza-
ção e a implantação de diferentes políticas produtivas, orientadas
pela redução dos custos e maximização dos lucros. Essas medidas
refletem diretamente na qualidade das relações laborais. O capita-
lismo prioriza os objetivos de lucro dos detentores dos meios de
produção em detrimento dos anseios do proletariado por melho-
res condições de trabalho e remuneração. O conflito de interesses
resolve-se desfavoravelmente ao lado mais frágil.
Amparada no direito de propriedade, a ideologia liberalista de-
manda contínuas alterações nos modos de produção e nas relações
laborais, e promove transformações sociais. Em superação ao taylo-
rismo e ao fordismo, surgiu o toyotismo. Esse modelo persiste domi-
nante e prega as ideias de produção enxuta – proporcional à deman-
da – e de estoque mínimo, para atender às exigências do mercado
no menor tempo e com maior qualidade. Com essa nova concepção,
fragmenta-se a organização e a exploração do trabalho. Troca-se a

252
estrutura vertical pela horizontal, com vistas à melhoria do pro-
duto e do tempo de resposta aos pedidos do mercado consumidor.
Tornam-se comuns as redes de empresas coligadas em substituição
ao paradigma da empresa completa, propugnada pelos modelos an-
teriores. As relações de trabalho seguem a mesma sistemática de
flexibilização. Como consequência, a base das cadeias produtivas
revela situações de precarização e de exploração do labor.
Ao tratar da realidade incentivada pelo atual modelo produtivo,
Teitelbaum (2000, p. 27-29) afirma que “el empresario ya no ve al
trabajador como un factor de producción y también como un consu-
midor (fordismo), sino sólo como un factor de producción cuyo costo
hay que reducir en aras de la competitividad internacional”. Frisa que
a ameaça de perder a ocupação e os empregos precários contribuem
para diminuir a qualidade da vida ativa, citando como exemplos a
“irregularidad y extensión en los hechos del horario de trabajo, incre-
mento de la insalubridad y la inseguridad laboral, aumento de los ac-
cidentes de trabajo, de las enfermedades profesionales y del stress”.
Em tempos de globalização e de crise econômica estrutural,
torna-se indispensável a luta em favor da preservação dos direitos
sociais, como o direito ao trabalho. Nesse sentido, Gadotti (2000,
p. 136) identifica a globalização capitalista como um “modelo de
dominação econômico, político e cultural totalitário e excludente”,
ao tempo em que reconhece no processo de globalização da socie-
dade civil a possibilidade de “novos movimentos sociais, políticos
e culturais, intensificando a troca de experiências de suas particu-
lares maneiras de ser, questionando as desigualdades no interior
dos Estados-nações”. A globalização torna a sociedade cúmplice e
culpada pelo que ocorre com as outras pessoas sobre a Terra (SAN-
TOS e BORGES, 2015, p. 252), pensamento que deve servir para
reforçar o compromisso em torno da superação das desigualdades
e do fortalecimento da perspectiva democrática no âmbito da socie-
dade civil (GADOTTI, 2000, p. 136).

253
Inspiradas nesse anseio de coparticipação e interdependência,
as ações fiscais buscam identificar o poder econômico relevante,
responsável pela cadeia produtiva. O desvirtuamento da terceiri-
zação material, a presença de dependência econômica ou subordi-
nação jurídica – subjetiva ou clássica, objetiva, integrativa ou es-
trutural – e a precarização das condições laborais são fatores que
orientam a inspeção do trabalho na busca pelo principal beneficiá-
rio da rede de contratações que alimenta o trabalho escravo.
Desvirtua-se a finalidade original de focalização, pregada pelo
toyotismo, para se promover a coisificação do obreiro. Essa postura
não se alia ao banimento da comercialização do trabalho estam-
pado no Anexo à Declaração de Filadélfia, que reconhece o valor
social do trabalho e da dignidade humana, ao preconizar que o
trabalho não é uma mercadoria.
Há que se combater a subordinação laboral à lógica da flexi-
bilidade. Para Antunes e Druck (2014, p. 17), o capital reafirma a
força de trabalho como mercadoria, compreendendo o descarte e
a superfluidade como fatores determinantes da instabilidade e da
insegurança no trabalho, como nunca antes alcançado. Os autores
revelam, também, que a centralidade da terceirização na estratégia
patronal concretiza formas de compra e venda da força de trabalho
e disfarça ou traveste as relações sociais entre capital e trabalho,
que na verdade amparam-se em contratações de pessoal por tempo
determinado, flexíveis, em função do ritmo produtivo das tomado-
ras e das oscilações de mercado que desestruturam o trabalho.
Esconde-se o ponto fundamental, concernente no fato de a ter-
ceirização – sucessiva, no caso das cadeias produtivas – ter como
objetivos centrais a redução dos salários, a constante retração dos
direitos do trabalho e o aumento da fragmentação, para desorgani-
zar a classe trabalhadora na esfera sindical e nas distintas formas
de solidariedade coletiva. Salários menores, jornadas mais extensas
e altas taxas de rotatividade revelam que a terceirização domina o

254
processo de corrosão do trabalho, razão pela qual está no centro
dos debates mundo afora (ANTUNES e DRUCK, 2014, p. 24).
O trabalho não pode ser visualizado como uma simples mer-
cadoria de troca pela sobrevivência ou subsistência, pois consagra
valores que dignificam o ser humano no contexto social, psicoló-
gico e cultural. O empreendimento vincula-se à ordem econômica
estruturada pela Constituição, que estabelece como fundamentos
a dignidade humana (art. 1º, III), o valor social do trabalho (art.
1º, IV) e a função social da propriedade (art. 170, III), demandan-
do a ação empresarial responsável como instrumento de proteção
ao ambiente laboral. As organizações devem absorver, não apenas
as externalidades positivas (crescimento econômico), mas também
as externalidades negativas (degradação ambiental e prejuízos so-
ciais). Segundo o tripé do desenvolvimento sustentável, precisam
ser atendidos os critérios de relevância social, prudência ecológica
e viabilidade econômica (CIRINO, 2014).
No exercício da atividade fiscalizatória, aplicam-se estudos e teo-
rias jurídicas de responsabilidade objetiva e subjetiva, como a teoria
da cegueira deliberada, do avestruz ou do domínio do fato, com ori-
gem no direito penal americano; da ajenidad, alheamento ou alteri-
dade (art. 2º da CLT), que trata da assunção dos riscos pelo tomador
da força de trabalho; do risco proveito, segundo o qual quem aufere
o bônus deve suportar o ônus (art. 12 e 18 do Código de Defesa do
Consumidor – CDC); e do risco criado, risco da atividade ou risco sistê-
mico, na forma do parágrafo único do art. 927 do Código Civil de 2002.
A gravidade das situações encontradas pela fiscalização nor-
malmente exige o resgate dos trabalhadores, por meio da rescisão
indireta do contrato de trabalho e do pagamento das verbas cor-
respondentes, emissão da guia de seguro-desemprego, bem como,
eventualmente, arbitramento de dano moral individual mínimo,
sem prejuízo de os obreiros buscarem judicialmente outros pleitos,

255
ou dos pedidos promovidos pelo MPT em ações coletivas ou em
Termos de Ajuste de Conduta (art. 5º, § 6º, Lei 7.347/85).
Quando possível a reversão do quadro com a manutenção do
vínculo empregatício, as exigências para a regularização passam,
inexoravelmente, pelo atendimento mínimo das seguintes obrigações
(MELO, 2012): reconhecimento do liame empregatício - anotação da
Carteira de Trabalho e registro formal em livro, ficha ou sistema ele-
trônico; depósito das contribuições fundiárias (FGTS) e previdenci-
árias (INSS); remuneração adequada e pagamento dentro do prazo
legalmente estipulado; respeito aos limites de jornada diário e se-
manal, e aos contornos legais para a exigência de horas extras; con-
cessão de repouso semanal e férias, devidamente remunerados; zelo
pela higidez do meio ambiente laboral, com vistas à implementação
dos instrumentos normativos específicos, tais como a NR 04 (SES-
MT), a NR 05 (CIPA), a NR 07 (PCMSO), a NR 09 (PPRA), a NR 17
(análise ergonômica de trabalho), a NR 18 (PCMAT), a NR-24 (condi-
ções de higiene e conforto das instalações) e a NR-31 (trabalho rural).
Na região Amazônica, a inspeção do trabalho já constatou tra-
balho escravo em atividades como o plantio de milho, arroz e soja;
o desmatamento ilegal, para comercialização de madeira; a abertu-
ra de área para pasto; as carvoarias, para fornecimento de matéria
prima utilizada no ramo da siderurgia; e a extração e beneficiamen-
to da castanha de caju.
Os riscos ambientais atrelados ao avanço em direção à floresta
exigem profundas discussões acerca da disseminação do trabalho
escravo na Amazônia e dos rumos que essa prática pode tomar,
caso não seja devidamente enfrentada e efetivamente combatida
pelo poder público e pela sociedade.

4. TRABALHO ESCRAVO NO CONTEXTO


AMAZÔNICO
Estudos sobre os casos de escravidão no Brasil identificaram
como foco das ocorrências a região sudeste do estado no Pará (FER-

256
NANDES, 2006). A análise do processo histórico do trabalho es-
cravo na Amazônia e da racionalidade econômica por trás dessa
prática identificou a expansão do sistema capitalista como um dos
fatores para a retomada da escravidão nos anos 1960.
Aponta-se a instalação de grandes empreendimentos, apoiados
direta ou indiretamente pelo Estado, como circunstância histórica
que propiciou o avanço do arco do desmatamento e do trabalho
escravo na Amazônia, a partir do regime militar. Depois do sistema
de aviamento (período da borracha), esse novo marco deu-se em
virtude da política de abertura e integração da região à economia
nacional, por meio de investimentos públicos na iniciativa privada,
da distribuição de terras e da colonização, que intensificaram os
fluxos migratórios desregrados (FERNANDES, 2006).
Conforme observa Mesquita (2011, p. 47), “quase meio século
de crescimento econômico pouco alterou o perfil socioeconômico
da população ali residente e/ou articulada à produção”. Afirma que,
na verdade, a crise da borracha deixou parcela significativa da po-
pulação ainda mais depauperada e sem alternativa em razão do
baixo preço do produto, o que redundou no retorno de uma parcela
dos envolvidos aos locais de origem e na infiltração de outros na
floresta à procura de sobrevivência.
A contraposição entre o incentivo à monocultura (Revolução
Verde) e a concepção baseada na reforma agrária (anseio social)
revolveu-se em favor daquela. Como distorções do modelo desen-
volvimentista (FERNANDES, 2006), notam-se a desregionalização
do capital (empresários não residentes); o baixo grau emprega-
bilidade (expropriação e exploração do trabalho); a prevalência
de projetos agropecuários (quanto maiores as porções de terra,
maior o investimento estatal e menor o custo); os ganhos espe-
culativos sobre a terra subutilizada; os conflitos sociais violentos
resultantes na expulsão de camponeses; a acelerada degradação
ambiental; e, por fim, a confusão entre as noções de crescimento

257
econômico e de desenvolvimento social, tendo esse último sido
prejudicado pela omissão e ausência estatal.
Além de ausente, o Estado brasileiro funcionou direta ou in-
diretamente como maior responsável por essa reconfiguração, e,
consequentemente, pelo conflito territorial daí emergente. As em-
presas estatais, o financiamento público e o grande capital atuaram
sobre territórios e áreas secularmente apropriados, forçando a uma
nova estruturação desse espaço, com exclusão de antigos sujeitos
que agora não conseguem reconquistá-lo e ou serem realocados
(MESQUITA, 2011, p. 51-52). Quanto a esse ponto, Costa (2009, p.
21) lembra que “persistem a mentalidade e os métodos arcaicos de
séculos passados, expressos na violência com que populações tradi-
cionais são expulsas das terras que ocupam e na submissão de mi-
lhares de homens a condições de trabalho análogas à escravidão”.
Os principais setores econômicos relacionados ao trabalho es-
cravo na Amazônia são a pecuária, a extração de madeira e a ex-
ploração do carvão vegetal, que representa 90% do abastecimento
da indústria siderúrgica (FERNANDES, 2006). Ao tratar do rápido
aumento da extração de madeira na Amazônia, Fearnside (2012, p.
123) observa que normalmente isso ocorre em áreas onde o acesso
a mercados e portos é relativamente fácil, “como o sul do Pará, nor-
te do Mato Grosso, e Rondônia; naquelas localidades, atualmente,
ocorre uma exploração sem precedentes no número de serrarias”.
Nota-se, então, que o capital escraviza para reduzir os custos
da cadeia produtiva e manter preços competitivos no panorama
econômico global. A floresta e o conjunto de trabalhadores explo-
rados sofrem para proporcionar a geração de produtos com lugar
certo no mercado mundial. O Pará tem a maior incidência de tra-
balho escravo e o segundo maior índice de grilagem de terra. No
estado, os trabalhadores escravizados geralmente são provenientes
da região Nordeste. Mais vulneráveis, tornam-se presas fáceis dos
“gatos”. Por desconhecerem a geografia do estado e não saberem a

258
localização precisa, não têm meios para fugir, além de serem alvos
de vigilância constante (LOUREIRO e PINTO, 2005, p. 89).
Para romper o ciclo da escravidão, levando em consideração as
sugestões de Fernandes (2006) e acrescendo-se outras, pode-se apon-
tar a implementação da reforma agrária; o investimento em agricultu-
ra familiar; a adoção de políticas públicas para efetivação de direitos
fundamentais (educação, saúde e trabalho); a intensificação das ações
fiscais; a efetiva punição dos responsáveis; a continuidade de iniciati-
vas como a “lista suja”, o Pacto Nacional pela Erradicação do Traba-
lho Escravo e o envolvimento dos principais beneficiários das cadeias
produtivas, no controle da atividade laboral sustentadora da rede de
fornecimento; e a aplicação de confisco previsto pela EC 81/2014, que
trata da expropriação de propriedade urbana ou rural utilizada para
fins de exploração do trabalho escravo (art. 243 da CR/88).
Dessa relação, ressalta-se que os planos de ação governamental
de enfrentamento da exploração do labor escravo devem compre-
ender a educação e o fomento de políticas públicas de desenvolvi-
mento das regiões de origem dos obreiros, para evitar a migração
para fins de labor escravo. Além da postura repressiva, necessita-se
de desenvolvimento humano e da geração de postos de trabalho e
nessas localidades (NASCIMENTO, 2012, p. 170).
Ademais, conforme Palma e Geremias (2015, p. 247), as ações
governamentais de divulgação devem ter como principais destina-
tários as comunidades em situação de vulnerabilidade social e con-
tribuir para a conscientização da sociedade civil, no que tange à
erradicação do trabalho escravo contemporâneo e à importância da
colaboração com denúncias e informações relevantes.
Também pode ser avaliada a criação de um selo de certificação
do produto socialmente limpo, como reconhecimento aos produtores
que respeitem as normas trabalhistas. A aplicação do selo de pro-
cedência agregaria valor aos produtos e o consumidor final estaria
adquirindo um produto social e ecologicamente correto. Para tanto,

259
deve-se analisar toda a cadeia, do fornecimento da matéria prima até
o produto final, para saber se houve trabalho escravo no processo. A
visibilidade e a informação funcionariam, assim, como armas para o
combate ao trabalho escravo (NASCIMENTO, 2012, p. 160).

5. IMPORTÂNCIA DO INVESTIMENTO NAS


AÇÕES DE FISCALIZAÇÃO
A Auditoria Fiscal do Trabalho possui previsão constitucional
(art. 21, XXIV) e supralegal (Convenção 81 da OIT; art. 4º, II, e 5º, §
2º, CR/88) ou legal (art. 626 a 634 da CLT), e consiste em instituição
promotora dos direitos fundamentais do trabalho. O fortalecimento
do órgão de fiscalização detentor do poder de polícia administrativa
em matéria trabalhista pode contribuir para a maior efetividade da
proteção dos direitos do trabalhador, especialmente nas localidades
fornecedoras de mão de obra escrava e de destino, para a garantia do
atendimento aos direitos sociais mínimos a essas pessoas.
Para tanto, necessitam-se, além de outras, das seguintes atitudes:
reconhecimento da relevância e da autonomia administrativa e orça-
mentária para o desempenho das atribuições, por meio da aprovação
de Lei Orgânica específica; e repreensão das medidas retaliatórias ado-
tadas em desfavor da inspeção do trabalho – como no caso da Chacina
de Unaí, em que foram vitimados um motorista e três Auditores Fiscais
do Trabalho –, pois a falta de punição enfraquece o combate à escravi-
dão e deixa de garantir a função pedagógica do Direito Penal.
Outro ponto a ser ressaltado consiste na urgência da realização
de concursos públicos periódicos, para recomposição dos quadros
defasados em quase um terço – atualmente, são mais de mil va-
gas disponíveis; criação de novos cargos, nos moldes preconizados
pela OIT – segundo a instituição, o Brasil deveria manter nove mil
fiscais, praticamente o quádruplo do quantitativo existente; esti-
pulação de remuneração condigna com os encargos assumidos; e

260
o restabelecimento do número de equipes do GEFM, afetado pela
redução dos quadros e dos investimentos estratégicos na área.
A atuação da inspeção do trabalho é fundamental para o funcio-
namento dos órgãos da rede de proteção do trabalho, pois se articu-
la com o MPT (para a propositura de TAC e o ajuizamento de ações
coletivas, com eventual pedido de dano moral coletivo); a Polícia
Federal e o Ministério Público Federal (responsabilização criminal).
Imprescindível também é a contribuição do órgão para a res-
ponsabilização judicial do explorador, o que se dá por meio da la-
vratura de autos de infração (art. 628 da CLT), da confecção de
relatórios circunstanciados e da prestação de depoimento em juízo,
para complementar as informações sobre os procedimentos fisca-
lizatórios (art. 400 da CLT), ou objetivo diverso pretendido pelo
magistrado (art. 131 do CPC e art. 765 da CLT).

6. CONCLUSÃO
O constante remodelamento do sistema capitalista implica em
mudanças dos modelos produtivos e, ao mesmo tempo, das rela-
ções de trabalho. Todavia, os interesses dos detentores dos meios
de produção devem ser conjugados com os direitos fundamentais
laborais, e não desconsiderá-los. A defesa do trabalho decente con-
siste em um desafio a ser superado cotidianamente contra a explo-
ração obreira. O combate ao trabalho escravo busca afastar esse
quadro de descaso e precarização.
Cuida-se para que o desempenho da livre iniciativa ocorra em aten-
ção à função social, ao princípio da não mercantilização do trabalho e
a todo o plexo de direitos fundamentais relacionados ao labor, conquis-
tados ao longo da história e reconhecidos pelo texto constitucional e
pelas normas internacionais integrantes do ordenamento pátrio.
Garantir as ações de fiscalização, a punição dos responsáveis e
o pagamento das verbas devidas são uma pequena parte da solu-
ção do problema. Além de se basear majoritariamente em medidas

261
paliativas e posteriores, a atuação estatal deve ser antecedente e
preventiva. O rompimento do ciclo da escravidão e a retirada do
trabalhador da condição de vulnerabilidade dependem do inves-
timento em políticas públicas, do envolvimento de outras esfe-
ras estatais e da sociedade civil organizada, da disseminação de
informações a respeito da prática, e da formação e qualificação
adequadas das pessoas sujeitas à exploração.
Se antes a cultura escravocrata baseava-se preponderantemen-
te na exploração do labor negro e indígena, a realidade atual de-
monstra que os fatores social e econômico são determinantes para
viabilizar a subjugação de um ser humano pelo outro. A abolição
da escravidão clássica, em que o Estado reconhecia a propriedade
de um indivíduo sobre o outro, atingiu apenas o plano da forma-
lidade. Deixou-se de tolerar aquela prática; no entanto, o mesmo
sistema capitalista que demandou a libertação dos escravos para
inserção no ciclo de consumo e produção mundial tratou de incen-
tivar uma nova concepção de trabalho escravo.
Esse quadro desenvolveu-se a partir da omissão estatal e da
interferência direta ou indireta de recursos públicos. Foi o que se
verificou no período integracionista, a partir da década de 1960,
em que se intensificaram a exploração de recursos naturais e hu-
manos envolvidos na expansão sobre o território amazônico. O
avanço do arco da escravidão decorre da demora do Estado em
reconhecer e adotar medidas efetivas para evitar e reprimir o tra-
balho escravo na Amazônia. A luta contra a escravidão nessa re-
gião do Brasil precisa ser travada com seriedade, sob pena de a
exploração extrema do labor perdurar enquanto houver floresta a
ser derrubada e bens naturais a serem explorados.
Quantos “José Pereira” ainda precisam ser subjugados para que
o trabalho escravo seja efetivamente punido no país e haja inves-
timento em medidas preventivas, como a melhoria das condições
sociais da população vulnerável? O crescimento econômico deve

262
estar atrelado ao desenvolvimento humano. Poder público e so-
ciedade precisam atuar conjuntamente para banir essa prática da
realidade brasileira. Nenhuma riqueza pode ser nobre se amparada
no tratamento desumano das pessoas que contribuem para gerá-la.

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266
IMIGRAÇÃO PARA O TRABALHO:
ACESSO DOS TRABALHADORES
ESTRANGEIROS À JUSTIÇA NO BRASIL
Erica Ribeiro Guimarães74

1. INTRODUÇÃO
Apesar da crise política, o Brasil ainda tem se revelado no
cenário internacional como um país de economia emergente, por-
quanto possui perspectivas de crescimento baseadas, principal-
mente, na exportação de commodities agrícolas e minerais, bem
como no desenvolvimento da indústria.
Acrescenta-se que, após a estabilização no cenário político, as
expectativas são que o Brasil retome o crescimento. Ao lado disso,
observa-se que o contexto político e econômico de muitos países da
América Latina - marcados pela desaceleração da economia, desem-
prego, instabilidade política e até mesmo conflitos armados - tem
levado milhares de pessoas a vislumbrarem o Brasil como o “país
emergente”. Por tais razões, verifica-se um crescimento potencial
do número de imigrantes que ingressaram legalmente e/ou de for-
ma irregular em terras brasileiras, a maioria em busca de trabalho
ou fugindo da precária situação que o seu país de origem vivencia.
Assim, há de se questionar: Como esses imigrantes ilegais po-
dem ter seus direitos trabalhistas tutelados pelo ordenamento jurí-
dico brasileiro? Quais os meios podem ser utilizados para o efetivo
acesso à justiça para os estrangeiros? Esse artigo se propõe a trazer

74. Advogada. Aluna Especial do Programa de Pós Graduação em Direito pela Univer-
sidade Federal da Bahia (UFBA). Graduada em Direito pela UFBA em 2015.2.

267
ao debate acadêmico-jurídico o fato social da migração para o tra-
balho, no intuito de repensar a maneira como muitos operadores do
direito entendem a aplicação das leis trabalhistas.
Com o fenômeno da mundialização e integração das normas
jurídicas nos dias atuais, não há que se cogitar a interpretação das
leis por mera subsunção do enunciado normativo ao caso concreto.
Ao revés, as leis devem ser observadas conforme a Constituição e
aos valores que norteiam a dignidade da pessoa humana.

2. BUSCA POR TRABALHO E CIDADANIA


Um dos principais motivos que levam milhares de pessoas a dei-
xarem seu país de origem rumo a uma terra desconhecida é a busca
por trabalho. Os imigrantes, na maioria das vezes, estão em busca de
um país estável economicamente, pacífico e que ofereça boas con-
dições de trabalho, contudo, quando vivenciam a realidade da sua
“nova terra” nem sempre é como a sonhada (PRADO, 2015, p. 225).
A precarização do trabalho para esses imigrantes tornou-se algo
corriqueiro, haja vista que a maior parte encontra-se em situação
irregular no país. Alguns porque adentram ao território com visto
temporário (turistas, estudantes, cientistas, negociantes, correspon-
dentes de rádio, jornal, televisão ou agência de notícias estrangei-
ras, dentre outros) e permanecem no Brasil trabalhando de maneira
clandestina. Outros, como os fronteiriços e refugiados, por não con-
seguirem autorização para trabalhar, também mantem-se às escon-
didas com subempregos (CORTES, 2016).
Sem a carteira trabalho, os estrangeiros só conseguem algum em-
prego de maneira clandestina e frequentemente não gozam dos direi-
tos trabalhistas, ao contrário, são altamente explorados, sendo subme-
tidos a condições análogas ao trabalho escravo (COLOMBO, 2015, p.
89). Outros, ao seu passo, aventuram-se como vendedores ambulantes
nas ruas das grandes cidades, como e. g., na metrópole São Paulo, eles

268
vendem artesanatos, roupas, utensílios domésticos, comidas, dentre
outros produtos que possam garantir à sua sobrevivência.
No Brasil, a concessão da Carteira de Trabalho e Previdência
Social (CTPS) aos imigrantes depende da condição que o estran-
geiro se encontra no país, por exemplo, aqueles que já consegui-
ram o status de refugiado possuem maior facilidade na obtenção
da CTPS em relação àqueles que solicitaram o refúgio e ainda estão
aguardando a decisão de deferimento ou indeferimento do pedido.
Semelhantemente, ocorre com os que requerem o asilo político no
Estado brasileiro. Além desses, tem-se os imigrantes fronteiriços,
temporários, permanentes, maiores de 51 anos ou deficientes físi-
cos, dependente de pessoal diplomático e consular de países que
mantém convênio de reciprocidade para o exercício de atividade
remunerada no Brasil, dentre outros; o fato é que cada um deles
deverá se submeter a um rito burocrático diferenciado para a con-
cessão da carteira de trabalho (CARTEIRA..., 2016).
No caso dos imigrantes provenientes de países que integram o
Mercado Comum do Sul – MERCOSUL mais Bolívia e Chile, em 6
de dezembro de 2002, foi celebrado um Acordo de Regularização
Migratória e de Residência, com a participação da Argentina, Bra-
sil, Paraguai, Uruguai, Bolívia e Chile (BRASIL. Decreto n. 6.975,
2009). Contudo, tal tratado internacional apenas se consolidou em
7 de outubro de 2009, data em que surge o Decreto de nº 6.975.
Foi a partir desse diploma legal é que os direitos previstos no
referido Acordo para nacionais dos Estados partes do MERCOSUL
mais Bolívia e Chile, finalmente, puderam ser exigidos no território
brasileiro. Este que, dentre outros direitos, dispôs:

IGUALDADE DE DIREITOS CIVIS: Os nacionais


das Partes e suas famílias, que houverem obti-
do residência, nos termos do presente Acordo,
gozarão dos mesmos direitos e liberdades civis,

269
sociais, culturais e econômicas dos nacionais do
país de recepção, em particular o direito a traba-
lhar e exercer toda atividade lícita, nas condições
que dispõem as leis; peticionar às autoridades;
entrar, permanecer, transitar e sair do território
das Partes; associar-se para fins lícitos e professar
livremente seu culto, conforme as leis que regula-
mentam seu exercício. (BRASIL. Decreto n. 6.975,
2009). (grifou-se)

Infere-se, assim, que a maior parte do fluxo migratório, na


América do Sul, ocorre em busca de melhores condições de vida e
trabalho, de modo que o Brasil tem atraído milhares de estrangeiros
que sonham em construir um futuro no maior país da região. A des-
peito de o Acordo de Regularização Migratória e de Residência ser
um avanço por prever direitos aos sul-americanos, há muito a ser
feito, principalmente porque ainda paira sobre as relações de em-
prego a ideia de que o imigrante é um “estranho”, que não merece
ser tutelado pelo ordenamento jurídico pátrio.

3. ACESSO DOS TRABALHADORES


ESTRANGEIROS À JUSTIÇA NO BRASIL
Como é cediço, o acesso à justiça não se concentra somente no
acesso ao Judiciário quando se postula ao Estado-juiz, é mais que
isso, pois “significa também o direito ao devido processo, vale dizer,
direito às garantias processuais, julgamento equitativo (justo), em
tempo razoável e eficaz” (SOUZA, 2011, p. 26). Noutras palavras, o
acesso à justiça permeia todo o ordenamento jurídico, de tal modo
que impõe o acesso a uma ordem jurídica justa, respeitando-se to-
das as garantias processuais existentes (CAPELLETTI, 1988, p. 15).
Não por outro motivo, o Prof. Dr. Wilson Alves de Souza ex-
plica que:

270
(...) o acesso à justiça é, ao mesmo tempo, uma
garantia em si mesmo e também um direito fun-
damental; mais do que isso, é o mais importante
dos direitos fundamentais e uma garantia máxi-
ma, pelo menos quando houver violação a algum
direito, porque havendo essa violação, todos os
demais direitos fundamentais e os direitos em
geral, ficam na dependência do acesso à justiça.
(SOUZA, 2011, p. 84)

Assim, pode se inferir que o acesso à justiça existe para todas as


pessoas, independentemente de origem, raça, condição econômica,
religião, etc., isso porque é, acima de tudo, um valor fundamental,
inerente à dignidade da pessoa humana. Logo, é primordial à efeti-
vação desse direito, tanto na ordem jurídica interna como na ordem
internacional (CESAR, 2002, p. 46).
Nesse mesmo entendimento, afirmam os ilustres mestres Cappel-
letti e Garth: “o acesso à justiça pode, portanto, ser encarado como o
requisito fundamental – o mais básico dos direitos humanos – de um
sistema jurídico moderno e igualitário que pretenda garantir, e não
apenas proclamar os direitos de todos” (CAPELLETTI, 1988, p. 12).
No Brasil, comumente os conflitos de interesses intersubjetivos,
sejam relacionados ao Poder Público ou não, quando não solucio-
nados na esfera da autonomia privada ou por outras vias admi-
nistrativas, em regra, podem ser levados ao Poder Judiciário. Isto
porque cabe à Justiça interpretar e aplicar, aos casos concretos, os
direitos e obrigações que compõem o ordenamento jurídico pátrio.
Desse modo, compete à Justiça do Trabalho julgar conflitos
individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores, in-
cluindo aqueles que envolvam entes de direito público externo e
a administração pública direta e indireta da União, dos Estados,
do Distrito Federal e dos Municípios. Assim, o estrangeiro que
trabalha no Brasil, ainda que informalmente, pode reivindicar as

271
garantias trabalhistas previstas na Constituição Federal, mediante
provocação na Justiça Especializada.
Vale lembrar, “a Justiça que a Constituição faz referência não
remete apenas ao Poder Judiciário, mas à Justiça em sentido mate-
rial, que, conforme se dessume, não é outra senão a justiça social,
cujos ditames devem conduzir ao bem-estar exigido para uma exis-
tência digna” (DANTAS, 2013, p. 199).

3.1 Situação jurídica dos estrangeiros


residentes
A Constituição do Brasil, promulgada em 1988, dispõe no título
“Dos Direitos e Garantias Fundamentais”, caput do art. 5º:

Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem dis-


tinção de qualquer natureza, garantindo-se os
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País
a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à
igualdade, à segurança e à propriedade (...) (BRA-
SIL, 1988) (grifou-se).

A partir desse dispositivo constitucional, pode-se notar que para os


estrangeiros residentes no Brasil impera o princípio da igualdade, res-
salvadas algumas poucas exceções trazidas pela própria Constituição.
Essas exceções estão nos artigo art. 12, § 3° da CF/88, que
determina a exclusividade para brasileiros natos dos seguintes car-
gos: Presidente e Vice Presidente da República, Presidente da Câ-
mara dos Deputados, Presidente do Senado Federal, Ministro do
Supremo Tribunal Federal, Diplomacia, Oficial das Forças Armadas
e Ministro de Estado da Defesa. Outra diferenciação encontra-se
no inciso LI, do art. 5º da CF que autoriza a extradição apenas do
brasileiro naturalizado nos casos de crime comum praticado antes
da naturalização e/ou comprovado envolvimento em tráfico ilícito

272
de entorpecentes e drogas afins, não importando quando houve a
naturalização (ANJOS FILHO, 2015, p. 52).
Ressalvadas essas situações, qualquer discriminação por motivo
de procedência nacional é inaceitável, tendo em vista a prevalência
do postulado da isonomia de tratamento. Além disso, é também cri-
me, como acentua a Lei nº 7.716/89, em seu art. 20, in verbis:

Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discrimina-


ção ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou
procedência nacional. (Redação dada pela Lei nº
9.459, de 15/05/97)
Pena: reclusão de um a três anos e multa. (Redação
dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97) (grifou-se)

Nesse sentido, a Lei Federal mexicana em 2003, buscando preve-


nir e eliminar a discriminação adicionou no parágrafo único do art.
4º a previsão expressa relativa à proteção aos estrangeiros (MALLET,
2013, p. 55): “Tambien se entendera como discriminacion la xenofo-
bia y el antissemitismo en cualquiera de sus manifestaciones”.
Em síntese, é inconstitucional qualquer tratamento diferencia-
do a estrangeiros residentes no país em relação a brasileiros natos,
seja para beneficiar àqueles75, ou mesmo, para favorecer o trabalho
de nacionais em detrimento dos estrangeiros76, isto porque a Cons-
tituição os iguala, de sorte que qualquer discriminação necessita
ser inserida expressamente na Lei Maior do Brasil.
Com base nos princípios constitucionais do acesso à justiça (in-
ciso XXXV, do art. 5º da CF/88) e da isonomia (caput, do art.5º
da CF) foi que a Segunda Turma do Tribunal Superior do Trabalho

75. O STF julgou ofensivo ao princípio da igualdade a não extensão a trabalhadores


brasileiros de regime de vantagem previsto em regulamento de empresa, com apli-
cação restrita aos trabalhadores nacionais do país do empregador (STF, 2ªT., RE n.
161.243/DF, Rel. Min. Carlos Velloso, jug. em 29.10.1996).
76. A proporcionalidade imposta pelos artigos 352 e seguintes da CLT é considerada
inconstitucional por afronta ao princípio da isonomia, conforme MALLET, Estêvão.

273
(TST) manteve decisão do Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Re-
gião (TRT-10) que reconheceu a competência da Justiça do Trabalho
do Brasil para julgar reclamação trabalhista movida por um etíope
em face de um diplomata brasileiro77.
Ocorreu que certo cidadão etíope prestou serviços para embaixa-
das do Brasil na África e em ilhas do Caribe, exercendo funções de
motorista e auxiliar de serviços gerais para o embaixador brasileiro.
Ademais, o autor sustentou no processo judicial que foi levado para
o Rio de Janeiro, com o propósito de trabalhar diretamente para o
embaixador. Sucedeu que o estrangeiro foi despedido sem justa cau-
sa, quando então, mudou-se para o Distrito Federal e ingressou com
uma reclamatória trabalhista na 3ª Vara do Trabalho de Brasília.
O diplomata, réu na demanda, arguiu a incompetência da Jus-
tiça brasileira para julgar o feito, sob a alegação de que a prestação
de serviço nunca ocorreu no Brasil, bem como, por ser o empregado
estrangeiro. Sustentou, ainda, em sua defesa que o autor somente
esteve no Rio de Janeiro para gozar férias e fazer tratamento ocular.
No julgamento da primeira instância, o processo foi extinto sem
julgamento do mérito, na fundamentação, a juíza expôs que como não
houve prova sobre a atividade no Brasil e o trabalhador é estrangeiro
aplica-se o § 2º, do art. 651 da CLT, em que a competência da Vara
do Trabalho é determinada pelo local da prestação dos serviços e se
estende para atender às demandas que envolvam empregados brasilei-
ros que trabalham em agência ou filial em outra nação, desde que não
haja convenção internacional dispondo o contrário. Logo, defendeu a
magistrada que, o caso em apreço, não se enquadra em nenhuma das
hipóteses previstas para atuação da Justiça Obreira do Brasil.
Houve recurso para o TRT da 10ª Região, movido pela parte au-
tora. No acórdão proferido, o Tribunal decidiu que os dispositivos
legais da CLT precisam ser interpretados conforme a Constituição
Federal, de modo que a limitação prevista no parágrafo 2º, do art.

77. Processo Nº RT-842-16.2013.5.10.0003, julgado em 30/01/2014 pela 3ª Vara do


Trabalho.

2 74
651 da CLT, não condiz com os princípios constitucionais do acesso
à justiça (sendo este também uma garantia) e o princípio da igual-
dade, os quais se destinam a toda pessoa que esteja no Brasil, inde-
pendentemente de sua procedência nacional. Acrescenta-se, ainda,
que o acórdão reconheceu a competência da Justiça do Trabalho,
nos termos do art. 12 do Decreto-Lei 4.657/1942 (Lei de Introdução
às Normas do Direito Brasileiro), pois o diplomata tem domicílio
no Brasil. Assim, foi declarada a competência da Justiça brasileira,
determinando o retorno do processo ao juízo de primeiro grau, a
fim de prosseguir com o julgamento do mérito.
Em seguida, a parte ré interpôs Recurso de Revista (RR), bus-
cando reverter a decisão, sendo este inadmitido no juízo preliminar
de admissibilidade dos recursos. Por fim, foi ajuizado Agravo de
Instrumento ao Recurso de Revista (AIRR) para o TST, contudo, a
ministra Delaíde Miranda Arantes, negou conhecimento ao recurso
movido pelo reclamado. Segundo a ministra, o julgamento sobre
a competência territorial foi uma decisão interlocutória, tendo em
vista se tratar de questão incidente, acessória aos principais pedi-
dos. Esclareceu ainda que, na Justiça do Trabalho, não cabe RR
imediato contra decisão interlocutória, salvo às exceções previstas
na Súmula 214 do TST, porém, in casu, não são aplicáveis, conso-
ante se vislumbra na ementa do julgado78:

AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE


REVISTA. COMPETÊNCIA INTERNACIONAL DA
JUSTIÇA DO TRABALHO. TRABALHADOR ES-
TRANGEIRO A SERVIÇO DE BRASILEIRO NO
EXTERIOR. LIMITAÇÃO LEGAL (CLT, ART. 651,
§ 2.°) DE CARÁTER NITIDAMENTE DISCRIMI-
NATÓRIO. NÃO RECEPÇÃO PELA ORDEM CONS-

78. PROCESSO Nº TST-AIRR-842-16.2013.5.10.0003. 2ª Turma, Ministra Delaíde Miran-


da Arantes, julgado em 31/08/2016. Disponível em http://aplicacao4.tst.jus.br/consul-
taProcessual/resumoForm.do?consulta=1&numeroInt=255170&anoInt=2014, acesso
em 28 de set. de 2016, às 11h28min.

275
TITUCIONAL ATUAL (CF, ART. 5º, XXXV). INCI-
DÊNCIA DA REGRA GERAL DE COMPETÊNCIA
INTERNACIONAL DA JUSTIÇA BRASILEIRA (CPC,
ART. 88, II). CRITÉRIO MAIS FAVORÁVEL AO TRA-
BALHADOR. AUSÊNCIA DE PREJUÍZO AO RE-
CLAMADO DOMICILIADO NO BRASIL. DECISÃO
INTERLOCUTÓRIA (SÚMULA 214 DO TST). Não
merece ser provido agravo de instrumento que visa
a liberar recurso de revista que não preenche os
pressupostos contidos no art. 896 da CLT. Agravo
de instrumento não provido. (grifou-se).

Dado o exposto, vislumbra-se que os princípios do acesso à


justiça e da isonomia são postulados que não podem ser despreza-
dos por concepções discriminatórias, não condizentes com Estado
Democrático de Direito e, ainda, com o valor máximo que norteia
todo o sistema jurídico moderno: a dignidade da pessoa humana.

3.2 Estrangeiros em situação irregular


Diferentemente dos estrangeiros que possuem visto permanen-
te no Brasil, os que possuem visto temporário, salvo algumas exce-
ções, estão proibidos de trabalhar no território brasileiro. Por essa
razão, muitos estrangeiros embora tenham conseguido entrar no
Brasil de forma legal, permanecem no território brasileiro de manei-
ra irregular, mormente por não conseguirem a renovação do visto.
Importante frisar que a permissão para o ingresso de estran-
geiro em território nacional é ato discricionário do Estado, logo, o
visto não constitui um direito subjetivo à entrada e, muito menos,
à permanência no território, representando mera expectativa de di-
reito (Migrações..., 2016).
Quando os estrangeiros precisam trabalhar e não conseguem a
autorização legal para tanto (carteira de trabalho), passam a exer-
cer atividades laborativas de maneira irregular, seja como empre-

276
gados subordinados não registrados ou como autônomos no mer-
cado informal. Destarte, considerando que a Justiça do Trabalho
tem como função essencial a efetividade dos direitos trabalhistas,
evidente se torna a necessidade de se valorizar a realidade em de-
trimento da mera formalidade documental (VILLELA, 2010, p. 74),
de modo a preservar a garantia do acesso à justiça para todos, in-
dependentemente de sua nacionalidade. Noutras palavras, segundo
Fábio Goulart Villela (2010, p. 74), significa afirmar que a relação
jurídica estipulada pelos contratos ou qualquer outro documento
formal precisa estar conforme a realidade objetiva dos fatos.
Caso contrário, tais arcabouços formais serão considerados
nulos, consoante dispõe o art. 9º da CLT, in verbis: “Serão nulos
de pleno direito os atos praticados com o objetivo de desvirtuar,
impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos na presente
Consolidação” (BRASIL. Decreto-Lei n. 5.452, 1943).
Assim, uma relação de emprego pode ser configurada - se pre-
sentes os requisitos do art. 3º da CLT - mesmo que exista documento
formal dispondo o contrário, de sorte que prevalece o modus operandi
em que se desenvolveu a prestação do serviço (VILLELA, 2010, p. 75).
O princípio da primazia da realidade pode ser observado à luz
do acesso à justiça tendo em vista que, como afirmado alhures, o
acesso à justiça ultrapassa os limites do acesso ao Judiciário, já que
representa a garantia de uma ordem jurídica justa (equitativa).
Portanto, “(...) não há lugar, na atualidade, para a afirmação
de que acesso à justiça significa apenas manifestar postulação ao
Estado-juiz, como se fosse suficiente garantir ao cidadão o direito à
porta de entrada dos tribunais” (SOUZA, 2011, p. 25). Nesse racio-
cínio, esclarece ainda a Professora Maria Tereza Sadek (2001, p. 7):

Os direitos são letra morta na ausência de ins-


tâncias que garantam o seu cumprimento. O
Judiciário, deste ponto de vista, tem um papel

277
central. Cabe a ele aplicar a lei e, consequente-
mente, garantir a efetivação dos direitos indivi-
duais e coletivos.

Conquanto, a legislação pátria tenha diversos dispositivos vedan-


do a contratação de estrangeiros não registrados (arts. 359 da CLT e
4º, 5º, 15, 30, 48, 97 e seguintes da Lei nº 6.815/80 - Estatuto do
Estrangeiro) e, por conseguinte, inibindo a atuação desta Justiça
Especializada nessas lides; os Tribunais da Justiça Obreira têm en-
tendido que se houve a relação de emprego - nos termos do art. 3º
da CLT -, com base nos princípios da primazia da realidade e ina-
fastabilidade da jurisdição (acesso à justiça), há competência para
a Justiça do Trabalho do local da prestação de serviço no Brasil para
processar e julgar os feitos envolvendo trabalhadores estrangeiros,
ainda que estes estejam em situação irregular.
Embora ainda existam oscilações na jurisprudência brasileira, tem
prevalecido o entendimento de que se aplicam as garantias trabalhistas
previstas no art. 7º da CF/88 aos trabalhadores estrangeiros que foram
contratados irregularmente (desde que não exerçam atividade ilegal).
Dessa forma, os efeitos da relação de emprego são anuláveis (ex-nunc),
ou seja, apenas produzem efeitos do momento da decisão para o futu-
ro, sendo-lhes garantidos os direitos trabalhistas consolidados.
Outro raciocínio diferente desse pode representar um incentivo à
precarização das relações laborais, já que ao negar aos estrangeiros
sem registro a aplicabilidade das normas protetivas ao direito do tra-
balho, certamente, haverá um incentivo para a contratação destes em
detrimento dos trabalhadores brasileiros, uma vez que os nacionais
poderiam ser socorridos pela Justiça, enquanto os estrangeiros não79.

79. Nesse sentido, encontra-se o RO 0000583-15.2011.5.01.0432, proferido pelo Des.


Rel. Gustavo Tadeu Alkmim, do TRT 1ª Região, julgado em 29/05/12. Ressalta-se um
trecho do voto: “Dessa forma, não se pode negar ao estrangeiro, ainda que em situação
irregular no Brasil, direitos concedidos pela lei a qualquer trabalhador, uma vez cons-
tatado, como é o caso dos autos, a existência de uma relação típica de emprego, nos
moldes da CLT. Seria um incentivo à precarização das relações laborais, um desprezo à
dignidade da pessoa humana, que não se restringe aos brasileiros, os quais, por muito
tempo, já sofreram esse tipo de discriminação no então chamado “Primeiro Mundo”.
Nem se diga, como atualmente alguns defendem, em razão do êxodo haitiano, que

278
Demais disso, a garantia da inafastabilidade de jurisdição (in-
ciso XXXV, art. 5º, CF) não pode ser desprezada por uma lei in-
fraconstitucional, consoante acentua Nelson Nery Jr., “(...) o ju-
risdicionado tem o direito de obter do Poder Judiciário a tutela
jurisdicional adequada. A lei infraconstitucional que impedir a con-
cessão da tutela adequada será ofensiva ao princípio constitucional
do direito de ação” (NERY JR., 2013, p. 188) (sic).

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como exposto alhures, embora alguns juízes ainda insistam em
realizar uma interpretação legalista da CLT – pois aplicam friamen-
te o disposto no § 2º, do art. 651 da CLT - há decisões proferidas
pelo Tribunal Superior do Trabalho no sentido de reconhecer o vín-
culo empregatício, bem como os direitos trabalhistas dos estran-
geiros no Brasil. Isso se torna ainda mais evidente quando se trata
de trabalhadores sul-americanos, uma vez que existe um acordo
internacional de regularização migratória e de residência (entre a
Argentina, Brasil, Paraguai, Uruguai, Bolívia e Chile).
Além disso, o não reconhecimento dos direitos trabalhistas aos
imigrantes que laboram no Brasil – desde que obedecidos os requisitos
previstos no art. 3º da CLT - vai de encontro ao disposto na própria
Constituição Federal, haja vista a prevalência dos princípios da isono-
mia e do acesso à justiça, sendo estes bases do Estado Democrático.
Logo, vislumbra-se que tal discriminação não coaduna com o
ordenamento jurídico pátrio e, muito menos, com o sistema inter-

esse tipo de postura ameaça o mercado de trabalho para os nativos aqui. Ao con-
trário. Negar aos estrangeiros em situação irregular direitos trabalhistas, isso sim,
incentivará a contratação deles em detrimento dos brasileiros, já que esses últimos
podem recorrer à Justiça se forem lesados.
Por fim, cabe lembrar o princípio da primazia da realidade, informador do Direito
do Trabalho, segundo o qual a nulidade dos atos não alcança os planos jurídicos da
existência e da eficácia, sendo devidas todas as parcelas de natureza trabalhista
decorrentes da força despendida. Ou seja, ante a impossibilidade de restituição ao
status quo ante do trabalhador, deve ser reconhecido o vínculo empregatício e pagas
todas as obrigações trabalhistas”. (grifou-se).

279
nacional, que cada vez mais tem avançado na globalização dos
direitos humanos e na integração entre as normas jurídicas.
Conclui-se, portanto, que a atividade laborativa é essencial para
a consolidação da cidadania, porquanto é por meio do trabalho,
seja ele intelectual ou físico, que o homem conquista sua indepen-
dência, não apenas financeira, mas também pessoal e moral.
Por tais razões, os imigrantes buscam de diversas formas se
inserirem no mercado de trabalho e, quando não conseguem, per-
manecem exercendo atividades laborativas de maneira clandestina
e quiçá gozam das garantias trabalhistas.

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283
SO LUÇ ÃO EXTRAJ UDICIAL D E
CO N FL ITOS PELA COMISSÃ O D E
MEDI A ÇÃO E ARBITRAGEM DA
UN I VER SIDADE IGUAÇU — UN IG
Henrique Lopes Dornelas80 e Vinícius Dornelas Camara81

1. Introdução
O objetivo deste artigo é abordar as práticas restaurativas de con-
flitos como mediação e conciliação utilizadas pela Comissão de Me-
diação e Arbitragem, COMAR, órgão vinculado ao Núcleo de Prática
Jurídica, NPJ, da Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais Aplicadas
da Universidade de Nova Iguaçu, UNIG. Deste modo, serão analisado
os pontos distintos entre a conciliação e mediação e, também, a abor-
dagem destes recursos no Código de Processo Civil de 2015.
Via de regra, o processo funciona como instrumento para sa-
tisfazer o direito material, a questão do litígio de fato, e tem como
objetivo a pacificação da lide entre as partes envolvidas. Neste ínte-
rim, o Código Processual de 1973, Lei Nº 5.869 de 1973, tornou-se

80. Mestre em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Mestre
em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal Fluminense (PPGSD-U-
FF), Especialista em Direito Público pela UGF, Especialista em Direito Tributário pela
UCAM, Professor do curso de Direito da Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais
Aplicadas da Universidade de Nova Iguaçu (UNIG), da Faculdade Gama e Souza –
FGS e do Centro Universitário ABEU – UNIABEU, e-mail: [email protected]
81. Pós-graduando em Direito do Trabalho e Previdenciário pela Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais – (PUC-MG), graduado em Direito pela
Faculdade de Direito da Universidade Iguaçu (UNIG), graduado em Matemática
(Licenciatura e Bacharelado) pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
(UFRRJ), Professor da Secretaria Estadual de Educação do Estado do Rio de Janeiro
(SEEDUC/RJ) e-mail: [email protected]

285
obsoleto por não acompanhar os anseios sociais, favorecendo, de
certo modo, a judicialização dos conflitos.
Assim sendo, a grande quantidade de demandas ocasionadas
pelo aumento da judicialização dos litígios expõe a tutela jurisdicio-
nal, emanada pelo Estado em cheque, influenciando na morosidade
do sistema judiciário brasileiro, além de, promover a perda de sua
função social, pois, sob certo ângulo, o conceito de justiça torna-se
cada vez mais distante para o cidadão.
Em tal contexto, a garantia constitucional do acesso à justi-
ça representa uma conquista social assegurada pela Constituição
Federal de 1988 (CF/88). Caso o Estado não se precaveja para
cumprir, com efetividade, este preceito constitucional, ter-se-á a
morosidade da prestação jurisdicional, que, por fim, reflete num
Estado que não atende à sociedade.
Nesse contraponto, o Novo Código de Processo Civil (NCPC)
dispõe que o processo será ordenado, disciplinado e interpretado
conforme os valores e as normas fundamentais estabelecidos no
Art. 1º da CF/88. Dessa forma, o processo torna-se um instrumento
fundado em valores constitucionais, tais como o fim social a que se
destina o processo, a fundamentação das decisões e dos julgados
de forma expressa, o bem comum, a razoabilidade, a dignidade da
pessoa humana, o contraditório, a razoável duração do processo, a
publicidade, a eficiência e a igualdade (Art. 1º. e 5º. da CF/88).
Pode-se dizer, então, que a notável inovação do NCPC é a de
que as partes integrantes de um determinado conflito possam, a
qualquer tempo, buscar a melhor maneira de compor o conflito.
Nessa vertente há duas possibilidades: (1) acionar o Poder Judi-
ciário para dirimir a causa de maneira litigiosa ou (2) utilizar de
meios consensuais para compor o conflito.
A mediação pode ser utilizada tanto pelos tribunais quanto pelas
câmaras privadas. Tal instituto foi regulamentado pela Lei nº 13.140,
de 26 de junho de 2015, dependendo hoje, de sua implementação

286
nos órgãos judiciais, uma vez que, pela via extrajudicial, depende so-
mente da abertura de câmaras privadas para mediação e conciliação.
Neste sentido, a partir de uma abordagem doutrinária, preten-
de-se, com este artigo, destacar de maneira formal, a diferença en-
tre mediação e conciliação, através da análise de dados do COMAR
frente aos dissensos observados no Município de Nova Iguaçu.

2. Da Mediação
Entre os equivalentes jurisdicionais destacam-se a mediação e a
conciliação, sendo que a mediação pode ser entendida como um pro-
cesso informal, voluntário, onde um terceiro interventor, neutro, assis-
te aos disputantes na resolução de suas questões, sendo que o papel
desse interventor é de ajudar na comunicação através da neutralização
de emoções, formação de opções e negociação de acordos (SERPA,
1999, p. 90). Desta forma, como um agente fora do contexto conflitu-
oso, funciona como um catalisador de disputas, ao conduzir as partes
às suas soluções, sem propriamente interferir na substância destas.
Nesse sentido:

A mediação, numa definição bastante singela,


como o instrumento de solução de um conflito,
por meio do qual os litigantes buscam o auxílio
de um terceiro imparcial, e que seja detentor de
sua confiança.Esse terceiro, como visto, não tem a
missão de decidir (e nem a ele foi dada autoriza-
ção para tanto); e é justamente isso que faz com
que as partes procurem o mediador e exponham
de forma mais sincera os seus problemas. Cabe
ao mediador auxiliá-las na obtenção da solução
consensual, fazendo com que elas enxerguem os
obstáculos ao acordo e possam removê-los de for-
ma consciente, como verdadeira manifestação de
sua vontade e de sua intenção de compor o lití-

287
gio como alternativa ao embate. Normalmente, ao
fim de um procedimento exitoso de mediação, as
partes compreendem que a manutenção do vínculo
que as une é mais importante do que um proble-
ma circunstancial e, por vezes, temporário. Como
explicaremos mais adiante, a mediação é o método
de solução de controvérsias ideal para as relações
duradouras, como é o caso de cônjuges, familiares,
vizinhos e colegas de trabalho, entre outros (PI-
NHO; DURÇO, 2010).

A mediação é o instituto que visa compor a demanda por con-


venção das partes envolvidas através de um mediador, terceiro não
interessado, que deve ser imparcial, de forma ativa ou passiva, an-
tes ou depois de instaurado o processo e com o objetivo de facilitar
o diálogo e o consenso entre as partes envolvidas.
Vasconcelos (2014, p. 54), define que:

A mediação é o método dialogal de solução ou


transformação de conflitos interpessoais em que
os mediandos escolhem ou aceitem terceiro(s)
mediador(es), com aptidão para conduzir o pro-
cesso e facilitar o diálogo, a começar pelas apre-
sentações, explicações e compromissos iniciais,
sequenciando narrativas e escutas alternadas dos
mediandos, recontextualizações e resumo do(s)
mediador(es), com vistas a se construir a compre-
ensão das vivências afetivas e materiais da dispu-
ta, migrar de posições antagônicas para a identifi-
cação dos interesses e necessidades comuns para
o entendimento sobre a alternativas mais consis-
tentes, de modo que, havendo consenso, seja con-
cretizado o acordo.

288
O Manual de Mediação Judicial (AZEVEDO, CNJ, 2015), define
a mediação como uma política pública por meio da qual o conflito
é percebido como parte construtiva das relações sociais e que pode
promover a qualidade em processos autocompositivos.
Como disciplina a Lei 13.140, de 26 de junho de 2015, em seu
Art. 1.º, Parágrafo Único, considera-se mediação “a atividade téc-
nica exercida por terceiro imparcial sem poder decisório, que, es-
colhido ou aceito pelas partes, as auxilia e estimula a identificar ou
desenvolver soluções consensuais para a controvérsia”.

3. Da distinção entre Mediação e


Conciliação
O novo contexto processual brasileiro destaca a possibilidade
de novas medidas para a composição do conflito, institucionali-
zando instrumentos que venham a se adequar de acordo com o
caso concreto, podendo, as partes optarem pela solução adversa-
rial ou autocompositiva, acionando, ou não, à justiça para findar
o conflito (MELLO e BAPTISTA, 2024).
Nesse desiderato, emergem a negociação, a conciliação e a
mediação, no espaço judicial e extrajudicial, como alterações im-
portantíssimas, onde, todos os agentes que participam do clássi-
co modelo processual, juízes, advogados, defensores públicos e
membros do Ministério Público, deverão estimular tais institutos,
inclusive no curso do processo (Art. 3º, § 2º, NCPC).
Portanto, é importante distingui-los, pois cada um deles deve-
rá ser estimulado e utilizado no caso concreto, ressaltando as pe-
culiaridades de cada um, visando sempre a celeridade e a razoável
duração do processo.
Em relação a este tema, Tavares (2002, p.16) ensina que

A autocomposição, menos estuda ocorre quan-


do as próprias partes, sem auxílio de terceiro,

289
resolvem suas controvérsias. A intermediação,
também chamada de mediação (lato sensu), por
outro lado, ocorre sempre que houver um terceiro
interveniente, para facilitar o entendimento entre
as partes na solução da controvérsia. Divide-se,
basicamente, em quatro espécies: arbitragem, me-
diação (stricto sensu), negociação e conciliação.

Em relação à negociação, registra-se que esta deve ser en-


tendida como um modelo onde as partes envolvidas compõem a
lide sem a intervenção de qualquer terceiro, ocorrendo de modo
competitivo/ distributivo ou colaborativo/ integrativo (LEWICKI;
SAUNDERS e MINTON, 2002).
O método competitivo caracteriza-se quando um dos interlocuto-
res objetiva maximizar vitórias sobre o outro. É o chamado ganha-per-
de, no qual o resultado substantivo, objetivo, tem valor preponderante,
em detrimento do resultado subjetivo representando pela criação de
um bom relacionamento entre os envolvidos (MORAES, 2016).
Por outro lado, a postura colaborativa, permite que os envol-
vidos cheguem num consenso, através de uma dialética enrique-
cedora permitindo, com efeito, a prática da cultura de paz, é o
chamado ganha-ganha (SALES, 2006).
No mesmo sentido, Vasconcelos (2014, p.54) explica que

Negocição é o planejamento, a execução e o


monitoramento, sem a interferência de terceiros,
envolvendo pessoas, problemas e processos, na
transformação ou restauração de relações, na so-
lução de disputas ou trocas de interesses.

Complementa ainda que nem sempre é possível resolver uma


disputa negociando diretamente com a outra pessoa envolvida, ten-
do assim, que, para retomar o diálogo, será preciso contar com a
colaboração de uma terceira pessoa, que aturá como mediadora.

290
O referido autor, ainda caracteriza a mediação como

Método dialogal e autocompositivo, no campo


da retórica material, e também como uma metodo-
logia, em virtude de estar baseada num complexo
interdisciplinar de conhecimentos científicos extra-
ídos especialmente da comunicação, da psicologia,
da sociologia, do direito e da teoria dos sistemas.
E é, também, como tal, uma arte, em face das ha-
bilidades e sensibilidades próprias do mediador
(VASCONCELOS, 2014, p.55).

No mesmo entendimento, vale registrar a ideia de Serpa (1997,


p.20), onde

A mediação é o desenvolvimento da negociação


de interesse, assistido por terceiro (mediador), o
qual é encarregado pelo Estado a facilitar os passos
do processo, cabendo a ele, desta forma, adminis-
trar os fatos e conduzir as pessoas a uma solução
que pacifique o conflito e atenda as necessidades
de ambas as partes.

Conforme o ensinamento de Pinho (2004, p.09), o mediador


pode ser classificado em ativo ou passivo:

Na mediação passiva o terceiro apenas ouve as


partes, agindo como um facilitador do processo de
obtenção de uma solução consensual para o confli-
to, sem apresentar o seu ponto de vista, possíveis
soluções ou propostas concretas às partes. No caso
da mediação ativa, o mediador funcionará como
uma espécie de conciliador; ele não se limita a
facilitar; terá ele também a função de apresentar

291
propostas, soluções alternativas e criativas para o
problema, alertar as partes litigantes sobre a razoa-
bilidade ou não de determinada proposta, influen-
ciando assim o acordo a ser obtido. Aqui o media-
dor assume posição avaliadora.

Ainda o mesmo autor, complementa que a mediação deve ser uti-


lizada, prioritariamente para os relacionamentos interpessoais conti-
nuados, oportunidade em que faz distinção entre dois tipos de con-
flitos: aqueles oriundos de uma relação jurídica descartável, como
numa ação indenizatória de ato ilícito qualquer) e aqueles de uma
relação continuada (aquela que vai subsistir, quer as partes queiram,
quer não queiram, após a solução daquele conflito, como é o caso da
convivência entre cônjuges, familiares, afins, vizinhos e associados).
Em outras palavras, a COMAR/UNIG define a mediação como
um meio extrajudicial de resolução de conflitos, utilizado para so-
lucionar ou prevenir situações de litígio ou de impasse na comuni-
cação ou na negociação. É a criação da oportunidade para que as
partes discutam, questionem e contestem os seus conflitos aberta-
mente, com fim de solução consensual.
Em suma, a mediação é o instituto em que as partes chegam
num consenso, sendo auxiliadas por um terceiro imparcial, com
o objetivo de garantir a paz social. A mediação não é um instru-
mento objetivo, com fim para definir o litígio, mas, sim, de plena
satisfação entre as partes envolvidas, uma vez que existe o des-
gaste emocional entre elas. Nota-se que a mediação enfatiza os
sujeitos do conflito, pois, eles mantêm autonomia e controle do
procedimento, viabiliza acordos onde todos ganham, reforçando
o sentimento de justiça e satisfação social.
Por outro lado, outro método para autocomposição de um conflito
é já conhecida conciliação, a qual, segundo o Conselho Nacional de
Justiça (CNJ, 2015), trata-se de um meio alternativo de resolução de
conflitos em que as partes confiam a uma terceira pessoa (neutra), o

292
conciliador, a função de aproximá-las e orientá-las na construção de
um acordo. O conciliador é uma pessoa da sociedade que atua, de for-
ma voluntária e após treinamento específico, como facilitador do acor-
do entre os envolvidos, criando um contexto propício ao entendimento
mútuo, à aproximação de interesses e à harmonização das relações.
É papel do conciliador oferecer às partes uma alternativa para
a solução da controvérsia. Entretanto, não poderá impor a elas
uma decisão: o conflito é resolvido com um ajustamento de von-
tade das partes que aceitem a proposta realizada pelo conciliador.
Tal prática é comumente adotada nos Juizados Especiais (Lei Nº
9099/95), onde a conciliação é conduzida por um juiz togado ou
por um conciliador. (FIGUEIREDO; JÚNIOR, 2010).
A grande polêmica acerca da conciliação consiste no fato de
que o Código de Processo Civil de 1973, as audiências de conci-
liação em Varas Cíveis, por exemplo, parecem meramente buro-
cráticos, que acontecem simplesmente porque, assim determina
o Código de Processo Civil, sem uma preocupação efetiva com o
entendimento das partes e com o consenso, ao contrário do que
sustenta o discurso institucional (MELLO; BAPTISTA, 2014).
Nesse raciocínio, a mediação se distingue da conciliação, pelo
fato de estar atrelada a findar conflitos nas mais diversas relações
sentimentais conflituosas, pois, as partes terão tempo para praticar
o diálogo e buscar o entendimento. Por outro lado, a conciliação,
que busca tão somente busca o acordo, as partes partem inicial-
mente de uma visão mais adversarial, depositando a confiança no
conciliador, que agirá de maneira ativa, com o objetivo de se chegar
num acordo que pode não atingir a paz social.
Em sendo assim, nota-se que o NCPC busca resgatar esta audi-
ência de conciliação, não só com a finalidade de por fim ao proces-
so, mas também, de se importar, de fato, com a questão subjetiva,
humana. Nesse norte, o NCPC disciplina que os tribunais criarão
centros judiciários de solução consensual de conflitos, responsáveis
pela realização de sessões e audiências de conciliação e mediação e

293
pelo desenvolvimento de programas destinados a auxiliar, orientar
e estimular a autocomposição (Art. 165. NCPC).
Desta forma, destaca-se que a definição aludida por Grinover
(2013) é pertinente, visto que na conciliação as tratativas voltam-se
diretamente ao problema – e não primeiramente ao relacionamento
interpessoal existente, como na mediação –, o que permite ao con-
ciliador sugerir diversas propostas de acordo.
Com a regulamentação da autocomposição de conflitos, a concilia-
ção no NCPC é mais completa e tende a ser mais eficaz, resguardando
princípios constitucionais, pois, passa a exigir profissionais especiali-
zados na condução da transação, profissionais estes que podem tra-
balhar o antagonismo existente entre as partes de forma direcionada.
Há distintos meios de composição de um conflito regulamenta-
dos pelo ordenamento jurídico brasileiro. Cabe às partes, em con-
junto com seus advogados, escolher o melhor meio para compor o
conflito, seja através da tutela jurisdicional, seja pela arbitragem,
ou ainda através das câmaras de conciliação e mediação disponí-
veis nos tribunais ou nas câmaras privadas.

4. Os princípios norteadores da mediação


de conflitos
A mediação para ser efetiva e alcançar o seu fim deve estar
pautada em uma série de princípios constitucionais, mas, também,
atrelada aos valores e culturas sociais. Dessa forma, ao se violar um
princípio, viola-se não só a norma disposta no ordenamento jurí-
dico, mas, também, a cultura e os costumes de um sistema social.
Sendo a forma mais grave de transgredir o valor moral instituído
numa sociedade (MELLO, 1980).
Neste sentido, segundo Vasconcelos (2014, p.119):

A mediação de conflitos não se dá à margem


dos princípios jurídicos. Os valores jurídicos mais
próximos, mais vinculados à mediação de conflitos,

294
são os que consubstanciam os Direitos Humanos.
Uma visitia a esses princípios fundamentais, cons-
titucionais e internacionais é requisito necessário
à formação dos mediadores. Do ponto de vista do
direito, os princípios fundamentam a criação e apli-
cação de todas as regras do ordenamento jurídico.

Ademais, a Lei nº13.140, de 26 de junho de 2015, que dispõe


sobre a mediação, definindo inicialmente este instituto e regula a
utilização deste na administração pública, in verbis:

Art. 1º.Esta Lei dispõe sobre a mediação como


meio de solução de controvérsias entre particula-
res e sobre a autocomposição de conflitos no âm-
bito da administração pública.

Parágrafo único. Considera-se mediação a ati-


vidade técnica exercida por terceiro imparcial sem
poder decisório, que, escolhido ou aceito pelas
partes, as auxilia e estimula a identificar ou desen-
volver soluções consensuais para a controvérsia.

Portanto, essa relação entre as partes e o mediador, deve estar


pautada em princípios. Deste modo, o Art. 2º da Lei 13.140/2015,
disciplina que “a mediação será orientada pelos seguintes princípios:
I – imparcialidade do mediador; II – isonomia entre as partes; III –
oralidade; IV – informalidade; V – autonomia da vontade das partes;
VI – busca do consenso; VII – confidencialidade; VIII – boa-fé.
Os princípios aqui citados pautarão as pessoas em litígio de
modo que elas possam tomar consciência da natureza social do
conflito e da possibilidade de se chegar a alternativas de resolução
dos mesmos com autonomia justamente porque tendo todos os as-
pectos explicitados e cognitivamente percebidos, os indivíduos pa-

295
recem capacitados a tomar decisões. É neste sentido que o conflito
é considerado positivo (BAPTISTA; MELLO, 2014).
Nota-se que o Estado regula tal instituto com a finalidade in-
corparar a mediação no processo civil, objetivando a diminuir a
judicialização dos conflitos e proporcionar a sociedade a cultura da
pacificação, desafogando desta forma o Poder Judiciário.

5. Da Comissão de Mediação e Arbritagem


(COMAR) da Universidade Iguaçu – UNIG
A Universidade Iguaçu - UNIG possui na Faculdade de Ciências
Jurídicas e Sociais Aplicadas (FaCJSA) o Centro de Formação Profis-
sional Dr. Paulo Fróes Machado (CFP), que incorpora as atividades
práticas do curso de Direito e Administração.
Com relação ao curso de Direito, o Centro de Formação Profis-
sional é organizado pelo Núcleo de Prática Jurídica (NPJ), órgão
acadêmico, que tem como um dos objetivos oferecer, aos alunos do
9º e 10º períodos, sempre acompanhado dos professores orientado-
res, a prática forense, mediante prestação de serviços de consulto-
ria, assessoria e assistência jurídica às pessoas que buscam o NPJ.
O NPJ, ao longo de suas atividades, tem procurado concentrar
seus esforços em dois pontos fundamentais:
a) O primeiro, atividade precípua, dando aos alunos uma vi-
são prática e eficiente da atuação do Advogado, preparando-o não
só tecnicamente, mas, sobretudo, fomentando a formação de uma
consciência profissional, visando ao sucesso de cada um e à melho-
ria da qualidade do advogado, e, conseqüentemente, da Justiça que
se procura distribuir com a prestação jurisdicional do Estado, sem
divorciar-se das questões éticas no trato com os assistidos.
b) O segundo, mas não menos importante, consiste em propor-
cionar um atendimento de qualidade às pessoas carentes, que, ao
procurar os serviços do NPJ, depositam, neste, talvez, as últimas
esperanças de solução para questões fundamentais de suas vidas.

296
Por essa razão, o atendimento deve ser feito, sempre, com cortesia,
competência, e, sobretudo, com carinho, como é feito habitualmente.
O NPJ possui três setores autônomos, que são: (1) Escritório de
Assistência Jurídica (ESAJUR); (2) Programa de Defesa do Consumidor
(PROCON/UNIG) e (3) Comissão de Mediação e Arbitragem (COMAR).

5.1. Breve relato do procedimento de


atendimento
Inicialmente, no NPJ, num primeiro momento, verifica-se se
o atendido preenche os requisitos para ser atendido, os quais são:
residência no município de Nova Iguaçu e renda de até três salários
mínimos. Sendo possível, indaga-se ao assistido sobre o desejo e a
possibilidade de realizar a mediação; existindo a vontade, agenda-
-se a data para mediação, convocando-se a outra parte. Nessa opor-
tunidade já é solicitada a documentação pertinente.
Cabe mencionar, que não há limites fixos ou prazos para que
ocorra o consenso, podendo a mediação durar mais de dois meses,
uma vez que o sistema não adversarial, ganha-ganha, não está di-
fundido na sociedade.
Caso a parte não deseje realizar a mediação, serão solicitados
os documentos necessários para a propositura da ação, nesse con-
texto, apesar da parte não ter optado pela mediação, ela é sempre
informada das vantagens que esta possui sobre o processo judicial.
Iniciada a mediação e não havendo o consenso, a parte retorna
ao atendimento do NPJ para a propositura da ação litigiosa.

5.2. Análise dos dados das mediações


realizadas no COMAR/UNIG
Os dados analisados e expostos a seguir são concentrados nos
três últimos períodos letivos, 2014.II; 2015.I e 2015.II, uma vez que
as atividades iniciadas no COMAR datam de 2014.II.

297
Em 2014.II, do número total de atendidos pelo NPJ, 36 optaram
por iniciar o procedimento de mediação. Desse total, 18 mediações
foram homologadas; em dez casos as partes optaram por demandar
judicialmente e em oito dos casos as partes convocadas desistiram.

Figura 1 - Mediações Núcleo Família e Cível Iniciadas em 2014.II.

Fonte: Autoria própria.

Ao analisar os dados, observa-se que no primeiro período em


que foi instituída pelo NPJ, o COMAR, teve um aproveitamento de 18
mediações positivas em 36, representando 50% dos casos atentidos.
Cabe Ressaltar que o núcleo de família atendeu 34 casos, já o
núcleo cível, dois. Ora, desses 34 casos, o núcleo de família teve 17
mediações positivas, onde as partes chegaram num consenso, evi-
denciando o êxito de 50%. Por outro lado, o núcleo Cível atendeu
dois casos, onde apenas em um deles foi possível a mediação (pac-
to de extinção de conflitos), equivalendo, também a 50% dos casos.

298
Figura 2 - Mediações Homologadas em 2014.II

Fonte: Autoria própria.

Com respeito as mediações homologadas, observa-se que o nú-


cleo de família foi responsável por 94%, onde 89%versaram sobre
divórcio e 5% de alimentos, tendo o núcleo cível com apenas 6%.
Em 2015.I, o COMAR iniciou o procedimento de mediação em
65 casos, representando um aumento de 71% com relação ao perío-
do de 2014.II. Aumento este, devido ao grande números de pessoas
que buscam a gratuidade de justiça, por não terem condições de
constituir advogado particular e, também, por ter a Defensoria Pú-
blica sobrecarregada para atender os anseios sociais.

299
Figura 3 - Mediações Iniciadas em 2015.I

Fonte: Autoria Própria.

O COMAR obteve aproveitamento de 54% dos casos mediados,


superando não só as taxas das mediações realizadas em 2014.II,
mas também, os números de casos, que foi de 35.
O núcleo de família iniciou a mediação em 58 casos, obtendo
um aproveitamento de, aproximadamente, 55%. Já no núcleo cível,
observa-se que das sete mediações iniciadas, três obtiveram suces-
so, representando, aproximadamente 42% de sucesso.
Analisando a figura 4, tem-se que das 35 mediações realiza-
das, 91% representam o núcleo de família e 9% o núcleo cível.
Ademais, 26 casos foram mediações sobre divórcio, equivalendo
74% das mediações homologadas e seis sobre alimentos, corres-
pondendo a 17% das homologações. Já no núcleo cível houve
duas ações relativas à cobrança e uma relativa a dano moral, re-
presentando, 6% e 3% respectivamente.

300
Figura 4 - Homologações das mediações em 2015.I

Fonte: Autoria própria.

No período de 2015.II, o COMAR iniciou o procedimento de me-


diação em 73 casos, sendo 69 relativos ao núcleo de família e quatro
ao núcleo cível. O sucesso na mediação ocorreu em 48 casos, repre-
sentando, aproximadamente, 66% dos casos mediados (figura5).

Figura 5 - Mediações Iniciadas em 2015.II

Fonte: Autoria própria.

301
Neste raciocínio, observa-se que 69 atendidos versavam sobre o
núcleo de família, enquanto quatro sobre o núcleo cível. Ainda in-
terpretando a figura 5, a taxa de aproveitamento da mediação foi de
67%, um aumento considerável em relação aos números absolutos,
pois foram 48 mediações realizadas frente a 35 do período anterior.
Mais uma vez o núcleo da família obteve destaque, represen-
tando, aproximadamente, 96% das mediações iniciadas, ao passo
que o núcleo cível apresentou 4%.

Figura 6 - Mediações Homologadas em 2015.II

Fonte: Autoria própria.

Das 48 mediações homologadas, 45 casos versavam sobre di-


vórcio (94% dos casos), apenas um caso de alimentos (2% dos
casos) e o núcleo cível com apenas 4%, correspondendo a duas
homologações sobre título executivo extrajudicial.
Por fim, o núcleo de família representa 91% das decisões ho-
mologadas e, consequentemente, o núcleo cível, 9%. No âmbito da
família, 74% das mediações homologadas versavam sobre divórcio e
17% sobre alimentos. No que diz respeito ao núcleo cível, 3% com
relação ao dano moral e 6% sobre ação de cobrança. Observa-se o
núcleo de família representa mais de 90% das decisões homologa-
das, enquanto no âmbito do direito civil sequer se chega aos 10%.

302
6. Conclusão
Com base em todo o exposto, pode-se concluir que o Novo Có-
digo de Processo Civil (NCPC) permite que as partes interessadas
construam a melhor solução para o conflito, através do diálogo
e do empoderamento social. Tendo a necessidade de analisar o
conflito sob a perspectiva positiva.
Ademais, com a regulamentação da Lei de Mediação e o ad-
vento do NCPC, instaurou-se a possibilidade de que as partes bus-
quem a qualquer tempo a resolução consensual do conflito, tanto
pela via judicial, como pela extrajudicial.
Dessa forma, é primordial que os meios de solução consensual
de conflitos principalmente, a conciliação e mediação, sejam estu-
dados e compreendidos por todos que integram o processo, além de
que a capacitação orientada e fiscalizada pelo CNJ seja exercidada
de fato, a fim, sempre, de garantir a satisfação da sociedade.
Neste sentido, é relevante o trabalho realizado pelo COMAR/
UNIG. Desde o período de 2014.II até 2015.II, o número de media-
ções realizadas subiu de 36 para 73, representando um aumento 37
casos (102%).
Cabe ressaltar que dentre as 101 mediações homologadas durante
o período citado, 95 versavam sobre o direito de família (94%) e seis
sobre o direito civil (6%). O número de divórcios homologados foi
de 87 ( 86%), indicando a preferência de uma parcela da sociedade
iguaçuana de utilizar a mediação para compor os conflitos de família.
Ainda com relação à atuação da UNIG, é primordial o trabalho
que os docentes e os discentes do núcleo de Direito e os funcio-
nários do NPJ realizam na atividade prática, salientando a função
social que a COMAR/UNIG possui no município de Nova Iguaçu.
Por fim, espera-se que com o advento do NCPC o processo se
torne mais célere, porém, sem perder a qualidade jurisdicional.
Ademais, que os Cursos de Direito possam prestar esse serviço de

303
mediação à sociedade, fomentando não só a pesquisa, mas tam-
bém, o desenvolvimento social e democratizando o acesso à justiça.

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ponivel em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/
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pública. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_
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novo Código de Processo Civil. Disponível em: <http://www.
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rativas. 3. ed. São Paulo: Método, 2014.

305
A TRA NS FORMAÇÃO DAS R E LA Ç ÕE S
DE TRABALH O NA ATUALIDA D E
LUIZ EDUARDO DA SILVA PINTO82

1 Introdução
O tema pesquisado aborda a terceirização no Direito do Tra-
balho, efetivamente nas ultimas três décadas, enfatizando o seu
aparecimento e a incorporação como estratégia empresarial.
Justifica-se a escolha do tema fruto da sua relevância como hi-
pótese de intermediação de mão-de-obra, ou seja, exceção permiti-
da e admitida pelo ordenamento jurídico.
Por outro lado, o instituto sobre analise foi introduzido visando
a otimização de rotinas, diminuição dos gastos com pessoal, e espe-
cialização da atividade preponderante ou fim da empresa.
Diante desse contexto há necessidade de se investigar a reper-
cussão da sua implementação, desdobramentos e adequações jurí-
dicas que se fizeram necessários. De forma geral, investiguei não só
com a introdução do instituto, assim como com a sua permanência
em nosso ordenamento jurídico, os esforços implementados foram
suficientes para que se mantivesse a integridade e dignidade do tra-
balhador que deve sempre nortear o direito do trabalho alicerçados
pelos princípios, legislação e entendimentos dos nossos tribunais.
Além disso, pretende avaliar o fenômeno da globalização dentro
do contexto socioeconômico e sua influencia na sistemática de con-
tratação mencionada. Diante disso, será abordado o desenvolvimento

82. Professor da Universidade Estácio de Sá; Mestre em Direito na Universidade Cató-


lica de Petrópolis; e-mail. [email protected]; telefone (21)99677-0070

307
histórico, em seguida o surgimento do Instituto, os aspectos relevan-
tes da Terceirização, evolução legislativa e seus desdobramentos, com
base nos aspectos doutrinário, legal e jurisprudencial, demonstrando
as transformações efetivamente ocorridas de forma a privilegiar o
acesso a justiça respaldado no melhor interesse social e jurídico

1.1 Desenvolvimento histórico


Desde que o mundo existe, nós seres humanos lutamos pela
nossas necessidades. Sabemos que com o passar do tempo essas
necessidades foram aumentando as fontes de riqueza passaram a
ficar cada vez mais nas mãos de uma minoria, enquanto a maioria
esmagadora se via obrigada a se submeter a condições adversas só
realmente mudando a época, a sociedade.
Todo esse discurso tem o objetivo de traçar uma linha do tempo e
ilustrar a trajetória das nossas sociedades e seu processo de evolução.
Um dos grandes marcos a ser menciona sem sombra de duvidas
é a Revolução Industrial. Observou-se a evolução dos tempos com
a chegada da maquina e o progresso trazendo prosperidade e acen-
tuando em contrapartida desigualdades sociais.
A principal característica da mutação mental que ocorreu no
século XVII foi a afirmação do homem como sujeito que represen-
ta a realidade, seu objeto.
Isso implicou a valorização do elemento fundamental desse
sujeito: aquilo que faz do homem, um ser inteligente - a Razão foi
a época do Racionalismo de Descartes.

Essa principal característica da mutação men-


tal do século XVII implicou a compreensão da
Natureza, do Universo, como coisas mutáveis,
em constante movimento. E o século XVIII deu
continuidade a essa concepção do Retomando a
revolução industrial, enfatizamos que as mudan-
ças que ocorreram nos séculos XVIII e XIX, tendo

308
com peculiaridade a substituição da mão-de-obra
artesanal pelo assalariado aliado a utilização das
maquinas. (AQUINO et al, 1978, p. 114)

Há que se destacar que o processo produtivo era dominado


pelos denominados artesãos que se aglomeravam no campo, até
os idos do século XVIII.
Nesse contexto, França e Inglaterra grandes potencias, possu-
íam as chamadas manufaturas, ou seja, grandes oficinas de pro-
cessamento manual, onde laboravam os artesãos subordinado ao
proprietário da manufatura.
O direito do trabalho é produto do capitalismo, atado ao de-
senvolvimento histórico desse sistema, retificando lhe distorções
econômicas-sociais e civilizando a importante relação de poder que
sua dinâmica econômica cria no âmbito da sociedade civil, em es-
pecial no estabelecimento da empresa. (GODINHO, 2008)
Contudo, o direito do trabalho não apenas serviu ao sistema
econômico desenvolvido com a Revolução Industrial, no século
XVIII, na Inglaterra. Na verdade, ele fixou controles para esse sis-
tema, conferiu-lhe certa medida de civilidade, inclusive buscando
eliminar as formas mais perversas de utilização da força de trabalho
pela economia. (GODINHO, 2008)

1.2 Surgimento do Instituto - A


mutabilidade das relações de trabalho
Antes mesmo do aprofundamento da abordagem da terceiriza-
ção, frise-se que muito embora tenhamos várias teorias a respeito
do surgimento da globalização o fato é que a partir da década de
1990, foi impulsionado por uma serie de fatores.
O Fundo Monetário Internacional (FMI) identificou quatro as-
pectos básicos da globalização83: comércio e transações financeiras,

83. The Future of Globalization. O artigo completo, em inglês, pode ser lido em http://
gwrussell.nfshost.com/home/writing/writing/future.html. Acessado em 10/12/2013.

309
movimentos de capital e de investimento, migração e movimento
de pessoas e a disseminação de conhecimento.
A globalização trouxe, sem sombra de dúvidas, uma maior in-
tegração da nossa sociedade. Também é verdade que o fator econô-
mico está e sempre esteve intimamente ligado ao tema em questão.
Indubitavelmente a economia mundial está interligada, atrelada
as intercorrências, as ações governamentais implementadas, eviden-
ciando tanto a robustez, assim como as fragilidades dos sistemas.
É dentro desse panorama que as empresas perceberam que a
redução de custos, otimização de rotinas, e especialização seria ine-
vitável para consecução dos seus objetivos e manutenção dentro de
um mercado cada vez mais competitivo.
Isso deve-se a forma como foram implementadas as mudanças,
reflexo de oscilações econômicas e adequações necessárias.
Desse modo, tornou-se inevitável ações visando acompanhar
e adaptar as necessidades exigidas pelo sistema capitalista, ade-
quando-as a realidade das sociedades.
Visando uma maior competitividade no mercado, a interme-
diação de mão-de-obra apareceu numa clara tentativa de adequa-
ção a realidade econômica e social trazendo com isso fatalmente
uma serie de consequências.
Logico que as adequações não se tratavam somente do lado
comercial, havia a necessidade de adaptação jurídica para ampa-
rar a nova realidade que emergia.
Nesse contexto, alguns ingredientes contribuiriam para a grande
preocupação com a nova sistemática. Sabemos que a desigualdade
social, o desemprego são fatores alarmantes dentro de uma sociedade.
Certamente o poder judiciário não poderia ficar de fora de todas es-
sas mudanças sendo basicamente obrigado a admitir outras hipóteses
de contratação dentro do contexto da intermediação de mão-de-obra.

310
2.0 Aspectos Relevantes da Terceirização
Após a explanação do surgimento do instituto, adentrarei aos
aspectos conceituais e legais do tema proposto. Inicialmente, apre-
sentando os conceitos dos autores festejados abaixo.
Segundo a Professora Volia Bonfim,

Terceirização é a relação formada entre traba-


lhador, intermediador de mão de-obra (emprega-
dor aparente, formal ou dissimulado) e o tomador
de serviços (empregador real ou natural), caracte-
rizada pela não coincidência do empregador real
com o formal. (BONFIM, 2008,p.492).

Também merece destaque a definição conceitual de Mauricio


Godinho in verbis:

Terceirização é o fenômeno pelo qual se dis-


socia a relação econômica de trabalho da relação
justrabalhista que lhe seria correspondente. É o
mecanismo jurídico que permite a um sujeito de
direito tomar serviços no mercado de trabalho sem
responder, diretamente, pela relação empregatícia
estabelecida com o respectivo trabalhador.(GODI-
NHO, 2008,p.430)

Prosseguindo, farei uma breve exposição e transposição para


fins de sequencia logica e cronológica sem que se perca de vista
o foco principal.
Em regra vigora a contratação realizada diretamente entre
empregado e empregador. Sem duvida era esse o pensamento do
legislador se coadunando com o principio da proteção evitando a
burla a legislação.

311
Durante muito tempo a única hipótese de contração diferen-
ciada da regra foi justamente a subempreitada. Nesse sentido, en-
fatizamos que a terceirização pode ser divida em permanente ou
temporária; atividade fim ou meio, regular ou irregular e voluntária
ou obrigatória, ligadas as Leis 6019/74 e 7102/83. (BONFIM, 2008)
Por outro lado acrescente-se a esse rol o entendimento Godi-
nho que adiciona a classificação mencionada à terceirização licita
e ilícita (Godinho 2008, p.440).
A terceirização permanente ou temporária está vinculada ao
período de duração, demanda acidental ou continua.
No que toca a atividade meio ou fim, relaciona-se aos serviços
prestados em relação a atividade do tomador, que pode ser por
exemplo para substituição de mão-de-obra de pessoal regular e per-
manente, conforme as Leis 6019/74 e 7102/83.
No que concerne a voluntária ou obrigatória relaciona-se dire-
tamente com os serviços prestados por vigilantes, amparados pela
Lei 7102/83.
Para uma melhor elucidação dos pontos que merece e sempre
mereceu atenção, finalizarei com a classificação da regularidade
ou irregularidade.
A classificação apontada diz respeito justamente a prestação
dos serviços direcionados a atividade meio ou fim do tomador e as
consequências pela inobservância da previsão legal.
Dai porque os autores divergirem eventualmente na nomencla-
tura, sem contudo deixar de apontar a licitude se amparada em
virtude de lei ou ausentes os requisitos do artigos 2º e 3º da Con-
solidação das Leis Trabalhistas (CLT). Ou ainda, conforme Godinho
(2008), se relacionadas a previsão da sumula 331 do TST ou se afas-
tada desta para caracterizar a licitude ou ilicitude da contratação.
Outrossim, é de bom alvitre mencionar que a administração
publica não é defesa a contratação de empresa interposta, contudo,
não há possibilidade de formação de vinculo nos moldes do art.3º,

312
por total afronta ao art.37 da Constituição Federal84 que veda o in-
gresso na administração publica sem concurso publico.

2.1 Evolução Legislativa e Seus


Desdobramentos
Acabamos de relacionar os aspectos relevantes da terceirização.
Percebemos que algumas leis foram os embriões e até hoje perma-
necem em nosso sistema, acrescido do entendimento do TST.
Como mencionado anteriormente, durante muito tempo a única
hipótese de contração diferenciada da regra foi a subempreitada.
Vólia Bonfim (2008) salienta tal hipótese ressaltando o art.455 da
CLT que aduz justamente sobre o tema. Alias, primeira hipótese legal
versando sobre terceirização e a responsabilidade do contratante.
Menciona ainda a autora o decreto 200/67 em seu art.10º, pa-
ragrafo 7º como forma de incentivo a descentralização da adminis-
tração publica. Contudo só regulamentado pelo art.3º, paragrafo
único da lei 5645/70 (revogado pela Lei 9527/97)
Timidamente, a terceirização foi ganhando forma e o setor privado
também cedeu a nova forma de contratação. Surgiu então a Lei 6019/74
(trabalho temporário) e 7102/83 (vigilantes), restritos em seus efeitos.
À época, como eram bastante restritas as hipóteses de terceiriza-
ção, sobreveio então a edição da sumula 256 do TST, que versava sobre
o contrato de prestação de serviços e sua legalidade, aduzindo somente
a possibilidade das leis mencionadas sem o que formaria o vinculo di-
retamente com o tomador dos serviços, sumula atualmente cancelada.
É de suma relevância mencionar que a Lei 6019/74, basica-
mente precursora sobre o tema, limitando-se a contratos de curta
duração, mais especificamente, por três meses prorrogáveis por
mais três, com a devida autorização pelo órgão responsável, para

84. Para leitura na integra do Artigo 37 da Constituição Federal: http://www.sena-


do.gov.br/legislacao/const/con1988/CON1988_13.07.2010/art_37_.shtm. Acessado
em 10/12/2013.

313
atender as hipóteses de acréscimo extraordinário ou substituição
de pessoal regular e permanente.
A já anteriormente citada lei 7102/83 tinha como foco os traba-
lhadores da categoria dos bancários. Fica claro que existiu um lapso
temporal de aproximadamente 10 anos entre uma lei e outra, até a
promulgação da Constituição Federal em 1988, que vedou qualquer
hipótese de reconhecimento de vinculo com a Administração Publi-
ca sem concurso publico, insculpido no art.37.
Além das citações acima, convém também fazer alusão ao
art.442 paragrafo único da CLT acrescida pela Lei 8949/94, tratan-
do das cooperativas e que segundo Godinho (2008): “O objetivo da
regra teria sido o de retirar do rol das relações empregatícias pró-
prias as cooperativas – desde que não comprovada a roupagem ou
utilização meramente simulatória da tal figura jurídica”.
Godinho (2008), muito oportuno sintetiza a mens legis ao pro-
nunciar apenas um favorecimento da ordem a pratica cooperativis-
ta, que envolve produtores e profissionais efetivamente autônomos,
criando em favor dessas entidades, a presunção de ausência de vin-
culo empregatício, sem afastar as possíveis e eventuais fraudes.
Posteriormente adveio a Lei 8036/90 que versa sobre o Fundo
de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) e tentou reunir as figuras
conceitualmente de empregado e empregador nos moldes relação
de emprego típica e trilateral. Mais precisamente em seu artigo 15,
parágrafo 1º in verbis:

§ 1º Entende-se por empregador a pessoa física


ou a pessoa jurídica de direito privado ou de direito
público, da administração pública direta, indireta
ou fundacional de qualquer dos Poderes, da União,
dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios,
que admitir trabalhadores a seu serviço, bem assim
aquele que, regido por legislação especial, encon-

314
trar-se nessa condição ou figurar como fornece-
dor ou tomador de mão-de-obra, independente da
responsabilidade solidária e/ou subsidiária a que
eventualmente venha obrigar-se.

Dando prosseguimento a Lei 8212/91trata do custeio da previ-


dência social também faz menção em seu art.31 e seu paragrafo 1º
ao ressaltar a retenção do percentual de 11% do valor bruto da nota
em relação a a cessão de mão-de-obra incluindo o trabalhador tem-
porário, vigilância e segurança, limpeza, conservação e zeladoria.
Em 1993, foi editada a sumula 331 do TST diante de um cená-
rio de retração do mercado de interação universal sob a influencia
da globalização.
No sentido de firmar um entendimento sobre a terceirização,
hipóteses e responsabilidades, o TST editou e se posicionou afim
de contextualizar de forma clara no sentido de dirimir eventuais
duvidas e interpretações equivocadas.
Pela leitura da aludida sumula, percebe-se nitidamente que
a intenção da corte foi justamente limitar e delimitar o tema ao
afirmar a questão da intermediação da mão-de-obra, hipótese de
legalidade ou ilegalidade, tendo como consequência a formação
do vinculo com o tomador dos serviços, salvo quando se tratar da
Administração Publica Direta ou Indireta.
Além, disso, alude da mesma forma a questão da responsabili-
dade pelo inadimplemento das obrigações salientando a obrigação
subsidiaria do tomador do serviço.
Aliás, o próprio TST se posicionou no sentido da necessidade
de comprovação da culpa ou dos cuidados devidos para responsa-
bilização da Administração Pública em recente manifestação que
será abordada a seguir.

315
2.2 O ENTENDIMENTO DO TST
Primeiramente, deve ser mencionada a hipótese anteriormente
aludida, ou seja, da subempreitada que na realidade foi a primei-
ra previsão legal registrada tratando sobre o tema terceirização de
mão-de-obra elencado no art. 455 da CLT.
Para tanto, transcrevo abaixo decisão sobre o tema para ratificar
o posicionamento sobre a contratação e responsabilidade in verbis:

EMPREITEIRO PRINCIPAL. SUBEMPREITEI-


RO. RESPONSABILIDADE
Não há dúvida de que o empreiteiro principal
e o subempreiteiro se beneficiam do esforço la-
boral do Reclamante, que representa o elo mais
frágil desta negociação entre as empresas. As-
sim, a responsabilidade solidária do primeiro se
impõe, diante da interpretação que se faz do dis-
posto no art. 455 da CLT, que caracteriza como
co-responsável o empreiteiro principal pelos cré-
ditos dos empregados do subempreiteiro. Recurso
de revista de que se conhece parcialmente e não
provido. (TST-RR 4612648519985125555 461264-
85.1998.5.12.5555- João Oreste Dalazen- DJ
05/04/2002.)

Por outo lado, também versando sobre o tema contrato de em-


preitada e responsabilidade a OJ 191 da SDI ITST preconiza a forma
de responsabilização pelo contratante senão vejamos:

Diante da inexistência de previsão legal especí-


fica, o contrato de empreitada de construção civil
entre o dono da obra e o empreiteiro não enseja
responsabilidade solidária ou subsidiária nas obri-
gações trabalhistas contraídas pelo empreiteiro,

316
salvo sendo o dono da obra uma empresa constru-
tora ou incorporadora.

RECURSO DE REVISTA - RESPONSABILIDA-


DE SOLIDÁRIA - CONTRATO DE EMPREITADA
E SUBEMPREITADA.
Consignada pelo Tribunal Regional a existência de
relação de empreitada e subempreitada, a responsa-
bilidade do empreiteiro principal pelas obrigações do
subempreiteiro é a solidária, nos termos do art. 455
(RR 8876920105010037 887-69.2010.5.01.0037-Rela-
tor-ValdirFlorindo-2ª Turma-julgamento 04/09/2013)

Ementa: AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECUR-


SO DE REVISTA. CONTRATO DE EMPREITADA E
SUBEMPREITADA. RESPONSABILIDADE SUBSI-
DIÁRIA. Demonstrado no agravo de instrumento
que o recurso de revista preenchia os requisitos
do art. 896, c, da CLT, quanto à responsabilidade
da empresa subempreiteira, dá-se provimento ao
agravo de instrumento, para melhor análise da ar-
guição de violação do art. 455 da CLT , suscitada
no recurso de revista. Agravo de instrumento pro-
vido. RECURSO DE REVISTA. 1) CONTRATO DE
PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS DE EMPREITADA.
FORNECIMENTO DE MÃO-DE-OBRA ESPECIA-
LIZADA EM PINTURA. AUSÊNCIA DE VÍNCULO
EMPREGATÍCIO COM A TOMADORA DE SERVI-
ÇOS. OJ 191/SBDI-I/TST. SÚMULA 331, III, DO
TST. SÚMULA 126/TST. As situações - tipo de
terceirização lícita estão, hoje, claramente assen-
tadas pelo texto da Súmula 331/TST. Constituem
quatro grupos de situações sócio jurídicas delimi-
tadas: a) situações empresariais que autorizem

317
contratação de trabalho temporário; b) atividades
de vigilância regidas pela Lei 7.102 /83; c) ativi-
dades de conservação e limpeza; d) serviços es-
pecializados ligados à atividade-meio do tomador;
desde que, nas três últimas situações-tipo, inexista
pessoalidade e subordinação direta entre trabalha-
dor terceirizado e tomador de serviços. Outrossim,
nas hipóteses de empreitada para contratação de
serviços ligados à construção civil, esta Corte en-
tende que, -diante da inexistência de previsão legal
específica, o contrato de empreitada de construção
civil entre o dono da obra e o empreiteiro não en-
seja responsabilidade solidária ou subsidiária nas
obrigações trabalhistas contraídas pelo empreiteiro,
salvo sendo o dono da obra uma empresa constru-
tora ou incorporadora-, conforme o teor da OJ 191/
SBDI-I/TST. No caso concreto , o Tribunal Regional
consignou que a tomadora de serviços (MOINHO
PACÍFICO INDÚSTRIA E COMERCIO LTDA) é em-
presa do ramo alimentício, tendo contratado , em
regime de empreitada , a empresa BUHLER. Esta,
por sua vez, realizou contrato de subempreitada.
Dono da obra. Acidente de trabalho. Indeni-
zação por danos morais, materiais e estéticos.
Pretensão de natureza civil. Orientação Juris-
prudencial nº 191 da SBDI-I. Não incidência.
Envolvimento na execução dos serviços. Omis-
são em relação à segurança do ambiente labo-
ral. Culpa comprovada.
A aplicação da Orientação Jurisprudencial nº
191 da SBDI-I tem sua abrangência restrita às
obrigações trabalhistas não alcançando pleitos de
indenização por danos morais, estéticos e mate-
riais decorrentes de acidente de trabalho na me-

318
dida em que apresentam natureza civil, oriundos
de culpa por ato ilícito (arts. 186 e 927, “caput”,
do Código Civil), não constituindo, portanto, ver-
ba trabalhista “stricto sensu”.
Ainda que assim não fosse, o quadro fático de-
lineado nos autos revelou o envolvimento do dono
da obra na execução dos serviços contratados e no
desenvolvimento das atividades do reclamante, bem
como a culpa pelo acidente que vitimou o trabalha-
dor, ante a comprovada omissão em relação à segu-
rança do ambiente laboral, atraindo, assim a respon-
sabilidade solidária pelo pagamento das indenizações
pleiteadas. (TST-E-RR-9950500-45.2005.5.09.0872
SBDI-I, rel. Min. Augusto César Leite de Carvalho,
22.11.2012 -Informativo nº 31)
Terceirização ilícita. Configuração. Emprega-
do contratado por empresa especializada em vi-
gilância e transporte de valores. Exercício de ati-
vidades tipicamente bancárias. Reconhecimento
do vínculo de emprego. Súmula nº 331, I, do TST.
Configura terceirização ilícita a utilização por
instituição financeira de empregados contratados
por empresa especializada em vigilância e trans-
porte de valores para a prestação de serviços di-
ários de tesouraria, in casu, o recebimento, aber-
tura, conferência de conteúdo e encaminhamento
de envelopes recolhidos em caixas eletrônicos,
na medida em que tais atribuições se relacionam
com a atividade fim dos bancos.
Adotando essa premissa, a SBDI-1, por una-
nimidade, conheceu do recurso de embargo por
contrariedade à Súmula nº 331, I, do TST e, no
mérito, deu-lhe provimento para restabelecer a
sentença que reconheceu o vínculo de empre-

319
go diretamente com o banco-reclamado. TST-E-
-RR-2600-75.2008.5.03.0140, SBDI-I, rel. Min. Au-
gusto César Leite de Carvalho, 6.9.2012. (Informa-
tivo nº 21)

Finalmente, é de suma importância salientar que recentemente o


STF estabeleceu novo posicionamento em relação a sumula 331 do TST.
Na Ação Declaratória de Constitucionalidade- ADC nº16 declarou
a constitucionalidade do art.71 da Lei 8666/93 o qual estabelece que:

§1º - a inadimplência dos encargos trabalhis-


tas, fiscais e comerciais pelo contratado não trans-
fere à Administração Pública a responsabilidade
pelo seu pagamento.

Com esse posicionamento da Corte Suprema, ao examinar a


redação anterior da sumula 331 em seu item IV, nota-se que a
redação era contraria ao entendimento do STF esposado após o
julgamento em comento.
Nesse diapasão, parecia inevitável um novo posicionamento
do TST no sentido de adequar-se ao novo entendimento e assim
como era esperado, tal hipótese não tardou a ocorrer.
Houve então o pronunciamento do TST acerca do tema editan-
do o item V da sumula 331, transcrita na integra:

V - Os entes integrantes da administração públi-


ca direta e indireta respondem subsidiariamente,
nas mesmas condições do item IV, caso eviden-
ciada a sua conduta culposa no cumprimento das
obrigações da Lei nº 8.666/93, especialmente na
fiscalização do cumprimento das obrigações con-
tratuais e legais da prestadora de serviço como
empregadora. A aludida responsabilidade não

320
decorre de mero inadimplemento das obrigações
trabalhistas assumidas pela empresa regularmente
contratada.

É importante pontuar que a alteração se refere diretamente na


questão da responsabilização da Administração Publica, desde que
comprovada, ou seja, investigada se houve ou não conduta compro-
vada de culpa no cumprimento das obrigações da Lei nº 8.666/93,
especialmente na fiscalização do cumprimento das obrigações con-
tratuais e legais da prestadora de serviço como empregadora.
Contudo, as alterações da sumula mencionada não pararam
por ai, tendo em vista o acréscimo do item VI que versa sobre a
responsabilidade do tomador quanto as verbas condenatórias, in
verbis: “VI - A responsabilidade subsidiária do tomador de servi-
ços abrange todas as verbas decorrentes da condenação referentes
ao período da prestação laboral”.
É notório que o TST procurou esgotar em sua edição e ree-
dição, qualquer duvida ou equivoco, assim como adequar-se ao
novo posicionamento da Corte Suprema.

Considerações Finais
Após a realização deste trabalho, é possível, diante da analise
do tema, compreender que os fatos sociais influenciaram e influen-
ciam sem sombra de duvidas o nosso cotidiano.
Aliás, nas últimas três décadas muitos foram os avanços tec-
nológicos e científicos que acabaram influenciando as relações de
trabalho levando as empresas a uma adequação de uma realidade
forçadamente para se manter dentro do mercado cada vez mais
exigente e competitivo.
É nesse contexto que se desenvolveu a terceirização da mão-
-de-obra, ou seja, a intermediação de empresa interposta para
consecução de serviços especializados. Introduzida em nosso sis-

321
tema pelas necessidades das empresas, na otimização das suas,
rotinas, redução dos custos e especialização.
Nota-se que vários fatores contribuíram para que o instituto
nascesse e sobrevivesse em razão do dinamismo da sociedade e
em contrapartida a necessidade de regulamentação de uma nova
sistemática de contratação.
Como citado ao longo de toda exposição, o fator econômico foi
preponderante para essa nova realidade desde os primórdios e mais
precisamente com a revolução industrial em todas as suas fases.
Indubitavelmente que as desigualdades sociais foram acentua-
das e há uma tentativa através do judiciário trabalhista de se man-
ter atento aos rumos das transformações sem perder de vista os
objetivos que sempre o norteou.
Nesse contexto constata-se que há edição e reedição de posiciona-
mentos e frequentes decisões reiterando as bases do instituto no sen-
tido de acompanhar a mutabilidade social e evitar que as mudanças
possam retroceder aos direitos sociais tão arduamente conquistados.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AQUINO, R; ALVARENGA, F.; FRANCO, D. e LOPES, O. História das
Sociedades. Rio de Janeiro, Ao Livro Técnico, 1ª ed., 1978.
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planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del0200.html

BRASIL, Constituição (1988).. Constituição da República Federa-


tiva, do Brasil. disponível em www.planalto.gov.br/ccivil_03/
constituicao/constituicao.html

BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Orientação Jurispruden-


cial 193. SDI I TST

disponivel em www3.tst.jus.br/jurisprudencia/OJ_SDI_1/n_s1_181.
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322
BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Enunciado 331 – Contrato
de Prestação de Serviços

CASSAR, Vólia Bomfim. Direito do Trabalho.2ª ed., Rio de Janeiro:


Impetus,2008.

CLT - Decreto-Lei 5.452 de 1º de maio de 1943, disponível em:


www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del5452.htm‎

CUSTEIO DA PREVIDÊNCIA SOCIAL – Lei 8212/91 disponível em:


www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8212cons.htm‎

DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho.7ª


ed., São Paulo : LTr,2008.

FGTS–Lei 8036/90 disponível em: www.planalto.gov.br/ccivil_03/


leis/l8036consol.html

LICITAÇÕES-Lei 8666/93 disponível em : www . planalto . gov . br


/ ccivil _ 03 / leis / l8666 cons.html

TEMPORÁRIO - Lei 6019/74 disponível em: www.planalto.gov.br/


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SEGURANÇA BANCARIA- Lei 7102/83 disponível em: www.planal-


to.gov.br/ccivil_03/leis/l7102.html

323
324
O DESAFIO DO ADVOGADO N A
MEDI A ÇÃO À LU Z DO NOVO C ÓD IGO
DE PROCESSO CIVIL
Márcia dos Santos Pimentel Nunes85 e Maria Cristina Ribeiro
Dantas86

1. INTRODUÇÃO
O atual modelo de monopólio estatal não mais atende aos fins a
que se destinam, isto é,  não tem capacidade operacional de atender
de modo satisfatório aos jurisdicionados, haja vista as dificuldades
quantitativas e qualitativas enfrentadas pelos nossos tribunais, que
se revelam pelos inúmeros processos que se acumulam nas estantes
de suas Secretarias, e não obstante a isso a  longa duração para o
julgamento das demandas que lhes são apresentadas,  e, por conse-
guinte, a ineficácia para o cumprimento de suas  sentenças.
Os tribunais têm uma carga excessiva de processos a julgar. E a
solução de conflitos através da negociação, mediação ou arbitragem
é uma ótima alternativa para garantir que as disputas não cheguem
ao Judiciário e se solucionem de forma mais justa, célere e eficiente.
E, por isso, o Estado está apostando em políticas e regras para
aperfeiçoar a resolução dos conflitos e, sobretudo, agilizar o fluxo
dos processos judiciais. No Brasil, se sobressai a implementação de
uma Política Judiciária Nacional voltada ao devido tratamento dos
conflitos de interesse através da Resolução 125/2010 do CNJ (Conse-

85. Bacharel de Direito pela Universidade . Especialista em Direito do Trabalho;


86. Bacharel em Direito pela Universidade Estácio de Sá.

325
lho Nacional de Justiça), o reconhecimento da jurisdição arbitral e a
acessão do emprego de métodos de solução consensual de conflitos
por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério
Público, inclusive no curso do processo judicial pelo Novo Código de
Processo Civil, a Lei 13.105/2015, que alterou a Lei da Arbitragem e
a Lei 13.140/2015, que regulamenta a mediação entre particulares e
a auto composição de conflitos no âmbito da Administração Pública.
Para o efetivo acesso à Justiça, a partir da análise das teorias de-
fendidas por Cappelletti e Garth, destacamos a mediação como meio
alternativo de solução de conflito, cujos atores que a manejam são
considerados facilitadores do diálogo e denominados mediadores.
Com efeito, a mediação é um meio não adversarial que busca o
reestabelecimento do diálogo entre os mediados, dando a eles maior
independência na solução de seus anseios e interesses, pois não depen-
dem de um terceiro para definir o que é bom ou ruim sobre determina-
do aspecto de grande relevância para sua história, mas sim de pessoas
que agem como facilitadores e colaboradores para que eles cheguem a
um consenso com base em suas próprias autonomias de vontade.
Todavia, a mediação não é aceita por todos. Há quem considere
haver negação de acesso ao poder judicial, desvantagens aos hipos-
suficientes, sem falar na possibilidade real da sua institucionaliza-
ção87 e da obrigatoriedade de submissão ao método88.
Em particular, a mediação é fundamentalmente um método ex-
trajudicial para solução de conflitos. As partes envolvidas num pro-
blema devem espontaneamente procurar a mediação para resolvê-
-lo se acaso não o conseguem por si sós.

87. Cf.PAUMGARTTEN, Michele; PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. Side-Effects


of the Growing Trend towards the Institutionalization of Mediation. Panorama of Bra-
zilian Law, v.1, p.173-186, 2013.
88. Cf.PAUMGARTTEN, Michele; PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. Mediação obri-
gatória: um oximoro jurídico e mero placebo para a crise do acesso à justiça. In:SOARES,
Fabiane Verçosa; MUNIZ, Joaquim Paiva; PANTOJA, Fernanda: ALMEIDA, Diogo As-
sumpção. Arbitragem e mediação: temas controvertidos. Rio de Janeiro: Forense, 2014; e
PAUMGARTTEN, Michele. O futuro da mediação na Itália após a decisão da Corte Cons-
titucional da República. Revista Eletrônica de Direito Processual, v.XI, p.404-419, 2013.

326
O mediador, mediante técnicas que buscam a paz entre os in-
divíduos, ajudará na abertura dos caminhos que promovem a dis-
cussão, a fim de que os próprios envolvidos no conflito se esforcem
para a sua solução, de comum acordo, contribuindo assim para a
preservação de relacionamentos que precisam ser mantidos, e para
a composição da matriz de uma justiça coexistencial.
É certo que a mediação não serve para solucionar qualquer con-
flito, tampouco para resolver a crise do Judiciário89. Pois, cada di-
lema possui características distintas, sendo o primeiro desafio para
solucioná-los o de justamente encontrar a forma mais adequada
dentre as várias opções que a sociedade disponibiliza.
No que tange o acesso à justiça, com fulcro na mediação, o
papel colaborativo do advogado muito se fará necessário, como na
esfera judicial, inclusive nos conflitos inevitavelmente submetidos
ao Estado-Juiz, como na extrajudicial, com a participação direta
dos mediados e mediadores, em especial quando da elaboração dos
acordos, e, por obvio, nos procedimentos de homologação judicial
dos respectivos acordos advindos da mediação extrajudicial.
E, por isso, o presente trabalho visa delinear a função do advogado
como figura essencial nos procedimentos da mediação, enquanto meio
alternativo de solução de conflitos e instrumento de acesso à Justiça,
atuando ao lado dos mediadores, em que pese a sua formação acadê-
mica de natureza adversarial que decorre do exercício da advocacia.
Não à toa, a Constituição da República Federativa do Brasil de
1988 erigiu a profissão do Advogado como indispensável à adminis-
tração da justiça, nos termos do seu artigo 133.
Inclusive, o artigo 48, e seus parágrafos 4º e 5º, do novel Códi-
go de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB
- (Resolução N. 02/2015), dispõe sobre os honorários advocatícios
nos meios alternativos de solução de conflito.

89. MEIRELLES, Delton Ricardo Soares; MATOS, Eneas de Oliveira (Org.). Acesso à
justiça. Florianópolis: Funjab, 2012, p.370-397.

327
Tanto sob a ótica da jurisdição como para os procedimentos ex-
trajudiciais, cumpre trazer à baila que a novel mudança na Ordem
Jurídica brasileira, certamente, contribuirá para o fortalecimento
e a eficiência na solução pacífica dos conflitos, de um modo ge-
ral, prestigiando, com isso, o Estado Democrático de Direito, como
preceito estabelecido pela Constituição da República Federativa do
Brasil, solidificando o acesso à justiça de modo completo e satisfa-
tivo para todas as classes sociais.

2. DESENVOLVIMENTO

2.1 PRESTAÇÃO JURISDICIONAL JUSTA


O que seria uma prestação jurisdicional justa? Uma razoável
duração do processo? Vale lembrar que o artigo 5º, inciso LXXVIII
da Constituição brasileira de 1988 garante a razoável duração do
processo a todos que buscam a tutela do Estado. E em sendo a
razoável duração do processo uma garantia fundamental, também
se traduz como um direito humano.
A questão do tempo no processo filia-se à própria ideia de justi-
ça e é tão difícil de defini-lo como a justiça, que é vista de diversas
formas, seja no campo da sociologia, da filosofia ou do direito. Para
melhor entendermos, ficaremos com a perspectiva aristotélica de
justiça como uma mediania. Ou seja, a justiça é uma virtude e se
traduz em uma mediania, a justa medida (in medios virtus).
Esta concepção aplica-se ao tempo no processo, vez que a pres-
tação jurisdicional apressada pode significar verdadeira injustiça,
pois a jurisdição exige reflexão. Por isso, não há nada pior que a
injustiça célere, que é a pior forma de denegação da justiça. Por
outro lado o excesso de tempo na prestação jurisdicional é uma
verdadeira sonegação de justiça. Como ensina Rui Barbosa: “A jus-
tiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta”.
De certo que a decisão justa não se esgota apenas no conteúdo,
mas também na forma em que é produzida, quer dizer, deve estar

328
consoante com os princípios processuais, aos quais a atividade ju-
risdicional deve obediência.
Assim, pode se dizer que uma decisão só é justa quando é formal
e materialmente justa. A forma da decisão (decisão formalmente jus-
ta) refere-se ao tempo. Uma decisão justa não pode ter o açodamento
e a irreflexão, incompatíveis com a atividade jurisdicional, tampouco
pode ter a morosidade destrutiva da efetividade da jurisdição. Quer
dizer, há de se encontrar a justa medida para se fazer justiça.
E para tal, o desenvolvimento deste trabalho tem por meta de-
fender que a mediação por ser uma opção mais célere e eficiente da
entrega da prestação jurisdicional, o advogado como parte integrante
deve informar aos seus clientes as vantagens advindas da mediação,
notadamente a confidencialidade, a redução de custos, a manuten-
ção do relacionamento, o controle dos resultados pelas partes.
Em conclusão, o que a sociedade anseia é a realização de um
processo em tempo razoável, ou ao processo justo e equitativo. Ou
seja, o processo com duração razoável nada mais é do que uma con-
sequência lógica do devido processo, uma garantia constitucional de
todo cidadão, a despeito dos nossos tribunais já não mais alcançar a
efetivação da prestação jurisdicional de forma eficiente. Razão pela
qual, deve-se promover a aplicação de métodos mais adequados para
a solução dos conflitos, e sobretudo a valorização do profissional do
direito como figura essencial nessa mudança de paradigma.

2.2 ORIGENS
A mediação, em síntese, visa aproximar as partes conflitantes
para que cheguem por elas próprias a um acordo. O mediador, que
é o terceiro, apenas conduz de maneira neutra o diálogo, é um fa-
cilitador do entendimento. O mediador não julga nem aconselha,
apenas ouve e busca junto com as partes encontrar o que é real-
mente relevante para elas.
Essa forma de solucionar controvérsias remonta antes mesmo
do Direito Romano ou do Código de Hamurabi. Os povos anterio-

329
res a Cristo já empregavam métodos análogos à mediação para
pacificarem seus conflitos.
É bom que se ressalve que, na antiguidade, a mediação era
mais voltada para contendas comerciais; e somente na era moder-
na a mediação passou a ser utilizada em outros segmentos, dentre
os quais a mediação familiar.
Impelida pela necessidade do acesso universal à justiça, a me-
diação ressurge como alternativa para solução de conflitos extraju-
diciais, reguladas certamente pelas leis vigentes em cada país.
A mediação se insere no sistema endógeno heterocompositivo,
pois, não obstante haver a participação de um terceiro estranho a
relação conflituosa, isto é, o mediador, este não julga as partes, não
aconselha, nem apresenta proposta para aos envolvidos no conflito.
Para tanto, a doutrina moderna exalta a observância dos princí-
pios que regem a mediação, com cunho ético e funcional, os quais
devem ser observados tanto pelos mediadores, como pelos media-
dos e advogados, sob pena de todo o procedimento ser declarado
nulo, sendo eles: autonomia; confidencialidade; oralidade; infor-
malidade; consensualismo; boa-fé. E, em relação aos mediadores,
temos: independência; imparcialidade; diligência; empoderamento;
validação; facilitação de decisão informada.
O NCPC na seção V, Capítulo III, Título IV, do Livro III (Dos Sujei-
tos do Processo) se dedica aos institutos da mediação e da conciliação,
o que significa que o legislador pretende facilitar a solução de conflitos
por meios adequados e alternativos ao processo judicial. Assim, res-
saltamos brevemente os princípios gerais que norteiam a mediação e
a conciliação: princípio da confidencialidade; princípio da oralidade;
princípio da informalidade; princípio da decisão informada.
Destacamos, também, o Código de ética dos mediadores Extra-
judiciais de autoria do CONIMA, que incluí os princípios da credibi-
lidade; diligência. O Código de ética de Conciliadores e Mediadores
Judiciais – CNJ, apresenta como princípios e garantias: a competên-
cia; o respeito as ordens públicas e as leis vigentes.

330
Ademais, a Resolução 125/2010 estabeleceu a regência do pro-
cedimento de conciliação e mediação, cujas regras citam: informa-
ção; autonomia de vontade; ausência de obrigação de resultado;
desvinculação da profissão de origem; compreensão quanto á con-
ciliação e à mediação.
Verifica-se, pois, que os princípios não se distinguem, mas se
completam, haja vista a consonância entre os princípios estabeleci-
dos no art.166 do novo CPC, com aqueles dispostos no artigo 2º da
Lei da Mediação (Lei nº 13.140, de 26 de junho de 2015).

2.3 A FORMAÇÃO ADVERSARIAL DO


ADVOGADO
Nesse primeiro momento, traçaremos, em síntese, uma análi-
se das mais importantes características da profissão do advogado,
que são observadas ao longo da formação acadêmica e da for-
mação prática do profissional, a fim de se obter a habilitação de
bacharelado ao final do curso.
Não obstante ser uma profissão cuja formação é predominan-
temente humanista, na qual o profissional se prepara para lidar
com questões direcionadas à justiça e à sociedade em suas múlti-
plas vertentes, o profissional do Direito deve compreender as leis
e a subsunção da hermenêutica.
Dentre as profissões dadas como clássicas, a advocacia re-
monta aos primórdios da civilização, e na antiguidade aqueles
quem davam aconselhamento aos governantes e aos líderes de
classes consideradas abastadas, no sentido de melhor solucionar
os conflitos, eram intitulados de “jurisconsulto”.
Em Roma, era de grande relevância o papel do Advogado, nas
figuras dos patronos, possuidores de enorme saber jurídico. A eles
cabiam aconselhar e defender seus clientes, particularmente os
que mesmo residindo em Roma não possuíam a cidadania roma-
na, os chamados “gentios”.

331
Na Roma antiga, já existia a representação judicial por meio
dos advocati. Os litígios eram resolvidos na presença do Senado ou
do imperador.
A palavra advogado deriva do latim ad-vocatus, e significa “o
que é chamado em defesa”. Ou seja, aquele que é chamado para
defender uma causa, e cumprir sempre o seu dever com dignidade
e competência, buscando mais a realização da justiça do que os
honorários, embora devidos.
Desde a mais remota antiguidade, a balança de dois pratos sim-
bolizava a Justiça. No Antigo Testamento a Justiça era apresentada
como um instrumento para pesar as ações humanas. Na Grécia
antiga, era Zeus a segurar a balança, sendo mais tarde no templo de
Hesíodo substituído por sua filha e de Thémis, a deusa Dikê, de pé
e de olhos abertos, tendo na mão direita uma espada e na esquerda
a balança de dois pratos, sem fiel ao meio. Tal representação para
os gregos significava que o justo, o direito, era visto como igual e se
verificava quando os dois pratos estivessem no mesmo nível.
Tal simbologia foi importada pelos romanos, que apenas subs-
tituíram Zeus por Júpiter segurando a balança, mas com fiel ao
meio e sem espada. Mais tarde, no tempo da república, aparece
a deusa Iustitia, de pé e com os olhos vendados. Para os roma-
nos haveria justiça quando o fiel estivesse a prumo, perfeitamente
reto, isto é, quando fosse realizado o direito.
É certo que a formação clássica ainda influencia a formação do
advogado contemporâneo, basta observar suas características nos
ensinamentos acadêmicos sobre a argumentação jurídica voltada
para as teses e antíteses que se pronunciam nas rebuscadas narra-
tivas forenses de ataque e contra-ataque.
Com isso, tanto a entonação de voz quanto a postura do advo-
gado deve revelar um aspecto altivo, pois o profissional sem esses
atributos é facilmente subjugado e até desprezado em seu meio.
Obviamente que com a mudança de paradigma nas soluções
dos conflitos, esse modelo clássico se transformará já nas universi-

332
dades, sugerindo uma nova postura e ideias aos estudantes e profis-
sionais do Direito. No entanto, àqueles que se educaram sob o rigor
da cultura do comportamento imperioso, lhes caberá um maior es-
forço para uma reflexão acerca dessas mudanças.

2.4 O ADVOGADO, A MEDIAÇÃO E


A CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA
FEDERATIVA DO BRASIL.
O advogado pode atuar como mediador se tiver capacitação técni-
ca para tanto, mas deve afastar a sua profissão de origem e atuar so-
mente como um facilitador para o entendimento das partes, ou como
assessor jurídico de um dos participantes. No papel de assessor jurídi-
co, sua função será a mesma de qualquer outro método de resolução
de conflitos: a busca pela concretização dos interesses de seu cliente.
Entretanto, diferentemente do que ocorre no processo adversarial,
sua postura deve ser colaborativa. Ao advogado compete auxiliar na
escolha do mediador, na identificação dos interesses de cada um dos
participantes, no oferecimento dos marcos legais, na busca por solu-
ções mutuamente inclusivas, na redação de um acordo com validade e
eficácia legal, e, no caso de acordo parcial, conferir seguimento ao pro-
cesso judicial ou a outro método adequado de resolução de conflitos.
Portanto, o papel do advogado na condição de assessor jurídico
de uma das partes nas sessões de mediação é o de esclarecer as dú-
vidas jurídicas de seu cliente, não devendo se pronunciar, vez que
os protagonistas são as próprias partes.
Na Mediação, é preferível que as pessoas se exprimam livremen-
te, embora os advogados possam manifestar-se, quando pertinente.
O papel mais importante do advogado na Mediação consiste
na propositura de soluções criativas de mútuo benefício, mesmo
porque para os envolvidos no conflito, costuma ser mais difícil a
tarefa de vislumbrar novas opções.
A Constituição da República traz, em seu preâmbulo, a solução
pacífica das controvérsias como um compromisso da sociedade bra-

333
sileira. Não obstante, confere ao princípio da dignidade da pessoa
humana o status de fundamento de validade de toda Ordem Jurídi-
ca, e elenca, dentre seus princípios a liberdade, igualdade, solida-
riedade e fraternidade. Tendo em vista que a Mediação concretiza
todos esses princípios constitucionais, tem-se no método uma for-
ma adequada, efetiva e tempestiva de acesso à Justiça.
A legislação infraconstitucional legitima a Mediação expres-
samente em diversos casos, como, por exemplo, no Estatuto das
Micro e Pequenas Empresas, no Código Civil, quando trata do insti-
tuto da Guarda Compartilhada de filhos menores, na Ouvidoria de
Instituições Financeiras etc.

2.5 O ADVOGADO, A MEDIAÇÃO E O


NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL –
LEI 13.105 DE 16 DE MARÇO DE 2015.
O NCPC tem como meta a melhora na prestação jurisdicional,
objetivando a celeridade processual, e assim aliviando o Poder Judi-
ciário com suas quase 96 milhões de demandas judiciais pendentes
de julgamento (Fonte: CNJ – Conselho Nacional de Justiça, 2016).
Para tal, dentre outras coisas, trouxe a figura da chamada con-
ciliação ou mediação obrigatórias como etapa inicial do procedi-
mento a ser seguido pelas partes da lide, ressalvados os casos em
que a matéria sob litígio não comportar autocomposição.
Pelo teor do artigo 334 do NCPC, assim que recebida a petição
inicial, o juiz é obrigado a designar audiência de conciliação ou media-
ção, citando o réu e intimando-o a comparecer à audiência designada.
Inclusive, é aplicada multa de até 2% da vantagem econômica preten-
dida ou do valor da causa ao autor ou ao réu que não comparecerem
a referida audiência, a rigor do parágrafo 8º do mencionado artigo.
Essa audiência somente não ocorrerá se ambas as partes infor-
marem ao juiz seu desinteresse na tentativa de composição ami-

334
gável. Assim, basta uma das partes ter interesse na audiência, que
ela necessariamente ocorrerá.
Muito embora a audiência de conciliação já existisse em etapa
intermediária do processo no CPC revogado, a referida etapa inicial
criada pelo NCPC trouxe muitos questionamentos entre os juristas e
partes sobre seu objetivo e as reais consequências que a sua aplica-
ção poderia ocasionar ao desenvolvimento dos processos judiciais.
Uma desses questionamentos diz respeito à efetividade dos
métodos consensuais da conciliação e mediação na resolução dos
conflitos. E, aqui, vale a pena se trazer informações já levantadas
nos últimos anos pelas Câmaras ou Centros de Conciliação criados
pelos Tribunais de todos os Estados. Segundo o Conselho Nacional
de Justiça (CNJ), os Centros Judiciários de Resolução de Conflito e
Cidadania (CEJUSCS) em 8 (oito) estados brasileiros, criados pela
Resolução CNJ 125/2010, evitaram que pelo menos 270 mil proces-
sos viessem a engrossar ainda mais as filas intermináveis de pro-
cessos que aguardam julgamento. E, isso, somente no ano passado!
Outro ponto controverso é a questão relacionada ao momento
inicial definido pelo NCPC para a audiência de tentativa de resolu-
ção consensual do litígio. A maioria das lides se inicia logo após as
partes, ou pelo menos uma delas, ter tentado resolver a contenda
de forma amigável, seja por meio das reclamações, notificações,
reuniões, dentre outros meios. Por isso, no momento do início do
litígio, não raro, as partes estão com os nervos à flor da pele, já
sem qualquer intenção de resolver a questão e, algumas vezes, sem
qualquer interesse, inclusive de se encontrarem frente a frente.
Portanto, pode ocorrer que uma tentativa de conciliação logo
no início do processo pode parecer não ser o momento ideal para
se buscar a resolução do litígio pela via consensual.
Por outro lado, nas segundas instâncias dos Tribunais, tem-se
obtido muito sucesso nas sessões de conciliação nos últimos anos.
Isto se deve ao fato de que após o longo tempo dos trâmites judi-

335
ciais do processo na primeira instância, quando este se encontra
em grau de recurso, mormente as partes muitas das vezes não
possuem o mesmo ímpeto e anseio de litígio. Daí, estarem mais
propícias a uma conciliação.
Outro aspecto importante ressaltado pelo NCPC é a presen-
ça obrigatória do advogado para assistir a parte nas audiências
iniciais de conciliação e mediação (art. 334, §9º, do NCPC). Esta
previsão nos leva à reflexão do papel do advogado em incentivar
tais métodos consensuais de resolução de litígio junto aos seus
clientes e de participar de forma construtiva na formação do con-
senso durante as sessões de conciliação e mediação. Tal incentivo
começa desde a apresentação ao cliente de todos os riscos envol-
vidos na condução do litígio, incluindo-se os custos, as taxas judi-
ciárias, as multas por recursos meramente protelatórios, as verbas
sucumbenciais, os juros legais, até a demonstração racional de
que muitas vezes a resolução imediata da lide pode lhe gerar eco-
nomia financeira e até mesmo novas oportunidades de negócio.
Em resumo, são grandes as chances e os desafios trazidos com
o NCPC, que com o desafio de coibir incidentes ou fases protelató-
rias e auferindo importância aos métodos consensuais, tem como
sua maior contribuição dar maior celeridade aos processos judi-
ciais. No entanto, o papel principal cabe aos magistrados, aos advo-
gados, aos conciliadores e às partes, que é o de utilizarem de forma
eficiente os meios consensuais do NCPC.

2.6 ESCOLAS CLÁSSICAS DA


MEDIAÇÃO
Para se falar em Mediação como ciência, enfatizamos três Es-
colas basilares voltadas ao conhecimento teórico e prático da Me-
diação, são elas: (i) o Modelo Tradicional-Linear de Harvard; (i) o
Modelo Transformativo de Bush e Folger; (iii) o Modelo Circular-
-Narrativo de Sara Cobb.

336
Contudo, fazemos menção, na oportunidade, ao modelo Tra-
dicional-Linear de Harvard, (Havard Law School), com fundamento
na negociação voltada para a seara empresarial. Pois, atualmente o
modelo Tradicional-Linear é aplicado no âmbito familiar, e no trato
das questões envolvendo relação continuada, como divergências entre
vizinhos ou colegas de trabalho, empregado e empregador (entidades
coletivas). Preceitua Willian Ury, professor da Universidade de Har-
vard, que a comunicação para ser eficaz deve passar pela negociação,
o que traduz privilegiar o bom-senso. O modelo de Harvard busca a
resolução do conflito por meio do acordo, ou seja, pela negociação.
Já o Modelo Circular- Narrativo de Sara Cobb se baseia na comuni-
cação circular e se refere a um processo que agrega ao modelo de Har-
vard premissas da teoria dos sistemas de Luhmann. É uma oscilação
entre o foco na resolução do conflito e a transformação das pessoas,
abrangendo desde o modelo de Harvard ao modelo Transformativo.

2.7 O MODELO TRANSFORMATIVO DE


BUSH E FOLGER
Por fim, o modelo transformativo de Bush e Folger se baseia
também na comunicação, porém com ênfase no aspecto relacional,
visando o empoderamento das partes, que aliás são os responsáveis
por suas ações. Tal método prepondera o outro como protagonista
de sua vida e coprotagonista do conflito. Ainda nas palavras de
Ilana Martins Luz: “[…] o mérito da mediação transformativa é o
incremento do poder das partes, que devem protagonizar o seu con-
flito e, por meio do processo mediativo, recuperar a sua autoestima,
rompida com o problema vivenciado”.
Esse modelo é radical quanto à transformação das pessoas,
ficando o acordo como uma questão secundária. Sendo, portanto,
o oposto do modelo Harvardiano, que objetiva o acordo enquanto
o transformativo foca nas relações.

337
Em resumo, o modelo transformativo leva em consideração o
conflito como uma oportunidade de crescimento, pois estabelece
uma situação de antagonismo com o outro, relevando as diferenças
entre as partes.

3. CONCLUSÃO
É de suma relevância, até imprescindível, o papel do advogado
para a disseminação da cultura da mediação. É um desafio e tanto
romper com o paradigma e a cultura já enraizados do confronto, do
ataque e do contra-ataque. Afinal, vem sendo assim desde tempos
remotos. No entanto, a mediação é um caminho mais curto, e me-
nos desgastante para todos os envolvidos.
Por se o advogado a primeira, e não raro, a única opção de
ajuda para pessoas que estão em situação de aflição, nessa opor-
tunidade ele tem a chance de propor ao seu cliente a resolução do
seu problema pelas técnicas de mediação, reconhecidas pelo Novo
Código de Processo Civil.
A mediação é a melhor opção de compor os conflitos por que a
solução é construída pelas próprias partes, ajudadas é claro por seus
advogados e assessores jurídicos, nos seus tempos próprios e de acor-
do com as características dos fatos. E, sobretudo, efetiva, pois que as
partes tendem a cumprir o combinado por livre e espontânea vontade.
Além do que, a mediação visa o entendimento da adversidade das
pessoas, incentivando o diálogo e o respeito ao que é diferente. E, por
conseguinte, o amadurecimento de todos os envolvidos no conflito.
Vale lembrar que não cabe somente à Justiça patrocinar o de-
vido acesso à prestação jurisdicional justa, o advogado também é
peça importantíssima quando incentiva a solução extrajudicial dos
conflitos pela mediação.

4. REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Diogo Assumpção Rezende de Almeida. A mediação no
novo código de processo civil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016.

338
AZEVEDO, André Gomma. Manual de Mediação Judicial. 6ªed.
Brasília: CNJ,2016.

BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico – lições de filosofia do


direito. São Paulo:Icone, 2006.

MEIRELES, Delton Ricardo Soares; MATOS, Enéas de Oliveira.


Acesso à justiça. Florianópolis: Funjab, 2012.

MOORE, Christopher W., O processo de mediação, 2ª ed. Brasil:


Artmed, 1998.

PAUMGARTTEN, Michele; PINHO, Humberto Dalla Bernardina de.


Side-Effects of the Growing Trend towards the Institutionaliza-
tion of Mediation. Panorama of Brazilian Law, v.1, n.1, 2013.

WATANABE, Kazuo. Acesso à Justiça e sociedade moderna. GRI-


NOVER, Ada Pellegrini, et. al. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 1988.

VASCONCELOS, Carlos Eduardo de. Mediação de conflitos e práti-


cas restaurativas. 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015.

ZIMMERMANN, Augusto. Curso de direito constitucional, Rio de


Janeiro:Lumen Júris, 2002.

339
CO N DI ÇÕES ANÁLOGAS À
ESC RAVIDÃO E A NÃO EFE T IV IDA D E
DAS N ORMAS PROTET IVAS
RENATA LIMA SEQUEIRA D’ARROCHELLA90

INTRODUÇÃO
Ao longo do artigo serão analisadas as formas de trabalho con-
sideradas análogas à escravidão, conforme a Lei e o entendimento
do Ministério do Trabalho e Emprego, dos órgãos jurisdicionais e
do Legislativo pátrio, e a efetiva aplicação, quando da verificação
de existência de escravidão nas empresas nos meios rural e urbano.
Neste momento há que se esclarecer que o conceito de trabalho
escravo nada tem a ver com aquele que conhecemos do passado,
onde basicamente se teria o cerceamento de liberdade por completo
de determinado grupo étnico, no caso, negros.
Insta salientar que, apesar de se tratar de tema ancestral, con-
forme demonstrado, e constantemente debatido, não há no Brasil
entendimento consolidado sobre quais as formas que este tipo de
exploração ao trabalhador se desdobrou, mas pode-se considerar
análoga à escrava, para efeitos deste artigo, as que constam do ar-
tigo 149 do Código Penal.
Observar que as normas, leis, convenções ou acordos interna-
cionais citados ao longo do trabalho não excluem outras que tratam
do assunto, não sendo mencionadas apenas por questões metodoló-

90. Pós Graduanda em Direito do Trabalho no Centro de Ensino Renato Saraiva


e-mail: [email protected] / tel. 2567-3996 / 997050299

3 41
gicas para o cumprimento adequado das formalidades ou por mero
cuidado em não alargar em demasia o objetivo básico do trabalho.

DIREITOS HUMANOS
A OIT (Organização Internacional do Trabalho) foi criada em
1919, após a Primeira Guerra Mundial, sob o fundamento que os
direitos dos trabalhadores, na lógica da paz mundial, deveriam cui-
dar também das questões referentes ao trabalho em todo o mundo.
Com a mudança da localização da sede da OIT de Genebra para
Montreal, no Canadá, por força da 2ª Guerra, fora possível cons-
tituir uma nova Carta de princípios e objetivos da Organização,
em 1944, que veio a ser utilizada de base para a Organização das
Nações Unidas, criada em 1946, aventar a sua própria Declaração.
Em 10.12.1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos,
também chamada de Declaração do Homem e do Cidadão, em seu
artigo IV, deixa claro que a escravidão deveria ser combatida e que
nenhum homem poderia ser mantido em condições de escravidão.
Apesar de o Brasil ter assinado na mesma data tal Declaração
de Direitos Humanos, esta só fora inserida na ordem jurídica bra-
sileira, em sua plenitude, em 1988, com a promulgação da nova
Carta Constitucional.
Neste sentido, a Constituição de 1988 abarcou como princí-
pio a ser protegido a dignidade da pessoa humana, não só em seu
preâmbulo, quando fala dos direitos sociais e individuais a serem
protegidos, como em seu artigo 1º, inciso III. Certo é que, sua vio-
lação trouxe consequências em toda a ordem jurídica, de Direitos
Humanos, do direito posto e demais ciências. Corrobora ao alega-
do, Flávia Piovesan (FLÁVIA PIOVESAN, ANDREA SAINT PASTOUS
NOCCHI; GABRIEL NAPOLEÃO VELLOSO; MARCOS NEVES FAVA
(coord.) – 2011) na passagem que trata “o trabalho escravo e degra-
dante como grave forma de violação de direitos humanos, sendo,
ao mesmo tempo, resultado de um padrão de violação de direitos e
causa de violação de outros direitos”.

342
Dito isto, o Brasil somente reconheceu em 1995 que vivia esta
condição, criou o Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM)
e o Grupo Executivo de Repressão ao Trabalho Forçado (Gertraf),
atuando na fiscalização e resgate de trabalhadores em condições
análogas a de escravos.

AFASTABILIDADE DOS PRINCÍPIOS


CONSTITUCIONAIS – ART. 5º CRFB
Há que se mencionar de pronto que o Principio da Dignidade
da Pessoa Humana trata da proteção de toda e qualquer pessoa,
sem exclusão de cor, raça, etnia, nacionalidade ou condição so-
cial, sendo pertinente mencionar o conceito de Ingo Sarlet (INGO
WOLFGANG SARLET,– 2004), “a qualidade intrínseca e distintiva
reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo
respeito e consideração por parte dos Estados e da comunidade”.
Neste contexto, pode-se verificar que há o afastamento direto
deste Principio Constitucional e Universal tão importante quando
realizada a prática de exploração da força de trabalho e de tempo
do trabalhador de forma exacerbada, sem o mínimo de condições
de higiene, segurança, alimentação, moradia dentre outros, já que
este é digno de respeito e consideração por todos.
Inegável que o legislador procurou trazer a máxima proteção
almejada pela OIT e pela ONU em suas declarações e convenções
para dentro do Direito brasileiro, notadamente na Consolidação das
Leis do Trabalho, de 1943, e, principalmente, da Constituição de
1988, arts. 1º, 3º e 5º, e do Direito Penal em 2003.
Contudo, indo na contramão da legalidade, o empregador abu-
sa do seu poder diretivo, provocando sorrateiramente a escravidão
de seus trabalhadores através do cerceamento de sua liberdade de ir
e vir de um lugar a outro sem permissão, pela falta de trabalho dig-
no como acordado no momento de contratá-los, não realizando a
paga correspondente aos seus esforços, mantenho-o em condições

343
de plena falta de segurança na execução de suas funções e demais
formas que serão descritas a frente.
Portanto, quando verificada a existência de trabalho escravo
dentro de atividades empresariais, restam afastados todos os prin-
cípios, implícitos e explícitos, existentes em tais documentos, não
tão somente os citados neste artigo.
Cumpre dizer, portanto, a Dignidade da Pessoa Humana é uma
qualidade intrínseca do ser humano, logo, algo que não tem preço
ou valor pecuniário e, por tal, não se compra ou vende. Superexplo-
rar e levar o homem ao limite de suas forças física e mental, atinge
diretamente sua dignidade, quiçá até a forma que este enxerga a
si, como um ser digno de conquistar o melhor para ter do melhor,
trazendo assim até consequências psicológicas.
Numa segunda linha de observação, as situações descritas an-
teriormente implicam também no afastamento de outro principio
importantíssimo, o da Liberdade, já que, mesmo não sendo àquele
trabalho escravo das épocas coloniais, há privação da locomoção
do trabalhador por completo na maioria dos casos apresentados a
justiça brasileira, seja por dívida ou confisco de seus documentos,
quando não, a situação de restrição do direito a liberdade deste
empregado fica limitada ao comando de seu empregador.
Com isto, e por fim, tendo em vista que tais princípios men-
cionados constam da Constituição Federal, e intrinsecamente em
demais normas vigentes no direito interno e externo, por via reflexa
o Principio da Legalidade sucumbe, presente no art. 5º, inciso II da
Carta Magna, já que empregador furtar-se a lei, realizando vez pós
outra atos contra legem.

DIREITO SOCIAL
O artigo 7º da Constituição Federal, introduzido no nosso or-
denamento em 1988, se valeu de trechos da redação já existente
na Declaração Universal dos Direitos Humanos em seu art. XXIII,

344
itens 1, 2 e 3, além do art. XXIV, que formam os direitos mínimos
do homem-trabalhador.
Neste sentido, defende Bitencourt (CEZAR ROBARTO BITEN-
COURT,– 2009) que a conduta de reduzir alguém à condição análoga
de escravo afasta todos os direitos sociais e fundamentais de forma di-
reta, conjuntamente com o principio da dignidade da pessoa humana
como relatado, “despojando-o de todos os seus valores ético-sociais,
transformando-o em coisa, no sentido concebido pelos romanos”.
Com este conjunto de normas, adicionados os derivados de leis
infraconstitucionais, aparenta ter o trabalhador seus direitos asse-
gurados, mas a sensação de impunidade, ilegalidade e falta de apli-
cação efetiva das sanções previstas no âmbito jurídico, no caso em
comento, são muito intensas, já que não se coíbe veementemente
tal prática de recrutamento dos trabalhadores para regiões do País
onde se concentra a massa de empregadores que atentam contra
todos os princípios e regras já citadas.

DA CRIAÇÃO DO GERTRAF do CONATRAE


Após reconhecer que no Brasil ainda persistia o trabalho escra-
vo, mesmo que de forma análoga, o governo brasileiro buscou criar
mecanismos de repressão à prática, criando assim órgãos fiscaliza-
dores que deveriam cuidar da sistemática de endurecimento no sen-
tido de reprimir tais atos e, ainda, para impedir novas escravizações
e fiscalizar as leis que viriam a ajudar nesta tarefa. Porém, como
veremos, a tarefa é árdua e tal conduta persiste em nosso país.
O Grupo Executivo de Repressão ao Trabalho Forçado (Gertraf)
criado em 1995 através do Decreto 1.538/95, conforme seu art. 1º
foi idealizado com objetivo de “coordenar e implementar as provi-
dências necessárias à repressão ao trabalho forçado”, competindo a
este órgão a elaboração e implementação de programas integrados
a fim de coibir a prática de trabalho análogo a de escravo, coorde-
nação de órgãos que visem o cumprimento dos programas, a articu-

345
lação com a OIT e dos Ministérios Público da União e Estados para
que a legislação pertinente seja cumprida e, além disso, propor atos
normativos para a melhor implementação destes propósitos.
Através do Gertraf, que tem como formação representantes de
diversos Ministérios, como exemplos, MTE (Ministério do Trabalho
e Emprego), Ministério da Justiça, Ministério da Agricultura, Minis-
tério da Indústria, Comércio e Turismo, foram criados outros grupos
de combate que, em conjunto, realizam ações especiais de fiscali-
zação, empreendidas pelo Grupo Especial de Fiscalização Móvel,
dirigidas às situações mais graves, como de trabalho degradante
e/ou escravo e de ações permanentes, através de suas Delegacias
Regionais do Trabalho, de equipes de fiscalização que devem atuar
permanentemente no combate às situações irregulares de trabalho,
tudo isto ocorrendo com o apoio da Polícia Federal.
Ocorre que, penoso admitir que este grupo não tenha conse-
guido coibir tais práticas de forma a erradicar o trabalho análogo ao
de escravo, não por sua culpa, mas tendo em vista que o número
de Auditores Fiscais do Trabalho é infinitamente diminuto frente
ao tamanho do Brasil, já que suas Regiões são vastíssimas, sendo
as mais longínquas, ou de difícil acesso, merecedoras de atenção
redobrada, e portanto de maior efetivo de fiscais da lei.
O mesmo ocorre em relação ao número de Delegacias Regionais
do Trabalho (DRTs) que encaminham as denúncias recebidas ao Gru-
po Móvel (longa manus do Gertraf), Polícia Federal, MPT (Ministério
Público do Trabalho) e MPF (Ministério Público Federal) para provi-
dencias de fiscalização e resgate dos trabalhadores explorados.
Em nova tentativa de aperfeiçoamento institucional, em 2003,
fora criado o CONATRAE (Coordenadoria Nacional de Combate ao
Trabalho Escravo), tendo este como objetivo central, acompanhar
o cumprimento do Plano Nacional para Erradicação do Trabalho
Escravo, a tramitação de projetos de leis no Congresso, além de pro-
por atos normativos, acompanhar e avaliar projetos de cooperação

346
técnica entre o Brasil e organismos internacionais, elaborar estudos
e pesquisas e realizar campanhas relacionadas à erradicação do tra-
balho escravo, entre outros.
Neste passo, a observação destes fatores chama a atenção para
a ineficácia da fiscalização que por si só não gera punição, se trans-
formando em verdadeiro trabalho de “enxugar gelo”, isto porque,
mesmo havendo lei específica para conter em seu grau máximo a
prática de aliciamento de trabalhadores e exploração dos mesmos,
esta não é aplicada por magistrados, em ações, e/ou delegados, em
inquéritos policiais, conforme veremos mais adiante, ficando a car-
go tão somente da Justiça Trabalhista corrigir as distorções criadas
em sua esfera de competência.

CONCEITO DE TRABALHO ESCRAVO NA


ATUALIDADE E DESDOBRAMENTOS
Não há no Brasil um entendimento pacificado sobre a conceitu-
ação doutrinária e legislativa do que seria trabalho análogo a escra-
vidão, apesar das fontes, da lei penal e demais normas o definirem
para fins de aplicação da lei penal e trabalhista ao caso concreto,
permanecendo, enquanto isso, alguns milhares de empregados em
escravidão análoga, não percebendo retorno das horas despendidas
com sua força de trabalho e sofrendo por meses pressão psíquica,
pois aqueles que deveriam estar cumprindo penas em regime fecha-
do prisional permanecem inseridos na sociedade.
De acordo com o Ministério Público Federal, que também
possui competência para ajuizar as ações coletivas pertinentes ao
trabalho escravo, quando praticado no meio rural, o crime ocorre
principalmente em atividades como a pecuária, em plantações, na
extração de carvão vegetal, na agroindústria e no desmatamento.
No meio urbano, os destaques vão para as confecções de roupas e
para a construção civil. As vítimas são de todos os tipos: crianças,
mulheres e homens mais jovens no geral, e quanto a isto não há de-
sarmonia entre legislador, doutrinadores e pesquisadores do tema.

347
A divergência está, não exclusivamente, no caput do art. 149 do
Código Penal que definiu, o que é o núcleo do tipo, tendo certo que
se trata de reduzir alguém a trabalhador análogo à escravo, mas a
leitura literal da lei por aqueles que querem burla-la.
Portanto o que diverge, ao que parece, é a justiça trabalhista
condenar o empregador ao pagamento das verbas salariais e de
rescisão de contrato tácito, e na seara penal absolver o empregador
que se beneficiou economicamente da força do trabalho do seu ex-
plorado reduzindo-o a condição de coisa.
O conceito de trabalho análogo a escravo esta íntima e direta-
mente ligado a suas características, visto que procura atender tam-
bém o art. 5º, III da Constituição Federal, que imperativamente diz
que ninguém será submetido a tratamento desumano ou degradan-
te, se encaixando perfeitamente no caso em análise.
Neste momento é apropriado observar um breve trecho de Rela-
tório da OIT, que segue transcrito abaixo, para melhor compreender
porque no Brasil ainda se usa a expressão trabalho escravo e como
isso acaba por interferir no tipo penal abordado.

“Relatório da OIT – Maio/2005 (...) No Bra-


sil, a expressão usual para referir-se à prática de
trabalhos forçados em zonas remotas é ‘trabalho
escravo’. Todas as situações abarcadas por esta ex-
pressão se enquadram no princípio (da proteção
do trabalhador) dentro do âmbito de aplicação das
Convenções da OIT sobre trabalho forçoso”.

Partindo de tal observação, seguem tais características enume-


radas na redação do art. 149 do CP:

Caput - Submeter a trabalhos forçados ou a


jornada exaustiva trabalhador, quer sujeitando-o
a condições degradantes de trabalho, quer res-

348
tringindo, por qualquer meio, sua locomoção em
razão de dívida contraída com o empregador ou
preposto;
I - cerceia o uso de qualquer meio de transpor-
te por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo
no local de trabalho; (Incluído pela Lei nº 10.803,
de 11.12.2003);
II - mantém vigilância ostensiva no local de
trabalho ou se apodera de documentos ou obje-
tos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo
no local de trabalho. (Incluído pela Lei nº 10.803,
de 11.12.2003).

Verificada as características descritas no art. 149 do CP, há que


ser dito que na seara criminal o tipo penal não pode se valer de
interpretações extensivas, pois carrega consigo a descrição de um
fato ilícito que, portanto, implica a cominação de uma pena. É um
dos elementos definidores do próprio crime, que segundo a teoria
tripartite, é fato típico, antijurídico e culpável, ou seja, o tipo deve
estar perfeitamente delimitado para o fim que quer atingir.
Destrinchando o caput do art. 149 do CP se encontra o núcleo
do tipo penal, que é submeter alguém a trabalhos forçados ou a
jornada exaustiva de trabalho, sem mais delongas.
Seguindo esta linha de raciocínio, trabalho forçado pode se ca-
racterizar por condições degradantes de trabalho, ou seja, conjunto
de ilícitos que colocam em risco a vida do empregado, seja pela falta
de equipamentos de segurança combinadas com atividades insalu-
bres, não havendo prevenção contra doenças por contaminação ou
exposição a materiais tóxicos, entre outros, e a servidão por dívida.
Em relação a jornada exaustiva considera-se como qualquer hora
que se prolongue por mais de 10 horas diárias, já que o art. 58 da CLT
traz em seu bojo a limitação de 8h diárias ou 44h semanais, acrescida

349
de 2 horas extraordinárias por dia, conforme art. 59 do mesmo Di-
ploma Legal ou em casos de horários revezamento chamados 12x36.
Assim, o art. 149 tem como bem protegido a liberdade e a dig-
nidade da pessoa humana, já que em se tratando de sanção penal,
é a própria vida e o bem jurídico maior a ser protegido.
Confirma a afirmação feita acima, e em capítulo anterior, a ob-
servação de Rogério Greco (ROGERIO GRECO – 2008), que leciona
que “a lei penal refere-se às condições degradantes de trabalho,
existem outros bens juridicamente protegidos: a vida, a saúde, bem
como a segurança do trabalhador, além de sua liberdade”.
Porém, tal comando jamais poderia ser efetivo, tendo em vista sua
total atecnía jurídica, pois o tipo penal “reduzir a condição análoga”
não trazia consigo um conceito ou qual a conduta faria surgir o fato tí-
pico, não havia um rol a ser observado ou fixando-o naquele contexto.
No ano de 2016, finalmente por tal motivo, o Brasil sentou no
banco dos réus para ser julgado pela Corte Interamericana de Direi-
tos Humanos acusado de se omitir quanto a responsabilização e o
punição dos responsáveis em um caso de flagrante de trabalho es-
cravo em uma propriedade rural no Pará, centro do problema como
já apontado, ocorrido nos idos anos 80. A audiência foi realizada
nos dias 18 e 19 de fevereiro, porém a sentença tem previsão de
publicação (ou publicização) até setembro de 2016.
Há que se destacar que nos últimos 4 (quatro) anos, nenhum
acusado por contratar trabalhadores e mantê-los em condições aná-
logas à de escravo foi condenado em definitivo e, tampouco os an-
teriormente condenados iniciaram seu cumprimento de pena pelo
crime, pois a sentença não transitou em julgado até meados de 2014.
Saliente-se que nesse período foram ajuizados 469 (quatrocen-
tos e sessenta e nove) processos nos Tribunais de todo o país, mas
nenhum resultou em punição.
Para o Ministério Público Federal, a impunidade está ligada à
demora do Judiciário em resolver as causas, mas, para muitos, a

350
absolvição ou demora no cumprimento da pena está ligada direta-
mente a falta de um conceito fechado do que seja “reduzir alguém
a trabalho análogo a de escravo” ou o que seja o próprio trabalho
análogo ao de escravo.
A propósito, as decisões na esfera criminal e trabalhista são de-
veras contraditórias, visto que, muitos julgados na justiça do trabalho
são fundamentados observando, sempre, que é irrefutável a carac-
terização de trabalho escravo naquela ação Reclamação Trabalhista
ou ação coletiva proposta. Entretanto muitos inquéritos policiais são
arquivados por atipicidade do crime de redução a trabalho análogo
a de escravo e aqueles que são levados a frente tem como resposta a
absolvição dos réus por não serem este considerados os verdadeiros
empregadores ou dono das terras, conhecidos como laranjas, e que
se utilizavam do trabalho indigno ou em condições subumanas.
Neste sentido, deve ser cuidadosamente observado que mesmo
não sendo estes os reais proprietários, faziam efetiva e diretamente
o uso do trabalho exploratório de pessoa humana, auferindo lucro
ou dinheiro, afastando o principio da legalidade, da dignidade da
pessoa humana e da liberdade, tanto quanto o empresário ou sócio
do negócio, já que preposto deste.
Sendo assim, se “tipo penal”, conforme já visto, é a descrição con-
creta da conduta proibida e a matéria da proibição das prescrições jurí-
dico penais, certo é que aqueles que funcionam como prepostos, tam-
bém estão incursos no crime de redução de pessoa a trabalho análogo
a de escravo, ou seja, concorreram para que o tipo penal sobreviesse,
quando auxiliaram para a efetivação do ato punível exatamente con-
forme está descrito na Lei (o núcleo do tipo - formal) e a significativa
lesão ao bem protegido (consumação do crime - material).
Tal afirmação, também pode ser verificada com a simples lei-
tura de trechos do processo 01263-2007-048-03-00-4 RO, utilizado
como exemplo, inclusive, por diversos autores e estudiosos da área
do direito trabalhista, recurso este interposto por proprietário que

351
teve o inquérito arquivado por atipicidade na esfera penal, em ação
coletiva proposta pelo Ministério Público do Trabalho, e que ten-
tava retirar seu nome do cadastro de empregadores que tenham
mantido trabalhadores em condições análogas a de escravo.

“Processo 01263-2007-048-003-00-4 RO – (...)


não se pode pretender a absolvição trabalhista
simplesmente porque o inquérito policial foi ar-
quivado por atipicidade dos fatos investigados.
O tipo penal encerra torneamento rígido, fecha-
do hermeticamente sobre si próprio (nullum cri-
men, nulla poena sine lege91), não tolerando o seu
brandor nenhuma impureza, tendo em vista o
jus puniendi do Estado. (...) Se os trabalhadores,
recrutados, arregimentados, andarilhados ou pré-
-contratados, pouco importando a questão semân-
tica, já que não se trata de tipificação penal, para
prestar serviços na colheita de cana, morando em
alojamentos precários (...) ferindo a dignidade da
pessoa humana, esses fatos não podem passar ao
largo da percepção do juízo trabalhista, direta e
imediatamente envolvido com os direitos sociais
fundamentais, que não podem ser meras promes-
sas, sonhos e fantasias para humildes trabalha-
dores, que prestam serviço exaustivo, no campo,
realizando a colheita de cana, para a sustentação
do programa de biocombustível”.

Cumpre observar que não há uma relação legal sistemática entre a


justiça trabalhista e penal, mesmo coexistindo leis que tratem do mes-
mo assunto, estas não dependem uma da outra para processar suas
ações, correndo, assim, como nas ações da esfera cível, paralelamente.

91. Ninguém será punido sem que haja uma lei prévia (Princípio da Legalidade no
direito penal).

352
Isto ocorre, porque na justiça do trabalho não há prisão ou esta
não comporta a especializada criminal para delitos contra os tra-
balhadores, que veremos a frente ser uma alternativa para coibir o
trabalho escravo no país.
Talvez, impulsionada pela EC 81/2014 tivemos o conhecimento
de acolhimento na justiça criminal de condenação nesta esfera, de
empresário da área de carvoaria, a 4 anos e meio de prisão por
manter 35 empregados em condições análogas à escravidão em
fazendas localizadas em Goiás, e estes trabalhadores, segundo a
denúncia do MPF e a sentença condenatória consideraram, acer-
tadamente, que baixos salários, jornadas exaustivas, alojamentos
com estrutura precária, falta de equipamentos de proteção, de ins-
talações sanitárias adequadas e de fornecimento de água potável
são sim formas degradantes de trabalho, e além disso, as 14 horas
diárias (jornada exaustiva) que eram impostas todos os dias.

A PEC DO TRABALHO ESCRAVO


A PEC 00057/1999, mais conhecida como PEC do Trabalho Es-
cravo, fora elaborada como tentativa de endurecimento da legisla-
ção atual para uma real coerção dos abusos cometidos pelos donos
de terras e empresas que mantem seus empregados em regime de
trabalho análogo ao de escravo.
No dia 05 de junho de 2014 a referida PEC fora promulgada e
sua publicação ocorreu no dia 06 de junho, colocando fim a mais de
14 anos de espera por sua aprovação. Tal Emenda Constitucional,
EC 81/2014, alterou a redação do art. 243 da Constituição Federal e
vigora com a seguinte redação, portanto:

“Art. 243. As propriedades rurais e urbanas de


qualquer  região do País onde forem localizadas
culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou a ex-
ploração de trabalho escravo na forma da lei se-

353
rão expropriadas e destinadas à reforma agrária e
a programas de habitação popular, sem qualquer
indenização ao proprietário e sem prejuízo de ou-
tras sanções previstas em lei, observado, no que
couber, o disposto no art. 5º.
Parágrafo único. Todo e qualquer bem de valor
econômico apreendido em decorrência do tráfico
ilícito de entorpecentes e drogas afins e da explo-
ração de trabalho escravo será confiscado e rever-
terá a fundo especial com destinação específica,
na forma da lei”.

O Senador Renan Calheiros, muito oportunamente, quando em


discurso após promulgação da referida Emenda, sintetizou o que
todo este trabalho em aprovar a PEC busca, que é a concretização
de cumprimento às normas já existentes e asseverou que:

As medidas coercitivas para submissão de tra-


balhador a regime análogo ao da escravidão não
foram suficientes, pois a legislação praticamente
não foi aplicada, deixando a sensação de impuni-
dade. Por tudo isso, o Congresso Nacional decidiu
medida mais drástica, para impor a expropriação
de imóveis rurais e urbanos.

Há que se dizer neste momento que, a divergência anteriormen-


te apontada acaba por interferir diretamente na Emenda 81/2014,
visto que sua aplicação não será possível de forma efetiva se um
conceito não for definido.
Corrobora a afirmativa o relator da proposta, Senador Romero
Jucá, quando tenciona que o termo precisa ser mais específico, ou
melhor, definido no sentido do que seria uma jornada exaustiva e o
que é um trabalho degradante. Além disso, muito bem avalia os con-

354
tornos e limitações que precisam ser definidos, já que tal definição
deverá ser direcionada para as classes e nichos profissionais onde
realmente se extrapole a razoabilidade e se encaixe o tipo penal, não
tomando qualquer trabalhador para si a aplicação da norma mais
pesada ao seu contento, usando como exemplo trabalhador em São
Paulo que afirma ser degradante trabalhar sem ar-condicionado, ba-
nalizando a intenção principal da Lei aplicável ao tema ora discutido.
Por tal, a Emenda aprovada e promulgada, por se tratar de norma
de eficácia contida, deverá ser regulamentada por Lei Complementar,
que deverá trazer em texto as definições e caracterizações pertinentes
ao tema para que, efetivamente, esta exista no mundo jurídico e seja
aplicável aos casos concretos existentes e que surgirem, retornando
a discussão da efetividade do tipo penal contido no art. 149 do CP, já
conjecturado neste artigo quando do capítulo de aplicação da norma
sancionatória penal e das características descritas pelo tipo penal.
Vale ressaltar que, de toda a sorte, a complementação deveria
ser editada de forma mais célere que o projeto de emenda, que
levou mais de 10 anos para vir a existir no mundo jurídico, e por
experiência, é sabido que o caminho será longo, porém não poden-
do ser desmerecido tal avanço legislativo.
No dia 08/03/2016 foi divulgado na imprensa oficial do Senado
que a Comissão de Direitos Humanos irá realizar diversas audi-
ências públicas para discutir a questão acima levantada, ou seja,
finalmente definir o que é trabalho escravo no Brasil, a fim de dar
eficácia a lei penal existente e infimamente aplicada.

CONCLUSÃO
Este artigo se prestou a tentar demonstrar em seu bojo a falta
de efetividade e eficácia da norma já estabelecida e a maior parte
de suas nuances e divergências, porém o tema não fora esgotado,
tamanha complexidade e discussão no mundo jurídico.

355
Conclui-se, também, que algumas medidas seriam necessárias
para que essa averiguação prévia ocorresse da forma desejada e
atingisse seu objetivo de prevenção.
Primeiramente, a anotação de todas as propriedades que de-
senvolvem atividades empresariais em cadastros de sindicatos da
categoria que ocupam, conforme a regional, para efetivar a libera-
ção de suas licenças para a produção e/ou exploração da terra e,
consequente, trabalho braçal.
Isto porque, atualmente os meios tecnológicos viabilizam a
troca de informações entre sistemas, designando-se mês a mês,
dias e locais a serem vistoriados, sem aviso prévio ao latifundiário
ou empresário e seus prepostos, independentemente de denúncia
por parte de qualquer individuo ou órgão classista, revertendo
para si à velha máxima de que “a vantagem que o rato tem sobre
o homem é saber quando o gato está chegando”.
Em segunda solução, o maior rigor na anotação dos emprega-
dores “Fichas Sujas”, colocando não somente 1% de empresas ou
propriedades rurais que lá se encontram, mas todos àqueles que já
tiveram condenação transitada em julgado na justiça do trabalho,
inclusive, não só na esfera penal, já que devidamente atendidos os
princípios de ampla defesa e contraditório em todas as vias legais
existentes na Ação Coletiva ou Reclamação Trabalhista.
Ainda nesta linha, criação de uma justiça trabalhista que te-
nha uma ramificação especializada de tratamento dos processos
que tenham como sujeitos ativo e passivo, trabalhadores e empre-
gadores envolvidos em lides que discutem a existência ou não de
trabalho na propriedade.
E por fim, elaboração de programa que trabalhe diretamente a
prevenção junto aos trabalhadores, com um centro de atendimen-
to que informe o direito destes ou ainda, que chame a atenção
para a existência de aliciadores na região, podendo este ocorrer
até em associação de moradores em cidades pequenas do interior

356
ou convocação geral em Praças e Câmara de Vereadores, provendo
assim, educação para o trabalhador.
Ao final, se conclui, pela observação dos capítulos elaborados, que
a melhor solução seria combater este mal na raiz, através da prevenção
continuada, persistente, setorizada e organizada pelos órgãos já consti-
tuídos, buscando mais educação para o trabalhador, a fim de que este
tenha condições de identificar quais de seus direitos estão sendo supri-
midos ou quais estão ameaçados, fazendo assim uma grande corrente
de vozes que ecoarão até aqueles que os poderão defender.

4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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lise jurídica da Exploração do Trabalho – Trabalho escravo e
outras formas de trabalho indigno, 3. Ed. São Paulo: LTr. 2013.

BRITO FILHO, José Claudio Monteiro de. Trabalho Escravo – Carac-


terização Jurídica – 1. Ed. São Paulo: LTr. 2014.

NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de Direito do Trabalho. 26.


Ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

PIOVESAN, Flávia. Trabalho escravo e degradante como forma de


violação dos direitos humanos. Trabalho escravo contemporâ-
neo: o desafio de superar a negação, NOCCHI, Andrea Saint
Pastous; VELLOSO, Gabriel Napoleão; FAVA, Marcos Neves (co-
ord.) 2. Ed São Paulo: LTr, 2011.

SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos


fundamentais na Constituição Federal de 1988. 4. Ed. Porto Ale-
gre: Livraria do Advogado, 2004.

357
REVISTA TRT 1ª REGIÃO: Trabalho Decente. Julho/dezembro 2011.

BRASIL, Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943. Diário Ofi-


cial da República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Rio de
Janeiro, RJ, 01 de maio 1943; 122. Da independência. 55. Da
República – Getúlio Vargas – Alexandre Marcondes Filho.

BRASIL, Constituição da República Federativa do. Saraiva. 2014.

BRASIL. Código Penal Brasileiro (atualizado). Saraiva. 2014.

BRASIL. Manual de Combate ao Trabalho Escravo – TEM.

BRASIL. Projeto de Emenda à Constituição nº 57A/1999 – PEC do


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GENÉBRA. Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU –


1948.

GENÉBRA. Relatório OIT de maio de 2005.

MONTREAL. Carta de princípios e objetivos da OIT – 1944.

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11/03/2016.

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358
Disponível em www.trabalhoescravo.mpf.mp.br. Último acesso em
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Disponível em www.trabalhoescravo.org.br. Último acesso em


11/03/2016.

Disponível em www.globo.com/g1. Último acesso em 11/03/2016.

Disponível em www.facebook.com./gptec. Último acesso em


11/03/2016.

359
A TUTELA COLETIVA DO ME IO
A MBI ENTE DO T RABALH O
Vanessa Lima do Nascimento92 e Lorena Silva de Albuquerque93

INTRODUÇÃO
Até o início do século XVIII não havia preocupação com a saúde
do trabalhador. Foi com o advento da Revolução industrial e de novos
processos industriais que começaram a surgir as doenças ou acidentes
de trabalho e, conseguintemente, a necessidade de elaboração de nor-
mas para melhorar o ambiente do trabalho em seus diversos aspectos.
E é nesse contexto pós revolução Industrial, em que são fixadas
pelo direito condições mínimas a serem observadas pelo emprega-
dor, que os direitos sociais ganharam status de normas fundamen-
tais, exigindo-se do Estado prestações positivas. E é no pós guerra
que os direitos fundamentais adquirem a dimensão de solidarie-
dade e fraternidade, notadamente através do reconhecimento da
existência de direitos transindividuais e difusos, de titularidade in-
determinado, dentre os quais desponta o direito ao meio ambiente
equilibrado, elemento essencial de construção da vida com qualida-
de, fundamental para a presente e futuras gerações.
Portanto, o meio ambiente do trabalho saudável e compatível com
a condição da pessoa humana, por ser faceta indissociável do direito
ao meio ambiente, é um direito fundamental do cidadão trabalhador,

92. Procuradora do Estado. Advogada. Graduada pela Universidade Federal do Ama-


zonas. Pós Graduada em Direito Processual Civil pela UNIDERP-Anhanguera. Email:-
[email protected]
93. Procuradora do Estado. Mestranda em Direito Ambiental pela Universidade do Esta-
do do Amazonas. Procuradora do Estado do Amazonas. Email: [email protected]

361
devendo lhe ser assegurado os meios necessários a defesa de tão pre-
ponderante direito a fim de que a tutela transindividual seja efetiva.

1 A EVOLUÇÃO DO DIREITO À SAÚDE DO


TRABALHADOR
Os problemas com a saúde do trabalhador não são novos. Fo-
ram os Romanos os primeiros a estabelecer a relação entre o traba-
lho e as doenças. Segundo George Rosen no livro “Uma História de
Saúde Pública”:

Plinio diz que algumas doenças são mais co-


muns entre os escravos. Vários poetas fazem refe-
rências aos perigos de certas ocupações. Marcial
menciona as doenças peculiares aos que traba-
lham com enxofre. Juvenal fala das veias vari-
cosas dos augures e das doenças dos ferreiros; e
Lucrécio se refere a dura sorte dos mineradores de
ouro (1994:45)

Não havia qualquer legislação protetiva aos trabalhadores e


qualquer medida para minimizar ou coibir os efeitos danosos da
matéria prima utilizada, serragem, poeira ou proteção contra aci-
dentes decorrentes da atividade em si eram tomadas pelos traba-
lhadores por conta própria.
Para Júlio Cesar de Sá da Rocha, a própria origem etimológica
da palavra “trabalho” vem do latim tripalium, que era um aparelho
destinado a sujeitar cavalos que não queriam deixar-se ferrar. Tripa-
liare significava torturar com o tripalium. (1997:29) O trabalho era,
portanto, concebido como algo terrivelmente penoso.
A obra do médico Bernardino Ramazzini lançado em 1700
na cidade de Módena na Itália foi considerado o texto básico da
Medicina Preventiva do Trabalho, porquanto, não obstante fosse
diminuto o número de normas regulamentando medidas de pro-

362
teção à saúde dos trabalhadores, o autor estudou 54 grupos de
trabalhadores, compreendendo mais de 60 profissões, e retratou
as enfermidades mais comuns em cada tipo de profissão, as me-
didas profiláticas que poderiam ser adotadas e eventuais métodos
de tratamentos das doenças (ROSEN:1994, p.85)
Posteriormente, a revolução industrial veio acelerar o cenário e
gerar novos e sérios problemas. Ao lado dos lucros, das máquinas e
da crescente expansão capitalista, aumentava a miséria, o número
de doentes e mutilados, dos órfãos e das viúvas nos sombrios am-
bientes de trabalho, além de habitações fétidas, epidemias generali-
zadas, trabalho de crianças e mulheres e muitas mortes.
As primeiras legislações a protegerem o trabalho foi a “Lei de
Saúde e Moral dos Aprendizes”, de 1802 na Inglaterra que foi a pri-
meira lei a conter prescrições de natureza sanitária. Na sequência,
sobreveio a Lei de 1831, proibindo o trabalho noturno para empre-
gados com menos de 21. Em 1833, sobreveio lei que regulamentou a
idade mínima para trabalhar em 9 anos de idade. Ainda na Inglaterra,
foram publicadas as leis de 1842, proibindo o trabalho das mulheres
e crianças no subsolo; de 1844, limitando o trabalho das mulheres a
10 horas diárias; de 1850 e 1853, fixando a jornada geral de trabalho
dos homens em 12 horas, entre outras (MELO: 2001, p.25-26)
Por sua vez, essa tendência intervencionista estatal em prol das
melhores condições dos trabalhadores, marcou a segunda metade
do século XIX em várias regiões da Europa e foi firmada com a fun-
dação da Organização Internacional do Trabalho (OIT), em 1919,
baseada no Tratado de Versalhes, com o objetivo de uniformizar as
questões trabalhistas e reverter as condições subumanas do traba-
lho. Desde a primeira reunião, a OIT adotou seis propostas desti-
nadas à proteção da saúde e à integridade física dos trabalhadores:
proteção à maternidade, trabalho noturno para mulheres, limitação
da jornada de trabalho, idade mínima para a admissão de crianças
e o trabalho noturno para menores.

363
No pós-guerra, considerando todo o contexto, foi aprovada em
1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos reforçando o direi-
to ao trabalho, condições justas e favoráveis de trabalho, propostas vol-
tadas à proteção quando ocorresse o desemprego, limitação de horas de
trabalho, direito ao repouso e direito às férias periódicas remuneradas. 
As relações de trabalho, portando, sempre existiram desde que
o homem se organizou em sociedade. No entanto, é possível men-
cionar as relações de trabalho antes e depois da revolução indus-
trial, que impôs a criação de um sistema de disciplina jurídica ade-
quado a um tipo de relação profundamente renovado.

2 MEIO AMBIENTE DO TRABALHO COMO


DIREITO FUNDAMENTAL:
Os direitos fundamentais, como adverte Noberto Bobbio, “são
direitos históricos” (BOBBIO: 1992, p.5). Isso porque eles são fruto
das conquistas do homem na luta contra a opressão estatal, nascen-
do de forma gradual e em circunstâncias específicas.
A primeira fase de proteção dos direitos fundamentais deu-se no
contexto do século XVIII, com a Declaração dos Direitos – Declaração
de Virgínia de 1776 e Declaração dos Direitos do Homem e do Cida-
dão de 1789 - e encontraram arcabouço especialmente na doutrina
iluminista e jusnaturalista, segundo a qual a finalidade precípua do
Estado consistia na realização da liberdade do indivíduo. São deno-
minados de direitos de resistência ou de oposição perante o Estado,
pois constituem liberdades públicas ou direitos humanos individuais,
notadamente o direito de liberdade e de propriedade, que o indivíduo
passou a possuir frente ao Estado, que se vê limitado a não cometer
excessos ou abusos. Por essa razão são encarados como direitos de
cunho “negativo”, vez que dirigidos a uma abstenção estatal.
Enquanto a primeira fase foi marcada por uma concepção libe-
ral, a segunda fase, impactada pelo reflexo da Revolução Industrial
e os graves problemas que a acompanharam, é marcada pela ideia

364
de homem enquanto coletividade, voltando-se para a proteção dos
direitos sociais que, por sua vez, demandavam por parte do Estado
um comportamento ativo para a realização dos mesmos. É após a
1ª Guerra Mundial que diversos países passaram a consagrar em
suas Constituições vários direitos pautados no valor da igualdade
como que direito fundamental, tais quais, direitos sociais, culturais
e econômicos, isto é, direitos coletivos.
Por sua vez, os direitos de terceira geração trazem como marca
distintiva a fraternidade ou solidariedade e residem basicamente
nos direitos de titularidade coletiva, indefinida e indeterminável,
como os direitos à paz, à autodeterminação dos povos, ao desen-
volvimento, ao meio ambiente e qualidade de vida, bem como o
direito à conservação e utilização do patrimônio histórico e cultural
e o direito à comunicação. (SARLET: 1998, p.51)
Ao se referir aos direitos fundamentais de terceira geração, No-
berto Bobbio afirma peremptoriamente que “o mais importante de-
les é o reivindicado pelos movimentos ecológicos: o direito de viver
num ambiente não poluído” (1992:6)
O meio ambiente é, portanto, considerado uma extensão do di-
reito à vida, pois a ideia de vida não se restringe a não morrer, mas
sim viver com qualidade e com dignidade, aspectos inerentes ao
direito ao meio ambiente saudável.
No Brasil, o conceito de Meio Ambiente é extraído da Lei nº
6.938/81 que o define como sendo “o conjunto de condições, leis,
influências e interações de ordem física, química e biológica, que
permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas”.
A Constituição Federal promulgada em 1988 foi a primeira
constituição brasileira a citar o termo meio ambiente e a delegar
ao poder público e à toda coletividade o dever de salvaguardar o
meio ambiente em que vivemos, tradicionalmente classificado di-
daticamente em quatro aspectos: meio ambiente natural, artificial,
cultural e laboral. (art. 225, CF) Dispôs, ainda, competir ao siste-

365
ma único de saúde “colaborar na proteção do meio ambiente, nele
compreendido o do trabalho” (art. 200, CF), além de estabelecer
como direito social dos trabalhadores urbanos e rurais a “redução
dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde,
higiene e segurança”(art. 7º, XXII, CF)
Para Rodolfo de Camargo Mancuso, Meio Ambiente do Tra-
balho é o “habitat laboral, isto é, tudo que envolve e condiciona,
direta e indiretamente, o local onde o homem obtém os meios para
prover o quanto necessário para a sua sobrevivência e desenvolvi-
mento em equilíbrio com o ecossistema”.
O respeito ao Meio Ambiente do Trabalho equilibrado, portan-
to, implica necessariamente na defesa do direito à vida, que é o
mais básico dos direitos fundamentais, nele se inserindo por visar
diretamente à qualidade de vida (art. 225, caput, CF) como meio
de atingir a finalidade de preservação e proteção à existência em
qualquer forma que essa se manifeste, bem como condições dignas
de existência à presente e às futuras gerações.
Assim, como aspecto integrante e indissociável do meio am-
biente geral é que o Meio Ambiente do Trabalho caracteriza-se
como direito fundamental, na medida em que é indispensável para
o alcance do direito à vida com qualidade.

3 INSTRUMENTOS JURÍDICOS DE PROTEÇÃO


AO MEIO AMBIENTE DO TRABALHO:
Como bem pontuado por Nobberto Bobbio, “o problema fun-
damental em relação aos direitos do homem, hoje, não é tanto o
de justificá-los, mas o de protegê-los. Trata-se não de um problema
filosófico, mas político” (1992:24).
Hodiernamente não se discute o reconhecimento de direitos
fundamentais ao cidadão, nem tampouco, de legislação que espe-
cialmente proteja o direito difuso ao meio ambiente equilibrado e
à sadia qualidade de vida, nele incluído direito ao meio ambiente

366
do trabalho. Discute-se, todavia, a efetivação destes direitos a fim
de que não se tornem mera letra morta, visto que não basta apenas
assegurar um direito, é necessário prever instrumentos que possam
garanti-lo em casos de eventuais violações.
A CF/88 trouxe avanços expressivos à proteção dos interesses difu-
sos lato sensu, dos quais se destaca a inovação do mandado de seguran-
ça coletivo, previsto no art. 5º, inciso LXX, que legitimou extraordina-
riamente partidos políticos, organizações sindicais, entidades de classes
e associações a submeterem ao judiciário lesão ou ameaça de lesão a
direito líquido e certo coletivo ou difuso, inclusive em face do meio am-
biente do trabalho (mandado de segurança coletivo ambiental).
O mandado de injunção, garantido pelo art. 5º, inciso LXXI da
CF/88, tem por escopo realizar concretamente em favor do impe-
trante direito, liberdade ou prerrogativa prevista em norma constitu-
cional de eficácia limitada94, quando a omissão do Poder Público em
regulamentar a matéria inviabilizar o exercício do referido direito. Na
modalidade coletiva possui, por analogia, os mesmos legitimados do
mandado de segurança coletivo95 e, obviamente, pode ser utilizado
na tutela do meio ambiente do trabalho em caso de eventual prescri-
ção constitucional atinente à matéria e que dependa de uma norma
regulamentadora, cuja falta torne seu exercício inviável.
O Habeas Corpus, previsto no art. 5º, inciso LXVII, poderá ser
utilizado em matéria ambiental sempre que a ilegalidade ou abuso de
poder estiver relacionada a crimes ambientais e, consequentemente,
puder importar em ofensa ao direito de locomoção do impetrante96.

94. José Afonso da Silva distingue as normas constitucionais em normas de eficácia


plena, contida e limitada. As de eficácia plena produzem efeitos diretos e imediatos e
não se sujeitam a restrições. As normas de eficácia contida, também incidem direta-
mente e imediatamente, mas poderão ter seu conteúdo e alcance restringido por lei
infraconstitucional. As normas de eficácia limitada possuem eficácia mediata e indi-
reta e dependem de lei regulamentando o direito para que este possa ser exercido e,
enquanto não editada a lei, possuem apenas eficácia negativa proibindo a edição de
normas infraconstitucionais em sentido oposto. (SILVA, José Afonso. Curso de Direito
Constitucional Positivo.24ªed.rev.atual., Ed. Malheiros: São Paulo, 2005).
95. Lei 8.038/90, art. 24, parágrafo único.
96. Nesse ponto, cumpre registrar que é possível a responsabilidade penal da pessoa
jurídica pela prática de crime ambiental (art. 225, §3º, CF). Relativamente ao manejo

367
A Carta Magna manteve inalterados os direitos de representa-
ção e petição, bem como alargou o conceito da Ação Popular, no
art. 5º, LXXIII, constando expressamente a possibilidade de qual-
quer cidadão atacar o ato lesivo ao meio ambiente (ação popular
ambiental). O Habeas data, outrossim, previsto no art. 5º, inciso
LXXII, poderá ser manejado para conhecimento de informações e
retificação de dados constantes de registros ou bancos de dados
governamentais ou de caráter público.
Por fim, o elemento mais utilizado, que é a Ação Civil Públi-
ca, incialmente previsto na Lei nº 7.347/85 e que adquiriu status
constitucional na CF/88 no art. 129, III, ao ter sua promoção inclu-
ída dentre as funções institucionais do Ministério Público, tendo,
ainda, como legitimados concorrentes e disjuntivos as entidades
estatais, paraestatais e associações civis na defesa dos interesses
difusos e coletivos, em especial do meio ambiente.
A ação civil pública tem sido largamente utilizada como meio
de proteção ao Meio Ambiente do Trabalho, tanto no trato preven-
tivo quanto no de reparação do dano perpetrado, razão pela qual
se revela o instrumento jurídico basilar da jurisdição civil coletiva.
Nesse sentido, lecionando acerca da sua aplicabilidade na seara
trabalhista, pontifica Marcos Neves Fava:

No universo do processo do trabalho, várias


são as razões que ensejam o uso da ação coletiva,
quer na proteção de direitos individuais homo-
gêneos, quer na de coletivos, quer na de difusos.
A primeira coincide, como dito linhas acima, cm
os minúsculos direitos, se individualmente toma-
dos, decorrentes da minudente legislação laboral

do Habeas Corpus, os tribunais superiores não são pacíficos no que tange à possi-
bilidade da pessoa jurídica figurar como paciente. O STF entende não ser possível,
vez que a pessoa jurídica jamais poderá vir a ser efetivamente presa (HC 88747 AgR,
15/09/2009) e o STJ entende que é possível desde que os corréus pessoas físicas
também sejam pacientes do remédio (RHC 28.811/SP, 13/12/2010).

368
pátria; a segunda, com a natureza praticamente
sempre transindividual das relações de trabalho,
envolventes que são de um grupo de trabalha-
dores, em situação homogênea, diante do con-
tratante; a terceira, a existência de uma gama de
violações estupendas de direitos fundamentais,
contra as quais não há condição de defesa in-
dividual; a quarta, a busca de tutela de direitos
trabalhistas, no curso do contrato, mostra-se, em
regra, impossível, em razão das represálias im-
postas ao trabalhador; e a quinta, que da última
decorre, a tutela dos interesses que se dá após o
contrato é apenas reparador e não soluciona a lide
potencial. Dessa forma, não assegurado o adicio-
nal de insalubridade para o operador de prensa
de determinada empresa, após a sua demissão,
o trabalhador, individualmente, persegue o pa-
gamento de indenização compensatória, mas o
outro operário, que toma o seu lugar, de nenhum
direito usufrui, não obstante o posicionamento
do judiciário anterior sobre o tema (2008:85)

Obviamente, as mesmas razões são aplicáveis quando o objeto da


ação civil púbica for o meio ambiente do trabalho, posto que a ação
coletiva funciona como uma “ação sem rosto” e disponibiliza proteção
genérica, de caráter transindividual, sem comprometimento do empre-
go e com o aproveitamento da coisa julgada ultra partes e erga omnes.
A ação civil pública trabalhista pode ter variadas hipóteses,
das quais, para algumas já houve intento prático jurisdicional,
quer pelo Ministério Público do Trabalho, quer pelos Sindicatos,
e para outras, ainda não. Destacamos os seguintes exemplos de
Marcos Neves Fava (2008: 86-109):

369
Ação civil pública para combate à escravidão, como a exploração
de imigrantes irregulares em confecções nos grandes centros; envio
de trabalhadores para locais distantes com antecipação de custos de
viagem hospedagem e alimentação; ou cárcere privado em fazenda
guardadas por milícias particulares (RO 4453/2003, TRT 8ªR, 1ª T, J.
30/09/2003; RO 00073, TRT 10ªR, 2ª T, DJU 30/5/2003) e coibir prá-
ticas exploratórias do trabalho infanto-juvenil, visando a aplicação
das regras de segurança e medicina do trabalho.
A ação poderá ser intentada para salvaguardar a saúde e o
meio ambiente do trabalhador, para que haja a efetiva aplicação
das normas de segurança e medicina do trabalho, como por exem-
plo, para evitar as condições desumanas nas carvoarias (TRT 24ª R,
AD n.1/93. AC TP N. 612/95); para que haja entrega, treinamento
e fiscalização de usos dos EPI; para observância das normas de
ergonomia; para apuração e pagamento dos adicionais de remune-
ração; para implementação de programas legais para empresas com
mais de 20 trabalhadores como: Programa de Prevenção de Riscos
Ambientais (PPRA); Laudo Técnico de Condições Ambientais do
Trabalho (LTCAT); Programa de Controle Médico de Saúde Ocupa-
cional (PCMSO); para organização e instalação das CIPAS; para trei-
namento específico e suficiente aos trabalhadores que trabalham
em condição de risco acentuado mesmo que terceirizados.
Poderá, ainda, ser utilizada para coibir a discriminação no
ambiente do trabalho, que embora de difícil prova, pode se ex-
terna na fase précontratual, quando houver anão contratação em
razão de alguma condição pessoal do trabalhador, como figurar
em lista negra da justiça do trabalho, homossexualidade, religião,
doença socialmente estigmatizada, cor, sexo, etc. e na fase contra-
tual, em casos de demissão discriminatória, sonegação de promo-
ção ou discrepância remuneratória.
Diante do seu amplo objeto e dos constantes descumprimentos
das regras de segurança e medicina do trabalho que a ação civil

370
pública desponta, hodiernamente, como o grande instrumento de
defesa dos interesses metaindividuais. Dúvidas, no entanto, tem
surgido acerca de que órgão do poder judiciário seria competente
para apreciar as ações envolvendo o meio ambiente do trabalho, o
que passaremos a enfrentar.

4 COMPETÊNCIA PARA JUGAMENTO


DAS QUESTÕES ENVOLVENDO O MEIO
AMBIENTE LABORAL:
Antes da Emenda Constitucional nº 45/2004 a competência
da Justiça do Trabalho era limitada às ações entre “trabalhadores
e empregadores”, ou seja, decorrentes da “relação de emprego”
disciplinada pela CLT, e, “na forma da lei, outras controvérsias
decorrentes da relação de trabalho”. Após, esta competência foi
significativa ampliada, passando a contemplar todas as controvér-
sias oriundas e/ou decorrentes da relação de trabalho. Com isso,
a Justiça do Trabalho passou a ser competente para processar e
julgar as ações sobre os autônomos, os trabalhadores eventuais,
os estatutários, os cooperados, entre outros.
Atualmente, para a fixação da competência da Justiça do Tra-
balho é suficiente que a causa de pedir e o pedido sejam oriundos
ou decorrentes de uma relação de trabalho. Logo, sendo o am-
biente de trabalho o local onde as relações de trabalho se desen-
volvem, é evidente que as ações sobre esse tema são da compe-
tência material da Justiça do Trabalho.
Embora inicialmente a jurisprudência do STJ tenha se inclinado a
atribuir a competência para o julgamento das causas relativas ao meio
ambiente do trabalho à Justiça Comum97, o e. Supremo Tribunal Fede-
ral decidiu no RE nº 206.220-1, julgado em 16.03.1999, Relatoria do
Min. Marco Aurélio, no qual se discutia a precariedade das condições
de trabalho de 21 bancos de Juiz de Fora, que a competência material

97. STJ, 1ªSeção, CC 2804 – MS, Rel. Min. Antônio de Pádua Ribeiro, j. 24/03/1992

371
era da Justiça do Trabalho para demandas coletivas decorrentes de
aplicação das normas de medicina, segurança e saúde do trabalhador.
Assim, o entendimento em questão foi pacificado, antes mesmo
da promulgação da Emenda Constitucional n.º 45/2004, constando,
inclusive do verbete da Súmula n.º 736, aprovada na Sessão Plenária
de 26.11.2003, que dispõe que “Compete à Justiça do Trabalho julgar as
ações que tenham como causa de pedir o descumprimento de normas
trabalhistas relativas à segurança, higiene e saúde dos trabalhadores”.
Questão que gerou controvérsia diz respeito ao meio ambiente de
trabalho dos servidores públicos em sentido estrito, assim entendido
aqueles que não são regidos pela CLT, mas por Estatuto próprio, ante
o que restou decidido pelo E. Supremo Tribunal Federal na ADI n.º
3395 que, atribuindo ao art. 114 interpretação conforme à Constitui-
ção, suspendeu toda a interpretação que pudesse atribuir à Justiça
do Trabalho a competência para julgar causas instauradas entre o
poder público e seus servidores, a ele vinculados por típica relação
de ordem estatutária ou de caráter jurídico-administrativo, de modo
que esta competência permaneceu sendo da Justiça Comum.
Neste ponto, deve-se gizar que a referida decisão excluiu da
competência da Justiça do Trabalho apenas as causas entre o Po-
der Público e seus servidores estatutários (“causas instauradas
entre o Poder Público e servidor que lhe seja vinculado por relação
jurídico-estatutária”) e, no caso, as ações sobre o meio ambien-
te do trabalho são coletivas, ou seja, ajuizadas por substitutos
processuais reconhecidos pela legislação e não pelos servidores.
Além disso, embora alguns servidores que laboram nos prédios e
imóveis mantidos pelo Estado tenham suas relações regidas por
Estatuto próprio (distinto da CLT), é fato que outros tantos são re-
gidos pela CLT e pela legislação trabalhista (leia-se não “jurídico-
-estatutária”), entre os quais é possível incluir os estagiários e os
empregados das empresas terceirizadas, responsáveis pela limpe-
za, conservação, segurança e outros serviços auxiliares.

372
Por essas razões, após a referida Emenda, O STF proferiu um
acórdão sem igual em que, sem dar tanta relevância à natureza do
regime jurídico de trabalho para definição da competência juris-
dicional para conhecer de ação civil pública na qual se buscava a
adequação do meio ambiente de trabalho no Instituto de Medicina
Legal de Teresina, reconheceu-a para a Justiça do Trabalho apesar
de o Estado do Piauí alegar que seu pessoal se submetia a Estatuto
próprio, e não à Consolidação das Leis do Trabalho (Reclamação nº
3.303-PI, relator Min. Carlos Ayres Britto, Pleno. DJE de 16.5.2008).
Restou reafirmado e ratificado, no particular, o entendimento
manifestado na Súmula n.º 736 daquele e. Tribunal.
Em seu voto, o eminente Ministro Celso de Mello destacou,
com muita propriedade, que:

O fato é que essa ‘causa petendi’ estaria a su-


gerir, longe de qualquer debate sobre a natureza
do vínculo (se laboral ou não, se de caráter es-
tatutário, ou não), que se pretende, na realidade,
e numa perspectiva de pura metaindividualidade,
provocada pela iniciativa do Ministério Público,
saber se normas referentes à higiene e à saúde
do trabalho estariam sendo observadas, ou não,
por determinado ente público. (...)Exatamente por
esse aspecto o Relator não enfrentou a questão do
vínculo. Examina-se, na realidade, apenas a justi-
ça competente para julgar uma ação civil pública
relativa à higiene do trabalho”.

Seguindo a orientação do STF, o Tribunal Regional do Trabalho


da 22ª Região, ao julgar o Recurso Ordinário interposto nos autos
da Ação Civil Pública n.º 1251-2004-002-22-00-6, decidiu:

EMENTA: RECURSO ORDINÁRIO. AÇÃO CIVIL


PÚBLICA. VIOLAÇÃO ÀS NORMAS DE SAÚDE,

373
HIGIENE E SEGURANÇA DO TRABALHO. COM-
PETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO. Com-
pete à Justiça do Trabalho julgar as ações que
tenham como causa de pedir o descumprimento
de normas trabalhistas relativas à segurança,
higiene e saúde dos trabalhadores (Inteligência
da Súmula 736 do STF).  AÇÃO CIVIL PÚBLICA
QUE VISA À PROTEÇÃO DO MEIO AMBIENTE
DO TRABALHO. LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO
PÚBLICO DO TRABALHO. Nos termos do art.83,
III, da Lei Complementar nº 75/1993, compete ao
Ministério Público do Trabalho promover a ação
civil pública no âmbito da Justiça do Trabalho
para defesa de interesses coletivos, quando des-
respeitados os direitos sociais constitucionalmente
garantidos. Em casos como o dos autos, em que
as agressões ao meio ambiente do trabalho se
traduzem em ofensa à dignidade da pessoa hu-
mana e aos valores sociais do trabalho e envol-
vem interesses difusos e coletivos, é inegável a
legitimidade do MPT para a propositura da ação
civil pública correspondente, sendo irrelevante o
fato de os trabalhadores prejudicados serem sub-
metidos a regime celetista ou estatutário.

Inconteste, pois, a competência material absoluta da Justiça do


Trabalho para as causas que versem sobre o meio ambiente, saúde e
medicina do trabalho, notadamente porque se trata de matéria cor-
rente e cotidiana à jurisdição especializada, sendo certo que maior
afinidade terá o magistrado do trabalho e melhor aparelhado estará
esse ramo do Judiciário para conhecer das questões coletivas nos
mesmos fatos e direitos enfrentados diariamente no foro.

3 74
CONCLUSÃO
Diante da complexidade das relações econômicas, sociais e polí-
ticas e do surgimento dos fenômenos de massa, construiu-se a com-
preensão de uma categoria de direitos que não pertencem a ninguém
exclusivamente, mas pertencem a todos simultaneamente, os denomi-
nados direitos difusos, que passaram a ser objeto de uma maior preo-
cupação do cientista, legislador e aplicador do direito. Dentre estes, o
direito essencialmente difuso a um meio ambiente do trabalho equili-
brado é fundamental porquanto essencial à sadia qualidade de vida.
A Constituição Federal de 1988 ao seguir a tendência mundial
e reconhecer o direito ao meio ambiente como direito fundamental,
nele inserido o meio ambiente do trabalho, disponibilizou para a
sua efetivação todas as garantias e remédios constitucionais para a
defesa deste, inovando ao possibilitar a impetração de Mandado de
Segurança Coletivo e constitucionalizando o instituto da ação civil
pública, além de, em ambos os casos, possibilitar o amplo acesso à
jurisdição através dos legitimados concorrentes.
Por sua vez, a legislação e a jurisprudência evoluíram para re-
conhecer a competência da Justiça Especializada do Trabalho como
competente para as causas que versem sobre meio ambiente, saúde
e segurança do trabalho independentemente do vínculo jurídico en-
tre empregado e empregador, tendo em vista ser a mais aparelhada
para o enfrentamento destas questões.
Assim, pode-se concluir que a salvaguarda do homem traba-
lhador, enquanto ser vivo, das formas de degradação e poluição
do meio ambiente onde exerce seu labuto, bem como de todas as
condições e fatores que o envolvem é metaindividual e apenas
através de uma demanda coletiva pode-se prevenir e resguardar
com efetividade esse direito fundamental sob o signo da justiça,
na medida em que disponibiliza proteção genérica e homogênea
aos trabalhadores sem comprometimento do emprego destes ou
de possibilidade de represálias.

375
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N A C I DADE DO RIO DE JANE IR O
- DI SC URSOS S OBRE VIOLÊ N C IA
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REDES MIDIÁT ICAS
Fábio Rodrigues Holanda98, Natalia Pinto Costa99 e Paula Barbosa
Venancio Alencar100

Introdução
O presente artigo pretende mostrar como a mídia, com seu po-
der de influência, se relaciona intrinsecamente com a cultura de
estupro, bem como tecer breves comentários a respeito do caso
concreto de estupro coletivo ocorrido na cidade do Rio de Janeiro
como sendo um produto da midiatização do crime.
O termo “cultura de estupro” começou a ser popularizada nos
últimos anos em virtude de casos de estupro marcantes, em estudo
neste presente artigo o caso do estupro coletivo ocorrido em maio
de 2016, e foi adotado para denominar a consequência da mera
naturalização de atos, comportamentos e crenças de cunho patriar-
cal, que estimulam e até mesmo assentem para diversas formas de
violência contra as mulheres.

98. Graduado em Direito (UNIFOR), mestre em Direito Constitucional e Teoria Política


(UNIFOR), Professor vinculado a Universidade de Fortaleza - UNIFOR, e-mail: profes-
[email protected]
99. Graduanda em Direito, vinculada à Universidade de Fortaleza - UNIFOR, e-mail:
[email protected]
100. Graduanda em Direito, vinculada à Universidade de Fortaleza - UNIFOR, e-mail:
[email protected]

381
Ainda que, dos anos 30 em diante, a mulher tenha conquista-
do espaço na sociedade por diversos meios, principalmente com
apoio do ordenamento jurídico brasileiro, como por exemplo é o
caso do direito ao voto em 1932, a ratificação da igualdade entre
sexos e a Lei Maria da Penha de 2006, percebe-se um retrocesso
quando se trata dos direitos e da forma que as mulheres são trata-
das em detrimento dos homens. O avanço na seara legislativa não
foi o suficiente para prevenir acontecimentos como o estupro em
relação a número de casos do referido crime.
A cultura de estupro mostra o reflexo de nossa sociedade mi-
sógina, patriarcal e conservadora, que por vezes coloca a mulher
como objeto e não como um ser de direito, e que de forma bas-
tante distorcida, justifica crimes transformando a vítima – no caso
do estupro, majoritariamente mulheres – no principal sujeito a
ser investigado, e não o acusado, como ocorre em outros fatos
típicos descritos pelo Código Penal brasileiro. Mesmo que o crime
de estupro seja veemente condenado pelas vias morais e judiciais,
observa-se o fator da cultura de estupro inibir denúncias, investi-
gações, e assim reduzir o alcance da repreensão punitiva do Esta-
do, como será demonstrado a seguir.

1.1 Aspectos Culturais


O termo “cultura de estupro” foi registrado pela primeira vez
em 1974, nos Estados Unidos, no livro “Rape: The First Sourcebook
for Women”, por Noreen Connel e Cassandra Wilson, e é designa-
do para identificar hábitos de uma sociedade nos quais a violência
sexual contra mulheres é tanto prevalente como normalizada pela
sociedade, um modus operandi que apesar de condenável, torna-se
aceitável em determinadas condições. Pode ser visto como um con-
junto complexo de práticas e convicções que encorajam a agressão
sexual masculina em geral e a violência contra as mulheres, princi-
palmente tendo em vista que estas são as principais vítimas dos cri-

382
mes contra a liberdade sexual, como demonstrado em nota técnica
do Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (IPEA), que afirma
que 88,5% das vítimas de estupro são mulheres, no ano de 2011.
A normalização desse tipo de cultura é percebida desde o nas-
cimento das crianças; a criação de homens e mulheres é historica-
mente diferente, onde a sexualidade masculina é exaltada e exerci-
da na forma mais livre possível, enquanto a sexualidade feminina é
reprimida, e muitas vezes as mulheres são privadas de conhecer e
gozar de seus direitos fundamentais, como a própria liberdade. São
ensinadas a observar as roupas que usam, com quem andam, por
onde vivem – ou seja, precisam se policiarem para que não “pro-
voquem” os homens e não sofram a reação masculina diante disso.
Quando infelizmente ocorre o crime de estupro, vários questiona-
mentos sobre a índole da vítima – sim, da vítima e não do acusado
– são levantados, como “onde ela estava?”, “com que roupa ela
estava?”, além de perguntas sobre a vida pregressa da vítima, seus
hábitos, seus parceiros sexuais, dentre outros.
Em 2014 o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) fez
uma pesquisa chamada Sistema de Indicadores de Percepção Social
– Tolerância social à violência contra as mulheres, que consistia na
análise dos numerários sobre o quão é aceitável a hostilidade em
relação ao sexo feminino. Revelou, assustadoramente, que 63% dos
brasileiros concordam total ou parcialmente que casos de violência
dentro de casa devem ser discutidos somente entre os membros da
família – inibindo dessa forma inúmeras denúncias quando tratamos
de violência sexual no âmbito familiar, principalmente de crianças e
adolescentes que são as maiores vítimas desse tipo de crime.
Também demonstrou que 58,5% da população concorda, total
ou parcialmente, que, se as mulheres soubessem se comportar,
haveria menos estupro. Isso denota uma grave crença de que a
vítima, novamente, tem parcela de culpa no crime em que sofre,
fruto de uma sociedade patriarcal castradora dos direitos das mu-
lheres sobre seus corpos.

383
No próprio Sistema Judiciário a vítima é recebida com certa
desconfiança, como, por exemplo, aconteceu com a adolescente ví-
tima de estupro coletivo no Rio de Janeiro em maio de 2016. Duran-
te o decorrer da investigação, o delegado responsável perguntou se
ela, a jovem, tinha o costume de praticar relações sexuais com múl-
tiplos parceiros. Ao fazer tal questionamento, há como se enxergar
uma possibilidade de que não aconteceu um estupro no caso, ainda
que os vídeos expostos pelos suspeitos demonstrem que a mesma
estava desacordada, sangrando, enquanto ocorria o ato sexual; ma-
terial esse publicado livremente nas contas de rede sociais deles,
com comentários e vídeos com piada sobre o acontecido. 101
Esse tipo de análise sobre quão válida pode ser a palavra da
vítima reflete notoriamente na vontade desta em denunciar o acon-
tecido para as autoridades competentes. Na Pesquisa Nacional de
Vitimização, feita em 2013 pelo Datafolha, apenas 7,5% das vítimas
fazem a notificação para as autoridades. A mesma pesquisa revela
que a satisfação com a atuação da Polícia no momento da assistên-
cia é de 41,2%, bem inferior em relação a outras ocorrências.
A palavra da vítima tem um poder maior além de abrir espaço
para a ação penal condicionada do crime de estupro: é possível
obter a condenação do réu apenas tendo o depoimento da vítima,
quando ela for a única a presenciar (e sofrer) o ocorrido. Ainda que
seja tema delicado, pois no Direito Penal brasileiro há o princípio da
não-culpabilidade como norte para análise, o Superior Tribunal de
Justiça, em decisões acertadas, tem acórdãos com esse teor, tendo
em vista o fato de que muitas vezes o estupro é cometido na clan-
destinidade, como demonstrado a seguir:

REGIMENTAL. AGRAVO EM RECURSO ESPE-


CIAL. ESTUPRO COM PRESUNÇÃO DE VIOLÊN-
CIA. ABSOLVIÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. INCIDÊN-

101. http://www.bbc.com/portuguese/brasil-36406987>. Acesso em 11 de agosto de 2016.

384
CIA DA SÚMULA 7/STJ. CONDENAÇÃO BASEADA
NA PALAVRA DA VÍTIMA. POSSIBILIDADE. RE-
CURSO IMPROVIDO.
1. Reconhecida a materialidade e a autoria do
delito pelo Tribunal de origem, a pretensão de ser
absolvido em sede de recurso especial esbarra no
óbice da Súmula 7/STJ.
2. Inexiste ilegalidade no fato de a condenação
referente aos crimes contra a dignidade sexual es-
tar lastreada na prova oral, especialmente no de-
poimento da vítima, já que tais ilícitos geralmente
são praticados à clandestinidade, sem a presença
de testemunhas, e muitas vezes não deixam ras-
tros materiais.
3. Agravo regimental a que se nega provimento.

Novamente, em caso similar:

PENAL E PROCESSUAL PENAL. HABEAS COR-


PUS SUBSTITUTIVO. NÃO CONHECIMENTO DO
WRIT. ART. 217-A, DO CP. PALAVRA DA VÍTIMA.
ALEGAÇÃO DE FALTA DE PROVAS PARA A CON-
DENAÇÃO. REEXAME DE PROVAS. IMPOSSIBILI-
DADE.
1. Ressalvada pessoal compreensão diversa,
uniformizou o Superior Tribunal de Justiça ser
inadequado o writ em substituição a recursos
especial e ordinário, ou de revisão criminal, ad-
mitindo-se, de ofício, a concessão da ordem ante
a constatação de ilegalidade flagrante, abuso de
poder ou teratologia.
2. Tendo as instâncias ordinárias indicado os ele-
mentos de prova que levaram ao reconhecimento
da autoria e, por consequência, à condenação, não

385
cabe a esta Corte Superior, em habeas corpus, des-
constituir o afirmado, pois demandaria profunda
incursão na seara fático-probatória, inviável nessa
via processual.
3. É pacífico o entendimento desta Corte Supe-
rior no sentido de que, em se tratando de crimes
contra os costumes, a palavra da vítima assume
grande importância, mormente porque, em regra,
tais delitos são praticados sem a presença de tes-
temunhas.
4. Habeas corpus não conhecido.

No entanto, mesmo com tais decisões de caráter progressista do


colendo órgão julgador, ainda é necessária uma mudança urgente
em relação a como a vítima é tratada no meio jurídico, principal-
mente quando se trata de crime tão gravoso e delicado quanto este.

1.2 Estupro Coletivo do Rio de Janeiro e


a influência da mídia para a vitimização
Neste tópico pretende-se abordar o impacto midiático e as con-
sequências na construção do estereótipo do acusado, bem como
ressaltar a forma pela qual a mídia colabora para a mitificação da
contribuição da vítima nos casos de crimes sexuais, questionando
o direito da mulher sobre o seu corpo.
Hodiernamente, é bastante típico nas redes sociais e em outros
meios de comunicação a exposição de diversos casos de estupros
e outros tipos de violência sexual, porém, um fator que merece
destaque é a maneira como tais casos são relatados pela mídia e a
contribuição para a construção da culpabilização da vítima.
Recentemente, em maio de 2016, ganhou grande destaque nos di-
versos meios de comunicação e midiáticos o caso da jovem de 16 anos
que sofreu um estupro coletivo no Rio de Janeiro. Foram compartilha-

386
dos diversos vídeos e fotos da vítima desacordada e nua, acredita-se
que pelo menos 30 homens seriam autores da prática delituosa. 102
Em relação ao estupro coletivo na cidade do Rio de Janeiro,
questiona-se a forma como o caso foi relatado pela mídia, e o im-
pacto da repercussão nas redes sociais como Facebook e Twitter,
nota-se que as mídias jornalísticas e a forma como foi compartilha-
da a notícia nas redes sociais, contribuíram para a potencialidade
das práticas de culpabilização da vítima, acrescentando ainda que a
plataforma virtual configura-se como uma expansão dos meios de
comunicação, classificando-se em uma ferramenta multidirecional,
ou seja, capaz de propor uma interatividade maior entre os leitores.
O termo culpabilização da vítima (derivado do termo inglês victim
blaming) foi usado pela primeira vez em 1971, pelo psicólogo William
Ryan em seu livro Blaming the Victim, tal expressão era relacionada
para citar os negros dos Estados Unidos que eram vítimas de precon-
ceito racial, porém tal termo foi expandido seu significado e atual-
mente está atrelado as questões relacionadas a responsabilização da
mulher perante as práticas delituosas e abusivas por ela sofrida.
No caso concreto apresentado, nota-se esse discurso sendo
construído em torno da vítima caracterizando-a como culpada pela
violência pela qual foi acometida, para comprovar isto basta uma
análise de alguns comentários feitos através da rede social: ‘’tem
mulheres que pedem para serem estupradas mesmo, andam prati-
camente peladas, depois reclamam ‘’; ‘’A mulher tem culpa sim. É
mesmo que sentar nua em cima do cara […]’’ “ A ocasião faz o la-
drão’’. Nada contra uma mulher usar saia, uma blusa menor. Usem
com moderação mulherada. Se respeitem’’ .103
Comentários como esse refletem a mitificação de que a mulher
é culpada por sofrer qualquer tipo de violência sexual; além dis-

102. http://brasil.elpais.com/brasil/2016/06/06/politica/1465227662_072190.html
Acesso em dia 22 de setembro de 2016
103. http://www.brasilpost.com.br/2016/05/26/video-estupro-coletivo_n_10144610.
html Acesso em dia 22 de setembro de 2016.

387
so, acrescenta-se ainda que a vítima foi questionada e considerada
culpada do estupro, uma vez que diversas notícias a apresentaram
como usuária de entorpecentes, áudios circularam por diversas re-
des sociais afirmando que a mesma já havia praticado sexo em
grupo, contribuindo assim com a manutenção da crença em que
a mulher sob certas condições é agente em relação ao que sofreu.
Posturas como estas reafirmam a representação da mulher como
subordinada aos homens em diversos aspectos, principalmente na
área sexual, reafirmando uma violência de gênero e uma hierarquia
social, tolhendo ainda a liberdade sexual da mulher. Ressalta-se que
a mídia constrói um sentimento de medo, vergonha e culpa para a
vítima, enquanto para o autor/agressor da violência sexual não há
nenhuma mácula mais grave vinculada a sua imagem.
Outro ponto que merece destaque é a forma como as notícias
de casos como este são compartilhadas, pois não se contextualiza
e nem se demonstra que a cultura de estupro é um problema social
e que afeta a população muito mais do que isso, dando a entender
que são apenas casos isolados e que essa conduta é um fato atípico
no cotidiano. Infelizmente tal entendimento encontra-se longe de
ser verdade, pois segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Públi-
ca do ano de 2015, apenas na cidade do Rio de Janeiro no ano de
2013 foram registradas 5.885 vítimas e no ano de 2014 mais 5.676,
sem mencionar os casos não notificados; logo, ignora-se o fator
sociológico para cunho meramente sensacionalista.
É possível também colocar em discussão o papel da mídia ao
expor esses casos, pois a relação da sociedade com a mídia e com o
crime é intertextual. Quando se olha para os suspeitos em questão,
poucas vezes nota-se um tom de asco, ou de surpresa para eles; é
veiculado como um evento comum, ainda que tenha sido incomum
o número de suspeitos in casu, sem ao menos questionar o motivo
de tantos homens realizarem em conjunto crime tão abominável.
Além disso, os canais de comunicação e notícia tem para si a
possibilidade de transformar a notícia da forma que mais interes-

388
sar. Em peso, observa-se que é possível trazer à baila o ocorrido
de forma a fortalecer a cultura de estupro, colocando nos títulos
das matérias expressões e frases denominados “caça-cliques”, onde
exploram o crime de forma ordinária para mera satisfação do públi-
co, perpetuando toda a estrutura que ampara o acontecimento do
estupro, e que o reconhece como corriqueiro.
Por outro lado, a mídia pode ser um agente de mudanças do
meio. Em 2015, houve a campanha #meuprimeiroassedio, iniciada
pelo “Think Olga”, um coletivo feminista de Juliana de Faria, na
qual as pessoas eram convidadas a falar sobre o primeiro assédio
que lembraram de ter sofrido, que tomou grande repercussão nas
vias online. Foi noticiado nos grandes veículos de comunicação,
propagando a mensagem de que o assédio não depende da vítima,
ou de quaisquer condições em que a vítima esteja, de forma a expli-
car e combater a cultura de estupro. Ao falar sobre tal campanha, o
acesso a esse tipo de informação para as grandes massas é transfor-
mador, levando para estas uma possível quebra de paradigma, além
da possibilidade de colocar em diálogo toda a questão.

1.3. Análise Legislativa


Após a grande repercussão de casos de estupros coletivos, em
estudo o da adolescente de 16 anos do Rio de Janeiro, por causa da
gravidade e também por ter vídeos seus divulgados em redes sociais,
ainda em maio deste ano, foi sancionada a PLS 618/2015 de autoria
da Senadora Vanessa Grazziotin, que acrescentou uma causa de au-
mento ao crime de estupro, se este for cometido por duas ou mais
pessoas, tal causa aumenta a pena em 1/4. Atualmente, o Código Pe-
nal tem como preceito secundário para o crime de estupro a pena de
reclusão de 6 a 10 anos, ou seja, quando o crime de estupro ocorrer
de forma coletiva, poderá elevar essa punição para 12 anos e meio.
Porém, nem sempre medidas punitivas se mostram de forma tão
eficazes quando o propósito é de inibir a conduta. No decorrer da his-

389
tória brasileira o crime de estupro sempre teve uma punição bastante
severa pela legislação penal; no Código Penal do Império, de 1830,
determinava a pena de 3 a 12 anos, existindo o aumento de pena em
¼ na hipótese de concurso de agente, o Código Penal de 1940 trazia
em sua redação original a pena de 3 a 8 anos, mas com as alterações
da Lei 12.015/2009 a pena passou a ser então de 6 a 10 anos, o au-
mento de pena jamais significou redução na ocorrência desse crime.
A respeito das mudanças ocorridas pela Lei 12.015/2009, que
alterou o art. 213 e acrescentou o art. 217-A ao Código Penal, além
de alterar o Título VI da Parte Especial do Código Penal que ante-
riormente era denominado como ‘’Dos Crimes contra o costume’’,
nomenclatura esta que sofria diversas críticas, sendo reformulado
para ‘’Dos Crimes contra a dignidade sexual’’, considerado um
grande avanço por ter se adaptado as mudanças sociais que tinham
ocorrido aos longos dos anos, bem como sintonizar os entendimen-
tos e jurisprudências sobre a matéria, trazendo assim a figura da
‘’Dignidade Sexual’’ e este passou a ser mais um dos bens jurídico
tutelado pelo nosso Código Penal.
Acrescenta-se que antes dessas mudanças e até mesmo do Có-
digo Penal de 1940, o Código Penal do Império e o Código Penal
de 1890 possuíam uma excludente de culpabilidade no crime de
estupro quando o agressor cassasse com a vítima posteriormente
a prática delituosa, tendo ainda uma forma privilegiada, quando
o crime era praticado contra prostituta ou ‘’ mulher pública’’, co-
minado a pena de 6 meses a 2 anos, porém tudo foi revogado pelo
nosso Código Penal vigente.
Temos também a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006), a qual
recentemente completou 10 anos, que trata a respeito da violência
doméstica, tendo ainda medidas de proteção a mulher vítima des-
sa violência, portanto não só punitivista, mas também protetiva.
Apesar de todos esses avanços que caminham em direção a uma
proteção maior das mulheres contra violência de gênero, não se

390
tem resultados práticos ao enfrentamento à cultura de estupro; é
necessário construir e estimular a consciência das questões de gê-
nero, desenvolvendo educação sexual e de gênero nas escolas e nas
universidades, tendo em vista a importância das pessoas aprende-
rem mais sobre o respeito e a liberdade do sexo feminino.
Dentre essas medidas contra a cultura contra de estupro e a
violência contra a mulher, podemos destacar o projeto: Tempo
de Despertar - Ressocialização do Agressor, desenvolvido pela
promotora Gabriela Manssur, pela Prefeitura de Taboão da Serra,
Sociólogo e Filósofo Sergio Barbosa e pela Coordenadora dos Di-
reitos da Mulher, Sueli Amoedo – em parceria com a Secretaria da
Saúde, Secretaria do Desenvolvimento Econômico, Secretaria da
Assistência Social, Secretaria da Segurança Pública, OAB, Ministé-
rio Público e Poder Judiciário de Taboão da Serra.
Esse projeto, que já se encontra na terceira edição, consiste
no acompanhamento de agressores condenados ou que estão res-
pondendo a inquérito policial ou processo criminal por ameaça
ou pela Lei Maria da Penha, para que a escalada de agressão não
evolua para o estupro ou feminicídio. São abordados com esses
agressores assuntos como ciclo da violência, responsabilização,
proteção das mulheres, evolução dos direitos da mulher, Lei Maria
da Penha, machismo, masculinidade, relações familiares, sexuali-
dade, gênero e o papel do homem na sociedade atual.
Gabriela Manssur, uma das criadoras do projeto relata que se
não houver ciência, nem acompanhamento desses casos, a chance
de reincidência é alta, acima dos 60%, porém a reincidência das
pessoas acompanhadas pelo projeto foi reduzida para 1%, diante
todo esse sucesso o Projeto Tempo de Despertar deu origem à Lei
Municipal 2229/2015, que tornou obrigatório em Taboão da Serra o
programa de ressocialização do agressor. Exemplo, portanto, de que
é possível evitar o estupro não apenas majorando penas, mas tam-
bém cuidando para que se desfaça aos poucos uma cultura arcaica

391
de que a mulher é, de alguma forma, inferior ao homem e “merece”
sofrer um crime tão aterrador quanto o estupro.

Considerações Finais
As análises das estatísticas relacionadas aos crimes de estupro
comprovam a grande discrepância entre o tratamento de homens
e mulheres; nota-se que esses dados apenas comprovam o quão
a cultura de estupro está presente na sociedade, e que deriva da
relação de subordinação feminina construída ao longo de várias dé-
cadas. Apesar do crime de estupro ser um crime bicomum, percebe-
-se que em parte as vítimas são majoritariamente mulheres, e que
estas sofrem não apenas com o crime, mas com todo o sistema que
reforça a situação vulnerável a qual estão submetidas.
Também se nota que os homens são, em peso, os maiores sus-
peitos e acusados desses tipos de crime, o que nos leva a concluir
que o crime está intrinsecamente ligado com as relações de gênero
e o patriarcado em si, sendo um reflexo da antiga conjuntura fami-
liar, onde o homem representava o pátrio poder, detinha o privilégio
de controle das relações. Entretanto, apesar da mudança da estru-
tura familiar e prevalência da isonomia entre ambos os cônjuges,
encontra-se ainda arraigado tais pensamentos. Acrescenta-se que a
mídia reforça a veiculação da imagem de que o homem deve pos-
suir determinadas características, como ser bem financeiramente e
possuir determinados traços físicos, ser heterossexual, além de que
estabelece determinados papeis as mulheres, corroborando com a
legitimação das hierarquias entre os homens e as mulheres, fortale-
cendo o estabelecimento das relações de poder, colocando a figura
feminina em um grau de subordinação a masculina.
A mídia tem grande papel quando se fala desse tipo de crime,
tendo em vista sua relação dinâmica com a cultura e com a socie-
dade. Pode-se ao mesmo tempo reforçar papéis de submissão da
mulher ou então fazer uma crítica a respeito disso, como abordado

392
ao decorrer do presente artigo, demonstrando a capacidade de ser
um vetor de mudanças nas crenças e tradições da sociedade.
Razão pela qual leva-se a concluir que o crime de estupro tem
como elemento motivador a relação de hierarquia homem-mulher
ainda presente nos dias atuais, derivada de uma sociedade anterior-
mente patriarcal, que consegue validar e reforçar tradições que corro-
boram o crime, ou o protegem. Portanto, ao falarmos do suspeito e/
ou acusado desses tipos de crime, o único paralelo a ser traçado é o
de seu gênero, tendo em vista que a cultura de estupro atinge todas as
classes, raças e pessoas de todas as idades. Para que esses índices mu-
dem, é necessário realizar projetos que vão além de tipificar condutas
ou agravar penas já existentes, atingindo então o cerne da questão.
É necessária a criação de políticas públicas que foquem no estu-
do das questões de gênero, bem como medidas de segurança pública
do tipo, para que a vítima tenha acolhimento dentro e fora do Poder
Judiciário. Portanto, um tratamento mais humanizado com as víti-
mas dos Crimes contra a Liberdade Sexual, que crie um ambiente
acolhedor para possíveis denúncias, também se torna imprescindível.
Nota-se que também é importante trabalhar em conjunto a
consciência dos autores dos crimes, com a realização de mais pro-
jetos semelhantes ao da promotora Gabriela Manssur que demostra
um baixo índice de reincidência, uma vez que iniciativas como es-
ses conseguem trabalhar a origem desses crimes, levando o autor
à conscientização em relação ao crime, de forma a ressocializá-lo
com sucesso, favorecendo a ele, à vítima e à sociedade.

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ças com hashtag #primeiroassedio. Época. Em 22 de outubro de
2015. Disponível em: <http://epoca.globo.com/vida/experien-
cias-digitais/noticia/2015/10/think-olga-alerta-para-assedio-se-
xual-de-criancas-com-hashtag-primeiroassedio.html>. Acesso
em 13 de agosto de 2016.

396
MÍ DI A E PRESUNÇÃO DE IN OC Ê N C IA
Marx Alves de Oliveira Lima104

1. INTRODUÇÃO
O direito fundamental de não ser considerado culpado até o
trânsito em julgado de uma sentença penal condenatória tem sido
objeto de violações por meio da imprensa. Em nossa sociedade,
a mídia tem adquirido tamanha projeção que o postulado da pre-
sunção de inocência tem sido mitigado muitas vezes frente ao po-
der da imprensa, que através de diversos meios (jornal impresso,
televisão, internet) promovem verdadeiros juízos acusatórios, não
sendo dado ao acusado o direito de exercer sua defesa.
O Brasil tem presenciado as mais variadas formas de violação
dos meios de comunicação. O exemplo mais marcante foi o caso
da Escola Base, uma Escola de Educação Infantil em São Paulo em
que os donos foram acusados de abuso sexual contra menores,
fato que depois foi elucidado, demonstrando-se ser falsa a acusa-
ção. No entanto, à época, a imprensa fez um juízo sumário que
resultou na execração pública dos proprietários.
Nesse sentido, pode-se verificar que o direito de liberdade de in-
formação pode ser tão violador das garantias constitucionais quan-
to à restrição da liberdade de imprensa, em um Estado Totalitário.
Sob o prisma de que nenhuma garantia ou liberdade individual é
absoluta, é que se pauta a presente pesquisa cujo objetivo consiste em
verificar a possibilidade da perda de garantias fundamentais diante da

104. Advogado. Especialista em Direito Constitucional. Assessor jurídico da Câmara


Municipal de Frei Martinho. e-mail: [email protected]

397
conduta da imprensa que, através de seu poder de convencimento, cria
uma imagem na opinião pública sobre a pessoa do investigado, impu-
tando-lhe à prática de crime, mesmo sem a devida apuração judicial.
A incursão da imprensa na criação de juízos sumários de culpa,
em desrespeito ao devido processo legal é a hipótese a ser investigada
no decorrer da presente pesquisa. Para tanto, far-se-á uso das impres-
sões bibliográficas, que incluem as obras e os artigos científicos aces-
sados em revistas jurídicas e periódicos eletrônicos, todos relativos à
temática em epígrafe, por meio de uma pesquisa de tipo explicativa.
De início far-se-á uma abordagem sobre o princípio da presun-
ção de inocência do acusado numa perspectiva histórica, doutrinária,
legal e jurisprudencial. Em seguida, será analisada a liberdade de
imprensa, a fim de detectar as graves violações da mídia ao princípio
da não culpabilidade, e dos seus danos causados à população. E, por
fim, refletir-se-á sobre as violações cometidas pela imprensa, com
ênfase no caso da Escola Base, bem como sobre o papel da imprensa.
A relevância da temática em questão dá-se em razão dos crimes
acontecidos nas últimas décadas, os quais repercutiram na mídia
em razão do grande clamor social, e por isso, influenciaram forte-
mente na opinião pública, e que agora passamos a analisar.

2. DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA
A presunção de inocência é um dos mais importantes princípios
constitucionais, já que através dele o réu deixa de ser um mero
objeto do processo, passando a ser sujeito de direitos dentro da
relação processual.
Ordinariamente, se entende como marco inicial deste princípio
a Magna Carta Libertatum, de João-Sem-Terra (1215), como afirma
Caio Tácito (1999, p.22): “a primeira marca desta limitação da au-
toridade absoluta imprime-se na Magna Carta (1215), que vai ser
confirmada na Carta de Henrique III (1225). ” Além disso, a Magna

398
Carta trouxe a ideia de limitação do poder do rei, criando-se os ins-
titutos: Law of land e duo of law.
Apesar destes institutos limitarem o poder do rei, tais regula-
mentos não eram cartas de direitos, mas de privilégios, pois sua
aplicação era restrita à proteção das liberdades dos Barões e não
para proteção de todo e qualquer do povo. A preocupação deste
texto era apenas acabar com as prisões arbitrárias contra os Barões.
De modo que foi este o contexto da Carta de 1215, instituto germe
do que seria o princípio da presunção de inocência.
O caráter universal da aplicação da não-culpabilidade só vai sur-
gir com a Revolução Francesa e a consequente proclamação da De-
claração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, em 1789, a
qual enfatizou o princípio no artigo 9º, nos seguintes termos: “Todo
o acusado se presume inocente até ser declarado culpado e, se se
julgar indispensável prendê-lo, todo o rigor não necessário a guarda
de sua pessoa, deverá ser severamente reprimido pela lei”.
Nessa direção, o princípio da presunção de inocência só passa
ser mais cogente e menos abstrato com a Declaração Universal dos
Direitos do Homem votada em 1948, pela Assembleia Geral das Na-
ções Unidas, que em seu artigo XI estabeleceu o seguinte:

Toda pessoa acusada de um ato delituoso tem


o direito de ser presumida inocente até que sua
culpabilidade tenha sido provada de acordo com a
lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido
asseguradas todas as garantias necessárias à sua
defesa. (Grifo nosso)

Ressalte-se que a proclamação deste princípio, bem como da


Declaração Universal se deu principalmente devido ao contexto
histórico-social da comunidade mundial, ainda horrorizada com
as violações de direito perpetradas pelo nazismo, revelando a ne-
cessidade da criação de instrumentos e a ratificação de valores

399
que pudessem ser pleiteados pelo cidadão diante dos desmandos
promovidos pelo Estado.
Nesta mesma linha, surge a Convenção Americana sobre Direitos
Humanos (1969), um acordo sobre direitos humanos que ficou conhe-
cido como Pacto de São José da Costa Rica, no qual, em seu Artigo
8º, primeira parte, sob o título das Garantias Judiciais, estabeleceu-se
que: “toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma
sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa. ”
Especificamente, no Brasil, a garantia do cidadão de não ser
considerado culpado antes do trânsito em julgado só vai emergir
com advento da Constituição de 1988, a qual, como uma carta de-
mocrática que é, elegeu como um dos direitos e garantias fundamen-
tais, no art. 5º, inciso LVII, o seguinte: “ninguém será considerado
culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
Percebe-se que a consolidação do postulado da presunção de
inocência surge de forma gradual, passando por diversos momen-
tos históricos, daí a necessidade premente de sempre reafirmarmos
essa garantia.
O Supremo Tribunal Federal, por diversas ocasiões já fixou o
alcance substancial do princípio da presunção de inocência. Nes-
se sentido, leia-se abaixo trecho do Acórdão do Habeas Corpus nº
96.095-2/SP relatado pelo Min. Celso de Mello, in verbis

POSTULADO CONSTITUCIONAL DA PRESUN-


ÇÃO DE INOCÊNCIA IMPEDE QUE O ESTADO
TRATE, COMO SE CULPADO FOSSE, AQUELE
QUE AINDA NÃO SOFREU CONDENAÇÃO PE-
NAL IRRECORRÍVEL. - A prerrogativa jurídica da
liberdade - que possui extração constitucional (CF,
art. 5º, LXI e LXV) - não pode ser ofendida por
interpretações doutrinárias ou jurisprudenciais,
que, fundadas em preocupante discurso de con-
teúdo autoritário, culminam por consagrar, para-

400
doxalmente, em detrimento de direitos e garantias
fundamentais proclamados pela Constituição da
República, a ideologia da lei e da ordem. Mesmo
que se trate de pessoa acusada da suposta prática
de crime hediondo, e até que sobrevenha senten-
ça penal condenatória irrecorrível, não se revela
possível - por efeito de insuperável vedação cons-
titucional (CF, art. 5º, LVII) - presumir-lhe a culpa-
bilidade. Ninguém pode ser tratado como culpado,
qualquer que seja a natureza do ilícito penal cuja
prática lhe tenha sido atribuída, sem que exis-
ta, a esse respeito, decisão judicial condenatória
transitada em julgado. O princípio constitucional
da presunção de inocência, em nosso sistema ju-
rídico, consagra, além de outras relevantes con-
sequências, uma regra de tratamento que impe-
de o Poder Público de agir e de se comportar, em
relação ao suspeito, ao indiciado, ao denunciado
ou ao réu, como se estes já houvessem sido con-
denados, definitivamente, por sentença do Poder
Judiciário. Precedentes. (Rel. CELSO DE MELLO,
DJ 13/03/2009)

Seguindo essa mesma esteira de raciocínio, o Ministro Gilmar


Mendes afirma que

Tem sido rico o debate sobre o significado da ga-


rantia de presunção de não-culpabilidade no direito
brasileiro, entendido como princípio que impede a
outorga de consequências jurídicas sobre o investi-
gado ou denunciado antes do trânsito em julgado
da sentença criminal. (MENDES; COELHO e BRAN-
CO, 2009, p. 678)

401
Ora, se não há como atribuirmos consequências jurídicas, como
bem ressaltou o Ministro Gilmar Mendes, antes do trânsito em jul-
gado da sentença penal, como poderia uma instituição particular tal
qual a imprensa imputar ao acusado efeitos quem nem o próprio
Estado, titular da persecução penal, o fez?
A resposta é simples, não pode! Mas, esta não é a realidade
brasileira. E o que se nota é que a mácula resultante de uma infor-
mação mercadológica produzida pela mídia, em relação à pessoa
do investigado, muitas vezes, lhe acarreta para sempre a pecha de
delinquente perante a opinião pública, mesmo que ao final do pro-
cesso-crime, seja absolvido da imputação que lhe foi feita.
É neste ponto que o comportamento da imprensa e o tratamento
dispensado aos acusados em processo criminal tem ido de encontro
à presunção de inocência. Após considerações acerca deste princí-
pio relacionado ao cidadão acusado da prática de delito, doravante,
impende destacar o princípio pertinente ao outro lado da moeda (a
imprensa), ou seja, o princípio da liberdade de expressão.

3. DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO
A liberdade de expressão também é um dos valores assegurados
pela Constituição da República. O artigo 5ª inciso IV apresenta a
seguinte redação: “é livre a manifestação do pensamento, sendo
vedado o anonimato”. Incluídas neste conceito de livre manifes-
tação do pensamento, que, aliás, é bem amplo, estão as seguintes
liberdades: de pensamento, de comunicação, de informação e de
informação jornalística, que é a liberdade de imprensa.
No art. 220, no capítulo V da nossa Magna Carta, o qual trata da
comunicação social, o constituinte mais uma vez deixou bem clara
sua opção pela liberdade de ideia.
Vejamos

A manifestação do pensamento, a criação, a ex-


pressão e a informação, sob qualquer forma, proces-

402
so ou veículo não sofrerão qualquer restrição, obser-
vado o disposto nesta Constituição.
§ 1º Nenhuma lei conterá dispositivo que possa
constituir embaraço à plena liberdade de informa-
ção jornalística em qualquer veículo de comunica-
ção social, observado o disposto no art. 5º, IV, V,
X, XIII e XIV.
§ 2º É vedada toda e qualquer censura de natu-
reza política, ideológica e artística.

Assim, a liberdade de expressão constitui-se em direito fundamen-


tal do cidadão, incluindo o pensamento, a exposição de fatos atuais
ou históricos e a crítica, a qual não pode sofrer restrição prévia do
Estado pelo seu conteúdo, ou seja, não pode sofrer censura. Porquanto
é tida por muitos teóricos como um fator de medida do grau de quão
democrático é o Estado, ou seja, quanto maior for sua liberdade de
manifestação de pensamento, maior sua manifestação de democracia.
Demais disso, a liberdade de expressão é um direito que o cidadão
possui em face do Estado, para que não seja constrangido em suas
manifestações de pensamento, logo, será exercida, em regra, contra o
Poder Público, não havendo como exercê-la contra um particular.
Nesse sentido

O catálogo dos direitos fundamentais na Cons-


tituição consagra liberdades variadas e procura
garanti-las por meio de diversas normas. Liberda-
de e igualdade formam dois elementos essenciais
do conceito de dignidade da pessoa humana, que
o constituinte erigiu à condição de fundamento do
Estado Democrático de Direito e vértice do sistema
dos direitos fundamentais.
As liberdades são proclamadas partindo-se da
perspectiva da pessoa humana como ser em bus-

403
ca da auto-realização, responsável pela escolha dos
meios aptos para realizar as suas potencialidades.
O Estado democrático se justifica como meio para
que essas liberdades sejam guarnecidas e estimu-
ladas — inclusive por meio de medidas que asse-
gurem maior igualdade entre todos, prevenindo
que as liberdades se tornem meramente formais.
O Estado democrático se justifica, também, como
instância de solução de conflitos entre pretensões
colidentes resultantes dessas liberdades.
A efetividade dessas liberdades, de seu turno,
presta serviço ao regime democrático, na medi-
da em que viabiliza a participação mais intensa
de todos os interessados nas decisões políticas
fundamentais. (MENDES; COELHO e BRANCO;
e, 2009, p. 402)

Pelo exposto, pode-se afirmar que as liberdades políticas, a


exemplo da liberdade de imprensa, só se justificam tendo como
fim último o ser humano em uma perspectiva digna, isto é, em
harmonia com o valor máximo estabelecido pela Carta Magna: a
dignidade da pessoa humana!
Para o professor José Afonso (1999, p. 237):

“[...] a liberdade consiste em poder fazer tudo


o que não prejudique a outrem: assim, o exercício
dos direitos naturais do homem não tem outros li-
mites senão os que asseguram os demais membros
da sociedade o gozo dos mesmos direitos [...]”.

Longe de querermos restringir previamente a mídia, pois é eviden-


te que a imprensa livre é um valor a ser mantido para o fortalecimento
das instituições democráticas no país, é patente que não há como acei-

404
tar que, sob o manto da liberdade de expressão, sejam cometidas pela
imprensa as mais diversas violações de direitos fundamentais.
A liberdade de expressão, como uma garantia constitucional
não tem o condão de direito absoluto, como bem já afirmou o Su-
premo Tribunal Federal, posicionando-se no sentido de que não há
direito fundamental irrestrito, há limites morais e jurídicos. Assim,
o direito à livre expressão não pode dar abrigo a manifestações de
conteúdo imoral, degradando a dignidade da pessoa humana, uma
vez que, inclusive, implicam em ilicitude penal.
Destarte, resta demonstrado que as liberdades públicas não são
incondicionais, conforme se verifica no julgamento do Habeas Cor-
pus 84.424-2 do Rio Grande do Sul, abaixo ementado:

HABEAS-CORPUS. PUBLICAÇÃO DE LIVROS:


ANTI-SEMITISMO. RACISMO. CRIME IMPRES-
CRITÍVEL. CONCEITUAÇÃO. ABRANGÊNCIA
CONSTITUCIONAL. LIBERDADE DE EXPRESSÃO.
LIMITES. ORDEM DENEGADA. 1. Escrever, editar,
divulgar e comerciar livros “fazendo apologia de
ideias preconceituosas e discriminatórias” contra
a comunidade judaica (Lei 7716/89, artigo 20, na
redação dada pela Lei 8081/90) constitui crime de
racismo sujeito às cláusulas de inafiançabilidade
e imprescritibilidade (CF, artigo 5º, XLII). 2. Apli-
cação do princípio da prescritibilidade geral dos
crimes: se os judeus não são uma raça, segue-se
que contra eles não pode haver discriminação ca-
paz de ensejar a exceção constitucional de impres-
critibilidade. Inconsistência da premissa. 3. Raça
humana. Subdivisão. (...) O preceito fundamental
de liberdade de expressão não consagra o “direi-
to à incitação ao racismo”, dado que um direito
individual não pode constituir-se em salvaguarda

405
de condutas ilícitas, como sucede com os delitos
contra a honra. Prevalência dos princípios da dig-
nidade da pessoa humana e da igualdade jurídica.
15. “Existe um nexo estreito entre a imprescritibi-
lidade, este tempo jurídico que se escoa sem en-
contrar termo, e a memória, apelo do passado à
disposição dos vivos, triunfo da lembrança sobre o
esquecimento”. No estado de direito democrático
devem ser intransigentemente respeitados os prin-
cípios que garantem a prevalência dos direitos hu-
manos. Jamais podem se apagar da memória dos
povos que se pretendam justos os atos repulsivos
do passado que permitiram e incentivaram o ódio
entre iguais por motivos raciais de torpeza inomi-
nável. 16. A ausência de prescrição nos crimes de
racismo justifica-se como alerta grave para as ge-
rações de hoje e de amanhã, para que se impeça a
reinstauração de velhos e ultrapassados conceitos
que a consciência jurídica e histórica não mais ad-
mitem. Ordem denegada (Rel. MOREIRA ALVES,
DJ 19/03/2004)

Pelo que se nota do exposto, fica nítida a opção dos maiores intér-
pretes da Constituição de não admitir reprodução de ideias preconcei-
tuosas ou que violem garantias fundamentais de nenhum indivíduo.
Esta é a própria essência das liberdades públicas ou políticas cuja inter-
pretação deve ser dada também à garantia da presunção de inocência.
Todavia, atualmente, o que se vê na mídia é uma constante
violação das garantias constitucionais. São acusados que têm suas
vidas devassadas por notícias veiculadas na imprensa, sem, na
maioria das vezes, haver contra si uma acusação formal do Estado.
Estas notícias, quando propagadas, passam a ter um elevado
grau de veracidade perante a população, contribuindo para a for-

406
mação da opinião pública de que suspeitos e acusados não preci-
sam ter respeitadas suas garantias constitucionais.
Conforme as ideias de Joaquim Nabuco (1849 – 1910):

Uma das maiores burlas de nossos tempos terá


sido o prestígio da imprensa. Atrás do jornal, não
vemos os escritores, compondo a sós seu artigo.
Vemos as massas que o vão ler e que, por compar-
tilhar dessa ilusão, o repetirão como se fosse seu
próprio oráculo.

É nesse momento que nasce a tênue linha entre o que pode e


não pode ser dito pela impressa. Nesse sentido, cabe ao poder judi-
ciário combater práticas da imprensa que importem no desrespeito
ao princípio da presunção de inocência, sob pena de retrocesso e
grave ameaça ao Estado Democrático de Direito!

4. DAS VIOLAÇÕES CONSTITUCIONAIS


COMETIDAS PELA MÍDIA: REFLEXÕES
SOBRE O CASO ESCOLA BASE
Na atual situação por que passa a Justiça brasileira é quase raro
encontrar o sentimento de satisfação estampado no rosto da popula-
ção, no que tange à prestação jurisdicional do Estado, principalmente,
quanto à punição por infrações penais. Diante desta insatisfação da
população, a imprensa tem aproveitado para cometer as mais variadas
lesões aos direitos fundamentais, sob o puro pretexto de informar.
O exemplo mais marcante da história recente foi o caso da Esco-
la Base, uma Escola de Educação Infantil na zona sul de São Paulo,
cujos donos foram acusados de abuso sexual contra uma de suas
alunas, assim como foram chamados de pedófilos. O caso se passou
em 1994, contudo, se provou ser falsa a acusação, a despeito de
a imprensa ter feito um juízo sumário que resultou na execração
pública dos proprietários.

407
Noticiou-se, por exemplo, que antes de praticar as ações per-
versas, os quatro sócios se ocuparam de dar droga as crianças e
fotografá-las nuas. Além disso, destacam-se as manchetes que en-
cartaram os jornais de grande circulação à época, a exemplo do
Jornal Notícias Populares e Folha da Tarde, que apresentaram os
seguintes títulos, respectivamente: “Kombi era motel na escolinha
do sexo”, “Perua escolar carregava crianças para a orgia”.
Verifica-se, com isso, que os proprietários da Escola Base fo-
ram submetidos a julgamento por juízes sem toga, sem corte, e
o que é pior, sem qualquer chance de defesa - a opinião públi-
ca -, pois, a maioria dos veículos de imprensa acusou, julgou e
condenou Icushiro Shimada, Maria Aparecida Shimada, Mauricio
Alvarenga e Paula Milhim Alvarenga, proprietários e funcionários
daquela instituição, antes do deslinde da questão.
No âmbito judicial, quando a questão foi submetida ao cri-
vo do contraditório e da ampla defesa, a realidade foi outra. As
acusações logo ruíram e todos os indícios foram apontados como
inverídicos e infundados. Mas, era tarde demais para os quatros
inocentados. A escola, que já havia sido depredada pela popula-
ção revoltada, teve que fechar as portas.
Por fim, restou aos envolvidos desse fatídico episódio se con-
formarem com as indenizações decretadas pelo poder judiciário. Na
lavra do voto do Ministro Celso de Melo, a suprema corte do país
reconheceu, neste caso, abuso no exercício da liberdade de impren-
sa e a ocorrência do dano moral. Vejamos abaixo trecho do aresto:

CASO ESCOLA BASE. LIBERDADE DE INFOR-


MAÇÃO. PRERROGATIVA CONSTITUCIONAL
QUE NÃO SE REVESTE DE CARÁTER ABSOLUTO.
SITUAÇÃO DE ANTAGONISMO ENTRE O DIREI-
TO DE INFORMAR E OS POSTULADOS DA DIG-
NIDADE DA PESSOA HUMANA E DA INTEGRI-

408
DADE DA HONRA E DA IMAGEM. A LIBERDADE
DE IMPRENSA EM FACE DOS DIREITOS DA PER-
SONALIDADE. COLISÃO ENTRE DIREITOS FUN-
DAMENTAIS, QUE SE RESOLVE, EM CADA CASO,
PELO MÉTODO DA PONDERAÇÃO CONCRETA
DE VALORES. MAGISTÉRIO DA DOUTRINA. O
exercício abusivo da liberdade de informar, de que
resulte injusto gravame ao patrimônio moral/ma-
terial e à dignidade da pessoa lesada, assegura, ao
ofendido, o direito à reparação civil, por efeito do
que determina a própria constituição da repúbli-
ca (CF, art. 5º, incisos v e x). INOCORRÊNCIA,
EM TAL HIPÓTESE, DE INDEVIDA RESTRIÇÃO
JUDICIAL À LIBERDADE DE IMPRENSA. NÃO-
-RECEPÇÃO DO ART. 52 E DO ART. 56, AMBOS
DA LEI DE IMPRENSA, POR INCOMPATIBILI-
DADE COM A CONSTITUIÇÃO DE 1988. DANO
MORAL. AMPLA REPARABILIDADE. PRECEDEN-
TES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. EXAME
SOBERANO DOS FATOS E PROVAS EFETUADO
PELO E. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE
SÃO PAULO. MATÉRIA INSUSCETÍVEL DE REVI-
SÃO EM SEDE RECURSAL EXTRAORDINÁRIA.
AGRAVO DE INSTRUMENTO IMPROVIDO (STF -
AGRAVO DE INSTRUMENTO: AI 496406 SP, Rela-
tor: Min. CELSO DE MELLO, Data de Julgamento:
07/08/2006, Data de Publicação: DJ 10/08/2006
PP-00041 RTJ VOL-00201-01 PP-00399)

Donde se conclui que o sensacionalismo esboçado pela impren-


sa na narração dos fatos esteve longe de cumprir seu papel funda-
mental, qual seja: o de informação, sendo nítido o desejo de vender
versões dramatizadas da criminalidade, o que só se justifica pelo
propósito de lucro.

409
Karl Marx (1999, p. 208), escrevendo acerca da imprensa de sua
época, afirmou que: “O Morning Advertser é a propriedade conjunta
dos vendedores de bebidas ‘licenciados’, isto é, dos bares, que, além
de cerveja podem também vender espíritos”. Com efeito, a crítica feita
pelo filósofo alemão aos jornais londrinos continua atual ainda hoje.
George Marmelstein, também com grande precisão, expôs o se-
guinte sobre as violações realizadas pela imprensa:

Apesar de a liberdade de expressão, em suas


diversas modalidades, ser um valor indispensável
em um ambiente democrático, infelizmente, o que
se tem observado com muita frequência é que a
mídia nem sempre age com o nobre propósito de
bem informar o público. Muitas vezes, os meios de
comunicação estão interessados em apenas ven-
der mais exemplares ou obter índices de audiência
mais elevados. Por isso, é inegável que a liberdade
de expressão deve sofre algumas limitações no in-
tuito de impedir ou diminuir a violação de outros
valores importantes para dignidade humana, como
a honra, a imagem e a intimidade das pessoas, ou
seja, os chamados direitos da personalidade (MAR-
MELSTEIN, 2011, p. 138).

Luiz Flávio Gomes no artigo intitulado Mídia antipopulista e


garantista destaca que é um equívoco da mídia buscar efetividade
na punição de criminosos em detrimento dos direitos e garantias
fundamentais. E aproveita para trazer um exemplo da mídia que
desconsidera direitos e garantias fundamentais:

Exemplo de mídia populista. Vejamos o


que afirmou um editorial do Correio Braziliense
(23.05.12, p. 14): “A cidadania levou ontem (fren-

410
te ao exercício do direito ao silêncio pelo acusado
Cachoeira na CPI) um tapa no rosto e se descobriu
impotente, abandonada”. A linguagem é terrorífi-
ca. Coloca toda população na posição de vítima.
O exercício do direito constitucional ao silêncio
constitui (para esse populismo midiático) uma
grave “ofensa”, um “mal” que deve ser extirpa-
do do ordenamento jurídico brasileiro. Coisa do
diabo e não de Deus (consoante Maffesoli). Aliás,
a proposta final do editorial foi a seguinte: “É hora
de colocar uma vírgula no direito que garantiu o
silêncio de Cachoeira: se o crime é contra o bem
público, o acusado não pode se calar impunemente
ante a autoridade. Elementar”. O que prega (é de
verdadeira pregação fanática que se trata) é a extir-
pação, pura e simples, da garantia ao silêncio, que
constitui cláusula pétrea no nosso sistema consti-
tucional, reveladora de que evoluímos do sistema
inquisitivo da Idade Média para um sistema consti-
tucional dotado de razoabilidade. Do ponto de vista
jurídico, aberração maior é impossível.

Analisando o texto citado, é flagrante a ideia de como para alguns


setores da imprensa deveriam ser suprimidas as garantias constitucio-
nais, para que assim possa existir um maior número de condenados.
O problema é que esses supostos paladinos da Justiça se esque-
cem de que só no Estado Constitucional de Direito é que é possível
a liberdade de expressão, na sua acepção mais ampla. Deste modo,
os que assim argumentam pecam por uma contradição, isto é, como
querer suprimir garantias constitucionais, tais como a presunção de
inocência, e ao mesmo tempo ter a liberdade de imprensa assegurada?
Considerando o que foi abordado até aqui, diga-se que são sempre
com as pequenas supressões de garantias que começam os governos
autoritários. Por exemplo: a Alemanha nazista não começou com Aus-

411
chwitz! Mas com pequenas supressões de garantias, já que a Cons-
tituição de Weimar era flexível, isto é, não exigia um procedimento
legislativo solene, podendo ser alterada por processo ordinário.
Daniel Sarmento (2006), quando trata das cláusulas pétreas,
argumenta sobre a necessidade de sua existência, alertando para
o canto das sereias, fazendo uma analogia inspirado pelo filóso-
fo norte-americano Jon Elster, entre o personagem Ulisses da obra
Odisseia e as garantias fundamentais assegurados na Constituição.
Na passagem literária de Ulisses pela ilha das sereias, ele limi-
tou sua vontade futura para evitar a morte, tampando seus ouvidos
com cera para não ouvir o canto das sereias. Em termos jurídicos,
vê-se que a rigidez das garantias fundamentais é assim, percebida
como uma forma de não sucumbir ventos políticos ideológicos mo-
mentâneos. Assim, o pré-comprometimento de Ulisses, que limitou
o poder de sua vontade no futuro para evitar a morte, poderia ser
comparado àquele a que se sujeita o povo, quando dá a si uma
Constituição e limita seu poder de deliberação futura, para evitar
que, vítima de suas paixões e fraquezas momentâneas, possa pôr
em risco seu destino coletivo (SARMENTO, 2006).
Vale ressaltar, mais uma vez, que não se defende a limitação
do exercício da liberdade de expressão, mas que esta seja exercida
dentro de uma perspectiva de respeito à dignidade da pessoa huma-
na e ao princípio da presunção de inocência, uma vez que aquele
não é um direito superior a nenhuma outra garantia constitucional.
Contudo, não é isso que vem acontecendo. Como bem informa
Michelle Kalil em artigo publicado na Revista Jurídica do Ministério
Público do Estado de Minas Gerais:

O sensacionalismo é a arma utilizada pela mí-


dia para esse convencimento da sociedade, trans-
mitindo imagens chocantes, em rede nacional, que
causam revolta e repulsa no meio social. Homicí-
dios cruéis, estupros de crianças, presos que, du-

412
rante rebeliões, torturam suas vítimas, corrupções,
enfim, situações que deixam a sociedade acuada
mediante assustadora violência, fazendo com que
ela acredite ser o Direito Penal a solução de todos
os seus problemas. Com isso, o Estado social saiu
de cena para que estrelasse um Estado Penal. Inves-
timentos em ensino fundamental, médio e superior,
lazer, cultura, saúde, habilitação são relegados a se-
gundo plano, priorizando-se o setor repressivo. O
Congresso fecha seus olhos para uma melhoria nas
condições sociais da população, o que deveras aju-
daria na diminuição da criminalidade, preocupa-
-se em anunciar a todo instante novas medidas de
combate ao crime (FERREIRA, 2008).

A partir dessa reflexão, pode-se dizer que parte da imprensa não


vem exercendo seu papel primordial consagrado pela Constituição,
que é o de promover e divulgar a informação de forma isenta e clara.
Como dito, o papel da imprensa é informar de forma imparcial
os fatos, para que assim se promova maior efetividade de direitos e
não a promoção pública de acusados, como bem explicita Gilberto
Haddad Jabur:

Não é o interesse de todos, comum ou vulgar.


Também não se revela como somatório de anseios
simplesmente convergentes. Não é mera vontade
de conhecer do povo nem se identifica com o de-
sejo irreprimível e crescente, como se tem visto,
de investigar e descobrir um pouco mais a respeito
dos aspectos íntimos e sacrossantos de cada um.
Longe, bem longe, de saciar a pura bisbilhotisse e
o mexerico, o interesse público repousa na ines-
condível e indisputável necessidade de dar a co-
nhecer (JABUR, 2000, p.340)

41 3
[...]
A adequação ocorre na proporção da necessida-
de e da utilidade de se publicar um fato ou levan-
tar uma crítica de interesse efetivamente público.
(...) em qualquer campo onde se emprega a lin-
guagem, seu manejo encontra limites, ainda que
os fins se revelem lídimos. É que as palavras, as
proposições e o raciocínio, pelo tom ou realce que
recebem, acréscimo ou decréscimo que irradiam,
podem estar abaixo da verdade, ou bem pior, da
dignidade (Idem, p.346)

Logo, não está abrangido pela tutela constitucional e não inte-


ressa à população o sensacionalismo muitas vezes utilizado pelos
meios de comunicação na divulgação de informações, não consti-
tuindo garantia constitucional o escárnio para com outro.
Assim sendo, a presunção de inocência é lacerada quando os
juízos prévios sobre os acusados são divulgados pela mídia. Esque-
cem eles que mesmo aqueles que estão sendo acusados de crimes,
sejam eles graves ou não, ainda têm o direito de serem defendidos
e se forem considerados culpados pelo poder competente, ainda
têm seu direito à dignidade protegida por lei. Portanto, não cabe à
impressa nem à sociedade julgar as pessoas que estão envolvidas
nos processos, mas sim ao Estado-Juiz.
É perfeitamente possível informar de forma imparcial, sem vio-
lar as garantias constitucionais, desde que se respeite a ética jorna-
lística. Logo, a ética do jornalista é um dos caminhos para se ter
uma imprensa isenta.
O Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros informa como deve
ser o agir dos jornalistas para atuarem dentro dos limites morais:

Art. 2° - A divulgação da informação, precisa e


correta, é dever dos meios de divulgação pública,
independente da natureza de sua propriedade.

414
Art. 3° - A informação divulgada pelos meios
de comunicação pública se pautará pela real ocor-
rência dos fatos e terá por finalidade o interesse
social e coletivo.
Art. 7° - O compromisso fundamental do jor-
nalista é com a verdade dos fatos, e seu trabalho
se pauta pela precisa apuração dos acontecimen-
tos e sua correta divulgação real ocorrência dos
fatos e terá por finalidade o interesse social e cole-
tivo. (Grifo nosso)

Percebe-se, no entanto, que estes preceitos éticos vêm sendo


abdicados por muitos profissionais da área.
Neste sentido

A real utilidade da informação deve ser o parâ-


metro para legitimá-la e justificar o desvelamento de
aspectos da intimidade de alguém. A publicidade da
informação de modo algum se confunde com a sim-
ples curiosidade do público em saber a vida privada
dos seus ídolos, das mazelas de pessoas famosas ou
de aspectos pitorescos da vida de alguém. De certa
forma toda informação tem alguma utilidade na me-
dida em que contribui para que conhecemos mais
da realidade à nossa volta, sobre o padrão ético da
sociedade em que vivemos. (SILVA, 1998, p.68)

Considerando o exposto, é importante que se reflita sobre qual


o grau de utilidade da informação veiculada pela mídia que submete
pessoas ao escárnio público. Com efeito, este tipo de divulgação nada
informa, e em consequência, acaba por promover um sentimento na
população de medo e de inconformismo com o nosso sistema de ga-
rantias constitucionais, ao argumento de que o princípio da presunção
de inocência representa um obstáculo à segurança dos indivíduos.

415
Como visto, a presunção de inocência é uma garantia constitu-
cional assegurada a todos os cidadãos, assim como, o princípio da
liberdade de expressão, não podendo esta ser exercida em padrões
que resulte na violação de direitos fundamentais.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Após analisar a conduta da imprensa, na veiculação de no-
tícias sobre pessoas que estão sendo investigadas de prática de
delito, a conclusão que se chega é que a informação não é passada
de forma isenta e imparcial.
Percebeu-se que a notícia uma vez propagada nos meios de
comunicação, leva à pessoa do investigado ao escárnio público,
o que compromete a imagem do indivíduo perante a sociedade.
Tem-se, com isso, que as ações midiáticas violam os direitos fun-
damentais, mormente, o postulado da presunção de inocência, o
que resulta no abuso das garantias constitucionais.
Por fim, não se procurou fazer nenhuma restrição à liberdade
de imprensa, tampouco, censurar o direito da mídia de veicular
informações sobre procedimentos criminais, o que se buscou foi
promover um debate em torno da temática, posto que, da forma
como vem sendo exercida a liberdade de expressão pela mídia,
têm sido cometidas inúmeras violações contra o princípio da não-
-culpabilidade em nosso país.
Em verdade, o que se esperava (ou pelo menos se espera da-
qui para frente) é que ambas possam coexistir, a fim de que se
possa garantir a permanência do Estado Democrático de Direito, o
qual foi conquistado a duras penas.

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419
420
O P ERA ÇÃO HAS HTAG E A I M PR E N SA :
TEN SÃ O ENT RE OS PRINCÍPIOS
CO N STIT UCIONAIS DE PRES UN Ç Ã O
DE I N O CÊNCIA E DIREITO À
I N FO RM AÇÃO
Wagneriana Lima Temóteo Camurça105, Mateus Natanael Targi-
no Maurício 106 e Natália Pinto Costa107

Introdução
Este artigo objetiva analisar a relação intrínseca entre a mídia
e sua influência no processo penal. Mais especificamente, preten-
de analisar, sob olhar crítico, a atuação da mídia sobre a Operação
Hashtag, que se encontra em andamento no Brasil e cujo objeto é
a apuração de supostos atos preparatórios de terrorismo de célula
do Estado Islâmico no Brasil.
Para se chegar ao objetivo principal, discorreu-se especialmen-
te sobre a aparente tensão entre os princípios constitucionais da
liberdade de imprensa e direito à informação e o da presunção de
inocência. Percorreu-se também sobre o aspecto de direito compa-
rado em relação ao combate ao terrorismo, que tem crescido como
política mundial desde a época dos atentados às Torres Gêmeas
em Nova Iorque, em 2001.

105. Advogada, Mestre em Direito Constitucional e professora assistente nível 2 vincu-


lada à Universidade de Fortaleza-UNIFOR, email: [email protected]
106. Graduando em Direito, vinculado à Universidade de Fortaleza-UNIFOR, emai-
l:[email protected]
107. Graduanda em Direito, vinculada à Universidade de Fortaleza-UNIFOR,email:na-
[email protected]

421
Aponta-se, ainda, a questão do direito penal do inimigo como
teoria válida ou não para ser aplicada, especialmente no ordena-
mento jurídico brasileiro, diante da ameaça concreta de atos terro-
ristas no país, convergindo novamente para o papel da mídia (espe-
cialmente pelos meios televisivos) na formação do pensamento dos
brasileiros acerca do tema. Depreende-se, desde já, que as opiniões
frequentes do público quando do estouro da “Operação Hashtag”
(julho de 2016) foi de total condenação prévia aos suspeitos (e ago-
ra acusados, já que houve o oferecimento da denúncia por parte
do Ministério Público Federal, recebida em setembro de 2016), sem
que sequer tenha havido finalização do processo.
Tais indivíduos tiveram seus nomes expostos e a pergunta que se
faz é se é necessária a exposição desses sujeitos diante da gravidade
do crime a ser investigado ou isso ultrapassa, fere o princípio consti-
tucional da presunção da inocência. Trata-se, portanto, de forma di-
reta da discussão acerca da aplicabilidade ou não da Teoria do Direito
Penal do Inimigo, de Günther Jakobs no âmbito do Direito Brasileiro.

1. Aparente tensão constitucional entre os


princípios da presunção da inocência e do
acesso livre à informação e liberdade de
imprensa e direito ao esquecimento
Informa-se, primeiramente, que o que se discutirá neste tópico
é apenas a aparente tensão entre dois princípios garantidos pela
Constituição Federal de 1988. Para se entender melhor, observa-
-se que, conforme Alexy (2008, p. 117), há dois tipos de normas
jurídicas – regras e princípios. Estes últimos seriam “mandamen-
tos de otimização em face das possibilidades jurídicas e fáticas”,
necessitando-se de “sopesamento, que decorre da relativização
em face das possibilidades jurídicas”. Em outras palavras, neces-
sitam ser avaliados, no caso concreto, para, diante da máxima
proporcionalidade possível, possam ser aplicados em maior ou

422
menor medida diante de outro princípio. É por isso que o conflito
é apenas aparente, pois “não existe um critério abstrato que impo-
nha a supremacia de um sobre outro” (BARROSO, 2008, p. 32). Tal
diferenciação, embora criticada por Marcelo Neves (2013), parece
ser a mais aceita, pelo menos na doutrina brasileira.
No Brasil, há menção clara de regra constitucional, definida
como direito fundamental, da presunção da inocência e da liberda-
de de imprensa, previstos respectivamente no artigo 5º, LVII e IV, V,
IX, X e XIV e no seu artigo 220. O próprio Alexy inaugura o debate a
que se pretende chegar neste tópico: a aparente tensão entre o prin-
cípio (ou direito) fundamental à informação, que baliza a liberdade
de imprensa e o direito fundamental à “proteção à personalidade”,
que em sua medida, no processo penal, pode ser configurado como
princípio da presunção da inocência (ALEXY, 2008).
O princípio da presunção da inocência é tratado como compo-
nente primordial de um modelo processual penal valorizador da
dignidade do ser humano, sendo, conforme Badaró (2003), finali-
dade primordial do processo penal para a análise do processo em
seus aspectos fáticos e autorais do delito. Reconhece-se, através de
Lopes Júnior, (2016, p.96) ainda, que se manifesta de três formas:
ora princípio constitucional fundamental (garantia em face da atu-
ação do Estado), ora princípio processual penal (em que se refere
a uma forma de tratar o acusado no transcorrer do processo, forma
essa que deve evitar a restrição do direito de defesa deste) e por
fim, como direito probatório (pois transfere à acusação o trabalho
de comprovar a culpa do indivíduo e não o contrario, revelando-se
aqui o princípio processual acusatório). É na presunção da inocên-
cia (para alguns, também denominado princípio da não culpabili-
dade), portanto, que se chega à conclusão de que o acusado deve
ser tratado de forma igual a qualquer cidadão livre, exceto em si-
tuações extremamente necessárias, tais como no caso de aplicação
de medidas cautelares processuais (tais como a prisão preventiva)

423
e mesmo assim, de forma proporcional. O reconhecimento cons-
titucional de que ninguém será considerado culpado senão após
condenação em definitivo (trânsito em julgado) é, portanto, his-
toricamente aceito diante da própria história humana julgamentos
e condenações infundados de provas e eivados de nulidades que
concretizaram inúmeras injustiças.
Já o princípio da liberdade de expressão é identificado com ori-
gens na cultura grega. Conforme Farias (2004, p. 57), em Atenas a
liberdade de expressão era muito apreciada, “uma vez que a todos
era garantido o direito de usar a palavra em reuniões ou sessões
públicas”. Atualmente, no âmbito internacional, há diversos instru-
mentos que respaldam o direito à informação e liberdade de expres-
são, dentre eles, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos
de 1966 e o Tratado do Pacto de San Jose da Costa Rica em 1969.
No Brasil, embora consolidada no Estado Liberal, sofreu bastante
com a censura durante o Estado Novo e só a partir da redemocrati-
zação através da Resolução nº 59 de 1946 é que foi a liberdade de
expressão foi reinserida definitivamente no ordenamento jurídico,
embora tenha sofrido novo baque quando da ditadura militar que foi
instalada no país de 1964 até meados de 1985, quando do movimen-
to de Diretas Já e a promulgação da atual Constituição em 1988, que
consagrou em seu artigo 5º, IV, de forma expressa, tal direito.
O artigo 5º, IX da Constituição Federal de 1988 traz as diversas
modalidades de liberdade de expressão: liberdade de manifestação
de pensamento, de comunicação, de informação, de acesso à infor-
mação, de opinião, de imprensa, mídia, divulgação e radiodifusão.
Quanto a estes meios, observa-se que devem operar como formado-
res de opinião pública, não podendo, entretanto, distorcer os fatos,
nem podendo tomar para si o papel de julgador. Por fim, atente-se
para o fato de que direito fundamental à informação e liberdade de
imprensa (veja-se o artigo 220 e seus parágrafos da Constituição
Federal que aduz que “nenhuma lei poderá conter dispositivo que

424
possa constituir à plena liberdade de informação jornalística em
qualquer veículo de comunicação social”) são ser absoluto, pois
a própria Constituição prevê direito de resposta proporcional ao
agravo e vedar o anonimato. Rui Barbosa (1990, p.37) acerca da
imprensa e o interesse público que esta representa já dizia que a
“imprensa é a vista da nação”.
A liberdade de imprensa, portanto, não é uma norma absoluta,
haja vista o necessário sopesamento com outros princípios assegu-
rados constitucionalmente. Não se pode, por exemplo, ferir a “hon-
ra, a imagem, a intimidade e a vida privada” (art. 5º, X, CF/88), em
nome do acesso à informação. A consequência desse atentado pode
e deve ser levada ao Judiciário para fins de ressarcimento.
A linha entre liberdade de expressão e censura é muito tênue,
podendo-se confundir facilmente as duas questões, a liberdade de ex-
pressão é um dos pilares que sustentam o Estado Democrático de Di-
reito, é fundamental para a Democracia, constituindo-se, portanto de
um elemento básico para a sociedade, sendo este direito o que garan-
te a livre manifestação de ideias, de pensamentos, a livre manifesta-
ção humana e dividindo-se em vários segmentos como “liberdade de
manifestação, de pensamento, de comunicação, de informação, de
acesso à informação, de opinião, de imprensa, de mídia, de divulga-
ção e de radiodifusão” (TAVARES, 2012, p. 626-627). A liberdade de
expressão vai de contraponto à censura, desmascarando-a, pois esta
“jamais se apresenta como instrumento da intolerância, da prepotên-
cia ou de outras perversões ocultas” (BARROSO, 2000, p 647-650).
Como se pode observar, a discussão acerca da liberdade de ex-
pressão pela mídia e sobre a censura é muito complicada, visto que
não se pode ferir nenhum direito, seja pelo excesso ou pela falta
de informação. Um ponto importante dessa questão é o direito ao
esquecimento, sendo este normalmente relacionado à esfera penal,
porém ele deve ser associado ao direito em geral, ao direito civil e

425
aos meios midiáticos, não se pode condenar uma pessoa eterna-
mente por causa de um erro (crime) que ela cometeu.
Encontra-se na legislação brasileira, o regulamento ao direito ao
esquecimento no artigo 93 do Código Penal, por exemplo, porém
isso só veio a ser discutido com edição do enunciado 531 da VI
Jornada de Direito Civil, promovida pelo Conselho da Justiça Fe-
deral em março de 2014 que diz o seguinte: “A tutela da dignidade
da pessoa humana na sociedade da informação inclui o direito ao
esquecimento”. Neste contexto, o direito ao esquecimento passou a
ser considerado parte importante do princípio da dignidade da pes-
soa humana sendo simplesmente o direito de “ser deixado em paz”.
A conclusão que se pode chegar nesta discussão liberdade da
mídia versus censura versus direito ao esquecimento é que tudo é
absolutamente relativo e irá variar de acordo com cada caso concre-
to, observando-se o que aconteceu especificamente em cada caso
para valorar exatamente o peso de cada princípio e não cometer
arbitrariedades nem irregularidades.
Diante das exposições acima, chega-se ao ponto: qual o prin-
cípio que deve prevalecer quando do acontecimento de crimes? Se
por um lado, a Constituição garante a presunção da inocência, por
outro, garante-se à sociedade, o direito à informação, especialmente
no que tange à criminalidade, que afeta não só as vítimas diretas,
mas a sociedade como um todo. Sabe-se que a há diversas publi-
cações de notícias criminais que não se detém apenas em veicular
informações, mas como julgadores dos fatos cometidos e seus auto-
res. Expõem-se suspeitos de forma sensacionalista, impõem entre-
vistas a estes formulando roupagens sensacionalistas, sem direito à
contraditório, ampla defesa, etc. É crítica de Souza (p. 95, 2010) ao
atestar que “o sistema midiático moderno, aproveitando-se de certa
forma da falha institucional do sistema penal e processual penal no
cumprimento de seu papel social exerce a função catalisadora da
opinião pública sobre um tema previamente selecionado”. E essa

426
função catalisadora é feita muitas vezes etiquetando o indivíduo,
que sequer pôde defender-se.
O contrabalanço necessário entre os princípios da presunção da
inocência e o da liberdade de informação far-se-á diante da propor-
cionalidade, que segundo Shafer e Decarli (2007, p. 131) “permite
que o magistrado, diante da colisão de direitos fundamentais, decida
de modo que se maximize a proteção constitucional, impedindo o
excesso na atividade restritiva aos direitos fundamentais”, para que
prevaleça, diante do caso concreto, o mais adequado e necessário. A
publicidade e a informação garantem o exercício da democracia, mas
não pode dar-se de forma espetaculosa. Souza relata sobre o traba-
lho do magistrado espanhol Juan L. López Ortega (p. 194, 2010) que
muitas vezes a mídia torna o processo penal em espetáculo e ocasio-
na com isso, não só a previa condenação do réu, mas cria um risco à
própria reinserção do indivíduo quando terminada a sua pena, pois
estará marcado pela sua exposição à sociedade, que não o acolherá.
A exposição indevida os sujeitos envolvidos em processos pe-
nais de grande repercussão não atingem somente a esfera individu-
al, influenciando, conforme Shecaira (1996, p. 16) um “processo
permanente de indução criminalizante”, incentivando a majoração
de penas e “constituindo-se, pois, num dos principais obstáculos
à criação de uma sociedade democrática fundada nos valores de
respeito aos direitos dos cidadãos e da dignidade humana. ” Masca-
renhas reforça com tal concepção (2013, p. 1), asseverando que os
meios de comunicação geram “uma apatia e acomodação” por par-
te de seus consumidores, que não mais criticam, nem perguntam e
acabam por ter as mesmas “ soluções simplistas para os problemas
mais complexos”, como, no caso do direito penal, a resposta de que
o aumento de penas trará mais segurança social.
Através do debate acerca da aparente colisão entre a presunção
de inocência e a garantia da liberdade de informação e de imprensa,
faz-se necessário nas próximas linhas discorrer acerca do terroris-

427
mo no Brasil, a lei de terrorismo para poder ia ao ponto central do
trabalho, ou seja, a influência da mídia na Operação Hashtag.

2. Operação HASHTAG e a recente


criminalização do terrorismo no Brasil
No dia 21 de julho de 2016 foram presos suspeitos de ligação
com o grupo terrorista internacional Estado Islâmico no Brasil (EL
PAÍS, 2016), na operação denominada Hashtag, implementada pela
Polícia Federal às vésperas das Olimpíadas que aconteceram no Rio
de Janeiro. Foram expedidos 10 mandados de prisão temporária
por 30 dias podendo ser prorrogados por mais 30, em 10 estados
do país, incluindo São Paulo. O líder do grupo foi preso no Paraná.
A prisão aconteceu porque os supostos terroristas estavam se pre-
parando para um ataque ao evento, e a então recente lei brasileira
que versa sobre o terrorismo, lei nº 13.260 de 2016, foi pela primeira
e única vez aplicada. Na época desta prisão muito se comentava na
imprensa brasileira e principalmente na imprensa internacional sobre
a possibilidade de ataques terroristas nas Olimpíadas e o Brasil era du-
ramente criticado por não estar se preparando para esta possibilidade.

2.1 Mandamento constitucional de


criminalização
A norma constitucional tem o papel de estabelecer a estruturação
do Estado, bem como fixar outras normas e determinar os direitos
e deveres fundamentais dos indivíduos, razão pela qual é conhecida
como Lei Fundamental, tornando-se base de todo o direito pelo o
ordenamento jurídico que a adota , sendo sobreposta aos demais
atos normativos, compondo o ápice dentro da pirâmide das normas
legislativas dentro de um determinado espaço territorial, além de ser-
vir como parâmetro de validade para as demais espécies normativas.
A Constituição de 1988, também denominada de Constituição Ci-
dadã, estabeleceu em seu art. 4° os princípios que regem as relações

428
internacionais, entre eles podemos encontrar o repúdio ao terroris-
mo, porém o constituinte originário também impôs dentro do rol de
direitos e garantias fundamentais do art. 5° a criminalização de cer-
tas condutas, entre elas no inciso XLIII estabeleceu que “são crimes
inafiançáveis e insuscetíveis de graça e anistia a prática da tortura, o
tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os crimes
definidos como hediondos”. Estes casos, em que o constituinte legi-
tima a atividade do legislador penal, são denominados mandado de
criminalização, impondo a obrigação de criminalizar determinadas
condutas e vedando determinados benefícios penais e processuais.
De acordo com Feldens (2008, p. 47) “ao estabelecer mandados de
penalização, o constituinte, onde fez, afastou do âmbito da liberdade
de configuração do legislador a decisão sobre merecerem, ou não, os
bens ou interesses envolvidos, a tutela jurídico-penal”.
Embora criticada a ideia de que haveria um mandamento cons-
titucional de criminalização, o que tornaria o legislador infraconsti-
tucional omisso se não houvesse observado tal norma, certo é que
as normas de repressão os crimes hediondos e equiparado foram
promulgadas. Destacam-se, assim, a lei 8072/90 (lei de crimes he-
diondos), a lei 11343/2006 (lei de drogas) e a lei 9455/97 (tortura).
Diferentemente, o crime de terrorismo não possuía lei própria, ha-
vendo apenas disposição acerca dos atos de terrorismo na lei de
Segurança Nacional- Lei 7170/83, em seu artigo 20. E foi apenas em
2016, após longa lacuna legislativa, que tal diploma foi trazido ao
ordenamento jurídico brasileiro.

2.2 Lacuna legislativa e a definição de


terrorismo.
A Constituição vigente é de 1988, a lei de crimes hediondos é
de 1990 e no ordenamento jurídico brasileiro não existia nenhuma
lei que regulamentava o terrorismo, o mais próximo que se pos-
suía para disciplinar a matéria era o art. 20 da Lei de Segurança

429
Nacional, diploma que nunca delimitou o conceito do termo ter-
rorismo e muito criticado pelo contexto em que foi criado (ainda
em época de ditadura no Brasil).
Essa problemática de falta de definição clara do conceito do
termo terrorismo, não é única do Brasil. Inclusive já foram elabora-
dos no âmbito das Organizações Nacionais Unidas (ONU) diversos
instrumentos internacionais, a exemplo da Convenção Interameri-
cana contra o Terrorismo de 2002 e que abordam a matéria, mas em
nenhum se chega ao consenso de que elementos são indispensáveis
para a definição típica do terrorismo.
Isso decorre, dentre outros elementos, em razão de o terro-
rismo atingir bens jurídicos como à vida, à integridade física, à
liberdade dos indivíduos, entre outros, ressaltando-se que esses
bens também são atingidos por outras condutas já tipificadas den-
tro do Direito Penal. Apesar disso tudo, o terrorismo é um tema
discutido com muito afinco dentro a comunidade internacional,
que se intensificou após os ataques terroristas a Nova Iorque em
11 de setembro de 2001, tornando-se preocupação na ordem inter-
na de diversos países. O nó górdio gira principalmente na tensão
entre os princípios da segurança pública e o respeito aos direitos e
liberdades individuais (GUZMAN, 2015), ou seja, se estas podem
subsumir diante de “um interesse maior” e como as Constituições
dos Estados Democráticos de Direito devem portar-se diante do
problema que atravessa as fronteiras dos países.
O “discurso do Brasil como detentor de uma cultura pacifista e
aberta somada às fortes negativas do governo acabaram por criar
uma ilusão de que estamos livres desta ameaça” (LASMAR, 2014).
Entretanto, principalmente por causa da pressão internacional e
a aproximação das Olimpíadas no Rio de Janeiro, o país passou a
buscar a regulamentação do tema. Surgiu então a PLS 499/2013,
projeto proposto após os protestos que ocorrem em junho de 2013
e que acabou por originar a lei 13260/2016. Acrescenta-se que este

430
não foi o único projeto apresentado para tipificar a conduta do
terrorismo, o que chama a atenção é contexto pela qual o Brasil
passava na época da proposta.
Nos protestos de junho de 2013 no Brasil ocorreu um consenso
entre inúmeras reportagens jornalísticas e entre os integrantes das
manifestações que o surgimento das manifestações teve como es-
topim o aumento do preço das passagens de ônibus, porém após
duas semanas de protestos o governo da cidade de São Paulo e
outras capitais recuaram no aumento da tarifa. Apesar de inicial-
mente o movimento iniciar-se por questões de mobilidade urbana,
ampliaram-se os motivos de reivindicação, acrescentando-se: cor-
rupção, inconformidade com as instituições políticas do país, edu-
cação, saúde, entre outros direitos básicos. Foi um movimento em
cadeia, perpetuando-se para diversas capitais brasileiras, durante as
manifestações ocorram diversos confrontos entre os manifestantes
e os policiais militares, dentre esses protestos populares na cidade
do Rio de Janeiro ocorreu a morte de um jornalista.
Diante disso, houve uma grande influência da mídia para a criação
de um sentimento de insegurança social, tendo assim a impressa uma
grande responsabilidade pela forma a qual a sociedade enxergou toda
essa problemática social, e foi dentro deste contexto que foi apresenta-
da a PLS n° 499/2013, que sofreu diversas críticas por o projeto origi-
nal possuir tipos penais generalizados e por ter sido interpretada como
uma resposta as legitimas manifestações já mencionadas.
Ainda tramita a PLS n° 499/2013, porém surgiu PLC 101/2015,
que segundo o Senador Romero Jucá em seu parecer expedido du-
rante a tramitação da mesma, afirmou que esta veio em boa hora,
uma vez que a não aprovação da matéria até o dia 20/10/2015 po-
deria acarreta sanções ao Estado Brasileiro, em razão da reunião do
Grupo de Ação Financeira (GAFI), que já havia alertado que poderia
incluir o País em sua ‘’ lista suja’’ de países não cooperantes (SE-
NADO FEDERAL, 2016, online). Além disto, a Olimpíada de 2016

431
que ocorreria no Rio de Janeiro estava se aproximando, remetendo-
-se a grande responsabilidade que o país assumiria em um evento
de tamanha natureza. Relembrando o Massacre de Munique, que
ficou conhecido também como a Tragédia de Munique, que ocorreu
nos Jogos Olímpicos de 1972, quando no dia 5 de setembro onze
membros da equipe olímpica de Israel foram reféns e assinados por
um grupo terrorista palestino denominado setembro Negro, sendo
portando a maior atentado terrorista já ocorrido nos Jogos Olímpicos.
Diante disto, no dia 14 de março de 2016 foi sancionada a Lei
13.260, que disciplina o terrorismo, bem como trata das disposições
investigatórias e processuais sobre o presente crime.

2.3 A Lei 13260/2016 e o Direito Penal


do Inimigo
Apesar da grande dificuldade em denominar e classificar que
condutas poderiam enquadra-se como terrorismo, ao analisar a lei
brasileira que versa sobre o tema, esta buscou definir os atos de
terrorismo em seu artigo primeiro, trazendo conceitos abertos e que
necessitarão de interpretação no caso concreto.
Vislumbra-se que a maioria dos atos que são classificados
como terroristas, são tipos penais presentes no atual Código Pe-
nal, distinguindo-se em alguns pontos em razão das finalidades na
qual se pratica tal atos, como por exemplo provocar terror social
ou generalizado, expressão esta que se encontra no art. 2° da Lei
13.260/2016, ressalta-se a imprecisão do termo que foi adotado
pelo legislador, tornando-se difícil encontrar o bem jurídico que re-
almente está sendo tutelado nessa hipótese especificamente.
A crítica à lei indica que se pode encontrar, nesta, vestígios do
direito penal do inimigo, sistematizada por Günter Jacobs, uma vez
que ao criminalizar os atos preparatórios tem-se uma antecipação
de punibilidade, criminalizando fatos que nem foram praticados,
ou seja, procura-se tutelar um bem jurídico que não é concreto, e

432
sim como um funcionamento simbólico da pena em reação social
à sensação de insegurança e pressão em razão da proximidade da
Olímpiada do Rio de Janeiro.
A teoria do Direito Penal do Inimigo criada por Gunther Jakobs
(2007) é embasada, em linhas gerais, em uma diferenciação entre
dois tipos de delinquentes: cidadão (que cometeu um erro, mas
após a devida punição imposta pelo Estado, volta à situação nor-
mal) e inimigos (aquele que insiste desrespeitar o ordenamento
jurídico de forma constante) e a estes propõe-se forma diferente
de tratamento, desde a possibilidade de adiantamento da punibi-
lidade, aumento das penas e na relativização de certas garantias
processuais inerentes a todos os outros indivíduos. O inimigo, na
visão de Jakobs, deve ser retirado da sociedade e ser tratado de for-
ma diferente, pois é dever do Estado perseguir aqueles que perma-
necem na prática reiterada de crimes. Destaca que se inserem neste
tipo, pessoas de alta periculosidade, tais como os criminosos eco-
nômicos, os membros de organizações criminosas e, objeto deste
trabalho, os terroristas, pois Jakobs entende que “um indivíduo que
não admite ser obrigado a entrar em um estado de cidadania não
pode participar dos benefícios do conceito de pessoa. ” (JAKOBS,
2007, p. 35). A teoria do Direito Penal do Inimigo também é deno-
minada de Direito Penal de Terceira Velocidade e ganhou visão após
os atentados terroristas de 2001 às Torres Gêmeas de Nova Iorque.
Outro ponto que merece destaque na lei antiterrorismo é o art.
12 que disciplina que o juiz, pode de ofício, a requerimento do Mi-
nistério Público ou mediante representação do delegado de polícia
ouvido o Ministério Público, decretar no curso da investigação ou
da ação penal, medidas assecuratórias de bens, direitos e valores
do acusado ou investigado, que sejam produto ou proveito dos cri-
mes previstas na lei em questão, indaga-se se tal dispositivo não
colocaria em dúvida a imparcialidade do magistrado, quando este
participa de ofício na investigação criminal.

433
CONCLUSÃO
Não se sabe qual será o posicionamento da jurisprudência e
dos doutrinadores a respeito da lei de terrorismo, entretanto, acre-
dita-se que a lei deve ser caracteriza como uma norma de caráter
geral, que deverá surgir com o consentimento do povo, por meio
da representatividade e com total publicidade e discussões e não
para atender a compromissos internacionais assumidos pelo país
ou então garantir uma satisfação perante a mídia para trazer uma
sensação de segurança com a proximidade de um evento mundial
e de tamanha magnitude que foram os Jogos Olímpicos de 2016.
A lei antiterrorismo possui diversas imperfeições, especialmen-
te os termos vagos e imprecisos adotados pelo legislador, ou até
mesmo a possibilidade ao ferimento do sistema acusatório e a im-
parcialidade do magistrado com a decretação de ofício no decorrer
da investigação, entretanto espera-se que esta legislação abra o pre-
cedente para o aperfeiçoamento da legislação brasileira defronte a
relevância do tema em âmbito mundial.
Depois da prisão do grupo de “terroristas” na Operação Hashtag
verificou-se uma grande possibilidade de tratar-se apenas de uma
célula amadora, conforme declaração do Ministro da Justiça do Brasil
Alexandre de Moraes que disse o grupo talvez não representasse um
perigo tão forte assim (CORREIO BRAZILIENSE, 2016), servindo a
prisão muito mais como uma satisfação social à comunidade mun-
dial e a imprensa internacional de que se estava, de fato, fazendo
algo contra a possibilidade de ataques terroristas na olimpíada, mui-
to mais do que o perigo que aquele grupo realmente representava.
Olhando-se para este caso consegue-se observar que, aparente-
mente, ele foi muito mais um produto gerado pela pressão da mídia
sobre as autoridades brasileiras do que uma prisão realmente im-
portante para garantir a segurança nacional, foi algo exagerado com
o propósito de tranquilizar a sociedade mundial no sentido que a
segurança estaria garantida.

434
Na época da prisão deste grupo houve a divulgação do nome de
todos eles, bem como a cidade onde foram presos, sem sequer haver
denúncia formulada. Tais indivíduos já foram etiquetados como ter-
roristas e seus nomes serão lembrados para sempre por causa do en-
volvimento nessa história. Questiona-se, então, se assim, o ordena-
mento jurídico brasileiro admite a aplicação, embora disfarçada, da
Teoria do Direito Penal do Inimigo, pois direitos processuais básicos
dos envolvidos na Operação Hashtag, principalmente a presunção
de inocência, foram afastados diante da grande exposição da mídia.
Não se quer, porém, afirmar que seria um grave erro a aplica-
ção de regimes de exceção a pessoas que talvez não se encaixem
naquilo que a sociedade almeja. Entretanto, relegar à imprensa o
papel de formador de opinião do que seja “inimigo”, através da
espetacularização do processo criminal, é um risco para os próprios
auto afirmados cidadãos. Enquanto isso, o embate entre o direito à
informação e à presunção de inocência permanecerá e, no presente
caso, se pessoas acusadas de terrorismo, podem ter seus atos es-
quecidos, mesmo após o cumprimento de suas penas.

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438
PROCESSO CIVIL
CONTEMPORÂNEO
A I N F LUÊNCIA DO
PRO C EDIMENTO MODELO ALE M Ã O
MUSTERVERFAH REN PARA O IR D R
– I N C I DENT E DE RES OLU ÇÃO D E
DEMA N DAS REPET ITIVAS D O N OVO
C Ó DI G O DE PROCESSO CIVIL
B RASI L EIRO
Cinthia da Silva Barros108, Gustavo Igor Silva Montalvão e Tayo-
nar Pereira Viana

1. Introdução
O Novo Código de Processo Civil trouxe inúmeras inovações no
que tange a celeridade e economia processual. Objetivando a reso-
lução de um maior número de litígios repetitivos em curso no país,
foi instituído o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas.
Tal instituto estabelece um parâmetro para as decisões, proporcio-
nando assim maior segurança jurídica.
A finalidade deste artigo é apresentar ao público acadêmico uma
discussão jurídica sobre a influência do procedimento-modelo ale-
mão Musterverfahren para o mecanismo de padronização criado pelo
novo Código de Processo Civil. Somados com o estudo de outros ins-
titutos como a tutela coletiva e os julgamentos de recursos repetitivos
que possuem o mesmo objetivo que o mecanismo em estudo.

108. Bacharelandos em Direito pela Faculdade Guanambi FG/CESG. 6º Semestre. Ma-


tutino. Guanambi-Bahia. Brasil. E-mails: [email protected], gustavoigorm@
live.com e [email protected].

4 41
Este trabalho foi elaborado com base na literatura jurídica es-
pecializada, além de decisões jurídicas pertinentes ao tema, sendo
estas de fundamental importância para a sua construção. Este arti-
go justifica-se ao apresentar ao público uma discussão ampla e ne-
cessária sobre a temática bastante discutida no âmbito acadêmico,
por se tratar de um tema atual e relevante.

2. O Processo Democrático Constitucional


no Novo Código de Processo Civil Brasileiro
Com o surgimento do Novo Código de Processo Civil, o pro-
cesso democrático constitucional obteve um papel essencial, ado-
tando-se um processo moderno,a matriz democrática, ou seja, um
novo modelo processual em defluência da Constituição Federal de
1988, diferentemente do antigo Código de 1973, que se apresentava
incapacitado com relação à Carta Magna de 1988 (BRASIL, 1988).
As Constituições democráticas do século XX assumem o papel de
norma diretiva fundamental onde dirigem-se aos poderes públicos,
com visibilidade à realização dos direitos fundamentais. Assim, a su-
premacia da Constituição vai além do controle de constitucionalidade,
também da tutela da esfera individual de liberdade(STRECK, 2013).
Com o novo Código de Processo Civil o legislador preocupou-se
em levar o Processo Civil ao encontro a Carta Magna. Verifica-se a
disposição expressa dessa constitucionalização do Processo Civil,
em seu artigo 1º que aduz que: “O processo Civil será ordenado,
disciplinado e interpretado conforme os valores e princípios funda-
mentais estabelecidos na República Federativa do Brasil, observan-
do-se as disposições deste Código” (BRASIL, 2015).
O Novo Código traz princípios e valores constitucionais, em
busca de uma adequação constitucional do procedimento cível,
com a interligação de um processo norteador de direitos fundamen-
tais que está legislado na Constituição da República de 1988. De
acordo com Luís Roberto Barroso ( 1993, p.285):

442
[...] os princípios constitucionais são, precisa-
mente, a síntese dos valores mais relevantes da
ordem jurídica. A Constituição [...] não é um sim-
ples agrupamento de regras que se justapõem ou
que se superpõem. A idéia de sistema funda-se na
de harmonia, de partes que convivem sem atritos.
Em toda ordem jurídica existem valores superiores
e diretrizes fundamentais que ‘costuram’ suas di-
ferentes partes. Os princípios constitucionais con-
substanciam as premissas básicas de uma dada
ordem jurídica, irradiando-se por todo o sistema.
Eles indicam o ponto de partida e os caminhos a
serem percorridos.

É necessário entender o processualismo constitucional demo-


crático como uma concepção teórica que busca a democratização
processual civil mediante a problematização das concepções de
liberalismo, socialização e pseudo-socialização processual (neo-
liberalismo processual) e da percepção do necessário resgate do
papel constitucional do processo como estrutura de formação das
decisões, ao partir do necessário aspecto comparticipativo e poli-
cêntrico das estruturas formadoras das decisões (NUNES, 2008).
Evidencia-se, portanto, neste contexto, a questão dos direitos e ga-
rantias constitucionais que são os pilares do processo em relação
ao Estado Democrático de Direito, disciplinado no artigo 5º incisos
XXXV, LIV e LV da Carta Magna de 1988 (BRASIL, 1988).

3. Conceito de IRDR - Incidente de


Resolução de Demandas Repetitivas
O Novo Código de Processo Civil disciplina o IRDR nos artigos
976 ao 987. Como o próprio nome diz, é um procedimento inserido
com o objetivo de dimensionar litígios repetitivos mediante um mo-

443
delo processual ou um “procedimento padrão”, em outras palavras,
são aquelas demandas fundadas em pretensões isomórficas que se-
rão apreciados pelos tribunais superiores (NUNES, 2015).
É importante salientar que o incidente de demandas repetitivas não
é um recurso, e sim um procedimento destinado a julgar demandas re-
petitivas, no qual independe de recolhimento de custas como aluda o
artigo 976, § 5º do NCPC/2015: “Não serão exigidas custas processuais
no incidente de resolução de demandas repetitivas.” (BRASIL, 2015).
É necessário que o foco a ser apreciado seja de matérias de direito
material ou processual e nunca de conteúdo fático (FALCÃO, 2016).
Esse instituto se assemelha com o procedimento de julgamen-
to dos recursos especiais repetitivos porque a sua composição se
da nos tribunais. Nesse sentido, os Incidentes têm sua atuação no
Superior Tribunal de Justiça e é paramento para regular o procedi-
mento do IRDR. Falcão (2016, s/p), neste sentido preleciona que:

Em síntese, na criação de temas em recursos re-


petitivos no STJ, quando a questão a ser apreciada
na sistemática compreender matéria de apenas uma
seção, o órgão colegiado será a respectiva seção. Por
sua vez, quando a questão objeto do recurso para-
digma tiver reflexo em mais de uma seção, como ma-
téria processual civil, o órgão colegiado competente
será a Corte Especial. Também existe a numeração
sequencial nos temas como forma de organização.

O procedimento do incidente de demandas repetitivas dar-se-á


com seu pedido de instauração encaminhado ao presidente do tri-
bunal, poderá ser feito por oficio, bem como por petição pelos legi-
timados previstos no Novo CPC/2015 e pelos seus requisitos legais
em que ensejam a norma processual (BRASIL, 2015). O ofício ou
petição inicial deve estar anexado com os documentos necessários
a sua instauração, como preceitua o parágrafo único do artigo 977
do Novo CPC/2015 (BRASIL, 2015).

444
Recebido o pedido deve ser encaminhado para o presidente do
tribunal, que realizará seu ordenamento para órgão competente, po-
derá refletir de duas maneiras: em uma seção, o tema central da tese
jurídica a ser analisado versar sobre matéria das quais a decisão sur-
tirá efeitos apenas na própria seção; ou, em caso da Corte especial,
quando o escopo da tese jurídica a ser analisado versar sobre matéria
das quais produzirá efeitos em varias seções (BRASIL, 2015).
O julgamento do mérito do IRDR pode ser impugnado por re-
curso extraordinário ou especial, dando assim o efeito suspensivo
observando a repercussão geral da constituição federal. Se o mérito
do recurso for apreciado e a tese jurídica for recepcionada pelo STF,
bem como pelo STJ será aplicado, com efeito erga omnes, ou seja,
será efetivado a todos os processos coletivos ou individuais que
tratam da mesma matéria de direito.

4. A matriz normativa Musterverfaheren e


sua influência no Incidente de Resolução de
Demandas Repetitivas no Direito Processual
Civil Brasileiro
A lei 13.105/2015 que instituiu o novo Código de Processo Ci-
vil trouxe uma inovação que é o IRDR- Incidente de Resolução de
Demandas Repetitivas, um mecanismo que visa conferir a tutela
jurisdicional para a litigância repetitiva (TEMER, 2015). O IRDR tem
suas bases originárias em um fato ocorrido na Alemanha por volta
dos anos 2000 (SOUZA; ALVES, 2016).
A empresa DeustcheTelekon (DT), que detinha mais de três mil
acionistas fez com que uma informação sobre a extensão do patri-
mônio de uma determinada sociedade irregular por circulares ações
durante os anos de 1999 aos anos 2000, muitos investidores foram
lesados em torno 15 mil (SOUZA; ALVES, 2016).
Cerca de 700 advogados diversos representaram seus determina-
dos clientes, apresentando demandas na corte distrital de Frankfurt

445
que tem sede na bolsa de valores onde ocorreu as circulares(SOUZA;
ALVES, 2016). As ações somam 150 milhões euros de indenização,
sem audiência por três anos os demandantes apresentaram queixa de
negativa de acesso a justiça perante o Tribunal Constitucional Fede-
ral, assim este tribunal rejeitou as queixas que concordou que algo
teria de ser feito para acabar o problema, e neste contexto criou-se
a lei do procedimento modelo de mercado capitais a matriz Muster-
verfahren. Assim esta lei que deveria ter a vigência de cinco anos,
foi incorporada ao ordenamento alemão civil, tendo sido novamente
aplicada em 2008, em uma demanda previdenciária que foi resolvida
nos mesmos trâmites os 20 casos idênticos (SOUZA; ALVES, 2016).
Em 2005, na Alemanha foi criada a Lei de Introdução do Proce-
dimento-Modelo para os Investidores em Mercados de Capitais onde
instituiu um procedimento-padrão Musterverfahren (lei que introdu-
ziu o procedimento-modelo no sistema processual alemão: Gesetzzur
Einführung Von Kapitalanleger-Musterverfahren cuja abreviação é
KapMuG), que tem por finalidade reduzir o julgamento de milhares
de ações equivalentes em asserção por investidores do mercado de
capitais da Bolsa de Frankfurt em que sofreram prejuízos por causa
da divulgação de informações levianas (NUNES, 2015).
O procedimento-modelo Musterverfahren consiste em instala-
ção sobre questões de direito e fato. Na Alemanha este procedi-
mento não pode ser instaurado de ofício, necessita ser provocada
diferente do modelo Brasileiro (SILVA, 2011).
É necessário ressaltar, de início, que o procedimento-modelo
alemão só pode ser instaurado mediante requerimento de um ou
mais demandantes nas causas repetitivas. Não se pode, por con-
seguinte, que a corte distrital o inicie de ofício, assim a parte deve
identificar o ponto que deve pronunciar de forma coletiva, as provas
que devem produzir a repercussão do pedido e deve ser entendida
como a possibilidade de outras demandas similares (SILVA, 2011).
Cabral (2007, p.132-133), especifica a questão da seguinte forma:

446
Pode versar tanto sobre questões de fato como
de direito, o que denota a possibilidade de reso-
lução parcial dos fundamentos da pretensão, com
a cisão da atividade cognitiva em dois momentos:
um coletivo e outro individual. Esse detalhe é de
extrema importância, pois evita uma potencial que-
bra da necessária correlação entre fato e direito no
juízo cognitivo. Vale dizer, se na atividade de cogni-
ção judicial, fato e direito estão indissociavelmente
imbricados, a abstração excessiva das questões ju-
rídicas referentes às pretensões individuais poderia
apontar para um artificialismo da decisão, o que
não ocorre aqui, com a vantagem de evitar as críti-
cas aos processos-teste.

A matriz normativa musterverfahren influenciou de maneira


direta o IRDR, uma vez que o pedido de instauração pode ser re-
alizado pelas partes, ou pelo Ministério Público, pela Defensoria
Pública e de ofício também pelo juiz ou relator conforme disposi-
ção do artigo 974 do CPC (NUNES, 2015). O KapMuG concebeu o
procedimento que está disposto em três fases distintas: em pri-
meiro lugar a eleição da causa representante; em segundo plano o
processamento da demanda junto ao tribunal, com realização de
audiências,  produção de provas, e decisão resolvendo as questões
de fato e direito envolvidas na controvérsia; em terceiro plano o
julgamento posterior de todas as outras causas, resignadas em
primeira instância, que  irão ser decididas com base  na decisão/
modelo prolatada pelo tribunal estadual (NUNES, 2015).
É trifásico o sistema do IRDR Brasileiro, o que possivelmen-
te gerará a necessidade doutrinária de dimensionamento  como
proceder-se a escolha, no qual aplica-se subvencionando o critério
normativo dos recursos repetitivos que tem por finalidade anali-
sar de forma ampla o contraditório, e a representação dos sujeitos

447
processuais de causas que são escolhidas que deve ser em número
suficientemente no qual que permita uma abordagem de forma pa-
norâmica do litígio repetitivo (NUNES, 2015).
Portanto, é relevante citar que este instituto é pouco utilizado
na Alemanha, pois a maioria dessas demandas são resolvidas na
esfera administrativa. A influência da matriz normativa Musterver-
fahren para o IRDR foi crucial para o desenvolvimento do procedi-
mento em questão, no Direito Processual Civil Brasileiro.

5. A Tutela Coletiva e a distinção entre IRDR


e o Julgamento de Recursos Repetitivos
Inicialmente o processo era eminentemente individualista, servin-
do como um instrumento para tutelar apenas interesses ou direitos in-
dividuais. Com evolução da sociedade liberal para a sociedade em mas-
sa, ouve a quebra do paradigma de tutela individual para um viés mais
coletivo, ampliando assim o acesso à justiça e permitindo que inúmeros
indivíduos lesados reivindicassem seus direitos (SOUSA, 2014).
A tutela coletiva de direitos, assim como a tutela jurisdicional
individual, tem como escopo proteger os direitos de seus titula-
res (SOUSA, 2014). Todavia, a demanda individual se caracteriza
por possuir apenas um autor, ou vários autores (litisconsórcio),
tutelando um interesse pessoal, já nas ações coletivas existe um
interesse único, de um grupo ou coletividade, que leva a sua pre-
tensão ao juízo na forma de um único sujeito (SILVA, 2011), sendo
que este atuará em prol dos interesses do grupo.
A ação coletiva no direito brasileiro é definida como um direito
exercido por pessoas naturais, de acordo previsão legal, com o in-
tuito de exigir uma prestação jurisdicional, objetivando a tutela de
interesses coletivos, sendo entendidos os individuais homogêneos,
os difusos e os coletivos em sentido estrito (SILVA, 2011 Apud MEN-
DES, 2009). Ademais, a sentença proferida na tutela coletiva possui
o efeito erga omnes, englobando toda as vítimas de dano comum e
seus sucessores (SILVA, 2011).

448
De modo a dimensionar os litígios repetitivos no país, o novo
CPC trouxe em seu corpo mecanismos de padronização decisória,
como o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas – IRDR e o
Julgamento dos Recursos Extraordinário e Especial Repetitivos, am-
bos essenciais para a resolução mais rápida dos processos (MAFRA
NETO, 2016). Sendo que o primeiro recairá sobre as ações pendentes
e o segundo sobre os recursos em curso no judiciário. O IRDR será
instaurado quando houver repetição de processos, que contenham
controvérsia sobre a mesma questão de direito (material ou proces-
sual) e apresentar risco de ofensa à segurança jurídica e à isonomia
(BASÍLIO; MELO 2015), devendo estes requisitos estarem presente
cumulativamente nos processos para que seja aplicado o incidente.
Verificado o início do incidente pelo relator, todos os processos
individuais ou coletivos que tramitam no mesmo tribunal e possuam
idêntica questão de direito serão suspensos no lapso temporal de um
ano, aguardando o julgamento do IRDR(BASÍLIO; MELO 2015). A
sentença do processo modelo no IRDR irá atingir todos aqueles que
estejam com os processos suspensos (SILVA, 2011), ou seja, a coisa
julgada englobará apenas essas demandas, diferentemente do que
ocorre na tutela coletiva que a sua sentença possui efeito erga omnes.
Os Julgamentos dos Recursos Extraordinário e Especial Repeti-
tivos foram instituídos pela Lei n. 11.672/2008. Com o procedimen-
to semelhante ao IRDR, esse mecanismo de padronização ocorrerá
nos casos de existência de vários recursos versando sobre a mesma
controvérsia jurídica. Deverá o presidente ou vice-presidente do Tri-
bunal de Justiça ou do Tribunal Regional Federal selecionar um ou
mais recursos representativos, aqueles que possuírem maior diversi-
dade de fundamentos presente no acórdão e de argumentos no caso
de recurso especial e encaminhando ao STJ (SILVA PASSOS, 2011).
Dessa forma, selecionados os recursos, o relator do tribunal
superior, verificando a presença dos requisitos acima destacados
proferirá uma decisão interlocutória de afetação. Determinando

449
a suspensão dos recursos pendentes que estejam tramitando no
território nacional, no período de um ano, na espera de uma sen-
tença, caso a mesma não seja proferida os recursos voltaram a
tramitar normalmente (OLIVEIRA, 2015).
Por fim, nota-se que todos esses procedimentos buscam re-
solver litígios de massa. Existindo uma determinada controvérsia
jurídica presente em inúmeros processos, estes serão suspensos
ou paralisados e depois de julgada a demandas selecionada, servi-
ráde parâmetro aos demais casos (MAFRA NETO, 2016). Evitando
assim decisões conflitantes e proporcionando maior segurança ju-
rídica a sociedade, pois o julgador terá em suas mãos um parâme-
tro de sentença e deverá segui-lo.

6. Diferenciações do principio do
contraditório no procedimento padrão e a
amplitude do procedimento Musterverfahren
Muito embora o modelo Alemão tenha influenciado para o ins-
tituto do IRDR no Brasil, ambos possuem uma distinção, sui gene-
ris. No que diz respeito ao contraditório e enquanto a ocorrência da
matéria de sua aplicação: a finalidade no direito Alemão é reduzida
aos fatos relativos ao mercado de capitais e menciona a matéria de
fatos como de direito; apesar de existir diminuição o corpo retém a
recorrência da questão de direito (REZENDE, 2014).
A distinção do que ocorre na Alemanha é que não é favorecido
na fase de acolhimento do processo paradigma e sim quando na
hora de julgar o mérito que ocasionou o incidente, dai que surge
a oportunidade para que as partes interessadas possam se mani-
festar no tocante a matéria de direito, com o objetivo de o juiz
proferir o seu entendimento. Diante disso há uma critica no que
prever a lei onde traz somente a possibilidade de ser ouvido sem
que contribua com a elucidação da demanda repetida.Além disso,
a publicidade que o regramento dispõe podem ser falhas não per-
mitindo o ingresso de terceiros (REZENDE, 2014).

450
Nesse sentido, a quem defenda que o instituto é constitucional
porque, de qualquer modo possui o contraditório e isso seria o sufi-
ciente. Caroline Gaudio Rezende (2014, p.117) aluda que:

Corroborando esta afirmação há ainda a figura


da participação do amicus curiae que irão atuar
para “contribuir com a discussão, oferecendo ele-
mentos técnicos e argumentos para a formação de
argumentos para a formação da tese jurídica a ser
aplicada nas sucessivas causas repetitivas.

Apesar de que a lei não prevê um contraditório amplo igual o mo-


delo Musterverfahren, deve observar que o objeto da discussão é em
sua matéria ou no seu processo, ocorrendo diversas interpretações da
norma. O incidente busca tornar uno o entendimento do assunto ou
da demanda repetitiva. Diante disso, a interferência de terceiros pode
prejudicar o objetivo para qual o regulamento foi sugerido.
Diante disso, o que pode retirar da lei é que apenas o julga-
mento de mérito é que se abre a oportunidade de ser inserida a
intervenção para contribuição ao contraditório do Direito repetiti-
vo. Na Alemanha o direito de se defender é mais amplo, pois, ele
é renovável a cada etapa de incidente (REZENDE, 2014). Portanto,
aproxima-se ao real contraditório atual como garantia de influência
e não surpresa, colocando um desejo daqueles que entendem da
necessidade de obter um contraditório mais minucioso para o Inci-
dente de Resolução de Demandas Repetitivas.

7. Considerações finais
Conforme o que foi abordado, o procedimento modelo alemão
musterverfahren foi a inspiração para a construção do IRDR– in-
cidente de resolução de demandas repetitivas instituído no novo
código. O incidente de resolução de demandas repetitivas, que está
previsto no capítulo VIII, do título I (da ordem dos processos nos

451
tribunais e dos meios de impugnação das decisões judiciais) nos
artigos 976 a 987, do novo Código de Processo Civil, apresenta-se
como um mecanismo de padronização, resolvendo os litígios pen-
dentes e servindo de modelo para as demandas futuras. Partindo
desta análise, nota-se a importância do instituto para a sociedade
atual, pois o mesmo busca alcançar ao mesmo tempo a duração
razoável do processo e a legitimidade decisória.
Desse modo, o Incidente de Resolução de Demandas Repetiti-
vas assegurará maior segurança jurídica para as partes, que agora,
com esse novo mecanismo, não necessitaram mais confiar na sorte
e sim na lei, neste contexto a imprevisibilidade das decisões judi-
ciais fortalece a insegurança jurídica, o que contribui para o enfra-
quecimento do regime democrático atual.

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454
A N A L I SE DA AÇÃO DE DESPE J O
PREVI STA DA LEI DE LOCAÇ Ã O D E
I MOVEI S U RBANOS S OBRE O N OVO
CO DI G O DE PROCESSO CIV IL.
Eva Eulalia da Silva Almeida109

1.INTRODUÇÃO
A Lei de Locação de Imóveis urbanos é uma lei composta de
normas materiais e normas formais. A subsidiariedade que possui
a Lei de Locação de imóveis urbanos frente ao Código Civil e ao
Código de Processo Civil faz com o advento do NCPC a presente
abordagem sobre os aspectos que mudaram nesta nova caminhada.
O Novo Código de Processo Civil aborda inúmeras inovações
primordialmente da busca pela celeridade e economia processual
que surge as principais mudanças: um objetivo de resolução de um
maior número de litígios repetitivos em curso no país; e a busca por
meios alternativos de solução de conflitos que possam garantir o
acesso à Justiça é medida que se impõe e a desjudicialização. Bus-
cando proporcionar maior segurança jurídica.
Portanto a finalidade deste trabalho cientifica e oferecer ao um
analise focado da influencia das novas regras trazidas pelo Novo

109. Advogada, pós-graduação lato sensu concluída em Direito Empresarial. Foi De-
legada da OAB/RJ por três triênios, foi relatora da Comissão de Ética e disciplina da
OAB/RJ. Participante da Comissão de Apoio ao Consumidor-CAC- da 32ª Subseção
da OAB/RJ no triênio de 2013 a 2015, e atualmente na Comissão do Consumidor da
seccional da OAB/RJ e da Comissão de Anticorrupção e Compliance da 57ª Subseção
da OAB/RJ. Professora de cursinhos e coordenadora do curso preparatório para pro-
va da OAB pelo MARJ, atuação como professora e palestrante entre ela junto a Escola
Superior da Advocacia – ESA. Uma das fundadoras do Movimento dos Advogados do
Rio de Janeiro- MARJ_. <[email protected]>.

455
CPC que se concentram na atuação das ações vivenciadas e des-
criminadas pela Lei de Locação, Lei nº. 8.245/91. Ressaltasse que
abordaremos as ações padronizadas pela lei de locação, que são as
descriminadas em seu bojo, e não se adentrará em analisar a todas
que podem repercuti das relações locatícias.
Propomos apresentar um tema bastante discutido, trata-se de
um tema atual e relevante, e que assim abordaremos uma com-
paração do procedimento da Ação de Despejo fundada na Lei n.
8.245/91 com o CPC/73 e com o advento do CPC/15.

2. LOCAÇÃO DE IMOVEIS URBANOS


A matéria de locação de imóvel urbano no Brasil é discipli-
nada pela Lei nº8.245 de 18 de outubro de 1991, matéria esta
com vênias as suas alterações. A lei elenca quais relações discipli-
na deixando outros tipos de relação locatícia para serem tratadas
aparte, concentrando sua atuação no que posso dizer sobre um
dos direitos mais vivenciados na sociedade moderna, a locação de
imóvel urbano, seguindo por outras áreas como : direito consumi-
dor, direito trabalhista , direito tributário, etc.
Devemos esclarecer a Lei de locação de Imóveis urbanos, ora
Lei de Locação ou Lei do Inquilinato, onde e tratado a matéria
sobre a locação de imóvel urbano vigorada pela Lei 8.245 contém
heterodoxia de suas normas, já que as normas ali contidas pos-
suem regras de direito material e de direito processual, além de
outras como de caráter penal.
Só trata de direito formal, processual, na Lei de Locação a partir
do Título II, do artigo 58 a 75. Vele esclarecer que a Lei de Locação
possui a mesma hierarquia do CPC, devendo sobre ele prevalecer
em caso conflito.
Em norma formal omissa preferiu o legislador da Lei de Lo-
cação, em permanecer com o costume, e foi explicito na previsão
das partes finais da Lei de Locação sobre a subsidiariedade da Lei

456
8.245/91 devendo se aplicar a lei comum, ora o Código de Processo
Civil, como assim podemos verificar ao ler o artigo:

“Artigo 79. No que for omissa esta lei aplicam-


-se as normas do Código Civil e do Código de
Processo Civil.”

3. INTERAÇÃO DA LEI DE LOCAÇÃO COM


CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Quando veio a lume a Lei de Locação de imóveis urbanos, no
início da década de 90, a lei continha novos instrumentos e institu-
tos jurídicos para época. Constituída a Lei de Locação de imóveis
urbanos de um espírito de romper com moldes do passado, buscava
maior efetividade ao ponto que acabou contagiando o CPC e, se
verifica isso com a reforma processual de 1994, onde surgiu no CPC
,por exemplo, a antecipação de tutela de mérito, as alterações no
procedimentos da ação consignatória, o levantamento dos depósi-
tos e, tudo mais, que inseriu pela Lei do Inquilinato.
Posteriormente as mudanças na própria lei de Locação de Imó-
veis urbanos também foi com intuito de modernizar a abordagem
de sua legislação aos direitos pelos fatos que faz a sociedade ser
mutante, buscando maior equidade entre as partes.
A Lei de Locação de Imóveis Urbanos possui os procedimentos
especiais contidos da lei que são quatro: Ação de despejo; Ação de
consignação de aluguel e acessórios a locação; Ação revisional de
aluguel e Ação renovatória. E aí, com advento do novo CPC, surgem
também mudanças neste atuar e neste artigo iremos buscar os im-
pactos com o advento do novo CPC sobre os aspectos procedimen-
tais específicos da Lei do Inquilino focando na Ação de Despejo.

4. AÇÃO DE DESPEJO E SEU RITO


Na Lei de Locação de Imóveis Urbanos quis sagazmente o
legislador que a primeira e mais explorada das ações descritas

457
em seu bojo fosse à ação de despejo. Sem sombra de duvidas a e
ação mais utilizada nas relações locatícias. Possui sua previsão do
artigo 59 a 66 da Lei de Locação.
A ação de despejo é de relação pessoal, de natureza de des-
constituir, rescindir o contrato locatício, ou constitutivo negativo e
executivo lato sensu, ou seja, a pretensão autoral e desconstituição
do vínculo contratual de locação e, em consequência o comando de
decretar e fazer valer a desocupação do imóvel na mesma fase deste
processo e não em um processo subsequente.
E, aqui entra a primeira observação do novo CPC sobre a Lei
de locação. Visto que o Novo CPC não mais aborda o procedimento
comum em duas espécies, ordinário e sumário, passando a ser uni-
ficado como procedimento comum, artigo 318 e do NCPC.
Oportuno esclarecer que de fato a um procedimento especifico já
no CPC/73 se tinha quanto à aplicação do artigo 62 da Lei de Locação
de Imóveis Urbanos, compusesse um rito ordinário com características
diferentes. Ou seja, erra um rito ordinário que se modifica em respeito
a norma contida no artigo 62 da Lei de Locação de Imóveis Urbanos.
Daí se faz a válida observação do caput do artigo 59 da Lei em vir-
tude de dizer que a ação de despejo é de rito ordinário mas ressalva que
há alguns procedimentos especiais, ou como diz o Desemb. Aposenta-
do Drº Sylvio Capanema de Souza que expõem em uma de suas obras:
“Na verdade, estabeleceu-se um procedimento híbrido, que não
é exatamente o ordinário, mas não se enquadra entre os especiais.” 110
Observasse e claro onde se le ordinário como rito comum. E este
rito comum para respeitar as peculiaridades da Lei Especial, tem suas
peculiaridades próprias. É um verdadeiro ‘transgênico’ jurídico. Este
efeito de rito transgênico se da claramente para o respeito da norma
contida no artigo 62 da Lei de Locação. Onde se trata das Ações de
Despejo fundadas na falta de pagamento de aluguel e acessórios da

110. Pag.254, SOUZA, Sylvio Capanema de. A Lei do Inquilinato Comentada. 5 ed., Rio
de Janeiro: GZ Ed., 2009.

458
locação, de aluguel provisório, de diferenças de aluguéis, ou somente
de quaisquer dos acessórios da locação; conforme a redação dada
pela revisão da Lei de Locação de imóveis Urbanos em 2009 com a
Lei nº. 12.112. Como podemos denominar simplesmente de Ação de
despejo por falta de pagamento de alugueres e encargos.

5. CONCILIAÇÃO E MEDIAÇÃO: CONTAGEM


DE PRAZO DE PURGAÇÃO DA MORA E DA
CONTESTAÇÃO
Com o procedimento sucumbido que erra utilizado na Ação de
despejo passando para a unificação do rito para o procedimento
comum surgem mudanças nesta nova formulação processual.
Uma delas é a introdução pela norma contida no artigo 334
NCPC. A obrigatoriedade imposta, onde quis o legislador do NCPC
imputar ao todas as ações de processo comum a designação de
audiência de conciliação ou sessão de mediação como primeiro
despacho do magistrado, tão logo recebida a petição inicial, desde
que não tenha vícios, exceto nos casos em que não houver possi-
bilidade de autocomposição, art. 334, §4º, inciso II, do NCPC. É a
obrigatoriedade do comparecimento das partes sobre penalidade de
multa pelo não cumprimento conforme artigo 334 § 8ºdo NCPC.
Sem duvida e necessário e se caminha soluções para alcançar a
aplicação judicial a todos, desafogando o judiciário, estimulando a
solução consensual dos conflitos com a própria desjudialização. Em
2010, já se observava este estimulo através das diretrizes indicadas
pelo Conselho Nacional de Justiça _CNJ, Resolução 125/2010,londe
consideram que caber ao Judiciário:

“(…) estabelecer política pública de tratamento


adequado dos problemas jurídicos e dos conflitos
de interesses, que ocorrem em larga e crescente
escala na sociedade, de forma a organizar, em âm-
bito nacional, não somente os serviços prestados

459
nos processos judiciais, como também os que pos-
sam sê-lo mediante outros mecanismos de solução
de conflitos, em especial dos consensuais, como a
mediação e a conciliação”. 111

De antemão há confirmação da existência da audiência de conci-


liação ou sessão de mediação nas Ações de Despejo por outros moti-
vos que não seja cobrança. Diante destas informações, considerável
e dizer que o NCPC, caso viesse a se sobrepor à Lei de Locação de
Imóveis Urbanos, atrasaria o ritmo das ações, principalmente da Ação
de Despejo por Falta de Pagamento de Alugueres e Encargos, impondo
uma audiência prévia de conciliação ou sessão de mediação para que
somente após, o que na pratica são correr de meses ou ate ano(s),
conceder a pessoa do polo passivo, o Réu, o inicio da contagem do
prazo para a apresentação da defesa ou purga da mora. Neste sentido,
o NCPC beneficiaria muito o polo passivo, principalmente aquele que
tem pretensão de prolatar o máximo a pretensão jurisdicional.
Por sorte não devemos analisar o NCPC sozinho, e muito me-
nos com uma interpretação simplesmente literal.
A Lei nº. 13.140/15 é quem disciplina sobre as sessões de me-
diação e sobre as audiências de conciliação, conhecida como Lei
Geral da Mediação, que também se cabe a Conciliação. E sobre aqui
fazemos o uso da Teoria do Dialogo das Fontes112 para solucionar

111. Citação retirada do artigo Uma reflexão sobre o momento da audiência do Art. 334
do NCPC e a contestação. < http://inteiroteor.org/2016/colaborando-conosco/uma-re-
flexao-sobre-o-momento-da-audiencia-do-art-334-do-ncpc-e-a-contestacao/>.
112. “A ideia de que as leis devem ser aplicadas de forma isolada umas das outras
é afastada pela teoria do diálogo das fontes, segundo a qual o ordenamento jurídico
deve ser interpretado de forma unitária. A teoria do diálogo das fontes foi idealizada
na Alemanha pelo jurista Erik Jayme, professor da Universidade de Helderberg e trazi-
da ao Brasil por Claudia Lima Marques, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
A teoria surge para fomentar a ideia de que o Direito deve ser interpretado como
um todo de forma sistemática e coordenada. Segundo a teoria, uma norma jurídica
não excluiria a aplicação da outra, como acontece com a adoção dos critérios clás-
sicos para solução dos conflitos de normas (antinomias jurídicas) idealizados por
Norberto Bobbio. Pela teoria, as normas não se excluiriam, mas se complementa-
riam. Nas palavras do professor Flávio Tartuce, “a teoria do diálogo das fontes surge
para substituir e superar os critérios clássicos de solução das antinomias jurídicas
(hierárquico, especialidade e cronológico). Realmente, esse será o seu papel no

460
alguns dos diversos discursões enfrentados sobre o tema.
Vejamos a seguinte situação de conflito. O NCPC na norma con-
tida artigo 334 §4º, expressa que ambas as partes devem renunciar
expressamente a Audiência de Conciliação ou Sessão de Mediação.
Com o uso do dialogo entre as fontes, se entende com analisa ao arti-
go 1º § 2º da Lei geral de Mediação, e conciliação, que “Ninguém
será obrigado a permanecer em procedimento de mediação”, ou seja,
estipulou também o principio da voluntariedade da parte com esta
regra. Logo se uma das partes expressarem a renuncia prevista no
artigo 334, §4 do NCPC não caberá ao Juízo designar Audiência de
Conciliação ou sessão de mediação, sobe alegação que tem que se
ambas as partes. Caso o juiz faça ainda sim estará ferindo ao Prin-
cipio da Voluntariedade, artigo 1º § 2º da Lei Geral de Mediação.
Neste sentido, conciliar a aplicação do Novo CPC, com a não
tão nova lei locatícia importa em vários questionamentos e nos
apresenta diversos desafios que devem ser enfrentados. Com efeito,
uma das dúvidas mais suscitada surge na análise da aplicação do
lei processual à Ação de Despejo por Falta de Pagamento de Alu-
gueres e Acessórios, quando nos perguntamos se seria dispensável
a realização da audiência de conciliação ou mediação prevista no
artigo 334, do Novo CPC, ao referido procedimento especial.
Pela Lei de Locação de imóveis urbanos, o Réu na Ação de
Despejo por Falta de Pagamento tem o prazo de 15 (quinze) dias,
contados da citação, tanto para apresentar sua defesa, contestação,
quanto para evitar a rescisão do contrato, pondo fim à ação, efetu-
ando o pagamento de toda a dívida descriminada na exordial.
Sobre estes fatos abriu-se discursão doutrinaria posicionando em
duas correntes distintas sobre o inicio da contagem do prazo para
apresentação de defesa bem como o prazo para purgação da mora.
A primeira corrente se apega que há mudança no inicio da
contagem do prazo tanto de defesa quanto de purgação de mora,

futuro”.” Citação do artigo ‘Da teoria do diálogo das fontes’ do Drº. Sergio Malta Pra-
dopara site Migalhas < http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI171735,101048-Da+-
teoria+do+dialogo+das+fontes>.

461
certa vez que o prazo agora não se inicia com a citação, mas que
o réu e citado inicialmente para participar da parte de tentativa de
conflito sem jurisdição através da audiência de conciliação ou da
sessão de mediação. Por tanto, o prazo iniciasse com a tentativa
de audiência ou mediação frutada. Ou, no caso de haver a renun-
cia expressa ao desejo de efetuar conforme descreve o artigo 334
§ 4, I do NCPC, quando o réu peticionar informando a renuncia
iniciasse o a contagem do prazo de resposta.
A crítica a esta corrente e que o caso o NCPC se sobrepor à
Lei de locação de Imóvel Urbano, atrasaria o ritmo da Ação de
Despejo por Falta de Pagamento, impondo uma audiência prévia
de conciliação ou uma sessão de mediação para somente após
começar a contagem do prazo para a apresentação da defesa ou
purga da mora pelo polo passivo, ora réu.
A segunda corrente, no entanto sustenta que o inicio do prazo
de contagem de defesa e de purgação a mora permanece com a ci-
tação inicial conforme ocorria já com o CPC/73. O NCPC esclarece
que para a ação de despejo por falta de pagamento de alugueres e
acessórios possui o rito comum de uma forma hibrida entre o res-
peito as suas próprias peculiaridades descritas pelo legislador da
Lei nº 8.245/91. Logo a resposta esta o analise em ambas as leis,
NCPC e Lei de Locação de Imóvel Urbano, com o uso da Teoria do
Dialogo das Fontes. Iniciamos o analise diante do disposto pelos
artigos 9º, III e 62, incisos I e II, da Lei das Locações, verificando
assim o sistema desenvolvido pelo legislador na construção da
referida lei, conforme abaixo:

“Art. 9º A locação também poderá ser desfeita:


(...) III - em decorrência da falta de pagamento
do aluguel e demais encargos.”

“Art. 62º Nas ações de despejo fundadas na


falta de pagamento de aluguel e acessórios da lo-

462
cação, de aluguel provisório, de diferenças de alu-
guéis, ou somente de quaisquer dos acessórios da
locação, observar-se-á o seguinte: 
I – o pedido de rescisão da locação poderá ser
cumulado com o pedido de cobrança dos aluguéis
e acessórios da locação; nesta hipótese, citar-se-á
o locatário para responder ao pedido de rescisão e
o locatário e os fiadores para responderem ao pe-
dido de cobrança, devendo ser apresentado, com
a inicial, cálculo discriminado do valor do débito.
II – o locatário e o fiador poderão evitar a
rescisão da locação efetuando, no prazo de 15
(quinze) dias, contado da citação, o pagamento
do débito atualizado, independentemente de cál-
culo e mediante depósito judicial, incluídos: 
a) os aluguéis e acessórios da locação que ven-
cerem até a sua efetivação;
b) as multas ou penalidades contratuais, quan-
do exigíveis;
c) os juros de mora;
d) as custas e os honorários do advogado do
locador, fixados em dez por cento sobre o mon-
tante devido, se do contrato não constar disposi-
ção diversa”

Como embasamento normativo usasse o próprio NCPC, onde se


cuido esclarecer no §2º do art. 1.046, bem como ao artigo 335,III e
231,conforme leitura abaixo:

“Art. 1046. Ao entrar em vigor este Código,


suas disposições se aplicarão desde logo aos
processos pendentes, ficando revogada a Lei no
5.869, de 11 de janeiro de 1973.

463
(...)§ 2º Permanecem em vigor as disposições
especiais dos procedimentos regulados em outras
leis, aos quais se aplicará supletivamente este
Código.”
“Art. 335.  O réu poderá oferecer contestação,
por petição, no prazo de 15 (quinze) dias, cujo
termo inicial será a data:
(“...) III – prevista no art. 231, de acordo com
o modo como foi feita a citação, nos demais ca-
sos.”
“Art. 231. Salvo disposição em sentido diverso,
considera-se dia do começo do prazo:
I - a data de juntada aos autos do aviso de re-
cebimento, quando a citação ou a intimação for
pelo correio;
II - a data de juntada aos autos do mandado
cumprido, quando a citação ou a intimação for
por oficial de justiça; (...)”

Por tanto a segunda corrente expõem que o NCPC não modificou


ou revogou, ainda que parcialmente, os procedimentos previstos na
Lei de Locação de Imóveis Urbanos, de modo que, em se tratando
de Ação de Despejo por Falta de Pagamento de alugueres e encargos,
sendo desnecessária e a realização da audiência de conciliação ou
sessão de mediação. Nesta ideia o Réu será citado não para compa-
recer a uma audiência, mas sim para apresentar sua defesa ou quitar
a dívida, no prazo de 15 (quinze) dias úteis, contados da juntada do
comprovante da sua citação aos autos do processo, tal como ordina-
riamente já acontecia. Assim para esta corrente, o NCPC não suscite
qualquer dúvida quanto à realização da audiência ou sessão prevista
no art. 334, responde claramente com seu dispositivo contido no ar-
tigo 1046 § 2º, que diante da Ação de despejo motivada pela falta de
pagamento, seja todo ou parte de alugueres ou acessórios, determina

464
explicitamente a aplicação do NCPC apenas de forma suplementar,
ou seja, tão somente quando evidenciada lacuna na Lei de Locação
de Imóveis Urbanos, o que não ocorre em caso.
Foi a Lei de Locação de Imóveis Urbanos arquitetada brilhante-
mente pelo legislador da solução breve e eficiente, que, assemelhada
mais a um procedimento executório do que propriamente a uma ação
de conhecimento, priorizou, sobretudo, o cumprimento da obrigação
contratual com a sistematização da legislação nas Ações de Despejo
por Falta de Pagamento de Alugueres e Acessórios. Usamos o termo
do Desemb. Sylvio Capanema sobre o “rito transgênico”, no sentido
de ser um rito comum com respeito as peculiaridades da lei especial,
a Lei de Locação de imóveis Urbanos, e tendo o NCPC o caráter de
norma supletiva. Com isso utilizamos a solução trazida pelo NCPC
em seu artigo 1046, §2º, a exceção quanto às disposições especiais
previstas em outras leis, que deve ser aplicada neste caso
Para finalizar, devemos ter em mente que as discursões, corren-
tes aqui mencionadas, ainda não esta pacificada qual corrente que
será majoritária, o que se demorara ainda para saber, e demorara
ainda mais pra ser ter a jurisprudência sobre ocaso. . Vale ressaltar
que já há alguma decisões no mesmo entendimento da segunda
corrente 113
. Uma solução mais plausível neste momento e de se

113. “Apesar de o novo Código de Processo Civil prever a audiência de conciliação


como etapa obrigatória do processo, o juízo da 5ª Vara Cível do Tribunal de Justiça
de São Paulo entendeu que não é necessário tentar promover o acordo entre as
partes em um processo de despejo. Isso porque, de acordo com a decisão, o novo
CPC pode deixar o processo mais lento.
Em sua fundamentação, o juiz Mauro Antonini levou em consideração as pondera-
ções do advogado Arnon Velmovitsky, para quem a Lei do Inquilinato estabelece um
processo mais rápido: seja com pagamento dos alugueis atrasados ou com o início
da contagem de prazo para o despejo.
Em artigo publicado na ConJur, o advogado explica que, com o novo CPC, caso tenha
que se esperar uma audiência de conciliação para o prazo começar a contar, a solução
do caso pode ser adiada em até quatro meses.
No caso, o juiz Antonini definiu que não é necessária audiência de conciliação e deu
prazo de 15 dias para pagar o aluguel ou contestar as alegações do dono do imóvel.
Caso não se manifeste, o juiz irá entender que o autor da ação tem razão.
“O intuito evidente [de se basear na Lei do Inquilinato]é de assegurar rápida solução
para a crise de inadimplemento da locação, estimulando-se, com essa agilidade,
maior oferta de imóveis à locação no mercado, tornando esse contrato mais atraen-
te aos locadores, o que, em tese, beneficia igualmente, pela maior oferta, os interes-

465
utilizar do instituto de conversão processual na hora de formulação
do contrato onde ali já se estipulem qual e como vão resolver as
parte caso tenham tais situações.

6. AÇÃO DE DESPEJO E LIMINAR


Era um dispositivo que a doutrina e grande parte da jurispru-
dência interpretavam a partir da ideia que tutelas provisórias eram,
no sistema processual brasileiro, tutelas de urgência. E, portanto,
para concessão da medida, seria necessário que se fizessem pre-
sentes a probabilidade de existência do direito e uma situação de
perigo de dano iminente, fumus boni iuris e periculum in Mora.
O NCPC abordou de forma diferente, reformulando os conceitos
de tutela provisória. As tutelas provisórias são tutelas jurisdicionais
não definitivas, fundadas em cognição sumaria. NCPC fundam-se
as tutelas provisórias em tutelas de urgência e tutelas da evidência.
A tutela da evidência é uma tutela jurisdicional provisória, obti-
da no começo do processo, satisfativa do direito, ela realiza na prá-
tica a pretensão do autor e que não depende de urgência. Ela exige
uma existência de probabilidade que o autor tenha razão.
Isso vai influenciar na releitura dos dispositivos que compõe o
parágrafo primeiro do artigo 59 da Lei de Locações, o que vai per-
mitir, portanto, uma obtenção menos complicada, menos difícil, de
liminares nas ações de despejo. Sem falar que a tutela de provisória
de evidencia o ônus do tempo para o polo passivo. E com uma
leitura mais clinica observa-se que grande parte das situações elen-
cadas nos incisos do §1ºdo artigo 59 passando há ser permitidas as
tutelas provisórias de evidência.

sados em novas locações”, afirmou o juiz.”


Citação retirada do artigo MARTINES, Fernando. Juiz afasta conciliação prevista
pelo novo CPC em ação de despejo. 2016. Disponível Em <http://www.conjur.com.
br/2016-mai-07/juiz-afasta-conciliacao-prevista-cpc-acao-despejo> Acesso em
22/09/2016.>

466
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O NCPC é uma obra única em todo mundo, com caráter inovador
que propõem uma mudança não só no processo mais sim em todo o
direito. Podemos dizer que, com exceção a constituição, o Código de
Processo Civil e a norma mais usada no brasil. Porem a Lei nº 13.105,
publicada em 17 de março de 2015, que contempla o NCPC, antes mes-
mo de entrar em vigor já provocou uma profunda reflexão no meio ju-
rídico e ensejado amplos debates. E não ficou só aos elogios ao NCPC.
Por sua vez, a Lei de Locação de Imóveis Urbanos, Lei nº.
8.245/91, uma lei inovadora bem estruturada, permaneceu aos lon-
gos dos seus vinte cinco anos de existência com mesmas qualidades,
ainda que tenha sofrido pequenas reformas ao longo deste período.
A Lei de Locação de Imóveis Urbanos e heterodoxia, tratando
a partir do titulo II, sobre material formal. E que a interação entre
Lei de Locação de Imóveis urbanos e NCPC, que possui a Lei de Lo-
cação de Imóveis Urbanos a mesma hierarquia do NCPC, devendo
sobre ele prevalecer em caso de conflito.
Visualizamos o impacto do NCPC sobre a ação que mais e uti-
lizada na relação de locação, que são as Ações de Despejo. E que
a ação de despejo é de relação pessoal, de natureza de descons-
tituir, rescindir o contrato locatício como objetivo imediato, e o
objetivo mediato e a retomada da posse do imóvel.
Observamos que NCPC não mais aborda o procedimento co-
mum em duas espécies, ordinário e sumário, passando a ser unifi-
cado como procedimento comum, artigo 318 e do NCPC. Passando
assim as Ações de despejo para o rito comum, contudo um rito
comum ‘transgênico’ por respeitar todas as observações contidas
na lei especifica, que prevalece sobre conflito de norma, que e a
Lei de Locação de Imóveis urbanos em frente ao NCPC. É claro que
este rito transgênico se verifica nas condições especificas da Ação
de Despejo por Falta de Pagamento, seja por alugueres e/ou acessó-

467
rios, artigo 62 da Lei de Locação de Imóveis Urbanos.
Como rito modificado no NCPC, também abre se analises quan-
to a existência de imputar a ocorrência da norma do artigo 334
NCPC sobre as Ações de Despejo por falta de pagamento, salvo a
exceção artigo 334, §4º, inciso II, do NCPC. E nelas sobre o ques-
tionamento de quando começar a contar prazo para apresentação
de defesa, bem como a purgação da mora nas referidas Ações de
Despejo por falta de pagamento.
Abriu se assim para os questionamentos duas correntes. Uma
sobre a exigibilidade de ocorrer a audiência ou sessão descrita no
artigo 334 do NCPC, com a o inicio da contagem de prazo de de-
fesa, contestação, e purgação da mora, para o primeiro dia após a
existência da audiência de conciliação ou sessão de mediação.
Por sorte não devemos analisar o NCPC sozinho, e muito menos
com uma interpretação simplesmente literal. Passando a analisar a
interpretação continua e interativa com as normas, usando da Teoria
do Dialogo das Fontes. O Direito deve ser interpretado como um todo
de forma sistemática e coordenada. Segundo a teoria, uma norma
jurídica não excluiria a aplicação da outra, como acontece com a
adoção dos critérios clássicos para solução dos conflitos de normas.
Um bom exemplo do dialogo entre as fontes, recai na solução
sobre a duvida pairada em leitura ao NCPC na norma contida arti-
go 334 §4º, expressa assim que ambas as partes devem renunciar
expressamente a Audiência de Conciliação ou Sessão de Mediação.
Onde a resposta esta na interação da Lei Geral da Mediação, e Con-
ciliação, em respeito ao Principio da Voluntariedade, contido no ar-
tigo 1º § 2º da Lei nº. 13.140/15, ninguém terá que permanecer
em procedimento de mediação, assim caso uma das partes tenha
expressamente manifestado o desejo de renuncia a ela não pode-
rá ser submetida a mesma, muito menos penalizada.
Por tanto a segunda corrente se apega a Teoria do Dialogo das
Fontes para informar que a Lei de Locação de Imóveis Urbanos

468
como já dito prevalece sobre conflito de norma perante o NCPC.
Que o rito comum será a partir de que respeite as peculiaridades
descritas na Lei Especifica, sendo um rito comum ‘transgênico’.
Para este segunda corrente, a qual me posiciona, demonstra que
o próprio NCPC no artigo 1046, § 2º prevê este respeito às diferenças
do rito, se aplicando o NCPC de forma suplementar. Portanto, o NCPC
não modificou ou revogou, ainda que parcialmente, os procedimentos
previstos na Lei de Locação de Imóveis Urbanos, de modo que, em se
tratando de Ação de Despejo por Falta de Pagamento de alugueres e
encargos, sendo desnecessária e a realização da audiência de concilia-
ção ou sessão de mediação, ocorrendo normalmente após a citação o
inicio do prazo de defesa e purgação da mora.
Uma solução mais plausível neste momento e de se utilizar do
instituto de conversão processual na hora de formulação do contra-
to onde ali já se estipulem qual e como vão resolver as parte caso
tenham tais situações.
Outro impacto do NCPC na Lei de Locação de Imóveis Urbanos e
quanto aos Liminares em Ações de despejo. O NCPC abordou tutela
de forma diferente. Dividindo as Tutelas Provisórias funda-se em ur-
gências ou de evidência. E sobre as tutelas provisórias de evidência
e que recai as observações necessárias. Pois elas são é uma tutela
jurisdicional provisória; ela exige uma existência de probabilidade
que o autor tenha razão; o ônus do tempo para o polo passivo. E uma
leitura mas cuidadosa com olhar do tempo da Lei, NCPC, vai indicar
diversos dispositivos que compõe o parágrafo primeiro do artigo 59
da Lei de Locações recair sobre a Tutela provisória de evidência.
Em derradeiro, se espera que com a presente pesquisa tenha
desde o esboço teórico trazido fundamento a esclarecer todos os
aspectos impactados pelo novo ordenamento processual civil fe-
derativo, NCPC, sobre a Lei de Locação de Imóveis urbanos. Sobre
estes impactos, a meu ver, no todo, não são ruins, uma vez o próprio
NCPC mudou a sistematização de atuação processual, excluindo o

469
mero dogmatismo para buscar a ciência, a teoria a filosofia do direi-
to. Como tudo que é novo vai causar estranheza o atuar como NCPC.
Ações com estas discursões ainda serão muitas ate que se chegue a
jurisprudências sobre os temas aqui abordados. Uma solução mais
plausível neste momento e de se utilizar do instituto de conversão
processual na hora de formulação do contrato onde ali já se estipu-
lem qual e como vão resolver as parte caso tenham tais situações.

8. REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS
CÂMARA, Alexandre Freitas. O Processo Civil Brasileiro. 2ª ED.,
São Paulo: Atlas, 2016.

FUX, Luiz. A tutela dos direitos evidentes. 2000. Disponível em


<https://pt.scribd.com/doc/84205229/A-Tutela-Dos-Direitos-
-Evidentes-Luiz-Fux> Acesso em 08/08/2016.

MARCIEL, Adalberto de Andrade. Locação & Condomínio: prática


administrativa e Jurídica. 1ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2008.

MARTINES, Fernando. Juiz afasta conciliação prevista pelo novo


CPC em ação de despejo. 2016. Disponível Em <http://www.
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Roque, Andre vasconcelos. Novo CPC e a Lei de Locações: um tiro


pela culatra?. 2015.Disponivel em <http://jota.info/novo-cpc-e-
-a-lei-de-locacoes-um-tiro-pela-culatra> Acesso em 15/01/2016.

PIRES, Alex Sander Xavier; OLIVEIRA, Francisco de Assis; CARVA-


LHO, Luis Gustavo de. CPC/2015:Comentarios e anotações- Par-
te Geral. 1ª ed., Rio de Janeiro, 2016.

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470
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35,101048Da+teoria+do+dialogo+das+fontes> Acesso em
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SOUZA, Sylvio Capanema de. A Lei do Inquilinato Comentada. 5


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SOUZA, Sylvio Capanema de. Da Locação do Imóvel urbano: direito


e processo. 1ª ed. 5ª tiragem, Rio de Janeiro: Forense, 2000.

VENOSA, Sílvio de salvo. Lei do Inquilinato comentada: doutrina e


prática. 8ª ed., São Paulo: Atlas, 2005.

VELMOVITSKY, Arnon. Audiência de conciliação é dispensável em


ação de despejo por falta de pagamento. 2016. Disponível em
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-audiencia-conciliacao-dispensavel-acao-despejo > acesso em
22/09/2016.

471
RESP O NSABILIDADE CIVIL
SUB JETIVA MÉDICA E ÔNU S DA
PROVA NO CÓDIGO DE DEFE SA D O
CO N SUMIDOR E NO CÓDIGO D E
PRO C ESSO CIVIL DE 2015
FERNANDO LÚCIO ESTEVES DE MAGALHÃES114

INTRODUÇÃO:
O presente artigo visa debater a grande discussão travada atual-
mente sobre a responsabilidade civil do médico e a questão da in-
versão processual do ônus probatório, comumente confundida com
a responsabilidade objetiva desse profissional liberal, notadamente
diante do Código de Defesa do Consumidor, as inovações trazidas
pelo Código de Processo Civil de 2015, assim como a tendência
jurisprudencial do momento, em razão de decisões do Superior Tri-
bunal de Justiça que consideram a responsabilidade civil objetiva
na obrigação assumida pelo médico em casos de cirurgia plástica e
prontuário médico, com o fim de privilegiar o autor/paciente.

O DIREITO PROBATÓRIO NO CÓDIGO DE


DEFESA DO CONSUMIDOR:
Um aspecto importante do Código de Defesa do Consumidor foi a
inclusão no inciso VIII do artigo 6º, a possibilidade da inversão do ônus
da prova, a critério do magistrado e a favor do consumidor, quando for
verossímil sua alegação ou quando ele for considerado hipossuficiente.

114. Advogado e professor. E-MAIL: [email protected]

473
Antes de adentrarmos na perfunctória análise do dispositivo
legal suso citado, cabe esclarecer que o ônus da prova pode ser dis-
tribuído de três formas: (i) de maneira legal (sistema ope legis), (ii)
de maneira judicial (ope iudicis) e (iii) de maneira convencional.
Nesse sentido, a lei consumerista adota uma regra de inversão do
ônus da prova ope judicis, diversa da inversão ope legis prevista em
outros dispositivos do código (arts. 12, § 3°, II, art. 14, § 3°, I, e 38).
A seu turno, a inversão convencional decorre de um acordo
de vontades entre as partes, que poderá ocorrer antes ou durante
o processo. Essa forma de inversão tem duas limitações previstas
pelo art. 373, § 3.º do CPC/2015, que prevê a nulidade dessa espé-
cie de inversão quando recair sobre direito indisponível da parte;
e tornar excessivamente difícil a uma parte o exercício do direito.
Essa forma de inversão do ônus da prova tem interessante par-
ticularidade no tocante ao direito consumerista em razão do art. 51,
inciso VI, do CDC, que prevê como sendo nula de pleno direito a
cláusula contratual que estabeleça inversão do ônus da prova em
prejuízo do consumidor.
O Superior Tribunal de Justiça tem entendimento consolidado
no sentido de não ser automática a inversão nesse caso, depen-
dendo sempre do preenchimento dos requisitos legais (STJ – AgRg
no Ag 1300186/RS – Quarta Turma – Rel. Min. Raul Araújo – j.
26.04.2011 – DJE 10.05.2011).
Pois bem, são requisitos para o magistrado decretar a inversão,
a verossimilhança das alegações ou hipossuficiência do consumidor;
A doutrina majoritária entende que o dispositivo legal deve ser
interpretado literalmente, de forma que a hipossuficiência e a verossi-
milhança sejam considerados elementos alternativos, bastando a pre-
sença de um deles para que se legitime a inversão do ônus probatório.
Por sua vez, verossimilhança da alegação consiste de que a ale-
gação do consumidor aparenta ser verdadeira.

474
Nesse aspecto, podemos apontar a primeira divergência sobre o
tema, qual seja, o juiz, ao aplicar a inversão do ônus da prova, deve
levar em consideração os indícios colhidos no processo?
Para uma 1ª corrente, a doutrina majoritária e STJ exigem-se
provas, ao menos indiciárias, dos fatos relatados no processo. (AgRg
no REsp: 1181447 PR 2010/0031847-3, Relator: Ministro LUIS FELI-
PE SALOMÃO, Data de Julgamento: 15/05/2014, QUARTA TURMA,
Data de Publicação: DJe 22/05/2014), ao passo que um segundo
entendimento não exige qualquer espécie de prova.
O outro requisito é a hipossuficiência do consumidor, isto é, a di-
ficuldade do consumidor para produzir, no processo, a prova do fato
favorável a seu interesse, seja porque ele não possui conhecimento téc-
nico específico sobre o produto ou serviço adquirido (hipossuficiência
técnico-científica), seja porque ele não dispõe de recursos financeiros
para arcar com os custos da produção dessa prova (hipossuficiência
econômica ou fática), como já decidiu o STJ (REsp 1.155.770-PB, Rel.
Min. Nancy Andrighi, j. 15.12.2011 (Informativo STJ 489).
Quanto ao momento de inversão do ônus da prova, podemos
apontar outra divergência.
Para parcela da doutrina, a inversão deve ser decidida entre a pro-
positura da ação e o despacho saneador, pois se trata de regra de pro-
cedimento, enquanto que para outros, trata-se de regra de julgamento.
Segundo o STJ, trata-se de regra de instrução, devendo a decisão
judicial que determiná-la ser proferida preferencialmente na fase de
saneamento do processo ou, pelo menos, assegurar à parte a quem
não incumbia inicialmente o encargo a reabertura de oportunidade
para manifestar-se nos autos (EREsp 422.778-SP, Segunda Seção, Rel.
originário Min. João Otávio de Noronha, Rel. para o acórdão Min. Ma-
ria Isabel Gallotti (art. 52, IV, b, do RISTJ), julgados em 29/2/2012).
Nesse aspecto, o CPC/2015 adotou a regra de procedimento, es-
tipulando no art. 357 que o juiz deverá, na decisão de saneamento e
de organização do processo, distribuir o ônus da prova (inciso III).

475
Ademais, o art. 373 do novo Código afasta por completo a regra de
julgamento ao prever que sempre que for alterado o ônus da prova, a
parte deverá ter a oportunidade de se desincumbir do encargo. Como
a regra de julgamento permite a inversão na sentença, não fornecen-
do mais oportunidade da parte se desincumbir do ônus probatório,
não poderá mais ser adotada pela nova sistemática do novo CPC.
Outro ponto que merece atenção é a inversão do adiantamento
de custas processuais.
Nesse sentido, a inversão do ônus da prova traz outra interessan-
te questão: a inversão do adiantamento do pagamento das despesas
necessárias para a produção probatória, em especial a pericial. Nesse
ponto, há séria divergência, tanto na doutrina como na jurisprudência.
Para uma 1ª corrente, uma vez decretada a inversão do ônus da
prova, transfere-se automaticamente para o fornecedor a obrigação
de arcar com os custos da produção probatória, ao passo que para
o STJ, a inversão do ônus da prova não tem o efeito de obrigar o
fornecedor a arcar com as custas da prova requerida pelo consumi-
dor, porquanto não se deve confundir o ônus de provar com o ônus
financeiro de realização dos atos probatórios. (AgRg na MC 17.695/
PR, Rel. Ministra Maria Isabel Gallotti, 4ª T., DJe 12­-5­-2011).
A antecipação de pagamento de despesas relacionadas com a
produção de prova encontra-se regida pelo art. 95 do CPC/2015,
não sofrendo qualquer influência decorrente de eventual inversão
do ônus da prova.
Para finalizar, uma indagação é se a inversão poderia ser defe-
rida em ação civil pública proposta pelo Ministério Público? A res-
posta é positiva, conforme já decidiu o STJ (REsp 951.785/RS, Rel.
Ministro Luis Felipe Salomão, 4ª T., DJe 18­-2­-2011).

O ÔNUS DA PROVA NO CÓDIGO DE


PROCESSO CIVIL DE 2015:
O art. 373 do CPC/15 disciplina o chamado ônus da prova, que
se divide em ônus subjetivo e objetivo. No ônus subjetivo, irá se in-

476
dagar quem deverá provar. O referido dispositivo adotou uma regra
subjetiva e estática, ou seja, analisa-se a posição da parte em juízo,
bem como a natureza dos fatos. Em suma, ao autor cabe provar
o fato constitutivo do seu direito e, ao réu, os fatos modificativos,
extintivos ou impeditivos do direito do autor.
Por outro lado, não pode o magistrado se abster de sentenciar,
pois nosso ordenamento veda, na forma do art. 140, o non liquet.
Nesse sentido, o julgador terá que se valer do chamado ônus objeti-
vo, que é, na verdade, uma regra de julgamento, ou seja, no momen-
to de julgar a causa, o magistrado irá analisar quem assumiu o risco
pela não produção da prova, isto é, se o autor não produziu prova
sobre o fato constitutivo, seu pedido será julgado improcedente; se o
réu não conseguiu provar o fato modificativo, impeditivo ou extintivo
do direito do autor, o pedido será julgado procedente.
Em relação à sua distribuição, o CPC/2015 inova ao trazer a con-
sagração da teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova no
ordenamento jurídico brasileiro, onde se autoriza que o juiz, pre-
enchidos certos requisitos, redistribuir o ônus da prova caso a caso.
Segundo essa teoria, o ônus da prova incumbe a quem tem melho-
res condições de produzi-la, diante das circunstâncias fáticas presentes
no caso concreto, flexibilizando-se, sensivelmente, o sistema estático e
abstratamente consagrado secularmente em nosso ordenamento.
O sistema estático e abstrato foi mantido pelo legislador, como
se observa do art. 373 em seus incisos, contudo, no § 1º prevê a
possibilidade de aplicação de tal teoria pelo juiz no caso concreto,
diante de peculiaridades da causa relacionadas à (i) impossibilida-
de ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo ou (ii) à maior
facilitação da prova do fato contrário, desde que em (iii) decisão
fundamentada e (iv) respeitando-se o contraditório.
Perceba-se que a dinamização do ônus da prova pelo juiz é
excepcional, dependendo do reconhecimento dos quatro pressu-
postos do art. 373 §1º CPC/15. Como visto, o CDC também traz

477
previsão de dinamização do ônus da prova por decisão judicial (ope
iudicis), contudo sempre para favorecer o consumidor (art. 6º, VIII
do CDC), porém a dinamização prevista no art. 373 §1º do CPC/15
não faz tal distinção, ou seja, pode ser para o autor ou para o réu.
A decisão que dinamização o ônus da prova é recorrível por
agravo de instrumento (art. 1.015, XI, CPC/2015), contudo, a deci-
são que não distribui é irrecorrível e, se for o caso, a parte interessa-
da deverá impugná-la por ocasião da apelação ou das contrarrazões
(art. 1009, § 1º, CPC/2015). Perceba-se que é irrecorrível nesse mo-
mento, pois se está mantendo a regra geral, a teoria estática.

INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA NA


RESPONSABILIDADE CIVIL SUBJETIVA
MÉDICA:
Pois bem, chegamos ao cerne do presente trabalho, porém,
cabe fazer uma breve digressão sobre a responsabilidade civil des-
te profissional liberal.
A responsabilidade civil do médico é subjetiva, consoante o
artigo 951 do Código Civil c/c artigo 14 § 4º do Código de Defesa
do Consumidor, o que consiste em dizer que só haverá responsa-
bilização civil, com o consequente dever de reparação do dano,
quando houver comprovação de culpa por parte do médico, seja
por imperícia, imprudência ou negligência.
Doutrinariamente, surgiram teorias com o objetivo de explicar
a responsabilidade subjetiva do profissional liberal:

• OBRIGAÇÃO DE MEIO: o profissional não garante o re-


sultado, mas garante a perícia, o cuidado adequado, melhor tra-
tamento. Pela doutrina, adota-se o art. 14 § 4º CDC. É espécie de
culpa provada (responsabilidade subjetiva tradicional do art. 951,
CC, quando se deve provar: imperícia, imprudência e negligência).

478
• OBRIGAÇÃO DE RESULTADO: para o STJ, na cirurgia em-
belezadora/estética, o cirurgião tem como garantir o sucesso do
procedimento. Da mesma forma, o tratamento ortodôntico. Assim,
a responsabilidade seria objetiva. Porém, por ser a responsabilidade
do § 4º subjetiva, a doutrina questionava que não se poderia con-
trariar o espírito da lei ao entender que haveria a responsabilidade
objetiva pelo profissional liberal. Assim, o STJ alterou o entendi-
mento, sendo agora a obrigação de resultado de responsabilidade
subjetiva, na modalidade de culpa presumida. Na prática, implica
em inversão do ônus da prova. (REsp 236.708/MG, Rel. Min. Carlos
Fernando Mathias, j. 10.02.2009).

Importante observar que, para os casos de cirurgias de natureza


mista (estética e reparadora), a responsabilidade do médico não pode
ser generalizada, devendo ser analisada de forma fracionada, con-
forme cada finalidade da intervenção. Assim, a responsabilidade do
médico será de resultado em relação à parte estética da intervenção
e de meio em relação à sua parte reparadora. (REsp 1.097.955/MG,
Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 27.09.2011, Informativo STJ n. 484).
No que diz respeito, por exemplo, ao prontuário médico, a ju-
risprudência do STJ decidido que:

“(...). 2. É possível a inversão do ônus da prova (art. 6º, VIII,


do CDC), ainda que se trate de responsabilidade subjetiva de mé-
dico, cabendo ao profissional a demonstração de que procedeu
com atenção às orientações técnicas devidas. Precedentes: AgRg no
Ag 969015/SC, Rel. Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, QUARTA
TURMA, julgado em 07/04/2011, DJe 28/04/2011 e REsp 696284/
RJ, Rel. Ministro SIDNEI BENETI, TERCEIRA TURMA, julgado em
03/12/2009, DJe 18/12/2009. (...). (AgRg no AREsp 25.838/PR,
Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado
em 20/11/2012, DJe 26/11/2012).

479
CONCLUSÃO:
Por todo o exposto, flagrantemente divergente o tema exposto
no presente artigo, seja nas obras doutrinárias de maior renome no
país, ou nas decisões de nossos tribunais.
A nosso ver, sem embargo aos entendimentos em contrário,
plenamente possível a inversão do ônus probatório em demandas
envolvendo indenizações por suposto erro médico, tendo em vis-
ta principalmente que: 1) o médico, como prestador de serviço,
enquadra-se nas relações permeadas pelo Código de Defesa do Con-
sumidor, nada obstante ser a modalidade de sua responsabilidade
subjetiva; 2) parece-nos evidente que na grande maioria das ações
desta natureza, possui o profissional médico maiores condições téc-
nicas de produzir as provas a orientar o Juízo, tendo em vista seu
conhecimento científico, o que induz a plausibilidade e conveni-
ência da aplicação da carga probatória dinâmica; 3) O Código de
Defesa do Consumidor nasceu com o fim de facilitar os direitos do
consumidor, mormente nos casos em que se verifica sua patente
hipossuficiência técnica, como no caso das demandas em comento.
Adverte-se que nossa concordância com a inversão do ônus da
prova pressupõe as condicionantes previstas no artigo 6°, inciso
VIII do CDC, assim como a valoração do julgador nos casos em
concreto.

480
DESCO NSIDERAÇÃO DA
PERSO NALIDADE J U RÍDICA N O
SI STEMA PROCESS UAL BRASILE IR O
VI G EN TE.
Gisele Leite115 e Eva Eulalia da Silva Almeida116

1.INTRODUÇÃO
A existência legal das pessoas jurídicas inicia-se com o registro
do respectivo do ato constitutivo no órgão próprio conforme prevê o
art. 45 do Código Civil Brasileiro. Assim, as associações, fundações
e sociedades simples devem ter seus atos de constituição levados
ao Registro Civil de Pessoas Jurídicas enquanto que as sociedades
empresárias são registradas nas Juntas Comerciais (art. 1.150 C.C.).
Portanto, o patrimônio pessoal do sócio não pode sofrer cons-
trução judicial para solver débitos que não seja pessoal, respon-
dendo pela sociedade.
O princípio da autonomia patrimonial pode ser manipulado na
realização de fraudes, principalmente quando a pessoa jurídica é
uma sociedade empresária.

115. Mestre em Direito e Democracia pela Faculdade de Direito do Sul de Minas -


FDSM; Doutorando em Direito pela Universidade Estácio de Sá. Professor da Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG) e da Faculdade de Direito do Sul de
Minas (FDSM). E-mail: <[email protected]>.
116. Advogada, pós-graduação lato sensu concluída em Direito Empresarial. Foi Delega-
da da OAB/RJ por três triênios, foi relatora da Comissão de Ética e disciplina da OAB/
RJ. Participante da Comissão de Apoio ao Consumidor-CAC- da 32ª Subseção da OAB/
RJ no triênio de 2013 a 2015, e atualmente na Comissão do Consumidor da seccional da
OAB/RJ, da Comissão de Anticorrupção e Compliance, e da Comissão de direito Imo-
biliário, ambas da 57ª Subseção da OAB/RJ. Professora de cursinhos e coordenadora
do curso preparatório para prova da OAB pelo MARJ, atuação como professora e pa-
lestrante entre ela junto a Escola Superior da Advocacia – ESA. Uma das fundadoras do
Movimento dos Advogados do Rio de Janeiro- MARJ_. <[email protected]>.

481
Por ser um sujeito de direito distinto, a pessoa jurídica pode ser-
vir de instrumento para fraudar o cumprimento da lei ou de obriga-
ções. Transfere-se à titularidade de uma pessoa jurídica a obrigação
que seria da física que a integra ou de outra pessoa jurídica.

2. A TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA
PERSONALIDADE JUDIDICA
A sistematização do instituto deu-se em 1955 pelo jurista
alemão Rolf Serick. Sobre esta teoria deve ser ter em mente que
sempre que a autonomia patrimonial das pessoas jurídicas for ma-
nipulada para realização de fraudes, o juiz poderá ignorá-la e im-
putar a obrigação diretamente a pessoa do sócio ou dirigente que
procurou furtar-se aos seus deveres.
A teoria da desconsideração da pessoa jurídica ou da supera-
ção da personalidade jurídica, não questiona o princípio da auto-
nomia patrimonial, que continua sendo válido e eficaz, ao esta-
belecer que, em regra, os membros que compõe a pessoa jurídica
não respondem pelas obrigações da pessoa jurídica.
No fundo, trata-se de aperfeiçoamento da teoria da pessoa
jurídica, através da coibição do mau uso de seus fundamentos.
Percebe-se que a pessoa jurídica desconsiderada não é extinta
liquidada ou dissolvida pela desconsideração da personalidade
jurídica também não é, igualmente, invalidada ou desfeita. Ape-
nas determinados efeitos de seus atos constitutivos deixam de se
produzir episodicamente, sua eficácia. Em resumo, a separação
patrimonial decorrente da constituição da pessoa jurídica não será
eficaz no episódio da repressão à fraude.
Para todos os demais efeitos, a constituição da pessoa jurídica
é existente, válida e plenamente eficaz. Através da desconsidera-
ção da personalidade jurídica, o juiz está autorizado a ignorar a

482
autonomia patrimonial da pessoa jurídica sempre que esta é usa-
da na realização de fraudes.
Os pressupostos escolhidos pelo Código Civil para desconside-
ração da personalidade jurídica da pessoa jurídica são o desvio da
finalidade e a confusão patrimonial (art. 50 do C.C).
O abuso que caracteriza o desvio da finalidade ou pela confusão
patrimonial. Assim, se o sócio envolve a sociedade em negócios estra-
nhos aos seus fins ou não separa rigorosamente os patrimônios desta
e o seu. Desta forma, constata-se o abuso da personalidade jurídica.
Também se configura o abuso se, em vez de sócio e sociedade,
tratar-se de associado e associação ou de instituidor e fundação.
Também podem praticar o abuso os representantes legais ou admi-
nistradores desta.
Como é sabido, a pessoa jurídica pode praticar atos jurídicos
em geral, exceto aqueles atos em relação aos quais está proibida ou
impossibilitada de praticar (por faltar atributos humanos), todos os
demais atos e negócios jurídicos podem ser praticados pela pessoa
jurídica, independente de expressa e específica autorização legal.
A lei confere vontade à pessoa jurídica com a mesma eficácia
aplicada à vontade de pessoas físicas. De sorte que os direitos e
obrigações podem ser criados, modificados e extintos pela vonta-
de dos sujeitos disciplinados pela ordem jurídica, entre as quais se
encontram as pessoas morais.
Os atos pelos representantes ou diretores que são praticados
em nome da pessoa jurídica vinculam-na, desde que exercido den-
tro dos poderes de representação e nos limites definidos no estatu-
to ou contrato social (art. 47 do CC).
É a observância desses preceitos do ato constitutivo é a condição
para considerar-se a pessoa jurídica obrigada. Na formação da vonta-
de da pessoa jurídica impera o princípio majoritário. Em razão dessa

483
regra, a vontade da pessoa jurídica é a da maioria dos membros do
órgão investido da competência para formá-la ou expressá-la.

3. Teoria Maior de Desconsideração


O incidente de desconsideração da personalidade jurídica é pre-
visto nos artigos 133 ao 137 do CPC/2015 sendo calcado na teoria da
desconsideração da personalidade jurídica que visa prevenir o desvio
da finalidade de um ente empresarial, assim por meio de incidente, o
juiz o ignorando a existência da pessoa jurídica no caso concreto, su-
pera a autonomia da sociedade, para alcançar o patrimônio dos sócios.
Desvenda-se os sócios para considerá-los responsáveis pelos
atos praticados em desvio de função da pessoa jurídica. A des-
consideração não objetiva invalidar os atos constitutivos de uma
sociedade, muito menos dissolvê-la.
Pretende-se torná-los ineficazes os atos realizados pela socie-
dade principalmente quando forem em descumprimento à função
social da empresa. A violação da função social pode ser tipificada
por desrespeito à legislação:
Importante sublinhar que a desconsideração é instituto excep-
cional o que faz depender do atendimento aos requisitos legais.
Conforme prevê o artigo 50 do CC para tanto são necessários, a
saber: a) requisito objetivo consistente na insuficiência ou confusão
patrimonial; b) o requisito subjetivo que é o desvio de finalidade
com a confusão patrimonial por meio de fraude ou abuso de direito.
Não basta estar presente apenas o primeiro requisito, devendo
estar devidamente comprovado no caso concreto, a existência de
uma conduta do sócio ou a sua intenção francamente abusiva ou
fraudulenta para utilizar os bens da sociedade para fins diversos
daqueles permitidos em lei.
O Código Civil adotou o que chamamos de Teoria Maior de
Desconsideração que exige a configuração objetiva de tais requi-
sitos para sua aplicação. Não basta a comprovação da insolvência

484
para que os sócios e administradores sejam responsabilizados. É
preciso que se comprove a ocorrência de desvio de finalidade ou de
confusão patrimonial.

4. Teoria Menor de Desconsideração


O Código de Defesa do Consumidor e a Lei 9.605/1988 que trata
de crimes ambientais adotaram a Teoria Menor da Desconsideração,
que se justifica pela simples comprovação da insolvência patrimonial
e nem se exige a comprovação quando a existência de dolo ou culpa.
Na lide consumerista, a título de exceção, pode-se também ado-
tar a teoria menor da desconsideração que se contenta apenas com
o requisito objetivo que corresponde a insolvência ou com o fato de
a personalidade jurídica representar um obstáculo ao ressarcimento
de prejuízos dos consumidores (art.28, quinto parágrafo do CDC).

5. Ponto Relevante no Processo para


desconsiderar a Personalidade Jurídica
Antes do CPC de 2015 uma boa parte da doutrina brasileira já
considerava indispensável a propositura de ação própria para que as
responsabilidades pela pessoa jurídica fossem atribuídas aos sócios.
Para Fábio Ulhôa Coelho o juiz não poderia desconsiderar a se-
paração entre a pessoa jurídica e seus integrantes, sendo por meio
de ação própria, de caráter cognitivo, movida pelo credor da socie-
dade contra seus sócios ou controladores.
Cristiano Chaves entende ser possível mesmo por meio da descon-
sideração instaurada no processo de execução, na forma a permitir que
a execução viesse a incidir no patrimônio dos sócios. O mesmo acalen-
tado doutrinador analisando o incidente de desconsideração entende
que o patrimônio dos sócios por obrigação contraída pela pessoa jurí-
dica, não poderia ser atingido sem que antes fosse proferida a sentença
em ação própria, sob pena de ofensa à coisa julgada.

485
A jurisprudência já admitia a desconsideração da personalida-
de jurídica sem necessidade de ação autônoma. Para o STJ, por
exemplo, o juiz pode determinar de forma incidental, na execução
singular ou coletiva, a desconsideração da personalidade jurídica.
Para o STJ estando preenchidos os requisitos legais, não se exige,
a propositura de ação autônoma (Resp 1.326.201/RJ, Relator Min.
Nancy Andrighi, j. 07.05.2013, Informativo 524).
O CPC/2015 criou um capítulo específico para o referido in-
cidente, elencando-o como nova modalidade de intervenção de
terceiros (até por trazer aos autos, outros demandados) e pacifi-
cando a total desnecessidade de ação própria e autônoma para a
aplicação da teoria da desconsideração.
Existiam doutrinadores que admitiam inclusive a desconsi-
deração sem a prévia citação dos supostos responsáveis (sócios,
empresas coligadas ou integrantes do mesmo grupo econômico).
Alguns julgados do STJ consideraram que, nos casos de cumpri-
mento de sentença, a mera intimação do sócio já era suficiente
para configurar oportunizada a ampla defesa e o contraditório.
Reafirme-se o caráter excepcional da desconsideração possibi-
litando o verdadeiro exercício do contraditório, o CPC/2015 posi-
tivou novas regras para a instauração de incidente de desconside-
ração da personalidade jurídica.
O incidente é cabível em todas as fases do processo de conhe-
cimento, no cumprimento de sentença e na execução juntada em
título extrajudicial. Portanto, não se precisa aguardar a sentença
ou acórdão para pleitear a medida.
Tanto assim que o art. 134, segundo parágrafo do CPC/2015
possibilita à parte requerer a desconsideração ainda na petição ini-
cial, hipótese em que será desnecessária a instauração do incidente.
Também é aplicável no âmbito dos processos perante os Juiza-
dos Especiais Cíveis conforme prevê o art. 1.062 do CPC/2015.

486
Por tal razão que o CPC/2015 determinou a prévia citação do
sócio ou da pessoa jurídica após a instauração do incidente. Vige
ainda no art. 135 do novo codex processual a disciplina expressa
para o requerimento de provas, o que impossibilita a decretação se
a desconsideração não observar o contraditório.
Antes da citação, a instauração do incidente deve ser comuni-
cada ao distribuidor para as devidas anotações.
Julgando ser suficientes as provas acostadas nos autos, o juiz
julgará o incidente através de decisão interlocutória, concessão de
medida liminar, por exemplo. Do contrário, deverá aguardar a con-
clusão da instrução para finalmente decidir sobre a desconsideração,
como também através de sentença.
Elpídio Donizetti aponta que o mais recente entendimento do STJ,
a pessoa jurídica tem legitimidade para impugnar a decisão interlocu-
tória que desconsidera a personalidade jurídica para alcançar o patri-
mônio de seus sócios ou administradores, desde que o faça com o fim
de defender a sua regular administração e autonomia(...) (Vide STJ
Resp 1.421.464/SP, Relatora: Min. Nancy Andrighi, j. 24.4.2014).
Destaque-se que contra a decisão interlocutória que acolher ou não
a desconsideração, caberá agravo de instrumento (vide o art. 1.015, IV
e parte final do art. 136). Se a decisão for proferida pelo relator, caberá
agravo interno (art. 1.021) e, da decisão exarada pelo órgão colegiado
nos Tribunais de Justiça ou nos TRFs, caberá recurso especial.
Os efeitos da desconsideração será a ineficácia dos atos de alie-
nação ou oneração de bens, havida em fraude de execução.
A norma ainda prevê o efeito retroativo ou ex tunc impossibili-
tando do que os direitos do requerente (credor) sejam atingidos pelos
atos cometidos em fraude à execução. Quanto ao terceiro adquirente
a boa-fé, nada impede que este pleiteie, em ação de regresso contra o
sócio, o ressarcimento de valores pagos para aquisição do bem.

487
CONCLUSÃO
A desconsideração da personalidade jurídica empresária com o
objetivo de impedir a fraude ou abuso do direito, sua previsão no
Brasil foi positivada no art. 50 do Código Civil, Código de Defesa do
Consumidor (art. 28) além de outras legislações.
Convém relembrar que o Código Civil de 1916 que limitava a
responsabilidade dos sócios pelos atos praticados em nome da pes-
soa jurídica (art. 20) e, também na Lei das Sociedades por Quotas
de Responsabilidade Limitada (Decreto 3.708/19) limitou a respon-
sabilidade dos sócios ao total do valor subscrito do capital social,
ainda não integralizado.
Com o Código Civil de 2002 adotou-se a chamada Teoria Maior
de Desconsideração de Personalidade Jurídica onde se exigia para a
demonstração da gestão fraudulenta ou abusiva por parte dos sócios
ou gerentes ou gestores para que se caracterizasse a necessidade da
desconsideração. A referida teoria é mais consistente e de maior abs-
tração e fornece maior segurança aos empreendedores em geral.
O CDC adotou a teoria menor de desconsideração, se conta ape-
nas com a demonstração de insolvência patrimonial da pessoa ju-
rídica de maneira a deduzir a fraude ou o abuso do direito que são
presumidos. Portanto, que não exige maiores perquirições.
Com a normatização feita pelo Código Fux, sendo tratado como
incidente processual, isto é, que é processado em paralelo ao proces-
so em andamento, mas não cria uma relação jurídica nova, porém
pode influenciar o resultado final da demanda principal. Também
se admite o requerimento da desconsideração em petição inicial.
O incidente por ser acessório deverá ser acessório deve ser
apreciado antes do julgamento final da causa em questão. O in-
cidente não pode ser instaurado de ofício pelo juiz, dependendo
sempre da provocação do interessado ou do MP quando lhe cou-
ber intervir no feito. A aplicação do incidente segue a observação
dos pressupostos previstos em lei.

488
O art. 134 do CPC/2015 reforça a definição de incidente e ratifi-
ca ser cabível em todas as fases processuais (seja de conhecimento,
de execução judicial ou de título extrajudicial).Tanto o sócio como
a empresa terão garantidos o contraditório e a ampla defesa e, pas-
sam a integrar o polo passivo da demanda.
O STJ entendeu que quanto ao interesse recursal no caso de des-
consideração da personalidade jurídica, é tanto da referida empresa,
quanto seus sócios. Saliente-se que a desconsideração da pessoa jurí-
dica, não há o desaparecimento desta do mundo jurídico, apenas se
afasta o princípio da autonomia patrimonial. Dessa forma, os sócios
respondem conjuntamente com a sociedade pelas dívidas desta, não
se distinguindo mais o patrimônio de um e de outro. Assim, havendo
a desconsideração da personalidade jurídica, tanto a sociedade quan-
to os sócios possuem legitimidade para recorrer do correspondente
decisório (STJ, REsp 715.231-SP, Quarta Turma, Relator Ministro João
Octávio de Noronha, V.U. Julg. 09.02.2010).
Conclui-se que a aplicação da desconsideração da personalidade
jurídica fora amplamente recebida pelo ordenamento jurídico brasi-
leiro, inclusive com a recepção do CPC/2015, o direito civil, direito
ambiental e do consumidor, objeto quando preenchidos seus requisi-
tos tem se mostrado instituto de grande utilidade na prática jurídica
principalmente com o escopo de permitir o ressarcimento de credo-
res e empreenderes pelos atos da sociedade, em face de seus sócios e,
vice-versa, o que possibilita maior efetividade processual117.

117. O estudo o que chamou muita atenção foi o fato de não haver uniformidade
na aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica, pois existem
duas teorias, a maior e a menor. A primeira (maior) somente reconhece o afastamento
da desconsideração da personalidade quando ocorrer à manipulação fraudulenta ou
abusiva do instituto.
Já a segunda (menor), trata da desconsideração em qualquer hipótese de execução
de patrimônio de sócio por obrigação social, afastando o princípio da autonomia pa-
trimonial sempre que ocorrer a insatisfação do crédito.
A harmonização da teoria da desconsideração personalidade jurídica depende da
aprovação dos projetos de lei que visam acabar com as lacunas existentes sobre a
aplicação do instituto.
A autonomia patrimonial e a personalidade jurídica são institutos de grande importância
para o direito empresarial, pois estimulam o crescimento da economia nacional, e cresce

489
Referências:
COELHO, Fábio Ulhôa. Curso de Direito Civil. Volume 1 São Paulo:
Saraiva, 2008.

DONIZETTI, Elpídio. Curso Didático de Direito Processual Civil.


São Paulo: Atlas, 2016.

GAJARDONI, Fernando da Fonseca. Teoria Geral do Processo Parte


Geral. São Paulo: Forense, 2015.

FUX, Luiz. Teoria Geral do Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense,


2014.

HARTMANN, Rodolfo Kronemberg. Curso Completo do Novo Pro-


cesso Civil. 3ª edição. Niterói: Impetus, 2016.

LEITE, Gisele. Novo CPC Comentários as principais inovações do Novo


Direito Processual Civil. Mato Grosso Sul: Contemplar, 2016.

MELO, Nehemias Domingos (coord.). Colaboradores: Denise Heu-


seler, Gisele Leite, Estefânia Viveiros, German Segre, Márcia
Cardoso Simões. Novo CPC Anotado. Comentado. Comparado.
São Paulo: Rumo Legal, 2016.

STRECK, Lenio Luiz; CUNHA, Leonardo Carneiro; FREIRE, Alexan-


dre. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Sa-
raiva, 2016.

a atividade econômica, os investimentos, a produção e circulação de bens e serviços.


Com a positivação feita pela Lei 13.105/2015 deu-se a solidificação do princípio da
segurança que deve atender coerentemente as relações sociais, diminuindo assim
as formas de interpretação sobre o instituto e aperfeiçoando o desenvolvimento da
primazia do julgamento do mérito principalmente em face do processo de execução.

490
O N OVO INSTRU MENTALIS M O D O
PRO C ESSO CIVIL BRAS ILEIR O
Gisele Leite

Parti da preciosa obra de um dos maiores doutrinadores e


processualistas brasileiros, Cândido Rangel Dinamarco, intitulada
“A Instrumentalidade do Processo”, cuja primeira edição fora em
1987, publicada pela Editora Malheiros, de São Paulo.
De fato, é importante procurar entender as contemporâneas
tendências metodológicas agitadas pela busca da efetividade do
processo e, em particular, pela instrumentalidade do processo que
se destaca não apenas perante o direito material, mas também,
perante o Estado Democrático de Direito118.
Ao se chegar à noção de direito processual como ciência atra-
vés de um iter de desligamento dos matizes conceituais e funcio-
nais, outrora situadas no direito material e cuja inadequação so-
mente começou a partir da metade do século XIX.

118. Foi somente no final do século XIX que as grandes bases do Estado de Direito
foram consolidadas.O Estado de Direito nos dias atuais tem um significado de funda-
mental importância no desenvolvimento das sociedades, após um amplo processo de
afirmação dos direitos humanos, sendo um dos fundamentos essenciais de organiza-
ção das sociedades políticas do mundo moderno. A democracia, como realização de
valores (igualdade, liberdade e dignidade da pessoa) de convivência humana, é con-
ceito mais abrangente que o de Estado de Direito, que surgiu como expressão jurídica
da democracia liberal. Seu conceito é tão histórico como o de democracia, e se enri-
quece de conteúdo com o evolver dos tempos. A evolução histórica e a superação
do liberalismo, a que se vinculou o conceito de Estado de Direito, colocam em debate
a questão da sua sintonia com a sociedade democrática. O reconhecimento de sua
insuficiência gerou o conceito de Estado social de Direito, nem sempre de conteúdo
democrático. Chega-se agora ao Estado democrático de Direito, que a Constituição
acolhe no art. 1º como um conceito-chave do regime adotado, tanto quanto o são o
conceito de Estado de Direito democrático da Constituição da República portuguesa
e o de Estado social e democrático de Direito da Constituição espanhola.

491
A influência racionalista do Iluminismo permitiu também a vi-
são dos fenômenos que ao longo da história das instituições, per-
maneceram esquecidos e ocultos à percepção dos doutrinadores.
As transformações políticas e sociais havidas na Europa desde
o século XVIII vieram a alterar a fórmula das relações jurídicas vi-
gentes, entre o Estado e o cidadão, dando-se a ruptura de antigas
estruturas. Conforme Jellinek119apontava o trinômio que bem ex-
pressava a vida do Estado (conservar, ordenar e ajudar), destacan-
do a evolução das relações sociais no sentido de haver crescente
solidariedade, pois quanto maior for o interesse solidário, maior
será a responsabilidade do Estado pela sua satisfação.
Registra-se um acréscimo sensível de interesses comuns na
sociedade, acarretando maiores responsabilidades do Estado, o
que conduz a um maior intervencionismo do Estado para o cum-
primento da realização integral da dignidade da pessoa humana
e o compromisso com maior desenvolvimento socioeconômico do
país e da tutela de direitos e garantias.
A figura do magistrado como agente estatal atuante no chama-
do direito judiciário civil deixa de ser de mera procédure, quando
predominava a visão plana do ordenamento jurídico, onde a ação
era conceituada como direito subjetivo lesado, ou ainda, o resul-
tado de lesão ao direito subjetivo.

119. George Jellinek (1851- 1911) foi filósofo do direito e juiz alemão. Professor da Uni-
versidade da Basiléia e na Universidade de Heidelberg e, publicou várias obras sobre
a filosofia do direito e ciência jurídica, dentre as quais se destaca a Teoria Geral do
Estado onde sustenta que a soberania recai sobre o Estado e não sobre a nação, que
é um simples órgão e as Teorias da Soberania do Estado e a Teoria do Mínimo Ético.
Paulo Bonavides o elogiou muito, e influenciou muito o constitucionalismo do Brasil
é a definição de Jellinek de Estado como “corporação de um povo, assentada num
determinado território e dotada de um poder originário de mando”.
É reconhecido como o fundador da disciplina de Teoria Geral do Estado, pois até
sua obra ser conhecida aplicava-se uma leitura ora idealista (Filosofia do Estado de
Hegel, por exemplo) ora negativista (ideologias do Estado, no exemplo da tradição
marxista). Sua maior contribuição está, portanto, na tentativa de se realçaras bases de
uma disciplina ou ciência que verificasse elementos de formação e de continuidade
das estruturas e mecanismos do aparato estatal. A partir de sua obra mais específica
sobre Teoria Geral do Estado (2000), os elementos políticos de composição do Poder
Político,que se sagraram historicamente, passaram a ser investigados quando se ana-
lisava o fenômeno estatal: povo; território e soberania.

492
E, a jurisdição era tida apenas como sistema de tutela de direi-
tos e, ainda, o processo era encarado como a mera sucessão de atos,
formando o procedimento.
Incluíram-se a ação no sistema de exercício de direitos (juridicio
persequendi). Enfim, o processo era um conjunto de formas para
esse exercício sob um a condução pouco participativa do juiz.
Por muito tempo, a inércia do juiz120 e da jurisdição era o res-
paldo de sua imparcialidade. Na época, havia um campo mais fértil
à prevalência do princípio do dispositivo e da plena disponibilidade
de situações jurídico-processuais, bem coerentes com o liberalismo
político então vigorante sob o implacável lema: “lassez faire, laissez
passer et le monde va de lui même”121

120. O princípio da inércia do juiz encontra respaldo no fato de que o Estado-juiz só


atua se for provocado pela parte interessada. Ou seja, o juiz não age de ofício, por ini-
ciativa própria, isto é, ne procedat iudex ex officio, justamente por ser o julgador. Daí
a necessidade de ser provocado/acionado, conforme as regras estabelecidas pelas
leis processuais. Essa ideia decorre do fato, a contrário senso, de que o juiz não pode
declarar o direito das partes ou punir alguém, caso não seja provocado por quem de
direito (quem tem a legitimidade para tal), no crime, em regra, o Ministério Público; no
cível, o advogado etc. Isso tudo em face do brocardo latino narra mihi factum dabo
tibi jus, o que pode ser traduzido para o nosso vernáculo em: narra-me o fato que te
darei o direito. A divergência, entretanto, está no que se refere à produção da prova.
Para o conservador ou intérprete clássico, o princípio tem duas conotações, a saber:
a) em se tratando de direito disponível, a produção da prova fica a cargo exclusivo das
partes, onde o juiz é um mero contemplador dos fatos;
b) se se tratar de direito indisponível (ordem pública), pode o juiz interferir na con-
dução da prova. Para a moderna doutrina e, diga-se de passagem, a que melhor se
compatibiliza com o sentimento de justiça do caso concreto, em face do caráter pu-
blicístico do processo,da efetividade da tutela jurisdicional e do caráter instrumentá-
rio do processo, o juiz moderno não pode mais atuar como mero espectador.
A verdade é que os conceitos indeterminados ou abertos de direitos contemplados
pelas legislações modernas, a exemplo da “função social dos contratos” prevista no
vigente Código Civil, estão a exigir uma postura ativa do julgador, ainda que se trate
de direito disponível (que a parte pode dispor/abrir mão).
Esta nova perspectiva instrumentalista do processo, onde a sua finalidade é a pa-
cificação social que se materializa com a efetividade da prestação jurisdicional ou da
prestação da justiça no caso concreto, não comporta mais a figura do juiz meramente
contemplador do que se passa ao longo da desenvoltura do processo. Isso não significa,
contudo, que o julgador possa ter iniciativa da propositura da ação ou do pedido. Aliás,
no caso brasileiro, a abertura de inventário (CPC, 989), em havendo inércia dos interes-
sados, é a única hipótese em que se permite a iniciativa do juiz. Nem mesmo no eleitoral,
pode o juiz tomar iniciativa, salvo, a de caráter administrativa. (In: ROBALDO, José Carlos
de Oliveira. Inércia do Juiz. Disponível em: http://www.douradosagora.com.br/noticias/
entretenimento/inercia-do-juiz-jose-carlos-de-oliviera-robaldo Acesso em 23.09.2016).
121. François Quesnay (1694-1774) foi economista francês que se destacou como
principal figura da escola de fisiocratas. Os fisiocratas criaram o lema que resumia
seu pensamento: “laissez-faire, laissez-passer, lemonde va de lui-même” (“deixai fazer,
deixai passar, que o mundo caminha por si mesmo”). Criou a ideia de “oferta-procu-
ra”, isto é, quanto maior a procura do produto, maior é o seu preço. Contrariamente,

493
Foi o sincretismo jurídico122 o principal responsável pela confu-
são entre o plano substancial e o processual do ordenamento jurídi-
co que começou a ruir no século XIX.
Começou quando se principiou a questionar o conceito civilista
da ação e, comentou-se sobre a grande diferença (seja no âmbito
funcional ou conceitual) em face da actio romana.
Afinal esta não é um instituto de direito material e, sim, do di-
reito processual, e não se dirige ao adversário, mas ao juiz.
Não tem por objeto o bem litigioso, mas a prestação jurisdicional.
Na revolucionária lavra de Windscheid123 (Die actio des römischen Zi-
vilrecht vomStandpunk der heutingen Recht) um dos principais pon-
tos foi divorciar definitivamente o paralelismo existente entre a actio
romana e a ação do direito moderno, a partir da observação de que o
sistema romano foi um sistema de actiones, não de direitos.
Portanto, ao que os romanos denominavam de actio correspon-
de, do que hoje se chama pretensão (Anspruch), ou seja, a faculda-
de de impor a própria vontade por via judiciária.

quanto menor a procura, menor o preço. Se existir liberdade produz-se e consome-se


o necessário, logo, há estabilidade do preço e equilíbrio.
122. O sincretismo segundo o dicionário traduz-se em ser a fusão de dois ou mais
elementos antagônicos em um único elemento. O termo “processo sincrético” que é
considerado como sinônimo de celeridade, de clareza e automatização da execução
nos procedimentos de natureza mandamental e condenatória. Tanto a fase de cogni-
ção como a fase de execução se realizam dentro do mesmo processo, permitindo que
a execução da sentença seja acompanhada pelo mesmo juiz conhecedor da causa e
que esta se dê com maior garantia, tendo em vista sua rápida realização. O brilhante
doutrinador Carreira Alvim em sua obra “Alterações do Código de Processo Civil”, aduz:
“O sincretismo processual traduz uma tendência do direito processual, de combinar fór-
mulas e procedimentos, de modo a possibilitar a obtenção de mais de uma tutela juris-
dicional de forma simples e imediata, no bojo de um mesmo processo, com o que, além
de evitar a proliferação de processos, simplifica e humaniza a prestação jurisdicional”.
123. Benhard Windscheid (1817-1892) foi jurista alemão e membro da escola pandec-
tista de direito. Foi renomado em seus estudos sobre o conceito legal de ação, que
estimulou um debate com Theodor Muther ao que se imputa o início dos estudos de
direito processual tal qual o conhecemos atualmente.
A tese de Windscheid estabeleceu o conceito do direito alemão Anspruch que sig-
nifica um requerimento legalmente executável, distinguindo-o do conceito de direito
romano de actio. Seu trabalho principal foi Lehrbuch des Pandektenrechts, e este foi
a fonte principalde inspiração para o Código Civil Alemão BGB. Entre 1873 e 1883,
Windscheid tomou parte na comissão responsável por esboçar o Código Civil alemão.
Além disso, Windscheid trabalhou como professor em algumas universidades na Ale-
manha e Suíça, incluindo Basileia, Greifswald, Munique, Heidelberg e Leipzig.

494
Em resposta polêmica veio Theodor Muther a esse escrito, onde
se sustentou a prioridade do direito em referência à ação também
ao direito romano (defendida, portanto, a reaproximação entre o
conceito de actio e de ação), quando foram ditas aquelas coisas
indicadas sobre a natureza da ação (direito à tutela jurídica) e sua
titularidade passiva (o magistrado e não ao adversário).
Essa história polêmica foi o marco inaugural do inconformismo e
representou o reflexo do Iluminismo na ciência processual. Hoje tais
afirmações são bastante naturais para os atuais juristas, que acaba-
ram gerando reações em cadeia que tomou a plena consciência da
autonomia da relação jurídica processual, que se distingue da relação
de direito substancial, pelos seus sujeitos, pressupostos e objeto.
Oskar von Büllow, é verdade, não criou a ideia da relação jurídi-
ca processual e sua configuração tríplice, apenas veio racionalizar,
organizar e desenvolver, inclusive propondo desdobramentos. Com
razão, o eminente processualista carioca, Alexandre Freitas Câma-
ra, já vaticinou que o CPC/2015 superou o pensamento de Büllow
para adotar o Fazzallari124, que afirma que a natureza do processo é
o procedimento em contraditório.

124. Büllow e seus sucessores realizaram a separação entre os conceitos de processo e


procedimento, eis que anteriormente se absorvia o processo no procedimento, como
simples sequência de atos, e construiu uma distinção baseada no critério teleológico.
Por este critério, o processo se distingue por seu fim, pois é o instrumento pelo qual a
jurisdição é operada e, o procedimento se torna a simples sucessão lógica de atos e,
desvestido de qualquer finalidade. Assim, a reação que se iniciou com Büllow destituiu
o procedimento de qualquer fim e o absorveu no processo, realizando o caminho
inverso do antes criticado por eles. Contudo, não se pode negar ao procedimento
sua finalidade. Fazzallari analisa o procedimento, e o define com a seguinte estrutura:
a) série de normas através da qual se regulamenta a produção do ato final, que,
normalmente, se trata de um provimento, ou mero ato. Cada norma regula uma de-
terminada conduta (qualificada como lícita ou devida), mas enuncia-se como pressu-
posto para a execução de uma conduta regulada por outra norma;
b) o procedimento apresenta-se como uma seqüência de atos, previstos e valora-
dos pela norma;
c) o procedimento compõe-se de uma série de faculdades, poderes e deveres:
quantos e quais são as posições subjetivas, que se obtêm pela norma em questão.
E o processo, é uma espécie do gênero procedimento, que possui o contraditório
como elemento definidor de sua estrutura.
O processo, como procedimento em contraditório, exige que os interessados e os
contra-interessados – entendidos como os sujeitos do processo que suportarão o re-
sultado favorável ou desfavorável do provimento – participem em simétrica paridade
do iter procedimental, para a formação do provimento.

495
É bom lembrar que antes de Büllow, já afirmara Búlgaro125 que
judicium est actus trium personarum judicis, actoris e rei126. E, as
Ordenações do Reino já mencionavam que três pessoas são por
direito necessárias em qualquer juízo: o juiz (para julgar), o autor
(para demandar) e o réu (para se defender).
Aliás, o próprio Büllow127 citou em sua obra Bethmann- Hollweg128,
que igualmente teria feito alusão à relação jurídica processual. A ino-
vação racionalista por colocar em destaque os dois planos do próprio
ordenamento jurídico a partir da visão da relação jurídica processual
e da relação de direito privado com duas realidades distintas.
A postura autonomista do direito processual se firmou mesmo a
partir do século XIX, principalmente nas investigações sobre o conceito
de ação, permitindo-se a chegar ao caráter abstrato e, também sobre os

125. Búlgaro de Sassoferrato formulou ainda no século XII que o processo podia
ser visto como procedimento, quanto seu aspecto exterior e, como relação jurídica
quanto à essência. E, tal relação processual não se confundia com a relação pré-pro-
cessual que pudesse existir entre as partes, independia dela e era de direito público,
ainda que aquela relação pertencesse ao direito privado. Observou Alcalá-Zamora
Y Castillo que a noção processual como relação jurídica já havia sido visualizada
por Hegel em 1831 e sustentada por Bethmann-Hollweg em 1849. Atribui, portanto,
ao direito alemão a moderna sistematização da relação jurídica processual, embo-
ra reconheça os antecedentes remotos no direito medieval italiano, em Búlgaro de
Sassoferrato e Bernardo Dorna.
126. O brocardo completo é: Iudicium est actus trium personarum: actoris intendentis,
rei intentionem evitantis, iudicis in médio cognocentis.
127. Porém, foi Büllow quem finalmente em 1868 concluiu que o processo é uma
relação jurídica de direito público, desvinculada da relação de direito material, abrindo
caminho para o alemão Degenkolb e para o húngaro Plòsz concluírem que a ação era
um direito abstrato, pois conferido a todos indistintamente, sendo irrelevante que,
para sua existência fosse o autor titular ou não do direito posto em causa perante o
magistrado. Coube à teoria de Wach que aderiu a Giuseppe Chiovenda, o qual, em
sua famosa preleção realizada na Universidade de Bolonha em 1903, demonstrou ser
a ação processual um direito potestativo, ou seja, um poder jurídico dirigido contra o
adversário como condição para que a vontade da lei atuasse no caso concreto. Ten-
tando superar as duas posições extremas, veio o processualista italiano Enrico Tullio
Liebman elaborou a chamada teoria eclética da ação, afirmando que o exercício do
direito de ação, como sustentam os abstrativistas, não está subordinado efetivamente
ao êxito da demanda, pois há ação mesmo quando a sentença seja improcedente.
128. Moritz August von Bethmann-Hollweg (1795-1977) foi jurista alemão e político
prussiano. A partir de 1829, lecionou na Universidade de Bonn. Como estudante de
Savigny foi habilitado em 1819 em Berlim para o direito romano. E, a partir de 1823
foi professor de Direito em Berlim, onde o processo civil constituiu o seu principal
objeto de investigação. Sua principal obra foi “O processo civil de direito comum em
desenvolvimento histórico” através da qual se tornou um dos mais relevantes repre-
sentantes da escola histórica do direito.

496
fatos e situações jurídicas do processo, quando se possibilitou ao uso
adequado do instrumental que o direito processual oferece e credencia.
A ação e o exercício da ação exprimem as noções distintas.
Cogita-se também que o direito processual viva de crédito, ao traçar
as noções em torno da ação. Atualmente, não é mais essa a situa-
ção, pois o objeto material específico do direito processual civil está
plenamente identificado, principalmente os quatro institutos funda-
mentais, a saber: jurisdição, ação, exceção(defesa) e processo. Po-
rém há autores que apontam somente três institutos fundamentais
do processo, pois a exceção seria incluída na ação.
Sendo cabível uma célere noção de cada um dos institutos:
jurisdição que corresponde ao poder estatal de aplicar o direito
em relação ao caso concreto ou lide; a ação que é direito público
subjetivo de pleitear a tutela jurisdicional (direito ao processo); a
exceção (defesa) é o oposto de ação; e o processo que corresponde
ao instrumento que o Estado coloca à disposição dos litigantes
para solucionar os conflitos, da mesma forma, no processo onde
se interligam os outros três institutos.
Há divergência doutrinária quanto aos princípios e caracteres
da jurisdição. O caráter substitutivo, pois no exercício da jurisdi-
ção, o Estado substitui as partes litigantes. Desta forma, o Estado
atua em atividade própria que substitui as atividades dos litigan-
tes. Salvo expressas exceções, é vedada a autotutela. A definitivi-
dade, somente os atos jurisdicionais, portanto, resultantes da ati-
vidade jurisdicional é que são passíveis de se tornarem imutáveis
e indiscutíveis através da coisa julgada.
Portanto, enquanto os atos jurisdicionais podem se tornar imu-
táveis, o mesmo não se pode afirmar em relação aos atos adminis-
trativos ou mesmo atos legislativos. Percebe-se, assim, que a última
palavra sobre o conflito de interesses cabe ao Judiciário.
A investidura determina que a jurisdição somente seja exercida
por quem tenha sido devidamente investido como juiz.

497
A jurisdição é monopólio do Estado, mas há a necessidade de
que pessoas a exerçam. Daí que se não houver a investidura, não
será possível a qualquer pessoa exercer a jurisdição.
A aderência ao território se refere aos limites territoriais do po-
der jurisdicional, que são as limitações espaciais à autoridade dos
juízes. Da mesma forma que o Executivo e o Legislativo, o Judiciá-
rio somente exerce suas atividades no âmbito do território nacional,
isto é, limitados pelas próprias fronteiras do Estado brasileiro.
Refere-se também aos limites territoriais internos dos magistra-
dos, daí as existências de diferentes comarcas e também das dife-
rentes cartas (precatória e rogatória).
A indelegabilidade que aponta não é possível ao Judiciário ou
especificamente ao juiz delegar suas atribuições a outrem, seja do
próprio Judiciário ou até mesmo a outro poder. Considerando que
as atribuições constantes da Constituição Federal brasileira, sequer
a lei pode alterar as funções a ser exercidas pelo Judiciário.
Isto porque cada magistrado investido não exerce a jurisdi-
ção em nome próprio e por direito próprio, mas sim, exerce sua
função como um agente do Estado que fora investido para julgar
determinadas causas (vide as competências, porção de jurisdição,
para apreciar tais casos concretos), não se mostra possível a dele-
gação ou transferência para outros.
A indeclinabilidade significa que o magistrado não pode dei-
xar de decidir a causa, qualquer que seja o motivo. Ou seja, é
vedado o non liquet.
A inevitabilidade que corresponde à autoridade de órgãos jurisdi-
cionais e de suas decisões ter caráter imperativo, sendo inerente a von-
tade das partes. E, pouco importa qualquer contrato entre os litigantes
quanto à aceitação de resultados do processo. Uma vez apreciada a
causa pelo Judiciário, a decisão é inevitável, ambas as partes estão
sujeitas a ela, independentemente da vontade. Assim, não há como se
evitar que a decisão judicial solucione o conflito de interesses.

498
Por outro lado, se houver o contrato optando pela arbitragem, não
será possível a manifestação direta e primeira do Judiciário, o que afas-
ta a jurisdição e, consequentemente, também a sua inevitabilidade.
A inafastabilidade da jurisdição é garantia de todos, é o direito
de acessar o Poder Judiciário, que não poderá deixar de atender
a qualquer um que bem a juiz buscar solução para determinada
lide129. Trata-se de princípio do acesso à justiça, presente no art.
5º,inciso XXXV da CF/1988 e tão debatido no âmbito dos princípios
processuais constitucionais.
O juiz natural corresponde que ninguém poderá ser privado de
julgamento pelo juiz previa e legalmente escolhido. É vedado o tribu-
nal de exceção. Não se pode confundir com os tribunais de exceção,
com as hipóteses de julgamento em órgãos do Judiciário distintos e
especializados previstos na própria CF/1988, é o caso de justiças espe-
cializadas e o deslocamento de competência previsto no art. 109, 5º.
A inércia da jurisdição130 exprime a regra em que o Poder Judi-
ciário é inerte, devendo ser provocado para que possa dar início à
apreciação da lide. Aliás, o CPC/2015 restringiu a atuação de ofício
do juiz para abertura de inventário, depois de ultrapassado os pra-
zos legais e diante da indiferença dos possíveis interessados.
O aspecto ético passa a dominar as investigações dos proces-
sualistas, que tentam ir além do tecnicismo, buscando até mesmo
uma conotação deontológica.
É a fase do instrumentalismo processual, definida por Dinamar-
co in litteris: “o núcleo e a síntese dos movimentos pelo aprimo-
ramento do sistema processual, sendo consciente ou inconsciente-
mente tomada como premissa pelos que defendem o alargamento

129. Lide é, portanto, o conflito efetivo ou virtual de pedidos contraditórios, sobre


o qual o juiz é convidado a decidir. Assim, modificado o conceito de lide, torna-se
perfeitamente aceitável na teoria do processo e exprime satisfatoriamente o que se
costuma chamar de mérito da causa. Julgar a lide e julgar o mérito são expressões
sinônimas que se referem à decisão do pedido do autor para julgá-lo procedente ou
improcedente e, por conseguinte, para conceder ou negar a providência requerida.
130. Possível classificar a jurisdição pelos seguintes critérios: a) objeto: civil ou penal
b) organização judiciária: comum ou especial c) posição hierárquica: inferior ou supe-
rior d) fonte do direito: de direito ou de equidade.

499
da via de acesso ao judiciário e eliminação das diferenças de opor-
tunidades em função da situação econômica dos sujeitos, nos es-
tudos e propostas pela inafastabilidade do controle jurisdicional e
efetividade do processo, nas preocupações pela garantia da ampla
defesa no processo criminal ou pela igualdade em qualquer proces-
so, no aumento da participação do juiz na instrução da causa e da
sua liberdade na apreciação do resultado da instrução”.

Referências
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5ª edição. São Paulo: Malheiros, 1996.

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500
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HARTMANN, Rodolfo Kronemberg. Curso Completo de Processo


Civil. 1ª edição. Niterói, RJ: Editora Impetus, 2014.

501
O I N C I DENTE DE RESOLU ÇÃO D E
DEMA N DAS REPET ITIVAS NO N OVO
C Ó DI G O DE PROCESSO CIVIL E
A SUA R ELAÇÃO COM AS AÇ ÕE S
CO L ETI VAS
Luís Carlos de Sousa Amorim131

Embora o direito processual civil historicamente tenha se preo-


cupado com conflitos eminentemente individuais, traduzido pelo li-
tígio travado entre duas pessoas, a realidade social impôs mudanças
consideráveis a esta concepção marcada pela influência do liberalis-
mo (CUNHA, 2015, p. 255). Essas mudanças se devem, sobretudo,
à insuficiência do modelo individualista do Código de Buzaid frente
ao crescimento desenfreado de demandas no Judiciário, por vezes,
com questões de direito idênticas (CUNHA, 2007, p. 255). Por certo,
dentre outros motivos, essa realidade é resultado da “emergência de
uma sociedade de massa, da expansão do fenômeno consumeris-
ta e do caráter multitudinário dos conflitos atuais” (GONÇALVES,
2013, p. 222). É também produto da grande quantidade de negócios
jurídicos firmados a partir de contratos de adesão, dos danos que
alcançam dimensões cada vez maiores, mas, também, da liquidez
das relações travadas na sociedade pós-moderna, que leva os indiví-
duos a recorrer cada vez mais ao Judiciário para resolver problemas
que outrora seriam pacificados na base do diálogo.
Buscando dar uma resposta ao aumento de litigiosidade, o
Direito brasileiro desenvolveu instrumentos de tutela coletiva,

131. Advogado. Graduado em direito pela Universidade Federal da Bahia - UFBA.

503
resguardando-se os direitos supraindividuais cuja titularidade per-
tence a uma coletividade determinada ou difusa, ou que tenha se
originado do mesmo fato. Nessa lógica, foram criadas a ação popu-
lar, a ação civil pública, o mandado de segurança coletivo, dentre
outros (CUNHA, 2007, p. 256). Por meio dessas ações, o ordena-
mento previu a possibilidade de determinados sujeitos pleitearem
em nome de uma coletividade a partir do instituto da legitimidade
extraordinária (CABRAL, 2007, p. 124).
Ocorre que algumas incongruências foram verificadas no manejo
das ações coletivas, as quais dizem respeito, sobretudo, ao regime
da coisa julgada coletiva e à representatividade dos membros que
compõem o grupo tutelado em juízo. É que, inicialmente, o trata-
mento dispensado à coisa julgada oriunda de demandas coletivas
não contribui para a resolução definitiva das questões repetitivas que
abarrotam o Judiciário (CABRAL, 2007, p. 257). De certa forma, a
eficácia secundum eventum litis132 da coisa julgada coletiva, faz com
que dificilmente haja pacificação da questão discutida, mormente
pelo fato de que demandas individuais poderão ser propostas sempre
que houver improcedência da ação coletiva, já que dispõe o art. 103,
§§ 1º e 2º do CDC que a coisa julgada somente poderá beneficiar e
nunca prejudicar os direitos individuais (CABRAL, 2007, p. 257).
Igualmente, a legitimidade extraordinária, embora importante,
é outro problema inerente às ações coletivas. Como pontua AN-
TÔNIO CABRAL, “a substituição processual permite que alguns
entes postulem em favor de uma coletividade dispersa geografi-
camente, da qual, muitas vezes sequer possuem notícia de todos
os integrantes” (CABRAL, 2007, p. 124). Tal realidade, por vezes,

132. Eficácia determinada de acordo com o resultado do processo. Obedece à dis-


posição do art. 103, I, II e III do CDC, que é considerado uma das normas gerais que
regulamenta o processo coletivo. Dispõe que a sentença fará coisa julgada: a) erga
omnes, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hi-
pótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação; b) ultra partes, mas
limitadamente ao grupo, categoria ou classe, salvo improcedência por insuficiência de
provas; e c) erga omnes, apenas no caso de procedência do pedido, para beneficiar
todas as vítimas e seus sucessores (grifado).

504
faz calar vozes dissidentes, que não concordam com os termos da
ação, mas que, em tese, estão sendo representadas. Fere-se, pois,
o contraditório, entendido como efetivo direito de participação na
formação do provimento jurisdicional.
Aparentemente esse problema poderia ser facilmente contorna-
do a partir da exigência de representatividade adequada133. O pro-
blema do modelo brasileiro é que os legitimados coletivos das class
action estão previstos de maneira taxativa em dispositivos legais,
sem se considerar o caso concreto.
O CPC de 1973 passou por algumas reformas no sentido de
buscar solucionar a questão do aumento desenfreado de causas re-
petitivas, sem, contudo, reproduzir os problemas constatados até
então. Foram criados mecanismos de uniformização de jurispru-
dência como as súmulas vinculantes, os embargos de divergência,
o incidente de uniformização de jurisprudência e o julgamento de
recursos extraordinário e especial (YOSHIKAWA, 2012, p. 1).
O Código de Processo Civil manteve boa parte desses institutos,
extinguindo, no entanto, o incidente de uniformização de jurispru-
dência. Foram criados também novos instrumentos, sempre almejan-
do conferir racionalidade e uniformidade ao processamento e ao jul-
gamento de situações que guardam certo grau de semelhança. Dentre
essas criações, indubitavelmente, a que merece maior destaque é o
incidente de resolução de demandas repetitivas – IRDR, previsto no
art. 976 ao art. 986 do CPC134. Trata-se da eleição de um processo,
dentre vários outros fundados na mesma questão de direito, cuja
decisão deverá, obrigatoriamente, ser aplicada aos demais casos se-

133. Se entende por representatividade adequada a efetiva representação que o sujeito


coletivo possui, bem como a sua qualidade para defender, de modo eficiente, os interes-
ses em jogo da sociedade ou grupo por ele representado (FORNACIARI, 2010, p. 50.).
134. Art. 976. É cabível a instauração do incidente de resolução de demandas repeti-
tivas quando houver, simultaneamente:
I - efetiva repetição de processos que contenham controvérsia sobre a mesma ques-
tão unicamente de direito;
II - risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica.

505
melhantes (GONÇALVES, 2013. p. 223.). Ou seja, cria-se uma nova
possibilidade de eficácia vinculante135 do precedente judicial.
O IRDR, conforme a própria exposição de motivos do antepro-
jeto do CPC, foi inspirado em um instituto semelhante, presente no
Direito alemão e denominado Musterverfahren, que também prevê
a escolha de uma causa piloto cuja solução permite a célere reso-
lução das demais (CABRAL, 2007, p. 124). No entanto, a versão
aprovada pouco tem a ver com o procedimento-modelo do Direito
tedesco, pois o processo legislativo tratou de modificar, em muito,
o resultado inicial da comissão de juristas incumbida de elaborar o
anteprojeto (CAVALCANTE, 2015, p. 416).
Diferentemente do Musterverfahren alemão, que prevê o inci-
dente, tanto para as questões de direito, quanto para as questões
de fato, o modelo brasileiro, prevê a instauração do IRDR apenas
para questões de direito. Ademais, ao contrário daqui, que não
prevê um número específico de demandas, o instituto alemão so-
mente pode ser instaurado quando houver, pelo menos, 10 causas
semelhantes (CUNHA, 2013, p. 255).
De qualquer forma, tendo por base as considerações de AN-
TÔNIO CABRAL ao analisar o Musterverfahren, o IRDR pode ser
uma alternativa às ações coletivas em alguns casos, uma vez que
evita distorções da legitimidade extraordinária e da coisa julgada
(CUNHA, 2013, p. 123). No entanto, de maneira alguma pode-se
desconsiderar a importância das class action no atual sistema, mor-
mente porque permite o nivelamento e tratamento igualitário entre
grandes e pequenos litigantes, como enormes empresas multinacio-
nais e simples consumidores (VENTURI, 2007).

1.1 Pressupostos de admissibilidade


Da análise dos dispositivos que preveem o IRDR alguns re-
quisitos devem ser observados no exame de sua admissibilidade.

135. Quando o precedente deve ser obrigatoriamente seguido (MARINONI, 2010).

506
MARCOS CAVALCANTI os sistematiza em três, a saber: a efetiva
repetição de processos e risco de ofensa à isonomia e à segurança
jurídica; questão unicamente de direito; e causa pendente no tribu-
nal competente (CAVALCANTE, 2015, p. 416).
Com efeito, em relação ao primeiro, requisito não prosperou
a ideia inicial trazida pelo anteprojeto, que dotava o instituto de
caráter eminentemente preventivo. Exigia a versão aprovada no
Senado apenas que fosse “identificada controvérsia com potencial
para gerar relevante multiplicação de processos [...]”. Não por ou-
tro motivo, acompanhando andamento legislativo do projeto de lei,
DANIEL LÉVY arrematara que “o texto final do Anteprojeto adota
uma visão prospectiva do incidente, pois se funda não apenas na
existência de uma série de demandas análogas, mas na simples
potencialidade de existirem” (LÉVY, 2014, p. 174). Todavia, o legis-
lador entendeu por bem exigir a efetiva repetição de processos que
contenham controvérsia sobre questão unicamente de direito para
a instauração do incidente136. Isso porque promove o prévio debate
e permite a maturação da demanda que será utilizada como piloto.
Não exigiu, porém, a existência de decisões conflitantes, mas
somente a multiplicidade de demandas que carregam em seu bojo
controvérsias capazes de gerar risco à isonomia e à segurança (CA-
VALCANTE, 2015, p. 416). Ou seja, não é possível o manejo do inci-
dente tendo como base somente uma ou duas causas, mas também
não se exige que existam decisões terminativas conflitantes para
a sua instauração. Ademais, conforme o enunciado 87 do Fórum
Permanente de Processualistas Civis, “a instauração de IRDR não
pressupõe a existência de grande quantidade de processos versando
sobre a mesma questão, mas preponderantemente o risco de que-
bra da isonomia e de ofensa à segurança jurídica”.

136. Leonardo Carneiro da Cunha, e.g., já prelecionava que o mais adequado seria
a instauração do incidente quando já houvesse sentenças antagônicas sobre o as-
sunto. Umas acolhendo determinada solução da controvérsia e outras rejeitando-a
(CUNHA, 2007, 262).

507
Nesse mister, o ideal seria que o legislador, a exemplo do que
ocorre no Direito tedesco, estabelecesse uma quantidade fixa de
demandas repetitivas, retirando a possibilidade de eventuais dis-
cricionariedades dos tribunais. Para tanto, poderia atribuir ao CNJ
a responsabilidade pela atualização anual dessa quantidade, con-
siderando as peculiaridades de cada Estado (no caso dos TJs) ou
região (no dos TRFs) (CAVALCANTE, 2015, p. 422). Preenchido os
requisitos, dentre os quais, o número preestabelecido de causas, e
requerido o incidente, o tribunal estaria vinculado à sua admissão.
Quanto o segundo requisito, a exigência de questão unicamente
de direito, tratou-se pontualmente dele quando realizada a diferen-
ciação do IRDR com o procedimento modelo-alemão. Embora pare-
ça ser injustificada a exclusão das questões de fato, essa foi a opção
legislativa e há de ser respeitada pelos pretórios do país. Importa
pontuar, no entanto, que não importa a natureza das questões de
direito, havendo inclusive dois enunciados do Fórum Permanente
de Processualistas Civis nesse sentido. O Enunciado n. 327 diz que
“os precedentes podem ter por objeto questão de direito material ou
processual”137. Ademais, tais questões de direito podem se originar
de demandas individuais ou coletivas, desde que dentro das con-
dições exigidas (CAVALCANTE, 2015, p. 425). Sendo assim, pode
haver IRDR também de demandas coletivas.
Finalmente, é necessário que haja processo pendente no tribu-
nal competente para o julgamento do incidente. Essa é conclusão
lógica extraída do parágrafo único do art. 978 do CPC, que declara
que o órgão incumbido de julgar o incidente julgará também o re-
curso, a remessa necessária ou processo de competência originária
de onde se originou o incidente (CAVALCANTE, 2015, p. 429-430).
Tais institutos sempre acarretam a existência de processo pendente

137. Mais precisa é a dicção do Enunciado n. 88: “Não existe limitação de matérias
de direito passíveis de gerar a instauração do incidente de resolução de demandas
repetitivas e, por isso, não é admissível qualquer interpretação que, por tal funda-
mento, restrinja seu cabimento”.

508
no tribunal, de modo que caberá ao órgão colegiado julgar, conco-
mitantemente, o incidente e o mérito do recurso, exame necessário
ou processo originário que tramita no juízo.

1.2 Legitimidade e momento de


instauração
Dispõe o art. 977 do CPC que são legitimados para o requeri-
mento de instauração do incidente de resolução de demandas repe-
titivas o juiz ou relator (por ofício), as partes, o Ministério Público
e a Defensoria Pública (por petição). A possibilidade de instauração
do incidente pelos juízes de primeira e segunda instância está em
conformidade com a nova dinâmica processual que mais se preocu-
pa com a resolução adequada e uniforme dos processos do que com
teorias estanques que vedam qualquer participação do magistrado
(LÉVY, 2013, p. 174). Essa previsão, porém, se afasta ainda mais do
Musterverfahren alemão, que não permite a instauração do inciden-
te ex officio, ao passo que se aproxima do litígio em grupo (GLO) do
Direito inglês (CAVALCANTE, 2015, p. 436).
Importa pontuar que o conceito de partes legitimadas a fazer
o pedido de instauração de IRDR deve ser entendido de maneira
ampla, abarcando as partes dos demais processos considerados re-
petitivos, uma vez que serão diretamente alcançadas pelo resultado
da demanda eleita como modelo. O redimensionamento do con-
traditório, nesse caso, se aplica de maneira inda mais intensa, não
se justificando a supressão do direito de influência e cooperação
das partes dos demais processos alcançados pela decisão proferida
na demanda piloto. Nesse sentido, MARCOS CAVALCANTE declara
que “qualquer das partes dos processos repetitivos, ainda que em
tramitação em primeira instância, tomando conhecimento que uma
das demandas repetitivas já se encontra pendente de julgamento no
tribunal competente, tem legitimação para requerer a instauração
do IRDR” (CAVALCANTE, 2015, p. 437).

509
Em relação ao Ministério Público, tal previsão se alinha ao
exercício de suas finalidades institucionais. Não obstante, há quem
entenda que, no que concerne à tutela de direitos e interesses in-
dividuais homogênios, o MP somente terá legitimidade se estiver
presente relevante interesse social, o que deverá ser aferido concre-
tamente (CUNHA, 2007, p. 264). Outrossim, se não for o requeren-
te, o Parquet intervirá como custos iuris ou assumirá a titularidade
do incidente em caso de desistência ou abandono, uma vez que o
julgamento do mérito deverá ocorrer necessariamente.
Por sua vez, a legitimidade da Defensoria Pública guarda total
consonância com as recentes reformas legislativas que alargaram as
atribuições desse importante órgão, o que pode ser percebido com a
sua inclusão dentre os legitimados para a propositura da ação civil
pública (LÉVY, 2013, p. 176)138.
É de se notar também que o texto legal não inclui no rol de
legitimados as pessoas jurídicas de direito público e as associações.
DANIEL LÉVY entende que essa medida se deu, provavelmente,
com o objetivo de desvincular o incidente das ações coletivas, bem
como para evitar a profissionalização desses incidentes (LÉVY,
2013, p. 174). Com a devida vênia, não andou bem o legislador
neste aspecto, uma vez que restringiu, desnecessariamente, a par-
ticipação da sociedade organizada num incidente que será aplica-
do vinculativamente a diversos outros casos semelhantes, uma vez
que a sua eficácia também será prospectiva e não alcançará somen-
te as demandas que coexistem com a causa piloto.
O relator poderá instaurar o IRDR até o início da leitura dos votos
na sessão de julgamento, enquanto que o juiz, as partes, o MP e a
DP somente poderão requerer a instauração do incidente até o início
da sessão de julgamento (CAVALCANTE, 2015, p. 439). Se houver
mais de um pedido de instauração do incidente, conforme dispõe o

138. Em sentido oposto, Leonardo Carneiro da Cunha entende que somente a De-
fensoria Pública somente terá legitimidade quando a situação envolver interesse de
hipossuficientes ou versar sobre tema que a eles esteja relacionado (CUNHA, 2013).

510
enunciado n. 89 do Fórum Permanente de Processualistas Civis, to-
dos deverão ser apensados e processados conjuntamente; e os que os
forem requeridos depois da admissão serão apensados e sobrestados,
cabendo ao tribunal considerar as razões apresentadas.
Nada obstante, importa frisar que, pela dicção do art. 976, § 4º,
não se admite IRDR quando um dos tribunais superiores, no âmbito
de sua respectiva competência, já houver afetado recurso para defini-
ção de tese sobre questão de direito material ou processual repetitiva.

1.3 Contraditório e participação do


amicus curiae
O Estado Democrático de Direito dos dias em curso não mais se
contenta com a obediência de atos procedimentais e acesso à Justi-
ça em sentido formal, mas, pelo contrário, visa “proporcionar uma
tutela procedimental justa e efetiva. Daí falar-se, modernamente,
em garantia de um processo justo, de preferência à garantia de um
devido processo legal” (THEODORO JR., 2012, p. 261). Como co-
rolário lógico desse princípio democrático orientador das ações es-
tatais está o princípio do contraditório (DIDIER JR., 2015, p. 465).
Não mais na sua versão simplória e formal, ora estabelecendo a ina-
tividade do juiz, ora retirando dos demais sujeitos processuais o seu
efetivo poder de influência na decisão. Atualmente, o contraditório
impõe um mútuo dever de colaboração para o alcance da solução
da controvérsia (MITIDIERO, 2009, p. 102-103).
Quanto mais ampla for essa possibilidade de colaboração, mais
legítimo será o provimento decisório exarado. Por isso, tratando da
hermenêutica constitucional, PETER HÄBERLE defende uma socie-
dade aberta dos intérpretes da Constituição, ampliando o debate
como resultado de uma realidade pluralista (HÄBERLE, 2002, p. 24).
O incidente de resolução de demandas repetitivas muito se asse-
melha às decisões proferidas pelo STF em controle abstrato de cons-
titucionalidade, devendo haver a mesma necessidade de pluralização

511
do debate (CUNHA, 2007, p. 268). Como numa ADIN, e.g., o IRDR
gera um julgamento abstrato da matéria apreciada pelo tribunal,
tratando-se também de processo de natureza objetiva (DIDIER JR.,
2015, p. 465), em que a tese firmada regerá não apenas o caso concre-
to, mas diversos outros casos semelhantes (CUNHA, 2007, p. 268.).
Pensando nisso e em total consonância com o presente estudo,
o CPC estabeleceu, inicialmente, o dever de publicidade do inciden-
te. Com efeito, determinou o legislador que a instauração e o jul-
gamento do incidente serão sucedidos da mais ampla e específica
divulgação e publicidade, estabelecendo a obrigatoriedade do seu
registro eletrônico, tanto no Conselho Nacional de Justiça – CNJ,
quanto nos tribunais competentes para a apreciação.
Outrossim, buscou o legislador promover o mais amplo diálogo
para o fornecimento de elementos seguros ao convencimento do
colegiado. Primeiro, possibilitou a requisição de informações a ór-
gãos em cujo juízo tramita processo no qual se discute o objeto do
incidente, que as prestarão no prazo de 15 dias. Segundo, expandiu
a participação da sociedade de maneira nunca antes vista no orde-
namento pátrio, determinando que o relator do incidente deverá
ouvir não somente as partes, mas também os demais interessados,
como órgãos, entidades e pessoas com interesse na controvérsia,
que, no prazo comum de 15 (quinze) dias, poderão requerer a jun-
tada de documentos, bem como as diligências necessárias para a
elucidação da questão de direito controvertida.
Nota-se, com isso, a nítida possibilidade de intervenção de ami-
ci curiae, cuja participação visa o auxílio do juízo, colaborando com
argumentos e dados retirados da sua atividade cotidiana e que es-
tão relacionados com a questão submetida ao Judiciário (CUNHA,
2007, p. 268). Aliás, excetuando a própria regra geral de que o ami-
cus curiae não pode recorrer nos processos em que intervenha, o
§3º do art. 138 do CPC prevê, que, no caso de decisão que julgar
IRDR, o amigo da corte poderá interpor recurso.

512
De mais a mais, para instruir o feito, o relator poderá desig-
nar data para, em audiência pública, ouvir depoimentos de pessoas
com experiência e conhecimento na matéria. E depois, no julga-
mento, além do autor e réu, o MP, atuando como custos iuris, terá
direito a 30 minutos para expor suas razões em sustentação oral.
Este tempo se somará ao tempo de manifestação dos demais in-
teressados que também poderão proceder à sustentação oral pelo
prazo de 30 minutos, dividido entre todos, sendo exigida inscrição
com dois dias de antecedência. Este prazo, inclusive, poderá ser
dilatado a depender do número de inscritos.
Por sua vez, o conteúdo do acórdão abrangerá a análise de to-
dos os fundamentos suscitados concernentes à tese jurídica discu-
tida, sejam favoráveis ou contrários. Nisso, o órgão julgador de-
monstrará que efetivamente levou em consideração a colaboração
dos diversos indivíduos e instituições da sociedade que forneceram
elementos para a formação do entendimento jurisprudencial.
E, então, julgado o incidente, a qualificação jurídica nele es-
tabelecida será aplicada a todos os outros processos individuais e
coletivos repetitivos no âmbito do tribunal, inclusive àqueles que
tramitem nos juizados especiais do respectivo Estado ou região e
àqueles processos futuros que versem sobre a mesma questão de
direito. Posteriormente, bastará aos órgãos julgadores verificar se é
ou não caso de distinção (distinguishing) (TUCCI, 2004, p. 174.) ou
superação (overruling) (MARINONI, 2010, p. 389); caso não seja, o
precedente formado no incidente deverá ser obrigatoriamente apli-
cado, tendo em vista a sua eficácia vinculante (DIDIER JR., 2015, p.
466) e, sobretudo, a sua legitimidade democrática.
Assim, todo esse trâmite previsto pelo legislador para o proces-
samento do IRDR demonstra a sua nítida preocupação em atribuir
ao incidente características democratizantes na formação do pre-
cedente, o que pode ser utilizado como fonte de inspiração pelos
diversos órgãos julgadores para, de acordo com o caso concreto e

51 3
mediante os necessários ajustes, garantir o efetivo contraditório nas
mais diversas situações.

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terverfahren) Alemão: uma alternativa às ações coletivas. Re-
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516
I N C I DENT E DE RES OLU ÇÃO
DE DEM ANDAS REPET ITIVAS:
DO G ROU P LITIGATION E D O
MUSTERVERFAH REN AO NOVO
C Ó DI G O DE PROCESSO CIVIL
Rafael Alem Mello Ferreira139 e Artur Alves Pinho Vieira140

1 INTRODUÇÃO
A publicação do novo Código de Processo Civil representa a
esperança dos processualistas brasileiros de concretizar os princí-
pios constitucionais da duração razoável do processo e do aceso à
justiça. O tempo de tramitação do projeto da Lei 13.105/2015 no
Congresso brasileiro foi de cinco anos, com esse novo texto a ex-
pectativa é reduzir o tempo morto dos processos. Para isso novos
mecanismos foram introduzidos, como o que será objeto de nossa
análise, o incidente de resolução de demandas repetitiva (IRDR).
A sociedade moderna apresenta uma complexa formação de
litígios em massa e o direito moderno não possui outra solução a
não ser pensar em novas formas processuais para abarcar a nova
realidade. Nas palavras de Aluisio Gonçalves de Castro Mendes, em
sua obra Ações coletivas e meios de resolução coletiva de conflitos no
direito comparado e nacional (2014, p.297):

139. Mestre em Direito e Democracia pela Faculdade de Direito do Sul de Minas -


FDSM; Doutorando em Direito pela Universidade Estácio de Sá. Professor da Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG) e da Faculdade de Direito do Sul de
Minas (FDSM). E-mail: <[email protected]>.
140. Mestre em Direito pela Universidade Católica de Petrópolis (UCP-RJ). Professor
da Faculdades Sudamérica e do Instituto Vianna Júnior. E-mail: [email protected].

517
A realidade do século XXI vem apontando (..)
para a conjugação de elementos que confluem
para o incremento progressivo de conflitos em
massa e da procura de mecanismos de solução dos
litígios em escala. O aumento da população, espe-
cialmente sentido em países continentais, como o
Brasil, é um dos fatores. Por outro lado, a melho-
ra gradativa das condições de vida, do acesso as
informações e à educação impulsiona o esclareci-
mento, propiciando o que Norberto Bobbio deno-
minou de “Era dos Diretos”, com efeitos multipli-
cadores nos Estados Democráticos de Direito. O
desaguadouro natural das esperanças e desilusões
e pretensões passa a ser o poder Judiciário, que,
por sua vez, também sofre com as limitações de
recursos materiais e humanos para fazer frente ao
desabrochar desta procura incessante e crescente.

Assim, neste artigo temos por finalidade concentrar nossos


esforços em conhecer a novidade incrementada pelo incidente de
resolução de demanda repetitiva analisando sua origem e suas pos-
sibilidades para enfrentar o alarmante dado trazido pela revista Jus-
tiça em números em 2014: a existência de mais de noventa e cinco
milhões de processos tramitando no Brasil com uma previsão de de-
cisão para o ano de 2015 de apenas 30 por cento destes processos.
Estes números são explicados por Gustavo César de Mello Calmon
Holliday e Pedro Alberto Calmon Holliday da seguinte forma (2015):

Os números consolidados pelo Conselho Na-


cional de justiça demonstram, ainda, que o setor
público, nos três níveis de governo, aparecem
com 51 por cento das Ações como autor ou como

518
réu e estão entre os cinco maiores litigantes do
Brasil (INSS, Fazenda Nacional, Funasa e Iba-
ma), secundados pelas instituições financeiras
no setor privado, como uma fatia de 38 por cen-
to das demandas. Diante desse quadro estático,
não há dúvida que a prestação deficitária dos
serviços públicos de gestão administrativa, são
automaticamente convertidas em demandas ab-
sorvidas pelo judiciário, que não está aparelhado
para recebê-las. Estando submetido ao princípio
do acesso incondicional à jurisdição, não tendo
atribuição e competência legal para eliminar as
causas do seu agigantamento, o poder judiciário
passa a sintetizar mecanismos de defesa, que in-
variavelmente tendem a atacar somente os efei-
tos do problema (Excesso de litigiosidade).

A metodologia utilizada neste artigo consiste na análise teórica e


filosófica de estruturas que integram a nossa realidade, nossa cultura,
ou seja, típicas do mundo vivido. Pretende-se realizar não apenas um
estudo meramente descritivo da realidade, pois o cerne deste trabalho
é entender e criticar a realidade jurídica na qual estamos inseridos.
Em um primeiro momento vamos buscar analisar a origem do
incidente de resolução de demandas repetitivas, ressaltando que o
instituto não se confunde com as ações coletivas. Nesse sentido,
ganham destaque o direito alemão com o seu procedimento padrão
e o direito Inglês com o seu famigerado “group litigation”.
Em segundo lugar pretendemos descrever as inovações do Código
de Processo Civil, demonstrando como o instituto deverá ser aplicado
e ressaltando os benefícios de sua utilização, como por exemplo, maior
acesso à justiça, busca por uma isonomia processual, redução do tem-
po morto processual e, por fim, a tentativa de concretização da efeti-
vidade processual sem aniquilar as garantias processuais individuais.

519
Finalmente, faremos uma análise acerca da facticidade e da vali-
dade do instituto em tela para saber se o mesmo apresenta a legitimi-
dade exigida pelo Direito moderno, pois sob uma visão lastreada nos
escritos de Jürgen Habermas, principalmente em suas obras Teoria da
Ação Comunicativa e Direito e Democracia, os destinatários da norma
devem no mínimo ter a possibilidade de participar da sua produção
para que a formulação confeccionada possua facticidade e validade.

2 INSPIRAÇÃO, ORIGEM E INFLUÊNCIAS


DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE
DEMANDAS REPETITIVAS NO NOVO
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Inicialmente, cabe ressaltar que o Incidente de Resolução de
Demandas Repetitivas (IRDR) no novo CPC não é uma forma de
resolver as demandas judiciais de forma coletiva, trata-se de uma
solução em massa de demandas individuais. Esta constatação não
nos permite afirmar que as ações coletivas não prosperaram ou
que representam um caminho esgotado, pois apesar dos avanços e
retrocessos no modo de pensar o direito de forma molecular, tan-
to no direito internacional quanto no direito pátrio, este merece
um estudo pormenorizado e pode ser mais um soldado eficiente
no combate às mazelas processuais. Desta forma, para estudar o
IRDR não iremos analisar o instituto americano Class Actions e
nem mesmo as Verbandsklagen, que são as ações associativas ale-
mãs, iremos concentrar o nosso olhar na Group Litigation Order
do direito inglês e no Musterverfahren do direito alemão.
O direito inglês apresenta uma longa tradição em lidar com as
ações de massa ou ações coletivas, tanto é que Stephen Yeazell
(1987), ao se debruçar sobre a análise do direito inglês e este tipo
de demanda, classificou dentro da história do direito anglo-ameri-
cano três momentos ou fases distintas dos litígios em grupo: medie-
val (do século XII ao século XV), primitivo-moderno (do século XVI
e XVII) e moderno (do século XVIII em diante).

520
Como o objetivo deste trabalho é compreender as origens do
incidente de resolução de demandas repetitivas e este instituto
foi pensado para responder a problemas típicos da modernidade,
como por exemplo, a explosão das demandas, a falta de isonomia
nas decisões jurisprudenciais e o acesso eficiente à tutela jurisdi-
cional, vamos concentrar a nossa análise na última fase da divisão
elaborada por Stephen Yeazell.
A ideia de usar um processo padrão é utilizada pelos alemães
no musterverfahren e pelo novo código civil, pois diante das múl-
tiplas demandas, algumas serão escolhidas para serem analisadas,
e o seu resultado será vinculante em relação às demais questões
que versarem sobre o tema:

A corte pode determinar que haja um proces-


so teste ou padrão, cujo resultado, possui a priori,
efeito vinculante em relação as demais demandas
previamente registradas. As questões comuns ou as
ações de ensaio devem ser processadas e julgadas
por um determinado órgão judicial que ficará pre-
vento inclusive para efetuar, também o registro de
pretensões individuais relacionadas com a common
question ou a test claim. (YEAZELL, 1987, p. 64),

A influência do “test claim” alemão, denominado Musterver-


fahren é evidente na adoção do incidente de resolução de deman-
das repetitivas, uma vez que, na própria exposição de motivo do
novo Código de Processo Civil o legislador fez a seguinte menção:

Com os mesmos objetivos, criou-se, com ins-


piração no direito alemão, o já referido incidente
de resolução de demandas repetitivas, que consis-
te na identificação de processos que contenham a
mesma questão de direito, que estejam ainda no
primeiro grau de jurisdição, para decisão conjunta.

521
É importante salientar que a experiência introduzida no direi-
to alemão pela musterverfahren não possui em hipótese alguma
o objetivo de reduzir a importância das ações coletivas (verban-
dsklagen), pois se desenvolveu “em paralelo às Ações associativas”
(MENDES, 2014, p. 122). O musterverfahren apresenta a seguinte
definição segundo a citação introduzida pela exposição de motivos
do novo código de processo civil: “No direito alemão a figura do
Musterverfahren gera decisão que serve de modelo (Muster) para
a resolução de uma quantidade expressiva de processos em que as
partes estejam na mesma situação, não se tratando necessariamen-
te, do mesmo autor nem do mesmo réu.” (WITTMAN, 2008, p.178).
A adoção em terras germânicas do procedimento padrão ocor-
reu de modo gradual. A sua primeira aparição foi no Verwaltun-
gsgerichtsordnung (Estatuto da Justiça Administrativa) no ano de
1960, que passou por uma reformulação em 1991 ganhando maior
destaque e com uma pormenorização maior de como seriam es-
colhidos os procedimentos modelos. Em um segundo momento, o
procedimento padrão foi utilizado no KapMug (Gesetz über Muster-
verfahren in Kapitalmarktrechtlichen Streitigkeiten), isso no ano de
2005. Essa legislação temporária seria utilizada até o ano de 2010,
no entanto, em virtude de alterações legislativas já foi prorrogada,
até o presente momento, para o ano de 2020.
Esse procedimento-padrão (modelo) foi desenvolvido para so-
lucionar um problema jurídico entre a empresa Deutsche Telekom
e 17 mil acionistas, que alegavam em sua maioria que não foram
devidamente informados da situação econômica da empresa, por
isso, adquiriram na bolsa de valores ações com uma cotação acima
do mercado e suportaram um grande prejuízo. A quantidade de
ações individuais questionando a falta de informação por parte da
empresa de telecomunicação alemã acarretou em uma morosidade
excessiva do judiciário alemão.

522
A suprema corte alemã, quando provocada a se manifestar sobre
a demora dos provimentos judiciais envolvendo os acionistas da em-
presa alemã, indicou a necessidade de resolver as demandas indivi-
duais de forma mais célere, adotando um modelo padrão de solução
desses litígios, como podemos perceber no voto 3321 (2004) do Bun-
desverfassungsgericht (tribunal constitucional federal da Alemanha).
Assim, é notória a explicação fornecida por Mendes (2014, p. 123):

O número elevado de processos, aproximada-


mente 12 mil apenas na Landesgericht de Frank-
furt, ensejou demora nos julgamentos e reclama-
ções que chegara até a Corte Constitucional alemã,
sob alegação de denegação da justiça, tendo a corte
suprema já em 2004, apontado para os órgãos judi-
ciais envolvidos que deveriam adotar outros proce-
dimentos como julgamento de casos-modelo, para
a prestação jurisdicional.

A experiência alemã nos mercados de capitais permitiu que a


ideia fosse exportada para outros ramos jurídicos, como por exem-
plo, no direito administrativo, previdência e assistência social. “É
de se notar que os procedimentos adotados nos ramos administra-
tivos e da previdência social e assistência são idênticos, mas dife-
rem do que foi estabelecido para o mercado de capitais” (MENDES,
2014, pp. 123-124). No entanto, a ideia de um processo piloto foi
preservada e é possível afirmar que em todos estes procedimentos
temos as seguintes etapas: Primeiro, a admissibilidade do Musterver-
fahren; a segunda é o processamento e julgamento do caso paradig-
ma (formação do precedente); e, por fim, o julgamento dos processos
individuais conforme a orientação formulada na segunda etapa. Ire-
mos analisar passo a passo cada uma das etapas para facilitar a com-
paração deste instituto com o “incidente de resolução de demandas
repetitivas” introduzido pelo novo Código de Processo Civil.

523
A comparação principal será em relação ao procedimento pa-
drão que trata do mercado de capitais, mas sempre ressalvando
que existem diferenças legais em relação aos procedimentos pa-
drões previstos para o direito administrativo alemão e para a pre-
vidência e a assistência social alemã.
A admissibilidade no procedimento padrão previsto para o
mercado de capitais não trabalha com a hipótese de “determina-
ção de ofício do incidente de julgamento padrão” (MENDES, 2014,
p. 125), como ocorre para o outro procedimento padrão141. O pe-
dido de instalação poderá ser realizado tanto pelos demandantes
quanto pelos demandados. “O requerente da declaração padrão
(Musterfestellung) deverá indicar o objetivo da declaração e as
informações públicas pertinentes ao mercado de capitais, bem
como a situação fática e os meios de prova a serem produzidas.”
(ibidem p. 125). Fundamental é compreender que em relação ao
pedido demonstrar que a decisão obtida no procedimento piloto
será crucial para a decisão dos outros processos.
A segunda etapa se inicia com a decisão de admissibilidade
do requerimento para conversão em procedimento padrão. As-
sim, é fundamental compreender como será o processamento do
procedimento padrão, que é denominado na doutrina alemã de
“Durchführung des Musterferverfahrens”. A suspensão dos proces-
sos que serão atingidos pelo julgamento do procedimento padrão
ocorre quando a decisão de admissibilidade for publicada no Kla-
geregister (CABRAL, 2007, p. 123), nesse momento, a decisão será
elaborada por um tribunal de hierarquia maior, pois apenas ele terá
competência para impor a sua decisão para os demais processos
suspensos em primeiro grau de jurisdição.
Explicando sobre o passo a passo do Durchführung, Mendes
elucida que (2014, p. 127):

141. Sempre que me referir ao outro procedimento padrão estarei introduzindo in-
formações sobre o procedimento do direito administrativo, previdência e assistência
social alemã.

524
prosseguindo no procedimento-padrão, o Ober-
landsgericht efetuará, em decisão irrecorrível, a
escolha das partes, dentre aqueles processos que
tramitavam perante o juízo de origem, que figura-
rão como autor (Musterkläger) e réu (Musterbegla-
te) no incidente, sem prejuízo da condição e parti-
cipação dos demais interessados na condição de in-
tervenientes (Beigeladenen). Na seleção, o tribunal
levará em conta o valor da pretensão, o objeto do
procedimento padrão e o entendimento da maioria
dos autores em relação a quem deverá ser o autor-
-líder do procedimento padrão (Musterkläger).

Essas considerações são importantes, pois é uma preocupação


permanente do procedimento germânico de não aniquilar o direito
individual, e de dotar a decisão de padrão de legitimidade sufi-
ciente para que seja viável a sua imposição aos demais processos
similares. Todos os autores de demandas individuais que não foram
escolhidos para participar do procedimento padrão não estarão eli-
minados da gestão do procedimento padrão, pois como ressaltado,
poderão participar como intervenientes e ainda os custos produzi-
dos no procedimento piloto serão divididos por todos os autores
que desfrutarão da decisão no procedimento, é o que determina o
parágrafo 9, (3) do KapMuG: “(3) Die Kläger, die nicht als Musterklä-
ger ausgewählt werden, sind Beigeladene des Musterverfahrens”.142
É uma preocupação de primeira ordem para o Musterverfahren
a legitimidade da condução do procedimento piloto, pois é a decisão
produzida em seus atos que servirá de precedente para a decisão dos
demais processos. Por isso, o direito alemão trata de forma diferencia-
da a desistência do condutor do procedimento padrão e o de um outro
litigante que fez o pedido de conversão para o procedimento padrão.

142. Os recorrentes que não forem selecionados como querelante principal estão
unidos como um partido do caso de teste.

525
Após este cuidado com a legitimidade, o processo irá se desen-
volver e a decisão-padrão (Musterentscheid), será proferida pelo tri-
bunal e comunicada as partes para que possam exercer o seu direito
de inconformidade por meio de um recurso denominado Rechts-
beschwerde, que muito se assemelha ao nosso recurso ordinário.
Qualquer um dos integrantes do procedimento-padrão poderão ma-
nejar este recurso, por isso, tanto autor, réu e interveniente gozam
de legitimidade para questionar a decisão padrão do Tribunal. No
entanto, este recurso não pode ser usado para questionar a admis-
sibilidade do procedimento padrão, efetuada pelo juízo de origem.
Após compreendermos o mecanismo de formação da decisão
padrão, devemos analisar sua última etapa, ou seja, como se dará
a eficácia da decisão padrão (Wirkung des Musterentscheids). A le-
gislação alemã é coerente e afirma a importância do procedimento
ao assegurar de forma peremptória que a decisão no procedimento
padrão vincula os órgãos judiciais.
Constatação importante, do dispositivo alemão é que a coisa jul-
gada serve para todos os processos que estão na mesma situação, in-
dependentemente da efetiva participação no procedimento modelo ou
não. “A extensão subjetiva dos efeitos da coisa julgada, pro et contra,
em relação a todos os sujeitos processuais do procedimento modelo,
ou seja, autor, réu e intervenientes. ” (MENDES, 2014, pp. 130-131).
O efeito da coisa julgada no Musterverfahren só não será trans-
portado para os outros processos se for comprovado que o procedi-
mento padrão foi realizado de forma viciada, ou seja, um conluio
de quem liderou o procedimento-modelo com a outra parte com o
objetivo de prejudicar as pessoas que estão nessa situação. Outra
situação em que o resultado do procedimento padrão não pode ser
aplicado é se houver qualquer tipo de restrição à possibilidade de
uma das partes influírem no resultado do procedimento. Seria uma
fórmula que não atenta contra o direito individual e ainda fortalece
a segurança jurídica, pois decisões contraditórias seriam evitadas.

526
3 A EXPERIÊNCIA BRASILEIRA: O
INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE
DEMANDAS REPETITIVAS
O incidente de resolução de demandas repetitivas, segundo as pa-
lavras de Dierle Nunes (2015), é um “estranho que precisa ser compre-
endido”. Assim, é urgente compararmos o seu funcionamento com o
Musterverfahren, pois este último foi a inspiração do nosso novo inci-
dente de resolução de demandas repetitivas, e não é crível pensar em
sua utilização fora dos limites estabelecidos pela Constituição Federal.
O incidente apresenta-se à comunidade jurídica brasileira em
capítulo próprio no novo Código de Processo Civil, dentro do titulo
dos processos nos tribunais, no livro dos processos nos tribunais e
dos meios de impugnação das decisões judiciais. O seu desiderato
nas palavras de Nunes é (2015):

Como o próprio nome informa se trata de uma


técnica introduzida com a finalidade de auxiliar
no dimensionamento da litigiosidade repetitiva
mediante uma cisão da cognição através do “pro-
cedimento-modelo” ou “procedimento-padrão”,
ou seja, um incidente no qual “são apreciadas
somente questões comuns a todos os casos simi-
lares, deixando a decisão de cada caso concreto
para o juízo do processo originário”, que aplicará
o padrão decisório em consonância com as pecu-
liaridades fático-probatórias de cada caso.

Assim, com o intuito de viabilizar a comparação entre o Mus-


terverfahren e o incidente de resolução de demandas repetitivas do
novo código de processo civil vamos analisar o incidente em três
etapas: Admissibilidade; processamento e julgamento das deman-
das individuais após a formação da decisão paradigma:

527
O incidente de resolução de demandas repe-
titivas pressupõe o risco de ofensa a isonomia e
à segurança jurídica, diante da efetiva repetição
de processos que contenham controvérsia sobre a
mesma questão unicamente de direito. Estar-se-á
diante de questão de direito, que poderá ser ma-
terial ou processual. A identidade apenas fática
não autoriza, ao contrario do que ocorre no regi-
me alemão, a instauração do incidente brasileiro.
(MENDES, 2014, p. 299).

O objetivo do incidente é evitar o julgamento singular de mui-


tas demandas que dependam ou versem sobre a mesma questão de
direito. Logo, a admissibilidade do incidente de resolução de de-
mandas repetitivas, nas hipóteses em que existam um alto numero
de processos tramitando, é uma necessidade.
Não há que se duvidar que a principal consequência da ad-
missibilidade do incidente é a suspensão dos processos pendentes,
em primeiro e segundo graus, que estejam submetidos na área de
jurisdição do tribunal. Os fatos que determinam o aceite do tribu-
nal para o incidente, ou seja, sua admissibilidade, são: existência
de controvérsia que esteja ensejando a multiplicação de processos
fundados em idêntica questão de direito e capaz de causar grave
insegurança jurídica decorrente do risco de coexistência de deci-
sões conflitantes, bem como a conveniência de se adotar decisão
paradigmática (Ibidem, p. 302).
Por outro lado, o principal efeito da inadmissibilidade do inci-
dente de demanda repetitiva, ou seja, de sua rejeição pelo órgão
do tribunal responsável pela uniformização da jurisprudência ou
do plenário do tribunal na hipótese do artigo 97 da Constituição
Federal é o de determinar o curso normal dos processos suspensos.
A segunda etapa do procedimento-modelo brasileiro é mais
simples que o previsto no direito germânico, pois após a admissi-

528
bilidade e suspensão dos processos individuais e coletivos, ocorre
um contraditório concentrado, pois todos os envolvidos proces-
suais possuirão um prazo de quinze dias. Neste prazo, as partes
poderão requerer a juntada de documentos e pedir a realização de
diligências necessárias para a elucidação da controvérsia. Por fim,
após este prazo, o Ministério Público também possuirá um prazo
de quinze dias para se manifestar.
O incidente de resolução de demandas repetitivas se propõe a
fixar teses jurídicas e não analisar questões de fato. Nesse sentido,
em nome da celeridade e pela desnecessidade de aguardar a mani-
festação de uma parte para a outra se manifestar, os prazos podem
ser concentrados. Se houver algum contra-argumento baseado na
argumentação da outra parte, este poderá ser respondido de forma
oral durante a própria audiência.
Durante o julgamento, logo após a formulação do relatório uma
nova manifestação das razões será oportunizada a todos os envol-
vidos no processo, inclusive o Ministério Público.
Por fim, temos que nos debruçar sobre a aplicação da tese ju-
rídica aos processos individuais, o que caracteriza a nossa terceira
etapa de análise do incidente de resolução de demanda repetitiva.
O paradigma formado será aplicado tanto aos processos individuais
ou coletivos que ficaram suspensos desde a decisão de admissibi-
lidade, bem como para os novos processos que versarem sobre a
mesma questão de direito, dentro do âmbito de jurisdição do tribu-
nal que fixou o entendimento sobre a questão de direito.

4 A LEGITIMIDADE DO INCIDENTE DE
RESOLUÇÃO DE DEMANDAS REPETITIVAS
SOB UMA PERSPECTIVA HABERMASIANA
Não constitui lugar-comum afirmar que a legitimidade está no cer-
ne de problemas e indagações sérios tanto na ciência política quanto
na sociologia, bem como na filosofia jurídica e na teoria do direito. A

529
palavra em si desafia aspectos semânticos e, do mesmo modo, é subs-
tancioso considerar as formas como é tratada na história das ideias.
Especificamente, Habermas inicia as “tanner lectures”143 de 1986 apre-
sentando o seguinte questionamento: “Wie ist legitimität durch legali-
tät möglich?” (Como é possível a legitimação por meio da legalidade?).
Esta mesma inquietação deve ser transferida para a análise do inci-
dente de resolução de demandas repetitivas, pois o instituto só servirá
ao desiderato constitucional de melhorar a prestação jurisdicional se
não violar garantias constitucionais, ou em outras palavras, se for legí-
timo. Da mesma forma que a lei possui sua dose de impositividade, o
incidente também possui sua força cogente, pois terá aplicação para os
processos que versam sobre a mesma questão de Direito.
Desta forma, a exigência do princípio “D” da teoria discursiva
habermasiana também se impõe ao instituto em análise. Logo, todos
os destinatários das normas ou decisões jurídicas tem que possuir
pelo menos a chance de participar e influir tanto na norma do direito
positivo, quanto na elaboração do paradigma viabilizado pelo novo
instituto. Ferreira elucida a definição do princípio “D”, necessário
para a concretização da legitimidade no direito da seguinte forma:

A teoria do discurso impõe que a aceitação


racional de uma prescrição seja proveniente de
um procedimento que encontra seu fundamento
discursivamente. Em virtude dessa necessidade,
Habermas definirá o princípio “D” (princípio do
discurso) da seguinte forma: “São válidas as nor-
mas de ação às quais todos os possíveis atingidos

143. Nas Tanner Lectures, Habermas enfrentou a questão da diferença entre direito
e moral utilizando como estratégia teórica as condições sociais de legitimidade do
direito. Alguns dos problemas de legitimação do capitalismo maduro foram resga-
tados e incrementados com os aportes da teoria da ação comunicativa e da teoria
dos discursos racionais. O direito para Habermas só possui força de realização social
na medida da sua legitimidade. E a sua legitimidade pressupõe a sua consonância
com conteúdos morais. A moral então complementa o direito e, assim, Habermas
propôs o resgate da moral universal (procedimental) como fundamento de validade
(legitimidade) do direito (SIMIONI, 2007, p. 114 -115).

530
poderiam dar o seu assentimento, na qualidade
de participantes de discursos racionais”. (HABER-
MAS, 2003a, v.I, p. 142) Como consequência ine-
rente à adoção desse princípio, podemos pontuar
que “desse procedimento democrático discursivo
podemos retirar um primeiro e abrangente postu-
lado, a saber, o de que as deliberações se realizam
de forma argumentativa (VITALE, 2008, p. 229).

O Direito moderno não pode ser fundado apenas na força, que


na teoria habermasiana é sinônimo de facticidade. Ela representa o
ponto distintivo do sistema jurídico, uma vez que, em virtude do
descumprimento de um preceito jurídico, é possível valer-se de uma
sanção. No entanto, apenas a coerção ou ameaça de sanção não pos-
suem condição de manter uma coesão social e de justificar a possi-
bilidade do manejo da coerção. Dessa feita, o direito carece de um
segundo elemento, aqui intitulado de validade, que, nesse contexto,
nada mais é do que a legitimidade da norma, a qual somente poderá
ser obtida, de acordo com o que foi exposto, por meio de um procedi-
mento discursivo inclusivo que permita a livre-discussão de ideias e
a adoção do melhor argumento racional. Assim, os destinatários das
normas, por serem seus autores, poderão assentir em relação a elas,
deixando de respeitá-las apenas pelo medo da sanção.
No IRDR é possível encontrar esse binômio, facticidade e validade,
e um procedimento discursivo que se caracteriza, em outras palavras
pelo princípio “D”. Assim, a impositividade do incidente de resolução
de demandas repetitivas está presente na possibilidade de reclamação
para o tribunal que formou o precedente caso este não tenha sido ob-
servado pelos órgãos jurisdicionais submetidos à sua jurisdição.
A validade, necessária para ungir de legitimidade o incidente
de resolução de demandas repetitivas apresentado pelo novo Có-
digo de Processo Civil é fruto da possibilidade de todos aqueles
que tenham o processo suspenso, ou tenham interesse na formação

531
do paradigma, de participarem da produção do precedente. Assim,
todos os destinatários da decisão judicial também serão os seus
autores, desta feita, o princípio “D”, na forma de um procedimento
discurso inclusivo, será garantido, o que legitima o uso da força e a
facticidade na forma da reclamação para o tribunal, sempre que a
formação legítima do precedente não for respeitada.

5 CONCLUSÃO
A sociedade, e não apenas os operadores do direito, aposta quase
todas as suas fichas em alterações legislativas para enfrentar problemas
que muitas vezes transbordam o objeto do Direito positivo. A multipli-
cação das demandas é um dos problemas que assola e desafia os juris-
tas e preocupa a sociedade que sofre diretamente com um direito ino-
perante e muitas vezes marcado pela falta de isonomia e de coerência.
Assim, com o intuito de compreender o problema global da pul-
verização de processos, tanto na tradição da Common Law quanto
na da Civil Law, estudamos a group litigation (do direito Inglês) e
o Musterverfahren (do direito alemão). Estes dois institutos não
representam uma antítese ou mesmo uma negação das ações co-
letivas, ao contrário, representam uma forma coletiva de tratar
demandas individuais. O destaque maior foi conferido ao proce-
dimento modelo alemão, pois este influenciou de forma direta o
nosso instituto de resolução de demandas repetitivas, sendo que
esta afirmação pode ser extraída da leitura da exposição de moti-
vos do novo Código de Processo Civil. Por isso, a comparação en-
tre o procedimento modelo alemão e o procedimento modelo bra-
sileiro é obrigatória para a exata compreensão de nosso instituto.
A segunda e terceira partes desta pesquisa preocupou-se em
esclarecer aspectos centrais do incidente de resolução de deman-
das repetitivas e sua relação com o marco teórico escolhido com
o intuito de não retirar a legitimidade do instituto construído no
novo código de processo civil.

532
.Enfim, espera-se que esse esboço teórico sirva de fundamen-
to, mas, principalmente, de ponto de partida para a compreensão
do novo instituto que será adotado pelo direito pátrio, e que este
possa contribuir para mediar conflitos sociais, permitindo uma
efetiva participação dos indivíduos.

REFERÊNCIAS
CABRAL, Antonio do Passo. O novo procedimento-modelo (Muster-
verfahren) alemão: uma alternativa às ações coletivas. Revista
de Processo. vol. 147. p. 123. São Paulo: Ed. RT, mai. 2007.

HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre a facticidade e va-


lidade. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. 2. ed. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003a. v. I.

MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Ações coletivas e meios de


resolução coletiva de conflitos do direito comparado e nacio-
nal / Aluisio Gonçalves de Castro Mendes; prefácio José Carlos
Barbosa Moreira. 4 ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo : Editora
Revista dos Tribunais, 2014.

SIMIONI, Rafael Lazzarotto. Direito e racionalidade comunicativa.


A teoria discursiva do direito no pensamento de Jürgen Haber-
mas. Curitiba: Juruá, 2007.

VITALE, Denise, Rúrion Soares Mello. Política deliberativa e o mo-


delo procedimental de democracia. In: NOBRE, Marcos; TER-
RA, Ricardo (Org.). Direito e democracia um guia para a leitura
de Habermas. São Paulo: Malheiros, 2008.

HOLLIDAY, Gustavo César de Mello; HOLLIDAY, Pedro Alberto Cal-


mon. A gestão de demandas repetitivas e as técnicas uniformi-

533
zadoras: uma promessa de racionalização dos julgamentos. In:
XXIV Encontro Nacional do CONPEDI

NUNES, Dierle. O IRDR do Novo CPC: este “estranho” que merece


ser compreendido. 2015. Disponível em <http://justificando.
com/2015/02/18/o-irdr-novo-cpc-este-estranho-que-merece-
-ser-compreendido/> Acesso em 15 nov. 2015.

Wittman, Ralf-Thomas. Il contenzioso di massa in Germânia. Mi-


lão, Giuffré, 2008, página 178.

534
ANALISE CRÍTICA QUANTO
A IMPORTANCIA DA EQUIPE
MULTIDISCIPLINAR EM AÇÕES DE
ALIENAÇÃO PARENTAL CONFORME O
NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sátina P. M. Pimenta Mello144 e Fabiana Campos Franco145

INTRODUÇÃO
Recentemente o tema Alienação Parental vem tomando espaços
nas discussões sociais. O comportamento inadequado dos pais em
relação aos filhos, no momento da separação, tem ganhado pauta
mas, apesar de não ser um assunto novo, e de ser até bastante co-
mum nas relações familiares, ainda é pouco conhecido e discutido
pela maioria da população.
A alienação parental geralmente ocorre quando casais separam-
-se e disputa a guarda dos filhos. Quando acontece a ruptura conju-
gal, percebe-se o sentimento de perda de objeto que de alguma forma
correspondeu ou corresponde à fantasia da completude representada
pelo parceiro, de um ideal de formação de família feliz e estável.
Segundo Oliven (2010) nessa experiência, os sintomas podem
ser expressos pelos cônjuges pelas acusações mútuas entre o ex-
-casal conduzindo a retaliações e a lesões afetivas, inclusive atin-
gindo os seus filhos, refletindo neles as contradições de afetos e

144. Advogada, Psicóloga, Professora da Faculdade Estácio de Sá de Vitória e Vila


Velha. E-mail: [email protected]
145. Doutora em Comunicação. Professora da Faculdade Estácio de Sá de Vitória e
Vila Velha. E-mail: [email protected]

535
de sentimentos paterno-materno, por muitas vezes, como medida
satisfativa de um desejo de vingança em face do outro. O genitor
busca destruir a imagem do outro progenitor na relação com os fi-
lhos. Foi procurado mostrar como se dá a conduta alienadora, suas
características e suas principais consequências por meio do método
Dedutivo, partindo do geral para o específico, analisando toda insti-
tuição familiar até chegar ao tema específico da Alienação Parental.
Para isso, foram utilizados, livros, artigos e pesquisas na internet.
O menor será reconhecido como vítima da Alienação Parental e
passa a ser necessária a intervenção analítica de técnicos de sabe-
res multidisciplinares para a garantia do atendimento desta criança
quando das alegações da Alienação parental. Ocorre que mesmo
sendo descrita como necessária na lei 12.318/2010 o juiz da causa
possui discricionariedade para determinar ou não esta intervenção.
O novo Código de Processo Civil, que passa a vigorar em 2016, em
art. 699 dispõe que o Juiz deverá ter ao seu lado especialista no
momento depoimento do menor quando for o caso de Alienação
Parental, porém não apresenta a forma de ação deste profissional
e não retira a discricionariedade do Juiz quanto ao vinculação ou
não ao laudo pericial, algo que considerado no mínimo controverso
desde o Código de Processo Civil de 1973.
O artigo é uma revisão bibliográfica descritiva analítica do tema
debruçando-se na concepção psicológica e jurídica sobre a Alie-
nação Parental, assim como a Síndrome da Alienação Parental e a
partir destas demonstrar a necessidade fática de atuação de equipe
multidisciplinar nos processos judiciais deste cunho e realizar uma
crítica quanto a manutenção da discricionariedade do Juiz da causa
quanto a atuação desta equipe no Novo Código de Processo Civil.
Serão apresentados o amparo jurisdicional, que é dado pelo or-
denamento jurídico, em que é feita uma breve explanação sobre os
direitos positivados no Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei nº
8.069/90, e sobre a Lei de Alienação Parental, nº 12.318, aprovada

536
em agosto do ano de 2010, assim como obviamente as ponderações
do Novo Código de Processo Civil sobre o tema.

2 ALIENAÇÃO PARENTAL

2.1 Conceito de Alienação Parental


A primeira definição de Alienação Parental foi dada em 1985
pelo médico e Professor de psiquiatria, Richard Gardner, (apud
GUAZZELLI, 2011) que a denominou como a situação em que a mãe
ou o pai de uma criança a treina para romper os laços afetivos com
o outro cônjuge, criando fortes sentimentos de ansiedade e temor
em relação ao outro genitor.

Segundo o psiquiatra norte-americano, a alie-


nação parental é um processo que consiste em
programar uma criança para que odeie um de seus
genitores (o genitor não guardião) sem justificati-
va, por influência do outro genitor (o genitor guar-
dião), com quem a criança mantém um vínculo
de dependência afetiva e estabelece um pacto de
lealdade inconsciente. (SILVA, 2012, p. 145).

Para Goldrajch e outros (2010, p.7), a definição de alienação paren-


tal surge para enunciar o processo que consiste em manter uma crian-
ça ou adolescente afastado do convívio de um ou ambos os genitores.

A alienação parental consiste em programar uma


criança para que, depois da separação, odeie um
dos pais. Geralmente é praticada por quem possui
a guarda do filho. Para isso, a pessoa lança mão de
artifícios baixos, como dificultar o contato da crian-
ça com o ex-parceiro, falar mal e contar mentiras.
Em casos extremos, mas não tão raros, a criança é

537
estimulada pelo guardião a acreditar que apanhou
ou sofreu abuso sexual (JORDÃO, 2008, p. 02-03)

O psicólogo americano, Douglas Darnall (apud GOLDRAJCH,


2010), destaca que alienação parental, consiste em qualquer atitude
por parte de um dos genitores, mesmo antes de uma separação conju-
gal, para denegrir ou dificultar a relação da prole com o outro genitor.

A alienação parental se expressa, no âmbito


jurídico, como uma forma de violência praticada
pelo guardião, parente ou não, de uma pessoa me-
nor de 18 anos de idade, portanto incapaz, consis-
tente no ato ou na omissão de impedir, de forma
injustificada, a convivência daquela com o genitor
não guardião (GOLDRAJCH et al., 2010, p.8- 9).

Com o advento da Lei 12.318/2010, o legislador se preocupou


em definir a alienação parental da seguinte forma:

Art. 2º - Considera-se ato de alienação parental


a interferência na formação psicológica da criança
ou do adolescente promovida ou induzida por um
dos genitores, pelos avós ou pelos que tenham a
criança ou adolescente sob a sua autoridade, guar-
da ou vigilância para que repudie genitor ou que
cause prejuízo ao estabelecimento ou à manuten-
ção de vínculos com este. (BRASIL, 2010)

Neste sentido, depreende-se que, o ex-cônjuge, ex-companheiro


ou até mesmo os avós, que tenham a criança ou o adolescente sob
a sua custódia, que intentar afastar o filho do relacionamento com
o outro genitor através da manipulação, alienação e ou mentiras
promove a alienação parental.

538
2.2 Conceito de Síndrome da Alienação
Parental (SAP)
A Síndrome da Alienação Parental - SAP, segundo Fonseca
(2010, p.6) “é a consequência da prática da alienação parental, que
exsurge do apego excessivo e exclusivo do menor com relação a um
dos genitores e do afastamento total do outro”.
O psiquiatra norte-americano Richard A. Garner (1985, apud
SILVA, p. 144), apresentou o seguinte conceito para a SAP:

A síndrome de alienação parental (SAP) é uma


disfunção que surge primeiro no contexto das dispu-
tas de guarda. Sua primeira manifestação é a cam-
panha que se faz para denegrir um dos pais, uma
campanha sem nenhuma justificativa. É resultante
da combinação de doutrinações programadas de um
dos pais (lavagem cerebral) e as próprias contribui-
ções da criança para a vilificação do pai alvo.

Mônica Guazzelli (2007, p.40) destaca, que tal síndrome – tam-


bém denominada de Síndrome do Afastamento Parental – poderia
se limitar a esse tipo de conduta, gerando o afastamento do proge-
nitor não guardião da prole.

A Síndrome de Alienação Parental é um trans-


torno psicológico que se caracteriza por um
conjunto de sintomas pelos quais um genitor,
denominado cônjuge alienador, transforma a
consciência de seus filhos, mediante diferentes
formas e estratégias de atuação, com o objetivo
de impedir, obstaculizar ou destruir seus víncu-
los com o outro genitor, denominado cônjuge
alienado, sem que existam motivos reais que jus-

539
tifiquem essa condição [...]. Dessa maneira, po-
demos dizer que o alienador “educa” os filhos no
ódio conta o outro genitor, seu pai ou sua mãe,
até conseguir que eles, de modo próprio, levam
a cabo esse rechaço. As estratégias de alienação
parental são múltiplas e tão variadas quanto à
mente humana pode conceber, mas a síndrome
possui um denominador comum que se organiza
em torno de avaliações prejudiciais, negativas,
desqualificadoras e injuriosas em relação ao ou-
tro genitor (TRINDADE, 2010, p.102).

Segundo Trindade (2010, p. 25) a Síndrome tem sido identifica-


da como uma forma de negligência contra os filhos, constituindo
uma forma de maltrato e abuso infantil.
Denise M. Perissini da Silva (2012, p.146), destacou que a SAP
age sobre duas frentes, vejamos:

A síndrome age sobre duas frentes: por um lado,


demonstra a psicopatologia gravíssima do genitor
alienador que [...] utiliza-se de todos os meios, ate
mesmo ilícitos e inescrupulosos, para atingir seu
intento; por outro, o ciclo se fecha quando essa
influência emocional começa a fazer com que a
criança modifique seu comportamento, sentimen-
tos e opiniões acerca do outro pai (alienado).

A meta do alienante é desmoralizar o não guardião, implicando


comportamentos abusivos contra a criança ou adolescente, criando
imagens distorcidas das figuras paternas e maternas, de forma a
promover o afastamento do menor com o genitor alienado, des-
truindo o vínculo parental.

540
2.3 Diferença entre Alienação Parental e
Síndrome de Alienação Parental (SAP)
Segundo a conceituação dos dois institutos acima mencionados,
depreende-se de Alienação Parental, o processo que consiste em
manter uma criança ou adolescente afastado do convívio do cônjuge
alienado. Deste processo, pode, ou não, desencadear o surgimento de
uma síndrome, a qual chamou de Síndrome da Alienação Parental.

A síndrome da alienação parental não se confun-


de, portanto, com a mera alienação parental. Aquela
geralmente é decorrente desta, ou seja, a alienação
parental é o afastamento do filho de um dos geni-
tores, provado pelo outro, via de regra, o titular da
custódia. A síndrome, por seu turno, diz respeito
às sequelas emocionais e comportamentais de que
vem a padecer a criança vítima daquele alijamento.
Assim, enquanto a síndrome refere-se a conduta do
filho que se recusa terminantemente e obstinada-
mente a ter contato com um dos progenitores e que
já sofre as mazelas oriundas daquele rompimento,
a alienação parental relaciona-se com o processo
desencadeado pelo progenitor que intenta arredar o
outro genitor da vida do filho (FONSECA, 2010, p.7)

Maria Berenice Dias (2010, p.16) difere os dois institutos da


seguinte forma, a “síndrome” significa distúrbio, sintomas que se
instalam em consequência da prática, de que os filhos foram víti-
mas. “Já a “alienação” são os atos que desencadeiam verdadeira
campanha de desmoralizadora levada a efeito pelo “alienante”, que
nem sempre é o guardião”.
AGUILAR (2004, apud SILVA, 2012, p. 153) estabelece uma di-
ferença entre Síndrome de Alienação Parental e alienação parental,
veja-se:

541
Ocorre uma alienação parental quando a crian-
ça rejeita um dos pais por motivos evidentes,
indiscutíveis, objetivos; por seu turno, ocorre a
Síndrome quando a criança passa a rejeitar o pai
não guardião por motivos fúteis, influenciada pelo
genitor guardião como forma de disputa de poder.

A AP caracteriza o ato de induzir a criança a rejeitar o pai/mãe


(com esquivas, mensagens difamatórias, até o ódio ou acusações),
a SAP, por sua vez, é o conjunto de sintomas que a criança pode vir
ou não a apresentar, decorrentes da prática da alienação.

2.4 Efeitos e Consequências da Síndrome


de Alienação Parental no menor
Conforme se extrai dos escritos de Fonseca (2010, p.13) consu-
mada a alienação e a desistência do alienado de estar com os filhos,
tem lugar a síndrome de alienação parental, sendo certo que as se-
quelas de tal processo patológico comprometerão, definitivamente,
normal desenvolvimento da criança.
Fonseca (2013) ainda diz que em grande parte dos casos, a alie-
nação parental não afeta apenas a pessoa do genitor alienado, “mas
também de todos aqueles que o cercam: familiares, amigos, serviçais
etc., privando a criança do necessário e salutar convívio com todo
um núcleo familiar e afetivo do qual faz parte e no qual deveria per-
manecer integrada”. Silva (2012, p.151) destaca que em curto prazo,
para sobreviver, “a criança aprende a manipular, tornando-se prema-
turamente esperta para decifrar o ambiente emocional, falar apenas
uma parte da verdade e, por fim, enredar-se em mentiras, discursos e
comportamentos repetitivos, exprimindo emoções falsas”.

542
2.5 Implantação de Falsas Memórias
O que se denomina de Implantação de Falsas Memórias advém
justamente, da conduta doentia do genitor alienador, que começa
a fazer com o filho uma verdadeira “lavagem cerebral”, com a fi-
nalidade de denegrir a imagem do outro – alienado-, e, pior ainda,
usa a narrativa do infante acrescentando maliciosamente fatos não
exatamente como estes se sucederam, e ele aos poucos vai se “con-
vencendo” da versão que lhe foi “implantada”.

Fato é que eventualmente a criança vai inter-


nalizar tudo e perderá a admiração e o respeito
pelo pai, desenvolvendo temor e mesmo raiva do
genitor. Mais, com o tempo, a criança não conse-
guirá discernir realidade e fantasia e manipulação
e acabará acreditando em tudo e, consciente ou
inconscientemente, passará a colaborar com essa
finalidade, situação altamente destrutiva para ela
e, talvez, neste caso específico de rejeição, ainda
maior para o pai. Em outros casos, nem sempre
a mãe distingue mais a verdade da mentira e sua
verdade passa a ser “realidade” para o filho, que
vive com personagens fantasiosos de uma existên-
cia aleivosa, implantando-se, assim, falsas memó-
rias, daí a nomenclatura de Teoria da implantação
de falsas memórias (PINHO, 2010).

3 DA PERICIA NO NOVO CÓDIGO DE


PROCESSO CIVIL
O Novo Código de Processo Civil (NCPC) que virá a vigorar apenas
no ano de 2016, apresenta interesse especial direcionado a Ações de
Família, tanto é que o mesmo trás em seu bojo o Capítulo X direcionado
exclusivamente à estas ações com sete artigos ao todo. (BRASIL, 2015)

543
Na verificação do conteúdo dos referidos artigos inferimos que
o interesse do legislador é de resolução do conflito de maneira con-
sensual, buscando através de audiências de mediação - quantas
forem necessárias (art. 696 NCPC)- a diminuição dos sentimentos
negativos, tanto psicológicos quanto materiais, intrínsecos a ações.
O caso de ações de família que versem sobre abuso ou aliena-
ção, o novo CPC afirma em seu artigo 699 que o Juiz ao realizar o
depoimento do incapaz deverá necessariamente ser acompanhado
por um especialista. Trata-se de um primeiro momento em que a
alienação parental é tratada dentro do de uma codificação proces-
sual normativa. Segue o artigo in verbis:

Art. 699.  Quando o processo envolver discussão


sobre fato relacionado a abuso ou a alienação pa-
rental, o juiz, ao tomar o depoimento do incapaz,
deverá estar acompanhado por especialista (BRASIL,
acesso em 20 out. 2015)

Tal procedimento é preocupante, pois a partir desta determinação é


possível o entendimento de suficiência no uso exclusivo do especialista
em depoimento, o que contrapõe a complexidade de casos como estes.
A necessidade da perícia em casos como Alienação Parental
para os profissionais da área da psicologia e da assistência so-
cial é de extrema importância, até porque como descrito outrora
o conceito de alienação parental é a interferência na formação
psicológica da criança ou do adolescente promovida ou induzida
por determinadas pessoas, conforme artigo 1º da referida lei. Há
portanto uma simplificação de acordo com Tânia Aldrighi (2006),
supervisora de Psicologia Jurídica da Universidade Mackenzie e
especialista na área da Família é inviável, pois a decisão judicial
por si só não findará o conflito psicológico que gera a alienação e
as consequências que a mesma poderá causar.

544
De acordo com o Desembargador Pedro Vaus Feu Rosa (2013),
perícia é o trabalho realizado por pessoa entendida em determinada
matéria com o objetivo de elucidar questões relativas à mesma e
esta pode ser realizada judicialmente ou extrajudicialmente, sendo
a primeira munida da necessidade de compromisso jurídico tendo
como finalidade o auxilio ao magistrado.
O princípio da discricionariedade do Juiz natural, onde o mes-
mo poderá agir de conforme sua conveniência, mas nunca em
contraposição da lei, continua sendo um delimitador da participa-
ção de especialistas em ações que versão sobre o seu saber. O arti-
go 156 do NCPC afirma que o juiz será assistido por perito quando
a prova do fato depender de conhecimento técnico ou científico.
Quem decide sobre esta “dependência” sobre o conhecimento téc-
nico? Obviamente do magistrado.
Outro ponto preocupante é a questão da modificação no NCPC
quanto a formação universitária necessária ao especialista, ocorre
que por vezes o entendimento da ação da Psicologia como ciência
não é muito clara para a maioria das pessoas, havendo um senso
comum que terapeutas, psiquiatras, psicólogos e teraupeutas, re-
alizam as mesmas ações. O psicólogo é o único capacitado para
realização de perícias psicológicas e obviamente a para elaboração
de laudos que possam vir a constituí-la (SILVA, 2011).
Assim sendo há a necessidade de verificação fática da con-
sulta correta aos órgãos, Conselhos e outros que não era previsto
no Antigo Código de Processo Civil, mas passa a ser possível no
NCPC no artigo 156, §1º.
A lei 12.318/10 trás em seu artigo 5º que haverá profissional ou
a equipe profissional encarregada pelo Juízo para realizar a perícia
de avaliação de ocorrência, ou não, de alienação deve ter compro-
vada experiência técnica ou acadêmica no assunto, sendo a acadê-
mica suprida pelo NCPC, porém veja:

545
Art. 5o  Havendo indício da prática de ato de
alienação parental, em ação autônoma ou inci-
dental, o juiz, se necessário, determinará perícia
psicológica ou biopsicossocial. 
§ 1o  O laudo pericial terá base em ampla ava-
liação psicológica ou biopsicossocial, conforme o
caso, compreendendo, inclusive, entrevista pesso-
al com as partes, exame de documentos dos autos,
histórico do relacionamento do casal e da separa-
ção, cronologia de incidentes, avaliação da perso-
nalidade dos envolvidos e exame da forma como
a criança ou adolescente se manifesta acerca de
eventual acusação contra genitor. 
§ 2o  A perícia será realizada por profissional ou
equipe multidisciplinar habilitados, exigido, em
qualquer caso, aptidão comprovada por histórico
profissional ou acadêmico para diagnosticar atos
de alienação parental.  
§ 3o  O perito ou equipe multidisciplinar de-
signada para verificar a ocorrência de alienação
parental terá prazo de 90 (noventa) dias para apre-
sentação do laudo, prorrogável exclusivamente
por autorização judicial baseada em justificativa
circunstanciada. 

Segundo Perez (2010) as hipóteses exemplificativas de aliena-


ção parental não afastam e tampouco restringem a possibilidade
de realização de perícia psicológica ou biopsicossocial como fun-
damento à decisão judicial.
Depreende-se da norma supramencionada, que o art. 5º no seu
parágrafo segundo, estabeleceu requisitos para assegurar razoável
consistência ao laudo, notadamente entrevista pessoal com as par-
tes, exame de documentos dos autos, histórico do relacionamento
do casal e da separação, avaliação de personalidade dos envolvi-

546
dos e exame como a criança ou adolescente se manifesta acerca de
eventual acusação contra o genitor.
Assim, para Perez (2010) há uma maior profundidade na in-
vestigação pericial, com maior demanda por qualidade no trabalho
de assistentes sociais, psicólogos e médicos, em evidente prestígio
a atuação de tais profissionais, no processo judicial, muitas vezes
chamados ao complexo encargo de diferenciar hipóteses de negli-
gência ou abuso de falsas acusações.
É de extrema importância que os operadores do direito percebam
os elementos indicados da Alienação parental, além de aceitarem e
entenderem, a necessidade de realização da perícia psicossocial, para
que, assim possam estar verdadeiramente assegurando a proteção
dessas vítimas. É preciso ressaltar, deixar bem claro, que não se trata
de exigir dos operadores do direito um diagnostico da Alienação Pa-
rental, até porque são profissionais que não tem formação acadêmica
de psiquiatria ou psicologia. Mas, sim que reconheçam as limitações
e deem credibilidade a perícia psicossocial realizada para posterior-
mente possam adotar- com urgência e prioridade- as medidas perti-
nentes ao caso ( ROCHA, psicologia na pratica jurídica criança em
foco, Alienação parental: a mais grave forma de abuso emocional)
Todavia, mesmo com a possiblidade de atuação de profissional
com saber diferenciado do magistrado e único competente não só
para a solicitação mas também para a aceitação de laudo técnico por-
menorizado. Tal discricionariedade era prevista no artigo 436 da lei
5869/1973, o Código de Processo Civil vigente e continua em sua in-
tegralidade no novo diploma processual legal no artigo 459 que versa:
“Art. 459. O juiz não está adstrito ao laudo pericial, podendo formar
a sua convicção com outros elementos ou fatos provados nos autos.”
Mantem-se assim os aspectos limitadores do Judiciário que ao
invés de admitir que não tratam-se dos senhores da verdade e que
necessitam de auxilio, mais uma vez recebem dos legisladores o refor-
ço positivo de ser comportamento individualista e autoritário. Afinal,

547
qual a capacidade técnica que um Juiz de direito poderia ter em rela-
ção ao conteúdo de um parecer de equipe multidisciplinar composto
por psicólogo e assistente social? Quais são as argumentações jurídicas
que o mesmo poderia utilizar para julgar que tal parecer é dispensável?
Percebemos a manutenção do poder discricionário exacerba-
do em detrimento aos outros saberes e a manutenção também da
possibilidade de mais uma vez não darmos a devida importância
as consequências psicológicas das pessoas envolvidas nos conflitos
jurídicos, e ainda pior quando tratamos de crianças e adolescen-
tes que passam pela Alienação Parental ou pior, pela Síndrome da
Alienação Parental, pois esta pode gerar consequências psíquicas
desastrosas e permanentes.

4 CONCLUSÃO
A família é a mais importante de todas as instituições, por meio
dela que o indivíduo adquire as principais respostas para os pri-
meiros obstáculos da vida. Nela que nascem as primeiras fontes,
formam as impressões duradouras e também o caráter, que é base
da formação do ser humano.
Assim, através deste trabalho, percebe-se que a alienação pa-
rental na maioria dos casos, nasce dos comportamentos e atitudes
tomadas pelo pai ou pela mãe que não se conformando com o fim
de um relacionamento, usam seus filhos como meio estratégicos
para atingir o outro progenitor.
Confusos em discernir a conjugalidade da paternidade, os cônju-
ges frustram a convivência materna ou paterna, imputando memó-
rias desabonadoras, em especial de abandono dos filhos, sem que
necessariamente tais comportamentos realmente se apresentem.
Em geral, o genitor ferido, vitimado pelo abandono, cria artifícios
para impedir encontros e a criação de laços estreitos entre o filho e o ou-
tro genitor, criando um abismo por vezes intransponível e devastador.

548
A efetiva instalação da Alienação Parental atinge vários direitos
que são assegurados às crianças e adolescentes por meio da Consti-
tuição Federal e do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Diante de tal prática, a criança se vê infringida na sua dignidade de
pessoa humana, afinal esta não vê sua moral respeitada pelo seu pró-
prio genitor, quando este tenta denegrir a imagem do outro progenitor.
Com o advento da Lei nº. 12.318/2010, o ordenamento jurídico pá-
trio veio mostrar para toda a sociedade que a Alienação Parental é uma
realidade que efetivamente existe e que deve ser combatida para me-
lhor interesse social e desenvolvimento das nossas futuras gerações.
Porém, enquanto o Poder Judiciário não tiver consciência da
sua limitação de saberes e não reconhecer a necessidade de busca
de novos saberes em outras ciências a efetivação da Justiça e de-
cisões mais equânimes não serão práticas nas ações que versam
sobre a Alienação Parental.
Entendemos que o Novo Código de Processo Civil trás em voga
a importância dos peritos, porém ainda mantem o distanciamento e
a subjugação dos profissionais não jurídicos ao estrelismo do Judi-
ciário que se acha detentor de todos os saberes e peca pelo seu Ego.

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1990.Brasilia, DF: Presidencia da República. Casa Civil. Dis-
ponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-
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552
PROCESSO PENAL E
SANÇÕES
A N Á L I SE DA COLABORAÇÃO
PREMI ADA À LUZ DAS GAR A N T IAS
CO N STIT UCIONAIS NO DIRE ITO
PRO C ESSUAL PENAL
Murilo Rodrigues da Rosa146

INTRODUÇÃO
A colaboração premiada tem ganhado imenso destaque no di-
reito processual penal brasileiro, mormente a partir da “Operação
Lava Jato”. Trata-se de um meio de obtenção de prova, que recom-
pensa o suspeito, o réu ou o condenado que colaborar com a perse-
cução penal, seja com a recuperação de ativos financeiros produtos
do crime ou com a delação de comparsas. Ressalta-se, todavia, que
para além de ser um meio de obtenção de prova, o acordo de cola-
boração representa o avanço do direito penal negocial na legislação
pátria, indo de encontro à tradição brasileira da obrigatoriedade da
ação penal, pois permite o não oferecimento da denúncia.
Apesar da fama recente, a delação premiada foi introduzida na
legislação brasileira em 1990, com a lei dos crimes hediondos, no
seu artigo 8º. Além disso, está presente nas seguintes normas: ar-
tigo 6º da Lei nº 9.034/95 (Organizações Criminosas); artigo 25,
§2º, da Lei nº 7.492/86 (Crimes contra o Sistema Financeiro Na-
cional – inclusão com a Lei nº 9.080/1995); artigos 1º ao 7º da Lei
nº 8.137/90 (Inclusão com a Lei nº 9.080/95; artigo 159, §4º, do

146. Mestrando em Teoria e História do Direito no Programa de Pós-Graduação em


Direito da Universidade Federal de Santa Catarina. Graduado em Direito pela mesma
instituição. Contato: [email protected] .

555
Código Penal (inclusão com a Lei n. 9.269/96); artigos 1º e 5º da
Lei nº 9.613/98 (“Lavagem” de Capitais); artigos 13 e 14 da Lei nº
9.807/99 (Proteção a Testemunha); artigo 35-B da Lei nº 8.884/94
(Infrações contra a ordem Econômica/CADE – inclusão com a Lei nº
10.149/2000); artigo 32, §2º, da Lei nº 11.343/2006 (Lei de Drogas).
Entretanto, só recentemente, com o regramento detalhado dado
pela Lei nº 12.850/2013 (Organização Criminosa), é que o acordo
de colaboração penal vem sendo utilizado com mais frequência pe-
los atores jurídicos. Renato Brasileiro de Lima define a colaboração
premiada como

uma técnica especial de investigação por meio


da qual o coautor e/ou partícipe da infração penal,
além de confessar seu envolvimento no fato deli-
tuoso, fornece aos órgãos responsáveis pela per-
secução penal informações objetivamente eficazes
para a consecução de um dos objetivos previstos
em lei, recebendo, em contrapartida, determinado
prêmio legal. (2016, p. 1031)

Este instituto tem dividido opiniões na doutrina e na aca-


demia, com defesas e ataques apaixonados de ambos os lados.
Por um lado, existem aqueles que consideram que na persecu-
ção penal de grandes organizações criminosas o Estado não pode
se limitar por formalismos desnecessários ou excessivo número
de garantias processuais, de modo que a colaboração seria um
importante meio de obtenção de provas, inclusive utilizando a
prisão preventiva como instrumento de pressão para conseguir
essa colaboração. Em sentido oposto, estão os que a consideram
inconstitucional, por violar garantias e direitos fundamentais.
Assim sendo, o objetivo deste artigo é ponderar as críticas e
os elogios para conferir o real impacto deste instituto na persecu-
ção penal, especialmente no que diz respeito às liberdades e direi-

556
tos fundamentais. Por conseguinte, exime-se de debater a fundo
o tema da obrigatoriedade da ação penal dentro do sistema penal
pátrio. Assim, em um primeiro momento expor-se-á os principais
argumentos utilizados para dar supedâneo à utilização da delação
premiada. Em seguida, apresentar-se-á os argumentos considera-
dos mais importantes para a crítica do acordo entre a acusação e a
defesa. Ao final, pretende-se apontar breves ponderações indicando
novos caminhos de pesquisa e debate, sem, contudo, ter a preten-
são de indicar uma resposta definitiva.

1. A EFICIÊNCIA DA PERSECUÇÃO PENAL


COMO JUSTIFICATIVA PRIMORDIAL
Sérgio Fernando Moro, Juiz Federal, ficou muito conhecido
por causa de sua participação na referida Operação Lava Jato,
cujo principal método de investigação foi a delação premiada.
Com efeito, Moro, em seu estudo sobre a operação italiana mani
pulite, defendeu a utilização da delação como meio eficiente de
obtenção de prova, considerando que “crimes contra a Adminis-
tração Pública são cometidos às ocultas e, no(sic) maioria das
vezes, com artifícios complexos, sendo difícil desvelá-los sem a
colaboração de um dos participantes” (2004, p. 58).
De fato, a eficiência parece ser o principal argumento em favor
da premiação do réu. Com o aumento da complexidade dos delitos
e dos expedientes para ocultação de patrimônio proveniente deles,
o Estado não consegue, em tese, punir os chamados crimes de cola-
rinho branco sem os acordos penais. No dizer de Antonio Scarance
Fernandes, “A verdade é que a polícia não consegue desvendar cer-
tos crimes sem a colaboração de pessoas ligadas ao próprio mundo
do crime e, em razão disso, vários países, para combate ao crime
organizado, admitiram essa ajuda, oferecendo vantagens ao cola-
borador.” (2008, p. 250). Outrossim, Mauricio Schaun Jalil (2013)

557
elogia a lei de organizações criminosas pelas inovações necessárias e
imprescindíveis no que diz respeito aos meios de produção de prova.
Ainda sobre o assunto, o Subprocurador-Geral da República Ni-
colao Dino argumenta:

Cada vez mais, sofisticam-se as práticas de cor-


rupção e mecanismos de ocultação da sonegação,
da lavagem de dinheiro, de evasão de divisas, de
fraudes em mercados de capitais, dentre outras
práticas ilícitas. E quanto mais complexa for em-
preitada criminosa, mais difícil será a obtenção da
prova. Por tudo isso, é necessário incentivar o cri-
minoso a contribuir com o Estado, ainda que em
troca de um benefício proporcional à colaboração
levada a cabo. Não há nisso violação a direitos ou
garantias do investigado/acusado, tampouco coa-
ção. (2015, p. 444-445)

Vilvana Zanellato (2016), seguindo a mesma esteira, afirma que


a delação premiada é instrumento de política criminal garantista. A
autora sustenta que a macrocriminalidade produz externalidades
negativas, como falta de saúde, educação, segurança, que suscitam
do Estado uma maior eficiência nos procedimentos penais para ga-
rantir o bem-estar e a dignidade da população.
Outro destacado doutrinador, Renato Brasileiro de Lima justifi-
ca a adoção da colaboração premiada em razões de ordem prática:

Apesar de, sob certo aspecto, a existência da


colaboração premiada representar o reconheci-
mento, por parte do Estado, de sua incapacidade
de solucionar sponte própria todos os delitos pra-
ticados, a doutrina aponta razões de ordem prá-
tica que justificam a adoção de tais mecanismos,

558
a saber: a) a impossibilidade de se obter outras
provas, em virtude da “lei do silêncio” que vige
no seio das organizações criminosas; b) a oportu-
nidade de se romper o caráter coeso das organi-
zações criminosas (quebra da affectio societatis),
criando uma desagregação da solidariedade inter-
na em face da possibilidade da colaboração pre-
miada.(2016, p. 1034)

Entretanto, seus defensores vão adiante, sustentando a utiliza-


ção da colaboração premiada também sob o ponto de vista moral,
principalmente defendendo-se de críticas. Ademais, alegam que
esse acordo não viola nenhuma garantia ou princípio fundamental.

1.1. A DELAÇÃO E A MORAL


A respeito desse assunto, Moro (2004) argumenta que o acu-
sado que colabora com a Justiça e com a aplicação das leis do país,
quando justas e democráticas, não age contra a moral, ainda que
movido por interesses pessoais.
Para Brasileiro de Lima (2016), não há que se falar em ética de
criminosos, pois estes agem à margem da sociedade, com valores
antissociais. O autor lembra que os mafiosos não tem escrúpulos
morais, tampouco éticos, ao determinar a execução de membros de
facções rivais ou mesmo de pessoas de bem. Portanto, na visão de
Lima, a delação premiada não viola a ética e a moral social.
De acordo com Zanellato, deve-se optar pela ética com a socie-
dade, não com as organizações criminosas:

Entre a ética com a sociedade e a ética com as


organizações criminosas, que se opte pela primei-
ra. Entre a parceria com as organizações crimino-
sas e a parceria com a sociedade, que se opte pela
segunda. A parceria, hoje, é necessária e não é

559
preciso “desenhar” para que lado o Direito deve
declinar.(2016, p. 119)

Com isso, verifica-se na argumentação dos autores citados que


a colaboração com a Justiça e com a aplicação das leis do Estado
suplantariam a dimensão da traição institucionalizada.

1.2. O ALEGADO RESPEITO ÀS


GARANTIAS E DIREITOS FUNDAMENTAIS
Para os defensores do instituto, a colaboração premiada está
de acordo com as garantias e os direitos fundamentais previstos na
Constituição da República. A própria Lei nº 12.850/2013, segundo
estes autores, trouxe os limites necessários para sua aplicação.
De início, salienta-se que a delação premiada não é prova,
mas instrumento de obtenção de prova, de modo que ninguém
pode ser condenado apenas com base na palavra do delator. Sér-
gio Moro (2004) coaduna com esse entendimento, já que o colabo-
rador tem interesse direto na condenação do delatado para receber
seu prêmio. Portanto, aquilo que for relatado pelo colaborador
deve ser corroborado por provas. Zanellato (2016) anota que o
Estado não tem interesse que se incriminem inocentes, por conse-
guinte tipificou penalmente a delação caluniosa.
Ademais, Gustavo Badaró, pensando em casos nos quais uma
segunda delação venha a corroborar a primeira, o que se denomina
de corroboração cruzada, entende que ainda assim não se pode
condenar o réu duplamente delatado com base somente nessa cor-
roboração mútua:

Se assim é, e se o próprio legislador atribui à


delação premiada em si uma categoria inferior ou
insuficiente, como se pode admitir que a sua cor-
roboração se dê com base em elementos que os-
tentam a mesma debilidade ou inferioridade? As-

560
sim sendo, não deve ser admitido que o elemento
extrínseco de corroboração de uma outra delação
premiada seja caracterizado pelo conteúdo de ou-
tra delação premiada. (2015, p. 29)

O segundo ponto levantado é de que a colaboração premiada,


pelo que está disciplinado na lei, é sempre voluntária, devendo o
colaborador estar acompanhado de defesa técnica para realizá-la
(ZANELLATO, 2016). A voluntariedade, de acordo com Brasileiro de
Lima (2016, p. 1045), decorre do processo de declaração de vontade
do colaborador, com plena consciência da realidade, e exercida com
liberdade. Neste ponto, o autor ressalva que essa liberdade é psíqui-
ca, por isso não encontra óbice o acordo com réu preso.
Aliás, observa-se no artigo de Moro que uma das principais es-
tratégias para persuadir a colaboração dos réus é a prisão preventiva,
pois “é uma forma de se destacar a seriedade do crime e evidenciar
a eficácia da ação judicial, especialmente em sistemas judiciais mo-
rosos” (2004, p. 59). O Juiz Federal ressalta que a prisão cautelar só
pode ser decretada quando presentes os requisitos objetivos, no en-
tanto, como se verá no momento oportuno, este argumento é ques-
tionável e muitos críticos têm caracterizado como forma de coação.
O terceiro aspecto polêmico é a obrigação do colaborador abdicar
do direito ao silêncio. Renato Brasileiro (2016, p. 1035) entende que
esse dever do réu que firma o acordo com a acusação é compatível
com o direito ao silêncio assegurado pela Constituição da República,
já que é uma escolha voluntária do próprio réu. O autor salienta que
há um erro de redação na lei, que dispõe “o colaborador renunciará
ao direito ao silêncio”, porquanto não se pode renunciar a um direito
fundamental. Logo, consoante Lima, trata-se de uma opção pelo não
exercício do direito ao silêncio, que pode, inclusive, ser utilizado a
qualquer momento, o que implicaria na quebra do acordo penal.

561
Do mesmo modo se posiciona Zanellato (2016, p. 117), mencio-
nando que o colaborador mantém o seu direito de calar-se, podendo
dele utilizar-se a qualquer momento, bastando querer. Todavia, seu
exercício é incompatível com o ato de colaboração; portanto, diante
da voluntariedade, a opção é do colaborador, não do Estado. Aliás,
finaliza a autora, “como já ocorre em qualquer persecução penal”.
Além do mais, Américo Bedê Junior e Alexandre Castro (2016)
salientam que o acordo é homologado pelo magistrado, o qual ve-
rificará a sua regularidade, legalidade e voluntariedade. Destaca-se
que o papel do juiz na colaboração premiada é passivo, ele não
deve imiscuir-se na negociação que antecede o acordo, sob pena de
violar o sistema acusatório. O juiz, sob esta ótica, deve ser garan-
tidor dos direitos fundamentais do colaborador, ao mesmo tempo
que deve zelar também pelos direitos do delatado.
Os autores que advogam a concordância da colaboração premia-
da com os direitos e garantias fundamentais citam ainda a recepção
pelo Supremo Tribunal Federal desse instituto, tomando como pa-
radigma a decisão do Habeas Corpus nº 127.483/PR (ZANELLATO,
2016) (LIMA, 2016). Nesse julgamento, a Corte Constitucional en-
frentou os principais óbices levantados pelos advogados do paciente
e, ao fim, manteve intacto o acordo de colaboração premiada. O Su-
premo confirmou os argumentos já referidos: não se pode condenar
apenas com o depoimento do delator, o dever do colaborador de
dizer a verdade não fere a Carta Magna, a prisão para fins de coagir a
delação, ou com fundamento no silêncio do réu, é ilegal.

2. PROBLEMATIZANDO A COLABORAÇÃO
PREMIADA
A despeito de seu uso cada vez mais frequente, a colaboração
premiada não é unanimidade no direito processual penal do país, pelo
contrário, muitos argumentos são levantados para criticar seu uso.
Talvez o mais reiterado deles seja o de que a delação premiada não

562
se coaduna com o sistema penal acusatório, resultando em violações
de direitos fundamentais da Constituição Federal. Outrossim, no dizer
de alguns autores, a delação premiada seria uma espécie de traição
institucionalizada, o que iria contra os valores morais da sociedade.

2.1. DELAÇÃO PREMIADA: PRÁTICA


MODERNA OU MEDIEVAL?
Adel El Tasse, no artigo Delação premiada: novo passo para um
procedimento medieval (2006), aduz que a introdução da delação
premiada como instrumento de produção de prova não é um avan-
ço legislativo, mas um retrocesso. O autor relembra que durante o
Santo Ofício a delação funcionou, junto da tortura, como um dos
principais instrumentos dos processos inquisitoriais. Tasse locali-
za a introdução da delação premiada no Brasil na época colonial,
com as ordenações filipinas, cujo Livro Quinto, Título CXVI previa
“como se perdoará aos malfeitores, que derem outros à prisão”.
Segundo El Tasse, a delação premiada gera sérios riscos à ga-
rantia de defesa do acusado, que se vê na posição contraditória
de acusador de si mesmo. De acordo com o autor, a presença da
delação premiada no ordenamento tem produzido uma exigência
do juízo para que o acusado confesse e colabore, sob pena de im-
posições de ônus processuais (TASSE, 2006).
O articulista afirma, ao contrário do que alegaram os defensores
da delação, que são cada vez mais frequentes as prisões e medidas
processuais hostis ao acusado para coagi-lo a colaborar, em flagran-
te contradição com o princípio da presunção da inocência. Soraia
da Rosa Mendes e Kássia de Souza Barbosa (2016, p. 84) contra-
põem-se à possibilidade de colaboração do réu preso, bem como à
prisão preventiva como método utilizado pela acusação para forçar
um acordo. De acordo com elas, não é possível falar de autonomia
de quem se encontra encarcerado, pois a prisão temporária é um
ato de subjugação do acusado para induzir uma eventual confissão.

563
Ademais, segundo Thiago Brugger da Bouza (2016), a nova
sistemática de possibilitar acordo entre defesa e acusação em
qualquer momento do processo, inclusive depois da prolação de
sentença, afasta sobremaneira a “livre vontade” do sujeito, já que
há real coação contra si. Ele identifica como ilegítimas as investi-
gações criminais que se guiam por meios heterodoxos, por atenta-
rem contra o Estado Democrático de Direito.
Além disso, consoante El Tasse (2006) o contraditório é aban-
donado, pois de um lado a defesa diz aquilo que a acusação quer
ouvir, e esta se satisfaz com o que é dito pelo colaborador. Não
há, nesta nova dinâmica, debate probatório mais profundo. José
de Assis Santiago Neto soma-se a esta crítica, dizendo que o cola-
borador não necessita dizer toda a verdade, porém somente aquilo
que o acusador deseja ouvir. Logo,

a delação acaba tendo como consequência a


formação do quadro mental paranoico, eis que a
confiança cega na versão de um delator, leva a for-
mação de uma hipótese a qual se passará a buscar
qualquer elemento que seja que a fundamente,
pouco importando a (re)construção dos fatos atra-
vés dos argumentos e provas. (2016, p. 41)

Para este autor, acreditar em delação premiada seria crer no


mito da verdade real, que dá suporte ao processo inquisitório.
Destarte, qualquer decisão que se baseia nesse instituto é incons-
titucional, por contrariar o modelo de processo penal previsto na
Constituição. Conforme Santiago Neto, o acordo penal em exame se
sustenta na “máxima de que os fins justificariam os meios, o que é
inaceitável para quem quer a construção do Estado Democrático de
Direito” (SANTIAGO NETO, 2016, p. 43).
A propósito, pode-se criticar também a forma como as colabo-
rações são expostas na mídia. Ora, Moro (2004) não tem pudor ao

564
elogiar o vazamento de informações conseguidas através de delações
à imprensa, a fim de pressionar outros possíveis investigados a co-
laborar com o Estado-acusador. O Juiz Federal parece minimizar o
risco que esse tipo de vazamento representa à imagem de alguém
que possivelmente não é nem acusado formalmente, muito menos
condenado com trânsito em julgado. A mídia, como pode-se perceber
nesses últimos anos, utiliza-se das delações para formular manchetes
sensacionalistas, reafirmando o processo penal do espetáculo.
Tem-se, então, um terceiro a quem não é dada a oportunidade de
se defender ou contraditar no bojo do processo que origina o acordo
penal, mas que é acusado publicamente com base nesse processo,
muitas vezes como se condenado fosse. Forma-se um consenso so-
cial quanto a sua culpa, pressionando-o a colaborar com a justiça.
Trata-se de flagrante inversão do ônus da prova, no qual a pessoa de-
latada deve então provar, contra a palavra do delator, que é inocente.

2.2. A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA
TRAIÇÃO
De acordo com Tasse, em nenhum momento pode-se considerar
o ato de traição como algo positivo. O avanço da delação premiada
respaldado por critérios utilitaristas tem derrubado barreiras éti-
cas importantes, ao premiar um comportamento tido como imoral.
Para este autor, “o que ocorre é um prêmio ofertado pelo Estado ao
agente que, além de criminoso, é traidor e desleal.” (2006, p. 273).
Apesar da distinção entre direito e moral, na visão do autor,
o sistema jurídico não poderia ir contra os postulados éticos que
permitem a prosperidade da comunidade (TASSE, 2006). Santiago
Neto (2016), outrossim, argumenta que a delação não passa de uma
traição, sendo esta vista como algo contrário aos valores sociais. No
entanto, com a colaboração premiada há uma verdadeira inversão
de valores, uma vez que o traidor passa a ser visto como peça cen-
tral da prova no processo judicial.

565
2.3 A EFICIÊNCIA CONTRA O
PROCESSO
O discurso mais recorrente para legitimar a barganha penal é a
sua eficiência; aliás, a colaboração, no discurso de seus defensores,
seria o único meio disponível para conseguir punir os crimes com-
plexos e desmantelar as organizações criminosas. Clara Maria Roman
Borges (2013) aborda esse fenômeno de maneira distinta dos autores
já citados nesse segundo capítulo. Segundo ela, a justiça criminal está
gradualmente implementando institutos negociais que já não se com-
patibilizam com a dicotomia entre processo inquisitório e acusatório.
Na visão da autora, as diferenças entre verdade formal ou pro-
cessual em contraposição à verdade real deixam de ter importância,
porque à sociedade já não importa diferenciar o real do imaginário. O
que importa na sociedade é estimular o consumo de soluções rápidas,
pois não reconhece mais a diferença entre as verdades e as falsidades:

Diante desta demanda, o processo penal que ser-


ve como instrumento à reconstrução da verdade de
um crime passa a ser visto como moroso, dispen-
dioso e, principalmente, ineficiente. A necessidade
de se buscar a verdade real para poder punir se
transforma num obstáculo à celeridade na aplica-
ção da punição, pois produzir provas exige tempo,
mesmo que na realidade sejam para o inquisidor
confirmar o seu prejulgamento. Por outro lado, a
necessidade de se buscar a verdade formal para en-
carcerar tem como pressuposto o cuidado com a
efetivação de direitos do acusado, o que igualmen-
te exige tempo (para cumprimento do ritual proce-
dimental garantista) e ainda diminui o número de
condenações. (2013, p. 158)

566
Assim, de acordo com Borges (2013), a política criminal se des-
dobra em dois fenômenos: o primeiro seria o encarceramento sem
processo dos economicamente desfavorecidos, confirmado pelo au-
mento exponencial dos presos provisórios. Por outro lado, quando
se fala da criminalidade organizada, a produção de provas seria
feita apenas no momento pré-processual para que a acusação se
municie de elementos de barganha para forçar um acordo e fazer a
parte desistir do processo. Como exemplo maior desse paradigma, a
autora cita os Estados Unidos, onde 90% dos processos penais não
são levados a julgamento, pois terminam em acordo.
Destarte, percebe-se que a produção de provas não teria o objeti-
vo de informar a convicção do juiz ou dos jurados sobre os fatos para
que seja proferida uma decisão judicial, todavia teria a finalidade de
pressionar o acusado, seja culpado ou inocente, a aceitar o acordo,
de forma que o Estado mostre que agiu de forma rápida e eficien-
te (BORGES, 2013). A colaboração premiada insere-se nessa lógica,
substituindo a desgastante tarefa de reconstituir os fatos sob judice
por meio de um acordo entre defesa e acusação, com a finalidade de
economizar tempo e os caros serviços do Estado, bem como punir o
maior número de pessoas no menor espaço de tempo possível.
Outro ponto ressaltado pela pesquisadora, é que o réu colabora,
aceitando uma punição tida como menos branda, para evitar uma
punição que seria, em tese, mais severa ao final do processo. A
promessa de punição funciona como tortura psicológica, uma bar-
ganha desleal do Estado para induzir à confissão.
Ela fundamenta parte de sua crítica em Sérgio Moccia:

Neste sentido, o citado processualista italiano


afirma que, ao abandonarmos a cultura da prova,
o processo perde aos poucos sua função cognitiva
e isso influencia na própria estrutura das infrações,
pois a justiça negocial quando sacrifica a exigência

567
de reconstrução própria do processo contraditório
neutraliza os imperativos de precisão da lei penal,
do limite de penas, alimenta o surgimento de fi-
guras penais de contornos evanescentes, construí-
das preferencialmente sobre o modo de ser do que
sobre condutas verificáveis. Em suma, passa-se de
um direito penal do fato a um direito penal do au-
tor. (BORGES, 2013, 159)

A autora menciona que nos Estados Unidos, “em nome da efici-


ência-celeridade a sociedade tem suportado o amargo gosto de ino-
centes que aceitam acordos para evitar a estigmatização decorrente
do longo processo e de culpados que imoralmente delatam seus
comparsas e recebem indulgências.” (BORGES, 2013, p. 160). No
Brasil, em sua visão, estamos seguindo um caminho semelhante,
porém sem termos a consciência disto.
Giacomolli e Vasconcellos identificam nesse fenômeno tendên-
cias de mercantilização do processo penal, com o risco deste “se
tornar um locus onde se dispõe da liberdade das pessoas como se
negocia com as coisas no direito privado” (2015, p. 1121). Isso de-
corre de um Estado neoliberal, no qual tudo é precificado, inclusive
a liberdade. No dizer dos autores, esse afã de eficiência-celeridade
fortalece os traços autoritários do poder punitivo estatal, ao fragili-
zar a dogmática processual penal e as suas garantias.
A justiça negocial, segundo Giacomolli e Vasconcellos, trans-
forma o processo penal em um market system, ou seja, na comer-
cialização da justiça criminal, através de acordos penais pautados
pelo “império da economia processual”. Esses novos mecanismos
propõem a flexibilização das garantias como remédio à morosida-
de judicial. Ademais, perde-se qualquer controle acerca da licitude
das provas, uma vez que o órgão acusador pode utilizar-se de
provas ilícitas para forçar um acordo, fugindo das limitações ju-
risdicionais. Como exemplo, firmou-se na jurisprudência estadu-

568
nidense a tese de que realização do negócio penal sana qualquer
vício anterior na produção probatória penal, sendo que o acusa-
do fica impedido de recorrer de qualquer nulidade pré-processual
(GIACOMOLLI; VASCONCELLOS, 2015).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A práxis jurídica do processo penal pós “Lava Jato” mostra
que as críticas feitas pelos acadêmicos garantistas e críticos da de-
lação premiada não são vazias de sentido. Com efeito, observou-se
abuso de prisões preventivas e métodos heterodoxos de investiga-
ção, como a escuta ambiental na tentativa de conseguir elementos
para barganhar acordo penal, conduções coercitivas sem prévia
intimação, interceptações telefônicas generalizadas, até mesmo em
escritório de advocacia. Além disso, a forma como o Judiciário di-
vulgou, propositalmente ou não, informações sigilosas, conversas
privadas, e até mesmo grampo telefônico de conversa da autorida-
de máxima da República, é digna de reprovação.
Ademais, percebe-se o Ministério Público transacionando com
amplos poderes, inclusive criando o regime domiciliar alheio à
qualquer previsão normativa, sem poder ser questionado por ter-
ceiros, uma vez que o Supremo Tribunal Federal assentou que a co-
laboração processual é negócio jurídico processual personalíssimo.
Dessa forma, o Ministério Público pode formular todas as regras do
jogo, é até mesmo capaz de direcionar 10% do valor restituído pelo
colaborador para si próprio, à revelia de qualquer disposição legal;
aliás, mesmo contra legem, pois de acordo com o Código Penal o
produto do crime deve indenizar à vítima. Quem poderia, neste
caso, fiscalizar o Parquet?
Percebe-se, por outro lado, na opinião pública, sentimentos con-
traditórios em relação à colaboração premiada. Certa parte da po-
pulação apoia o “combate à corrupção”, doa a quem doer, com o
uso dos instrumentos jurídicos que forem necessários. Em sentido

569
contrário, os mais desfavorecidos começam a esboçar uma crítica
quanto à seletividade do próprio instituto, utilizado em crimes finan-
ceiros para evitar a prisão de grandes empresários. Ora, sabe-se que
a obrigatoriedade da ação penal nunca impediu a seletividade do
sistema penal, que ocorre tanto pela criminalização primária reali-
zada pela norma penal, quanto pela secundária levada a cabo pelos
atores desse sistema. O que ocorre é uma continuação do processo de
seletividade, com novos métodos permeando a velha racionalidade.
A nosso ver, a colaboração premiada faz parte de uma tenta-
tiva de relegitimar o sistema penal brasileiro, o qual encontra-se
em crise há algum tempo. No entanto, não há nenhuma novidade
na política criminal formulada pelo Estado, mantendo-se o mesmo
punitivismo, ou direito penal máximo, que está fadado ao fracasso.
No lugar de se pensar uma política criminal voltada à responsa-
bilização de infratores, à socialização de marginalizados, pautada
no direito penal mínimo e respeito às garantias e direitos funda-
mentais, o que observamos é o recrudescimento das penas, maior
liberdade de ação do Ministério Público e das polícias, bem como
violação de liberdades fundamentais.
A grande questão está no sistema penal visto de modo amplo.
Não discordamos totalmente em premiar quem ajuda a recuperar
os objetos do crime para indenizar à vítima, nem tampouco aqueles
que se arrependem e se responsabilizam em corrigir os atos come-
tidos. No entanto, no mercado das delações, o que se vê é uma am-
pla discricionariedade e falta de parâmetros institucionais claros.
Ademais, não se pode negociar a liberdade no direito penal
como quem negocia mercadorias quaisquer no direito privado. A
flexibilização das garantias e direitos fundamentais em nome da
eficiência-celeridade do processo penal é porta aberta para o abuso
de poder do Estado e a potencialização do autoritarismo. A delação
premiada não é apenas meio de produção de prova, ela é um insti-

570
tuto negocial que se distancia da tradição processualista brasileira,
bem como mitiga o contraditório e a presunção de inocência.
Portanto, é necessário que as Instituições formulem políticas para
delimitar melhor os limites de atuação de seus membros, respeitando
sempre as leis e a Constituição. Outrossim, cabe à doutrina e à aca-
demia fazer a crítica dos abusos e ilegalidades cometidos, propondo
as alterações legislativas e jurisprudenciais que sejam necessárias.

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573
PROVAS EM PROCESSO PENA L: UM A
A N Á L I SE TOCANTE AOS ME IOS D E
RECO N STRU ÇÃO H ISTÓRIC A D OS
FATOS
Thomaz Muylaert de Carvalho Britto147

INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem por finalidade o estudo da teoria geral
da prova no processo penal. A prova, no Direito, é essencial para a
formação do convencimento do julgador, tendo em ótica um liame
a ser constituído entre uma decisão judicial e os elementos probató-
rios. Ademais, objetiva-se o estabelecimento de uma compreensão
tocante ao tema no sentido de cotejar o sistema penal e os seus fins
aos meios utilizados com o fito de legitimar uma condenação.
No âmbito do processo penal, as provas se comportam enquanto
os instrumentos a partir dos quais se torna possível a reconstrução do
fato histórico vivenciado no momento da ocorrência do crime. Ainda
que, conforme explana a doutrina, não seja possível a percepção exata
dos acontecimentos relativos à ocasião do crime, engloba uma possibi-
lidade de formação de certeza jurídica em detrimento da certeza fática,
sendo a própria certeza jurídica criticável ante a “elaboração jurídica”.
A doutrina e a jurisprudência discutem as repercussões de uma
condenação penal, as quais, além de se relacionarem ao indivíduo
condenado em si, envolvem-se com uma expectativa social no senti-
do de busca pela justiça. Assim sendo, pode-se averiguar um ponto
limítrofe a ser investigado no plano probatório em processo penal.

147. Graduando em Direito pela Universidade Federal Fluminense.

575
As provas, nesse sentido, funcionam como uma garantia dos
réus no processo penal, porquanto exigem um acervo mínimo
do Estado a fim de que se condene uma pessoa. Diante disso, o
processo penal deve ser lido à luz das garantias constitucionais
relacionadas ao mesmo, tendo em vista todos os dispositivos en-
cartados na Carta Magna de 1988 que vieram em resposta a um
período anterior, qual seja, a Ditadura Militar.
Existe uma discussão na doutrina de processo penal acerca da
taxatividade ou não do rol elencado pelo Código de Processo Pe-
nal. Em virtude de uma análise detida da Constituição, pretende-
-se entender qual é a opção mais acertada no que diz respeito ao
tema. Já é válido adiantar, todavia, que, se uma medida privilegia
o respeito aos princípios fundamentais, deve prevalecer em rela-
ção a uma interpretação com viés restritivo.
Objetiva-se, outrossim, no artigo em comento, uma percepção
sobre as provas ilícitas, as quais são trabalhadas sob duas pers-
pectivas: a do réu, o qual pode ter somente essa prova para se
defender em um processo penal e a do Estado, que não pode se
valer de uma prova ilícita com o fito de condenação do acusado.
Discute-se, também, a teoria dos frutos da árvore envenada, cujas
implicações são notórias na prática forense.
A pesquisa em epígrafe foi redigida com base nas obras dos
autores renomados na disciplina Processo Penal: Aury Lopes Jr.,
Eugênio Pacelli e Paulo Rangel, cujas opiniões contribuíram para
uma reflexão atenta mediante o tema, uma vez que, mediante a
observação de tais doutrinas, almeja-se a desconstrução de pensa-
mentos tangenciados pelos senso comum e a arquitetura de uma
problematização, a partir das provas, acerca do sistema penal.

1. TEORIA DAS PROVAS


Eugênio Pacelli (2014, p. 327) opta pela nomenclatura de “teo-
ria das provas” no processo penal, porque as teorias já pressupõem
uma generalidade a que se pretende a expressão “teoria geral das

576
provas”. Segundo o autor, pretende-se, no processo penal, uma re-
construção dos fatos investigados no processo, de tal forma que
eles se aproximem do suporte fático que o justifica.
Em que pese a dificuldade encontrada ao se tentar reconstruir o
fato delituoso, para o autor, a atividade estatal jurisdicional tem essa
função. Ainda que seja imperfeita, objetiva-se a construção de uma
verdade judicial. A certeza jurídica formada pode não corresponder
aos fatos. A finalidade do processo penal é a de se avizinhar da reali-
dade dos fatos. Em suas palavras, Eugênio Pacelli (2014, p. 327) expõe:

A prova judiciária tem um objetivo claramente


definido: a reconstrução dos fatos investigados no
processo, buscando a maior coincidência possível
com a realidade histórica, isto é, com a verdade dos
fatos, tal como efetivamente ocorridos no espaço e
no tempo. A tarefa, portanco, é das mais difíceis,
quando não impossível: a reconstrução da verdade.

Constata-se, a partir de uma análise doutrinária, a manifesta-


ção dos autores no sentido de que o processo penal se destina ao
encontro de uma verdade. Uma busca, assim sendo, é estabeleci-
da em função da reconstrução das circunstâncias vivenciadas pela
vítima e pelo acusado, assim como pelas testemunhas oculares,
por exemplo. Uma parcela dos autores critica, ainda, uma visão
do processo penal sob o parâmetro das ciências exatas, como se
fosse possível alcançar a exata materialidade acerca do que efeti-
vamente ocorreu quando da suposta prática do crime.
Uma problematização a respeito desse assunto se vislumbra
necessária, tendo em vista as diferentes conduções passíveis de
adoção no curso do processo penal. A produção de provas, nesse
diapasão, encontra respaldo constitucional e prático, eis que oca-
siona maior segurança jurídica ao réu do processo e reafirma o
ônus estatal perante a comprovação de uma eventual culpa. As pro-

577
vas servem, logo, como um instrumento de defesa, porquanto, a
despeito de poderem ser produzidas pela acusação, a Carta Magna
assegura o respeito ao contraditório pelo réu.
Sustenta Aury Lopes Jr. (2016, p. 457) que, no processo penal,
vislumbra-se a reconstrução histórica dos fatos, a qual se possibilita
por via dos meios de prova. As provas fomentarão a conclusão do
magistrado a respeito da ocorrência do fato histórico. O doutrina-
dor em apreço considera como recognitiva a atividade do juiz, na
medida em que o mesmo conhece o fato por intermédio das provas.
Estas são responsáveis pela construção do convencimento do juiz.
Nesta investigação, acompanha-se o posicionamento do men-
cionado autor acerca da atividade recognitiva do juiz, visto que o
magistrado conhece da matéria do processo penal por intermédio
das provas produzidas, não havendo que se falar em um afasta-
mento relativo às provas constituídas no processo. Inobstante se
reconheça a limitação do operador do Direito no que pertine à re-
construção histórica pretendida pelo processo penal, objetiva-se a
formação do convencimento do julgador com o fito de que se julgue
com fundamento nas evidências arroladas nos autos.
Para ele, os estudos históricos demonstram que não havia limi-
tes em busca de uma “verdade” no processo penal. Sendo assim, o
mito da “verdade real” está ligado ao sistema inquisitório e a práticas
que levam a atrocidades, uma vez que inocentes eram conduzidos à
confissão de uma conduta delituosa não cometida. Na busca da “ver-
dade real”, utilizam-se vários meios probatórios. O autor critica, to-
davia, que a procura pela “verdade substancial” pode comprometer o
juízo de valor a ser construído, sobretudo quando se circunscreve no
autoritarismo e se distancia do cumprimento das regras.
Quanto à busca pela “verdade real” no processo penal, cumpre
a inscrição da tese segundo a qual a referida verdade não pode
ser encontrada. Seria utópico reconhecer a reconstituição exata dos
acontecimentos associados à prática do crime perpetrado. Além

578
disso, os meios a serem utilizados com o objetivo de reconstrução
dos fatos devem observância aos dispositivos constitucionais, pois
não se permite, por exemplo, a utilização de provas forjadas para
condenar uma pessoa. O princípio da dignidade da pessoa humana,
relacionado a diversos outros valores insculpidos na Consituição,
merecem cumprimento no ordenamento jurídico.
Aury Lopes Jr. (2016, p. 490) se posiciona favoravelmente à
verdade formal ou processual, a qual é obtida pela observância a
regras e procedimentos e condicionada, logo, às garantias da de-
fesa. O processualista em tela elenca quatro limites impostos pela
verdade formal, quais sejam: a acusação deve se pautar nas nor-
mas, precisa se embasar em provas produzidas nos ditames legais,
deve ser passível de oposição e deve preponderar a presunção de
inocência em caso de dúvida. A verdade processual ou formal se
subdivide em fática e jurídica. A primeira congrega o histórico, ao
passo que a segunda engloba uma classificação.
Ele corrobora a tese de que a verdade real é inalcançável, por-
que envolve um fato passado e cita Carnelutti, afirmando que não
cabe uma discussão relativa à escolha de uma verdade material
(real) ou formal (processual), mas sim a substituição da ideia de
verdade pela de certeza jurídica.
O contraditório, responsável pelo conhecimento a respeito dos fa-
tos sobre os quais um indivíduo é acusado e pela concessão de oportu-
nidade de contra-argumentação sobre as provas e os fatos alocados no
bojo processual, se afigura uma garantia indispensável para a condu-
ção de uma condenação pautada no teor constitucional. O Código de
Processo Penal deve ser lido à luz dos ditames constitucionais, assim
como dispõe a constitucionalização do aludido diploma legal. A trans-
posição de um Código elaborado em uma realidade completamente
distinta da que se nota hoje precisa ser feita diariamente e com base na
comparação patente perante a Constituição da República.

579
Lopes Jr. concorda com a opinião de Carnelutti sobre o afasta-
mento da noção de verdade, todavia, diverge quanto à sua subs-
tituição pelo conceito de “certeza”. Concluiu, sobre o tema, que
a verdade não deve ser o objetivo do processo penal. Elabora-se
uma decisão judicial, a qual foi formulada com base nas provas e
no procedimento em contraditório. Frise-se que o autor não nega
a verdade. Ele vincula a legitimidade da decisão ao respeito diante
do procedimento em contraditório.
Eugênio Pacelli (2014, p. 332) escreve que o princípio da ver-
dade real, em nome da procura da verdade, legitimava o exercício
de práticas autoritárias pelos agentes estatais, por exemplo. O pro-
cessualista explana que, distintamente do processo civil, o processo
penal não aceita uma verdade formal (decorrente de presunção),
exigindo uma materialização da prova (verdade material).
A doutrina, conforme se pôde sistematizar, observa o princípio
da verdade real enquanto um postulado em razão do qual se utili-
zavam as autoridades estatais para a prática de condutas abusivas
e, muitas vezes, irracionais a fim de conseguir a condenação de um
réu. A constitucionalização do Direito Processual Penal se mede,
também, pela capacidade que as autoridades públicas devem ter de
conduzir o processo com o respeito aos princípios e garantias cons-
titucionais, sendo imperioso aduzir que, caso não haja o devido
zelo tocante a esses postulados, pode-se invocar nulidade dos atos
processuais eivados de vícios.

2. CONCEITO E OBJETO DAS PROVAS


Paulo Rangel (2015, p. 461) conceitua a prova como o arcabou-
ço instrumental manejado pelos sujeitos processuais no intuito de
comprovar os fatos da causa. Nessa senda, é cediço que escolham
os meios a partir dos quais comprovem as suas alegações. Aury
Lopes Jr. (2016, p. 457) conceitua a prova como o meio a partir do
qual se reconstrói o fato histórico.

580
Por meio das conceitos trazidos pela doutrina processualista penal,
assevera-se que as provas podem ser compreendidas enquanto instru-
mentos em face dos quais as partes podem provar as suas versões acer-
ca do acontecimento narrado. Ademais, elas servem como um meio de
refutar as alegações da parte contrária sobre o cometimento do crime.
Segundo Paulo Rangel (2015, p. 462), o principal objetivo ou
finalidade da prova é a construção do convencimento do juiz. O
destinatário mais relevante das provas é o magistrado, o qual deve
se convencer da veracidade dos fatos alegados pelas partes, em que
pese o interesse das partes nessas provas. O exercício do duplo grau
de jurisdição é motivado pela irresignação das partes quanto à de-
cisão judicial proferida a despeito do suporte probatório produzido.
Consoante ventilado no atinente à finalidade da prova, prefere-se
adotar o posicionamento segundo o qual a prova não se destina somen-
te ao juiz, mas igualmente às partes do processo penal. Distancia-se,
com a devida vênia, de um ângulo hierárquico com o propósito de, em
função do contraditório e da ampla defesa, conferir às partes uma im-
portância maior do que a geralmente lhes impõe a doutrina tradicional.
O objeto da prova, de acordo com o doutrinador, é o aconteci-
mento, a coisa, o fato que precisa ser conhecido pelo magistrado com
o fim de que elabore um juízo de valor. No processo penal, ainda
que os fatos não sejam controvertidos, precisam ser provados, na
forma dos princípios do devido processo legal e da verdade proces-
sual. Cumpre salientar que confissão do réu não tem valor absoluto.
Distinguem-se objeto da prova e objeto de prova. O objeto de
prova expressa que as coisas ou os fatos têm que ser provados. Os
fatos notórios não precisam ser provados, como saber que o dia 25
de Dezembro é Natal (o homem médio sabe). Pacelli (2014, p. 328)
considera que a finalidade da prova é a de se reconstruir a verdade,
ou seja, reconstruir os fatos constantes do processo.
Para o doutrinador em apreço, logo, pretende-se, no processo
penal, o alcance da certeza jurídica, com a qual se concorda, neste

581
trabalho, sob o ângulo didático, na medida em que a certeza, no
plano da língua portuguesa, abarca uma associação à exatidão, ou
seja, a uma esfera dotada de plenitude em uma afirmação. Tecnica-
mente, opta-se, concessa venia, pelo termo “elaboração jurídica”,
porque a condenação se pauta em uma construção, lastreada em
provas, dos acontecimentos narrados pela parte que acusa, o Mi-
nistério Público, em regra, razão pela qual se advoga por um termo
mais próximo à prática forense.

3. MEIOS DE PROVA
Aury Lopes Jr. (2016, p. 469) diferencia meio de prova de meio
de obtenção de prova. Enquanto o meio de prova tem por objetivo
direto de convencer o julgador por intermédio de seu conteúdo,
como a prova testemunhal, o meio de obtenção de prova é definido
como um caminho a ser percorrido a fim de se obter a prova dese-
jada, como a interceptação telefônica e a delação premiada.
Paulo Rangel (2015, p. 463) conceitua os meios de prova como
o caminho utilizado pelo juiz para conhecer a verdade dos fatos.
Não é imprescindível a sua previsão legal. São exemplos de meios
de prova o depoimento da testemunha, a inspeção judicial e o indí-
cio. Se o meio de prova for moralmente legítimo e não estiver pre-
visto em lei, pode ser empregado. Na hipótese de o meio de prova
não ter respaldo legal, é chamado de prova inominada.
Aury Lopes Jr. (2016, p. 505) enuncia que, em regra, somente as
provas previstas no Código de Processo Penal podem ser admitidas
no processo penal. Ele apresenta, assim, a inspeção judicial como
um exemplo de prova inominada, ou seja, não prevista nos diplomas
legais. As suas razões são no sentido de que, se respeitam as garan-
tias e direitos fundamentais, podem ser aplicadas no processo penal.
Sobre a taxatividade das provas mencionadas no bojo do Có-
digo de Processo Penal, perfilha-se o entendimento do doutrina-
dor em exame no ínterim de tornar o rol trazido pelo diploma pro-

582
cessual penal como exemplificativo. São sopesados, com o fito de
fundamentar tal conclusão, a segurança jurídica, a presunção de
inocência e a ampla defesa. Se o caso fosse analisado somente com
fulcro na segurança jurídica, uma possível tese seria a de definir o
rol do Código na condição de taxativo, eis que, se não houve previ-
são expressa, não haveria que se invocar uma permissão implícita.
Por intermédio da conjugação entre a ampla defesa e a pre-
sunção de inocência, busca-se considerar muitos meios de prova
no intuito de permitir a defesa do acusado. Portanto, em que pese
não constar uma previsão expressa sobre determinada prova, seria
passível de adoção uma prova decorrente dos costumes, da prática
judiciária. Não se pode olvidar, ante o exposto, dos meios de defesa
a serem mobilizados pelo réu em sua defesa.

4. PROVAS ILÍCITAS
Quanto às provas ilícitas, o art. 50, VI, da Carta da República
de 1988, preconiza que “são inadmissíveis, no processo, as provas
obtidas por meios ilícitos”. O art. 157, caput, do Código de Processo
Penal, corrobora o dispositivo supra.
Pacelli (2014, p. 345) patrocina o entendimento de que o reco-
nhecimento das provas ilícitas coíbe a prática de condutas arbitrá-
rias pelos agentes responsáveis pela produção de provas na seara
acusatória. A proibição em comento tutela os direitos e garantias
individuais dos réus no processo penal.
As condutas arbitrárias engendradas pelos agentes estatais pas-
sou a se sujeitar a um controle mais eficaz em decorrência do con-
trole legal das provas, assim como asseverou o autor em tela. Pela
teoria dos frutos da árvore envenenada, uma nulidade enseja diver-
sas outras nulidades, primando-se, destarte, por um produção de
provas hígida e responsável tanto para acusação como para defesa.
A vedação se direciona aos meios empregados, bem como aos
resultados obtidos. O art. 157 do Código de Processo Penal instituiu

583
que as provas obtidas por meios ilícitos devem ser desentranhadas
dos autos, sob pena de, caso permanecessem nos mesmos, prejudi-
car o convencimento do juiz acerca dos fatos.
A título exemplificativo, citam-se as gravações ambientais, que são
feitas no meio ambiente, podendo ser clandestinas (apenas um dos
participantes da conversa sabe ou nenhum sabe) ou autorizadas (ciên-
cia dos interlocutores sobre a gravação ou por decisão judicial). Em re-
gra, as gravações clandestinas não são admitidas no processo, vez que
violaram os direitos à privacidade e à intimidade dos interlocutores.
O Supremo Tribunal Federal decidiu pelo reconhecimento de
validade da prova produzida pela gravação de conversa telefônica,
inobstante apenas um dos participantes da conversa saiba da gra-
vação, desde que relevante interesse jurídico o ampare e não haja
reserva legal de sigilo.
Paulo Rangel (2015, p. 474) distingue a prova ilícita da prova
ilegítima. A prova ilícita consubstancia violação a direito material, ao
passo que a prova ilegítima abarca o desrespeito ao direito processu-
al. São exemplos de provas ilícitas as obtidas por tortura e com vio-
lação a domicílio (art. 50, III e XI, da Constituição Federal). O depoi-
mento do padre contra a sua vontade é exemplo de prova ilegítima.
O autor aduz, também, as chamadas provas irregulares (a lei
permite que sejam obtidas, contudo, determinadas formalidades
precisam ser respeitadas. Para que configure prova irregular, não
houve a observância a tais formalidades). Um exemplo de prova ir-
regular é a proveniente do mandado de busca e apreensão expedido
sem o fim da diligência.
O aludido doutrinador subdivide a prova ilegal em ilícita, ilegítima
e irregular. A classificação de Aury Lopes Jr. (2016, p. 520) se restringe
às provas ilícitas (quebra ilegal de sigilo bancário) e ilegítimas (junta-
das intempestivamente). Paulo Rangel (2015, p. 476) disserta sobre a
teoria dos frutos da árvore envenenada. O Supremo Tribunal Federal
superou o entendimento anterior e consagrou a teoria em exame. Em

584
julgados recentes, a Suprema Corte tem entendido que, caso tenham
sido colhidas outras provas (e não somente a interceptação telefônica
desprovida de autorização judicial), a arguição de contaminação não
merece prosperar (teoria da prova absolutamente independente).
A reforma da Lei n. 11.690 de 2008 foi criticada por Paulo Ran-
gel, porque conferiu poderes discricionários ao juiz. Caberia a ele,
de acordo com o novo dispositivo legal, interpretar o alcance das
provas obtidas por meios ilícitos ou, em outras palavras, o nexo
causal pode ser verificado pelo juiz, ensejando uma restrição não
autorizada pela Constituição. A Carta Magna de 1988 proíbe as pro-
vas obtidas por meios ilícitos e, nesse sentido, não compete ao ma-
gistrado limitar a sua abrangência por meio da hermenêutica.
A proibição da prova obtida por meio ilícito é relativa (em favor
do réu). Na Alemanha, conforme explica o referido processualista
penal, adota-se a teoria da proporcionalidade. O réu de um proces-
so penal que tenha interceptado uma ligação telefônica sem autori-
zação judicial estaria em estado de necessidade e, desse modo, agiu
com o fim de assegurar sua liberdade de locomoção.
As interceptações telefônicas e de dados são tratadas por Eu-
gênio Pacelli (2014, p. 350), que adota a premissa segundo a qual
nenhum direito é absoluto. O próprio Código Penal prescreve a pos-
sibilidade de quebra do sigilo de correspondência, desde que com
autorização judicial (art. 240). O doutrinador de processo penal não
vislumbra vício de constitucionalidade na Lei n. 9.296 de 1996. O
Supremo Tribunal Federal compreendeu pela possibilidade de reno-
vação do prazo de quinze dias de interceptação quando a investiga-
ção for complexa e o procedimento for indispensável. A quebra do
sigilo dos dados telefônicos também demanda autorização judicial.

5. SISTEMAS DE VALORAÇÃO DAS PROVAS


O sistema de valoração das provas se ramifica em sistema das
provas irracionais (sistema das “ordálias”), sistema da prova legal

585
ou da certeza moral do legislador (prova tarifada), sistema da ín-
tima convicção ou da certeza moral do julgador e sistema do livre
convencimento do juiz ou da persuasão racional do julgador.
O sistema das provas irracionais (sistema das ordálias) pode ser
descrito como um sistema no qual as provas eram condicionadas a
procedimentos desconexos da razão, do conhecimento racional. Por
exemplo, é válido mencionar a prova em que o indivíduo era submeti-
do à brasa e, caso não se queimasse, Deus o teria perdoado ou não te-
ria cometido o crime ao qual lhe imputaram. A ordália era uma espécie
de prova que pretendia averiguar a inocência de um cidadão e estava
associada à força da natureza ou a expressões religiosas, divinas.
Aury Lopes Jr. (2016, p. 490) expõe que o sistema da prova legal
ou da certeza moral do legislador é aquele em que prevalece uma
valoração hierarquizada da prova, a qual estava prevista na própria
lei, independentemente da análise do caso concreto. A confissão
era percebida como uma prova absoluta.
O sistema da íntima convicção ou da certeza moral do julgador é
dissecado por Paulo Rangel (2015, p. 516) enquanto a atribuição con-
cedida ao magistrado da análise acerca das provas, tendo o legislador
conferido ao juiz liberdade para decidir em consonância, única e ex-
clusivamente, com a sua consciência. Não é necessária a fundamenta-
ção da decisão, posto que o julgador pode decidir somente com base
em sua íntima convicção. Ele pode julgar com fundamento em expe-
riências pessoais. Esse sistema se encontra no Tribunal do Júri, com
a ressalva do processualista em tela de que os jurados se manifestam
na sala secreta. A crítica desse sistema é a de que ele fornece elevada
discricionariedade ao juiz, acarretando, nesses moldes, arbitrariedade.
O sistema do livre convencimento do juiz ou da persuasão ra-
cional do julgador (consagrado no art. 155, CPP), segundo Aury
Lopes Jr. (2016, p. 492), compreende o livre convencimento, o qual
é mais restrito do que propriamente livre. Não deve haver espaço
para o decisionismo do juiz. O julgamento a ser feito deve se basear

586
no sistema jurídico, assim como no conjunto probatório acostado
aos autos do processo. A fundamentação das decisões judiciais ser-
ve como uma justificativa para a sociedade e para o acusado.
Há uma limitação ao livre convencimento do juiz consignada
na forma da Lei n. 11690 de 2008: em regra, a condenação não pode
ser fundamentada apenas em provas produzidas em sede policial
(durante o inquérito policial).

6. PRINCÍPIOS APLICÁVEIS A PROVAS


No que diz respeito aos princípios aplicáveis às provas, faz-se
mister mencionar os princípios da comunhão da prova, da oralida-
de e da concentração. O princípio da comunhão da prova, de acor-
do com Paulo Rangel (2015, p. 468), significa que a prova, uma vez
levada ao processo, pertence a todos os sujeitos processuais, com a
exceção das provas testemunhais (Lei n. 11.719 de 2008). A gestão
de prova, apesar disso, é desempenhada pelo magistrado.
O princípio da oralidade, por sua vez, incentiva a produção
de prova oral, de tal forma que, quanto aos depoimentos de tes-
temunhas (art. 204), o Código de Processo Penal obtempera pela
oralidade do depoimento. Segundo o princípio da concentração, a
produção de provas deve, quando possível, concentrar-se em um
único momento: em audiência, malgrado a possibilidade de, ha-
vendo fundamento, serem produzidas em outras circunstâncias,
conforme se depreende do art. 400 do CPP.
O princípio da presunção de inocência é um postulado que
se dimensiona pela concepção de acordo com a qual não de pode
presumir a culpabilidade do acusado no processo penal, ou seja,
até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, não
permite a Constituição que um indivíduo seja tido como culpado.
Saliente-se que Aury Lopes Jr. (2016, p. 473) identifica o aludido
princípio como aplicável às provas.
O autor, como se apreende, interpreta o princípio da presunção
de inocência por meio de duas dimensões, as quais englobam o

587
interior e o exterior do processo. As dimensões dizem respeito às
partes do processo e da noção social em face do acusado.
O contraditório e a ampla defesa também podem ser utilizados
na qualidade de princípios aplicáveis às provas. O contraditório,
assim como já se acostou, representa uma das garantias constitu-
cionais mais consideráveis no plano do processo penal. Tal garan-
tia propicia um embate entre as partes no concernente às provas,
ensejando uma compreensão melhor do juiz em relação aos fatos
narrados na denúncia apresentada pelo Ministério Público ou na
queixa-crime oferecida pela vítima.
O verbo contraditar remete a uma manifestação contrária so-
bre uma certa opinião, reporta-se a uma contestação lato sensu
relativa aos fatos alegados por uma das partes. Congrega o mo-
mento no qual se assegura a autodefesa, posto que materializa
uma divergência entre versões dos acontecimentos.
A ampla defesa, também prevista constitucionalmente, asse-
gura que as partes produzam um acervo probatório para sustentar
os seus pontos de vista no processo, ressalvado, contudo, o res-
peito aos ditames e limites apresentados pela lei. Em razão dis-
so, justifica-se a interpretação em função da qual o rol de provas
acostado no Código de Processo Penal é exemplificativo.

CONCLUSÃO
Os temas trabalhados, nesta investigação, foram o conceito
de prova, a finalidade e o objeto de prova, os meios de prova e as
provas ilícitas, os sistemas de valoração das provas e os princípios
aplicáveis às provas.
O conceito de prova contempla um conjunto de conhecimento
necessário para a noção de que se trata de uma prova em processo
penal. A prova é um meio a partir do qual se pode estruturar acon-
tecimentos no intuito de que formem o convencimento do magis-
trado acerca da narrativa constantes dos autos.

588
Pelo princípio do in dubio pro reu, caso o convencimento do
juiz não esteja direcionado para a condenação do acusado em ra-
zão, por exemplo, de dúvida a respeito das provas produzidas no
processo, a sua decisão deve se direcionar para a absolvição do réu.
Constitucionalmente, as provas ilícitas não podem ser admiti-
das no processo penal. Contudo, a partir de uma mitigação a essa
regra, a jurisprudência sustenta que é permitida a sua utilização
em circunstâncias nas quais não seja possível o réu se defender de
outra maneira, ou seja, lhe resta apenas aquela prova, tida como
ilícita, com o escopo de comprovação de inocência.
Nesse ínterim, são colocados em jogo três preceitos: o da ve-
dação à presença de provas ilícitas no processo, a presunção de
inocência e a ampla defesa. Mediante tal sopesamento, consignou-
-se, jurisprudencialmente, que o intuito condenatório do Estado
não pode prevalecer sobre o único meio probatório cabível pelo
acusado. No caso em análise, o direito à liberdade e a presunção
de inocência se sobrepõem à vontade do Estado de fornecer uma
resposta aos crimes pretensamente cometidos pelo acusado.
Nota-se, assim, uma oportunidade do acusado de, mesmo com
base em uma prova ilícita, materializar o direito à ampla defesa diante
dos únicos meios que possui. Debate-se, na doutrina, o grau de inci-
dência da jurisprudência em questão. Sustenta-se, neste artigo, uma
opinião que se paute nos princípios da razoabilidade e da proporciona-
lidade, ou seja, aquela que se aproxime do parâmetro constitucional.
Portanto, com observância estrita aos temas em apreço, obser-
va-se que as provas englobam diferentes debates na pesquisa jurídi-
ca, como as hipóteses de admissibilidade de provas ilícitas.
Quanto aos sistemas de valoração das provas, o sistema das
provas irracionais se opõe aos dispositivos constitucionais da atu-
alidade, visto que busca a condenação a qualquer custo, de tal
forma que ela se baseia na sujeição do acusado a situações que
não conseguem comprovar o cometimento do crime. Além disso,

589
muitas das práticas mobilizadas pelo sistema em tela se dissociam
do respeito aos direitos humanos, razão pela qual os anseios his-
tóricos extinguiram o referido sistema.
O sistema de livre convencimento do julgador é questionado
pela doutrina, mas um entendimento coerente é aquele que reco-
nhece as suas vantagens, em que pese a existência de pontos ne-
gativos. O convencimento a ser formado deve se justificar pelas
provas produzidas no processo penal, servindo as provas como
garantia constitucional dos acusados. Por derradeiro, depreende-
-se que as provas consubstanciam, ao mesmo tempo, um meio que
enseja a condenação, mas uma garantia na perspectiva segundo a
qual, caso sejam insuficientes, não devem ensejar condenação.
O sistema penal, na condição probatória, nesse sentido, respal-
da uma condenação em virtude de sua finalidade instrutória. Em
que pese a importância das provas no sistema penal, a sua carência
em determinado processo deve ser interpretada por intermédio do
garantismo, assim como pela postulado da presunção de inocên-
cia. Portanto, a legimidade para condenar um acusado não pode se
distanciar dos preceitos constitucionais, os quais a fundamentam.

BIBLIOGRAFIA
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de
outubro de 1988.

BRASIL. Decreto-lei n0 3.689, de 3 de outubro de 1941.

LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 13 ed. São Paulo: Sarai-
va, 2016.

OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 18 ed. São


Paulo: Atlas, 2014.

RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 23 ed. São Paulo: Atlas, 2015.

590
SELETIVIDADE DO SISTEMA PENAL:
GARANTIAS DO PROCESSO, POBREZA
E A SÚMULA Nº 70 DO TJRJ
Tiago Mascarenhas da Costa Marques148

INTRODUÇÃO
A construção de mecanismos de controle social perpassa a
humanidade desde seus momentos mais remotos. Desde que nos
organizamos em sociedade, manter a coesão sempre foi vital para
a espécie. Nesse mesmo ínterim, a história demonstra que a gru-
pos de dominação utilizaram-se de técnicas diversas para manter
seus privilégios e reproduzir o sistema.
Se o direito, com seu poder coercitivo se funda em tais pilares,
o direito penal, como meio de tutela dos bens mais elementares da
sociedade, estabelecendo punições severas a quem o viola, torna-se
uma das mais poderosas ferramentas de controle social.
Se no campo teórico é possível respaldar tal conjuntura, a re-
alidade que se descortina frente aos nossos olhos é de que não é
possível tratar o tema com ingenuidade. Nossos agentes públicos,
seja na elaboração de leis, seja na sua aplicação estão permeados
por conceitos e lugares de fala que selecionam os indivíduos poten-
cialmente criminosos, e os condenam solapando todas as garantias
do devido processo legal.
O presente trabalho, através da exposição de um caso de recen-
te julgamento, busca desvelar parte dessa estrutura, seja na atua-

148. PPGH UNIRIO. Email: [email protected]

591
ção dos elementos repressivos, seja sobretudo no agir do sistema
judiciário, que respalda as condutas policiais, consubstanciando a
jurisprudência, atropelando as garantias processuais constitucio-
nais e penais, com o fim último de atender as demandas sociais,
subjugando os indivíduos.

A HISTÓRIA DE FERNANDO
Sábado à noite, Fernando1 e sua esposa, moradores de uma co-
munidade da Zona Norte do Rio de Janeiro, saem de casa para
participar de uma comemoração, o aniversário de 1 ano de sua
sobrinha, que residia a poucas quadras de seu domicilio. Como
toda festa do estilo, bexigas, doces, guloseimas, um momento de
alento frente as dificuldades cotidianas. Uma vida difícil de lutas e
sofrimentos acompanha nosso protagonista desde a infância. Sua
história não é assim, tão diferente de tantas outras. Sua cor, sua
classe social, suas oportunidades de vida poderiam ser associadas a
um incontável número de moradores pobres da capital fluminense.
Por volta das 23 horas, Fernando e sua esposa que carregava
o primeiro filho do casal retornam para sua residência. No cami-
nho, no entanto, resolvem parar em um pequeno bar e mercearia
que se localiza na esquina da ruela de acesso a seu lar. No dia
anterior, resultado de boas gorjetas em seu trabalho, nosso jovem
tinha faturado um pouco mais que a média, então, aproveitou a
oportunidade para quitar algumas dívidas que haviam sido feitas
no estabelecimento, e comprar cigarros. A máquina de karaokê
estava funcionando, a música animada e as gargalhadas dos fre-
quentadores animavam a noite no local.
A esposa de Fernando, como toda gestante próxima do clímax
estava acometida de dores musculares e necessidades fisiológicas
fortes. Assim, enquanto seu esposo seguia ao bar, tomou o rumo
da sua residência, sem imaginar o rumo que suas vidas tomariam
nos instantes seguintes.

592
Na ruela acima da que dava acesso a entrada de seu imóvel
ocorria um flagrante. Em operação montada pela Polícia Militar do
Estado, em poucos instantes, várias usuários e traficantes corre-
ram em fuga pelo beco. Momento exato em que Fernando o subia
em direção à sua residência.
As horas avançaram, e a esposa de nosso personagem, já aflita
recebeu então uma ligação. Era da Delegacia de Polícia, e Fer-
nando informava que havia sido preso, e indiciado por tráfico de
drogas, pois segundo os policiais, ele portava uma sacola com
entorpecentes destinado à venda.
Denunciado pelo Ministério Público como incurso nas penas
do art. 33 da Lei 11.343/06, julgou o juízo da 19ª Vara Criminal
da Comarca da Capital, procedente a pretensão punitiva estatal
condenando o mesmo às penas de 5 anos de reclusão em regime
inicial fechado e 500 dias-multa.

ÔNUS PROBATORIO NO PROCESSO PENAL


E A SÚMULA Nº70 TJRJ
Fernando, Carlos, Roberto, Marilza, incontáveis nomes pode-
riam ser elencados para iniciar esse trabalho. O leitor com certeza,
poderia trazer à baila dezenas de outros personagens ao debate.
Ao final da instrução criminal, apesar da combativa defesa ter
apresentado provas contundentes da inocência do denunciado, a
sentença sustentou:

(...)que os depoimentos dos policiais militares


colacionados pela acusação eram coerentes e pre-
cisos para fundamentar um juízo condenatório,
entendimento este, em consonância ao apregoado
na Súmula nº 70 do Tribunal de Justiça do Estado
do Rio de Janeiro.2

Tal sustentação nos leva a alguns apontamentos.

593
É cediço que o processo penal brasileiro se alicerça no sistema acu-
satório, sendo da competência privativa do Ministério Público a tarefa
de provar que a conduta do réu se adéqua ao tipo penal incriminador.
Nessa esteira, não se aplica as regras de ônus da prova relativas ao
processo civil, onde cabe ao autor a prova constitutiva de seu direito e
ao réu a prova dos fatos impeditivos, modificativos e extintivos.
Assim, se extrai que o princípio da inocência, consectário lógico
do Estado Democrático de Direito, atribui ao órgão ministerial a
função de provar todos os elementos essenciais do tipo penal, tendo
a defesa, tão-somente, o dever de contradizer tais fatos.
Nesse sentido temos a maestria de Aury Lopes Jr (2016, p.502),
a nos ensinar:

(...)a partir do momento em que o imputado é


presumidamente inocente, não lhe incumbe pro-
var absolutamente nada. Existe uma presunção
que deve ser destruída pelo acusador, sem que o
réu (e muito menos o juiz) tenha qualquer dever
de contribuir nessa desconstrução (direito de si-
lencia – Nemo tenetur se detegere).

FERRAJOLI (2013, p. 35) esclarece que a acusação tem a carga


de descobrir hipóteses e provas, e a defesa tem o direito (não de-
ver) de contradizer com contra-hipóteses e contra-provas. O juiz,
que deve ter como hábito profissional a imparcialidade e a dúvida,
tem a tarefa de analisar todas as hipóteses, aceitando a acusatória
somente se estiver provada e, não a aceitando, se desmentida ou,
ainda que não desmentida, não restar suficientemente provada.
É importante recordar que, no processo penal, não há distribui-
ção de cargas probatórias: a carga da prova está inteiramente nas
mãos do acusador, não só porque a primeira afirmação é feita por

594
ele na peça acusatória (denúncia ou queixa), mas também porque
o réu está protegido pela presunção de inocência.
No campo doutrinário, tais palavras, assim como as garantias
Constitucionais a que aqui se faz referência são lidas como palavras
de ordem, inflamam discursos repetidos por nobres professores e
oradores nas redes sociais. Na pratica, no entanto, a realidade passa
muito distante.
A Súmula nº 70 do TJRJ assim dispõe: “O fato de restringir-se
a prova oral a depoimentos de autoridades policiais e seus agentes
não desautoriza a condenação”. Sua edição demonstra como nos-
sa jurisprudência tem se afastado de tal entendimento, cujo exem-
plo mais recente, foi a lamentável decisão do STF,3 que solapou o
preceito constitucional “ninguém será considerado culpado sem o
trânsito em julgado de sentença penal condenatória.” 4
Ora, no tocante à produção de provas, na vigência de um estado
Democrático de Direito, dar peso maior a um determinado depoi-
mento por critérios de função ou exercício de cargo ou profissao,
em detrimento de outra narrativa, sustentada por quem não possua
tais prerrogativas é conduta que não pode ser admitida.
Não haveria dúvidas, então, que toda e qualquer condenação
que se baseasse única e exclusivamente nos depoimentos dos agen-
tes policiais, poderia ser questionada. Em que pese, tais agentes te-
rem suas ações pautadas na fé pública, utilizar suas narrativas como
detentoras absolutas de verdade apenas pela condição de quem as
profere, em detrimento inclusive, de outras provas que as contrarie,
configura grave violação às garantias do devido processo legal.
A bem da verdade, conforme já exposto, em sede criminal, o
ônus probatorio é da acusação. Na presença de provas que descon-
troem a versão do acusador, ou que lançam minimamente dúvida
sobre os mesmos, outra não pode ser a conduta do julgador que não
seja a absolvição, nos termos do próprio Código de processo Penal.
No caso em tela, assim como em incontáveis a ele similares,
existe ainda um fator que precisa ser considerado. Ora, os policiais

595
que realizaram a apreensão, o flagrante, são os maiores interessa-
dos na condenação do denunciado, e suas narrativas jamais serão
isentas dessa intenção. Seu compromisso com a verdade, estará
sempre atrelado aos limites de seu interesse, caminhando contra a
busca da verdade pelo julgador.
No caso aqui exemplificado, em síntese, os policiais alegavam
que Fernando portava uma sacola preta, e nesta haveria material
entorpecente. O réu alegava que na sacola havia cigarros e um pote
de doce que compara para a esposa. A suposta sacola havia sumido
durante a confusão. Vizinhos cercaram em defesa do réu. Por fim,
ainda havia uma câmera de segurança do bar como prova que mos-
trava que não havia entorpecente em poder do denunciado. Ainda
assim, a palavra dos agentes da PMERJ foi entendida como “ sufi-
ciente conjunto probatório apto a embasar o decreto condenatório.”
Em linha diversa, excluir o depoimento dos policiais por com-
pleto, a priori também seria incoerente. Poderia se sustentar que
são conhecidos um incontável número de casos onde os agentes
da polícia forjaram provas, situações, enfim. A mídia denunciou
muitos desses nos últimos anos, que tiveram efeito de verdadeiro
choque na população. Todavia, tal exclusão abstrata e sem crité-
rios seria exatamente apregoar o oposto da Súmula, o que enten-
demos não seria a melhor opção.
Se já existe entendimento acertado que nem mesmo o inquérito
deveria ser utilizado como elemento de prova, e portanto nem mes-
mo deveria ser apensado aos autos pelo seu condão de influenciar
o entendimento do juízo, a presença dos agentes policiais como
testemunhas de acusação não conferiria uma violação as regras da
própria produção de provas em juízo?
De fato, a existência de tal posicionamento sumulado, não
impede o interprete e julgador de na análise do caso concreto se
manifestar de forma diversa. Aplicar tal solução abstrata como

596
resposta matemática ao processo penal seria violação insuperável
aos direitos e garantias individuais. A práxis todavia, tem feito
exatamente o oposto.
Para NEWTON (2015) :

O fato de as presunções de validade e veracida-


de dos depoimentos de policiais serem adotadas
como verdadeiro alívio decisório permite, a análi-
se crítica sobre o aspecto cênico estabelecido nas
diversas audiências criminais. Como se fosse um
“jogo de cartas marcadas”, naturaliza-se a leitura
memorizada dos registros de ocorrência, o que é
colocado à prova diante do magistrado, a medonha
situação existente nas periferias justificar a falta de
testemunhas presenciais e se recorre à assertiva de
que a defesa não conseguiu demonstrar o interesse
dos agentes públicos no julgamento favorável da
pretensão deduzida em juízo.

Se, no correr da instrução, são admitidas todas as provas le-


gais, tendo igual peso as provas documentais e testemunhais, é
bem verdade que o controle da prova testemunhal, é mais difícil de
ser alcançado. Uma série de interesses diversos poderá guiar a sua
produção, e comprometer toda o julgamento, por isso toda cautela
nessas situações será sempre o mais prudente.
Frente ao exposto, o certo é que a única presunção possível e
aceitável no correr do processo penal, é aquela de acordo com pre-
ceito constitucional, ou seja – a inocência. Esta deve guiar as ações
e a interpretação do julgador quanto a culpabilidade do acusado,
não sendo em nada surpreendente, se possíveis contradições entre
os depoimentos forem favoráveis ao denunciado, que afinal, iniciou
a ação em estado de inocência.

597
Ademais, já existe movimentação de advogados e sobretudo da
própria Defensoria Pública do estado em favor da revogação da
malfadada Súmula. Assim, entendemos, que deverá ser dado ao
peso dos depoimentos dos militares exatamente o mesmo de outras
testemunhas, e sua palavra será relevante quando em acordo com
as demais provas do conjunto probatório colacionado.

CRIMINALIDADE, EXCLUSÃO, POBREZA E


SISTEMA PENAL
Não poderiam as reflexões aqui apontadas não dedicarem atenção
especial no que tange à própria natureza do nosso sistema penal. Não
há dúvidas de que o direito penal é um dos meios pelos quais o Estado
exerce o controle social sobre a sociedade. E essa definição de controle
a ser exercido está diretamente ligada ao conflito entre hierarquias so-
ciais, e o que as supostas classes dominantes buscam proteger.
Todo o julgamento estatal, nessa perspectiva, apesar de carre-
gado de um campo simbólico de imparcialidade, está na verdade
reproduzindo um sistema seletivo, cuja marca principal é a manu-
tenção do status quo e das relações de poder já consagradas.
É inegável que o conceito de poder é variável no tempo e em
função da corrente de pensamento abordada por diferentes autores
que trataram dessa questão, entendendo-o de maneiras peculiares.
A definição dada por adeptos do pensamento marxista chama de
poder “a capacidade de uma classe social de realizar os seus in-
teresses objetivos específicos”. Hanna Arendt falou que o poder é
oposto da violência, visto que para esta autora, esta ocorre quando
se dá a perda de autoridade e de poder. O filósofo Michel Foucault
falou em “relações de poderes” entre os indivíduo, pois para ele o
poder é algo que se exerce em rede, não existindo assim uma enti-
dade que centralize o poder, sendo este exercido tanto no nível ma-
cro quanto no micro. Para este autor, uma sociedade sem relações
de poder é uma abstração. A estrutura social, seria para o autor,

598
atravessada por múltiplas relações de poder, que não se situam ape-
nas em um local específico, como um aparelho de Estado, mas que
são imanentes ao corpo social. Relações de poder estas que atingem
a realidade mais concreta dos indivíduos e que estão ao nível do
próprio corpo social, penetrando nossas práticas cotidianas.
Mas no Direito, em especial, a questão do poder assume ainda
um outro caráter, o de “legitimidade”, ou seja quem tem autori-
dade para propor o Direito, para criar as leis, e muito dos estudos
dos filósofos da ciência jurídica se ocuparam e ainda o fazem
desse elemento. Para nossos propósitos tem ainda um significado
mais integrante, pois são os entes que detêm o poder estatal que
determinam o que é e o que não lei.
Para MOLINA (2000, p.120), o controle social é um “(...)con-
junto de instituições, estratégias e sanções sociais que pretendem
promover e garantir referido submetimento do indivíduo aos mo-
delos e normas comunitárias”.
Se a sociologia clássica já nos apontava a distinção entre o
controle informal, como sendo aquele efetuados pela família, Igre-
ja, sociedade, e o controle formal, por sua vez, sendo o controle
institucional, ou seja, aquele exercido diretamente pelo Estado por
meio do Ordenamento Jurídico
Para ZAFFARONI (2006, p.56):

(...) a eficaz prevenção do crime não depende


tanto da maior efetividade do controle social for-
mal, senão da melhor integração ou sincronização
do controle social formal e informal. Isso se dá em
razão de os conflitos entre grupos se resolvem de
forma que, embora sempre dinâmica, logra uma
certa estabilização que vai configurando a estru-
tura de poder de uma sociedade, que é em parte
institucionalizada e em parte difusa.

599
Ou seja, é a integração entre tais formas de controle social que
garante a efetividade do sistema. Nesse sentido, a criminalização
de determinada conduta será sempre um ato de seleção, onde se
determina que bens tutelados serão alvo do direito penal.
Portanto, existe um processo de seleção e criminalização de
condução, guiados por valores sociais. Porém, mais do que isso,
cabe referenciar: quem indica que valores são esses? Na nossa es-
trutura política e social, fica evidente, que tal princípios de morali-
dade, assim como de racionalidade são guiados pela elite.
Na construção do processo de criminalização, temos um pri-
meiro momento, que realiza-se na elaboração da legislação, guiada,
como já apontamos, pelos interesses da elite. Num segundo mo-
mento, temos a punição propriamente dita, que é exercida sobre
esses infratores penais segundo GROSNER (2008, p. 78):

a) poder de polícia que, por meio de investiga-


ções, detecta o infrator de conduta tipificada pri-
mariamente; b) Ministério Público que averigua
se aquela investigação comprova ter sido violado
alguma norma penal, que por sua vez justifica a
interposição de uma ação penal junto ao judici-
ário; c) poder judiciário que vai, através de um
devido processo legal, julgar se o acusado praticou
aquela ação e determinar a sanção (pena) cabível
ao infrator.

E se no campo teórico, tal organização faz sentido, é notório


que em razão da falta de capacidade operacional dos agentes da
criminalização secundária, pode se dizer que é nessa fase que ocor-
re efetivamente a maior parte da seletividade penal. “A correspon-
dência com um estereótipo criminal coloca a pessoa em situação de
vulnerabilidade, ou seja, em posição concreta de risco criminalizan-
te”. (GROSNER, 2008, p. 51) e ao final esses indivíduos selecionados

600
podem, ou não, ser etiquetados como criminosos e sofrer os efeitos
da estigmatização social e a passagem pelo sistema prisional.
A realidade que aqui se propõe descortinar, é que, fica claro ao
se perceber que a ação das agências formais tem maior incidência
em determinadas classes sociais mais baixas, sendo, assim, eviden-
te, a seleção da população que acaba sendo rotulada como crimino-
sa. (SHECAIRA, 2004, p. 295)
Por derradeiro, a última instância do processo de criminaliza-
ção secundário se dá no poder judiciário, onde a seletividade, ainda
que por trás da legalidade, também é observada. É notável, que, os
magistrados, em sua maioria, provêm de classes sociais dominantes
(altas) e julgam, de forma mais frequente, os indivíduos da classe
dominada. Sendo certo, que a estes também é suscetível à criação
de estereótipos e preconceitos formados em razão do seu círculo so-
cial, suas crenças políticas e religiosas, seu caráter e temperamento,
sua condição econômica e os interesses dos grupos sociais os quais
se identifica, é evidente que suas decisões acabarão sendo seletivas.
Existe, portanto, um patamar instransponível, entre a reali-
dade da magistratura e a da lendária figura do “juiz-Hércules’ de
Dworkin, imparcial, e desprovido de preconceitos.
Não existem pois, mais dúvidas no que tange a distinção que se
faz no processo de criminalização, no qual a rotulação de condutas
e pessoas e a imposição de consequências se operam diferentemente
em relação aos integrantes das diversas classes e grupos sociais. Fato
é que, embora vigore a igualdade formal, o processo de criminali-
zação, orientado pelo paradigma da reação social, age de maneira
distinta, por conta das classes sociais, gênero e raça. Esses fatores
levarão a criação da figura do criminoso e estigmatização do mesmo.
É preciso trabalhar pela descontrução desse paradigma seletivo
já estabelecido, que tem papel simbólico fundamental, na mudança
do senso comum sobre o tema. Enquanto tal configuração não for al-
cançada, não será possível a superação do problema aqui discutido.

601
CONSIDERAÇÕES FINAIS:
Num cenário contemporâneo complexo, onde vemos preceitos
Constitucionais do Estado Democrático de Direito serem esque-
cidos, a única certeza possível é de que a luta não pode cessar.
O indivíduo estigmatizado, torna-se alvo do sistema seletivo pe-
nal, normalmente já punido pela vida pela sua própria condição
social, vítima de violações graves e constantes à sua dignidade
humana, da qual é detentor, e por vezes ultrajado.
“Fernando” infelizmente não é um caso excepcional, ele está
presentes diariamente em nosso sistema jurídico, e boa parte dos
seus pares encontram-se apartados de suas famílias, e excluídos
da sociedade, agarrados ao nosso sistema prisional, na maioria
sem nem mesmo terem ainda sido julgados.
Nossa leitura dos acontecimentos não pode ser ingénua. Não
nos é permitido, como operadores do direito embasar nossos sen-
timentos no senso comum. Nossas ações precisam ser respaldadas
pela lei, pela técnica, e na defesa dos direitos humanos de todos
os indivíduos, na luta por uma sociedade mais ética, onde o de-
vido processo seja respeitado, assegurado, e não seja apenas letra
morta, mas uma efetividade.

NOTAS:
1- Nome fictício. (processo em segredo de justiça)
2-Súmula nº 70 do TJRJ
3- (HC) 126292
4- Constituição Federal

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Este livro foi composto em ITC Slimbach pela
Editora Multifoco e impresso em papel offset 75 g/m².

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