01 - Poética Mangue

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Volume 1 | Número 14 | janeiro a junho de 2015

Universidade Estadual da Paraíba


Profº Antonio Guedes Rangel Junior
Reitor
Prof. Ethan Pereira Lucena
Vice-Reitor

Editora da Universidade
Estadual da Paraíba

Diretor
Antônio Roberto Faustino da Costa
Diagramação
Carlos Alberto de Araujo Nacre

Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura e


Interculturalidade do Departamento de Letras

Direção Geral e Editorial


Luciano Barbosa Justino

Editor deste número


Luciano Barbosa Justino

Conselho Editorial

Alain Vuillemin, UNIVERSITÉ D´ARTOIS


Alfredo Adolfo Cordiviola, UFPE/UEPB
Antonio Carlos de Melo Magalhães, UEPB
Arnaldo Saraiva, UNIVERSÍDADE DE PORTO
Ermelinda Ferreira Araujo, UFPE/UEPB
Goiandira F. Ortiz Camargo, UFG
Jean Fisette, UNIVERSITÉ DU QUÉBEC À MONTRÉAL ( UQAM)
Max Dorsinville, MC GILL UNIVERSITY, MONTRÉAL
Maximilien Laroche, UNIVERSITÉ LAVAL, QUÉBEC
Regina Zilberman, PUC-RS
Rita Olivieri Godet, UNIVERSITÉ DE RENNES II
Roland Walter, UFPE/UEPB
Sandra Nitrini, USP
Saulo Neiva, UNIVERSITÉ BLAISE PASCAL
Sudha Swarnakar, UEPB

Coordenadores do Mestrado em Literatura e Interculturalidade


Antonio Carlos de Melo Magalhães e Luciano Barbosa Justino

Revisores
Eli Brandão da Silva, Luciano B. Justino,
Sébastien Joachim, Antonio Magalhães
Sociopoética
Volume 1 | Número 14 | janeiro a junho de 2015

A POÉTICA MANGUE: FLUXOS,


RIZOMAS E PLATÔS

Campina Grande - PB
SocioPoética - Volume 1 | Número 14
4 janeiro a junho de 2015

A POÉTICA MANGUE: FLUXOS, RIZOMAS E


PLATÔS

Sílvio Sérgio Oliveira Rodrigues (IFPB)

RESUMO:

No livro Mil Platôs, Deleuze e Guattari abrem uma discussão sobre a


representação e a significação das coisas e dos fatos gerando uma forte crítica
na ideia de revelar o que se relaciona a uma representação. Diferentemente dos
modelos tradicionais do pensamento científico e filosófico, que defendem um
esquema de organização do conhecimento alicerçado em um modelo arbóreo
– como é o caso das taxonomias classificatórias dos grupos na ciência – o
pensamento desses autores parte do pressuposto de que qualquer afirmação
que recaia sobre algum elemento, servirá também para outros elementos que
fazem parte de uma estrutura, numa relação de reciprocidade, de mão dupla.
Esse é o modelo que eles chamam de rizomático. E é, nesse sentido que vemos
o rizoma como elemento conceitual importante para definirmos o modelo de
poiesis que defendemos para o projeto Manguebeat de Chico Science, já que o
mesmo se processa muito além de sentidos institucionalizados e canonizados
pela “literatura literária”, por essa “escrita literária”, ultrapassando os sentidos,
transversalizando-os. No caso do projeto poético-cultural do Manguebeat,
especificamente, há experimentações que se processam através da encenação,
da performance, dos gestos, do ritmo, numa mistura de signos que apontam
para a sua própria constituição e processo de construção. Essa experiência
criadora atribui sentido até mesmo ao silêncio, ao corpo, transversalizando e
indo além do simples sentido da que a língua (a palavra) nos propõe. Assim, a
proposta do Manguebeat vai na contramão daquela concepção que afirma que,
na modernidade, com o advento da técnica científica, a experiência deixou de
existir, tornando-se apenas prova, ensaio ou mesmo uma mera tentativa.

Palavras-chaves: Manguebeat, Rizoma, Fluxos, Poética, Literatura


Contemporânea
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ABSTRACT:

In the book “Mil Platôs” (A Thousand Uplands), there is a discussion about the
representation and meaning of things and facts generating a strong criticism
on the idea of revelating what is related to a representation. Differently from
the traditional models of scientific and philosophical thinking, which endorse an
organizational scheme of kowledge based in an arboreal model – which happens
to classifying taxonomies of science groups – these authors’ thoughts come
from the supposition that any affirmation coming over any element will suit to
other elements, taking part of a structure, in a to way reciprocity relation. This
is the model that they call as “rhizome”. So, that’s in this meaning that we see
the rhizome as an important conceptual element to define the model of poesis
(poetry), which we hold for the Manguebeat project by Chico Science, since it is
processed quite beyond the institutional and sainted senses from the “literary
literature”, by this “literary writing”, overcoming the senses, thus, mainstreaming
them. About the poetry-cultural project of Manguebeat specifically, there are
experiments which are processed through staging, performance, gestures,
rythm, in blend of signals pointing to its own constitution and construction
process as well. This creative experience assign meaning even to silence, to the
body, mainstreaming and going beyond the simple sense that language (the
word) proposes to us. So, the Manguebeat proposal goes against the conception
wich states that, nowadays, with the scientific tecnique events, experiments no
longer exist, becoming just evidence, essay, or even a mere attempt.

Keywords: Manguebeat, Rhizome, Flows, Poetry, Contemporary Literature


SocioPoética - Volume 1 | Número 14
6 janeiro a junho de 2015

Introdução

Nos 5 volumes de Mil Platôs, um trabalho


extremamente político de Deleuze e Guattari, aparecem o
conceito de território, rostidade, rizoma, devir, ritornelo,
corpo sem órgão, tratado de nomadologia, agenciamentos
maquínicos, dentre outros, para formular alguns
questionamentos que avaliam as ações políticas. Assim,
percebemos que o termo “Platôs”1 faz referências a uma
“zona de intensidades contínuas”, que se apresenta em
constante efervescência maquínica, contaminada pela
“sujeira sombria” de uma não-filosofia, sobre tudo aquilo
que dá ao pensamento a possibilidade de pensar. Os
conceitos, portanto, vêm acompanhados deste potente
movimento – e não é à toa que o conceito de ritornelo,
por exemplo, mostra que seu maior compromisso é ser
devolvido de volta ao caos, ao contato imediato com
todos os meios.
Como apontam os autores já nas abas do livro:

O que é Mil platôs? Como se organiza? Como um tratado


de filosofia, após a ruptura, quando o filósofo, o grande
nômade, resolveu desertar a filosofia dos códigos, dos
territórios e dos Estados, a filosofia do comentário. Mil
platôs é um grande livro, porque com ele a filosofia alcan-
ça um de seus devires improváveis. Mil platôs desenvol-
ve uma filosofia verdadeira, quer dizer nova, inaugural,
inédita. Duas grandes filosofias jamais se assemelham;
pois elas jamais são da mesma família. A filosofia não se
desenvolve seguindo uma linha arborescente de evolu-
ção, mas segundo uma lógica dos múltiplos singulares.
(DELEUZE & GUATTARI, 1995, p. 04)

Trata-se de um livro de conceitos, pois para esses


autores, a filosofia sempre se ocupou de conceitos, já que
fazer filosofia é tentar inventar ou criar definições. Mas, o
que se percebe em Mil Platôs é que os conceitos elaborados
por Deleuze e Guattari não se prendem em determinar o

1 Esse termo apresenta duas significações importantes para compreendermos seu sentido
utilizado na obra em questão: a) o disco, numa embreagem a disco, causador da transmissão
da força do motor até as rodas de tração; b) terreno elevado e plano com pequenas elevações
(planalto). A nosso ver, a primeira definição cabe melhor aqui, já que se trata de movimento, de
nomadismo, de errâncias. (Etm. do francês: plateau)
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que uma coisa é, ou seja, a busca de sua essência. Nessa


obra, há um maior interesse pelas circunstâncias de uma
determinada coisa, seja, em que caos, onde e quando
formular o conceito, enfim, os pensamentos devem ser
produzidos através de encontros, fazendo com que a
essência ceda espaço para o acontecimento.
É um livro que fala sobre experimentações, em que
o pensamento é levado a um profundo tensionamento.
Os rizomas devem ser feitos e diferenciados de raízes, a
linha deve se impor ao ponto. Para os autores, a invenção
vem em primeiro plano quando se trata de pensar, pois
o que importa é desterritorializar sempre. Assim, a
escrita de Mil Platôs parece estar sempre gerando um
movimento de experiências contínuas, de invenções, no
eterno risco de tentar se alcançar os limites. É como se
fosse um conjunto de anéis que se rompem, em que
cada um pode penetrar nos outros, pois tem abertura.
Cada platô (anel) apresenta seu tom, seu ritmo próprio.
E por que a filosofia de Deleuze e Guattari nos
serve de apoio para discutir o projeto poético musical
do Manguebeat? Em que sentido podemos relacionar
o pensamento desses autores com o que propõe Chico
Science e seus seguidores em seu modelo intercultural
e intermidial de fazer arte na contemporaneidade? Ao
refletirmos de forma mais profunda, vamos encontrar uma
forte relação entre esse pensamento filosófico, sobretudo
em seu “Tratado de Nomadologia” (Mil Platôs v. 5), com
o modelo de arte e de fluxo poético em que se construiu
o projeto de Chico Science no movimento Manguebeat.
Para esses autores, a filosofia é criação de conceitos, como
máquinas-desejantes, desterritorialização e etc. Não
pretendemos nesse nosso trabalho trafegar por todos os
conceitos elaborados por Deleuze e Guattari, entretanto,
alguns nos servirão de suporte para refletirmos nosso
objeto de estudo nesse artigo. Principalmente, a relação
entre a poética mangue e a ideia de rizoma. É o que
veremos a seguir.
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1. A poética “mangue”, de chico science: platôs,


rizomas e fluxos

Para definirmos o significado de rizoma, de acordo com


o pensamento de Deleuze e Guattari, faz-se necessário
diferenciar a palavra, o substantivo de seu conceito na
filosofia.
Em botânica, chama-se rizoma a um tipo de caule que
algumas plantas verdes possuem, que cresce horizon-
talmente, muitas vezes subterrâneo, mas podendo tam-
bém ter porções aéreas. O caule do lírio e da bananeira
são totalmente subterrâneos, mas certos fetos desenvol-
vem rizomas parcialmente aéreos. Certos rizomas, como
em várias de capim (gramíneas), servem como órgãos
de reprodução vegetativa ou assexuada, desenvolvendo
raízes e caules aéreos nos seus nós. Noutros casos, o
rizoma pode servir como órgão de reserva de energia, na
forma de, tornando-se tuberoso, mas com uma estrutu-
ra diferente de um tubérculo2.

O conceito que foi desenvolvido por Deleuze


Guattari expande essa definição, exatamente porque a
conceituação da Botânica não dá conta da multiplicidade,
já que se restringe a definir rizoma como sendo um tipo
específico de caule. Para os autores, ao contrário, o
conceito de rizoma se torna ao mesmo tempo ontológico
e pragmático de análise, se levarmos em consideração
que esse tipo de caule transforma-se em rizoma quando
entra em contato com a terra, o ar, os animais, a ideia
humana de solo, as árvores, etc., e com isso não se
limitando somente à materialidade, mas também à
imaterialidade existente em uma máquina abstrata que
o comprime.
Rizoma, embora sendo raiz, apresenta um crescimento
diferente da definição acima que conhecemos como
raiz padrão. Seu crescimento é polimorfo, sem direção
determinada, definida, já que cresce horizontalmente.
Deleuze e Guattari “roubam” esta definição da botânica
para aplicá-la à filosofia. Ele pode ser definido como um
símbolo de resistência ético-estético-político, por se tratar
de linhas e não de formas. Nesse sentido, ele consegue

2 Enciclopédia On-line Wikipédia Disponível em <http://www.wikipedia.org/rizoma>. Acessado


em Março, 2005.
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fugir, se esquivar, correr, se esconder, sempre sabotando


veredas e evitando ou alternando caminhos. Trata-se
de uma teoria das multiplicidades. Segundo Deleuze e
Guattari, para escapar das tentativas totalizadoras, os
rizomas criam linhas de fuga, caminhos de escape, ao
fazerem conexões com outras raízes, buscando novas
direções. Nesse sentido, não apresentam ligações
definitivas, já que são fios de intensidade que não se
fundam em formas fechadas.

Um agenciamento é precisamente este cresci-


mento das dimensões numa multiplicidade que
muda necessariamente de natureza à medida
que ela aumenta suas conexões. Não existem
pontos ou posições num rizoma como se en-
contra numa estrutura, numa árvore, numa
raiz. Existem somente linhas (...) O que Guatta-
ri e eu chamamos rizoma é precisamente um caso
de sistema aberto. Volto à questão: o que é filoso-
fia? Porque a resposta a essa questão deveria ser
muito simples. Todo mundo sabe que a filosofia se
ocupa de conceitos. Um sistema é um conjunto de
conceitos. Um sistema aberto é quando os concei-
tos são relacionados a circunstâncias e não mais a
essências. Mas por um lado os conceitos não são
dados prontos, eles não preexistem: é preciso in-
ventar, criar os conceitos, e há aí tanta invenção e
criação quanto na arte ou na ciência.” (DELEUZE
& GUATTARI, Mil Platôs I, 1995).

Trata-se de estruturas fechadas, pois, não vivem


presas. Por ser multiplicidade, busca escapar das
estruturas, sem se deixar conduzir a um Uno, já que
tem pavor da unidade, do fechamento, das regras
pré-estabelecidas. Conforme afirmam os autores,
deixarão que vocês vivam e falem, com a condição de
impedir qualquer saída. Quando um rizoma é fechado,
arborificado, acabou, do desejo nada mais passa; porque
é sempre por rizoma que o desejo se move e produz
(DELEUZE & GUATTARI, Mil Platôs I, 1995). Portanto, o
rizoma não tende a se fechar em si mesmo, já que se
abre para experimentações indo, assim, de encontro ao
pesadelo do pensamento linear, teleológico.
É constantemente atravessado por linhas de
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intensidade, crescendo sempre onde encontra espaços.


É de fluxo contínuo, de eterno nomadismo. Se se trata de
ciência ou não, pouco importa, pois cria seu ambiente,
movendo-se em diferentes e variadas direções, fazendo
alianças. São agenciamentos, conexões, enfim, seja o que
for, “riacho sem início nem fim, que rói suas duas margens
e adquire velocidade no meio” (DELEUZE & GUATTARI,
1995), não se trata mais de compartimentos, linha reta,
método cartesiano, mas rotas de fuga. Conexões que
se multiplicam, se alastram, gerando sentidos, micro
conexões sendo disseminadas. O que importa em um
rizoma “é produzir inconsciente e, com ele, novos
enunciados, outros desejos: o rizoma é esta produção
de inconsciente mesmo” (DELEUZE & GUATTARI, MIL
PLATÔS, 1995).
É nesse sentido que vemos o rizoma como elemento
conceitual importante para definirmos o modelo de
poiesis que defendemos para o projeto de Chico
Science. Ultrapassando os sentidos institucionalizados e
canonizados pela “literatura literária”, defendemos que
não existem na escrita literária apenas e exclusivamente
determinados sentidos que são impostos. Assim, necessário
ultrapassar esses sentidos, transversalizando-os, pois
existe a presença de um som nas linhas expressas, como
afirma Deleuze, mas que agem de forma tácita, mesmo
no papel, e isso é que concebe o estilo da literatura.
No caso do Manguebeat, especificamente, há
experimentação que se processa através da encenação,
da performance, dos gestos, do ritmo, numa mistura
de signos que apontam para a sua própria constituição
e processo de construção. Essa experiência criadora
atribui sentido até mesmo ao silêncio, ao corpo,
transversalizando e indo além do simples sentido da que
a língua (a palavra) nos propõe. Assim, a proposta do
Manguebeat vai na contramão daquela concepção que
afirma que, na modernidade, com o advento da técnica
científica, a experiência deixou de existir, tornando-se
apenas prova, ensaio ou mesmo uma mera tentativa.
O linguístico foge, se deserta para o campo do sonoro,
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extraindo de cada palavra e de cada gesto o grito, o clamor,


uma intensidade e um timbre. A língua torna-se fluxo e
não código, mas um fluxo que se entrecruza com toda
natureza das coisas: corpo, estilo, afetos, palavras, etc. E
esse fluxo necessariamente cria uma nova leitura que não
se restringe a um significado do tipo “isto significa aquilo”.
Ele depende de uma experimentação; uma vivência dada
a cada leitura. Assim experimentar significa, aos moldes
deleuziano, um tipo específico de repetição que resulta
num ato criativo e não representativo ou reiterativo.
Repetir é quebrar as clausuras da interpretação; é
não “relembrar um encontro de origem”; é reconhecer
que o texto não é uma tentativa frustrada de uma re-
apresentação, uma nostalgia do mundo e das coisas
vividas. A multiplicidade não constitui sujeito e muito
menos objeto, mas apenas determinações, grandezas e
dimensões, “que não podem crescer sem que se mude
de natureza”. (DELEUZE e GUATARRI, 1995).
A cena mangue age como um rizoma, opera
multiplicidades e por isso é de fluxo, pois, “do ponto de
vista do pathos, é a psicose e sobretudo a esquizofrenia
que exprimem estas multiplicidades.” (DELEUZE e
GUATARRI, 1995). Trata-se de uma escrita rizomática,
esquizofrênica, pois, ao se desterritorializar, saindo da
lama para o mundo, se transformando em um decalque
do mundo globalizado, torna-se parte do aparelho
de reprodução midiológica global e, assim, volta a se
reterritorializar ao transpor o global e retornar para
as imagens do Nordeste, para a expressão da cultura
popular e acercar-se, novamente, da pernambucanidade,
ressemantizada pelo contato com o Outro.
O Manguebeat, com sua alquimia musical, com
sua política de identidade articulada em torno de uma
hibridização paritária, não articula decalques, cópias,
modelos prontos, pois compõe-se como um mapa, no
seio de um rizoma, formando o próprio rizoma. É aberto,
desmontável e se conecta em qualquer uma de suas
partes ou dimensões, recebendo influências do global e,
assim, apto sempre a receber montagens de qualquer
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natureza e, dessa maneira, se reconstitui através de


uma formação social, tornando-se obra de arte que se
formaliza em torno de uma ação política, por intermédio
da mediação. Assim como um rizoma, apresenta múltiplas
entradas, “(...) contrariamente ao decalque, que volta
sempre ao mesmo”. (DELEUZE e GUATARRI, 1995, p.
27). Observe a letra da canção “Antene-se”, do disco “Da
lama ao caos”.
Recife, cidade do mangue/Onde a lama é a insurreição/
Onde estão os homens/caranguejos/Minha corda costu-
ma sair de andada/No meio da rua, em cima das pon-
tes/É só equilibrar sua cabeça em cima do corpo/Procure
antenar boas vibrações/Procure antenar boa diversão/
(Sou, Sou, Sou, Sou, Sou Mangueboy!) (SCIENCE, Chico
& nação Zumbi. Da lama ao caos. Sony & BMG, 1994).

Por isso pensamos o Mangue como rizoma e de


maneira rizomática. Por ter sido idealizado como uma
rede, o movimento de Chico Science remete à sua própria
constituição, por não ter sido feito em unidades, mas em
dimensões que apontam em direções movediças, assim
como são formadas as lamas dos manguezais.

2. O platô mangue

Como um platô, uma região repleta de intensidades,


que se contorce sobre si mesma: é assim que surge a cena
Mangue, com sua multiplicidade que almeja conectar-se
com outras hastes embaixo da terra, de modo a formar
rizomas. Tal como um rizoma, não pretendeu surgir com
um começo e nem muito menos um fim determinado. Ao
contrário, o que existe nisso tudo é a existência pulsante
de uma ideia que tem como intenção, unicamente,
encontrar um lugar “no meio”, entre as coisas, num
complexo intermezzo. É nessa multiplicidade de conexões
e de heterogeneidade, que o movimento Manguebeat se
conecta com o mundo, num constante diálogo que o faz
não fixar um ponto ou uma ordenação. Surge como cena
e não como um elemento determinante e delimitado.
Surge no próprio caos.
O movimento mangue conecta, initerruptamente,
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com cadeias semióticas e organizações de poder, e


assim se estrutura a ocorrências que remetem às artes,
às ciências e às lutas sociais. Acerca-se de recursos
diversos: linguísticos, extralinguísticos, performáticos,
gestuais e cogitativos. Como um rizoma, apresenta
uma diversidade de linguagem, uma multiplicidade que
abandona o sentido unívoco presente na linguagem
tradicional. Essa multiplicidade se apresenta na cena
mangue a partir de diversos campos de atuação e
realização, como a música, o cinema, a moda, bem como
os gestos, atitudes e posturas. Basta perceber que a cena
mangue foi articulada ao modelo de um rizoma, pois
se apresenta flexível e direcionada a vários campos. O
movimento expressa contornos fluidos, de fluxo sem que
haja um início e nem um fim que possam ser identificados,
estando sempre no centro onde encontra espaço para
transbordar. Vai rompendo terra, alçando voos. Por estar
no espaço privilegiado do meio, estilhaça-se como um
rizoma, com suas múltiplas e variadas entradas e não
como uma dicotomia que aponta para um dualismo.
Mesmo estando entre os espaços do global e do
local, o movimento Manguebeat não se esgota nessa
dicotomia, já que ultrapassa essa simples dualidade entre
o tradicional e o moderno, por exemplo, para revelar
uma estratégia de convivência com elementos diversos,
sem que para isso haja uma hierarquização ou mesmo
uma simples oposição entre um e outro. O movimento
mangue, portanto, não atua como cópia ou modelo,
mas através de combinações que se utiliza da estética
da colagem, não cessando de erguer e de alongar-se
mundo afora, ao se embrenhar, num eterno movimento
de romper e retornar. Nas palavras dos autores.

Todo rizoma compreende linhas de segmentariedade se-


gundo as quais ele é estratificado, territorializado, orga-
nizado, significado, atribuído, etc; mas também compre-
ende linhas de desterritorialização pelas quais ele foge
sem parar. (DELEUZE e GUATARRI, 1995).

Por isso, ver o Manguebeat como resultado de uma


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construção que aponta para uma ideia de início, meio e fim


que sejam pré-estabelecidos, não passa de uma maneira
equivocada, pois o mesmo deve ser compreendido como
parte de um desejo coletivo. Assim definiu DJ Dolores.

Uma série de equívocos que eram tão esperados, assim,


havia um campo tão fértil das pessoas esperando por
aquilo, que esses equívocos acabaram, é sendo su-
per aceitos, então foi uma coisa, o erro certo na
hora certa, equívocos eu falo porque é, é a ideia era
ser uma cooperativa cultural, era uma coisa de amigos
que se transformou num movimento, equívoco porque
o release virou um manifesto, é, equívoco porque
até o próprio nome a grafia BIT de bit de informa-
ção, virou beat de batida, por algum erro de algum
jornalista, mas tudo, todos esses erros, é, atendiam
a uma, uma necessidade tão grande das pessoas que
tavam ao redor do público, é, da cidade, e dos jorna-
listas enfim, que foi erro certo na hora certa (DOLORES,
2008).

Na verdade, o movimento de Chico Science fez a


juventude recifense conhecer uma linguagem nova
que acabou por legitimar uma produção regionalista
diferente, criativa, amalgamada nas referências pop
e globais. Isso confere ao projeto mangue uma obra
estética de caráter híbrido que guarda em si um leque
efetivo de determinantes configurações que atuam de
forma complexa se configurando assim como “uma
poderosa fonte criativa, produzindo novas formas de
cultura, mais apropriadas à modernidade tardia, que as
velhas e contestadas identidades do passado”, (HALL,
2005, p. 91) e, nesse sentido, constituindo um produto
multideterminado, repleto de agentes populares e
hegemônicos, ao lado de elementos rurais e urbanos,
locais, nacionais e até mesmo, transnacionais, como
um verdadeiro mosaico de culturas e tecnologias que
emergem a serviço da música.
Atuando como um caso particularmente importante
de transcodificação, o movimento mangue (como um
ritornelo ou um rizoma) não se limita em tomar ou
receber elementos codificados, mas, em transcodificar;
não apela para uma simples soma, senão para um novo
plano melódico que se formaliza como passagem ou
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ponte, sem mais a pureza original, pois se mistura de


tal forma, criando algo diferente. Como exemplo disto
podemos observar a música “Cidade Estuário do Mundo
Livre S.A”, também pertencente à cena mangue.

Maternidade/diversidade/Salinidade/Fertilidade/Produti-
vidade/Recife cidade estuário/Recife cidade és tu/Água
salobra, desova e criação/Matéria orgânica, troca e pro-
dução/Recife cidade estuário/És tu.../(mangue injeta,
abastece, alimenta, recarrega as baterias da Veneza
esclerosada, destituída, depauperada, embrutecida...)/
Mangue Manguetown/cidade complexo/Caos portuário/
Berçário/Caos/Cidade estuário (MONTENEGRO, 1994).

O conceito rizoma funciona, portanto, como porta de


entrada, como estratégia de definição do pensamento
relacionado ao projeto do Manguebeat. Uma passagem
variável, indeterminada, uma espécie de porta que
caminha, que trafega a qualquer lugar, como platôs. Assim
como um rizoma, a música da cena mangue, atrelada a
outras formas de manifestação cultural, forma conexões,
a partir de uma força coordenadora de movimentos que se
consolida como uma circulação de estados, combinando
resultados que não se podem prever, nem muito menos
organizar, uma vez que sempre se encontram em um
meio. O percurso de atuação do movimento mangue
não se pauta em um sistema montado em torno de uma
hierarquia, mas a partir de “uma rede maquínica de
autômatos finitos a-centrados” (DELEUZE e GUATARRI,
1995, p. 28). Funciona como um princípio cosmológico,
caixa de ferramentas, um sistema aberto ao dialogismo,
ao contato amplo e caleidoscópico, sem se ater a regras
ou modelos dominantes.
Defendemos, assim, que é possível uma análise
rizomática do Manguebeat, uma vez que o conceito de
rizoma aponta para algumas diretrizes gerais no tocante à
investigação em vários níveis e campos do conhecimento,
seja histórico, sociológico, psicológico, político, etc.
Assim, o projeto cultural de Chico Science, pela
sua capacidade de agir norteando análise de grupos,
indivíduos, culturas e sociedade, aproxima-se do
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rizoma, já que este pode ser pensado também como


um método que atua tanto em níveis materiais como
imateriais, configurando-se como um conceito ontológico
e pragmático.

Considerações finais

Portanto a poesia do Manguebeat se propõe a


instaurar uma política em que a relação que o indivíduo
constrói consigo mesmo se processa sem que haja
a necessidade de se pautar em verdades interiores,
que sejam pré-concebidas e programadas, pois seu
movimento é conduzido por linhas fugidias. Trata-se,
portanto, de uma política que não aceita as variadas
formas de assujeitamento, ao apontar sempre para o
caminho que leva para os lados dos processos criativos,
gerando um diálogo com outras formas de representação
cultural, e com isso insiste em se desprender do domínio
do mercado cultural vazio, capitalista, fazendo surgir
uma outra composição possível. Nesse sentido, a
concepção política proposta pelo projeto de Chico Science
vem sempre acompanhada pelo componente estético,
numa estética que é a prática de novos estilos de vida,
escapando aos duros regimes de poder e saber impostos
pelo capitalismo global (esse Estado que busca capturar
a máquina de guerra), formando aquilo que chamaremos
mais adiante de biopolítica cultural.
Na maneira de agir do movimento Manguebeat,
percebemos a criação artística não mais como um
capricho, uma repetição de formas ou submissão ao
outro, mas a emergência de uma estética que passa a
ser a própria experimentação da vida enquanto arte,
a partir do instante em que a vida torna-se, enfim,
uma verdadeira obra de arte pois, ao conceber a vida
como acontecimento que se produz como um constante
devir, um fazer-se, o movimento de Chico Science nos
desafia com uma lógica do sentido, não com categorias
entrincheiradas, fazendo abstrações dos acontecimentos
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num a priori, já dado e já equacionado.


Ao tratar do projeto mangue, lidamos com o que se
pode chamar de uma ética do acontecimento, algo que
se processa não em torno de um determinado tempo
que se constitui pela linearidade e eternidade, mas um
tempo que se formaliza numa relação aberta, móvel e
atual. Nesse sentido, não se trata de categorias fixas
que se colocam em evidência, mas categorias que nos
desafiam por serem rizomáticas.
A música mangue com seu estilo sincrético, simbiótico,
cria rizomas, gera conexões, sempre atuando como uma
espécie de “entre dois”, já que se posiciona num intermezzo,
e assim nos provoca com suas ideias, com sua forma de
se manifestar, sempre a criar novas performances como
dispositivos que reagem ao poder do Estado. E assim, o
movimento mangue cria novos conceitos, novas formas
de ver a arte na contemporaneidade, através da criação
de uma cena cultural.
É nessa parceria com o diferente que o projeto
mangue opera e experimenta sem que para isso tenha
que se pautar a conceitos antigos, ultrapassados e
estereotipados, como caveiras que se destinam a desafiar
tudo o que é criação. Por essa razão, podemos dizer que
o projeto de Chico Science faz emergir a pluralidade, as
multiplicidades, por conta das experiências vivenciadas
no ato de seu processo criativo. O estranho é acionado
para fazer parte dessa alquimia musical
Vemos que na proposta musical do Manguebeat a
diferença não se submete às exigências da representação,
já que ela não é pensada em si mesma, conforme disse
Deleuze sobre a questão da literatura. Trata-se de uma
atuação artística que se formaliza pela experiência. Criar
torna-se uma experiência que será juntada a outras
experiências e passadas a frente num jogo de eterno
movimento. Nesse sentido, o escritor/artista se envolve
em um processo inacabado. É o que aqui chamo de uma
“poética nômade”, me apossando do termo deleuziano.
A “literatura” de Science gera um fluxo permanente. O
ato de escrever, de dançar, de criar uma performance
SocioPoética - Volume 1 | Número 14
18 janeiro a junho de 2015

atuante e inovadora não se completa numa única


interpretação, visto que é rizomática. Isso gera um
contínuo movimento. Daí, a criação artística do mangue
precisar essencialmente desse fluxo para manter-se
viva. Cabe a ela difundir determinada cultura num jogo
de recusa, e lembrando Barthes, ao fazer referência à
literatura, ela também é fait divers, se a considerarmos
como um fenômeno de transbordamento da linguagem. A
atuação do mangue, portanto, é a criação de uma escrita
literária que alcança uma não-representação do mundo,
pois se trata de uma escrita que busca anarquizá-lo,
subvertê-lo, pelo simples fato de estar habilitada a não
reconhecer os pressupostos implícitos” que a sociedade
vigente impõe ao estabelecer seus valores. Trata-se da
escritura do “homem de má vontade”. É o homem que
não se preocupa com a recognição, pois esta divulga a
doxa, lembrando novamente Deleuze, mas sobretudo,
com o processo de recriação.
Desse modo, podemos afirmar que o projeto do
Manguebeat é o efeito de uma criação única, mesmo
repetindo, ela recria; afinal uma repetição literária é
sempre um ato de não-repetição. “A linguagem lírica, onde
cada termo é insubstituível, pode ser apenas repetido.
Isso porque a linguagem poética – ou mesmo a da arte,
em geral – não pertence ao reino da generalidade. Ela
é o efeito de uma criação regular, única e insubstituível”
(DELEUZE E GUATTARI, 1995, V. 5).
É compreensível em Literatura existir a repetição,
porque ela exprime o paradoxo: singular x geral;
universalidade x particularidade; relevante x ordinário;
instantaneidade x eternidade. Sob esse aspecto, a
repetição é “transgressão”. O caráter transgressor da
repetição reside na direção contrária que ela vai às
leis que impedem o retorno de qualquer coisa. Esta
repetição não pode ser compreendida como cópia, uma
vez que a segunda é composta por semelhança e a
primeira de simulacro. Neste sentido, o simulacro produz
a diferença. Por isso não se pode pensar a diferença
como representação ou cópia. Conectar diferença à
SocioPoética - Volume 1 | Número 14

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representação é impossível, pois na medida em que as


diferenças se opõem se assemelham na percepção.
A diferença, portanto, é a transitoriedade do
pensamento, se entendermos que esse pensamento não
ocupa lugar fixo; ele é nômade. A poética mangue é a
poética da diferença por essa razão. E é esse o caráter
mais relevante que a Literatura contemporânea ocupa.
Ela é a própria diferença por assumir em sua “forma
pura e insubmissa” a negação dos liames mediadores da
representação. E parafraseando Deleuze, não existe um
escritor que não seja, ele mesmo, um criador de novos
mundos, um criador de um novo ser.
SocioPoética - Volume 1 | Número 14
20 janeiro a junho de 2015

Referências

DELEUZE, G. & GUATTARI, Félix. O anti-Édipo. Trad. Varela, J.M e Carrilho, M.M.
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v.1. São Paulo: Editora 34, 1995.
DELEUZE & GUATTARI. Mil Platôs - capitalismo e esquizofrenia. Trad. Suely Rolnik;
v.2. São Paulo: Editora 34, 1995.
DELEUZE & GUATTARI. Mil Platôs - capitalismo e esquizofrenia. Trad. Suely Rolnik;
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DELEUZE & GUATTARI. Mil Platôs - capitalismo e esquizofrenia. Trad. Suely Rolnik;
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DELEUZE & GUATTARI. Mil Platôs - capitalismo e esquizofrenia. Trad. Suely Rolnik;
v.5. São Paulo: Editora 34, 1995.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? Tradução Bento Prado Jr. E
Alberto Alonso Muñoz. São Paulo: Editora 34, 1992.
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Editoração: Brasil, Ministério da Educação, TV Escola, 2001. Paris: Éditions
Montparnasse, 1997, VHS, 459min.
DELEUZE, Gilles e Claire Parnet: Diálogos. Paris, Flammarion, 1996. Trad. CMF.
DIÓGENES, G. Cartografias da Cultura e da violência: Gangues, galeras e movimento
Hip Hop. São Paulo: Annablume; Fortaleza: Secretaria da Cultura e Desporto, 1998.
DOLORES, DJ. Apud CALAZANS, Rejane. VIANNA, Clarisse. A lama, a parabólica e a
rede. IÁIÁ Filmes. 2008.
MONTENEGRO, Fred. Cidade Estuário. In: Mundo Livre S.A. Samba Esquema Noise.
São Paulo: Banguela Records/ Warner Music, 1994. 1 CD. Faixa 10 (05 min. 05 seg).
SCIENCE, Chico & nação Zumbi. Da lama ao caos. Sony &BMG, 1994.
SCIENCE, Chico & nação Zumbi. Afrociberdelia. Sony &BMG, 1996.

Submetido em 19 de fevereiro
Aceito em 26 de maio

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