CASOS ELEITORAIS CÉLEBRES (Volume VI) - O CASO DOS CALENDÁRIOS

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Renato César Carneiro

CASOS ELEITORAIS CÉLEBRES:


Humberto Lucena e o caso dos calendários
(1994)

VOLUME VI

1
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Capa: Milton Nóbrega (in memorian)


Editoração: Renato César Carneiro
Revisão: Humberto Mello

C289c Carneiro, Renato César.


Casos eleitorais célebres: Humberto Lucena e o caso dos
calendários (1994)/Renato César Carneiro. João Pessoa-PB.
p.605

ISBN: 978-85-7320-097-3

1. História politica – Paraíba. 2. Casos eleitorais – Paraíba.

UFPB/BC CDU: 94:32(813.3)

2
Ao meu pai, Francisco Carneiro Bastos,

DEDICO.

3
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO.............................................................…. 06
PREFÁCIO........................................................................... 11
CAPÍTULO I
ANTECEDENTES................................................................. 16
O PACIFICADOR................................................................. 20
UM CÓDIGO DE ÉTICA PARA O SENADO........................... 30
O CONTEXTO HISTÓRICO................................................... 34
CAPÍTULO II – A AÇÃO
A GRÁFICA DO SENADO.................................................... 38
FELIZ NATAL, PARAIBANOS!............................................... 41
O IMPLACÁVEL PESSOA LINS!............................................ 46
CALENDÁRIOS INOCENTES!............................................... 61
CONSULTA AO TSE............................................................. 70
“SUMMUS JUS, SUMA INJURIA”........................................ 76
“CASSARAM UM PARAÍBA!”.............................................. 130
EMBARGOS........................................................................ 185
“A PARAHYBA É QUEM DIZ”............................................... 187
TAL COMO PILATOS........................................................... 208
SOLIDARIEDADE CORPORATIVA........................................ 225
CAPÍTULO III – A REAÇÃO
O CONGRESSO PEGA FOGO!............................................. 257

4
MOTIM PARLAMENTAR..................................................... 270
CAPÍTULO IV: A ANISTIA
“O PROJETO LUCENA”........................................................ 291
JUSTIÇA TARDIA, JUSTIÇA FALHA!..................................... 323
O “SUBSTITUTIVO PRISCO VIANA”.................................... 335
“ESFORÇO CONCENTRADO”............................................. 337
“SESSÃO RELÂMPAGO”...................................................... 396
“VAQUINHA” PARA LUCENA.............................................. 398
A OPINIÃO DOS JURISTAS.................................................. 400
FINALMENTE, A SANÇÃO................................................... 437
CAPÍTULO V
A AÇÃO RESCISÓRIA ELEITORAL........................................ 479
INCONSTITUCIONAL?......................................................... 495
CAPÍTULO VI
OUTROS CASUÍSMOS......................................................... 506
CAPÍTULO VII
DECODIFICANDO SAULO RAMOS...................................... 517
CAPÍTULO VIII
SUPREMA ANISTIA........................................................... 528
EPÍLOGO
“MALDITA CASSAÇÃO”....................................................... 544
POSFÁCIO........................................................................... 558
CRONOLOGIA..................................................................... 561
REFERÊNCIAS..................................................................... 564
CHARGES........................................................................... 579

5
APRESENTAÇÃO

Em 1992, um impeachment derrubou Fernando Collor.


Ficamos com Itamar como Presidente. No ano de 1993
ressuscitamos o fusca, ganhamos o PCC, vimos chacinas não
apenas na Candelária, nem somente por garimpo, mas
também em Vigário Geral, no Rio. Nesse ano recebemos uma
moeda nova, que evoluiu e firmou-se como Real e brindamos
o ano novo com o "Plano FHC", pagando os presentes em URV.
O ano de 1994 seria ano de eleições gerais.

Pelo menos desde o ano de 1985, parlamentares


brasileiros tinham autorizações para usar gráficas públicas, ou
pagas com dinheiro público, para impressão de material de
apoio à sua atuação legislativa. Em 1994 isso veio a ser
questionado pelo Ministério Público Federal no caso do
senador paraibano Humberto Lucena, que confeccionou pelo
menos 130 mil calendários em 1993, para 1994, e os
distribuiu, com sua foto, a menção ao seu cargo de senador,
uma mensagem de fim-de-ano, e seu nome estampado.

Humberto Lucena ganhou a causa no TRE da Paraíba,


mas o Procurador Antônio Carlos Pessoas Lins recorreu ao TSE,
que cassou Lucena. Ele foi votado sub judice, pois havia
recorrido ao STF. Confirmada a sua cassação também na
Suprema Corte, os políticos se rebelaram no Congresso
Nacional e aprovaram a Lei nº 8.985, que foi sancionada por
FHC em fevereiro de 1995. Humberto foi salvo e essa lei de
anistia hoje é conhecida como “Lei Humberto Lucena”.

6
Este livro é sobre esse caso. É um resgate profundo de
toda a repercussão gerada a partir do confronto entre os mais
altos poderes do Estado brasileiro à época e sobre as maiores
autoridades do Judiciário, Legislativo, Executivo, MPF e opinião
pública nacional. Pela primeira vez, uma obra do historiador
Renato César Carneiro vem sacolejar as escrivaninhas dos
arquivos brasileiros, e não só da Paraíba, para resgatar o dito,
o escrito e o bem entendido, desse que foi o maior
enfrentamento interpoderes que o Brasil já havia presenciado
em sua história recente.

Afeito ao trabalho incansável de escafandrista, Renato


César mergulha na história do Direito Eleitoral desde o seu
primeiro livro, “O poder normativo da Justiça Eleitoral”, de
2004. Em 2006, em “As novas Regras do Jogo”, esclareceu a
reforma eleitoral para àquelas eleições. Resgatou a história do
voto na Paraíba em seus, “Cabestro, Curral e Peia”e “A
Bagaceira Eleitoral”. Debruçou-se sobre “As origens da Justiça
Eleitoral da Parahyba” e sobre “A Justiça Eleitoral da
Parahyba”. fragmentos históricos que viajam de 1932 a 1937,
no primeiro, e de 1945 até 2012, no segundo.

Em 2013, lançou o primeiro volume da série “Casos


Eleitorais Célebres”. Uma coleção que se empenha em trazer à
luz toda a repercussão social e midiática dos que foram os
mais traumáticos e emblemáticos julgamentos eleitorais
originados na Justiça Eleitoral da Paraíba. Até o seu quinto
volume, Renato Carneiro já havia haurido “A inscrição eleitoral
de Joaquim Pessoa – irmão de João Pessoa -- (1933)”, “A
impugnação do registro de Pedro Gondim (1965)”, “A cassação
7
de Severino Bezerra Cabral (1965)”, “O impeachment de Pedro
Gondim (1965)”, “O caso Dona Dida (1982)”, “A eleição indireta
de Milton Cabral (1986)”, “De pai para filho, Como os Cunha
Lima atuaram na constituinte para que Cássio sucedesse o pai
em Campina Grande (1988)”, “O caso Wilson Braga (1990)” e
“O caso Lúcia Braga (1992)”.

Agora, neste volume, resgata não apenas um caso


eleitoral, mas arranca dos braços do esquecimento um dos
maiores homens públicos da Paraíba e do Brasil, o senador
Humberto Lucena. O famoso “Caso dos calendários”, chega ao
auge da série, mas não a encerra, já. Pois, sabendo à René
Ariel Dotti e Edgard Costa, a irrequieta mente carneiriana não
cede espaço à acomodação e descanso e já prescruta, em
apneias cada vez mais profundas, outros importantes casos
julgados pela Corte Eleitoral paraibana. Este volume VI é o
volume de Humberto Lucena.

Formado em Direito, Humberto foi também radialista.


Elegeu-se deputado estadual e deputado federal pelo PSD.
Depois, já no MDB, reelegeu-se deputado federal em 1966, e
em 1974. Em 1978, chegou ao Senado pela Paraíba. Entrou no
PMDB e foi reeleito senador, em 1986. Presidiu o Senado
Federal na Assembleia Nacional Constituinte de 1988.

De volta ao comando do Senado Federal, durante


o Governo Itamar Franco, foi reeleito em 1994 com 415.889
votos, na época dos acontecimentos aqui tratados. Faleceu no
curso do mandato, em 13 de abril de 1998. Neto de Sólon
Barbosa de Lucena, governador da Paraíba de 1920 a 1924,
8
Humberto foi casado com D. Ruth Maria Heusi de Lucena e
teve 4 filhos. Destes, apenas Iraê Lucena seguiu carreira
eletiva e chegou a ser deputada estadual pelo PMDB no
Estado. Denunciado, julgado e cassado, Humberto enfrentou
seus algozes e safou-se, na época, aprovando uma lei de
anistia que, sete anos após sua morte, veio a ser reconhecida
como constitucional pelo STF.

Em 2016, um impeachment derrubou Dilma Roussef.


Ficamos com Temer como Presidente. Brindamos o ano novo
com uma PEC que congelará os gastos primários do Brasil por
20 anos. Os calendários hoje estão em nuvem. Pagamos os
presentes com bitcoins. Andamos de Uber... ainda nutrimos o
PCC, que foi franqueado para vários Estados, mantemos altos
índices de violência e assassinatos. Ganhamos a Lava-Jato e
vemos políticos e altos empresários presos, acuados por
pagamento e recebimento de propinas. Tudo on line,
compartilhável agora, e viralizado em terabaites nas redes
sociais.

Este 2017, quer reformar a Previdência e anistiar


políticos que usaram caixa-dois em suas campanhas
anteriores. 2018 será ano de eleições gerais.

De legislador, Humberto Lucena virou lei. Hoje, é quase


impossível se compreender que houve tempo em que
candidato confeccionava e distribuía calendários feitos com
dinheiro do povo, exibindo sua própria imagem e palavras de
final de ano-velho, contando todos os dias de ano-novo. Ano

9
de eleição, geralmente. Como Nação, não aceitamos mais isso.
Mas aconteceu. Scripat manent.

Este livro coroa a série “Casos Eleitorais Célebres”. Este


livro ressuscita o político Humberto Lucena. Este livro
emancipa o historiador Renato César Carneiro.

Genedilson Ferreira Monteiro


Jornalista

10
PREFÁCIO

CAMINHANTE SOBRE O MAR DE NÉVOA


Marcílio Toscano Franca Filho1

Se o século XIX foi o século dos legisladores, o século XX,


por seu turno, foi o século da Administração Pública, ao passo
que o século XXI tem tudo para ser o século em que o papel do
Judiciário será o mais exuberante... A micro-história que se
conta neste livro confirma esse argumento do protagonismo
judicial e dos primórdios da judicialização da política, embora
antecipando-o para a última década no século XX, uma vez
que narra marcantes episódios que se passaram entre 1993 e
1998 nos tribunais deste país. Trata-se, portanto, de um livro
sobre um caso judicial verídico, singular, mas de ampla
repercussão, como antes já haviam sido os magistrais “O
Queijo e os Vermes”, de Carlo Ginzburg, ou “Por que Defendo
os Comunistas”, de Sobral Pinto – ambos relatos judiciais de
grande importância.
Refiro-me aqui à micro-história porque revejo nesta obra
1
Presidente do Ramo Brasileiro da International Law Association (ILA Brasil). Árbitro
Suplente do Tribunal Permanente de Revisão do MERCOSUL (TPR). Pós-Doutorado
em Direito pelo Instituto Universitário Europeu (EUI, Florença, Itália), onde foi
Calouste Gulbenkian Fellow no Departamento de Direito (2007/2008). Doutor em
Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (Portugal, 2006, bolsa
FCT). Professor do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba e
líder do LABIRINT (Laboratório Internacional de Investigações em Transjuridicidade).
Desde 1997, é Procurador do Ministério Público de Contas do Estado da Paraíba.
Membro da International Association of Constitutional Law (IACL), da International
Society of Public Law (ICONS), do Instituto Hispano-Luso-Americano de Derecho
Internacional (IHLADI), da Rede Brasileira Direito e Literatura (RDL) e da
International Law Association (ILA).
11
do Professor Renato César Carneiro, meu colega de
Departamento de Direito Público na Universidade Federal da
Paraíba, alguns elementos daquela escola historiográfica que
tem no italiano Carlo Ginzburg um dos seus maiores
expoentes. Uma escola – a da micro-história – que costuma
examinar um campo ou um aspecto reduzido da realidade
para, assim, enxergar mais longe. E, de fato, o Professor
Renato Carneiro vai bem mais longe do que apenas relatar
aquele processo de cassação do senador Humberto Lucena
pela impressão de calendários na gráfica do Senado Federal. O
seu horizonte é tão amplo que permite uma metáfora
pictórica.

Em 1818, quando o alemão Caspar David Friedrich dá as


pinceladas finais na sua tela “Der Wanderer über dem
Nebelmeer”, a tinta a óleo habilmente manejada pelo pintor
transforma-se num estupendo panorama, talvez do cume dos
Alpes suíços, em que um senhor solitário, de pé e austero,
envergando um pesado sobretudo e um bastão de caminhada,
posiciona-se de costas para o expectador da obra e, com os
cabelos ao vento, observa a paisagem montanhosa coberta
por névoa densa e muita neve. A cena romântica parece
carregar um convite simultâneo ao desafio heroico de uma
expedição rumo ao topo e à coragem de aceitar aquele repto
perigoso e sublime. A lição que extraio de Friedrich é de que a
montanha é lugar de conquista, glória e triunfo para os que a
conseguem sobrepujar.

Pouco menos de duzentos anos depois daquele início


agitado do século XIX – repleto de mudanças sociais, políticas
12
e culturais –, um outro artista (nada romântico), cidadão de
Patos (PB) mas então radicado em Florença (Itália), retrata um
novo panorama montanhoso que evoca aquele mesmo
“Caminhante sobre o Mar de Névoa” de Caspar David
Friedrich. Trata-se agora de “Tibet”, quadro que Francisco José
Souto Leite, ou melhor Shiko, pinta com tinta acrílica sobre
papel Fabriano. Como na tela de Friedrich, lá estão a paisagem
montanhosa e invernal, a solidão do protagonista, igualmente
de costas para o expectador, e o mesmo convite-desafio para a
expedição até o cume mais elevado daquelas montanhas
nevadas. Apenas um detalhe desconcertante parece-me
distinguir as duas obras: na de Shiko, o sertanejo que pintou a
neve, o homem que mira o cume da cadeia montanhosa não
tem pés, mas raízes que escorrem montanha abaixo...
Explorador com pés de raízes, mas que não sugerem
estagnação, ao contrário, dão a impressão de que cada passo
está seguro em direção ao topo.

Se me fosse dada a incumbência de escolher um quadro


como ilustração do presente livro deste outro talentoso
patoense, o Professor Renato César Carneiro, escolheria o do
seu conterrâneo Francisco “Shiko” Souto Leite no lugar
daquela tela romântica do alemão oitocentista Caspar David
Friedrich. Bem enraizado em fatos, dados, peças processuais,
artigos de imprensa, opiniões de advogados, abundante
jurisprudência e circunstâncias da história política local,
Renato César Carneiro observa os cimos mais altos da
cordilheira jurídica, a Constituição e o Supremo Tribunal
Federal, e bem empreende a sua jornada imune aos desafios
das grandes travessias. Ao final, consegue jogar luzes sobre um
13
aspecto reduzido da realidade política – um único processo –
para, assim, enxergar mais longe temas como opinião pública,
corrupção, judicialização, coronelismo, mídia, ativismo judicial,
Ministério Público e relações Congresso Nacional x STF –
embora, é verdade, Carneiro não se preocupe, em nenhum
momento, em apresentar uma síntese totalizadora, capaz de
revelar sua sentença moral sobre aquele julgamento tão
complexo.

O enredo é bem urdido. O texto é cativante. O tema


central – um embate entre Parlamento e Suprema Corte –
nunca foi tão atual. Misturando todos esses ingredientes, o
resultado é um livro excepcional, rico em informações e
detalhado em argumentos político-sociológicos e técnico-
jurídicos, muitas vezes embalados pela retórica de oradores
brilhantes, seja na tribuna parlamentar, seja na barra dos
tribunais – e isso dá molho especial ao texto.

O fato de o livro estar bem radicado em teses,


argumentos, dados e teorias não lhe dá, em momento algum,
imobilidade. Tanto quanto na dinâmica imagem construída por
Shiko, a paisagem retratada por Renato César Carneiro não é
séssil, inane de imobilidade. O trabalho – repito – é
excepcionalmente rico em movimento, nunca enfadonho ou
monótono, e, dessa maneira, enraizado em cada passo, o
peregrino Renato César Carneiro ultrapassa o mar de névoa e
conduz o seu leitor a trilhar o seu caminho e nele encontrar
um belo panorama.

João Pessoa (PB), dezembro de 2016.


14
CAPÍTULO I

15
ANTECEDENTES

“O uso do cachimbo faz a boca


torta” (Provérbio popular)

Setembro de 1988. Véspera de eleição para escolha de


prefeitos e vereadores e poucos dias antes de promulgação da
“Constituição Cidadã”, pela Assembleia Nacional Constituinte.

Na Parahyba, policiais do Departamento de Polícia


Federal cumpriam mandado judicial, expedido pelo
magistrado responsável pela fiscalização da propaganda
eleitoral na capital. O local da diligência? A Gráfica da
Assembleia Legislativa do Estado, onde estariam sendo
impressos milhares de panfletos e de cédulas eleitorais. O
diretor responsável pelo serviço e mais dois servidores foram
levados à delegacia para prestar esclarecimentos.

O fato gerou um conflito entre a Assembleia Legislativa


e o Tribunal Regional Eleitoral. Uma comitiva de deputados,
liderada pelo presidente da Casa Legislativa – deputado José
Fernandes de Lima – se deslocou até o edifício-sede do TRE.
Revoltados com a “invasão” às dependências do Poder
Legislativo, foram se queixar ao representante da Justiça
Eleitoral no Estado. Diante do desembargador Joaquim Sérgio
Madruga, argumentaram que a diligência policial era
inoportuna e inconsequente. O presidente da Assembleia
chegou a enviar um telegrama ao ministro da justiça, o jurista
Paulo Brossard, cobrando providências.

16
Enquanto a maioria negava a prática, um parlamentar
admitiu que cerca de doze deputados haviam autorizado a
impressão de propaganda eleitoral na gráfica oficial, “mas
sempre fornecendo papel e tinta”, afirmou.

Nem todos julgavam a prática ilícita. Convencido que


agira dentro da Lei, o deputado Judivan Cabral justificou-se: “ -
Não há nada demais em um deputado mandar fazer
propaganda eleitoral na Gráfica da Assembleia”.2 O serviço
prestado pela Casa Legislativa “custava muito mais barato do
que uma gráfica particular”, completou Judivan, que
representava eleitoralmente a região do Vale do Piancó.

Em nota oficial, a Assembleia Legislativa repudiou a


ação da polícia, considerada arbitrária contra um dos poderes
do Estado.

Reunidos em “sessão secreta”, os deputados decidiram


que nenhum integrante da Casa de Epitácio Pessoa prestaria
depoimento no Inquérito Policial instaurado para apurar o
caso. Apostavam que tudo seria decidido “politicamente” nas
instâncias federais, notadamente junto ao Ministério da
Justiça. Foram além: expediram um Decreto Legislativo,
impedindo que três parlamentares – José Luiz Maroja (PMDB),
Judivan Cabral (PRN) e Péricles Vilhena (PMDB) -, fossem
processados criminalmente sobre o fato, a pedido do
corregedor regional eleitoral do TRE/PB, juiz Romero
Coutinho. O relator da matéria, deputado Pedro Adelson,

2
Jornal O NORTE, capa da edição de setembro de 1988.
17
justificou em seu parecer que “permitir a licença seria negar
toda a história do Poder Legislativo”. Pedro invocou um
precedente em que o mesmo órgão legislativo havia rejeitado
pedido semelhante, feito pelo então governador, Tarcísio
Burity, contra o próprio parlamentar.3

Os deputados tentaram, a todo custo, trancar o


Inquérito Policial.

A quizila provincial chegou aos ouvidos do presidente


da Assembleia Nacional Constituinte, deputado federal Ulisses
Guimarães. Após reunião com “o senhor Diretas Já”, os
deputados estaduais saíram animados e, para não aumentar a
crise entre os dois Poderes, resolveram fazer um “pacto de
silêncio”. A “autonomia do Poder Legislativo” e a “imunidade
de seus membros” eram as duas palavras de ordem mais
repetidas na Casa de Epitácio Pessoa. Os legisladores não
admitiam sujeitar-se à autoridade da Justiça Eleitoral.

Setembro de 1994. Seis anos após o episódio


envolvendo a Assembleia Legislativa da Parahyba e a Justiça
Eleitoral, o fato se repetiria, só que, desta vez, de forma
bastante ampliada: numa noite de quinta-feira, dia 13,
Humberto Lucena teve seu registro de candidatura à reeleição
cassado por cinco, dos sete ministros do TSE. O motivo? O uso
do serviço gráfico do Senado, onde mandou imprimir 130.000
calendários e tê-los enviado a eleitores da Parahyba, durante o
Natal de 1993, via franquia postal. O gesto de Lucena apenas

3
Jornal A UNIÃO, edição de 19 de dezembro de 1990.
18
repetia uma prática já consolidada e incorporada aos nossos
costumes políticos: a utilização de gráficas oficiais pelos
parlamentares, nas diversas Casas legislativas do país.

A cassação, pelo TSE, do registro de candidatura à


reeleição do presidente do Senado colocou Lucena no
epicentro de uma crise jamais vista entre dois poderes da
República - o Parlamento e o Poder Judiciário. A retaliação à
Justiça Eleitoral não tardaria! Deputados federais e senadores
apresentaram um conjunto de medidas legais para salvar
Humberto. O mandato do presidente do Congresso Nacional
não era a única coisa em jogo. Mais 16 parlamentares haviam
recorrido ao mesmo expediente do senador paraibano.

Dentre os Projetos legislativos que compunham o


“pacote Lucena”, a medida mais efetiva - a polêmica “Lei
Humberto Lucena” -, anistiava a todos. Por isso mesmo,
passou a ser um dos documentos legislativos mais criticados
do ordenamento jurídico nacional. Depois de sancionada, seria
submetida ao filtro de constitucionalidade exercido pelo
Supremo Tribunal Federal.

É de que trata este sexto volume da coleção Casos


Eleitorais Célebres.

* * *

19
O PACIFICADOR
Humberto era um conciliador nato.
Mais do que a fama, era uma
qualidade real, inerente ao seu
caráter.

Desde que optou pela carreira política - ainda em


meados do século XX -, o paraibano Humberto Coutinho de
Lucena sabia que estava exposto aos sacrifícios naturais que a
vida pública proporciona. Diferente do avô, Solon Barbosa de
Lucena, que não experimentou uma longa carreira, Humberto
Lucena teve quatro décadas de uma trajetória política
bastante exitosa, ainda que marcada por fortes emoções,
apreensões, surpresas e imprevistos.

Nascido no dia 22 de abril do ano de 1928, na capital


do Estado, quando ainda era chamada de Parahyba do Norte,
Humberto foi forjado num ambiente bastante propício ao
exercício da atividade político-partidária.

O avô paterno, Solon Barbosa de Lucena, havia sido


deputado estadual, deputado federal e presidente 4 da
Parahyba, em 1916 e de 1920 a 1924. Severino Lucena, o avô
materno, presidiu o Partido Social Democrático - fundado na
Parahyba pelos irmãos Carneiro, Rui e Janduhy -, e o Conselho
Administrativo do Estado, durante a Interventoria de Rui
Carneiro. A genitora de Humberto, Maria Hylda Neves
Coutinho de Lucena, liderava a ala feminina do PSD.
4
Assim eram chamados os governadores durante a Primeira República.
20
Embora sonhasse ser diplomata,5 Humberto Lucena
acabou se formando em Direito, pela vetusta Faculdade do
Recife, turma de 1951.

Dono de uma voz possante e grave, o neto de Solon de


Lucena estreou na Rádio Tabajara e foi âncora num programa
de conteúdo político denominado “ALÔ MOCIDADE”. De 1944
a 1945, na mesma emissora, traduziu as notícias da 2ª Guerra
Mundial, editadas pela famosa BBC de Londres.

Aos vinte e dois anos e ainda concluinte do Curso de


Direito, Lucena disputou uma cadeira na Assembleia
Legislativa, sob a legenda do Partido Social Democrático. Ficou
na primeira suplência e, com o tempo, assumiu a titularidade
do cargo.

Em novo pleito, o de 1954, elegeu-se Deputado


Estadual para a legislatura de 1955 a 1958. Durante o
mandato, foi líder de seu partido e membro das comissões de
Redação e Leis e de Constituição e Justiça.

Na eleição seguinte, Humberto Lucena conquistou o


cargo de deputado federal para o qual foi reeleito três vezes, o
que lhe permitiu exercer quatro mandatos consecutivos na
Câmara Federal: 1960/1963; 1964/1967; 1967/1971 e
1975/1979.

5
Em 1981, Humberto Lucena integrou a Delegação Brasileira na XXXV Sessão da
Assembleia Geral da ONU, na condição de observador parlamentar do Senado
Federal.
21
A implantação do bipartidarismo pelo Ato Institucional
n. 2, de 1965, durante o Governo Militar, praticamente
obrigou-o a filiar-se ao Movimento Democrático
Brasileiro/MDB.

Em sua primeira peleja eleitoral para o Senado, em 1970,


Humberto escolheu como tema principal de campanha a
pregação pelo restabelecimento do Estado de Direito e a
restauração da democracia no Brasil. Perdeu por cinquenta mil
votos, numa eleição em que foram computados 92.092 votos
em branco, e 26.327 nulos. Segundo analistas políticos da
época, o “cacique de Itararé” (Argemiro) e Humberto
perderam a eleição para o abuso de poder econômico,
perpetrado pelos vitoriosos, Domício Gondim e Milton
Bezerra Cabral.

Sem mandato, Lucena assumiu a assessoria jurídica do


condomínio acionário dos Diários Associados.

No pleito de novembro de 1974 foi reconduzido à


Câmara dos Deputados e, durante a legislatura, foi suplente da
Comissão de Constituição e Justiça.

O ápice de sua trajetória político-eleitoral ocorreu em


1978, quando o eleitorado paraibano escolheu-o senador da
República. Durante a legislatura, exerceu duas lideranças: a do
Movimento Democrático Brasileiro/MDB e a do Governo. 6
6
Naquela Casa Legislativa, entre 1979 a 1985, Humberto Lucena apresentou quase
trinta Projetos de Lei e vários Requerimentos. Dentre os Projetos de sua autoria,
nesse período, destaco os de n. 67/1979, que dava nova redação à Lei de
22
Lutou por eleições diretas para a presidência da República e
para prefeitos das capitais.

Com a abertura política iniciada em 1979, que permitiu


o retorno ao pluripartidarismo, Humberto Lucena passou a
liderar, na Parahyba, o Partido do Movimento Democrático
Brasileiro/PMDB.

Em fevereiro de 1985, disputou a presidência do


Senado. Foi derrotado pelo correligionário José Fragelli (MT),
por apenas um voto de diferença.

No pleito de 1986, o eleitorado da Parahyba


reconduziu-o ao Senado. A outra vaga foi conquistada pelo
empresário Raimundo Lira.

No fim de janeiro de 1987, disputou novamente a


presidência do Senado e venceu o senador Nelson Carneiro,
representante do Rio de Janeiro.

Humberto Lucena sempre ocupou um lugar de


destaque no cenário político nacional. Durante os trabalhos da
histórica Assembleia Nacional Constituinte (1987/1988),
notabilizou-se por ter sido o autor da Emenda que assegurou a
manutenção do presidencialismo como sistema de governo.

Em 1989, vários de seus parentes eram funcionários do


Senado, razão pela qual foi acusado de nepotismo. Defendeu-

Inelegibilidade – Lei Complementar n. 5, de 29.04.1970 – e o Projeto de Lei n. 70,


de 1980, que dispõe sobre coligação partidária.
23
se afirmando que todos ocupavam cargos de confiança e que
nenhum era estável.

No Senado, durante o Impeachment de Collor de


Mello, foi o primeiro a subscrever o pedido de abertura do
processo.

No início de 1993, após disputa interna no seu partido,


Lucena tornou-se o primeiro político brasileiro a se reeleger
para a presidência do Senado, numa mesma legislatura.
Praticamente foi aclamado por todos os partidos políticos! 7 A
partir daí passou a fazer parte de um seleto número de
parlamentares que chegaram a dirigir, por mais de uma vez, o
Congresso Nacional.8

Ainda no ano de 1993, Humberto Lucena presidiu o


processo de Revisão da Constituição Federal de 1988. Durante
a CPI dos “Anões do Orçamento”, em outubro do mesmo ano,
teve o seu nome citado pelo ex-assessor do Senado, José
Carlos Alves dos Santos. O fato abalou a sua credibilidade para
presidir a Revisão Constitucional. Em resposta, o senador
paraibano abriu mão do sigilo bancário e a Subcomissão de
Bancos da CPI considerou a sua movimentação compatível
com a sua renda. Humberto foi inocentado!

Como a maioria dos grandes líderes do seu tempo,

7
Dos 72 senadores presentes, 69 votaram em Lucena e três votaram em branco.
8
Outros senadores presidiram o Congresso Nacional, mais de uma vez, a saber:
Petrônio Portella Nunes, Antônio Carlos Magalhães, José Sarney e Renan
Calheiros.
24
Humberto tinha um sonho: queria governar a Parahyba. Seria
o coroamento de sua carreira política. Por quatro vezes, o
“cavalo lhe passara selado”.

Em 1965, quando havia disputado a indicação no PSD,


com o senador Ruy Carneiro, teve o seu nome vetado pelos
militares.

No ano de 1970, certamente seria ele o candidato do


partido, não fosse alteração legislativa criando a figura dos
governadores “biônicos”, conforme registrou em discurso
proferido em 31 de agosto de 1970, na Câmara dos
Deputados:

“...Preparei-me então, para ser o vosso candidato a


Governador, em 1970. Não podia recusar os
apêlos que me chegavam de toda a Paraíba, a
cujo serviço me entreguei, de corpo e alma,
ainda na mais tenra idade. Mas razões e forças
superiores à minha e à vossa vontade
transferiram, para 1974, as eleições populares de
Governador, único sistema em que, na atual
conjuntura brasileira, ser-me-ia possível disputar,
em igualdade de condições com o candidato
adversário, a preferência do povo paraibano...”.9

Em 1982, quando foram realizadas as primeiras


eleições diretas para governador após o fim do ciclo dos
'biônicos', Humberto abriu mão em favor de Antônio Marques
Mariz, que perdeu a disputa.
9
Câmara dos Deputados, Departamento de Imprensa Nacional, 1970, p. 4.
25
Quatro anos depois, Lucena chegou a fazer os contatos
políticos iniciais, mas concluiu que ainda não era o seu
momento. Ouviu as bases do partido e retirou seu nome em
apoio à candidatura que apresentava como potencialmente
vitoriosa, o que se concretizou com a eleição do professor e
neófito em política, Tarcísio de Miranda Burity.

Em 1990, abriu mão pela terceira vez, em favor de


Ronaldo Cunha Lima.10
Na eleição seguinte, em 1994, ensaiou a pré-
candidatura, mas repetiu os gestos anteriores e deu
oportunidade a Antônio Mariz, que foi o eleito.

Preservada a unidade partidária, Humberto foi


recompensado com a reeleição para o Senado.

Durante o tempo em que presidiu por duas vezes o


Senado da República, Lucena recebeu várias comendas de
órgãos e instituições, dos mais diversos grupos representativos
da sociedade. Uma delas, a “Medalha do Pacificador” -
concedida a cidadãos nacionais que hajam prestado relevantes
serviços ao Exército Brasileiro -, é a que melhor simboliza a sua
contribuição à política local. As seguidas renúncias para
disputar o governo do Estado, abrindo oportunidade em favor
10
Em discurso proferido no Senado, em 05 de maio de 1998, Ronaldo Cunha Lima
relembrou como chegou a se candidatar ao governo do Estado: “Prefeito da minha
cidade em 1986, fui convocado a deixar o meu mandato para disputar o Governo
do Estado, e, uma vez mais, meu Partido buscava alguém de outro partido para ser
candidato. Foi nessa ocasião, Sr. Presidente, que cunhei uma frase ao meu estilo e
sintetizei minha vida, dizendo: em 1982, deixa para depois; em 1986, não foi a
minha vez, mas em 90 ninguém me sustenta.”
26
dos companheiros de partido, indicava a busca permanente
pela unidade partidária.11 A virtude de conciliador não era
apenas uma fama que lhe foi impingida, mas uma qualidade
real, inerente ao seu caráter. Mas, o exercício da arte da
conciliação não era ilimitado, como chegou a sentenciar: “ -
Mas há um limite para a tolerância e para a conciliação. É a
dignidade pessoal e política.”12

Mesmo depois de morto, Humberto Lucena nunca


deixou de ser uma referência para os políticos paraibanos. A
sua principal característica – o elevado espírito de concórdia -,
ajudou-lhe a granjear a notoriedade que o acompanhou
durante toda a sua trajetória política. Depois de Rui Carneiro,
de quem era um fiel discípulo, foi Lucena, sem dúvidas, o
político mais pacificador da história da Parahyba, como
descreveu o jornalista Nonato Guedes:

Torturava-lhe, no íntimo, a suposição divisionismo,


porque fora treinado na escola do antigo PSD, na arte
da pacificação partidária como meta de conquista e
sobrevivência do Poder.13

Se em política saber ouvir é fundamental, poucas


lideranças do Estado exerciam tão bem a função como

11
Consciente do grande desafio da política nacional, construído a partir da Constituição
Federal de 1946, de consolidar os partidos nacionais, Humberto Lucena construiu uma frase
lapidar: “Criar partidos sempre foi uma tarefa fácil, até fácil demais, entre nós. O difícil,
mesmo, é mantê-los, ao longo do tempo.” (In TEMAS EM FOCO. Brasília: Senado Federal,
1991, p. 14).
12
LUCENA, Humberto. TEMAS EM FOCO. Brasília: Senado Federal, 1991, p. 37.
13
GUEDES, Nonato. Um conciliador nato. In ARAÚJO, Fátima. HUMBERTO LUCENA –
O verbo e a liderança. João Pessoa: Ed. texto&arte, 1999, p. 9.
27
Humberto. Essa virtude era testada com frequência, todas as
vezes que convocado pelos companheiros de agremiação. Não
raro, atuava sempre na condição de verdadeiro “bombeiro”,
arbitrando vaidades e interesses, às vezes nem sempre
republicanos...

De fato. Humberto Lucena sabia se comportar como


algodão entre cristais! O espírito equilibrado talvez justifique
sua única derrota eleitoral, ocorrida no pleito de 1970, para o
Senado, quando disputou ao lado de Argemiro de Figueiredo.
Os repetidos gestos em favor dos seus companheiros de
partido confirmam o elevado espírito de conciliação;
Humberto preferia colocar, em segundo plano, os seus
projetos pessoais, tudo em nome da unidade e do interesse da
agremiação partidária que presidia.

* * *

28
Foto: Humberto Lucena, no gabinete da presidência do Senado, que
presidiu por duas vezes consecutivas. Fonte: Jornal O ESTADO DE SÃO PAULO,
edição de 1994.

29
UM CÓDIGO DE ÉTICA PARA O SENADO

02 de fevereiro de 1993. Humberto Coutinho de


Lucena entrava para a história política nacional ao ser reeleito
para presidir a mais importante Casa Legislativa do país. Faltou
pouco para conquistar a unanimidade dos votos dos seus
pares. Sessenta e nove senadores sufragaram o seu nome.
Apenas três parlamentares votaram em branco.

No discurso de posse, Lucena traçou algumas metas


que desejava alcançar. Uma delas chamava a atenção: a
criação de um Código de Ética para o Senado.

A promessa de Humberto não demorou a ser


cumprida. Já no mês seguinte, dia 17 de março, o tão
prometido documento legislativo interno entrou em vigor. A
Resolução nº 20 instituiu o primeiro Código de Ética e Decoro
Parlamentar do Senado da República Federativa do Brasil. No
seu primeiro ato como presidente da Casa, Lucena registrou
um marco histórico. Rui Barbosa, o maior expoente do Senado
e também seu patrono, ficaria orgulhoso, sem dúvidas!

Dentre as condutas proibidas, constava expressamente a


de praticar abuso do poder econômico no processo eleitoral.
Para inibir a prática - já considerada ilícita pela Lei
Complementar nº 64, de 1990, chamada de Lei das
Inelegibilidades -, o Código de Ética do Senado previa como
pena máxima a perda do mandato eletivo, a ser decidida pelo
plenário da Casa. A representação poderia ser formalizada
pela Mesa do Senado, por qualquer partido político ou, ainda,
30
pelo Conselho de Ética e Decoro Parlamentar.

O inimaginável era que, um ano após a entrada em


vigor do Código de Ética e Decoro Parlamentar, seria o seu
idealizador, o próprio Humberto Lucena, o primeiro
parlamentar a responder, na Justiça Eleitoral, pela prática de
abuso de poder político e abuso de poder econômico, duas
condutas combatidas na Lei das Inelegibilidades e no Código
de Conduta do Senado.

Após renunciar mais uma vez ao direito de concorrer


ao poder executivo estadual e de se lançar na disputa em
busca de um terceiro mandato para o Senado, Humberto foi
surpreendido com uma ação eleitoral no TRE paraibano,
ajuizada pelo procurador regional eleitoral em fevereiro de
1994. Começava aí o seu calvário moral e político, uma
verdadeira via crucis!

Inocentado inicialmente pelo TRE da Parahyba, Lucena


foi condenado pelo Tribunal Superior Eleitoral. No dia da
eleição – entre a decisão do TSE e o julgamento do Recurso
Extraordinário, pelo STF -, 415.899 eleitores paraibanos
absolveram-no do “pequeno pecado” e deram-lhe mais um
mandato de senador.

Humberto precisou travar grandes batalhas, em três


frentes: a primeira, nos Tribunais, para preservar o direito de
continuar candidato, ser votado e, depois de absolvido nas
urnas, ser diplomado e tomar posse; a segunda, no Congresso
Nacional, com o fim de proteger intacto o mandato legitimado
31
pelo sufrágio popular;14 a terceira, na opinião pública, dada a
intensa campanha negativa dos principais jornais do país, que
não conseguiam aceitar o imenso prestígio político do senador
paraibano. Os três diários - FOLHA DE SÃO PAULO, JORNAL
DO BRASIL e O ESTADO DE SÃO PAULO - retratavam
Humberto Lucena apenas como o tradicional político
nordestino, afeito às articulações de bastidores e à prática
fisiologista de empregar aliados e parentes. Na cota de
influência do senador paraibano, após a eleição de Tancredo
Neves, pelo Colégio Eleitoral, em 1985, contabilizou o Jornal O
GLOBO:

...Diversos de seus aliados assumiriam funções de


importância no Governo: Antônio Mariz foi para o
BNH; Mário Silveira ganhou uma diretoria do Banco
do Brasil; Pedro Gondim foi para o Banco do Nordeste
e Ivandro Cunha Lima para uma diretoria do BNDES.15

Mais do que a espada da Justiça Eleitoral pesava contra


Humberto Lucena o preconceito contra o Nordeste! Dona
Mora, esposa do experiente líder, Ulysses Guimarães, já havia
chamado a atenção sobre o fato, em relação a outro
nordestino, José Sarney:

“...os paulistas sempre tiveram preconceitos contra os


nordestinos (...) Muito do que Sarney passou, por
exemplo, deve-se a esse preconceito paulista. Não
estou querendo justificar os erros do governo dele.

14
Tivesse sido processado no Conselho de Ética, Humberto fatalmente seria
inocentado, haja vista que outros parlamentares, assim como o presidente do
Senado, fizeram uso indevido da Gráfica oficial durante suas campanhas eleitorais.
15
Jornal O GLOBO, edição de 16.06.2016.
32
Mas não foi fácil para o Sarney enfrentar a
paulistada.”16

No aspecto legal, uma pergunta pairava no ar: a


decisão definitiva do Poder Judiciário deveria prevalecer sobre
a vontade do eleitorado? Para os juízes, sim, não fosse uma
polêmica Lei de Anistia.

O histórico precedente judicial originou uma crise entre


a Justiça Eleitoral e o Congresso Nacional. Com o tempo, a
cizânia seria alimentada por interpretações polêmicas e edição
de Resoluções editadas pelo TSE acerca da Lei Eleitoral: a
Resolução nº 21.702, que viria a reduzir o número de cargo de
vereadores em todas as Câmaras Municipais do país para as
eleições de 2004; a Resolução nº 22.156, que viria a impor aos
partidos a verticalização das coligações, às vésperas das
eleições de 2006; a Resolução nº 22.710, de 2007, (decorrente
de outro precedente da Parahyba – o “caso Walter Brito
Neto”), que regulamentaria a perda de cargo eletivo por
motivo de infidelidade partidária, dentre outras.

* * *

16
MORENO, Jorge Bastos. A História de Mora – A Saga de Ulysses Guimarães.
Editora Rocco, p. 32.
33
O CONTEXTO HISTÓRICO

A atual Constituição Federal do Brasil, promulgada em


05 de outubro17 de 1988, marcou o advento da chamada
“Nova República” e inaugurou uma nova ordem jurídica no
país. A Carta Magna se consolidaria com o perpassar do
tempo.

Quatro anos após a sua vigência, a efetividade da


“Constituição Cidadã” passaria por sua primeira “prova de
fogo”: o inusitado processo de impeachment do presidente da
República não impediu que a passagem do poder ocorresse
sem traumas, dentro do que previa as regras do jogo,
demonstrando o amadurecimento da nossa democracia.

Cinco anos depois, em 1993, os brasileiros foram às


urnas, em atendimento ao previsto no Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias. Manifestando-se em Plebiscito, a
expressiva maioria decidiu manter a forma republicana e o
sistema presidencialista de governo.

No ano seguinte, éramos surpreendidos com a morte


de Airton Senna, transmitida ao vivo pela TV, após seu carro
sobrar na perigosa curva Tamborelo, no Circuito de Ímola.
Como que para compensar a tragédia de Senna, no mesmo
ano, a “seleção canarinha” alegrava os brasileiros, ao
conquistar o tetracampeonato de futebol, desta vez, nos EUA.
17
Segundo o historiador Marco Antônio Villa, a data escolhida para promulgar a CF
de 1988, tem um caráter simbólico: era o dia anterior ao aniversário do presidente
da Assembleia Nacional Constituinte, o deputado federal Ulysses Guimarães.
34
No campo político, a sucessão presidencial seria
marcada pela trama do mais importante e bem-sucedido
plano econômico da história do país: o Plano Real -
engendrado pelos economistas Pérsio Arida e André Lara
Resende -, seria decisivo para o ex-ministro da Fazenda e
sociólogo, Fernando Henrique Cardoso, chegar à presidência
da República.

Em fevereiro, na Parahyba – Estado da federação -


onde “o sol nasce primeiro”18 e também lugar em que as
campanhas eleitorais começam antes do prazo autorizado pela
legislação -, o procurador regional eleitoral, Antônio Carlos
Pessoa Lins, ajuizou uma representação eleitoral no TRE
contra Humberto Lucena. O motivo? O fato de o presidente do
Senado, no fim do ano de 1993, ter enviado aos eleitores
paraibanos, via franquia postal, milhares de calendários
confeccionados pelo serviço gráfico do Senado.

Portanto, o “caso dos calendários” deve ser


compreendido no contexto histórico de sua época.
Semelhante aos dias atuais, em que a “Operação Lava-Jato”
lança luzes sobre a sociedade brasileira, o Brasil passava por
uma depuração dos costumes políticos: um presidente da
República era apeado do poder, uma CPI apurava desvios na
elaboração do Orçamento e o presidente do Senado tinha a
sua candidatura impugnada pela impressão de simples
calendários.

18
A referência é geográfica, por se encontrar em solo paraibano o ponto mais oriental das
Américas, o Cabo Branco.
35
Com o tempo, o “caso Humberto Lucena” entraria no rol
dos mais célebres julgamentos da Justiça Eleitoral.

* * *

Foto: Humberto Lucena, ao lado de Ronaldo Cunha Lima e Antônio


Mariz, após renunciar, mais uma vez, à pré-candidatura ao governo (Fonte:
Jornal O NORTE, capa da edição de 12.03.1994).

36
CAPÍTULO 2

A AÇÃO

37
A GRÁFICA DO SENADO

Agosto de 1963. Sob a presidência do senador Auro


Moura Andrade, a Resolução nº 20 criou, no Senado, o Serviço
de Informação Legislativa e o Serviço Gráfico (Segraf), com a
função de imprimir e divulgar as atividades do processo
legislativo. Antes, a tarefa era executada pelo Departamento
de Imprensa Nacional.

Por ironia do destino, a origem do Segraf está


associada ao abuso de poder imputado ao ex-presidente João
Goulart, conforme narrativa do secretário-geral do Senado,
Júlio Campos:

Na época em que era Presidente da República o Dr.


João Goulart, o Departamento de Imprensa Nacional
– DIN -, prestava serviços para o Congresso com a
publicação dos nossos diários oficiais, os Diários do
Congresso Nacional, da Câmara dos Deputados e do
Senado Federal.

Entretanto, ocorria que, toda vez que um Senador da


Oposição ao então Presidente Goulart fazia um
pronunciamento contra o seu governo, ele era
censurado; não era publicado.

O Departamento de Imprensa Nacional recusava-se a


publicar as atividades do Senado, e toda vez que uma
lei contrariava o interesse do então Presidente
Goulart, sua publicação era postergada, ocorrendo
inúmeros prejuízos com o atraso da entrada em vigor
dessa lei.

38
Então, visando acabar com esse problema, o Senado,
para resguardar a sua própria autonomia, resolveu
ter um centro gráfico, que se iniciou pequeno, foi
modernizando e, lamentavelmente, hoje é acusado de
ser um órgão que faz publicações políticas… 19

Na década de 70, com a absorção de novas tecnologias


e a implantação do sistema de impressão offset, o Segraf teve
um grande salto. Vinte anos depois, com a revolução
tecnológica, o Senado passou a ter um dos mais bem
equipados parques gráficos do país.

Desde a criação do Segraf, foi instituída para os


senadores uma quota mensal de publicações que, de um
modo geral, sempre foi utilizada. As primeiras instruções sobre
o seu uso, baixadas durante a presidência do senador Mauro
Benevides, incluía os serviços de impressão de cartões de
Natal e os calendários de Ano Novo.

Portanto, quando o paraibano Humberto Coutinho de


Lucena chegou ao Senado, em seu primeiro mandato, ainda
no ano de 1979, já era prática corriqueira, entre os
parlamentares, a impressão e a distribuição de cartões de
Natal e de calendários com as mesmas características daqueles
que serviram para embasar a ação judicial que levou à
cassação de seu registro de candidatura à eleição de senador,
em 1994.

Na década de 80, o ex-presidente do Congresso Nilo Coelho


proibiu que deputados e senadores usassem o serviço oficial para
19
DIÁRIO DO CONGRESSO NACIONAL, edição de 07.12.1994, p. 8119.
39
impressão de material que não fosse relacionado à atividade
parlamentar. A Resolução atendia a um pedido do senador Jorge
Bornhausen, do PDS catarinense, que estava sendo vítima das
verrinas publicadas no jornal “Lutas da Maioria”, impresso na gráfica
do Senado e controlado pelo seu adversário Jalson Barreto
(PMDB/SC).20 A determinação de Coelho nunca foi cumprida!

Com o tempo, a fama do órgão só piorou. Durante a


presidência do senador Moacyr Dalla (PDS/ES) houve
denúncias sobre a existência de um famoso “trem da alegria”.
Segundo os jornais da época, assim como Paulo César Farias
tinha seus cheques “assombrados”, a gráfica do Senado
também contava com os seus funcionários “fantasmas”: a
lotação de 1,4 mil funcionários no órgão, 800 deles sem
concurso público - jornalistas, engenheiros, arquitetos e
médicos -, em sua maioria, parentes de deputados e
senadores que nunca sujaram as mãos de tinta e nem sabiam
distinguir um clichê de um fotolito, e só compareciam ao
Senado em dia de pagamento, para receber os polpudos
salários.

Com um histórico bastante negativo, o Segraf voltaria


ser alvo da grande mídia do país no ano de 1994, por causa
dos famosos 130 mil calendários que traziam a efígie do
presidente do Senado, Humberto Lucena.

* * *

20
Jornal O GLOBO, edição de 03.03.1989, p. 2.
40
FELIZ NATAL, PARAIBANOS!

Mesmo em um Estado economicamente pobre como a


Parahyba é pouco crível que um simples calendário possa vir a
criar artificialmente, sobre o eleitor, algum estado mental,
emocional ou passional, capaz de influenciar e definir o seu
voto. Ainda que não tivesse sido essa a intenção, às vésperas
do Natal de 1994, Humberto Coutinho de Lucena resolveu
enviar a diversos eleitores do Estado, cento e trinta mil
calendários, confeccionados pelo serviço gráfico do Senado.

As aludidas peças publicitárias - conhecidas


popularmente como “calendários de parede” e feitos em papel
couchê -, mediam aproximadamente quarenta centímetros de
altura, por trinta de largura, cada. No centro, uma foto em
preto e branco, de tamanho 18cm X 14cm, em que o senador
paraibano aparece sorridente; logo abaixo, uma referência ao
ano de ‘1994’. Na parte alta dos engenhos publicitários, de
forma destacada, constavam os dizeres: ‘SENADOR
HUMBERTO LUCENA” e, em sua parte inferior, trazia a seguinte
mensagem:

Que 1994 seja um marco na vida dos brasileiros,


sobretudo dos mais pobres, que são a imensa maioria
da nossa população. Que Deus nos aponte os
caminhos para a saída da grave crise econômica e
social que leva, cada dia mais, a miséria e a fome nos
lares de milhões e milhões de pessoas carentes. É
tempo de servir e não de servir-se.’

Em texto gravado para ser veiculado pela televisão, a


41
mensagem de Natal do senador Humberto Lucena era outra:

Paraibanos,

Formulo votos de alegre Natal e de feliz Ano Novo


para todos. Sei das dificuldades por que passa a
imensa maioria de vocês, constituída de pessoas
humildes e carentes, sujeitas às turbulências da vida
nacional.

Temos que nos dar as mãos para Deus no sentido de


inspirar os nossos governantes e todos aqueles que
têm responsabilidade na condução dos destinos
nacionais, para que, juntos, possamos encontrar os
caminhos que nos levem a sair da grande crise
econômica, social, moral e política em que se
encontra o Brasil, particularmente no que tange ao
combate à inflação, cujo agravamento, cada dia que
passa, torna os ricos cada vez mais ricos e os pobres
cada vez mais pobres; e, também, no sentido de que
continuemos o processo de purificação dos nossos
costumes políticos e administrativos, inspirados na
grande mobilização popular pela ética na política, de
tal sorte que apuremos todas as denúncias de
corrupção e punamos os que sejam responsabilizados
por atos ilícitos nas esferas federal, estadual e
municipal.

Acredito que, assim, haverá condições de restabelecer


a credibilidade dos políticos, no seio da opinião
pública.

Que o espírito cristão do Natal renove a esperança de


melhores dias para o Brasil, tão sofrido e pobre, para

42
a Paraíba, no Ano Novo de 1994.21

Incorporada aos nossos costumes políticos, ninguém


imaginava que àquela simples mensagem de Natal, constante
nos calendários, seria interpretada pelo Ministério Público
como propaganda eleitoral antecipada.

Muito menos Humberto Lucena!!

21
LUCENA, Humberto. TEMAS EM FOCO, Vol. III. Brasília: Ed. Senado Federal, 1995,
p. 171.
43
Foto: O polêmico calendário, que motivou a cassação do registro do
candidato, pelo TSE. (Fonte: Autos da Representação Eleitoral)

44
Parte inferior do calendário enviado por Humberto Lucena. (Fonte: Autos
da Representação Eleitoral)

45
O IMPLACÁVEL PESSOA LINS!
Alguns eleitores desinformados e mais apaixonados, viam
Antônio Carlos Pessoa Lins como um algoz dos políticos paraibanos
pois, em curto espaço de tempo, entre 1990 e 1994, levou às barras
do Tribunal Regional Eleitoral, três grandes líderes da política local.

Em 1990, Pessoa Lins impugnou o registro de Wilson Leite


Braga ao Senado, em razão de sua prestação de contas, enquanto
governador, ter sido rejeitada pelo Tribunal de Contas do Estado.
Wilson venceu a batalha jurídica no TRE, mas perdeu no voto para
Ronaldo Cunha Lima!

Dois anos depois, o procurador regional eleitoral contestou


a candidatura de Antônia Lúcia Navarro Braga, que tentava disputar
a prefeitura da capital. A alegação? A sua condição de esposa do ex-
prefeito da capital – Wilson Braga -, que havia renunciado dois anos
antes para concorrer ao Senado. Na opinião de Pessoa Lins, Lúcia
representava a continuidade da oligarquia na prefeitura de João
Pessoa. Valendo-se das “brechas” da legislação eleitoral, Lúcia Braga
manteve sua candidatura até a véspera do primeiro turno. A
estratégia da renúncia garantiu seu nome constasse na cédula e
ajudou a eleger o candidato substituto, Chico Franca.22

No ano eleitoral de 1994, Antônio Carlos Pessoa Lins voltou


a agir e concentrou todo o seu arsenal jurídico na candidatura de
Humberto Coutinho de Lucena que, no início do ano, dava sinais de
que concorreria ao cargo de governador. A tese - defendida
abertamente pelo seu irmão e companheiro de partido, o
engenheiro Haroldo Lucena -, ganhou as manchetes dos jornais da
22
A história dos “casos” Wilson e Lúcia Braga foram relatados no volume anterior desta
coleção.
46
época.

Ocorre que outro senador peemedebista, Antônio Marques


Mariz, também demonstrava interesse em sentar na cadeira do
Palácio da Redenção. Com Mariz no páreo, era voz corrente no meio
político a desistência de Lucena, em nome da unidade partidária.
Dito e feito: Humberto Lucena abriu mão da disputa e optou pela
reeleição ao Senado.

Numa sexta-feira, 18 de fevereiro de 1994, por volta das


treze horas, o procurador regional eleitoral ajuizou, no TRE
paraibano, uma representação eleitoral contra Humberto Lucena. O
motivo? O fato de, no Natal de 1993, o senador paraibano ter
enviado aos eleitores paraibanos 130.000 calendários com
mensagem de Fim de Ano, confeccionados na Gráfica do Senado e à
custa da franquia postal.

Antônio Carlos Pessoa Lins considerava grave o uso do


dinheiro do contribuinte para bancar campanhas eleitorais. Não
apenas isso: o procurador achava um acinte Humberto Lucena ter
enviado a peça de publicidade às autoridades responsáveis pela
fiscalização da Lei eleitoral, a exemplo dos promotores e juízes das
cidades de Uiraúna e Sapé.23

A ousadia do gesto custaria muito caro ao presidente do


Senado!

Lucena parece ter mexido com os brios do Ministério


Público Eleitoral!

A petição inicial da representação subscrita era curta, tinha


23
Jornal O ESTADO DE SÃO PAULO, edição de 14 de setembro de 1994.
47
apenas três páginas. A forma direta e objetiva como foi redigida
expressava o estilo do seu subscritor. O fato de no centro dos
calendários, constar a foto de Humberto Lucena e, logo abaixo, a
grafia do ano eleitoral, levou o procurador à conclusão de que
Humberto Lucena praticara abuso de poder político.

Os artefatos foram enviados aos eleitores via CORREIOS, à


custa de franquia postal à que tinham direito os membros do
Congresso Nacional para correspondências oficiais.

O estatuto legal em vigor – Lei nº 8.713, de 30 de setembro


de 1993 -,24 não tipificava, ainda, as famosas “condutas vedadas aos
agentes públicos em campanha”; estas só receberiam atenção do
legislador três anos depois, a partir da edição da Lei eleitoral
“permanente”, a de nº 9.504, de 30 de setembro de 1997.

Sem definição legal específica, a conduta em questão era


tratada legalmente sob a denominação genérica de abuso de poder
político, ou econômico, ambos previstos no art. 22 da Lei das
Inelegibilidades (Lei Complementar n. 64|90). Na ausência de uma
Lei clara, os dois tipos de ilícitos - abuso de poder político e abuso
de poder econômico - não passavam de “conceitos jurídicos
indeterminados”, fenômenos comuns na legislação eleitoral e que
dão margem às mais variadas interpretações pelos juízes e tribunais,
em prejuízo ao princípio da segurança jurídica.

Lins enquadrou o fato ainda no artigo 59, §2º25 da Lei n.

24
A penúltima “Lei do Ano”. A última “Lei do Ano” foi a de nº 9.100, de 29.09.1995, que
regulou as eleições de 03 de outubro de 1996.
25
“Art. 59. A propaganda eleitoral somente é permitida após a escolha do candidato pelo
partido ou coligação em convenção.
1º Ao postulante à candidatura para cargo eletivo é permitida a realização, na
semana anterior à escolha pelo partido, de propaganda visando à indicação de seu nome.
48
8.713, que punia a prática de propaganda eleitoral fora de época
(antecipada). Além da pena de multa, o procurador regional
eleitoral requereu a declaração de inelegibilidade de Humberto
Lucena. A petição inicial da representação eleitoral tem o seguinte
teor:

MINISTÉRIO PÚBLICO ELEITORAL


PROCURADORIA REGIONAL ELEITORAL

Exmo. Senhor Desembargador Presidente do Colendo Tribunal


Regional Eleitoral da Paraíba.

O PROCURADOR REGIONAL ELEITORAL no Estado da Paraíba, vem


perante Vossa Excelência oferecer R E P R E S E N T A Ç Ã O contra
o SENADOR HUMBERTO LUCENA, com endereço na Ala Tancredo
Neves, Anexo II – Gabinete 52, no Senado Federal, em Brasília,
Distrito Federal, pelas razões e fundamentos aduzidos a seguir:

O ora Representado fez confeccionar e tem distribuído nos últimos


dias um calendário de parede, do ano corrente de 1994, medindo
aproximadamente 40cm X 40cm, no qual se vê com destaque, no
alto, os dizeres 'SENADOR HUMBERTO LUCENA' e, mais embaixo,
a seguinte mensagem:

'QUE 1994 SEJA UM MARCO NA VIDA DOS BRASILEIROS,


SOBRETUDO DOS MAIS POBRES QUE SÃO A IMENSA MAIORIA
DA NOSSA POPULAÇÃO. QUE DEUS NOS APONTE OS CAMINHOS
PARA A SAÍDA DA GRAVE CRISE ECONÔMICA E SOCIAL QUE LEVA,
CADA DIA MAIS, À MISÉRIA E À FOME NOS LARES DE MILHÕES E
MILHÕES DE PESSOAS CARENTES.

É TEMPO DE SERVIR E NÃO DE SERVIR-SE.'

2º A violação do disposto neste artigo sujeitará o responsável pela divulgação da


propaganda, bem como o beneficiado, à multa de dez mil a vinte mil Ufir.”
49
Ao centro, aparece o próprio Representado, em foto preto e
branco, tamanho 18cm X 14cm e, abaixo, o ano '1994'.

Tratando-se, como se trata, de um calendário certamente a ser


exibido em recintos os mais diversos, de uso público ou não,
chama atenção a quem estiver a 5 (cinco) metros ou mais, a
parte que resta legível do impresso, ou seja 'HUMBERTO LUCENA
1994', o que, na realidade, representa indisfarçável aceno de
propaganda política do Representado às próximas eleições de
outubro vindouro, sabido ser o ilustre Senador postulante a um
dos mandatos em disputa.

Tal verdadeiro exemplo de genialidade do 'marketing' eleitoral,


nada mais nada menos, veio de ser endereçado aos
Excelentíssimos Juiz Eleitoral e Promotor Eleitoral no município
de Uiraúna, deste Estado, também exemplo da maior ousadia, a
não servir como referencial ético ao ilustre Senador da
República.

Maior gravidade é de se atribuir ao 'brinde' ora distribuído, não


se sabe a quantos destinatários em todos os recantos do Estado,
quando se percebe, numa das faces do material
propagandístico, que foi o mesmo despachado na Empresa
Brasileira de Correios e Telégrafos à custa da 'franquia postal' a
que têm direito os membros do Congresso Nacional nas suas
correspondências 'oficiais', indubitavelmente custeadas pelos
cofres da Nação, mas que ora utilizada para difusão das
pretensões eleitoreiras do Representado, na mais acintosa
demonstração de uso irregular de verbas públicas que se tem
notícia, desde que lançados os primeiros ensaios da campanha
política, por alguns pretensos candidatos, ainda que a
desafiarem as barreiras impostas pela lei eleitoral.

Resta, tão somente, desvendar-se se não teria o Representado


também se utilizado da gráfica do Senado Federal, já que não

50
consta do material a identificação que comumente é vista nos
impressos feitos em empresas particulares.

O art. 22, da Lei Complementar n. 64/90, determina a abertura


de investigação judicial, para apurar o abuso do poder de
autoridade, ou o uso indevido de veículos ou meios de
comunicação social, em benefício de candidato ou de partido
político.

Por sua vez, o §2º, do art. 59, da Lei n. 8.713, de 30 de setembro


prevê a aplicação de multa a quem promover propaganda
eleitoral antes da época apropriada, ou seja, quando ainda não
realizadas as convenções para escolha dos candidatos pelos
partidos ou coligações.

Nestas condições, requer o MPE a abertura de investigação


judicial para o fim de apurar-se:

a) o local onde foram os calendários;

b) o custo da impressão, se afinal feita em gráfica particular, e

c) a quantidade efetivamente produzida.

Requer, ainda, a notificação do Representado para, querendo,


oferecer sua defesa e arrolar testemunhas, sendo ao término da
instrução, se julgada a Representação procedente, decretada a
inelegibilidade do ora Representado (art. 22, XIV, da Lei
Complementar n. 64/90, sem prejuízo da multa a que alude o
§2º, do art. 59, da Lei n. 8.713/93.

João Pessoa, 18 de fevereiro de 1994

Antônio Carlos Pessoa Lins


PROCURADOR REGIONAL ELEITORAL

51
À petição inicial, o procurador regional eleitoral anexou dois
exemplares dos aludidos calendários.

No Tribunal Regional Eleitoral da Parahyba, a representação


ganhou o número 132/94, Classe VII. A competência para instruir e
relatar o processo pertencia ao corregedor regional, cargo exercido
à época dos fatos, pelo juiz de Direito, Leôncio Teixeira Câmara, a
quem os autos foram remetidos.

A convenção do PMDB que homologou os nomes dos que


disputariam as duas vagas ao Senado ocorreu em março do mesmo
ano, portanto, após Pessoa Lins acionar o TRE. O detalhe, de ordem
fática, se transformaria numa das principais linhas de defesa
utilizada pelos advogados de Lucena, no TSE, e no STF. Poderia o TSE
apurar fatos anteriores ao registro de candidatura? No caso de
Humberto, quando a ação judicial foi ajuizada no Tribunal, ele
sequer ostentava a condição de pré-candidato, uma vez que o
partido ainda não havia realizado a convenção específica para tal.

No início, Humberto Lucena não deu muita importância ao


processo. Avaliou que jamais ele ganharia a dimensão que,
posteriormente, viria a assumir. Por isso, confiou sua defesa a um
parente, Solon Henriques de Sá e Benevides, advogado militante na
Justiça Eleitoral paraibana e um estudioso do Direito
Constitucional.26

Na contestação, Solon suscitou a preliminar de


incompetência do Tribunal Regional Eleitoral para investigar o
presidente do Congresso Nacional. Segundo a tese, Humberto
Lucena gozava da prerrogativa de foro junto ao Supremo Tribunal

26
Doutor em Ciência Política pela USP, atualmente Solon Benevides leciona a disciplina Direito
Constitucional na Universidade Federal da Parahyba.
52
Federal nas infrações penas comuns, ou “quando no polo passivo de
determinadas ações judiciais”.

Sobre o conteúdo dos calendários, Benevides sustentou que


não houve propaganda eleitoral subliminar e que a demonstração
de inexistência de finalidade eleitoreira estaria no fato deles terem
sido remetidos a magistrados que atuavam no poder judiciário do
Estado. Asseverou o advogado:

(…)
3. É profundamente lamentável, que se confunda
calendários de mensagem a todos os cidadãos do
país, com o denominado uso do poder econômico,
principalmente, quando tais mensagens não
constituem um brinde eleitoral, mas uma cota gráfica
que legalmente dispõe cada Parlamentar no Senado
Federal, para se dirigir a sociedade nos finais de ano,
expressando uma palavra renovada de esperança no
futuro da nação.

4. Não consta do texto do pré-falado calendário


nenhuma frase alusiva a propaganda eleitoral, nem
forma subliminar, pois o texto da mensagem é dirigido
ao povo brasileiro, contendo uma mensagem de
conteúdo valorativo dos caminhos a serem trilhados
para o engrandecimento da nação, sem se referir a
qualquer candidatura e tampouco significando, como
afirma também a Representação, um entrelaçamento
entre o nome do Representado e o ano de 1994,
induzindo a compreensão de ser um ano eleitoral. O
ano ali inscrito, como óbvio ululante, é a indicação do
que especificamente se refere o calendário, isto é, ao
período do chamando calendário gregoriano.
Infelizmente, parece que não se quer entender tal
assunto ginasial.
53
5. O Mérito da questão revelará que qualquer matéria
indigitada em Representação, só pode ser considerada
propaganda ilegal, quando tem o intuito de
deliberadamente promover o que está proibido em
Lei. No caso vertente, não há de forma alguma
qualquer insinuação ou tentativa de se formular uma
propaganda, porque se fosse igual, não teria sido
encaminhada a juízes no interior do estado. Esta sim,
é a prova consciente de que o Representado de forma
alguma teve o intuito de agir contra-legem.

Para o patrono de Humberto, a conduta do seu constituinte


tinha respaldo em ato da Mesa do Congresso Nacional, o que
afastava a sua ilicitude. Argumentou o causídico:

2.1. Desde 1985, que a Mesa Diretora do Congresso


Nacional, presidida pelo então Senador José Fragelli,
estabeleceu uma cota anual de serviços gráficos para
apoio nas atividades parlamentares, com orçamento
de acompanhamento da utilização de tal cota gráfica,
conforme se vê na cópia do ofício circular da
presidência do Senado Federal, comunicando a
tomada dessa decisão em reunião da Mesa no dia
19.06.85 (doc 03).

2.2. Por outro lado, a Declaração em apenso (doc. 04)


do Primeiro-Secretário da Mesa do Senado Federal
atualmente, Senador Júlio Campos, afirma a
existência dessa cota anual, e que se destina entre
outras publicações a produção de calendários,
salientando também seu caráter divergente de
propaganda política. Ora, se a feitura de tais
calendários na gráfica do Senado federal está prevista
em Resolução da Mesa, constituindo materia interna

54
corporis27 do Legislativo e que, reafirme-se mais uma
vez, não se produz material destinado à propaganda
eleitoral, onde então está o abuso de poder
econômico ou de autoridade? E desde quando
calendário é uso indevido dos meios de comunicação
sócia, como alude a Representação? A verdade, é que
a distribuição de tais calendários constitui um fato
respaldado em norma legal, caracterizando uma
conduta atípica em relação ao que dispõe o caput do
art. 22.

Solon Benevides encerrou a contestação pedindo o


indeferimento liminar da representação e, caso o Tribunal decidisse
pelo seu prosseguimento, que fosse reconhecida a incompetência
do TRE para processar e julgar o senador.
27
A afirmação do advogado era baseada em parecer da procuradoria regional eleitoral do
Estado de Pernambuco, proferido em sede de representação formulada pelo Centro de
Cultura Luiz Freire, contra o senador Ney Maranhão, líder do PRN, em que acusava o senador
de distribuir cadernos escolares, editados pela Gráfica do Senado Federal. Em seu parecer, o
procurador assim havia se pronunciado:

“...Por outro lado, não vislumbro como tal distribuição de cadernos possa
configurar desrespeito ao dinheiro do contribuinte, já que, ao que se depreende da
Representação, a distribuição de cadernos seria feita nas escolas públicas, onde estuda a
parcela mais carente da população.

Ademais, todos os parlamentares possuem verbas para editar trabalhos, ou


publicar matérias de sua conveniência e interesse na Gráfica do Senado Federal.

Convém, ainda, salientar que a edição de cadernos, trabalhos ou qualquer outro


tipo de matéria pela Gráfica do Senado Federal é assunto de 'interna corporis' do Senado
Federal, sendo, pois, a Mesa Diretora da Câmara a única competente para se pronunciar
sobre a legalidade, e a conveniência da aplicação por parte dos Parlamentares das verbas
destinadas à edição de trabalhos ou de matérias de qualquer natureza na Gráfica do Senado
Federal.

Recife, 07 de janeiro de 1994


JOAQUIM JOSÉ DE BARROS DIAS
Procurador Regional Eleitoral”
55
O procurador regional havia pedido uma diligência para que
a Gráfica do Senado trouxesse aos autos outros documentos, com o
fim de comprovar a legalidade da cota à que teria direito cada
senador. O corregedor omitiu-se sobre a diligência requerida e
passou à fase processual seguinte, a de alegações finais.

Na segunda oportunidade de falar nos autos, o advogado


alegou cerceamento ao direito constitucional de defesa, pelo fato do
relator não ter permitido a produção de provas “a fim de embasar
melhor as suas razões derradeiras”, afirmou.

No mérito, o defensor insistiu no argumento de que havia


normas internas do Senado autorizando a publicação dos referidos
calendários. Solon invocou um parecer do procurador regional
eleitoral de Pernambuco, emitido em caso análogo e que envolvia
outro senador, Ney Maranhão. No referido parecer, o Ministério
Público havia opinado pela atipicidade da conduta.

No fim de sua peça jurídica, o advogado ressuscitou a


preliminar de incompetência do TRE, reafirmou a existência de
cerceamento de defesa e insistiu na tese da inexistência de prática
de abuso de poder econômico e/ou de abuso de poder político.

Em suas razões finais, Antônio Carlos Pessoa Lins ironizou a


preliminar de incompetência do tribunal, suscitada por Solon:

Quanto ao aspecto da competência, o próprio


Representado não se define quanto ao foro que se
pretende ver estabelecido, já que ora acena como
sendo do Supremo Tribunal Federal, ora do Tribunal
Superior Eleitoral.
Ocorre, no entanto, que ao Representado passou
56
despercebido que este processo não trata de caso
sequer semelhante aos mencionados nos decisórios
juntados às fls. 13/14 – todos ligados à competência
por prerrogativa de foro nos delitos comuns -, mas se
está aqui a cuidar de ocorrência de abuso de poder de
autoridade a que alude a Lei Complementar n. 64/90
(Lei de Inelegibilidades), como ainda de propaganda
eleitoral anteriormente à época permitida cuja
proibição decorre explicitamente da Lei n. 8.713, de
30.09.93, esta a que irá regular as próximas eleições
de outubro vindouro.

Logo, será o Tribunal Regional Eleitoral competente


para proceder a investigação judicial tratada no art.
22 da Lei de Inelegibilidades ou ainda fixar a multa
pela consonância com o claro teor do art. 84, inciso I,
deste último diploma legal citado, pois que segundo o
inciso II subsequente, ao Tribunal Superior Eleitoral
somente serão dirigidas as representações relativas à
eleição presidencial.

A menos que o ilustre Senador, ora Representado,


surpreenda o mundo político do país lançando-se
candidato ao Palácio do Planalto.

Pessoa Lins citou um documento juntado pela própria


defesa, cujo teor dava ciência aos senadores de que os serviços
prestados pelo Centro Gráfico do Senado Federal destinavam-se
exclusivamente aos trabalhos parlamentares dos senadores. O
procurador regional eleitoral voltou a reafirmar o abuso de poder
praticado por Humberto Lucena:

É abuso do poder de autoridade, sem qualquer


sombra de dúvida, o uso da Gráfica do Senado,

57
surpreendentemente confirmado esse uso pelo
Representado em sua defesa – pelo Presidente
daquela Casa Legislativa, para impressão de
infindável quantidade de calendários com finalidade
eleitoreira, como a ninguém será de esperar-se
desconhecer tal finalidade. Seja pela enorme
fotografia do conhecido Senador, perfeitamente
dispensável não fosse o claro objeto de propagação
da imagem do futuro candidato, seja pela inscrição
não apenas predominante no cartaz, mas a única
visível a partir de poucos metros de distância:
'SENADOR HUMBERTO LUCENA 1994'. Seja finalmente
pela mensagem vista ao centro do impresso, de
notório conteúdo demagógico, voltada como sempre
'...para os mais pobres...', a repisar vezes sem conta a
desmoralizada bandeira de palanques de campanha
'...contra a miséria e a fome nos lares de milhões e
milhões de pessoas carentes...' Ou, ainda, pelo
...tempo de servir e não de servir-se...', preceito esse,
diga-se de passagem, que o Representado de logo
recusou-se a cumprir, como é de ver-se.

A impressão dos calendários e a sua remessa via franquia


postal representava “claríssimo ato de improbidade administrativa
indiscutivelmente irmão gêmeo do abuso de poder de autoridade”,
afirmou Pessoa Lins, que concluiu fazendo uma referência ao
parecer oriundo do Estado de Pernambuco, afirmando que ele não
poderia servir de parâmetro para o caso de Humberto.

Um fato, duas versões!

Faltava o pronunciamento dos juízes do Tribunal Regional


Eleitoral da Parahyba!

58
* * *

Foto: Procurador Regional Eleitoral, Antônio Carlos Pessoa Lins, autor da


Representação contra a candidatura de Humberto Lucena. Fonte: Jornal O
NORTE, edição de 1995.

59
Solon Benevides, Advogado do PMDB, atuou no TRE em defesa de
Humberto Lucena. Fonte: Jornal CORREIO DA PARAÍBA, edição de 02.12.
1994, p. 03.

60
CALENDÁRIOS INOCENTES!...
Durante sua tramitação, no TRE, a representação eleitoral
contra Humberto Lucena esteve longe do assédio dos meios de
comunicação do Estado. Talvez porque não havia nenhuma polêmica
jurídica em torno do tema, não merecendo, portanto, uma maior
atenção por parte dos juristas da província. O “caso dos calendários”
servia apenas para aumentar a fria estatística da letárgica máquina
judiciária eleitoral.

No dia do julgamento - 15 de junho de 1994 -, a Corte


Eleitoral estava com a sua composição plenária completa: o
presidente, desembargador Rivando Bezerra Cavalcanti; os juristas,
Marcelo Figueiredo Filho e Fabiano Moura de Moura; os juízes de
direito, Hitler de Siqueira Campos Cantalice e Leôncio Teixeira
Câmara; o desembargador Almir Carneiro da Fonseca, e o juiz
federal, João Bosco Medeiros de Sousa.

Para o relator do caso, o juiz Leôncio Teixeira Câmara, era


um dia de alívio. Câmara teve que desligar seu telefone residência.
Tentava fugir dos frequentes assédios sobre o processo. Anunciado
o julgamento, fez o relato das principais passagens dos autos.

Quando o presidente concedeu a palavra ao procurador,


Antônio Carlos Pessoa Lins defendeu que o senador, nos
calendários impressos pela gráfica oficial do Senado, havia utilizado
de propaganda eleitoral implícita e que teria também feito uso da
franquia postal para enviá-los em benefício próprio. Na peroração, o
procurador afirmou: “Isso é uso e abuso do poder econômico e de
autoridade”.

Da tribuna, o defensor de Humberto disse que o TRE não


61
era competente para julgar a inelegibilidade do presidente do
Congresso Nacional. Durante a sustentação oral, Solon Benevides
fez referência ao procurador, ao afirmar que Pessoa Lins havia sido
“impiedoso” ao pedir a decretação de inelegibilidade e a apuração
de ilícito penal: “O receio do procurador é que a verdade apareça
nos autos, mas que ela seja julgada no mérito”, declarou o
advogado. Solon afirmou ainda que o calendário não fazia menção à
propaganda política e que a sua utilização era legal desde o ano de
1985 por uma Resolução do Senado. No final de sua oratória,
Benevides concluiu: “Este pleno está julgando um homem público
que vem pedir registro de candidatura. Justiça nós pedimos pelo
arquivamento representação”, declarou confiante.

A preliminar de incompetência da Justiça Eleitoral foi


facilmente rejeitada por todos os juízes, mas, no momento de
discutir o mérito, não houve unanimidade: a maioria entendeu que
senador não praticara qualquer ilícito, mas o relator e o juiz federal
ficaram parcialmente vencidos. Para Leôncio Teixeira Câmara e João
Bosco Carneiro de Souza, havia propaganda eleitoral antecipada nos
calendários de Lucena.

O jurista Marcelo Figueiredo Filho, o primeiro a defender a


tese vencedora, redigiu o acórdão, cujo teor foi o seguinte:

RELATÓRIO

O presente processo trata de Representação oferecida


pela douta Procuradoria Regional Eleitoral contra o
Senador Humberto Coutinho de Lucena, sob a
fundamentação de que o representado teria
confeccionado e distribuído um 'calendário de
parede', no qual aparece, com destaque, sua foto e
uma mensagem de esperança a todos os brasileiros,

62
corresponde à indisfarçável aceno de propaganda
política ilícita, além da agravante de ter sido remetido
aos destinatários através da Empresa Brasileira de
Correios e Telégrafos à custa de franquia postal a
cargo dos cofres da Nação, num pretenso abuso de
poder de autoridade ou o uso indevido de veículos ou
meios de comunicação social.

Em sua defesa, arguiu o representado, em preliminar,


a 'incompetência ratione personae' deste Tribunal
Regional e, no mérito, negou qualquer abuso do poder
econômico ou aceno de propaganda política,
pugnando pela improcedência do pedido.

Quando de suas razões finais, reiterou a preliminar de


incompetência, acrescentando a alegação de
cerceamento do direito de defesa, face ao não
atendimento do pedido para que se oficiasse a Gráfica
do Senado Federal no sentido de encaminhar outros
documentos comprobatórios da existência legal da
cota gráfica de cada parlamentar.

O Ministério Público Eleitoral, em suas alegações


finais, sustenta a competência deste Tribunal para o
julgamento do feito, requerendo a procedência da
representação, a fim de que seja reconhecida a
inelegibilidade do representado, nos termos do inciso
XIV, do art. 22, da LC nº 64/90, por abuso de poder de
autoridade, como ainda aplicação de multa pela
propaganda eleitoral praticada anteriormente à
época permitida, fulcrada no §2º do art. 59 da Lei n.
8.713/93.

Apresentado relatório pelo excelentíssimo Dr. Leôncio


Teixeira Câmara, veio o processo a julgamento.

63
É O RELATÓRIO.

VOTO DO JUIZ RELATOR (designado)


Dr. MARCELLO FIGUEIREDO FILHO

A questão que se põe à apreciação desta Corte é a de


saber se a confecção e distribuição dos calendários
pela gráfica do Senado Federal, nos quais se vê com
destaque mensagem do Senador Humberto Lucena
dedicada ao povo brasileiro, constitui abuso do poder
de autoridade ou uso indevido de veículos ou meios de
comunicação social, bem como se foi realizada
propaganda eleitoral antes da época apropriada.

Em sua defesa, o representado arguiu preliminares de


incompetência deste Tribunal, em razão de ser
Presidente do Congresso Nacional e, nessa condição,
ter foro privilegiado, em decorrência dos textos do art.
102, alínea 'b' da Constituição Federal, c/c o art. 57
§5º do mesmo diploma legal e, ainda, a de
cerceamento de direito de defesa por ter o relator
indeferido pedido de diligência.

A Constituição Federal, em seu artigo 102, alínea 'b',


traz com clareza a competência do Supremo Tribunal
Federal para processar e julgar os membros do
Congresso Nacional, entre outros.

Estabelece a competência somente nas infrações


penais comuns, o que não é a hipótese do caso
subjudice.

Em relação ao indeferimento da diligência requerida,


com acerto a medida adotada, pois se seu objetivo
era chegar à verdade dos fatos alegados, esta já se
64
encontra comprovada nos autos, através de
documentação acostada pelo próprio representado.
Não havia mais necessidade de produção de novas
provas neste sentido.

Por tais razões, rejeitam-se ambas as preliminares


suscitadas.

No mérito, a matéria há de ser analisada em duas


partes. A primeira, no que diz respeito ao abuso de
poder econômico, ao abuso de autoridade e ao uso
indevido de veículos dos meios de comunicação social,
com destaque para estes dois últimos; a segunda,
refere-se à promoção de propaganda eleitoral antes
da época apropriada.

O conceituado jurista Cretella Júnior, preleciona que


'abuso é a exorbitância, o excesso'. A contrário sensu,
se o ato é praticado dentro do que está estabelecido,
previsto em lei, não há que se falar em abuso de
autoridade.

A confecção dos discutidos calendários pela gráfica do


Senado Federal e sua remessa valendo-se da franquia
postal concedida aos senhores Senadores, jamais
poderá ser taxada de abuso de autoridade ou uso
indevido dos meios de comunicação social, pois
prevista legalmente em Resolução da Mesa Diretora
do Congresso Nacional desde 1985, comprovada nos
autos por uma declaração do Sr. Senador Júlio
Campos, primeiro-secretário do Senado Federal.

A ação praticada pelo parlamentar, consistente na


confecção e distribuição dos calendários pela gráfica
do Senado, não se enquadra no art. 22 da Lei
Complementar 64/90.
65
Por outro lado, sem qualquer procedência a alegação
de propaganda política – via calendários – antes da
época apropriada.

É importante ressaltar que a propaganda eleitoral,


quando efetivamente dirigida aos eleitores, há de ser
nítida, com objetivo claro, preciso, direto, a fim de
alcançar seu resultado.

No caso em julgamento, houve tão somente uma


mensagem de um homem público, atualmente
exercendo o cargo de Presidente do Congresso
Nacional que, nessa condição, procurou desejar
indistintamente ao povo brasileiro fé e esperança no
ano de 1994, na expectativa de uma saída para a
grave crise econômica e social que assola o nosso
país.

De nenhuma forma vislumbra-se qualquer aceno de


propaganda eleitoral pelo que consta desse processo.
Isto posto, julga-se improcedente a presente
Representação, contra os votos dos Excelentíssimos
juízes Dr. Leôncio Teixeira Câmara e Dr. João Bosco
Medeiros de Sousa.

Presidiu o julgamento, o Exmo. Des. RIVANDO


BEZERRA CAVALCANTI, e dele tomaram parte além do
Relator designado os Exmos. Juízes: Dr. FABIANO
MOURA DE MOURA, Dr. HITLER DE SIQUEIRA CAMPOS
CANTALICE, Des. ALMIR CARNEIRO DA FONSECA, Dr.
LEÔNCIO TEIXEIRA CÂMARA e Dr. JOÃO BOSCO
MEDEIROS DE SOUSA.

Presente, o Exmo. Dr. ANTÔNIO CARLOS PESSOA LINS,


Procurador Regional Eleitoral.
66
João Pessoa, aos 15 de junho de 1994.
Juiz MARCELLO FIGUEIREDO FILHO
RELATOR DESIGNADO

VOTO VENCIDO – Dr. LEÔNCIO TEIXEIRA CÂMARA

Fui voto vencido, em parte.

Na condição de Corregedor, e no exercício das


atribuições de relator, consoante inciso I, do art. 22,
da L.C. nº 64/90, entendi, 'data venia', diferentemente
da maioria. Com efeito, o representado, Senador
Presidente do Congresso Nacional, não pode ter
contra si imputadas as circunstâncias do abuso de
poder econômico, do abuso de autoridade, nem do
abuso do poder político. Entendo que Sua Excelência,
utilizando de verbas que são asseguradas a todos os
parlamentares, indiscriminadamente, ao fazer uso da
cota que lhe era destinada, não infringiu nenhuma
dessas circunstâncias, razão por que, neste particular,
entendi improcedente a representação, no que fui
acompanhado pela maioria dos Membros desta
Egrégia Corte. Ademais, não se discute ser a cota
ilegal ou amoral.

Este, no entanto, não fora o entendimento quanto à


2ª parte do julgamento. Entendo que, utilizando desta
verba para a edição de calendário com sua efígie,
largamente distribuído no território paraibano, o
representado incorreu na propaganda eleitoral ilícita,
subliminar, porque tem a intenção própria de
propaganda e alcança sua finalidade, qual seja,
divulgar o nome do político como forma de manter
sua presença junto ao eleitor, mesmo sem definir a
que cargo concorreria, utilizando-se de gráfica do
67
Serviço Público – Gráfica do Senado Federal.

É o meu voto, vencido pela maioria, que entendeu não


se constituir em propaganda.

Sala das Sessões do Egrégio Tribunal Regional


Eleitoral do Estado da Paraíba, em João Pessoa, aos
15 de JUNHO de 1994.

LEÔNCIO TEIXEIRA CÂMARA


JUIZ
Vencido, porém, não convencido, Antônio Carlos Pessoa
Lins recorreu da decisão do TRE. Iria até a última instância em busca
do que acreditava ser legal e justo.

* * *

68
Foto: O relator do “caso Lucena”, juiz Leôncio Teixeira Câmara. Fonte:
Jornal O NORTE, edição de 1994.

69
CONSULTA AO TSE
No Brasil, as leis eleitorais são objeto de frequentes
questionamentos no Poder Judiciário. A Lei nº 8.713, de 30.09.1993
- a penúltima “Lei do Ano”28 antes da edição da Lei 9.504, de 1997 –
havia sido alvo de duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade. 29

Os senadores queriam evitar problemas com o Poder


Judiciário. Por isso, provocaram o Tribunal Superior Eleitoral para
que definisse, de forma clara, o que podia, ou não, ser feito durante
o período eleitoral. No primeiro semestre de 1994, o TSE recebia a
Consulta Eleitoral nº 14.404, formulada pelo senador Marcelo
Lacerda. O parlamentar questionava o Tribunal se, no período de
campanha eleitoral, senador, ou deputado federal, na condição de
candidato, poderia expedir “boletins informativos” impressos à
custa do erário, com a finalidade de divulgar a sua atuação
parlamentar. Caso a prática ocorresse, durante a campanha
30

eleitoral, ficaria caracterizada como propaganda ilegal e/ou doação


oriunda do poder público? Indagou.

A pergunta – mesmo elaborada de forma genérica, 31 como

28
Assim eram chamadas as Leis eleitorais antes da edição da Lei das Eleições (9.504, de 1997),
que veio com o caráter de ser “permanente”.
29
A Lei n. 8.713/1993, não apenas inovou no tocante às normas acerca da administração
financeira das campanhas eleitorais, como também estabeleceu que apenas poderiam lançar
candidatos à presidência da República (para as eleições de 1994), os partidos políticos que
tivessem obtido um mínimo de 5% dos votos apurados na eleição para deputado federal em
1990, distribuídos ao menos em um terço dos Estados, ou que tenham representantes na
Câmara dos Deputados que somem um mínimo de 3% da composição da casa. O STF julgou
inconstitucional a restrição, sob a alegação de violação ao princípio constitucional em defesa
das minorias (Ações Diretas de Inconstitucionalidade nºs 958 e 966, julgadas em 11.05.1994).
30
Com o advento da Lei das Eleições, a de n. 9.504, de 1997, a conduta passou a ser permitida.
31
Eis o teor da Consulta: A terceira indagação – 'quanto à propaganda eleitoral, o senador ou
deputado candidato que, durante o exercício do seu mandato, sempre expediu 'Boletins
70
determina o Código Eleitoral -, tratava de matéria que tinha certa
semelhança com o processo de Humberto Lucena.

A resposta do TSE veio no dia 28 de junho, quando ainda


fluía o prazo para a procuradoria regional eleitoral recorrer da
decisão do TRE paraibano, que inocentara Humberto Lucena. O
relator da Consulta, ministro Carlos Mário Veloso, assim firmou o
seu convencimento:

A terceira indagação merece análise maior.

As premissas são essas: a) o parlamentar é candidato


e participa da campanha eleitoral; b) expede 'Boletins
Informativos' por conta de seu gabinete, vale dizer,
por conta do Erário; c) esses 'Boletins Informativos'
dão notícia da atuação parlamentar do deputado ou
senador, divulgando a atuação do parlamentar,
fazendo, em última análise, propaganda do
parlamentar, propaganda que, em época de
campanha, constitui, inegavelmente, propaganda
eleitoral.

Não obstante o respeito que nos merecem os


deputados e senadores – somos cidadãos e, como tal,
votamos, de modo que no Senado e na Câmara estão
Senadores e Deputados que contaram com o nosso
voto e, também por isso, contam com o nosso respeito
e a nossa estima – a prática posta na pergunta
encontra expressa vedação nas Instruções, art. 48, II,
e na Lei n. 8.714/93, art. 45, II, a estabelecerem que 'é
vedado a partido e candidato receber, direta ou

Informativos', por conta de seu gabinete parlamentar, levando à sociedade de modo geral o
conhecimento de sua atuação parlamentar, pode continuar a fazê-lo no período da campanha
eleitoral, sem que isto configure propaganda ilícita ou ilegal?

71
diretamente, doação em dinheiro ou estimável em
dinheiro, inclusive através de publicidade de qualquer
espécie, procedente de órgão da administração
pública direta, ressalvado o fundo partidário, indireta
ou fundação instituída em virtude de lei ou mantida
com recursos provenientes do Poder Público'. (Grifei)

A lei proíbe, estar-se a ver, que o partido ou candidato


receba, direta ou indiretamente, doação em dinheiro,
ou estimável em dinheiro, inclusive através de
publicidade de qualquer espécie, procedente do
Erário.

Tem mais.

O artigo 75, caput, das Instruções, que repete o art.


377 do Código Eleitoral, dispõe que 'o serviço de
qualquer repartição federal, estadual ou municipal,
autarquia, fundação estadual, sociedade de economia
mista, entidade mantida ou subvencionada pelo Poder
Público, ou que realize contrato com este, inclusive o
respectivo prédio e suas dependências, não poderá
ser utilizado para beneficiar partido ou coligação', ou
'partido ou organização de caráter político'.

Ora, os 'Boletins Informativos' comstituem,


inegavelmente, propaganda eleitoral do candidato ou
do partido, porque divulgam a atuação do
parlamentar em campanha eleitoral. São eles
confeccionados e expedidos por conta do Erário. Não
há dúvida, portanto, que a prática constitui doação
procedente de órgão público. E órgão público,
conforme vimos, não pode fazer doação a candidato
ou partido político (Instruções, art. 48, II; Lei n. 8.713,
art. 45, II).

72
A proibição em apreço encontra apoio na
Constituição, precisamente no princípio da igualdade,
que é inerente ao regime democrático e republicano.
A Constituição, por isso mesmo, preocupa-se,
sobremaneira, com o princípio, tanto que dele cuida,
por exemplo, em diversos dispositivos: art. 3º, III, art.
5º, caput, art. 5º, I, art. 150, II, art. 151, II, art. 7º,
XXX, XXXI, XXXII, XXXIV; art. 44, art. 170, VII. É que,
conforme falamos, o princípio da igualdade é inerente
ao regime democrático e à forma de governo
republicana. Tanto o legislador quanto o juiz estão
condicionados pelo princípio isonômico: o legislador
não pode fazer leis atentatórias ao princípio e o juiz,
na interpretação de qualquer ato normativo, terá
presente o princípio isonômico.

Isto posto, força é convir que o parlamentar que é


candidato e que conta, em seu favor, com uma forma
de propaganda eleitoral paga pelo Erário fica em
situação de privilégio em relação a outro candidato
que não é parlamentar.

Daí a vedação posta, pelo legislador, no art. 45, II, da


Lei n. 8.713, de 1993, e no art. 377 do Código
Eleitoral.

Daí, por outro lado, não ter o juiz outra opção senão
aquela de emprestar interpretação estrita ao
dispositivo legal. É que, de outro modo, estaria
contribuindo para o desequilíbrio na pugna eleitoral: o
candidato parlamentar, conforme falamos, teria, em
relação a outro candidato não parlamentar, situação
de privilégio, em detrimento do princípio
constitucional da igualdade.

73
Concluindo, Sr. Presidente, meu voto é no sentido de
dar resposta negativa à terceira indagação. Quer
dizer, o parlamentar não pode, no período da
campanha eleitoral, continuar a expedir 'Boletins
Informativos' por conta do Erário, divulgando a sua
atuação parlamentar. É que a prática mencionada,
durante a campanha eleitoral, configura propaganda
ilegal, dado que constitui doação proveniente do
Poder Público. E o Poder Público não pode fazer, direta
ou indiretamente, doação em dinheiro ou estimável
em dinheiro, inclusive através de publicidade de
qualquer espécie, a candidato ou a partido político.

É como voto.32

A resposta à Consulta ficou assim resumida:

ELEITORAL. ELEICOES DE 1994. GASTOS DE


CAMPANHA. EMPRÉSTIMO DE IMOVEL: COMODATO.
VALOR ESTIMAVEL EM DINHEIRO: CONTABILIZACAO.
PARLAMENTAR. CANDIDATO A REELEICAO. BOLETIM
INFORMATIVO: UTILIZACAO. PROPAGANDA
ELEITORAL: CARACTERIZACAO.

O EMPRESTIMO DE IMOVEL, SOB O REGIME DE


COMODATO, PARA FUNCIONAMENTO DE COMITES
ELEITORAIS, SERA CONSIDERADO COMO DOACAO
ESTIMAVEL EM DINHEIRO E, COMO TAL, DEVE SER
CONTABILIZADA COMO GASTO DE CAMPANHA.
INSTRUCOES, ART. 51, VI; LEI 8.713/93, ART. 47, VI.

II. O ELEITOR PODE REALIZAR GASTOS PESSOAIS, EM


32
Acompanharam o voto do relator, os ministros Marco Aurélio Mello, Antônio de Pádua
Ribeiro, Torquato Jardim e Diniz de Andrada. Funcionou como procurador, o vice-procurador
Antônio Fernando Barros Silva e Souza, o mesmo que ofereceria o parecer, no caso
Humberto Lucena.
74
BENS E SERVICOS, EM APOIO A CANDIDATO DE SUA
PREFERENCIA, ATE UM MIL UFIR, DESDE QUE ESSES
GASTOS NAO SEJAM SUJEITOS A REEMBOLSO PELO
CANDIDATO OU PELOS COMITES OU PARTIDOS.

III. O PARLAMENTAR QUE E CANDIDATO NAO PODE,


NO PERIODO DA CAMPANHA ELEITORAL, EXPEDIR
"BOLETINS INFORMATIVOS" POR CONTA DO ERÁRIO,
DIVULGANDO A SUA ATUACAO PARLAMENTAR. E QUE
ESSA PRATICA, DURANTE A CAMPANHA ELEITORAL,
CONFIGURA PROPAGANDA ILEGAL, DADO QUE
CONSTITUI DOACAO PROVENIENTE DO PODER
PUBLICO. INSTRUCOES, ART. 48, II, E ART. 75; LEI
8.713/93, ART. 45, II; CODIGO ELEITORAL, ART. 377.
Decisão:

RESPONDIDA NOS TERMOS DO VOTO DO MINISTRO


RELATOR. UNANIME.33

No caso de Humberto Lucena, a expectativa era a melhor


possível, pois os calendários haviam sido confeccionados e
distribuídos no final do ano de 1993 - portanto, fora do período
eleitoral. Na pior das hipóteses, caso o TSE viesse a reformar o
acórdão do TRE paraibano, o presidente do Senado, no máximo,
sofreria uma simples pena de multa, por propaganda eleitoral
antecipada, o que não traria nenhum prejuízo para a sua reeleição,
avaliou seu advogado.

Infelizmente, a decisão do TSE seria catastrófica!...

* * *

33
CTA - CONSULTA nº 14404/DF. Resolução nº 14.404 de 28/06/1994. Relator (a) Min. Carlos
Mário da Silva Velloso. Publicação: DJ - Diário de Justiça, Data 4/7/1994, Página 17845. RJTSE
- Revista de Jurisprudência do TSE, Volume 6, Tomo 3, Página 349.
75
“SUMMUS JUS SUMA INJURIA”34
“Eu não era candidato ao Senado, mas candidato
ao governo da Paraíba” (Humberto Lucena)

Na peça de Recurso Ordinário endereçada ao TSE – registre-


se, mais “apurada” que a petição que deu início à Representação -,
Pessoa Lins destacou que só no pequeno Município de Sapé,
localizado na região do Brejo paraibano, o promotor eleitoral teria
apreendido, no dia 15 de junho – dia do julgamento, no TRE -, trinta
e seis calendários. Em tom bastante enfático, o procurador fez uma
comparação do artefato distribuído por Humberto com outros tipos
de calendários. Disse ele:

...Ainda quanto à propaganda eleitoral, se uma


indústria de pneus ou um fabricante de lubrificantes
faz distribuir calendários, certamente tencionam a
divulgação de seus produtos de modo a obterem ‘a
preferência do consumidor’.

O que dizer de um Senador da República, em ano


eleitoral, que manda imprimir tal tipo de calendário,
põe nele uma enorme foto sua entre amplos dizeres
‘SENADOR...1994’ e, em seguida, aos milhares, faz
chegar aos quatro cantos do seu Estado? Quem se
habilita a oferecer justificativa diversa convincente?

Pessoa Lins afirmou que o TRE da Parahyba teria sido


‘complacente’ com o senador, quando havia afirmado no acórdão
que a confecção dos aludidos calendários tinha respaldo na
Resolução da Mesa Diretora do Senado. Argumentou:
34
Atribui-se a Cícero, advogado e cônsule romano, o uso da expressão latina, para indicar a
injustiça causada pela aplicação rigorosa das normas jurídicas.
76
Primeiramente, é de ressaltar, que a Resolução da
Mesa Diretora não diz da permissão de se imprimirem
calendários. Ao Representado, entretanto, coube
astuciosamente pleitear junto ao Senador Júlio
Campos que lhe emitisse a declaração que fez anexar
aos autos (fls. 32), findando por se produzir um
documento sob medida e que bate de frente com a
verdade que se conhece no Congresso Nacional.

É que, segundo o documento de fls. 31, produzido não


nos dias atuais mas à época da implantação do
parque gráfico do Senado, fez-se avisar aos senhores
Senadores que ‘a utilização dos serviços da gráfica do
Senado (CEGRAF) é destinado exclusivamente ao
atendimento das necessidades de impressos PARA
APOIO AOS TRABALHOS PARLAMENTARES dos Srs.
Senadores.’

Assim, impõe-se a salutar interferência da Justiça


Eleitoral de modo a fazer impedir a repetição de tal
prática, do contrário estaria a estabelecer perigoso
precedente ao respaldar a conduta do Representado,
a servir de modelo aos atuais e futuros Senadores da
República...que sonhamos para os nossos filhos e
netos.’

Usando mais uma vez de fina ironia, Pessoa Lins reproduziu,


na peça de recurso, uma frase utilizada por Lucena, no indigitado
calendário:

Em razão do exposto, como também fazendo suas as palavras


postas pelo Representado no seu calendário, ou seja, É TEMPO
DE SERVIR E NÃO DE SERVIR-SE, requer a Procuradoria Regional
Eleitoral o provimento do recurso, para considerar a
Representação procedente, julgando o Representado inelegível,
77
cassando-se, em consequência, o registro de sua candidatura à
reeleição.

Tudo por um dever de JUSTIÇA!


João Pessoa, 30 de julho de
1994.
Antônio Carlos Pessoa Lins
PROCURADOR REGIONAL ELEITORAL

Nas contra-razões, Sólon Benevides devolveu a ironia:

1. Apregoa que os calendários objeto do Recurso,


contém propaganda política, para isso busca traçar
um paralelo no mínimo pejorativo e inaceitável: aduz
que os calendários têm o mesmo sentido de um
produto destinado ao consumidor, lembrando uma
referência por este ou aquele produto, dando como
exemplo, um fabricante de pneus ou de lubrificantes.
Por esse argumento já se pode verificar o nível, data
venia, dos fundamentos do recurso!

2. O Ministério Público na Paraíba, que tanto zela pela


eleição no sentido de se evitar trucagens, montagens
que possam denegrir a imagem do homem público,
faz a sua própria montagem ao afirmar que o
calendário tem fim eleitoral, quando anexa a palavra
SENADOR com ano de 1994, ali inscrito por se tratar
do calendário gregoriano. Faz então a montagem o
MPE 'SENADOR...........1994'. É sem dúvidas um
argumento, permissa venia, inaceitável, despiciendo e
amorfo, pois na ânsia de provar o que não existe, até
montagem é feita do calendário, que se for
criteriosamente analisado, se verificará que ali não
contém nenhuma propaganda política, nenhuma
alusão às eleições, sendo inclusive uma praxe anual

78
de todos os parlamentares, no sentido da utilização
da cota gráfica que lhes é concedida por Resolução da
Mesa do Senado desde o ano de 1985, como está
provado nos autos.

No TSE, o recurso foi direto para o gabinete do vice-


procurador-geral eleitoral, Antônio Fernando Barros e Silva de
Souza.

Inicialmente, Souza requereu que o Senado prestasse


algumas informações consideradas decisivas para o desfecho do
processo: a data que Humberto Lucena havia postulado a impressão
dos calendários e em que quantidade; a época em que ocorreu a
impressão e o seu custo; se o senador paraibano havia utilizado os
serviços da Gráfica do Senado para impressão de calendários nos
anos de 1987, 1988, 1989, 1990, 1992 e 1993, com as mesmas
características daquele impresso para o ano de 1994. Por último, o
vice-procurador eleitoral requereu que fosse informado o número
de calendários distribuídos pelo senador Humberto Lucena com a
utilização da franquia postal e quanto teria custado para os cofres
públicos.

O processo foi distribuído inicialmente ao ministro Antônio


de Pádua Ribeiro, que deferiu os requerimentos do vice-procurador.
As diligências foram cumpridas no curto espaço de quarenta e oito
horas. Os autos retornaram à procuradoria e Antônio Fernando de
Souza emitiu um parecer de doze laudas, no qual opinava pelo
provimento do recurso.

Souza iniciou discordando do TRE da Parahyba. Segundo ele,


por trás do calendário havia algo mais que uma simples mensagem
de Feliz Natal e votos de um Ano Novo promissor. Era caso de
evidente promoção pessoal com o objetivo de influir na vontade do
79
eleitor: “- O TRE havia sido enganado pelas aparências”, disse o vice-
procurador. E argumentou:

A circunstância do impresso em questão conter um


calendário e uma mensagem do senador Humberto
Lucena, ao meu ver, não é suficiente para
descaracterizá-lo como veículo de propaganda
eleitoral. Ver no referido impresso apenas uma
mensagem ao povo brasileiro, como fez o acórdão
recorrido, é fechar os olhos à realidade. O formato
utilizado não é o usual para a transmissão de
mensagens de final de ano, mas sim aquele próprio
para divulgar candidatos a cargos eletivos visto que
consta, com destaque: a) o nome do cargo eletivo; b)
o nome e a fotografia do candidato; c) o ano da
eleição.

Quanto à potencialidade do artefato, explicou:

Desnecessário ressaltar que a aferição da


potencialidade dos calendários como veículo de
propaganda eleitoral há de ser feita objetivamente,
sem qualquer consideração a propósito do elemento
subjetivo que inspirou a sua confecção e posterior
distribuição. Por isso, é irrelevante, ao deslinde da
questão, a circunstância de que o recorrido
habitualmente solicitava a confecção de calendários
ao Centro Gráfico do Senado Federal. Nos períodos
não eleitorais a confecção e distribuição de tais
impressos, que se destinam a inequívoca promoção
pessoal, podem gerar responsabilidade que escapa à
competência dessa Corte.

Para Souza, o calendário serviu de veículo de promoção


pessoal e não de divulgação de atividade parlamentar, o que
80
afastava a aplicação da Consulta do TSE nº 14.404. Afirmou:

A referência a 'calendários', constante na referida


declaração está, evidentemente, vinculada à
finalidade anteriormente anotada: apoio nas
atividades legislativas, de modo que não pode
justificar a sua utilização para a promoção pessoal do
parlamentar, como ocorre com o impresso
questionado nos autos. Aliás, segundo ressai do art.
37, §1º, da Constituição Federal, é vedada a utilização
de recursos públicos para a promoção pessoal de
autoridades ou servidores públicos.

Certo que o impresso em questão não se presta a


apoiar as atividades legislativas do requerido, nem
para divulgar suas atividades parlamentares, resulta
que a hipótese também justifica a incidência e a
aplicação do disposto no art. 45, inciso II, da Lei n.
8.713/93, a revelar a ilegítima utilização do Centro
Gráfico do Senado Federal.

Observo que essa referência à Lei n. 8.713/93 não


implica aplicação retroativa da interpretação dessa
Corte externada na Consulta n. 14.404 (Resolução de
28.06/94), que nela considerou vedada, no período
eleitoral, ao parlamentar candidato a expedição, por
conta do Erário, de 'Boletins Informativos' de sua
atuação parlamentar. É que calendário discutido
nestes atos não se confunde com os referidos 'Boletins
Informativos', nem se presta para divulgar as
atividades do parlamentar.

Antônio Fernando de Souza procurou demonstrar que havia


um “nexo de causalidade” entre a conduta praticada por Humberto
Lucena em dezembro de 1993 e a eleição de outubro de 1994. E
81
defendeu a seguinte tese:

Entretanto, no que diz respeito à relação causal


necessária para que determinada conduta abusiva,
antes de apurado o resultado das eleições, possa ser
considerada atentatória à normalidade e à
legitimidade da eleição, creio a Justiça Eleitoral deve
satisfazer-se com a probabilidade do
comprometimento, seja da normalidade, seja da
legitimidade do pleito.

E essa probabilidade de comprometimento (da


normalidade ou da legitimidade, mas não
necessariamente do resultado) do pleito caracteriza-
se sempre que resultem comprovados
comportamentos que revelem influência do poder
político ou econômico no desenvolvimento do
processo eleitoral. É que, em tais hipóteses,
desaparecem ou a imparcialidade que se exige da
administração pública, ou neutralidade do poder
econômico, pressupostos admitidos pela Constituição
como necessários à proteção da normalidade e da
legitimidade das eleições (art. 14, §9º, CF/88).

A normalidade e a legitimidade das eleições como um


todo, pressupõe a normalidade e a legitimidade dos
diversos estágios do processo eleitoral, de modo que o
comportamento abusivo adotado em determinada
fase (da propaganda eleitoral, por exemplo), há de ser
apurado e punido, considerando-se a sua aptidão
para comprometer aquela fase do processo eleitoral e
não obrigatoriamente o resultado final do pleito.

Nessa linha de raciocínio a conduta do recorrido


caracteriza-se como situação objetiva potencialmente

82
apta a comprometer a normalidade das eleições, na
medida em que a liberdade de escolha do eleitor
possa a ser influenciada por veículo de propaganda
produzido de maneira ilícita.

Souza finalizou o parecer com o pedido de duas sanções: a


inelegibilidade do senador e a cassação do seu registro de
candidatura:

Não há dúvida de que a conduta do recorrido revela


abuso de poder de autoridade, na medida em que a
sua determinação para a impressão dos 'calendários'
questionados e posterior distribuição, mediante uso de
recursos públicos, constitui inequívoco desvio da
finalidade própria da quota de serviços gráficos e da
franquia postal.

Por outro lado, a utilização de tão elevada quantidade


(130.000) de impressos demonstra, à toda evidência, a
sua potencialidade para influir no eleitorado,
resultando comprometida a lisura do processo eleitoral
na fase da propaganda eleitoral, estágio que também
deve ser superado sem a influência do poder de
autoridade ou do poder econômico.

Impõe-se, portanto, a aplicação da penalidade prevista


para o comportamento eleitoralmente ilícito: a
declaração de inelegibilidade, com a consequente
cassação do registro do candidato (art. 22, inc. XIV, da
LC n. 64/90).

Assim sendo, o Ministério Público Eleitoral opina no


sentido de que:

a) seja dado provimento ao recurso, para declarar a


83
inelegibilidade do recorrido para as eleições que se
realizarem nos 3 (três) anos subsequentes e cassar o
seu registro como candidato nas próximas eleições;

b) sejam extraídas cópias dos documentos de fls. 33 e


34/36 destes autos e de todos os documentos do anexo
II, e, depois, encaminhadas ao Procurador-Geral da
República para que tome as providências que entender
adequadas.

Brasília, 05 de dezembro de 1994.


ANTÔNIO FERNANDO BARROS E SILVA DE SOUZA
VICE-PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA

Seis meses depois, o nome de Antônio Fernando de Souza


Barros estava entre outros cotados pelo Palácio do Planalto para
suceder Aristides Junqueira, na procuradoria-geral da República.
Ciente do fato, o novo presidente do Senado, José Sarney, fez
chegar ao ministro da Justiça, Nelson Jobim, a mensagem de que
eram nulas as chances do indicado ter seu nome aprovado pelo
Senado. Barros estava sendo descartado em razão de sua atuação
no “caso Lucena”. Para os senadores, ele havia sido o responsável
direto pela condenação de Humberto no TSE.35 Depois, Antônio
Fernando chegaria ao cargo de procurador-geral da República e
ajuizaria a ação penal n. 470, conhecida como o “processo do
mensalão.”

De volta ao processo, o parecer emitido pelo vice-


procurador-geral eleitoral causou dois efeitos imediatos: a
inexplicável e surpreendente averbação de “suspeição
superveniente” do ministro Antônio de Pádua (mesmo após ele ter

35
Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, edição de 10.06.1995, in “Senado veta candidato à
Procuradoria”.
84
exercido a função de relator do processo por mais de um mês), e o
ingresso do ex-ministro do TSE e do STF, Luiz Rafael Mayer, que veio
reforçar o bunker jurídico de Humberto Lucena.

O ministro Pádua Ribeiro proferiu um despacho lacônico: “-


Afirmo suspeição. Brasília, 7-9-94. Antônio de Pádua Ribeiro.”
Segundo versão do JORNAL DA PARAÍBA, Ribeiro havia sido
funcionário da Câmara dos Deputados, no período em que
Humberto cumpria mandato de deputado federal.

Redistribuídos os autos, a relatoria do “caso Lucena” ficou


sob o comando do ministro Marco Aurélio de Farias Mello, a quem
o processo foi enviado no dia 09 de setembro. Mello determinou
que o TRE paraibano esclarecesse a data em que o acórdão foi
formalizado e o protocolo do respectivo recurso. O relator havia
identificado um “dilatado interregno” entre a data de assinatura da
decisão e a sua publicação no Diário da Justiça. Realizada a
diligência, Marco Aurélio de Farias Mello estudou o processo e
pediu a sua inclusão em pauta, para ser apreciado pelo plenário da
Corte.

Um dia antes do julgamento, Humberto demonstrava


tranquilidade: “eu distribuo os calendários sem nenhum caráter de
propaganda eleitoral”, afirmou o senador paraibano, lembrando que
quando os calendários foram impressos, no final do ano de 1993,
ele sequer era candidato à reeleição: “Eu não era candidato ao
Senado, mas candidato a candidato ao governo da Paraíba”, disse
confiante numa decisão contrária ao parecer do procurador eleitoral
com atuação no TSE.

Finalmente havia chegado o dia do TSE apreciar o recurso de


Humberto Lucena. Era uma quinta-feira, dia 13 de setembro, a

85
menos de vinte dias antes de realização do pleito de 03 de outubro.
A assistência que lotava o plenário do TSE era bastante diversificada:
advogados, parlamentares e até servidores do gabinete do senador
paraibano.

A matéria jurídica já não se mostrava mais tão simples como


antes e os autos somavam quase trezentas páginas. Estava em jogo
a candidatura à reeleição do presidente da mais importante Casa
Legislativa do País e a terceira autoridade na ordem de sucessão da
presidência da República.

Naquela fase do processo, Humberto Lucena sofria uma das


mais terríveis campanhas por parte dos meios de comunicação do
país, um verdadeiro linchamento moral. Os grandes meios de
comunicação, que nunca tiveram uma relação fácil com Humberto,
condenavam a sua conduta. Acusavam-no de fisiológico e
nepotista.36 A barganha política travada entre o PMDB e o Poder
Executivo em torno dos cargos do segundo e terceiro escalão,
ajudariam a desgastar ainda mais a imagem de Humberto no
cenário nacional.

No dia em que o TSE apreciou o recurso, jornais do Sul do


país publicaram editorias e artigos que indicavam a forma de
tratamento que, a partir dali, seria dispensada ao senador
paraibano. Eis a matéria veiculada pelo Jornal FOLHA DE SÃO
PAULO:
Senador tem apreço especial pelo clientelismo e
nepotismo
Especialidade em pedir emprego para eleitores,
Lucena tem nove familiares com cargos no Congresso

36
LUCENA, Humberto. TEMAS EM FOCO. Brasília: 1991, p. 39/40.
86
O processo aberto no Tribunal Superior Eleitoral (TSE)
contra o presidente do Senado, Humberto Lucena
(PMDB/PB), que usou a Gráfica do Senado em proveito
próprio, surpreendeu o senador. Segundo ele, a prática
de imprimir calendários e cadernos escolares com
propaganda pessoal de políticos sempre fez parte do
cotidiano da casa.

Ao contrário de vezes anteriores, quando calendários e


cadernos lhe asseguraram a eleição, o uso da máquina
do Senado agora pode encerrar a carreira de Lucena. O
gosto em utilizar a cota de impressos da Gráfica do
Senado para produzir material de propaganda pessoal
pode até ser considerado coisa melhor na vida pública
do senador. Ele é conhecido, entre os pares, como
especialista em pedir empregos para os eleitores e
garantir salário dos cofres públicos a parentes que
sempre encaixa em algum cargo, no Executivo ou no
Legislativo.

A dinastia dos Lucena tem nove parentes empregados


no Congresso, mas o senador só assume a paternidade
de duas nomeações: do filho Humberto Júnior e da
sobrinha Esmeralda. A filha Lisle Lucena trabalha no
gabinete do deputado Ivandro Cunha Lima (PMDB/PB).
Os outros foram nomeados por políticos diversos e pelo
irmão Solon Lucena.

A filha Taís foi chamada pelo senador Júlio Campos


(PFL/MT) para trabalhar em seu gabinete, a filha Iraê
foi convidada pelo deputado José Luiz Clerot
(PMDB/PB), a sobrinha Egli pelo senador Jaison Barreto,
a sobrinha Ana Carolina pelo ex-senador Milton Cabral,
o sobrinho Haroldo pelo irmão Solon, que já foi chefe de
gabinete de 11 ministros, com rápida experiência
parlamentarista no governo João Goulart e que acabou
87
indo parar no Senado. O décimo integrante do clã é
Josecler Moreira, marido de Egli, funcionário da Gráfica.
Quanto ás denúncias de troca de votos por empregos,
Lucena se diz vítima de sua boa intenção. Em 1987, teve
a assinatura falsificada pelo então deputado Agassiz
Almeida (PMDB/PB) para solicitar a nomeação de um
cabo eleitoral para um posto do Funrural. A fraude foi
descoberta. Deu em nada.37

O JORNAL DO BRASIL não fez diferente:

HUMBERTO LUCENA
Pródigo em favores e empregos

Aos 66 anos, mais de 50 anos de vida política, o


advogado paraibano HUMBERTO LUCENA (PMDB)
será o primeiro presidente de uma das casas
Legislativo, a ser julgado pela Justiça Eleitoral. Lucena
já foi presidente do Senado e líder do PMDB duas
vezes. É conhecido como parlamentar que gosta de
prestar favores a correligionários e empregar
parentes. Chegou a ser comparado com Justo
Veríssimo, personagem de Chico Anysio, que usa o
mesmo timbre de voz do senador para falar com os
eleitores. Mas, ao contrário do personagem, Lucena
faz sempre questão de dizer que é pobre.
Gaba-se de ter sido o primeiro signatário da CPI que
resultou no impeachment de Fernando Collor,
enfrentando as resistências do Palácio do
Planalto. Na CPI do Orçamento, abriu sua
declaração de imposto de renda para mostrar
que não enriqueceu com a política.38

37
Jornal O ESTADO DE SÃO PAULO, edição de 13.09.1994, p. A-5.
38
JORNAL DO BRASIL, edição de 13.09.1994, p. 8.
88
Às constantes críticas da Imprensa, Humberto Lucena
respondia resignado:

...Não adianta ser um homem de bem a toda prova, que


nunca se envolveu, direta ou indiretamente, em
qualquer ato de corrupção ativa ou passiva. Não
adianta ser um parlamentar assíduo e atuante.

Nada disso tem valor quando que se pretende mesmo é


atingir a pessoa, o político, o homem público. Se ele tem
uma postura de honestidade pessoal e política que
torna o seu nome a maior herança que tem a deixar
para os seus, procura-se inventar um defeito que o
descaracterize, aos olhos da opinião pública. Passam a
chamá-lo de qualquer coisa. Por exemplo, de
empreguista e nepotista, num país em crise, onde a
imensa maioria das pessoas é humilde e, portanto,
pobre e necessitada. Claro que essa pseudo-acusação
gera um clima de revolta e rejeição.

Mas o que interessa é a realidade.

Não pode ser fisiológico quem permaneceu, mais de


vinte anos, na oposição, a nível federal, estadual e
municipal. Não pode ser empreguista quem introduziu,
definitivamente, o concurso público no Senado e quem
foi o autor, na Constituinte, da emenda que se
transformou no art. 37, itens I e III, e seu parágrafo 25,
da nova Constituição Federal que instituiu o concurso
público como única forma de ingresso no serviço público
da União, dos Estados, dos Territórios, do Distrito
Federal e dos Municípios, sob pena de nulidade do ato e
da punição da autoridade responsável, na forma da lei.
Não pode ser nepotista quem, ao longo de quase
quarenta anos de vida parlamentar, não nomeou um só

89
parente para o quadro permanente da Assembleia
Legislativa do seu Estado, da Câmara dos Deputados ou
do Senado.

Somente assim pode-se preservar a imagem do homem


público. Nada melhor do que ser um idealista com os
pés no chão e andar na rua de cabeça erguida porque
não deve nem teme.

Além do clima totalmente desfavorável ao senador


paraibano, havia algumas insinuações em relação ao relator do
recurso. Egresso da magistratura do Trabalho, antes de chegar ao
STF, o ministro Marco Aurélio de Farias Mello havia tomado posse
no STF em 13.06.1990, depois de ser nomeado pelo presidente da
República que tinha o mesmo sobrenome, Fernando Collor de
Mello. Como Lucena fora o primeiro senador a subscrever o pedido
de Impeachment, no Senado, especulou-se que o primo de Collor
de Mello não gozava de total imparcialidade para julgar o caso.
Como os advogados de Humberto Lucena não ajuizaram a respetiva
exceção de impedimento, ou suspeição…

A sessão do TSE começou às dezenove horas e quinze


minutos. O presidente da Corte, ministro Sepúlveda Pertence,
anunciou o recurso interposto pelos advogados de Humberto.
Marco Aurélio cumpriu o ritual regimental: relatou o caso de forma
minuciosa e destacou os principais argumentos fáticos e jurídicos da
representação e da defesa. O vice-procurador eleitoral fez um
aditamento oral ao parecer escrito. Antônio Fernando Barros e Silva
de Souza sabia que os advogados de Humberto concentrariam suas
argumentações e questionariam o prazo do recurso da decisão do
TRE. Souza defendeu a tempestividade do apelo interposto por
Antônio Carlos Pessoa Lins, com os seguintes argumentos:

90
Eminentes Magistrados, o relatório chama atenção
para um dado que o parecer não havia manifestado
importância. Trata-se da tempestividade ou não do
recurso. O parecer afirmou categoricamente e o fez
porque, às fls. 71 dos autos, consta a certidão de que a
decisão foi publicada no Diário Oficial do Estado no dia
28.07.94 e às fls. 72 há a certidão comprovando a
entrada do recurso em exame no dia 31.07.94 – 3 dias
após, portanto, tempestivamente.

Daí a razão pela qual o Ministério Público, nesta


instância, não se alongou no exame da questão.

A lembrança que faz o ilustre Ministro Relator obriga-


nos a tecer outras considerações. E o fazemos em razão
das informações que vieram acostadas aos autos,
posteriormente ao referido parecer.

Segundo essas informações, prestadas pelo ilustre


Presidente do Tribunal Regional Eleitoral da Paraíba, a
decisão datada de 10 de julho de 1994 somente foi
transformada em acórdão e subscrita em 21.07.94, e a
publicação confirmada em 28.7.94. O único problema
que o Ministério Público pode apreender da questão
levantada pelo ilustre Relator é o de que se dê
importância à data da assinatura do acórdão pelo
membro do Ministério Público perante aquela Corte.

É realmente interessante o costume adotado as Cortes


eleitorais no sentido de que o membro do Ministério
Público subscreva o ato jurisdicional. Não se trata, a
toda evidência, de atribuição do Ministério Público. O
acórdão é o ato jurisdicional por excelência, como é a
sentença. Assina-se simplesmente o acórdão. Não há,
nesse ato de assinatura, da parte do Tribunal, diante da

91
inexistência de regra, mesmo da parte do Tribunal,
diante da inexistência de regra, mesmo que costumeira,
como tê-la por intimação. Trata-se, ao ver do Ministério
Público, de uma simples assinatura que o costume
tornou parte integrante dos acórdãos das Cortes
Regionais e da Corte Superior Eleitoral. Não vê o
Ministério Público razão para que tenha essa assinatura
como intimação. É que a intimação e o seu termo inicial
são de absoluta importância para a definição do prazo
recursal. Portanto, ela deve ter como referência um
acontecimento certo, preciso, incontroverso, e essa
assinatura não revela isso. No caso dos autos, não há
uma só certidão informando que, apesar de a decisão
ter sido tomada em 15 de junho de 1994, a assinatura
do respectivo acórdão somente se deu no dia 21.7; pelo
contrário, o acórdão está assinado também com a data
de 15 de junho de 1994. É certo, há informação do
Presidente do Tribunal, mas as intimações não se
compadecem com as informações. O que se exige são
certidões, documentação de que realmente o ato existiu
e foi praticado – não é o caso dos autos -, e a
informação naquela data, é a de que certamente se fez
com a mesma burocracia que se faz perante esta Corte:
o acórdão vem sobreposto aos autos, não encartado
nestes, e se lança a assinatura, como simples ato de
autenticação – assinatura como representante do
Ministério Público Eleitoral. Ora esse ato nunca foi,
nesta Corte nem nas Cortes Regionais, considerado ato
de intimação. Todos os recursos interpostos contra as
decisões dessa Corte tiveram como parâmetro a
publicação no Diário Oficial. Não obstante, o Ministério
Público, tanto pelo Código de Processo Civil, art. 236,
§2º, quanto a partir da Lei Complementar n. 75|93, que
regulamentou o Ministério Público da União, tem
direito a receber intimação pessoalmente nos autos, o
que quer dizer que a simples assinatura do acórdão não
92
corresponde a essa intimação, e também porque no
momento em que há uma intimação válida, seja a
parte, seja o Ministério Publico, há de poder dispor, de
examinar os autos sem restrições, e a assinatura que se
lança no acórdão não permite ao Ministério Público a
utilização dessa faculdade. Assinado, os autos são
remetidos ao setor Judiciário para providenciar a
publicação, quer dizer, os autos não estão à disposição
nem do Ministério Público e nem das partes. Mesmo
quando o prazo é comum e corre em cartório, o
processo está à disposição das partes para exame a
qualquer momento. Não é o que acontece quando se
lança a assinatura em acórdão do Tribunal Regional
Eleitoral ou dessa Corte. Daí por que o Ministério
Público questiona a Corte sobre a verdadeira função
dessa assinatura. Poderia ela ser interpretada como ato
de intimação? Há regra costumeira nesse sentido¿ Não.
A regra costumeira é no sentido de que se exige apenas
assinatura para se autenticar o acórdão; simples
autenticação como assina o Sr. Presidente e o Relator.
Não vale como intimação, tanto que reiteradamente os
recursos são interpostos a partir da publicação e
reiteradamente e examinados sem questionamentos.
Reitera que não há sequer regra costumeira que atribua
a essa cientificação a natureza de ato de intimação.

Com relação ao mérito do recurso, o Ministério Público


teve a oportunidade, em parecer escrito, de manifestar
a sua opinião, seja quanto à aptidão dos impressos
questionados para veicular propaganda eleitoral,
aptidão essa que ressai independente de qualquer
elemento subjetivo – não é a vontade de quem manda
imprimir que indica que determinada coisa terá
aptidão para veicular propaganda, porque ela,
objetivamente há de ter essa potencialidade.

93
Por outro lado, lembrou o Ministério Público
precedentes desta Corte em que se admitiu calendários
menos sofisticados e de menor dimensão como
instrumento apto a realizar propaganda eleitoral. Não
se trata, portanto, de uma novidade que o Ministério
Público tenha trazido à Corte. Os precedentes
veiculados no parecer, são claros nesse sentido. Lembro
até que esta Corte considerou propaganda eleitoral
cartazes de eventos turísticos em que constava abaixo a
expressão: ‘Apoio Getúlio Boscadim’. Só essa menção foi
considerada por essa Corte elemento suficiente para
dar a natureza de propaganda eleitoral e ser admitida a
existência de abuso de poder econômico naquele caso.
Com relação à quantidade – 130.000 calendários – ao
ver do Ministério Público, calendários que se destinam a
ficar expostos e, portanto, com a aptidão de influir em
pessoas que o vejam, é um número absolutamente
razoável para produzir efeitos na propaganda eleitoral.
Lembro, também, que esta Corte tem exigido para o
reconhecimento, seja do abuso do poder econômico,
seja para a constatação de abuso de poder de
autoridade, um nexo de causalidade. Agora, esse nexo
de causalidade não pode ser visto como uma
comprovação matemática de que o desvio, seja no
poder econômico, seja no poder político, influi no
resultado eleitoral. Basta, ao ver do Ministério Público –
senão a Lei Complementar n. 64|90 não terá nenhuma
aplicação – que haja a potencialidade do instrumento
utilizado para influir no resultado eleitoral.

Dai porque, o Ministério Público lembra que as


considerações trazidas da tribuna pelo ilustre patrono
do requerido, a respeito da habitualidade com que
utilizava a confecção de calendários parece, ao ver do
Ministério Público, com toda as vênias, irrelevante para
94
o deslinde da questão. É que a potencialidade dos
calendários como veículo de propaganda eleitoral deve
ser feita objetivamente, sem qualquer consideração a
propósito do elemento subjetivo que inspirou a sua
confecção e posterior distribuição – aliás, distribuição
que está comprovada nos autos, seja pelo que foi
apreendido, seja pelos elementos informativos que
vieram do Senado Federal, dando conta da remessa de
impressos durante largo período.

É irrelevante, portanto, como dizia, que a confecção vise


à propaganda eleitoral ou vise à publicidade pessoal do
cidadão. No ano eleitoral, a propaganda pessoal é,
também, propaganda eleitoral.

Daí por que o Ministério Público, pedindo atenção


especial desta egrégia Corte para o aspecto preliminar
da tempestividade, em razão das considerações antes
feitas, pede o provimento do recurso.

Defender o “caso Humberto Lucena” não se mostrou uma


tarefa fácil, mesmo para o experimentado Raphael Mayer, ex-
ministro do STF. Na sustentação oral, ele afirmou: “ - Os calendários
tinham o nome de Humberto, não como candidato a senador, mas
como senador que ele era”, obtemperou com convicção! O
advogado tentou convencer os juízes do TSE de que, quando o
senador mandou imprimir a publicidade e remeteu a
correligionários, ele sequer pensava em ser candidato.

Mayer sustentou que os cento e trinta mil calendários não


causariam repercussão eleitoral num Estado com quase dois milhões
de habitantes e que tanto a Lei n. 8.713/93, quanto a Resolução que
disciplinava as eleições, previam que as convenções partidárias para
a escolha de candidatos deveriam ocorrer entre 02 de abril a 31 de
95
maio de 1994: “- Se Humberto não era candidato, no momento em
que foram confeccionados e distribuídos os artefatos de
publicidade, ele não podia ser punido pela legislação eleitoral”,
defendeu com firmeza!

Raphael Mayer argumentou ainda que o senador havia


“apenas” usado a cota da impressão a que teriam direito no Senado:
“- Não procedem as esotéricas indicações de que se trata de
propaganda eleitoral”, concluiu.39

Quando a palavra foi devolvida ao relator, Marco Aurélio de


Farias Mello enfrentou a questão preliminar e votou pela
intempestividade do recurso:

Senhor Presidente, defrontamo-nos com recurso de


natureza ordinária e cabe apreciar de ofício o
atendimento aos pressupostos de recorribilidade
objetivos e subjetivos.

Não há a menor dúvida de que esses pressupostos


devem e precisam ser analisados pelo órgão julgador,
independentemente das contra-razões. Estas
consubstanciam faculdade, e não ônus processual;
não o meio sem o qual não se possa chegar a
determinado resultado.

O que tivemos na hipótese dos autos quanto à


oportunidade do recurso? A decisão atacada foi
prolatada no dia 15 de junho de 1994.
Posteriormente, não foi certificada a data em que
ocorrida a juntada. Seguiu-se a certidão referente à
publicidade maior, que teria ocorrido mediante o
Diário do dia 28 de julho de 1994. O Ministério
39
Jornal O ESTADÃO DE SÁO PAULO, edição de 14 de setembro de 1994, p. 6.
96
Público, autor da representação, protocolizou o
recurso no dia 31 de julho. Se considerarmos, como
data da intimação, aquela em que publicada no Diário
a notícia do que decidido, o recurso é tempestivo. Se
entendermos que, no caso, houve ciência inequívoca,
por parte da Procuradoria Regional Eleitoral, na data
em que subscrito o acórdão, o recurso estará,
irremediavelmente, intempestivo – será merecedor da
pecha de intempestivo.

Assim concluo porque estamos diante de um prazo


que é peremptório. No caso não há necessidade
sequer de ser discutir se o prazo para o Ministério
Público é contado em dobro ou de forma simples
porque, mesmo que contado em dobro, se
assentarmos aqui – e será um precedente para
nortear outras decisões – que houve a intimação
quando subscreveu o Procurador o acórdão, o recurso
terá sido interposto a destempo.

Presidente, tudo na vida tem uma razão de ser. Tudo


na vida decorre de uma necessidade, visando a um
objetivo. Qual é, no caso, o objeto da coleta da
assinatura do Ministério Público? Revela-o, a meu ver,
o art. 236 do Código de Processo Civil, ao preceituar
que a intimação do Ministério Público, em qualquer
caso, será feita pessoalmente. Colhe-se a assinatura
do Ministério Público, no acórdão, para ciência
inequívoca, por parte do Órgão, do que se contém na
decisão proferida pelo órgão investido do ofício
judicante.

É certo que o Regimento Interno do Supremo Tribunal


Federal, ao cogitar da formalização do acórdão, não
aponta como formalidade essencial a assinatura pelo
representante do Ministério Publico. Preceitua o art.
97
94 do Regimento que subscrevem o acórdão o
Ministro que presidiu o julgamento e o Relator que o
lavrou. Não temos a exigência. Todavia, não menos
correto é que, a partir do momento em que se cogita
da subscrição do acórdão pelo Ministério Público, o
ato revela o conhecimento, a intimação pessoal do
que decidido pela Corte.

Por isso, enaltecendo de qualquer forma a


sustentação feita pelo Vice-Procurador-Geral, tenho
como intempestivo o recurso interposto.

O meu convencimento sobre o tema, repito, decorre


da circunstância de o Ministério Público haver aposto
a assinatura no acórdão em data anterior aos três
dias do prazo recursal, com o que tornou induvidosa a
ciência inequívoca do que decidido. Assentadas a
premissa e a passagem do tempo sem a protocolação
oportuna do recurso, concluo pela incidência da
preclusão maior. O que decidido pela Corte de origem
transitou em julgado e, portanto, sob pena de violar-
se o inciso XXXVI do rol das garantias constitucionais –
art. 5º da Carta da República de 1988 -, não há como
proceder ao exame do merecimento, ou não, do
acórdão da Corte de origem que implicou a
improcedência da representação.

Concluo, portanto, pela intempestividade, e não


conheço do ordinário.

O primeiro a divergir, o ministro Flaquer Scartezzini, invocou


a Lei Complementar n. 75 – Estatuto do Ministério Público da União.
De acordo com esta Lei, o representante do parquet tem a
prerrogativa de ser intimado pessoalmente nos autos, em qualquer
processo e grau de jurisdição, disse. Scartezzini conheceu do
98
recurso:

Senhor Presidente, a meu ver, in casu a data que deve


ser considerada há que ser a da publicação, que
ocorreu no dia 28 de junho de 1994. A partir dessa
data, entendo que deve ser iniciada a contagem do
prazo para o recurso das partes que assim
pretenderem, e o Ministério Público o apresentou em
tempo.

Também me impressionou a argumentação adotada


pelo ilustre Procurador Geral Eleitoral, ao dizer que,
embora seja até praxe, princípio consuetudinário a
assinatura do acórdão, na sessão, não se conta a
partir dessa data o início do prazo, pois a parte não
tem ainda à disposição os autos. O Ministério Público
se quisesse naquele momento não poderia apresentar
suas razões, de vez que não teria condições para
examinar os autos, o que só acontecia, como
acontece, a partir da publicação.

Senhor Presidente, com a devida vênia do eminente


Relator, levando em consideração o disposto na Lei
Complementar 75 e a própria jurisprudência da
Suprema Corte, que entende que a intimação deve ser
pessoal e a circunstância de que a Lei 64/909 exige a
publicação feita na sessão, o que não ocorreu,
entendo, Senhor Presidente que a tempestividade foi
observada, pelo que conheço do processo.40

40
Não era comum o TSE apreciar um caso em que se discutia um conflito entre duas leis
especiais: de um lado, a Lei eleitoral; de outro, o Estatuto do Ministério Público da União – a
Lei Complementar n. 75, de 1993 -, que, num dos seus dispositivos, permitia que o membro
da instituição tivesse vistas do processo ‘nos próprios autos’.

99
O ministro Jesus Costa Lima proferiu um voto curto. Fez
questão de distinguir a matéria penal da eleitoral, cuja celeridade do
processo exige uma permanente fiscalização. E arrematou: “- No
momento em que o Procurador Eleitoral assina o acórdão, dele
toma ciência induvidosa”, concluiu Jesus.

Os ministros Torquato Jardim, Diniz de Andrada e Carlos


Mário Velloso rejeitaram a tese de intempestividade do recurso.

Torquato argumentou que a assinatura no acórdão não


implicava disponibilidade imediata dos autos para que o Ministério
Público pudesse recorrer.

O ministro Andrada sustentou que, se houve a publicação


do acórdão no dia 28 de julho, no Diário de Justiça, ela não ocorreu
em sessão.

O ministro Velloso reconheceu que a Lei Complementar nº


64/90 não concede ao Ministério Público nenhum privilégio e que,
por ser lei especial, só poderia ser revogada por outra norma
especial, de igual hierarquia. Porém, observou:

“- O fato de o Procurador ter assinado acórdão, não quer


dizer que esteja ele intimado do ato processual, do ato
jurisdicional.”

Por 3 X 2, os ministros do TSE afastaram a preliminar de


intempestividade do recurso, vencidos os ministros Marco Aurélio e
Jesus Costa Lima.

Sem querer ser profeta do passado, caso a preliminar tivesse


sido acolhida, o “caso dos calendários” teria tido outro desfecho e a

100
crise entre os dois poderes da República certamente não teria
ocorrido. Quis o destino, todavia, que as coisas tomassem outro
rumo!

Superada a questão do prazo do recurso, o relator passou a


detalhar o mérito. A maior parte do voto proferido pelo ministro
Marco Aurélio foi quase uma transcrição integral do parecer
subscrito pelo vice-procurador-geral eleitoral, Antônio Fernando de
Souza. Reproduzo-o, parcialmente:

Senhor Presidente, a Procuradoria-Geral Eleitoral


assim equacionou a espécie:

'11. O resultado das diligências solicitadas a Vossa


Excelência (fls. 93/94) revela que o recorrido postulou,
em 8.12.93 (fls. 100), ao Centro Gráfico do Senado
Federal (fls. 101), a impressão de cento e trinta mil
(130.000) calendários (fls. 101), que passaram a ser
distribuídos a partir de dezembro de 1993 (fls. 104).

12. O recurso, por versar a lide sobre inelegibilidade, é


ordinário e, porque intempestivo e formalmente apto,
deve ser conhecido.

13. Antes de examinar o mérito da pretensão recursal,


ressalto que todos os fatos que deveriam ser
apurados na investigação judicial resultaram
provados nos autos.

14. É incontroverso que os calendários remetidos pelo


recorrido a cidadãos residentes no Estado da Paraíba
foram impressos (130.000) na gráfica do Senado
Federal e, pelo menos em parte, foram distribuídos à
conta de franquia postal deferida aos membros do

101
Congresso Nacional. Também ressai do conjunto
probatório, que a impressão teve início logo após,
ingressando no corrente ano, visto que a
representação foi formulada em 18.2.94.

15. A correta solução da lide, ao que penso, pressupõe


o desate preliminar de uma questão, que é prejudicial:
os calendários impugnados são instrumentos aptos
para realizar propaganda eleitoral? É que, segundo
ressai dos artigos 19 e 22, da Lei Complementar n.
64/90, a atuação da Justiça Eleitoral na apuração do
'uso indevido, desvio ou abuso do poder econômico ou
do poder de autoridade, ou utilização indevida de
veículos ou meios de comunicação social,' somente se
justifica quando tais ações se realizam em 'benefício
de candidato ou partido' e ofendam, ou possuam
potencialidade para ofender, 'a liberdade de voto' e a
'normalidade e legitimidade das eleições'.

16. Por isso, sem que se caracterize a idoneidade dos


impressos em questão como veículos de propaganda
eleitoral, o alegado abuso de poder de autoridade não
tem relevância eleitoral e o exame de sua eventual
ilicitude, sob o enfoque penal ou não, escapa à
competência dessa Corte. Indispensável, portanto,
que se obtenha uma resposta à indagação formulada
no item anterior.

17. A Corte de origem, pela maioria dos seus


membros, examinando o calendário documentado às
fls. 5, não o considerou apto a realizar propaganda
eleitoral. É o seguinte o trecho do acórdão recorrido
que se ocupa da questão:

'Por outro lado, sem qualquer procedência a alegação

102
de promoção de propaganda política – via calendários
– antes da época apropriada.

É importante ressaltar que a propaganda eleitoral,


quando efetivamente dirigida aos eleitores, há de ser
nítida, com objetivo claro, preciso, direto, a fim de
alcançar seu resultado.

No caso em julgamento, houve tão somente uma


mensagem de um homem público, atualmente
exercendo o cargo de Presidente do Congresso
Nacional que, nessa condição, procurou desejar
indistintamente ao povo brasileiro fé e esperança no
ano de 1994, na expectativa de uma saída para a
grave crise econômica e social que assola o nosso
país.

De nenhuma forma vislumbra-se qualquer aceno de


propaganda eleitoral pelo que consta desse processo.'
(fls. 68/89).

18. A circunstância do impresso em questão conter


um calendário e uma mensagem do Senador
Humberto Lucena, ao meu ver, não é suficiente para
descaracterizá-lo como veículo propaganda eleitoral.
Ver no referido impresso apenas uma mensagem ao
povo brasileiro, como fez o acórdão recorrido, é fechar
os olhos à realidade. O formato utilizado não é o usual
para a transmissão de mensagens de final de ano,
mas sim aquele próprio para divulgar candidatos a
cargos eletivos visto que consta, com destaque: a) o
nome do cargo eletivo; b) o nome a fotografia do
candidato; e c) o ano da eleição.

19. Aliás, não é novidade a utilização de calendários


como instrumento para realização de propaganda
103
eleitoral. Essa Corte, no acórdão n. 11.899, proferido
no Recurso n. 9.350-RS, relator Min. Vilas Boas,
considerou como instrumentos de propaganda
eleitoral os calendários distribuídos por um Deputado
Estadual, candidato à reeleição, com a sua foto e a
inscrição do seu nome seguida da indicação do ano
eleitoral.

20. No recurso eleitoral n. 9.104, o Ministério Público


Eleitoral também considerou como predispostos a
realizar propaganda eleitoral os calendários
confeccionados com recurso do Município de Pedro
Avelino (RN) nos quais constava um retrato da
Prefeita Municipal, juntamente com o seu marido, que
era candidato a deputado estadual, e os seus filhos.
No julgamento do referido recurso, essa Corte
(acórdão n. 11.884), que também apoiou-se em
outros fatos, reconheceu como abuso de autoridade a
utilização de recursos públicos na realização de
propaganda eleitoral.

21. Em outra oportunidade (Acórdão n. 13.428, no


Recurso n. 9.354-RS, relator Min. Torquato Jardim),
essa Corte considerou propaganda eleitoral a inclusão
em cartazes beneficentes das expressões: 'Apoio
Boscardin' ou 'apoio: Getúlio Boscardin', nome do
sócio principal da empresa que os imprimiu e que era
candidato a cargo eletivo.

22. Não há dúvida, portanto, que o impresso


questionado, pelas suas próprias características,
revela-se apto a veicular propaganda eleitoral, visto
que contém, em letras destacadas, a indicação do
cargo eletivo, o nome do candidato e o ano do pleito.
Além disso consta uma fotografia do candidato.

104
23. Desnecessário ressaltar que a aferição da
potencialidade dos calendários como veículo de
propaganda eleitoral há de ser feita objetivamente,
sem qualquer consideração a propósito do elemento
subjetivo que inspirou a sua confecção e posterior
distribuição. Por isso, é irrelevante, ao deslinde da
questão, a circunstância de que o recorrido
habitualmente solicitava a confecção de calendários
ao Centro Gráfico do Senado Federal. Nos períodos
não eleitorais a confecção e distribuição de tais
impressos, que se destinam a inequívoca promoção
pessoal, podem gerar responsabilidade que escapa à
competência dessa Corte.

24. Afirmada a aptidão dos impressos para veicular


propaganda eleitoral, o exame do alegado abuso do
poder de autoridade e o uso indevido de veículo ou
meios de comunicação social em proveito do
recorrido insere-se, inequivocamente, na competência
da Justiça Eleitoral. Ademais, como não se está a
examinar uma eventual ilicitude penal na conduta do
recorrido, mas sim a ilicitude eleitoral geradora de
inelegibilidade, a questão escapa à competência do
Supremo Tribunal Federal.

25. O acórdão recorrido rejeita, ao meu ver


equivocadamente, a ocorrência de abuso do poder de
autoridade ou uso indevido dos meios de
comunicação social ao fundamento de que a
confecção dos 'calendários pela gráfica do Senado
Federal e sua remessa valendo-se da franquia postal
concedida aos senhores Senadores' está 'prevista em
Resolução da Mesa Diretora do Congresso Nacional
desde 1985, comprovada nos autos por uma

105
declaração do Sr. Senador Júlio Campos, primeiro-
secretário do Senador Federal.' (fls. 68).

26. Embora inexista nos autos cópia do teor da


Resolução da Mesa Diretora do Senador Federal
referida no acórdão impugnado, o documento de fls.
31, acostado aos autos pelo recorrido, destaca:

'Decidiu também a Comissão Diretora que a referida


Quota, para utilização de serviços junto ao CEGRAF,
destina-se exclusivamente ao atendimento das
necessidades de impressos para apoio dos trabalhos
parlamentares dos Srs. Senadores.'

27. A restrição estabelecida pela Comissão Diretora é


correta visto que o Regimento Interno do Senado
Federal (Resolução n. 93, de 1970) faculta ao Senador,
uma vez empossado, a 'utilizar-se dos diversos
serviços do Senado, desde que para fins relacionados
com as suas funções' (art. 9º, letra e). Portanto, os
serviços do Senado Federal, inclusive os prestados
pela respectiva gráfica, devem ser utilizados pelos
Senadores exclusivamente para o desempenho de
suas atividades parlamentares.

28. A declaração de fls. 32, subscrita pelo Senador


Júlio Campos, na condição de Primeiro-Secretário do
Senado Federal, ao contrário do que admite o acórdão
impugnado, não comprova a legitimidade da conduta
do recorrido, pois além de sublinhar que a cota anual
de trabalhos gráficos deferida a cada Parlamentar
dever 'ser utilizada para impressão do material
gráfico destinado ao apoio nas atividades
legislativas', noticia que 'é limitada em orçamento
próprio, com acompanhamento de utilização, não

106
devendo qualquer material ser destinado à
propaganda eleitoral'.

29. A referência a ‘calendários’, constante da referida


declaração está, evidentemente, vinculada à
finalidade anteriormente anotada: apoio nas
atividades legislativas, de modo que não pode
justificar a sua utilização para a promoção pessoal do
parlamentar como ocorre com o impresso
questionado nestes autos. Aliás, segundo ressai do
art. 37,§1º, da Constituição Federal, é vedada a
utilização de recursos públicos para a promoção
pessoal de autoridades ou servidores públicos.

30. Certo que o impresso em questão não se presta a


apoiar as atividades legislativas do requerido, nem
para divulgar suas atividades parlamentares, resulta
que a hipótese também justifica a incidência e a
aplicação do disposto no art. 45, inciso II, da Lei n.
8.713\93, a revelar a ilegítima utilização do Centro
Gráfico do Senado Federal.

31. Observo que essa referência à Lei n. 8.713\93 não


implica aplicação retroativa da interpretação dessa
Corte externada na Consulta n. 14.404 (Resolução de
28.6.94), que nela considerou vedada, no período
eleitoral, ao parlamentar candidato a expedição, por
conta do Erário, de ‘Boletins Informativos’ de sua
atuação parlamentar. É que o calendário discutido
nestes atos não se confundem com os referidos
‘Boletins Informativos’, nem se presta para divulgar as
atividades do parlamentar.

32. Vale lembrar que, no julgamento já mencionado


Recurso n. 9.350-RS (Acórdão n. 11.899), em que essa

107
Corte defrontou-se com caso assemelhado ao
presente no qual, apesar de ter sido julgada
improcedente a representação, o eminente Ministro
Sepúlveda Pertence fez observação que auxilia na
solução do recurso em causa:

‘A convicção que me resta, dos três documentos lidos


pelo eminente Relator, é que houve uma tentativa de
utilização de recurso da Assembleia para esses
calendários que, ao que me parece, o eminente
Ministro Relator não tem dúvidas, constituíam,
realmente, não simples informação de atividade
parlamentar, mas típica propaganda eleitoral do
Deputado, candidato à reeleição.

Assim, indiscutível a tentativa de abuso, posto que


irrisório, ante práticas semelhantes e notórias de
muito maior vulto.’

33. Esclareço que no Recurso n. 9.350-RS, acima


mencionado, o fundamento para o reconhecimento da
improcedência da representação residiu no fato de ter
o impugnado efetuado o pagamento dos impressos
diretamente à imprensa oficial, situação que não se
confunde com a dos presentes autos em que a
confecção dos calendários já foi incluída na quota
anual (1993) de serviços gráficos do parlamentar.

34. Não há dúvida, portanto, que o requerido, ao


determinar a impressão e distribuição dos calendários
questionados, às custas do erário público, o que
efetivamente se consumou, agiu com inequívoco
abuso do poder de autoridade em benefício próprio.

35. Resta, para que se constate a presença de todos os

108
pressupostos necessários ao entendimento sufragado
nessa Corte (Acórdão no recurso n. 5.106 – PR, in RE
328-644), a verificação do nexo de causalidade entre a
conduta abusiva e o comprometimento da lisura e da
normalidade das eleições.

36. Creio que a apreciação do nexo de causalidade em


referência comporta enfoques diversos conforme se
trate de impugnação fundada na Lei Complementar n.
64-90 ou no art. 14, §10 da Constituição Federal.

37. Há, ao meu ver, uma diversidade substancial,


apesar de decorrente apenas do fator tempo, entre o
questionamento da normalidade e legitimidade das
eleições antes do resultado eleitoral e aquele ocorrido
depois de conhecida a vontade popular. No primeiro
caso, ou seja, antes de ser conhecido desejo do
eleitorado somente existe uma legitimidade do
processo eleitoral. Na segunda hipótese, além de
persistir o interesse na tutela do referido bem jurídico,
outro aparece igualmente digno de proteção: a
manifestação dos eleitores que exerceram,
legitimamente, a sua vontade livre e consciente.

38. Além disso, essa distinção encontra respaldo na


própria Lei Complementar n. 64/90, quando o inciso
XV do seu artigo 22 determina que o acolhimento da
representação, após a eleição do candidato, deve ser
comunicado ao Ministério Público para os fins
previstos no art. 14, §§10 e 11, da Constituição
Federal e art. 262, inciso IV do Código Eleitoral, donde
ressai que a decisão proferida após o pleito não
invalida, automaticamente, o resultado eleitoral
alcançado pelo candidato impugnado.

39. A separação das duas hipóteses mencionadas, ao


109
ver do Ministério Público Eleitoral é indispensável,
visto que a se exigir, sempre, o nexo causal nos termos
desejados pelo Tribunal, ou seja, a comprovação de
que o abuso importou no comprometimento da
eleição, tornar-se-ia inviável a sua demonstração
antes do resultado eleitoral, circunstância suficiente
para esterilizar os efeitos do inciso XIV, do art. 22, da
Lei Complementar n. 64/90.

40. Apontada diversidade de situações revela a


existência de diferença relativamente ao nexo de
causalidade que deve existir entre o ato ou
comportamento abusivo e a normalidade e
legitimidade do processo eleitoral, na primeira
hipótese, e o resultado eleitoral, na segunda.

Os fatos são incontroversos. O Representado fez


confeccionar e remeteu calendários a cidadãos do
Estado da Paraíba cento e trinta mil calendários,
repetindo procedimento que vinha adotando desde
1987. Logrou as peças por intermédio da cota gráfica
que lhe asseguram o Regimento Interno do Senado
Federal e a Resolução da Mesa, revelada no Ofício
Circular n. 57/85, de 12 de julho de 1985. Acionou,
ainda, a remessa postal pelo Senado. Por outro lado, o
calendário em questão abrange, numa primeira parte,
em letras garrafais, nas cores branca, azul, vermelha
e cinza, o vocábulo 'Senador' e o nome do
Representado. Nas laterais estão os meses, datas e
dias do ano de 1994 e, no centro, a fotografia do
Representado, seguindo-se a mensagem transcrita no
Relatório, repetindo-se o ano de 1994, com inegável
destaque, e lançando-se, mais, a referência a
símbolos das fases da Lua.

O Regimento Interno do Senado Federal preceitua, na


110
alínea e do artigo 9º, que é facultado ao Senador,
uma vez empossado, utilizar-se dos diversos serviços
do Senado, desde que para fins relacionados com as
suas funções. Já a Resolução da Comissão Diretora
daquela Casa refere-se ao uso de serviços junto ao
CEGRAF, por partes dos Senadores, objetivando
'exclusivamente ao atendimento das necessidades de
impressos para apoio aos trabalhos parlamentares'. A
Circular, noticiando a decisão, foi endereçada a todos
os Senadores, dela constando cláusula restritiva
quanto à utilização dos serviços, Pois bem, o
balizamento não restou modificado por ato de
idêntica estatura, valendo notar que, mesmo se assim
não fosse, não ficaria afastada a possibilidade de a
Justiça Eleitoral examinar o caso concreto para saber
da repercussão, ou não, no campo eleitoral. Destarte,
a circunstância de o Primeiro-Secretário do Senado
Federal, em exercício em 2 de março de 1994, Senador
Júlio Campos, haver consignado que a cota pode ser
usada para trabalhos de autoria dos Senadores,
divulgação de matéria concernente à atuação
parlamentar e impressos vinculados ao nome do
Senador, tais como pastas, envelopes, papel-ofício,
cartões, avisos, convites e, também, calendários não
torna extremo de dúvida a licitude eleitoral do envio
dessas peças. No calendário em comento constou
mensagem dirigida aos destinatários, augurando-se
que o ano de 1994 viesse a surgir como um novo
marco na vida dos brasileiros, fazendo-se alusão aos
mais necessitados e rogando-se a Deus que apontasse
os caminhos para a saída da grave crise econômica e
social. Houvesse ficado o calendário restrito aos
elementos que lhe são próprios, ainda se poderia, no
campo de uma flexibilidade maior, dizer da atuação,
em si, do homem público, injetando nos cidadãos do
respectivo Estado uma dose de otimismo, em
111
verdadeira promessa voltada ao trabalho assíduo e
em prol da correção das desigualdades. Ocorre que se
partiu, na verdade, para o enaltecimento da figura do
político, ressaltando-se não só o cargo ocupado, o
nome com o qual é conhecido em tal meio e a própria
fotografia. As repercussões, no campo da penetração
política, são inafastáveis, considerando-se, mesmo, a
gama dos destinatários que se mostram em maior
número e que estão situados nas camadas menos
favorecidas. Dir-se-á que o procedimento foi adotado
em anos anteriores e que somente agora veio a ser
tomado como ilegal pela Procuradoria. O fato apenas
potencializa o abuso de poder, de autoridade e dos
meios de comunicação colocados ao alcance do
Parlamentar, pelo Senado Federal. Longe está de
transmudar a distorção ocorrida em medida inerente
ao desempenho do mandato. Por sua vez, também
descabe considerar, como a afastar o citado abuso, o
fato de outros parlamentares haverem utilizado essa
via de publicidade. A menção a uma meia dúzia serve
a demonstrar que não se teve o procedimento como
enquadrado no fim que a cota gráfica visa a alcançar,
ou seja, a divulgação dos trabalhos desenvolvidos
pelos parlamentares, isto é, no sentido de apoio aos
senhores Senadores, compreendido este como meio
de viabilizar o desempenho próprio ao bom exercício
do mandato.

Quanto ao critério a ser utilizado para saber-se da


procedência, ou não, da representação, forçoso é
reconhecer que é, unicamente, o objetivo. Preceitua o
artigo 22 da Lei Complementar n. 64/90 que qualquer
partido político, coligação, candidato ou o Ministério
Público Eleitoral poderá representar à Justiça
Eleitoral, diretamente ao Corregedor Geral ou

112
Regional, relatando fatos, indicando provas, indícios
ou circunstâncias e pedir abertura de investigação
judicial para apurar o uso indevido, desvio ou abuso
do poder econômico ou do poder de autoridade ou
utilização indevida de veículos ou meios de
comunicação social em benefício de candidato ou de
partido político. A circunstância de a representação
poder desaguar na cassação do registro do candidato
(inciso XIV do citado artigo) revela que pouco importa
o resultado das eleições, ou seja, a influência que o
abuso haja exercido junto ao eleitorado.

Confirma tal enfoque a regra segundo a qual, vindo a


representação a ser julgada procedente após a eleição
do candidato, serão remetidas cópias de todo o
processo ao Ministério Público Eleitoral, para os fins
previstos no artigo 14, §§10 e 11, da Constituição
Federal e 262, inciso IV, do Código Eleitoral, quando
então poder-se-á ter a formalização de procedimento
almejando fulminar o próprio mandato.

Por último, registro que, sobre a hipótese, esta Corte


teve a oportunidade de responder a consulta,
fazendo-o mediante instruções formalizadas no
processo n. 14.404. Consignou-se até mesmo que o
parlamentar não pode, no período da campanha
eleitoral, sequer expedir boletins informativos, por
conta do erário, divulgando a respectiva atuação.
Aludiu-se ao disposto em instruções baixadas, ao
artigo 45, inciso II, da Lei n. 8.713/94 e ao artigo 377
do Código Eleitoral. Preceitua a Lei especial que é
vedado a partido e candidato receber direta ou
indiretamente doação em dinheiro ou estimável em
dinheiro, inclusive através de publicidade de qualquer
espécie, procedente de órgão da administração
pública direta, ressalvado o Fundo Partidário, indireta,
113
ou fundação instituída em virtude de lei ou mantida
com recursos provenientes do Poder Público. Tal
consulta foi introduzindo, em si, uma data
consubstanciadora de termo inicial para que se
pudesse ter como configurado o abuso que, em última
análise, implica o afastamento do equilíbrio que deve
haver em toda e qualquer disputa eleitoral. No caso, o
Representado valeu-se de recursos públicos para
fazer-se lembrado junto aos concidadãos paraibanos,
conferindo a maior ênfase possível à própria figura, e
isto, especialmente avizinhando-se eleições, ganhou
contornos glosados pela legislação.

Concluindo, tenho que o envio dos calendários, como


ocorrido – isto é, ressaltando-se o cargo do
Representado e a figura deste – distribuídos apenas
no âmbito do Estado da Paraíba, justamente no
Estado que se afigura como o do domicílio eleitoral do
Representado, consubstanciou abuso de autoridade,
implicando, em última análise, divulgação da imagem
dos candidatos à custas do erário e em detrimento,
portanto, da situação dos demais, no que disputam
uma cadeira no Senado Federal. Na esteira do
pronunciamento da Procuradoria Geral Eleitoral,
provejo o recurso, para, reformando o acórdão
proferido pela Corte de origem, que julgou
improcedente a representação, declarar o
Representado inelegível para as eleições que
acontecerão nos três anos subsequentes à eleição do
corrente ano, cassando o registro da candidatura,
nestas eleições, ao Senado Federal.

Defiro, por outro lado, a extração de cópias dos


documentos do anexo 2, a serem encaminhadas ao
Procurador-Geral da República, para as providências

114
que entender cabíveis. É como voto na espécie dos
autos.

A decisão do ministro Marco Aurélio foi surpreendente! A


assistência parecia não acreditar no que via. Um a um, os ministros
do TSE foram proclamando os seus votos.

Flaquer Scartezzini ressaltou que a distribuição dos


calendários fora realizada “exclusivamente no Estado da Paraíba”,
não havendo prova nos autos de que o senador tenha espalhado as
peças publicitárias em outros pontos do território nacional. 41 E
concluiu:
Não há duvida, como apontado pelo digno Vice-
Procurador, de que a conduta do recorrido revela
abuso do poder de autoridade, uma vez que,
mediante o uso de recursos públicos, obteve proveito
próprio, divulgando a sua imagem em desrespeito às
normas legais concernentes e vigentes. Inexiste,
Senhor Presidente, outra interpretação que não seja a
da responsabilidade do recorrido. Não há como
dissociar, no caso concreto, a hipótese do art. 45, item
II, da Lei 8.713 da previsão do inciso XIV do art. 22 da
Lei Complementar 64/90.

O ministro Jesus Costa Lima viu nos calendários a prática de


propaganda eleitoral subliminar, disfarçada ou indireta:

...O voto que acaba de proferir o eminente Ministro-


Relator, deixou-me a nítida convicção de que os
calendários constituem um modo inteligente de se
procurar disfarçar o que objetivam na realidade: a

41
O que queria o ministro? Que o senador paraibano enviasse calendários para pessoas dos
demais Estados da federação, sendo ele, no Senado, representante da Parahyba? O
argumento era razoável?
115
propaganda do candidato, colocando-o em posição
destacada e adornado, não apenas com os dizeres
comuns dos calendários, mas de expressões
apelativas e bem ao jeito da propaganda política.
Portanto, instrumento apto a fazer prosélitos, a incutir
na mente do homem simples a ideia de prestígio, de
importância e do destaque que desfruta o
parlamentar, que se apresenta pedindo votos para ser
reeleito.

Em tom mais político e menos técnico, argumentou Jesus:

Já é tempo de se começar a pensar que os costumes


políticos mudaram e que as leis devem ser cumpridas
por todos e não por alguns pobres coitados.

Segundo Costa Lima, o “caso dos calendários” deveria servir


de “exemplo” para os demais políticos que recorreram às mesmas
práticas. O leading case42 daria oportunidade ao Poder Judiciário
iniciar uma ‘faxina’ nos costumes políticos do país e “expulsar os
vendilhões do templo”, apostava Jesus!

Torquato Lorena Jardim preferiu um voto mais técnico,


tomando como base os bens jurídicos tutelados pelo art. 14, §9º da
Constituição Federal – a normalidade e a lisura eleitoral -, e os
princípios que informam a publicidade dos atos dos agentes
públicos, previstos no art. 37, §1º da mesma Carta Constitucional.
Jardim analisou o “caso Lucena” à luz dos princípios da
impessoalidade dos atos da administração pública e da igualdade
entre os candidatos nas eleições. Em certa passagem de seu voto,
disse:

42
A expressão inglesa significa precedente que, no Direito norte-americano, tem força para
obrigar casos futuros.
116
Admitir que a publicidade inerente à representação
derivada da eleição, custeada pelo dinheiro público,
seja utilizada para fins eleitorais, é admitir quebra de
um terceiro princípio constitucional, o da isonomia
legal dos candidatos, compreendido no 'todos são
iguais perante a lei', nos termos da Constituição (art.
5, caput).

Profundo conhecedor do Direito Eleitoral Constitucional, o


ministro Torquato discorreu sobre o significado do parágrafo único,
do art. 7º, da Lei de Inelegibilidades e do papel do poder judiciário
eleitoral. Afirmou Jardim:

O que faz a norma, ao tutelar valores fundamentais à


eficácia social do regime democrático representativo,
é exigir do juiz sua imersão total no meio social e
político no qual exerça seu mister; é impor-lhe
vivência com a realidade sociológica e as nuances do
processo político que, por intermédio do direito
positivo, com as peculiaridades inerentes à
imparcialidade da decisão do Judiciário, deve ele,
provocado na forma da lei, controlar, com o fim de
assegurar a normalidade e a legitimidade das eleições
e o interesse público de lisura eleitoral.

Não lhe permite a norma pretender ignorar o que dos


autos não conste; ao contrário, exige-lhe a lei, que
instrumenta a eficácia legal e a eficácia social da
Constituição, que acompanhe ele a vida social e
política de sua comunidade. De distante e
pretensiosamente indiferente observador da cena
política à sua volta, torna-se o julgador, por imposição
legal, um expectador engajado.

117
É esta a responsabilidade que a normatividade impõe
ao Judiciário compartilhar, engajadamente, com os
outros poderes constituídos, e, também, e não menos
importante, com os poderes intermediários, na
terminologia de Montesquieu, na defesa da
democracia e de seu meio mais reconhecido de
legitimidade política e validade legal: a eleição pelo
voto direto e secreto em sufrágio universal revestido
de normalidade, legitimidade e lisura. A tanto há de
se entregar o Judiciário, menos por criação
constitucional, ou motivação ética, mas, agora, por
imposição normativa.

Esta imposição normativa não o constrange a


considerar, tão somente, prova produzida ou
cabalmente testada, nem conhecer apenas os fatos ou
circunstâncias alegados. Também, e em igual
hierarquia de valoração, deve tomar em conta todo o
quadro social público e notório de indícios e
presunções, circunstâncias ou fatos conhecidos de seu
engajamento com o ambiente social.

Postas as premissas constitucionais e legais, Torquato


Jardim situou a norma ao caso em julgamento e entendeu que o
abuso de poder de autoridade ficou caracterizado. De forma
convincente, justificou:

O recorrido, Senador da República, fez imprimir, em


gráfica de sua Casa Legislativa, e distribuiu, às
expensas do Erário Público, cento e trinta mil
calendários, em que estão gravados seu nome, foto,
mensagem ao eleitorado e o ano de 1194.

Incontroverso o fato, disputa-se sua qualificação


jurídica: se publicidade de atuação parlamentar, nos
118
moldes do §1º, art. 37, da Constituição, ou se abuso
de autoridade que afete a normalidade e a
legitimidade das eleições, como vedado no §9º, art.
14, da Constituição. A qualificação jurídica dos
impressos é pressuposto da incidência dos princípios
constitucionais antes enumerados. Esta a análise do
Ministério Público:

'Por isso, sem que se caracterize a idoneidade dos


impressos em questão como veículos de propaganda
eleitoral, o alegado abuso de poder de autoridade não
tem relevância eleitoral e o exame de sua eventual
ilicitude, sob o enfoque penal ou não, escapa à
competência dessa Corte. Indispensável, portanto,
que se obtenha uma resposta à indagação formulada
no item anterior.

A Corte de origem, pela maioria dos seus membros,


examinando o calendário documentado à fl. 5, não o
considerou apto a realizar propaganda eleitoral. É o
seguinte o trecho do acórdão recorrido que se ocupa
da questão:

'Por outro lado, sem qualquer procedência a alegação


de promoção de propaganda política – via calendários
– antes da época apropriada.

É importante ressaltar que a propaganda eleitoral,


quando efetivamente dirigida aos eleitores, há de ser
nítida, com objetivo claro, preciso, direto, a fim de
alcançar seu resultado.

No caso em julgamento, houve tão somente uma


mensagem de um homem público, atualmente
exercendo o cargo de Presidente do Congresso

119
Nacional que, nessa condição, procurou desejar
indistintamente o povo brasileiro fé e esperança no
ano de 1994, na expectativa de uma saída para a
grave crise econômica e social que assola o nosso
país.

De nenhuma forma vislumbra-se qualquer aceno de


propaganda eleitoral pelo que consta desse processo.'
(fls. 68/69).

A circunstância do impresso em questão conter um


calendário e uma mensagem do senador Humberto
Lucena, ao meu ver, não é suficiente para
descaracterizá-lo como veículo de propaganda
eleitoral. Ver no referido impresso apenas uma
mensagem ao povo brasileiro, como fez o acórdão
recorrido, é fechar os olhos à realidade. O formato
utilizado não é o usual para a transmissão de
mensagens de final de ano, mas sim aquele próprio
para divulgar candidatos a cargos eletivos visto que
consta, com destaque: a) o nome do cargo eletivo; b)
o nome e a fotografia do candidato; e c) o ano da
eleição.'

Os calendários, com o que nele contém, não revelam,


a meu juízo, publicidade inerente à representação
derivada da eleição, nos moldes do comando
constitucional (art. 37, §1º). Não informam eles sobre
desempenho parlamentar, ou outro inerente ao
mandato; a exortação da mensagem é de natureza
eleitoral.
Assim qualificados os calendários, e o meio pelo qual
distribuídos (franquia postal parlamentar), decorre,
por força lógica, o abuso de autoridade, nos termos
em que vedados na Constituição (art. 37, §1º) e na Lei
de Inelegibilidade (art. 22).
120
Resulta, ainda, dessa qualificação dos calendários,
ofensa à isonomia legal dos candidatos. A utilização
de meios e recursos públicos, para fim diverso do que
posto na Constituição e na lei, quebra
inapelavelmente a base de isonomia de oportunidade
entre os candidatos.

Da desobediência aos critérios constitucionais da


publicidade e da isonomia deflui, por igual, a ofensa
ao §9º, art. 14, da Constituição, vale dizer, resta
prejudicada a normalidade e a legitimidade das
eleições e ferido o interesse público de lisura eleitoral.

Assim examinada a controvérsia, da Constituição à
jurisprudência, e subscrevendo o voto do eminente
Relator, dou provimento ao recurso para declarar a
inelegibilidade do recorrido para as eleições que se
realizarem nos três anos subsequentes à eleição deste
ano, e cassar o seu registro como candidato nas
próximas eleições.

O ministro Diniz de Andrada que havia divergido do relator


na preliminar de intempestividade do recurso, também discordou
em relação ao mérito. Andrada recorreu a dois argumentos
fundamentais: 1. ao tempo da conduta, Lucena não era sequer
candidato; 2. nos regimes democráticos, o único poder a outorgar e
retirar a representação é o popular. Pela relevância histórica,
reproduzo, na íntegra, o seu pronunciamento:

Senhor presidente, a procedência da representação


que está sendo apreciada conduz à inelegibilidade do
candidato e ao cancelamento do seu registro.
A gravidade da sanção está em exigir, por isso mesmo,
por parte do Tribunal, todo esse exame cuidadoso e
121
meticuloso.

No caso, imputa-se ao recorrido, Senador da


República, a distribuição de cerca de 100.000 (cem
mil) calendários, em gráfica oficial, sob sua
dependência; distribuição levada a efeito, em fins do
ano passado, começo deste.

O Tribunal Regional Eleitoral da Paraíba rejeitou a


arguição.

Penso, com a sinceridade com que sempre falo ao


Tribunal, diferentemente dos eminentes Ministros que
se expressaram até o momento.

Tenho para mim que os dispositivos invocados não


têm aplicação ao caso. Bem ressaltou o ilustre
patrono do recorrido da tribuna, que ao tempo da
apontada distribuição, não tinha o recorrido, ainda, a
condição de candidato e na lei existe a referência
expressa a candidato. Os candidatos surgem com a
escolha feita pelas Convenções. A própria Lei n. 8.713,
que aí está a reger as próximas eleições, não
disciplinou nenhum tema antes de ordenar a
realização das convenções entre 2 de abril e 31 de
maio. Depois, sim, vem a fase do registro. Começa,
então, a propaganda. Os candidatos principiam a
atuar e, aos poucos, mais fortemente, tudo sob
intensa fiscalização, para que essa atuação se
processe nos limites permitidos.

Já, Senhor Presidente, o comportamento de um


parlamentar, o procedimento de um membro do
Congresso, de uma das Casas Legislativas, a meu ver,
está sujeito, conforme o caso, à disciplina e ao
julgamento de sua corporação. E se ele pleiteia a
122
reeleição, se ele quer a renovação do mandato, então,
quem decidi ai já é o eleitor que, nos regimes
democráticos, é a única fonte que pode outorgar a
representação popular e tirar.

Acresce que o Tribunal Regional mais próximo dos


acontecimentos não enxergou qualquer exibição de
poder, qualquer efeito dessa propaganda que não
havia.

Por essas considerações, pedindo ao eminente


Ministro Relator e a todos os eminentes Ministros que
o seguirem as maiores venias pela ousadia da
discordância, o meu voto é no sentido de negar
provimento ao recurso.

O último a votar, o ministro Carlos Velloso, sem perder a


cortesia, rebateu o voto divergente. Contra-argumentou Velloso:

O eminente Ministro Diniz de Andrada traz ao debate


um argumento respeitável. Disse S. Exa. que a
distribuição desses calendários, feitos às custas do
Erário, se deu quando o representado não era
candidato. Mas, Senhor Presidente, pelo que pude
perceber, a distribuição se fez quando o representado
já era candidato, no ano eleitoral. Ao que ouvi, a
distribuição se fez anteriormente a janeiro de 1994 e
também de janeiro a julho de 1994, o que ressaltou o
Senhor Ministro Flaquer Scartezzini.

O relator interviu, neste ponto:

V. Exa. me permite, apenas como Relator. Nós não


temos nos autos elementos concretos conducentes à
conclusão de que teria havido a distribuição de

123
calendários após a escolha do Senador como
candidato à reeleição. O que houve, e aí há realmente
dados, foi a confecção em dezembro de 1993 e notícia
do início da distribuição ainda em dezembro. Procurei
ver nos autos, quanto ao próprio calendário, a
existência de algum sinal indicador da data em que
remetidos esses calendários e confesso a V. Exa. que a
respeito não encontrei sequer carimbo, uma notícia.
Somente se tem: 'franqueado, contrato, Senado
Federal...' e não temos outros dados. Segue-se a
etiqueta com o nome do destinatário do calendário.
Por isso é que não afirmei em meu voto que a
distribuição teria ocorrido após a escolha do Senador
como candidato à reeleição. Lamento apenas que o
caso envolva, justamente, o Presidente do Senado
Federal.

Esclarecidos os fatos pelo relator, o ministro Carlos Veloso


presumiu:

Estamos raciocinando com remessas postais. Agora,


não posso admitir que 130.000 calendários, que
foram confeccionados pela Gráfica do Senado, não
tenham sido distribuídos no correr desse tempo, ou
pela remessa mão a mão, ou pela entrega.

A menos que o candidato demonstrasse que pelo


menos 120.000 estariam guardados, que não teriam
sido distribuídos.

Penso que pode-se presumir, com segurança, que
esses calendários continuaram sendo distribuídos.
Não ficaram apenas nesse número reduzidíssimo que
consta da informação da ECT.

124
Concluiu Velloso:

Senhor Presidente, vou ao argumento subjacente no


voto do Senhor Ministro Marco Aurélio.

Penso que, mesmo antes do registro, é possível


caracterizar como propaganda proibida, como abuso
de autoridade, a distribuição desses calendários. Veja
que o TSE já decidiu assim no caso Múcio Athaíde, que
V. Exa. relembrou. Participei do julgamento quando
declaramos a inelegibilidade do então candidato
Múcio Athaíde ao Senado, pelo Distrito Federal.

Assim, Senhor Presidente, com essas brevíssimas


considerações, feitas em atenção ao voto do eminente
Ministro Diniz de Andrada, meu voto é no sentido de
acompanhar o voto do Senhor Ministro Relator.

O presidente do TSE se absteve de proferir voto: “ - A


matéria não envolve questão constitucional”, alegou de forma
peremptória e açodada. A abstinência do ministro Pertence
dificultava a defesa de Humberto, que viram reduzidas as chances
de recorrer ao Supremo Tribunal Federal. O fato obrigava os
advogados a prequestionarem a matéria, no próprio TSE. O
julgamento que, no início da discussão, parecia favorável à Lucena,
havia se transformado num verdadeiro pesadelo!

Servidores do gabinete de Humberto saíram às pressas logo


que o ministro Pertence proclamou solenemente o resultado do
julgamento. Uma das assessoras de Lucena não conseguiu conter-
se: deixou o prédio do TSE aos prantos. Estava inconsolável!

Os extensos debates foram resumidos da seguinte ementa:

125
RECURSO-PRAZO-ACÓRDÃO – ASSINATURA –
MINISTÉRIO PÚBLICO – EFEITO. Na dicção da ilustrada
maioria, em relação a qual guardo reservas, a
assinatura do acórdão pelo órgão do Ministério
Público não implica a respectiva intimação,
começando a correr o prazo recursal somente da
publicação no Diário da Justiça.

ABUSO DE AUTORIDADE – PARLAMENTAR – SERVIÇO


GRÁFICO DO SENADO FEDERAL. Consubstancia
abuso de autoridade a utilização do serviço gráfico
do Senado Federal em confecção de calendários,
contendo a imagem do parlamentar, e que tenha
sido enviados aos cidadãos do Estado no qual possui
o domicílio eleitoral, ocorrendo a remessa em pleno
ano destinado às eleições.

O TSE acabava de cassar o registro de candidatura do


presidente do Senado! Com o fim do mandato, em 1º de fevereiro,
Humberto Lucena perderia a imunidade parlamentar e ainda ficaria
sujeito a um processo criminal, como passou a anunciar os jornais.
Uma semana antes, o senador Odacir Soares, do PFL, candidato ao
governado de Rondônia, havia sido denunciado pelo crime de
peculato no STF por ter usado indevidamente a gráfica do Senado.
Soares havia impresso 100 mil cadernos escolares com as suas fotos,
na campanha para as eleições municipais de 1992.

Nem o mais cético eleitor acreditava que o processo viesse a


ter àquele desfecho! Muito menos Humberto, que desistira de viajar
à Brasília para acompanhar o julgamento, embora advertido por
Mariz, um dia antes, de que deveria estar presente no Tribunal: “ - É
melhor eles julgarem olhando nos seus olhos do que para os
holofotes de TV”. Lucena não deu ouvidos ao seu companheiro de
partido e preferiu fazer campanha eleitoral no interior da Parahyba,
126
precisamente em Taperoá, município localizado na região do Cariri
paraibano, onde participava de um comício. Ao descer do palanque
improvisado em cima de um caminhão, um assessor deu-lhe a
indigesta notícia. Apreensivo, voltou à capital João Pessoa e, no dia
seguinte, embarcou no primeiro avião, rumo à Brasília.

No Senado, Humberto teve uma recepção efusiva! Cerca de


cem funcionários haviam preparado uma grande festa. Queriam
demonstrar força e mobilizar a opinião pública a seu favor.
Aplaudiam e gritavam o nome do senador paraibano. Já em seu
gabinete, cercado por jornalistas, Lucena respondeu com firmeza: “-
Continuo candidato e a Paraíba está em comoção social”, afirmou
em tom melodramático, convencido de que havia sido transformado
em “bode expiatório”. E, após anunciar que iria recorrer da decisão
do TSE, foi categórico: “ - Queremos que o Supremo defina qual é o
campo dos dois Poderes”.

Informalmente, a assessores mais próximos, Lucena


comentou o fato de o recurso ter sido relatado pelo ministro Marco
Aurélio Mello, primo do ex-presidente Fernando Collor de Mello. O
senador paraibano insinuou que estava sendo vítima de uma
perseguição política pelo fato de haver subscrito, no Senado, o
processo de Impeachment, em 1992.43

Coincidências do mundo do Direito?…

Teria realmente Humberto Lucena servido de “boi de


piranha”, como viria a afirmar alguns dos senadores indignados com
a decisão do TSE?

Segundo essa versão, que circulou na época, a cassação do


43
Jornal O GLOBO, edição de 15 de setembro de 1994, p. 3.
127
presidente do Senado seria uma forma de atenuar a frustração
popular com a previsível absolvição do ex-presidente Collor, pelo
Supremo Tribunal Federal, uma semana depois.

Depois da espantosa decisão do TSE, o procurador-geral


eleitoral, Aristides Junqueira, recomendou aos procuradores
regionais eleitorais de quatro Estados da federação que ajuizassem
ações, visando cassar o registro de outros seis políticos que
disputavam as eleições que, assim como Lucena, fizeram uso
indevido da gráfica do Senado.44 Na prática, dificilmente esses
processos chegariam ao seu termo antes da eleição. Indagado pelos
meios de comunicação sobre o curto prazo para a tramitação de
novas Representações, Junqueira reconheceu:

É delicado condenar depois de eleito. Depois, já houve


a manifestação democrática popular e eu tenho que
demonstrar cabalmente que esta vontade foi pelo
potencialmente viciada pelo abuso de poder
econômico ou desvio de função. A responsabilidade é
maior.45

Humberto Lucena seria o único parlamentar a ser cassado,


antes do pleito!

Teria a Justiça Eleitoral imposto ao senador paraibano, uma


sanção desproporcional?

* * *

44
Jornal O GLOBO, edição de 16.09.1994, p. 3.
45
Idem.
128
Foto: Solidariedade a Humberto nas ruas da capital. Fonte: Jornal CORREIO
DA PARAÍBA, edição de 1994.

129
“CASSARAM UM PARAÍBA”
Saímos da ditadura militar e
caímos na ditadura do Judiciário.
(senador Antônio Mariz)

Antônio Marques da Silva Mariz era avesso à demagogia, ao


fisiologismo e ao nepotismo, o que fazia dele um político diferente,
comparado com a grande maioria dos líderes de sua época. Nascido
na capital do Estado da Parahyba, Mariz formou-se em Direito pela
Universidade Nacional do Rio de Janeiro e fez um Curso de Ciências
Políticas na Universidade de Nancy, na França.

Aprovado em concurso público, assumiu a promotoria de


justiça em Anthenor Navarro, município próximo à cidade de Souza,
reduto político da família e onde começou sua carreira política,
quando foi eleito prefeito, na década de 60. Com o tempo, alçou a
Câmara Federal, onde exerceu vários mandatos. Em 1990,
conquistou o cargo para a mais alta Casa Legislativa do país, o
Senado.

Durante o processo de impeachment do ex-presidente


Fernando Collor de Mello, no Senado, Antônio Mariz ganhou fama
nacional ao elaborar o parecer na Comissão Especial, quando
opinou pela admissibilidade da denúncia do presidente da República
por crime de responsabilidade.

Mariz era um homem cordial e sereno, mas ficou revoltado


com o Poder Judiciário. De todas as personalidades políticas do
Congresso Nacional foi ele o que se mostrou mais contrariado com a
decisão do TSE, à qual considerava absurda. Disse: “ - Estão
cassando Lucena porque ele é um pau-de-arara, um nordestino que

130
preside um Poder”.

“ - Por que não cassam todos os senadores? Todos fizeram


calendário”. “Demos poder demais a um Poder que não sabe exercê-
lo”, voltou a afirmar, em tom de revolta!

Em raro momento de sua trajetória política, Antônio Mariz


subiu o tom, e saiu do seu natural equilíbrio. Excedeu-se no uso da
imunidade parlamentar e atacou o TSE: “ - Foi uma decisão injusta
de um tribunal pusilânime”, disse asperamente. Para o senador
paraibano, o Tribunal Superior Eleitoral havia cedido às pressões da
mídia: “ – O TSE é um poder elitista, um instrumento a serviço de
interesses escusos e defensor das elites do Sul do país”, voltou a
atacar Mariz.

Fundado em julho de 1932, o Tribunal Superior Eleitoral


nunca fora alvo de críticas tão severas. Nem mesmo quando decidiu
cancelar o registro do Partido Comunista do Brasil, na histórica
sessão de 07 de maio de 1947. Mas, uma coisa é decretar o fim de
um partido político, ficção jurídica criada por Lei; outra é cassar o
registro de um senador que preside a mais importante Casa
Legislativa do país!

O antológico discurso proferido por Mariz representa uma


das mais eloquentes peças da oratória parlamentar brasileira.
Diante de um Senado perplexo, o representante paraibano leu o
manifesto, que havia distribuído em sua terra natal:

AGREDIDA E INSULTADA FOI A PARAÍBA

O Sr. Antonio Mariz – Sr. Presidente, sras. e srs.


senadores, não concederei apartes, nos termos
regimentais.
131
Não quero solidariedade; assumo solitariamente a
responsabilidade pelas palavras que vou aqui
pronunciar.

Começo lendo um manifesto que distribuí na Paraíba


sobre o julgamento do senador Humberto Lucena:

'A Paraíba acaba de sofrer a mais dura e cruel das


injustiças. Não é Humberto Lucena a vítima. A vítima
é a Paraíba. A decisão do TSE é o retrato moral das
elites brasileiras. No Brasil, os homens de bem devem
ser cassados e presos. Esse Tribunal é o mesmo que
garantiu aos corruptos o direito de candidatar-se. É o
mesmo que reformou as decisões dos Tribunais
Regionais dos estados. Estes negaram aos que
tiveram suas contas de governador rejeitadas pelos
tribunais de contas e pelas assembleias, que foram
condenados por corrupção e roubo dos cofres
públicos; a estes os tribunais dos estados negaram o
direito de ser candidatos.

Mas o TSE, o Tribunal Federal, mudou essas


sentenças. Disse que sim, que os ladrões carimbados
pelos tribunais estaduais podem ser candidatos.

E o são. Wilson Braga foi governador da Paraíba por


três anos.

As contas dele de dois anos em três foram recusadas


pelo Tribunal de Contas e pela Assembleia Legislativa.
Por corrupção, roubo de dinheiro do povo. Os
paraibanos também julgaram Wilson Braga duas
vezes: em 1986, quando se candidatou a senador e
em 1990, quando se candidatou novamente a
governador. O povo paraibano também condenou
Wilson Braga. Derrotou-o nas urnas por maioria
132
desmoralizante.

Mas Braga é de novo candidato. O TSE garantiu-lhe o


direito de ser candidato. Wilson é também marido de
Lúcia Braga.46

Lúcia em toda a sua vida só exerceu uma única função


de governo: mulher de governador e da famigerada
Funsat, a fundação de assistência social e fisiologismo
então existente. Pois bem, as contas de Lúcia também
foram rejeitadas pelo Tribunal de Contas do estado.
Mas Lúcia é candidata ao governo do estado. O TSE
garantiu também a ela esse direito. O TSE garante a
corruptos carimbados o direito de ser candidatos.

Já Humberto Lucena não pode ser candidato por que


fez calendários e mandou a seus eleitores na Paraíba.
Isso agora é crime.

Durante 10, 20, 30 anos, sempre, deputados e


senadores de todo o Brasil fizeram calendários pagos
pelo Congresso e mandaram a seus eleitores.

Nunca, em qualquer tempo, nenhum promotor


público, nenhum procurador da República, nenhum
procurador da Justiça Eleitoral, membro do Ministério
Público, estadual ou federal, nenhum juiz, nenhum
tribunal, nenhum deles achou isso errado ou ilegal.
Todos os senadores e deputados, nos últimos cem
anos, fizeram calendários e mandaram a seus
eleitores. Quem não fez calendários, fez cartões de
Natal e mandou a seus eleitores.
46
Principal concorrente de Mariz ao governo do Estado, Lúcia Braga daria a resposta no guia
eleitoral e no jornal O NORTE.

133
Cartões de Natal e calendários são exatamente a
mesma coisa: uma saudação de final de ano,
desejando felicidade e prosperidade no Natal e no
Ano Novo. Esse Tribunal que nega a Humberto o
direito de ser candidato é o mesmo que até hoje não
julgou Collor, o mesmo que até hoje não julgou PC
Farias.

Faz dois anos que o povo brasileiro expulsou Collor da


Presidência da República. Fui o relator do processo de
impeachment do presidente no Senado Federal. Meu
parecer condenou Collor. No processo de
impeachment, o relator é o juiz que instrui a prova e
formula a sentença que será votada por todos os
senadores. Tenho o orgulho de dizer que ninguém,
nesse tempo, ninguém, da oposição, nem do governo,
ninguém teve a ousadia de ir ao meu gabinete para
pedir que eu votasse a favor ou contra o presidente.
Não sofri pressão de nenhuma natureza. Porque todos
sabiam, pela história dos meus atos e posições no
Congresso Nacional, que a minha decisão seria
baseada nas provas contidas nos autos do processo.

Se Collor fosse inocente, juro que teria declarado a


sua inocência, ainda que o Brasil desabasse sobre
mim. Mas ele era culpado e declarei sua culpa. Meu
parecer foi aprovado, e decretado o impeachment. O
governo, em nome do povo brasileiro, cumpriu o seu
dever. Pois bem, até hoje, dois anos passados, Collor
não foi ainda julgado pela Justiça brasileira, nos
crimes comuns da competência do Poder Judiciário.
Continua solto, e à medida que passa o tempo será
amanhã absolvido sob o argumento capcioso de
técnicas jurídicas. Quem viver, verá.

Já Humberto, que fez calendários em novembro do


134
ano passado, quando não era candidato a nada, nem
havia campanha eleitoral deflagrada, Humberto não
pode ser candidato. Todos os demais senadores e
deputados que fizeram, sem exceção, calendários e
cartões de Natal podem ser e são candidatos. O TSE
dá a eles esse direito. Somente Humberto Lucena foi
condenado. A Paraíba deve perguntar por que só
Humberto é culpado? A resposta é clara.

Porque Humberto, um paraibano, um nordestino, teve


a ousadia de presidir um dos Poderes da República.
Duas vezes em oito anos presidente do Senado e do
Congresso Nacional. Isso as elites brasileiras,
concentradas no Sul do Brasil, não admitem. Os
jornais do Sul, as grandes revistas, todos os canais de
televisão sediados no Rio e São Paulo juntaram-se,
acumpliciaram-se, formaram a quadrilha dos
interesses nacionais e internacionais para exigir do
TSE a cassação do registro de Humberto, do
paraibano, do nordestino, do pau-de-arara, do
paraíba, como eles nos chamam com desprezo – que
teve a ousadia e grandeza de presidir um dos Poderes
da República.

O TSE, retrato e imagem das elites brasileiras,


pusilânime e torpe, rendeu-se ao fascínio dos
holofotes da televisão, armados em plena sessão do
Tribunal, como se aquilo fosse um circo, e não a mais
alta corte de justiça do país. O TSE rendeu-se à
pressão dos interesses escusos dos separatistas que
pregam a divisão, a fragmentação do Brasil, para
expulsar-nos como párias da nacionalidade,
nacionalidade que é mais nossa do que deles. O TSE
rendeu-se à cruel barbaridade desses interesses.

Cassou o registro de Humberto Lucena. Um único juiz,


135
o ministro Diniz de Andrada, teve a altivez, a
hombridade, a coragem moral de, contra tudo e
contra todos, sustentar a lei e proclamar a inocência
de Humberto. Esse homem honra a Justiça brasileira e
resgata a credibilidade do Poder Judiciário em nosso
país.

Se a Paraíba fosse incapaz de reagir à violência que se


comete contra o mais ilustre dos seus filhos, se
faltasse à Paraíba a capacidade de indignar-se, de
revoltar - se diante de tão torpe injustiça, então serei
o primeiro a não querer ser o seu governador do
estado. Preparei-me a vida toda para governar a
minha terra. Dediquei-me de corpo e alma a esse
objetivo.

Talvez, contudo, o que me distinga, o que me


diferencie da maioria dos políticos seja o fato,
marcante de toda a minha atividade política, de que
não adulo os poderosos, não cortejo nem sequer a
opinião pública, tantas vezes enganada pelos
interesses escusos da imprensa nacional.

Ajo em nome de princípios e valores, que julgo


expressarem as mais profundas aspirações e padrões
de conduta de nosso povo. Não pago qualquer preço
para chegar ao poder. Quero governar a Paraíba. Mas
quero governá-la em nome das forças progressistas,
dos ideais da nossa juventude, em nome dos homens
e mulheres de bem que lutam, como eu luto, para
mudar o mundo, o mundo de injustiças em que
vivemos.

Desejamos que não haja fome entre nossos irmãos;


batemo-nos pela solidariedade e fraternidade sociais;

136
fazemos a razão de ser de nossa própria existência a
busca de uma democracia justa e humana, que tenha
por fundamento a justiça, a comunhão na
prosperidade e na riqueza, a dignidade de todos os
homens e de todas as mulheres, a liberdade como
expressão do exercício dos direitos de cidadania.

Convoco a Paraíba a manifestar-se publicamente


contra essa decisão imoral do TSE. Não foi Humberto
Lucena a vítima dessa violência.

Agredida e a insultada foi a Paraíba. As elites


brasileiras querem fazer do Nordeste a senzala de
escravos para a mão-de-obra de suas indústrias.

Querem que o Nordeste seja a África antiga, de onde


se pilharam os escravos. O crime de Humberto Lucena
é ser paraibano, é ser nordestino, é ter ousado presidir
o Senado da República. Uma justiça que só mete na
cadeia os negros, os pobres, os nordestinos, não
merece o respeito das pessoas decentes.
Recorreremos ao Supremo Tribunal Federal.

Vamos mobilizar-nos para pressionar o Supremo.


Vamos neutralizar as pressões do Sul. Vamos para as
ruas, em todas as cidades, vamos rebelar-nos, vamos
protestar. Acredito na Paraíba, acredito nos
paraibanos. A Paraíba tem dignidade.'

Esse é o manifesto.

Concluo meu pronunciamento, Sr. Presidente, dizendo


que acredito também na dignidade do Senado, que
assumirá, sem dúvida, a defesa do seu presidente. O
que está em jogo é a autonomia e a harmonia entre
os Poderes.
137
Lamento e estranho o fato de o ministro Sepúlveda
Pertence não se espelhasse na dignidade de Sydney
Sanches, que agiu com energia, agiu com retidão ao
assumir todas as posições que a Presidência da
Comissão do impeachment lhe impunha. Admira-me
que não se tenha espelhado na honradez do ministro
Luiz Octavio Gallotti, que, mesmo sabendo que o seu
voto em relação ao mandado de segurança contra a
decisão do Senado já nada decidia, votou contra essa
sentença, votou contra a opinião de todos os
brasileiros para defender o que lhe parecia ser um
princípio de Direito, uma questão de consciência.
Esses homens honram a Justiça do Brasil.

Lamento que o ministro Sepúlveda Pertence tenha


declarado que não votou porque não havia matéria
constitucional a ser julgada. O seu notório saber
jurídico, a reputação ilibada que a Constituição lhe
exige, não permitem a omissão, a deserção, a
covardia dos que não sabem, não querem e não
podem – quem sabe – assumir a responsabilidade das
suas próprias posições.

Estou certo de que o Supremo Tribunal Federal


assumirá a responsabilidade de fazer justiça e repor
em vigor as leis deste país.

A questão constitucional é evidente. A Constituição diz


que todos são iguais perante a lei. Por que só
Humberto Lucena é cassado? A Constituição diz que
os Poderes são autônomos. O Tribunal Superior
Eleitoral interfere na autonomia do Poder Legislativo.
O Tribunal Superior Eleitoral pode bem declarar a
cassação de registros, mas não tem competência para
decidir sobre inelegibilidades. Essa competência é do
138
Supremo Tribunal Federal e, mais, do próprio Senado:
só o Senado pode julgar senadores.

A justiça, estou certo, se fará. O Supremo assumirá o


papel de dignidade e respeito que a nação lhe
reconhece e corrigirá essa violência, essa brutalidade,
essa imoral decisão.

São essas, Sr. Presidente, as minhas palavras.

Creio na Paraíba, creio no Brasil e no seu povo. Por


isso, também creio na lei e na Constituição de nosso
país.47

Uma semana depois, ainda sem conseguir esconder sua


revolta com a “indigna” decisão do TSE, Antônio Mariz fez uma
análise da cassação de Lucena e absolvição do ex-presidente Collor:

O GLOBO – Como o senhor analisa a cassação da


candidatura do senador Humberto Lucena?

ANTÔNIO MARIZ - A decisão é uma vergonha, mas


nem para o Lucena nem para a Paraíba. É uma
vergonha para um Tribunal pusilânime que se vende
às pressões da imprensa e aos holofotes das
televisões. Estão cassando Lucena porque ele é um
pau-de-arara, um nordestino que preside um Poder.
Por que não cassam todos os senadores? Todos
fizeram cartão de natal e calendário. O Tribunal de
Contas da União aprovou as contas do Congresso.

O GLOBO – O Senhor não considera crime imprimir


material pessoal na gráfica do Senado?

47
Diário do Congresso Nacional, edição de 15.09.1994.
139
ANTÔNIO MARIZ - Todos sempre fizeram calendário e
cartão de Natal. Nunca foi errado. Por que só o
Lucena? Ou o Tribunal cassa todos ou então confessa
que errou. Cadê a dignidade do Sepúlveda e do
Galloti, que votou a favor do Collor?

O GLOBO – O senhor também imprimiu calendários e


cartões?

MARIZ – Todos fizeram, inclusive eu e o Fernando


Henrique, todo mundo. Por que é crime só do Lucena?
Tem que cassar todos ou então confessar que são
injustos. O Lucena está sendo cassado porque é
nordestino, um 'paraiba' como vocês do Sul costumam
se referir ao povo do Nordeste. Ao invés de ter sido
presidente da Casa, ele deveria ter ido quebrar tijolo
lá no Rio de Janeiro ou em Brasília para construir as
mansões desses juízes pusilânimes.

O GLOBO – O senhor teme que o caso prejudique a


sua candidatura ao Governo do estado?

MARIZ – Não me preocupo com isso. Eu me preocupo


´´e com a injustiça, com a falta de seriedade do
Tribunal. O estado da Paraíba está indignado com o
resultado. Vamos recorrer ao Supremo Tribunal
Federal e esperamos que o Supremo revogue essa
indignidade.

O GLOBO – Mas há opiniões de juristas de que não se


trata de matéria constitucional.

MARIZ – Como não é matéria constitucional? A


Constituição diz que todos são iguais perante a lei.
Além disso, o TSE se intrometeu numa questão interna

140
do Legislativo. Quem julga senador é o Senado.

O GLOBO – O senhor já conversou com o presidente


do PSDB, Pimenta da Veiga. A intenção é mesmo
declarar seu voto a Fernando Henrique?

MARIZ – Para mim, isso perdeu o significado com esse


julgamento injusto.48

Mariz via a decisão judicial como uma violência praticada


contra o Poder Legislativo, um verdadeiro excesso da função
judicante e uma inexplicável afronta ao princípio da harmonia e
separação entre os Poderes da República. Com muitas dificuldades
para absorver a decisão do TSE, Antônio Mariz fugiu do seu estilo e
até fez bravata ao anunciar uma possível renúncia à candidatura ao
Governo do Estado.

Serenados os ânimos, a hipótese de renúncia foi descartada


pelo próprio senador, que também respondia a uma Representação
semelhante no TRE da Parahyba (Representação n. 454/94, Classe
VII), movida pelo candidato a governador pelo Partido da
Mobilização Nacional/PMN, o advogado Djacy Lima de Oliveira. A
causa de pedir da representação era a mesma que motivaria a
cassação de Humberto, pelo TSE: o uso da franquia posta do Senado
para enviar 85.000 calendários do ano de 1994 que, também,
haviam sido impressos na gráfica do Senado e nos quais constava
uma foto rara: um sorridente Mariz. A confecção do material datava
de 16 de novembro de 1993.

O advogado Djaci Lima empolgou-se com o parecer


favorável do vice-procurador- geral eleitoral no “caso Lucena”, uma

48
Jornal O GLOBO, edição de 15 de setembro de 1994, p. 3.
141
vez que a ação contra Mariz havia sido ajuizada no dia 06 de
setembro de 1994, no mesmo dia em que o jornal FOLHA DE SÃO
PAULO noticiava o parecer do vice-procurador eleitoral, Dr. Antônio
Fernando de Barros, favorável à cassação do registro de candidatura
de Humberto.

Na petição, Djaci alegou que Mariz, assim como Humberto,


utilizaram-se de um “repulsivo expediente: o uso da gráfica do
Senado e da franquia postal para publicidade em benefício próprio,
numa agressão ao erário e ao povo que o elegeu.”

Mariz foi defendido por Elson Pessoa de Carvalho e


Roosevelt Vita, que também questionaram a competência do
Tribunal Eleitoral da Parahyba para apurar a conduta de Mariz sem a
prévia licença do Senado. Os advogados pediram aos juízes do TRE
que se declarassem incompetentes para processar o senador e que
remetessem a representação ao Supremo Tribunal Federal.

No curso da representação, o representante, Djacy Lima de


Oliveira, constituiu como procurador o advogado Waldir dos Santos
Lima. Nos jornais, Antônio Mariz se defendia acusando: dizia que
Djaci havia lhe pedido que bancasse o seu guia eleitoral, mas, como
houve recusa da parte dele, Mariz, o candidato a governador pelo
PMN resolveu procurar outro concorrente para pagar o guia em
troca daquele tipo de acusação: “ - Este rapaz não tem autoridade
para acusar, porque ele é um candidato laranja e deve estar a
serviço de alguém”, disse Mariz, em tom de indignação.

Os advogados do senador Mariz alegaram também que a


impressão dos calendários foi requerida em maio de 1993 e
renovada em setembro do mesmo ano e não poderia ser dirigir ao
pleito de 1994 considerando que o senador Antônio Mariz tinha

142
mandato até 1998 e não cogitava postular outro cargo eletivo.

A defesa de Mariz alega ainda que o uso da gráfica do


Senado era uma das prerrogativas dos parlamentares conferidas por
atos internos da Casa e, por se tratar de matéria interna corporis,
estava sob a proteção do princípio da independência dos poderes.
Como o TRE havia julgado a representação contra Lucena
improcedente, esperava-se que a ação movida contra Mariz tivesse
o mesmo destino. Perante os juízes do TRE, seu advogado, Rossevelt
Vita, terminou a sustentação oral fazendo um comentário: “Vamos
evitar o sepultamento dos votos que o escolheu como governador
da Paraíba e que ele saia daqui ilibado como sempre foi em toda a
sua vida”.49

O procurador regional eleitoral, Antônio Carlos Pessoa Lins,


foi coerente na elaboração do parecer: opinou pela cassação do
registro de candidatura de Mariz ao Governo do Estado e pediu que
os juízes da Corte Regional decretassem a sua inelegibilidade. Era
uma prova de que agia imparcialmente e em cumprimento à
legislação eleitoral. Não podia ser diferente, considerando o
histórico da atuação de Pessoa Lins, no TRE!

O processo contra Mariz foi julgado em 09 de dezembro de


1994 e o Tribunal Regional Eleitoral chegou à mesma conclusão do
“caso Humberto Lucena”: a improcedência do pedido, em face de
não haver identificado nos referidos calendários, a propaganda
eleitoral antecipada. Repetindo o precedente “Lucena”, ficaram
vencidos o corregedor, juiz Leôncio Teixeira Câmara, e o juiz federal
João Bosco Medeiros de Souza. Nas razões do seu voto vencido, o
juiz-corregedor registrou:

49
Jornal O NORTE, edição de 10.11.1994, p. 5.
143
O homem público, o político, vive de seus feitos, da
sua boa fama, da sua atuação. Estar o ano todo,
silenciosamente, em 85 (oitenta e cinco) mil lares ou
ambientes, como neste caso, é antecipar seu nome,
sua atuação aos demais concorrentes, ferindo a
normalidade e legitimidade das eleições, bem
juridicamente tutelado na C.F., art. 14, §9º...

O procurador regional eleitoral substituto, Francisco Chaves


dos Anjos Neto, recorreu da decisão.

No TSE, o recurso foi distribuído ao ministro Diniz de


Andrada em fevereiro de 1995, mas dormitou três anos. Só em
agosto de 1998, após a morte de Antônio Mariz, o Tribunal julgou
extinto o processo, com base na “Lei Humberto Lucena” e em “face
da morte do investigado”.

144
Foto: Os calendários de Mariz. Fonte: Autos da Ação de Investigação
Judicial Eleitoral nº 454/94, Classe VII.

145
Foto: Valor pago por Antônio Mariz para gozar dos benefícios da Lei de
anistia.

146
Os juízes do TRE, assim como fizeram no “caso Lucena”, também julgaram
improcedente a ação contra Antônio Mariz, também pelo uso da gráfica do
Senado. Foto: Da esquerda para a direita: des. Josias Pereira do
Nascimento; procurador Antônio Carlos Pessoa Lins; des. Rivando Bezerra
(presidente); Anésio da Cunha Moreno (funcionário da secretaria, de pé);
Corregedor ; juiz federal João Bosco Medeiros de Souza e o jurista Marcelo
Figueiredo Filho. Fonte: Jornal O NORTE, edição de 1994.

147
De volta ao processo de Humberto, o ministro Sepúlveda
Pertence, ainda no calor dos fatos, acusou o discurso de Mariz. Em
defesa do STF, fez publicar nota oficial na qual rebatia com
veemência as críticas assacadas na tribuna do Senado pelo
representante da Parahyba. Eis o teor do repto:

As razões do TSE para cassar a candidatura do senhor


Humberto Lucena são as expressas nos cinco votos
que formaram a maioria. Só essa e nenhuma outra.
Se há casos semelhantes ao do senador e deles não se
ocupou o tribunal, terá sido apenas porque a respeito
não foi provocado, e não porque sejam naturais desta
ou daquela região.
As ofensas foram proferidas da tribuna do Senado e
por isso estão cobertas pela imunidade parlamentar
do ofensor.

O jornal O ESTADO DE SÃO PAULO criticou o discurso de


Mariz:

Corporativismo ignóbil

A furibunda reação do outrora plácido senador


Antônio Mariz à cassação do registro da candidatura
à reeleição do senador Humberto Lucena – não fora a
sua natureza chã e houvesse ela permanecido como
fato isolado – poderia ser explicada como o rompante
de um correligionário cuja candidatura ao governo da
Paraíba acabava de sofrer o importante golpe. O
senador Mariz, no entanto, foi acompanhado de perto
pelo senador Júlio Campos, cuja importância está em
ser o presidente em exercício do Senado. O senador
paraibano ao menos não colocou o Senado à frente
das ofensas e dos absurdos que assacou contra o TSE
e seus ministros. Já o senador pelo Mato Grosso falou
148
em nome da Câmara Alta, anunciou providências
legais em nome do Senado e por intermédio de um
corpo técnico pago pela instituição. Em resumo, o
senador Júlio Campos, em sua interinidade, deliberou
abrir um conflito entre poderes, baseado na
insustentável alegação de que o crime eleitoral de que
o senador Humberto Lucena foi acusado, e pelo qual
foi condenado, é circunstância da economia interna
do Senado.

A prevalecer as teses destes dois senadores, a Justiça


Eleitoral perderia sentido, a não ser para punir
pichadores de postes. Além disso, o mandato
legislativo passaria a ser abrigo para todo e qualquer
delito que hoje inabilita para a vida parlamentar. Ora,
não é isso o que a lei diz e não é essa a disposição
repetidamente demonstrada pela opinião pública. Os
regimes de privilégio e impunidade encontram cada
vez menos tolerância por parte dos cidadãos que
desejam ver o funcionamento das instituições sadias.
Os políticos e servidores que se servem das
instituições são um imoral anacronismo que se choca
com as aspirações atuais dos brasileiros.

Quando o senador Antônio Mariz reclama por


somente o senador Humberto Lucena haver sido
punido pelo uso eleitoral indevido dos serviços
gráficos do Senado, está carregado de razão embora
não tenha sido este o sentido de sua observação nem
estivesse ele com o senso moral sintonizado
corretamente. Todos os que assim procederam
deveriam ser objeto de investigação e indiciamento
por crime eleitoral, numa primeira etapa, e de ações
de ressarcimento pelos danos causados ao patrimônio
público, logo em seguida. O sr. Mariz, no
embotamento de sentidos que lhe provocou a cólera,
149
forneceu ao Ministério Público a notícia-crime que
porventura faltasse, revelando quem faz o que em
proveito próprio na gráfica do Senado. E o senador
Júlio Campos, que como primeiro-secretário da Mesa
do Senado é o responsável por aquele setor, vestiu a
carapuça. E fê-lo com o estardalhaço que tanto
caracteriza a ação dos que se creêm cobertos de razão
como pode ser a tática de quem não tem outro
argumento.

Extrai-se do comportamento dos dois senadores e dos


colegas que com eles se solidarizam a absurda noção
de que são do Senado, os haveres do Senado são
como e poderes ser dispostos à vontade, e o que lá
acontece não é da conta de ninguém, exceto dos
próprios senadores. É uma estranha maneira de
conceber a separação dos Poderes coerente, no
entanto, com a corrente que defende a tese de que o
Judiciário não pode julgar a constitucionalidade de
leis votadas pelo Congresso. Emana desta posição
forte odor de autoritarismo, irresponsabilidade e
lassidão moral, nem um pouco condizente com o que
o Brasil pós-Collor de Mello e pós-escândalo do
Orçamento espera de seus representantes
parlamentares.

Os ministros do Tribunal Superior Eleitoral cumpriram


seu dever, aplicando ao senador Humberto Lucena
pena proporcional ao delito comprovado. Repeliu,
com excessiva moderação, os insultos assacados pelo
senador Antônio Mariz, que disse ser o Tribunal
pusilânime e venal. Ver-se-ão, em breve, diante de um
recurso do presidente do Senado, que tenta salvar sua
reeleição, e de representações dos procuradores
eleitorais, alertados pela incontinência do sr. Mariz.
Que em todos os casos procedam como manda a lei,
150
na certeza de que há estreita coincidência entre o que
ela manda e os brasileiros desejam.50

Em sua coluna de economia, o JORNAL DO BRASIL fez


galhofa do protesto feito por Antônio Mariz, no Senado:

Mercado Financeiro
Rosa Cassa
Denúncia de Mariz baixa Bolsa. Dólar cai 0,23%

As Bolsas de Valores operavam em alta durante o dia


quando uma agência paulista, por volta das 16h,
noticiou o protesto do senador Antônio Mariz (PMDB-
PB), candidato ao governo do Estado, contra a
impugnação do TSE à reeleição do senador Humberto
Lucena (PMDB-PB), por ter usado a gráfica do Senado
para imprimir propaganda eleitoral.

Da tribuna do Senado e em discurso veemente, Mariz


denunciou que essa prática era comum no Congresso
e que Fernando Henrique Cardoso e Mário Covas,
candidatos do PSDB à Presidência da República e ao
governo de São Paulo, tinham feito a mesma coisa
sem sofrerem punição. E que ele renunciaria à
candidatura do executivo paraibano caso Lucena
continuasse punido.

Logo depois, o IBV caiu e fechou estável, negociando


R$ 43,1 milhões (US$ 50,302 milhões); o Ibovespa
desvalorizou 0,62% no dia e movimento R$ 493,8
milhões (US$ 576,225 milhões). Isso porque,
paralelamente à denúncia de Mariz, correu a notícia
no mercado de que o Banespa teria sofrido
intervenção do Banco Central. E que o Bradesco, entre
50
Jornal O ESTADÃO DE SÃO PAULO, edição de 16.09.1994, p. 3.
151
outros bancos, não girava mais posição para o banco
paulista.(…)51

Em outro momento, o JORNAL DO BRASIL considerou o


discurso de Mariz “insolente, vulgar e de baixo nível”. E saiu em
defesa do Poder Judiciário e do presidente do TSE:

A Voz dos Carcomidos

Num assomo de ousadia e insolência, um senador da


República quebrou o clima sepulcral de um
Parlamento entregue às moscas para insultar o
Tribunal Superior Eleitoral e agredir o ministro
Sepúlveda Pertence, homem de reputação ilibada.
Segundo Antônio Mariz (PMDB), candidato a
governador da Paraíba, o TSE foi 'pusilânime e torpe'
ao cancelar o registro eleitoral e impedir a
candidatura à reeleição do senador Humberto Lucena,
por haver impresso, na gráfica do Senado, 130 mil
calendários com sua sorridente imagem.

Não chega a surpreender que um político cuja carreira


se fez à sombra de Humberto Lucena tome suas dores
e tente desagravá-lo – não fosse o tom vulgar e
ofensivo e o baixo nível da argumentação da defesa.
Compreende-se a aflição do senador Mariz ao ver
desmoronar sua igrejinha eleitoral na Paraíba. Isto,
porém, não o autoriza a dizer que o TSE, por ter-se
limitado a cumprir a lei, é o 'retrato e imagem das
elites brasileiras'.

Antes fosse, pois, nesse caso, nossas elites seriam


austeras, corretas e respeitadoras da lei. Infelizmente,
a 'imagem das nossas elites', a que se refere com
51
JORNAL DO BRASIL, edição de 15.09.1994, p. 6.
152
desdém o representante da Paraíba, parece estar
mais bem tipificada no estilo dos senadores Humberto
Lucena e Antônio Mariz: corporativo, patrimonialista,
nepotista e clientelista.

Não será 'torpe' manipular eleitores desarmados e


despreparados capazes de vender votos em troca de
cadernos escolares? Não será 'pusilânime' equiparar a
impressão de opiniões consagrados pelo hábito.

Diz o senador Mariz: 'Durante 10, 20, 30 anos,


sempre, todos os deputados e senadores de todo o
Brasil fizeram calendários pagos pelo Congresso e
mandaram aos seus eleitores. É mentira que todos os
parlamentares imprimem calendários com suas
respectivas efígies. É inexato que os cadernos sejam
'pagos pelo Congresso': eles são pagos pelo
contribuinte.

Paga quem produz – e o Congresso não produz nada


que não seja custeado por seus representados. O
Congresso não paga nada, somos nós que pagamos. E
mesmo se fosse verdade que todos os parlamentares
imprimem propaganda, saiba o senador Mariz que
chegou a hora de acabar com esses privilégios e
benesses tão a gosto dos politiqueiros dos grotões.

Não é verdade, como insinua o trêfego representante


da Paraíba, que haja discriminação contra nordestinos
na hora de se exigir o cumprimento da lei. Afinal, na
CPI dos 'anões' do Orçamento, safou-se o
pernambucano Ricardo Fiuza, não o gaúcho Ibsen
Pinheiro. O bravo povo paraibano não se deixará
enganar por essa solerte e hipócrita tentativa de
confundir seus legítimos interesses com as jogadas de
uma casta de manipuladores da vontade popular.
153
Não, o senador Mariz não está preocupado com o
cumprimento da lei, com o atraso na votação do
Orçamento, as reformas do Estado, a reformulação do
pacto federativo, a estabilidade e a governabilidade.
O senador Mariz está apenas obcecado com as
eleições, com as prerrogativas corporativas, com o
direito de usar gráfica pública que consome US$ 90
milhões, 70% dos quais destinados ao pagamento de
pessoal.

Esta a imagem do Senado hoje: uma Casa desertada,


uma gráfica, produzindo propaganda a todo vapor e
um senador da República esbravejando no plenário
vazio em defesa do privilégio e da impunidade.
Veremos o que dirão as urnas no próximo dia 3 de
outubro.52

O senador e candidato à presidência da República,


Fernando Henrique Cardoso, também criticou a decisão do TSE: “-
Ele, (Humberto), não pode ser colocado no pelourinho por causa
desse procedimento que até hoje foi feito com tranquilidade”,
protestou FHC, referindo-se aos calendários impressos na Gráfica do
Senado. Assim como outras personalidades políticas, Fernando
Henrique julgava que a penalidade aplicada à Lucena era
desproporcional ao tamanho do “pecado”: “ - Se o prejuízo é
financeiro, o mais adequado seria o ressarcimento. Acho que há um
exagero”, defendeu Cardoso.53

A mídia não dava descanso a Humberto Lucena. Enquanto o


ESTADO DE SÃO PAULO se jactava de ter sido o primeiro “a revelar o

52
JORNAL DO BRASIL, edição de 16.09.1994, p. 10.
53
JORNAL DA PARAÍBA, edição de setembro de 1994.
154
caso dos calendários”,54 o JORNAL DO BRASIL fazia o relato do
processo contra Humberto, na Justiça Eleitoral:

Laços de Família

Um país que deseja modernizar seus costumes


políticos e conferir um mínimo de austeridade à
função pública não pode mais condescender com o
estilo do senador Humberto Lucena (PMDB/PB). Um
país que pretende acabar com vez dos grotões, de
confundir o patrimônio público com o privado e
auferir benesses, não pode mais tolerar as
reincidências do presidente do Congresso.

O senador Humberto Lucena está sendo processado


no TSE pela Procuradoria Regional Eleitoral da
Paraíba, sob a acusação de haver cometido este
delito: mandou imprimir 130 mil calendários,
despachando-os em seguida para seus eleitores pela
franquia postal do Senado.
Ao determinar a impressão e distribuição de
propaganda à custa do erário, agiu com inequívoco
abuso de poder de autoridade em benefício próprio. O
caso é cristalino: a proibição do uso da gráfica em ano
eleitoral por parlamentares foi objeto de resolução do
TSE, além de estar prevista na Lei 8.713.

Usar recursos públicos para se eleger configura crime


eleitoral. A Procuradoria pede ao TSE a cassação de
sua candidatura e a decretação de sua inelegibilidade
por três anos. Sua condenação sinalizaria o fim desta
república de fantasia, em que todos são iguais
perante a lei, só que alguns são mais iguais do que os
outros.
54
Jornal O ESTADO DE SÃO PAULO, edição de 14.09.1994, p. A6.
155
Não é de hoje que o senador Humberto Lucena abre
para si exceções e comete abusos, que depois são
anistiados tacitamente por um Legislativo
acostumado a consagrar vícios pelo hábito. O
Congresso oferece o espetáculo patético de ser uma
Casa em recesso branco com uma gráfica
funcionando a todo vapor.

É sabido e consabido que a gigantesca gráfica do


Senado, cujo orçamento de R$ 9 milhões sai do bolso
do contribuinte, funciona para uso pessoal do s
parlamentares desde 1985, quando a mesa diretora
fixou uma cota anual de serviços gráficos 'para apoio
de atividades parlamentares'.

O extenso eufemismo encobre todo tipo de material


de campanha: cartões, boletins, cadernos escolares e
calendários. A defesa de Lucena, aliás, é uma
confissão de culpa: sustenta que é um equívoco julgar
um único parlamentar por um crime cometido de
forma sistemática e coletiva.

A argumentação dificilmente poderia se aplicar a


outras irregularidades em que é vezeiro o senador
paraibano. Em matéria de nepotismo, por exemplo,
Lucena é hors concours: tem quatro filhos, cinco
sobrinhos e o marido de uma sobrinha empregados
no Congresso. Apadrinhados que nunca fizeram
menção de se demitir, apesar das inúmeras e
incessantes denúncias da imprensa.

A única explicação para a desenvoltura com que


Lucena se apropria do que não lhe pertence só pode
residir na sua concepção cartorial e corporativa da
vida parlamentar. Cercado de tantos filhos e afilhados,
desenvolveu uma irreprimível familiaridade com os
156
recursos públicos.55

Noutro diário de grande circulação, Gilberto Dimenstein


defendeu a justeza da decisão do TSE:

É injusto?
___________________
Gilberto Dimenstein
Com sua candidatura impugnada pelo Tribunal
Superior Eleitoral, o presidente do Senado, Humberto
Lucena, virou um bode expiatório? Resposta: virou. O
uso da máquina pública é generalizado dentro e fora
do Congresso: tão generalizado que se tornou um
costume aceito como ‘normal’. Mas ele deveria ou não
ser punido?

Ao se defender, Lucena escudou-se na noção da


normalidade – ou seja, se ‘todos fazem, também
posso fazer’. É a suposição de que a banalização do
delito o transforma em legal. O argumento costuma
ser repetido quando a vítima tem o poder – e muitas
vezes funciona. Foi usado e abusado, por exemplo,
pelos políticos e empresários que passaram pelas
CPIs.

Jamais se concederia tal flexibilidade aos pés-rapados.


Imagine se um indivíduo preso por bater uma carteira.
Na delegacia, admite o crime, mas pede para ser
solto. Afinal, centenas de milhares de brasileiros
também assaltam. O delegado vai rir. Se o ladrão tiver
sorte, não recebe uma bolacha na cara.

O problema é que, no Brasil, a lei serve para um


amplo show de encenação. O Congresso produziu
55
JORNAL DO BRASIL, edição de 14.09.1994, p. 10.
157
uma legislação eleitoral: determina que a
manipulação de dinheiro público por um candidato
estabelece como pena a impugnação da candidatura.
É certo ou errado? Não importa.

Importa que a lei foi votada pelos próprios


parlamentares. Cabe ao Judiciário executá-la. De
duas, uma: ou o Congresso para de produzir leis a fim
de que não corra o risco de infringí-las. Ou proíbe o
Judiciário de julgar.

Até considero injusto que o senador Lucena seja


punido sozinho. Como por várias vezes, nesta coluna,
considerei injusto só o empresário PC Farias estar na
cadeia: é algo como prender o gerente do banco pela
alta taxa de juros. Reconheço que a prática é
generalizada e até consigo entender por que Lucena
se sente injustiçado.

Mas são episódios assim que se prestam a vigorosos


exemplos para que práticas ‘normais’ deixem de ser
normais. Nunca devemos cansar de repetir o
terrivelmente óbvio: dinheiro público chama-se
público porque é do publico.

No mesmo diário, o jornalista Josias de Souza comentou o


‘caso Lucena’:

‘Os pequenos delitos


JOSIAS DE SOUZA

Humberto Lucena está transtornado. Considera-se


injustiçado. Diz que o ‘crime’ de que o acusam é usual
no Congresso.

158
Escrevo ‘crime’ assim, entre aspas, porque o senador
não admite a falta. Pior aponta para colega que,
como ele, serviram-se da Gráfica do Senado.

Para dar consistência à própria lista, inclui entre seus


similares o senador Nelson Carneiro, considerando um
bom homem público.

Lucena está certo e está errado. Tem razão ao dizer


que a quase unanimidade dos parlamentares usa de
forma privada a gráfica pública do Congresso.

O senador erra ao supor que a banalização da falta


desmerece a punição. Ao contrário, até a qualifica.
A imagem é forte, mas vá lá: é como se um policial
prendesse um traficante carioca e ouvisse do
malandro: ‘O Sr. não pode me prender. Quase todo o
Ri de Janeiro comercializa drogas’.

O problema não está na punição de Lucena, como


tenta fazer crer o senador, mas na ausência de castigo
para os demais. Inclusive Nelson Carneiro, se for o
caso.

O caso Lucena é emblemático. Presidente do


Congresso, o senador deveria ter dado o exemplo.
Não deu.

A pena imposta pelo TSE não esgota o caso. É preciso


agora exigir de Lucena e de tantos quantos tenham
agido como ele que reembolsem o contribuinte.

Há no Brasil uma tendência à separação dos delitos


por seu volume. Assim, diferenciam-se ‘grandes’ e
‘pequenas’ faltas.

159
A regra é muito bem aceita nos corredores do
Congresso. Note-se, a propósito, o que ocorreu no
julgamento dos integrantes da máfia do Orçamento.

Inocentaram-se alguns dos envolvidos, sob o


argumento de que desviaram pouco dinheiro.

Por esse mesmo raciocínio equivocado, Lucena seria,


entre tantos, um pequeno delinquente.

Incluem-se ainda na categoria de pequenos delitos a


praga do empreguismo, que tem em Lucena um feroz
adepto.

Outro exemplo: no início de sua campanha, Fernando


Henrique utilizou um fax do Senado para enviar
mensagens aos eleitores.

José Dirceu, candidato ao governo de São Paulo pelo


PT, também enviou cartas a eleitores com o selo
financiado pelo contribuinte.

Eis a raiz do problema: é preciso mudar a escala de


valores do Congresso. E o TSE deu um passo nessa
direção.

É evidente que não se está defendendo aqui que todos


sejam cassados. Para os pequenos delitos, pequenas
penas. Nunca a ausência de punição.

Os críticos de Humberto Lucena eram muitos, e em maior


número, mas não faltou quem defendesse o senador paraibano.
Gerardo Mello Mourão interpretou o discurso de Antônio Mariz
como um segundo “Nego” do povo paraibano. Eis o artigo:

160
O novo 'nego' da Paraíba

A insólita decisão de um Tribunal Superior,


pretendendo fulminar a candidatura a senador pela
Paraíba do sr. Humberto Lucena, o presidente do
Congresso que acolheu e acionou o processo de
impeachment do sr. Collor de Mello, estourou como
uma bomba relógio.

A primeira impressão que se tem é de que o Tribunal


Eleitoral deixou de ser um fato para tornar-se num
desaforo, não apenas contra o Senado, mas contra
todas as regras do jogo democrático das eleições. Até
o prazo de impugnação estava vencido.

O desaforo do TSE torna-se mais escandaloso quando


se sabe que o relator da causa foi o venerando
ministro Marco Aurélio Afonso de Farias Melo, filho do
sr. Plínio Melo, honrado corretor de imóveis, tio do
falecido sr. Collor de Mello, que o tirou de sua
modesta banca de corretagem paterna para a cadeira
do Supremo.

Também o sr. Sepúlveda Pertence, que preside o TSE e


que se absteve de votar na querela paraibana,
alegando que a questão não é constitucional, é
membro do Supremo e, pois, um venerando ministro.

Ora, os Tribunais Superiores são superiores, 'ma non


troppo'. Acima deles está o Supremo, que também,
embora supremo, não é intocável. Muito menos
infalível. O 'venerando' é um título, não um adjetivo
qualificativo. Se fosse, o sr. Marco Aurélio, jovem
primo do Collor de Mello, ao menos, não chega a ser
tão venerando assim. Mas isso é outra história.

161
E é e não é. Pois, ao que consta, o primo do ex-
presidente tirou, da adega da Casa da Dinda, uma
garrafa de champagne para comemorar a suposta
cassação do senador que instituiu a CPI que o
escorraçou do poder. A primeira, ele já a havia
estourado quando foi cassado o mandato do
malogrado Ibsen Pinheiro. Mas esta também é outra
história.

O país está assistindo a várias tentativas de decidir as


eleições no tapetão. Esta foi mais uma e mais grave.
Traduziu não apenas o faniquito de candidatos em
desespero de causa, mas a perversão da Justiça
Eleitoral. Retirar da vida pública um senador
exemplar, com mais de 30 anos de mandato
parlamentar, sob alegações no mínimo fúteis e
ridículas, é um desserviço à democracia.

Tive longo e honroso convívio com Lucena. Fomos


colegas na Câmara dos Deputados, na véspera e
martirizada legislatura de 63 a 67, expostos todos nós
aos raios da ditadura militar. Lucena nunca vacilou na
resistência ao regime de arbítrio. Já tinha 12 anos de
vida pública, quando ficou sem mandato, em 1967,
tendo que trabalhar como jornalista, a convite do
senador João Calmon, para sobreviver honradamente.
No auge do sufoco do regime de 64, degolado o
grande líder Martins Rodrigues, poucos se dispunham
a aceitar o perigo cargo de líder da oposição. Foi para
o limpo e bravo deputado paraibano que nos
voltamos todos. Eu mesmo fiz questão de dizer-lhe:
'Prepare-se: a liderança tem de ir para as suas mãos.'

A Paraíba o julgou: mandou-o duas vezes para o


Senado. Depois da sentença de um Tribunal
equivocado – e este é o adjetivo mais brando que se
162
pode usar -, a honra dos paraibanos vai apelar para
um tribunal, este sim, supremo e infalível: o tribunal
do povo.

As urnas da Paraíba, do brejo e do litoral, do sertão e


de nossas Borboremas azuis, vão falar no dia 3 de
outubro. Até porque o Estado inteiro foi afrontado por
essa sentença esdrúxula, que atingiu as melhores
lideranças do Estado, dos Cunha Lima ao candidato
vitorioso ao governo, o senador Antônio Mariz,
escolhido – e não por acaso – por todos os partidos,
para relator do impeachment do primo-presidente.

O discurso proferido no Senado, na quarta-feira


última pelo senador Mariz, ameaçando retirar sua
candidatura ao governo, diante da agressão
pretoriana ao senador Lucena, é um dos momentos
altos de nossa história parlamentar.

Com sua sólida formação jurídica, com sua tradição


quase ascética na política de sua terra, vertical como
um coqueiro e áspero como um cactus, o Mandacaru
de Sousa – sua terra sertaneja na Paraíba do Norte –
reviveu no Senado as vozes mais altas de sua gente.
Tem-se a impressão de se estar ouvindo de novo as
imprecações proféticas e irrespondíveis de José
Américo.

Os pequenos juízes – superiores mas não intocáveis –


não poderão mais dormir em paz com sua consciência
e sua fraturada competência jurídica, depois do libelo
de Antônio Mariz.

As depravações da vigência política brasileira foram


mais de uma vez denunciadas pela pequena Paraíba –
aquela 'muié macho, sim sinhô' da cantiga do Homero
163
sertanejo que foi Luís Gonzaga. Foi o telegrama
lacônico de João Pessoa, hoje inscrito na bandeira do
Estado, dizendo um seco e contundente 'nego' ao
então presidente da República, que condenou à morte
o regime de 1930. E foi a morte de um político
paraibano – o mesmo João Pessoa – que deflagrou a
revolução de 30.

Coube a Mariz repetir o 'nego' histórico da Paraíba


aos abusos de poder. Esses abusos, agora partidos do
Judiciário, em nome da revolução ética que apenas se
balbucia em nossa vida pública, são muito mais
graves que as práticas talvez pouco ortodoxas do
Legislativo, de abrir um miserável crédito de R$ 4.000
anuais para divulgação de trabalhos e comunicação
de parlamentares com seus eleitores. Isto será, se
quiserem, mais um aspecto do 'himen complacente'
da consciência dos políticos.

Parece que todos ou quase todos os senadores se têm


servido dessa prática, que não é monopólio nem
invenção do senador Lucena. É que é irrelevante
diante do escândalo da impunidade em que se
encontram as quadrilhas de Ali Babá do ex-Collor de
Mello. Compare-se o passo de cágado dos processos
contra os grandes corruptos com a velocidade para
julgar uma conta legal de R$ 4.000 na gráfica do
Senado.

Resta esperar que a síndrome da Paraíba funcione


mais uma vez para corrigir os erros do país. Entre eles,
a tentativa covarde e hipócrita de enganar a opinião
pública com o arroto jurídico de uma falsa ética.

GERARDO MELLO MOURÃO 75 poeta e escritor, é


presidente da Academia Brasileira de Filosofia e
164
membro do Conselho Nacional de Política Cultural do
Ministério da Cultura. Foi correspondente da Folha em
Pequim (China) de 1980 a 82.

Em espaço dedicado às eleições, a revista VEJA comentou a


inédita e surpreendente decisão do TSE:

ELEIÇÃO
Pecados impressos
O TSE cassa a candidatura de Lucena e investiga
senadores que fizeram campanha à custa do Erário

A decisão surpreendeu: por 5 votos a 1, o Tribunal


Superior Eleitoral cassou o registro de candidato à
reeleição do presidente do Congresso, senador
Humberto Lucena, do PMDB da Paraíba. Condenado
por usar recursos públicos em sua campanha eleitoral,
Lucena fica impedido de concorrer nestas eleições e
em qualquer outra que ocorrer nos próximos três
anos. O crime de Lucena foi ter mandado fazer na
gráfica do Senado 130.000 calendários ilustrados com
sua fotografia, que depois foram distribuídos entre
seus eleitores na Paraíba. A decisão do TSE causou
surpresa por atingir o presidente do Congresso – a
mais alta figura na hierarquia parlamentar e eventual
substituto do presidente da República. Além disso, aos
66 anos, Lucena é um veterano da política de Brasília,
um nepotista convicto, um coronelão que já
completou mais de quarenta anos de vida pública.
Nem por isso a sentença dos juízes da corte eleitoral
deixou de ser acertada. Apesar de disseminado, o uso
da gráfica do Senado para atender a interesses
particulares ou eleitorais está proibido tanto pelas
normas internas da Casa quanto pela legislação

165
eleitoral e ordinária.

Numa típica demonstração do corporativismo


reinante em Brasília, Lucena foi defendido por uma
maioria absoluta de parlamentares que trataram do
assunto, inclusive o tucano Fernando Henrique, que
considerou a punição 'exagerada'. Mas nenhuma voz
foi tão ardorosa quanto a do senador Antônio Mariz,
seu companheiro de chapa do PMDB nas eleições
como candidato ao governo da Paraíba.

'A Paraíba deve perguntar por que só Humberto


Lucena é culpado?', indagou ele em discurso no
Senado. 'Porque Humberto, um paraibano, um
nordestino, teve a ousadia de presidir um dos poderes
da República, por duas vezes em oito anos, presidente
do Senado e presidente do Congresso Nacional.' A
indignação de Mariz pode ser explicada pela aflição
do candidato que perdeu seu principal aliado nas
eleições. Mas não se pode negar que Mariz tocou
numa ferida. Lucena cometeu uma ilegalidade – mas
não está só.

Até Fernando Henrique Cardoso, líder das pesquisas


da sucessão presidencial, já utilizou os serviços da
gráfica do Senado em temporada eleitoral. Em 1992,
a pedido de Fernando Henrique, a gráfica imprimiu
um Manual de Campanha do Candidato, distribuindo
seus 10 000 exemplares para vereadores do PSDB
utilizarem nas eleições municipais. 'Não foi um serviço
pessoal ao senador, mas para o PSDB, que inclusive
pagou a conta', explica o assessor de imprensa
Augusto Fonseca. Foi um preço camarada que só um
senador poderia conseguir. O manual saiu por 2
centavos, o exemplar, enquanto, no mercado, teria
custado pelo menos vinte vezes mais. Seu
166
companheiro de chapa, Marco Maciel, também. No
final de 1992, ele mandou imprimir um calendário
para distribuir como brinde entre o eleitorado. É um
caso semelhante ao de Humberto Lucena, e havia até
um retrato do longilíneo senador para ninguém
esquecer quem fizera a remessa. Há, porém, uma
diferença. Em 1993, ano em que o calendário de
Maciel ficou pendurado na casa dos presenteados,
não havia eleição.

Outro exemplo é o de Mário Covas, candidato favorito


do PSDB ao governo paulista. Em 1993, Covas
solicitou à gráfica do Senado a impressão de 57 000
cartões de Natal. A título de consulta, VEJA ouviu um
ex-presidente do TSE sobre esses casos. Sob a
condição de ser mantido em anonimato, o jurista
opinou que em todos eles o que se verifica, de uma
forma ou de outra, é o uso da gráfica do Senado para
material de campanha. E, portanto, todos deveriam
ter suas candidaturas cassadas. 'De fato, imprimo
meus cartões de Natal lá e não considero isso crime',
afirma Covas. 'Queria mesmo era saber dos juízes dos
tribunais se os seus cartões de Natal são pagos por
eles mesmos ou pelos tribunais'. Apenas para matar a
curiosidade do candidato tucano: nem o TSE nem o
STF têm gráfica própria. Quando querem divulgar
exemplares de seus acórdãos, os juízes pagam o xerox
do próprio bolso. Também não dispõem de verba para
imprimir cartões de Natal.

MESMA FALTA – Criada em 1963, a gráfica do Senado


é um cabidão de empregos com 1 200 funcionários,
dispões dos equipamentos mais modernos de Brasília
e, além de imprimir trabalhos do Congresso, também
presta serviço aos parlamentares. Cada um deles tem
direito a fazer publicações no valor de até 4 160 reais
167
por ano. Parece pouco, mas não é, visto que os
senadores pagam apenas as despesas com papel e
tinta. Assim os serviços saem por um preço que
representa entre 5% e 10% do valor de mercado. Para
os deputados, sai um pouco mais caro, cerca de 20%
do valor de mercado. As regras seguidas pela gráfica
estão numa instrução aprovada pela Comissão
Diretora do Senado em 1983 e, em princípio, os
parlamentares só podem usar a gráfica para publicar
seu trabalho legislativo. No seu item 2.4, a instrução
proíbe expressamente: 'O Cegraf não executará
encomendas para fins eleitorais e de interesse
individual, a exemplo de cartazes, folhetins ou
calendários etc'. Uma outra resolução, do TSE, diz: 'O
parlamentar que é candidato não pode, no período da
campanha eleitoral, expedir boletins informativos, por
conta do Erário, divulgando a sua atuação
parlamentar.'

Nas contas de quem sabe o que se passa nos porões


do Congresso, 64 entre os 81 senadores da República
já recorreram aos serviços da gráfica do Senado para
confeccionar cartões de natal, calendários, cadernos e
livros. O TSE já está investigando o caso de dezesseis
parlamentares acusados de incorrer na mesma falta.
Da lista constam os nomes do ex-vice de Fernando
Henrique, Guilherme Palmeira, o veterano senador
pelo Rio de Janeiro Nelson Carneiro e o folclórico Ney
Maranhão, do PRN de Pernambuco. Outro apontado é
o senador Alexandre Costa, ex-ministro de Itamar
Franco. Costa mandou imprimir cadernos com seu
nome e, no verso, um retrato da deputada Roseana
Sarney, candidato ao governo do Maranhão. Todos
esses candidatos fizeram encomendas na gráfica do
Senado de cadernos, calendários e cartazes que

168
podem ser enquadrados como material eleitoral.

Para que a cassação de Lucena seja efetivada, é


preciso que a sentença contra ele transite em julgado
– ou seja, que se esgotem todas as possibilidades de
recursos judiciais. Desde a semana passada seus
advogados preparam recursos e outros instrumentos
em direção ao TSE e ao Supremo Tribunal Federal.

EMPREGANDO PARENTES – A esperança maior de


Lucena é ganhar tempo. É pouco provável que o caso
esteja decidido até o dia da eleição. Se perder a causa
depois do dia 3, ele perde sua cadeira no Senado, que
será preenchida pelo candidato que ficar em terceiro
lugar na eleição. Em melhor situação está seu
companheiro de chapa ao Senado, Ronaldo Cunha
Lima. Processado por tentativa de homicídio – no ano
passado deu um tiro em seu adversário político
Tarcísio Burity -, Cunha Lima deve se eleger e
recuperar a imunidade parlamentar que impedirá o
prosseguimento do processo.

O senador Humberto Lucena começou sua vida


pública em 1951, quando se elegeu deputado
estadual pelo PSD da Paraíba e, no ano passado, se
viu envolvido em denúncia de corrupção pelo
funcionário do Senado José Carlos Alves dos Santos.
Acabou comprovando que a acusação não tinha
fundamento. Para se defender, Lucena pediu uma
investigação de sua vida fiscal ao então secretário da
Receita Osíris Lopes Filho. A resposta de Osíris foi
genérica: 'Tributariamente o senhor não está bem'.
Havia incompatibilidade entre a declaração de renda
e a movimentação de dinheiro revelada nas contas.
Lucena alegou que esquecera de declarar um carro

169
velho, corrigiu a declaração e nada mais surgiu contra
ele. Casado com a catarinense Ruth Maria Heusi,
Lucena tem quatro filhos. A mais conhecida é Lisle, ex-
namorada do presidente Itamar Franco. Lisle trabalha
na Câmara dos Deputados, no Gabinete do deputado
Ivandro Cunha Lima. Os outros três também
trabalham ou trabalharam no Congresso. Lucena
sempre gostou de empregar parentes no Congresso.
Além dos filhos, deu emprego a seis membros da
família em Brasília.56

A cassação do registro de Humberto Lucena abriu uma onda


de denuncismo. O Partido dos Trabalhadores assumiu a condição de
“arauto da moralidade” da política nacional e fez chegar às mãos do
procurador-geral cópias de impressos feitos na Gráfica do Senado
por vários candidatos. Era o início de uma verdadeira devassa no
Poder Legislativo da União. Senadores e deputados federais ficaram
apreensivos. Solidários à Lucena, ensaiaram um “motim
parlamentar”. Lideranças do PMDB, PFL e do PTB se movimentaram
para elaborar um Projeto de Lei de anistia.

Na Parahyba, lideranças políticas tentaram criar um clima de


comoção geral, um dos seus representantes estava sendo vítima de
uma perseguição inominável! Em Campina Grande, o ex-governador
e candidato do PMDB a uma das vagas para o Senado - Ronaldo
Cunha Lima -, reuniu uma multidão no Calçadão do Café São Braz.
Na ocasião, fez emocionado discurso em defesa do companheiro de
partido. O jornal O NORTE destacou os principais pontos da oratória:

Sei quanto é ruim uma cassação.

Ser tirado dos braços do povo pelo arbítrio e pela

56
Revista VEJA, edição n. 1.358, Ano 27, n. 38, de 21 de setembro de 1994, p. 35.
170
violência.

Humberto não tem carro para andar e nem casa para


morar.

Não tenho nada pessoalmente contra o senador


Raimundo Lira.

Mantenho as minhas relações de amizade.

A Justiça derrota quem foi eleito e elege quem foi


derrotado.

Todos sabem da dificuldade da campanha de


Humberto, da minha campanha e de Mariz.

Me vi cassado e permaneci nessa mágoa durante 12


anos, período em que fiquei exilado de minha própria
pátria.

Eu pergunto quem não mandou imprimir calendário,


cadernos, discursos e não usou a Gráfica do Senado.

A Paraíba derrota Humberto porque imprimiu


calendário e elege um derrotado que imprimiu
cadernos.

Eu dizia sempre, Humberto você não merece ser


cassado por ter mandado imprimir um calendário,
porque você já é um calendário que nós consultamos
todo dia.

Que beleza de homem público que está sendo


injustiçado!

Se fosse outro estaria mostrando a sua reação.


171
Na capital do Estado, o candidato Antônio Mariz,
parlamentares do PMDB e de outros partidos que compunham a
coligação PRA FRENTE PARAÍBA, participaram de uma manifestação
popular. O que deveria ser uma passeata da mulher pela moralidade
contra a corrupção foi transformado em ato de solidariedade a
Humberto Lucena. Algumas pessoas estavam vestidas de preto e
usavam tarja da mesma cor, com os seguintes dizeres: “a Parahyba
estava de luto!”

“ - Estou com minha vitória garantida na eleição e estão me


tirando o tapete para favorecer outros candidatos”, afirmou
Humberto que se dizia vítima de uma injustiça. Bastante
contrariado, Lucena anunciou a existência de um ‘conluio’ entre a
Justiça Eleitoral e o seu principal adversário político, Raimundo Lira,
a quem atribuía a prática de abuso de poder econômico para se
eleger senador da República: “ - Tem candidato ao Senado abusando
do poder de autoridade, gastando milhões e milhões na campanha,
distribuindo um milhão de camisetas, 200 a 300 automóveis,
tentando cooptar companheiros do PMDB e nada disto é visto pela
Justiça Eleitoral”, desabafou Lucena.

Na Parahyba, não foram poucos os jornalistas que


recorreram às teorias conspiratórias para justificar o que
consideravam “uma decisão esdrúxula e desproporcional” da Justiça
Eleitoral. Dentre as razões para punir com rigor o parlamentar
paraibano foi lembrado o fato de Humberto ter sido o primeiro a
assinar, no Senado, o processo de Impeachment do ex-presidente
Fernando Collor de Melo, primo do relator do processo, ministro
Marco Aurélio de Farias Mello, que votou pela cassação do registro
de Lucena.

Correligionários e simpatizantes do senador Humberto

172
Lucena imputavam a cassação do senador paraibano também à
“visível campanha, eivada de preconceito e discriminação, movida
contra o paraibano presidente do Senado (por duas vezes em oito
anos), por parte de setores da imprensa do Sul.”

Distante das paixões partidárias, o jurista Saulo Ramos fez


uma análise fria do veredicto do Tribunal Superior Eleitoral. O ex-
ministro da Justiça tinha a opinião de que o TSE havia feito um
julgamento apressado, numa noite de muito cansaço em que teriam
sido cometidos erros graves. Para Saulo, a decisão da Justiça
Eleitoral representava uma intromissão indevida do Poder Judiciário
em assuntos internos do Congresso Nacional: “- O povo paraibano
iria dar uma boa resposta à decisão judicial”, vaticinou o ex-
consultor geral do Governo Sarney.

O excesso de segurança do doutor Saulo Ramos servia como


um bálsamo para Humberto Lucena que, apesar da adversidade,
não perdia a calma e, nos jornais, ainda encontrava forças para
agradecer as manifestações de solidariedade. Disse ele:

Paraibanos, obrigado
Senador Humberto Lucena*

Não imaginava que fosse tão calorosa e solidária a


reação do povo paraibano, com relação à injustiça
que contra mim foi feita pelo Tribunal Superior
Eleitoral. Dos amigos mais próximos, tanto da área
política, mesmo adversários, como daqueles com
quem privo de amizade mais direta, sabia que outro
não seria o comportamento, senão o de apoio. Mas,
confesso, a solidariedade generalizada do povo
paraibano me comoveu.

173
E, mais, impõe-me um compromisso redobrado. O de
lutar com todas as minhas forças para que possa
continuar a servi-lo. E, assim, continuar servindo ao
Nordeste e ao Brasil.

Na verdade amigos, nunca fiz outra coisa desde que,


mal saído dos calores da juventude, ingressei na vida
política. Busquei sempre honrar e dar continuidade à
saga política ética e proba do meu avô, do meu pai, e
ombrear-me com aqueles que, na história da Paraíba
e do Brasil, pontificam como seus grandes
construtores políticos.

Por isso mesmo, podem atacar-me em muitos


aspectos políticos. Podem criticar-me àqueles cujo
conservadorismo não poderia jamais deixar de
chocar-se com a minha sempre presente disposição de
não aceitar o predomínio e a hegemonia dos
poderosos contra os humildes.

Podem, por exemplo, não entender porque, na


oportunidade em que caia sobre o país o manto
escuro do autoritarismo e da ditadura, nos mal
fadados idos de 64, eu me insurgi, desde o primeiro
momento. Não esperei para ver como ficavam as
coisas.

Não estive nas masmorras, é certo. Não me


torturaram como a muitos dos meus companheiros,
jovens e velhos, patriotas, jornalistas, nacionalistas,
democratas. Mas, ameaçado de cassação e vigiado
diuturnamente, mesmo assim, mantive-me firme na
resistência ao golpe e a sua continuidade durante os
chamados 'anos de chumbo'. Lutando, com todas as
limitações, por entre as brechas inseparáveis da vida

174
nacional. Fundando o Movimento Democrático
Brasileiro e, junto com Pedroso Horta, o saudoso
Ulysses Guimarães, Tancredo Neves e outros,
empatamos o crescimento do monstro repressivo.
Estivemos, cara a cara com os que queriam afundar
de vez o Congresso Nacional, transformado em
verdadeiro fantoche, para engodo da opinião pública
e justificar as colocações de que não se vivia sob o
jugo ditatorial.

Tanto quanto o velho Ulysses, estive enfrentando


'cachorros' da repressão, que, se não latiam, nem
mordiam, solertemente iam tentando em um
Congresso castrado, impingir ao povo brasileiro um
aumento escandaloso da concentração de renda e
impondo a ele um modelo excludente, cujo resultado
hoje é essa tremenda divisão social de nosso país.

Dizem de mim os que não conseguem aceitar um


paraibano elevando a cargos de importância nacional
que sou empreguista, nepotista. E, por mais que
sempre tivesse respondido e provado à altura ser isso
uma completa injúria, têm preferido a todo custo
veicular essa imagem a meu respeito, na tentativa de
macular a minha vida pública. E não dizem um só
momento que, nesta vida pública não acumulei
riquezas materiais. Que continuo o mesmo homem
pobre de sempre.

A esses posicionamentos mesquinhos se juntaram


evidentemente os dos que não me perdoam a atitude
rápida e sintonizada com o clamor nacional, de,
diante do escândalo da corrupção no governo Collor,
ser o primeiro signatário da CPI, que redundou no
impeachment do senhor Fernando Collor de Mello.
Assim, como não me perdoaram de, não obstante
175
estar sendo irresponsavelmente citado por uma triste
e marginal figura, diretamente envolvida no
escândalo do Orçamento, ter sido um dos primeiros
que firmaram o documento para que fosse instaurada
a CPI correspondente, e, da qual, sai, como não
poderia deixar de ser, limpo e mais fortalecido ainda.

Sabia, portanto, que o povo paraibano a tudo isso


acompanhara com atenção. Sabia que a ele não
escapara o meu empenho, em todos os momentos,
desde deputado estadual, federal e como senador,
para que os recursos necessários às obras
beneficiadoras de seu bem estar social fossem
liberadas. Sabia que o povo tinha isso em conta.
Particularmente, pelas votações massivas com que
sempre me brindaram nos diversos pleitos.

Mas não sabia que podia ser alvo de tanto apreço.


Mesmo compreendendo que os calendários que todos
os anos lhes envio, como a todos os amigos e
conhecidos de todo o Brasil, jamais poderia ser
concebido como crime eleitoral. E que ele, o povo
paraibano, sentiria que a cassação do meu mandato
não era contra mim simplesmente, mas contra a
própria Paraíba.

Assim, obrigado paraibanos, obrigado amigos, por


suas manifestações de carinho. Continuarei candidato
a senador pelo PMDB para, eleito derrubar de vez
toda essa injustiça, e continuar trabalhando pelo
desenvolvimento da nossa Paraíba e de nosso Brasil.
(*) Presidente do Senado Federal.57

Quinze dias antes do STF decidir seu destino político,


57
Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, edição de 15.11.1994 e JORNAL DA PARAÍBA, edição de 1994.
176
Humberto Lucena deu a sua versão sobre a polêmica decisão do
TSE. Demonstrando confiança no recurso, disse:

CONFIO NA JUSTIÇA

Tanto a imprensa como outros setores da sociedade


podem e devem questionar o que se passa no âmbito
do Congresso Nacional, não só ao nível político, mas
também ao nível administrativo.

Estamos em pleno regime democrático, com a


Imprensa desempenhando o papel do quarto poder da
República, a exemplo dos Estados Unidos da América
do Norte, por ocasião do lamentável caso Watergate.
A partir do trabalho da Imprensa, os Três Poderes têm
tomado iniciativas salutares, visando a investigar
denúncias e punir os responsáveis. Assim foi em 1992,
quando o Congresso Nacional instalou a Comissão
Parlamentar de Inquérito Mista para apurar as
acusações relacionadas como esquema PC Farias, que
redundou no processo de impeachment contra o
então Presidente Fernando Collor.

Assim foi, também, em 1993, quando o Congresso


Nacional instalou a Comissão Parlamentar de
Inquérito Mista da Comissão do Orçamento, cujas
conclusões levaram à perda do mandato de alguns
deputados.

Entretanto, é necessário que a Imprensa tenha as


informações exatas para que possa fazer a cabeça da
opinião pública, em torno de uma determinada
matéria, evitando, assim, que a versão prevaleça
sobre o fato.

177
o caso, por exemplo, da impugnação do registro de
minha candidatura pelo Subprocurador Eleitoral,
junto ao TRE-PB, em face da distribuição de
calendários de Ano-Novo, impressos na Gráfica do
Senado, que, rejeitada na Paraíba, foi acolhida pelo
Tribunal Superior Eleitoral, cuja decisão, porém, ainda
não transitou em julgado, por haver recorrido ao
próprio TSE e, depois, ao Supremo Tribunal Federal.
Tanto assim que permaneci candidato e fui reeleito
pelos paraibanos, por quase quinhentos mil votos.

A opinião pública tem de saber a verdade dos fatos,


para não me prejulgar, injustamente.

O Senado, há mais de vinte anos, estabeleceu uma


quota de serviços gráficos, para os senadores que, de
um modo geral, sempre a utilizaram. As instruções
baixando normas internas que disciplinam o uso da
Gráfica, são da competência do Presidente do Senado.
Por isso, o Senador Mauro Benevides, então
Presidente, em 5 de maio de 1992, atualizou essas
normas especiais, com força de lei, e, inclusive,
publicou as novas Tabelas de Preços e o valor das
respectivas quotas dos Senhores Senadores, sendo de
acentuar que os cartões de Natal e os calendários de
Ano-Novo estão incluídos nas mencionadas Tabelas.
No meu caso pessoal, desde 1979, quando assumi o
primeiro mandato de Senador, que imprimo cartões
de Natal e calendários de Ano-Novo,
independentemente de eleições, com as mesmas
características, conforme consta dos autos do
processo, atendendo à diligência do Subprocurador
Eleitoral, junto ao TSE.

No final de 1993, quando autorizei a impressão dos

178
calendários de 1994, não era sequer candidato à
reeleição ao Senado, pois fui lançado pelo PMDB da
Paraíba como eventual candidato ao Governo do
Estado.

Os referidos calendários limitavam-se a publicar, em


cima, o nome do Senador Humberto Lucena, e,
embaixo de sua foto, o ano de 1994, além de uma
mensagem dirigida aos brasileiros, e não apenas aos
paraibanos, nos seguintes termos:

'Que 1994 seja um marco na vida dos brasileiros,


sobretudo dos mais pobres que são a imensa maioria
de nossa população.

Que Deus nos aponte os caminhos para a saída da


grave crise econômica e social que leva, cada dia
mais, a miséria e a fome, aos lares de milhões e
milhões de pessoas carentes.

É tempo de servir e não de servir-se.'

Como era Presidente do Senado, a mensagem foi


dirigida, portanto, a todos os brasileiros e, por isso
mesmo, dezenas e dezenas dos calendários foram
remetidos a pessoas de vários estados.

Afirmou-se que a nova Lei Eleitoral n. 8.713, de 1993,


no seu art. 45, inciso II, veda expressamente a
candidato e o Partido 'receber direta ou indiretamente
doação em dinheiro ou estimável em dinheiro,
inclusive através de publicidade de qualquer espécie,
procedente de órgão da administração pública.'

Salvo melhor juízo, não procede o argumento, pois


quando imprimi os calendários, em dezembro de
179
1993, não era candidato e mais, de dezembro a final
de fevereiro de 1994 fui lançado pela cúpula do PMDB
da Paraíba, como candidato a candidato a
Governador do Estado.

Tanto assim que, a 11 de março de 1994, com


Representação do Subprocurador Eleitoral já em
andamento no TRE da Paraíba, publiquei um
manifesto aos paraibanos, no qual renunciava à
indicação do meu nome como candidato a governador
e colocava-me à disposição do PMDB, para ser
candidato ao Senado, o que só veio a se concretizar na
Convenção Regional de 29 de maio de 1994, a partir
da qual nenhum dos calendários foi distribuído na
Paraíba, até porque os exemplares impressos já
haviam se esgotado.

Portanto, os calendários distribuídos constituíram


mera rotina na minha vida parlamentar, não podendo
jamais caracterizar o crime eleitoral, inclusive, e,
sobretudo, porque não contêm qualquer mensagem
de propaganda eleitoral.

Neste momento, espero e confio na Justiça do meu


País, que, certamente encontrará, no processo, o
caminho da verdade.

Sem dúvida, a Imprensa e os demais segmentos


sociais podem discordar dessa e de outras práticas,
que, há muitos e muitos anos, vêm ocorrendo no
Senado e na Câmara, exigindo, até, sob o ponto de
vista ético, a sua reformulação. O que, entretanto, não
me parece justo, é que um procedimento legal – de
acordo com as normas vigentes – equivocadamente
possa motivar o cancelamento do registro de uma
candidatura vitoriosa nas urnas.
180
HUMBERTO LUCENA, 66, é senador pelo PMDB da
Paraíba e presidente do Congresso Nacionall58

Mesmo com o registro cassado, a Lei Eleitoral permitia o


senador paraibano prosseguir na campanha, até que fossem
esgotados todos os recursos possíveis e imagináveis, correndo o
risco de, se eleito, os votos serem declarados nulos.

Antes dos autos subirem ao Supremo Tribunal Federal,


mediante Recurso Extraordinário, uma questão de ordem técnica
precisava ser superada: o prequestionamento da matéria. Para
tanto, a defesa de Lucena utilizou outro recurso – os Embargos de
Declaração -, a ser interposto no próprio TSE.

Não apenas isso! Pretendia-se prorrogar a decisão até


depois da realização das eleições. Os advogados de Humberto
acreditavam que o voto popular despejado nas urnas, arrefeceria “a
sanha” do Poder Judiciário.

Lêdo engano! Os ministros do STF terminariam contrariando


as expectativas dos advogados de Humberto Lucena.

* * *

58
LUCENA, Humberto. TEMAS EM FOCO. Vol. III. Brasília: Senado Federal, 1995, p. 261/262 e
Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, edição de 15.11.1994, p. 1-3.
181
Foto: Matéria da Revista VEJA, sobre o caso dos calendários. Humberto
Lucena e sua filha, Irâe Lucena. Fonte: Revista VEJA, edição de 21.09.1994,
p. 35.

182
Foto: Humberto Lucena recebe solidariedade em sua residência. (Fonte:
Revista Veja, edição de setembro de 1994).

183
Na semana seguinte à cassação, a VEJA publicou o jocoso “Cordel da
Gráfica – Para ser impresso na gráfica do Senado”, do humorista Jô Soares.
(Fonte: Revista VEJA, edição n. 1.359, Ano 27, n. 39, de 28.09.1994) .

184
OS EMBARGOS
Antes do ministro Marco Aurélio formalizar o acórdão que
cassou o registro de candidatura de Humberto Lucena, os
advogados do senador protocolaram o recurso de Embargos de
Declaração. Queriam que os ministros do TSE enfocassem a
intimação pessoal de Antônio Carlos Pessoa Lins, a fim desta ser
considerada válida a partir do momento em que apôs a sua
assinatura no acórdão do TRE paraibano.

Na petição dos Embargos, Raphael Mayer e Luis Carlos


Bettiol queriam que o TSE se pronunciasse sobre a distribuição dos
calendários, que não ocorreu no meio do ano, após as convenções
partidárias, até mesmo porque perderiam “um semestre de sua
utilidade”, argumentaram.

Alegaram ainda no recurso que competia ao STF apreciar


inquérito contra senador da República e que o TSE não havia se
pronunciado sobre o cerceamento de defesa.

A defesa pretendia, também, com o recurso, compelir o


presidente do TSE, ministro Sepúlveda Pertence, a prolatar voto
sobre o tema de fundo do Recurso Ordinário.

Levou apenas 14 dias para o TSE apreciar os Embargos de


Declaração.59 Em sessão de 27 de setembro de 1994, os ministros

59
Reproduzo a Ementa dos Embargos de Declaração:
EMBARGOS DECLARATÓRIOS – APRECIAÇÃO - POSTURA DO MAGISTRADO. Na
apreciação dos embargos declaratórios o julgador deve atuar com grande espírito de
compreensão, atentando, assim, para a angústia dos jurisdicionados na defesa dos próprios
interesses. Exsurgindo qualquer dos vícios que os ensejam, cumpre o acolhimento da medida,
complementando-se a entrega da prestação jurisdicional.
OFÍCIO JUDICANTE - ATUAÇÃO DO PRESIDENTE DO COLEGIADO. A este compete
185
rejeitaram o recurso que tinha atingido a sua finalidade, que era
apenas manter o senador na disputa eleitoral e prequestionar a
matéria para ser levada ao STF.

* * *

definir a respectiva participação no julgamento, tendo presente a natureza da matéria.


Entendendo-a estritamente legal, sem envolver o Regimento Interno, descabe, na via estreita
dos declaratórios, sob o ângulo da omissão, compeli-lo a votar.
CERCEIO DE DEFESA. PROVA. Admitido como comprovado o fato que respaldou o
requerimento de diligência, não há como cogitar de cerceio de defesa.
PODER LEGISLATIVO – AUTONOMIA – ALCANCE. A autonomia do Poder Legislativo,
bem como a inviolabilidade dos parlamentares, não consubstanciam óbices a que a Justiça
Eleitoral examine qualquer dos abusos que, previstos no artigo 22 da Lei Complementar nº
64/90, viciam a participação no certame eleitoral. No caso, tem-se o envolvimento do
parlamentar não tem tal qualidade, mas como candidato.
186
“A PARAHYBA É QUEM DIZ: (...)”
Entre a condenação pelo TSE e o pronunciamento do
Supremo Tribunal Federal, Humberto Lucena estava amparado pelo
princípio constitucional da presunção de inocência, ou da não-
culpabilidade, como preferem denominar outros. A garantia - mais
forte no Direito Penal do que em outros ramos da Ciência do Direito
-, estava expressa no artigo 15,60 da Lei das Inelegibilidades – Lei
Complementar n. 64, de 1990 -, que exigia o trânsito em julgado da
decisão proferida pela Justiça Eleitoral, o que não impedia o
candidato disputar o pleito. Posteriormente, a partir da vigência da
Lei das Eleições, de 1997, o princípio seria reforçado pelo Art. 16-A,
ao prever que o candidato subjudice - assim considerado o que
concorre com o registro indeferido, mas que recorre à instância
superior -, possa continuar participando do certame eleitoral, por
sua conta e risco.

Era exatamente essa a situação do presidente do Senado:


com o registro cassado pelo TSE, Humberto ainda se mantinha no
páreo, enquanto seus advogados não houvessem esgotado todas as
instâncias judiciárias. Nos jornais da Parahyba, Lucena aproveitava
para pedir votos e comunicar ao eleitorado que se mantinha na
disputa para o Senado. Eis o artigo:

Paraibanos, obrigado
Senador Humberto Lucena
_____________________________________________________

60
Antes de entrar em vigor a “Lei Ficha Limpa” (Lei Complementar n. 135/2010), o artigo 15 da
LC nº 64/90, a Lei de Inelegibilidades, tinha a seguinte redação: “Art. 15. Transitada em
julgado ou publicada a decisão proferida por órgão colegiado que declarar a inelegibilidade do
candidato, ser-lhe-á negado registro, ou cancelado, se já tiver sido feito, ou declarado nulo o
diploma, se já expedido”. Segundo a nova redação do referido dispositivo, após a Lei
Complementar n. 135/2010, basta a decisão de um órgão colegiado para considerar o
candidato inelegível.
187
Não imaginava que fosse tão calorosa e solidária a
reação do povo paraibano, com relação à injustiça
que contra mim foi feita pelo Tribunal Superior
Eleitoral. Dos amigos mais próximos, tanto da área
política, mesmo adversários, como daqueles com
quem privo de amizade mais direta, sabia que outro
não seria o comportamento, senão o de apoio. Mas,
confesso, a solidariedade generalizada do povo
paraibano me comoveu.

E, mais, impõe-se um compromisso redobrado. O de


lutar com todas as minhas forças para que se possa
continuar a servi-lo. E, assim, continuar servindo ao
Nordeste e ao Brasil.

Na verdade amigos, nunca fiz outra coisa desde que,


mal saído dos calores da juventude, ingressei na vida
política. Busquei sempre honrar e dar continuidade à
saga política ética e proba do meu avô, do meu pai, e
ombrear-me com aqueles que, na história da Paraíba
e do Brasil, pontificam como seus grandes
construtores políticos.

Por isso mesmo, podem atacar-me em muitos


aspectos políticos. Podem criticar-me aqueles cujo
conservadorismo não poderia jamais deixar de
chocar-se com a minha sempre presente disposição de
não aceitar o predomínio e a hegemonia dos
poderosos contra os humildes.

Podem, por exemplo, não entender o porque, na


oportunidade em que caía sobre o país o manto
escuro do autoritarismo e da ditadura, nos mal
fadados idos de 64, eu me insurgi, desde o primeiro
momento. Não esperei para ver como ficavam as
coisas.
188
Não estive nas masmorras, é certo. Não me
torturaram como a muito dos companheiros, jovens e
velhos, patriotas, nacionalistas, democratas. Mas,
ameaçado de cassação e vigiado diuturnamente,
mesmo assim, mantive-me firme na resistência ao
golpe e a sua continuidade durante os chamados
'anos de chumbo'. Lutando, com todas as limitações,
por entre as brechas inescapáveis da vida nacional.
Fundando o Movimento Democrático Brasileiro e,
junto com Pedroso Horta, o saudoso Ulysses
Guimarães, Tancredo Neves e outros, empatamos o
crescimento do monstro repressivo.

Estivemos, cara a cara com os que queriam afundar


de vez o Congresso Nacional, transformado em
verdadeiro fantoche, para engodo da opinião pública
e justificar as colocações de que não se vivia sob o
jugo ditatorial.

Tanto quanto o velho Ulysses, estive enfrentando


'cachorros' da repressão, que, se não latiam, nem
mordiam, solertemente iam tentando em um
Congresso castrado, impingir ao povo brasileiro um
aumento escandaloso da concentração de renda e
impondo a ele um modelo excludente, cujo resultado
hoje é essa tremenda dívida social de nosso país.

Dizem de mim os que não conseguem aceitar um


paraibano elevado a cargos de importância nacional
que sou empreguista, nepotista. E, por mais que
sempre tivesse respondido e provado à altura ser isso
uma completa injúria, têm preferido a todo custo
veicular essa imagem a meu respeito, na tentativa de
macular a minha vida pública. E não dizem um só
momento que, nesta vida pública não acumulei
riquezas materiais. Que continuo o mesmo homem
189
pobre de sempre.

A esses posicionamentos mesquinhos se juntam


evidentemente os dos que não me perdoam a atitude
rápida e sintonizada com o clamor nacional, de,
diante de escândalo da corrupção no governo Collor,
ser o primeiro signatário da CPI, que redundou no
impeachment do senhor Fernando Collor de Mello.
Assim, como não me perdoaram de, não obstante
estar sendo irresponsavelmente citado por uma triste
e marginal figura, diretamente envolvida no
escândalo do Orçamento, ter sido um dos primeiros
que firmaram o documento para que fosse instaurada
a CPI correspondente, e, da qual, sai, como não podia
deixar de ser, limpo e mais fortalecido ainda.

Sabia, portanto, que o povo paraibano a tudo isso


acompanhara com atenção. Sabia que a ele não
escapara o meu empenho, em todos os momentos,
desde deputado estadual, federal e como senador,
para que os recursos necessários às obras
beneficiadoras de seu bem estar social fossem
liberadas. Sabia que o povo tinha isso em conta.
Particularmente, pelas votações massivas com que
sempre me brindaram nos diversos pleitos.

Mas não sabia que podia ser alvo de tanto apreço.


Mesmo compreendendo que os calendários que todos
os anos lhes envio, como a todos os amigos e
conhecidos de todo o Brasil, jamais poderia ser
concebido como crime eleitoral. E que ele, o povo
paraibano, sentiria que a cassação do meu mandato
não era contra mim simplesmente, mas contra a
própria Paraíba.

Assim, obrigado paraibanos, obrigado amigos, por


190
suas manifestações de carinho. Continuarei candidato
a senador pelo PMDB, para, eleito, derrubar de vez
toda essa injustiça, e continuar trabalhando pelo
desenvolvimento da nossa Paraíba e de nosso Brasil.
(*) Presidente do Senado Federal.61

Em novo artigo, publicado um dia antes do pleito, Lucena


fez o último apelo aos eleitores, concitando-os a comparecerem às
urnas e sufragarem o seu nome, apesar da sua situação jurídica
ainda se encontrar pendente no TSE. Afirmou:

Vamos à vitória
Senador Humberto Lucena
______________________________
Amanha, o Brasil estará vivendo um dos mais
importantes momentos de sua história
contemporânea. As mais amplas eleições já havidas
no País, que só encontram paralelo nas que se
realizaram no ano de 1950, quando se concretizou a
volta de Getúlio Vargas ao cenário político da Nação,
como presidente eleito.

Em termos comparativos, pode-se que hoje, tanto


quanto naquela época, descortina-se perante a
sociedade a perspectiva de um novo país. Com
Getúlio, em 1950, intensificava-se o modelo, que no
pós-guerra, consolidava para o Brasil o privilégio de
ter uma economia cujas taxas de crescimento
superavam as dos demais países capitalistas do
mundo. Em 1994, com uma nova moeda, estável, a
inflação contida em patamar ínfimo, delineia-se a
vitória de um novo programa. Capaz de preparar as
bases para a nossa inserção soberana na chamada
globalização dos mercados.
61
JORNAL DA PARAÍBA, edição de setembro de 1994.
191
Evidentemente, o país ainda enfrenta seríssimas
distorções sociais. Diferenças que não podiam deixar
de refletir-se no âmbito da vida política nacional.
Decorrendo daí certas descontinuidade na qualidade
do processo político.

Mas, sem lugar a dúvida, um processo devidamente


amadurecido. Sobretudo porque nele se expressa o
desejo do povo brasileiro de não de deixar mais ser
vítima de manipulações de qualquer sorte. Não mais
transigindo com aqueles que usam da corrupção ativa
e passiva no trato da política e da coisa pública. Do
que foram magnífico exemplo o movimento pelo
impeachment de Collor e as movimentações pela
punição dos chamados 'anões' do Orçamento.

Portanto, é um novo país, uma nova sociedade, a


exercer no dia de amanhã o seu dever cívico do voto.
E, mesmo que ainda possam manifestar-se nessas
eleições alguns bolsões de desalentados – que se
explicam em termos político-sociais, ainda assim,
podemos ter a certeza de que a qualidade deste pleito
será refletidora do amadurecimento antes referido.

No que me diz respeito, não apenas essa certeza e


esperança do povo brasileiro em geral é o que me
anima. Aqui na minha Paraíba querida, com toda a
serenidade, envolvido pelo mais forte sentimento de
gratidão, pude verificar como o povo paraibano dá
mostras incontestes de seu histórico altaneirismo, ao
não se deixar enganar por decisões equivocadas sobre
minha postura política.

O episódio dos calendários, se nos trouxe dificuldades


momentâneas, em termos de dispêndio de energias,
desviadas da campanha propriamente dita, ao buscar
192
o caminho que a Justiça me concedia, para confirmar
a minha continuação na campanha, teve o mérito de
ser um tiro saído pela culatra para os meus
adversários. Afinal, o povo paraibano pôde dizer
nitidamente que não via em mim nenhum criminoso
eleitoral. Que em mim tinha e terá sempre um homem
de bem e um político cuja trajetória foi sempre
pautada no sentido de servir à Paraíba e a servir-lhe,
sem ter, nesse caminho, acumulado riquezas
materiais, advindas de conluios com grandes grupos
econômicos.

Também nesse caso se expressa o avanço de nossa


sociedade. O que me dá mais alento ainda para seguir
a minha faina política, pelo engrandecimento do
Brasil e de nossa Paraíba.

Como tenho insistentemente dito, continuo candidato,


não obstante o desespero de meus adversários, que, a
todo custo, quiseram fazer crer aos paraibanos que eu
estava alijado das eleições. Continuo candidato ao
Senado Federal para contribuir com toda essa
reformulação e renovação que o País começa a
consolidar amanhã em suas urnas. Vamos à vitória!
(*) Presidente do Senado Federal62

Abertas as urnas, o resultado não poderia ter sido melhor


para os três candidatos majoritários do PMDB: Ronaldo Cunha Lima
foi o mais votado para o Senado, com 517.832 votos; Humberto
Lucena conquistou a segunda posição, obteve 415.899 sufrágios. O
candidato a governador, o senador Antônio Mariz ganhou o
primeiro turno e, no segundo, venceria o pleito derrotando Lúcia
Navarro Braga.

62
LUCENA, Humberto. TEMAS EM FOCO, Vol. III. Brasília: Senado Federal, 1995, p. 291/292.
193
Um dado chamou a atenção dos analistas políticos que
acompanham as eleições na Parahyba: o número de votos recebidos
pelos dois senadores eleitos pelo PMDB foi inferior ao de votos
nulos e brancos. O fenômeno é perfeitamente compreensível,
considerando as especificidades de cada um dos eleitos. Em 1993,
Ronaldo José da Cunha Lima havia atirado no seu desafeto político,
o ex-governador Tarcísio de Miranda Burity, enquanto que o uso da
Gráfica do Senado, reconhecido expressamente pela decisão do TSE,
repercutiu negativamente contra a candidatura de Humberto
Coutinho de Lucena. Somados, Ronaldo e Humberto tiveram
933.733 votos, enquanto que os votos brancos (905.051) e nulos
(405.058) totalizaram 1.310.109 votos.63

Tendo obtido 82% dos votos válidos em Campina Grande e


com a sua vitória para o Senado, Cunha Lima quebrou um tabu que
durava mais de cinquenta anos: nenhum governador que havia
deixado o mandato tinha sido eleito para o Senado nas eleições
seguintes. Em números proporcionais, Ronaldo só perdia para o
cacique baiano, Antônio Carlos Magalhães, que, naquele mesmo
ano, também era confirmado para o Senado.

Entre o primeiro e o segundo turno da eleição para o


Governo do Estado e já proclamado oficialmente vitorioso para uma
das duas vagas do Senado, Humberto agradeceu ao eleitorado a
votação recebida e aproveitou para registrar duas dificuldades
enfrentadas para manter o seu registro de candidatura: a conduta
dos seus adversários políticos e as manifestações preconceituosas e
anti-nordestinas, oriundas de grande parte dos meios de
comunicação do país. Reproduzo o artigo:

63
Fonte: Dados do Tribunal Regional Eleitoral da Paraíba.
194
Novamente, obrigado*
Senador HUMBERTO LUCENA

Apesar de todas as tentativas dos adversários e de


manifestações movidas pelo preconceito anti-
nordestino de grande parte dos meios de
comunicação do sul do País, as urnas acabaram de
fazer o seu julgamento, reelegendo-se para o Senado
Federal. E mais uma vez tenho que dizer ao povo
paraibano o quanto continuo a ele agradecido, e
como é hoje redobrado o meu sentimento de
continuar a servir-lhe e ao nosso Estado, com o meu
máximo empenho.

Já, quando do episódio dos calendários, com o qual


quiseram transformar-me em uma espécie de 'bode
expiatório', emocionou-me a forma amadurecida e
firme com que os paraibanos me defenderam. Defesa
que se expressou não apenas em consideração ao
meu trabalho e ao conhecimento da inteireza e
probidade com que tenho pautado minha vida
particular e minha conduta de parlamentar há cerca
de 40 anos.

Na verdade, os paraibanos, em sua grande maioria,


divisaram lucidamente que, antes, se tratava de
defender o próprio Estado, como lapidarmente
analisou Mariz em discurso, no Senado, o qual foi
muito bem denominado por Gerardo Melo Mourão,
em artigo na Folha de São Paulo, de 'O Segundo Nego
da Paraíba'.

Naquele momento, todos que integram a 'Frente


Paraíba' podemos sentir que nada poderia deter
nossa vitória. E assim foi. Enfrentando mais uma vez
as projeções equivocadas do IBOPE, consolidamos
195
nossa vitória para o Senado, fizemos a maior parte
dos deputados federais e estaduais, além de termos
Mariz vitorioso no primeiro turno.

Agora, vamos para a segunda fase, Com a certeza de


que novamente obteremos uma vitória retumbante,
para o arremate final de nossa campanha. E
confiantes em que os demais partidos progressistas,
como o PT, o PcdoB, o PCB, o PPR e outros,
juntamente com as alas do próprio PDT e do PFL,
descontentes e em choque com o braguismo,
reconhecem em Mariz a melhor opção para o
Governo do Estado nos próximos quatro anos.
Sobretudo o Partido dos Trabalhadores, cujo
desempenho eleitoral demonstrou irrefutavelmente
sua importância cada vez maior no cenário político
paraibano, de resto, acompanhando todo o
crescimento da legenda petista em todo o país.

Os contatos políticos já iniciados, portanto, visam à


formação de uma nova e ampla Frente Anti-Braga na
Paraíba. Reeditando formalmente a campanha de
1990, mas, agora, com um conteúdo qualitativo
imediatamente superior. Ou seja, se na campanha
anterior para o governo precisávamos encontrar
caminhos para tirar a Paraíba do caos em que os
governos de Wilson Braga e Tarcísio Burity a
lançaram, desta feita, partimos de outro patamar.

Trata-se hoje de avançar objetivamente no sentido de


implementar as metas de crescimento e
desenvolvimento sócio-econômico do Estado, com
base em um terreno devidamente preparado pelos
governos de Ronaldo Cunha Lima e Cícero Lucena. O
que, logicamente, significa o estabelecimento do
compromisso de um programa mínimo, que nos leve
196
ao aprofundamento e a uma maior verticalização da
democracia na Paraíba, ao mesmo tempo em que nos
adiantamos na solução dos graves problemas sociais
que ainda a afligem.

Em meio a uma nova realidade nacional, que essas


amplas eleições gerais nos colocaram, com a
perspectiva de que o Brasil venha rapidamente inserir-
se de forma soberana no novo conceito mundial das
nações, impõe-se a necessidade de que urgentemente
se resolva no nosso Estado a situação de pobreza em
que ainda se encontra um enorme contingente de
paraibanos.

Em consequência, esse segundo turno que se


aproxima caracteriza-se pela discussão intensa, séria
e competente desse quadro com todas as forças
interessadas no progresso verdadeiro da Paraíba.
Uma ação política conjunta, que redunde em um
Plano de Metas, bem estruturado e sintético, capaz de
ser plenamente compreendido pelo povo. Uma forma,
inclusive, de definitivamente sacramentar a enorme
diferença, em termos de qualidade política, que paira
entre Mariz e sua adversária e seu grupo.

Minha convicção, portanto, é a de que o povo


paraibano mais uma vez dirá nas urnas que deseja o
melhor. E que não admitirá, em nenhum momento um
retrocesso. Por isso, volto a dizer: muito obrigado
novamente, paraibanos.

*) Presidente do Senado. 64

64
LUCENA, Humberto. TEMAS EM FOCO, Vol. III. Brasília: Senado Federal, 1995, p. 293.
197
Foto: Propaganda eleitoral da eleição de 1994. (Fonte Internet)

198
Foto: Humberto Lucena, em pleno exercício do direito de sufrágio. Fonte:
Jornal O NORTE, edição de 1994.

199
Foto: Propaganda eleitoral (santinho) do candidato a senador pelo PFL,
Raimundo Lira, terceiro colocado no pleito de 1994. Fonte: Internet.

200
Raimundo Lira. (Fonte: Jornal CORREIO DA PARAÍBA – edição de 1994).

* * *

201
Humberto Lucena costumava lembrar que a sua maior
referência na política era José Américo de Almeida, que orientava
aos políticos mais jovens a não deixarem acusação sem resposta,
principalmente se o objetivo era desfigurar a imagem do homem
público.65 Inspirado em seu oráculo, Humberto fez publicar, na
edição do Jornal O GLOBO, de 29 de novembro de 1994, sua versão
sobre os fatos que levaram à cassação do seu registro, pelo TSE.
Disse:

Pela verdade
HUMBERTO LUCENA

Ninguém desconhece o extraordinário papel que a


imprensa vem desempenhando no país, a partir da
democratização, quando ela passou a exercer o
Quarto Poder, no pleno exercício de sua ação
fiscalizadora.

Há dois anos, sobretudo, a imprensa contribuiu, de


modo eficaz, para iniciarmos um processo de
purificação de nossa vida político-administrativa. Foi
assim em 1992, ao se instalar, no Congresso Nacional,
uma comissão parlamentar de inquérito mista, CPMI,
para investigar as denúncias de Pedro Collor contra o
esquema PC Farias, cujo relatório final fundamentou o
pedido do impeachment do ex-presidente Fernando
Collor. Foi, assim, também, em 1993, ao instalar, no
Congresso Nacional, a Comissão Parlamentar de
Inquérito Mista, CPMI, destinada a apurar as
denúncias contra a chamada 'máfia' do Orçamento, a
qual redundou na perda do mandato de vários
deputados.

65
LUCENA, Humberto. TEMAS EM FOCO, Vol. I. Brasília: Senado Federal, 1991, p. 39.
202
Mas, para evitar que a versão valha mais do que o
fato, a imprensa tem de recolher informações exatas,
visando a preservar a imagem das pessoas
porventuras envolvidas em um determinado
noticiário.

Trago o exemplo da impugnação do registro de minha


candidatura pelo Ministério Público, perante o TRE-
PB, alegando-se a impressão de calendários de Ano
Novo, na gráfica do Senado, que, apesar de derrotada
na Paraíba, foi aceita, em grau de recurso, pelo TSE,
em decisão que ainda não transitou em julgado, por
haver recorrido ao Supremo Tribunal Federal, o que
me permitiu continuar candidato e ser reeleito pelo
povo paraibano, por cerca de meio milhão de votos.

É indispensável que a verdade dos fatos chegue à


opinião pública, para que não haja a injustiça de um
prejulgamento.

Desde que a gráfica do Senado foi criada, o Senado


instituiu, para os senadores, uma quota de
publicações que, de um modo geral, sempre foi
utilizada. Mais recentemente, o presidente Mauro
Bonavides baixou as instruções baixou as instruções
sobre o uso da gráfica, atualizando as normas
especiais, com força de lei, que regem a matéria.
Surgiram, então, as novas tabelas de preços e o valor
das quotas dos senadores, incluindo os cartões de
Natal e os calendários de Ano Novo.

Desde meu primeiro mandato de senador, em 1979,


independentemente de eleição, imprimi e distribuí
cartões de Natal e calendários de Ano Novo, com as
mesmas características, como consta dos autos do
meu processo. Aliás, a grande maioria dos senadores
203
sempre agiu do mesmo modo.

Em dezembro de 1993, os calendários que mandei


imprimir nada tinham a ver com a eleição do ano
seguinte, limitando-se a uma mensagem de Ano
Novo, dirigida, inclusive, aos brasileiros, face à minha
condição de presidente do Senado, nos seguintes
termos:

'Que 1994 seja um marco na vida dos brasileiros,


sobretudo dos mais pobres que são a imensa maioria
de nossa população.

Que Deus nos aponte os caminhos para a saída da


grave crise econômica e social que leva, cada dia
mais, a miséria e a fome aos lares de milhões e
milhões de pessoas carentes.

É tempo de servir e não de servir-se.'

Por isso mesmo, dezenas e dezenas de calendários


foram enviados a pessoas de vários estados, que
mantinham correspondência comigo. Entretanto, o
subprocurador Eleitoral da Paraíba afirmou que teria
havido abuso de poder político, face ao disposto no
art. 45, II, da Lei Eleitoral, que veda a candidato e a
partido 'receber direta ou indiretamente doação em
dinheiro ou estimável em dinheiro, inclusive através
de publicidade de qualquer espécie, procedente de
órgão da administração pública.'

Ora, esse argumento não pode me atingir, pois, em


dezembro de 1993, quando os calendários foram
impressos não era candidato. A cúpula do PMDB da
Paraíba, nessa época, queria que eu fosse candidato a
governador.
204
Pois bem, em 11 de março de 1994, já impugnada a
minha candidatura no TRE, lancei um manifesto aos
paraibanos, desistindo da indicação do meu nome
como eventual candidato a governador e colocando-
me à disposição do PMDB, como candidato ao
Senado, o que só ocorreu em 29 de maio de 1994, na
Convenção Regional do partido, quando nenhum
calendário foi distribuído na Paraíba.

Portanto, os calendários não continham qualquer


propaganda eleitoral, até porque se isso fosse o meu
propósito a mensagem seria referente a governador
do estado que, na ocasião, era o cargo que meus
companheiros me reservavam.

Resta-me, agora, espera e confiar na Justiça do meu


país, que certamente haverá de descobrir onde está a
verdade.

Enfim, a opinião pública pode até achar que essa


prática de imprimir cartões de Natal e calendários de
Ano Novo, na gráfica do Senado, não é certa. A
imprensa pode até criticá-la, duramente. Não seria,
porém, justo que um procedimento legal, por um
lamentável equívoco, pudesse justificar a cassação do
registro de uma candidatura, às vésperas das eleições
e, agora, vitoriosa nas urnas.66

Apesar de reeleito, ainda pesava sobre a cabeça de Lucena,


a espada da Justiça! Depois do bem-sucedido resultado eleitoral,
Humberto esperava o veredicto do Supremo Tribunal Federal para
salvar seu mandato legitimamente conquistado nas urnas!

* * *
66
Jornal O GLOBO, edição de 29.11.1994, p. 6.
205
TAL COMO PILATOS...
Nada foi mais frustrante para os advogados de Humberto
Lucena que o parecer subscrito pelo vice-procurador eleitoral da
República. Antônio Fernando Barros Silva e Souza67 opinou pelo não
conhecimento do Recurso Extraordinário.

Anos depois, Souza estava entre os mais cotados para


suceder Aristides Junqueira na Procuradoria-Geral da República. À
época, o presidente do Senado, José Sarney, deixou chegar ao
ministro da Justiça, Nelson Jobim, o seguinte aviso: “são
praticamente nulas as chances de Antônio Fernando Barros Silva e
Souza ter seu nome aprovado pelo Senado para chefiar a
Procuradoria-Geral da República”. O motivo? A sua atuação no
processo de cassação do registro da candidatura do senador
Humberto Lucena. Para os senadores, Barros teria sido o
responsável direito pela condenação de Lucena junto ao TSE. Apesar
das resistências, Antônio Fernando Barros foi o escolhido e, já na
condição de procurador-geral, ajuizaria a mais famosa ação do
Direito Penal brasileiro: a de n. 407, popularizada na mídia como O
MENSALÃO.

Retornando ao processo de Humberto Lucena, o presidente


da Corte Eleitoral, ministro Sepúlveda Pertence, corroborou a
opinião do representante do Ministério Público e negou seguimento
ao recurso. Sepúlveda Pertence argumentou que a decisão do TSE
não afrontava diretamente a Constituição. Na parte final do
despacho que negou seguimento ao Recurso Extraordinário, o
ministro Pertence fez algumas considerações extrajurídicas,

67
Anos depois, Antônio Fernando Barros Silva e Souza substituiria Aristides Junqueira na
Procuradoria-Geral da República e, nessa condição, ajuizaria a famosa ação penal n. 407,
popularizada como “O MENSALÃO”.
206
demonstrando o incômodo causado pelo protesto do senador
Antônio Mariz, na tribuna do Senado:

‘De qualquer sorte, para arrematar, na lógica mesma


da interposição do RE, a suposta intromissão
judiciária na órbita da independência do Legislativo
como premissa que a distribuição dos calendários não
constitui propaganda eleitoral, ao passo que o
acórdão recorrido partiu da afirmação oposta.

Ora, saber se determinado impresso, distribuído ao


eleitorado, configura ou não propaganda eleitoral não
é tema jurídico, menos ainda, matéria constitucional:
é questão puramente de fato, a ser resolvida, à luz das
circunstâncias do caso concreto, pelas instâncias
jurisdicionais ordinárias.
IV
Por tudo isso, sou forçado a concluir pela inviabilidade
do recurso extraordinário.

Certamente, seria mais confortável admitir o


processamento do recurso: à proeminência do
recorrente na vida pública, ao seu feitio de homem
amistoso e cordial e ao fato de tratar-se do atual
Presidente da Câmara Alta somaram-se, no coro de
protestos contra a decisão recorrida, explosões típicas
do emocionalismo dos tempos de campanha eleitoral,
para emprestar estrépito e dramaticidade incomuns à
invocação, no caso, do dogma da independência dos
poderes.

Mas – reduzido às suas dimensões puramente


jurídicas -, não pude fugir à conclusão da inviabilidade
do recurso.
Dar-lhe seguimento, não obstante essa convicção, é

207
transferir ao Supremo Tribunal Federal a
responsabilidade da palavra derradeira, malgrado
cômodo, seria faltar ao dever primário da
equanimidade, à vista do vigor técnico com que tenho
procurado exercer, na presidência do TSE, o juízo
originário da admissibilidade dos recursos
extraordinários.

Indefiro o recurso.

Brasília, 18 de outubro de 1994.

Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE


Presidente do Tribunal Superior Eleitoral

Com a decisão do presidente do TSE, era remota a


possibilidade dos ministros do STF modificarem a decisão da Justiça
Eleitoral.

No “país dos recursos”, os advogados de Humberto tiveram


que utilizar mais um, o Agravo de Instrumento, para obrigar o
ministro Pertence processar e remeter o Recurso Extraordinário ao
Supremo Tribunal Federal.

Na Corte Suprema, a petição foi distribuída ao ministro Neri


da Silveira, que contrariou o parecer emitido pela procuradoria
geral da República. Os advogados de Humberto respiraram
aliviados! Acendera-se uma luz no fim do túnel! A decisão deu novo
ânimo à defesa. No despacho, o relator não apenas determinou a
inclusão do processo para julgamento pelo plenário da Corte como
também sinalizou no sentido de que a decisão do TSE havia
arrostado a Constituição Federal. Eis o despacho do ministro Neri:

208
Cuida-se de recurso extraordinário interposto por
Senador da República, cujo registro de candidatura ao
Senado Federal, nas eleições de 03.10.1994, foi
cassado pelo acórdão recorrido (fls. 212/272 e
300/318) do colendo Tribunal Superior Eleitoral, que
também o declarou inelegível 'para as eleições que
acontecerão nos três anos subsequentes à eleição do
corrente ano'.

Sustenta-se, como um dos fundamentos do apelo


extremo, que a decisão recorrida implicou
'interferência do Poder Judiciário no Poder
Legislativo'.

Imputado ao Recorrente fato autorizado pelas normas


internas do Legislativo, isto é, utilizar-se da Gráfica
para a impressão de calendários, está-se
interpretando, como ilícita, a prática de conduta
permitida pelo regramento interno de um dos Poderes
da República. Especificamente este fato não poderia
ser considerado como delito eleitoral, se autorizado
está por normas com força de lei, a partir das
resoluções legislativas. A interpretação contrária dada
ao fato, anulando as decisões internas daquele Poder
Legislativo, importa em ofensa grave à Constituição,
que estabelece a separação dos Poderes, no art. 2º,
como um dos princípios fundamentais da República e
da democracia.

Mas se o ato limita-se à prática lícita de benefício


permitido pelo Poder Legislativo aos seus membros, a
apreciação, sobre se ultrapassados foram tais limites,
compete exclusivamente ao Poder que os permitiu. É
matéria interna corporis, e avaliá-la, sob o pretexto
de aplicar-se a lei eleitoral a futuro candidato ou a
candidato, consubstancia a invasão do Poder
209
Judiciário no Poder Legislativo, mediante a quebra de
um princípio fundamental da República e de
Democracia.

Para que o STF possa melhor examinar a questio juris


em referência, o agravo de instrumento deve ser
provido, nos e limites do art. 316, do RISTF, em ordem
a que o recurso extraordinário se processe,
apreciando-se, no momento oportuno, o seu
cabimento, inclusive à vista das demais razões nele
invocadas.

Tendo em conta que, no presente agravo de


instrumento, se trasladaram as peças do processo
julgado pelo TSE, conforme foi, desde logo, requerido
às fls. 2, pelo agravante, estão nos autos os elementos
necessários ao julgamento de imediato do recurso
extraordinário inadmitido.

Do exposto, om base nos parágrafos 3º e 4º do art.


28, da Lei n. 8.038, de 28 de maio de 1990, dou
provimento ao agravo, tão somente para determinar
a autuação do feito como recurso extraordinário e sua
inclusão em pauta de julgamento, pelo Plenário.

Impossibilitado de reapreciar os fatos e a prova em sede de


Recurso Extraordinário, competia apenas ao STF discutir a tese
jurídica e analisar se a decisão do TSE teria, ou não, afrontado o
texto constitucional.

Em 29 de novembro de 1994, um dia antes de o Supremo


Tribunal Federal julgar o recurso, o Hotel Carlton - o preferido pelas
autoridades da Parahyba quando viajavam ao Distrito Federal -, foi
transformado no “quartel-general” dos correligionários de Lucena.

210
Políticos e jornalistas da província haviam se deslocado à Brasília
para acompanhar o julgamento histórico, entre eles o vice-
governador eleito, José Targino Maranhão, o deputado estadual
recém-eleito, Inaldo Leitão, o advogado Irapuan Sobral Filho, o
deputado estadual Arthur Cunha Lima, o deputado federal José Luís
Clerot e o jornalista Nelson Coelho.68

Não havia um lugar na capital do país - principalmente onde


tivesse uma roda de paraibanos -, que não comentasse o julgamento
do “caso dos calendários”. Era a última esperança, no âmbito do
Poder Judiciário, do mandato do presidente do Senado ser
preservado. Para os eleitores e amigos de Humberto aquele
processo era algo surreal, pois o candidato cassado fora reeleito
com quase meio milhão de votos!

Na tarde de 30 de novembro de 1994 - dia do julgamento do


Recurso Extraordinário, Humberto preferiu trancar-se em sua
mansão oficial, reservada à presidência do Senado, localizada na
Península dos Ministros, no Lago Sul de Brasília. Acompanharia a
sessão do STF ao lado de familiares e do senador eleito, Ronaldo
Cunha Lima. Lucena alimentava a esperança de obter uma vitória
judicial, do contrário, haveria uma frustração muito grande.

No plenário do Supremo Tribunal Federal, os advogados


faziam as últimas anotações e checavam todos os detalhes da
defesa. Luiz Carlos Bertiol e Rafael Mayer tinham uma grande
tarefa: convencer os ministros de que os 130 mil calendários
impressos na Gráfica do Senado, em dezembro de 1993, não eram
peças de propaganda eleitoral, mas apenas um brinde de Ano Novo.

A maioria da assistência do Tribunal era composta de


68
COELHO, Nelson. ESQUINA DO TEMPO. João Pessoa: A UNIÃO, 2002, p. 225/245.
211
funcionários do Senado e de parlamentares. No recinto, estavam
ainda o ex-presidente do Senado, Mauro Benevides, que não
conseguiu se reeleger, o presidente do PMDB, o deputado Luiz
Henrique, além de algumas lideranças políticas paraibanas que
aguardavam com certa apreensão o início da sessão. 69

Dentre as personalidades mais ilustres presentes à sessão


do STF, estava o jurista Saulo Ramos para quem a decisão do TSE
representava uma intromissão indébita do Judiciário em assuntos do
Legislativo. Testemunha ocular do julgamento, o jornalista Nelson
Coelho registrou a ambiência e o ritual da Suprema Corte, naquela
memorável sessão:

No Supremo Tribunal Federal, tudo é imponente, do


prédio à toga dos Ministros, do mármore puro dos
seus salões à veste talar dos seus serventuários. Eu
assistia, pela primeira vez, a uma sessão do pleno do
Supremo Tribunal Federal. Postei-me ao lado de
Clerot, um pouco acima de onde estavam sentados
Arthur Cunha Lima e Inaldo Leitão, local que guardava
uma visão de todo o auditório. Chegou o instante do
início da sessão, lá vinham, em fila, por ordem de
antiguidade na casa, os senhores Ministros, com o seu
Presidente encabeçando o cortejo. Tudo era solene.
Confesso, estava emocionado. Afinal, não é todo dia
que um provinciano, apesar de advogado, participa –
e eu participava – daquele momento histórico,
cumprindo uma missão jornalística – de um ato do
judiciário, na sua esfera maior do país, o qual estava
gerando grande expectativa para os paraibanos.70

Anunciado o julgamento, o ministro Neri da Silveira relatou


69
Ob. Cit., p. 227.
70
Idem.
212
as principais passagens do processo.

Durante a sustentação oral, a defesa de Humberto voltou a


focar a preliminar de intempestividade do recurso interposto pelo
procurador regional eleitoral, Antônio Carlos Pessoa Lins. Rafael
Mayer e Luiz Carlos Bettiol primaram pela técnica. Ambos
certificaram que, no caso, havia se operado o fenômeno da “coisa
julgada, cuja intocabilidade era assente e irrecorrível”.

Aristides Junqueira contestou os advogados de Lucena.


Reafirmou os argumentos do parecer escrito e afirmou que o
presidente do Senado praticara abuso de autoridade.

Em seu voto, o relator repetiu o que afirmara os ministros


do TSE e o parecer do procurador regional eleitoral. O ministro Neri
sugeriu que a preliminar de intempestividade do Recurso Ordinário,
debatida no âmbito do TSE, era matéria infraconstitucional e, por
isso mesmo, impossível de ser apreciada no Recurso Extraordinário.
Silveira defendeu ainda que o apelo sequer devia ser conhecido,
pois a decisão não teria ofendido diretamente o texto constitucional
– princípio da separação dos poderes (art. 2º da Constituição
Federal) -, como afirmaram os advogados do recorrente.

O segundo a votar, o ministro Francisco Resek, acompanhou


o relator. Enquanto expressava a sua convicção, elogiou a trajetória
política do senador paraibano, mas afirmou que não tinha como
fugir do cumprimento da Lei. Resek preferiu seguir a tradição da
Corte e não conheceu do Recurso Extraordinário. Eis o seu voto:

Não por mais estreita convivência pessoal, mas


por haver acompanhado, ao longo dos anos, a vida
pública do Senador Lucena, sei do respeito que inspira

213
ao seu eleitorado aos seus pares; sei do fato de que, a
exemplo de tantas figuras que ilustram a história da
política brasileira, temos aí um veterano que passou
pelas mais importantes funções públicas preservando-
se um homem de recursos modestos, cuja integridade
o impõe ao respeito coletivo. Assim, não por razões
pessoais, mas por aqueles sentimentos que creio que
o Senador Lucena inspira a um número incontável de
brasileiros, a decisão que se me impõe neste caso, ao
acompanhar o Ministro relator, é particularmente
difícil. Fico a indagar-me se terei enfrentado, na
contingência de cumprir meu dever de ofício, ao
tempo em que Procurador da República ou depois de
investido nesta cátedra, uma situação tão penosa.
Acredito que não, mas não tenho alternativa. O voto
do Ministro relator dá ao caso a única solução
possível, lembrando que não temos como, no recurso
extraordinário, desautorizar aquilo que, a respeito,
deliberou o TSE na trilha rigorosa das leis que o
Congresso editou sobre matéria eleitoral.

Acompanho o voto do relator, não conhecendo do


recurso.

Após a declaração do segundo voto contrário a Lucena, o


presidente do PMDB deixou o STF e dirigiu-se à casa do senador,
para prestar solidariedade, em nome do partido.

O terceiro ministro surpreendeu e divergiu do voto do


relator. Ilmar Galvão entendeu que havia ocorrido a coisa julgada,
em razão de o procurador eleitoral ter deixado escoar o prazo da lei,
antes de manifestar o seu inconformismo com a decisão do TRE.
Galvão defendeu que o prazo para o ministério público recorrer
iniciava da publicação do acórdão na própria sessão do TRE, quando

214
lhe foi dada a oportunidade de conhecer, pessoalmente, o inteiro
teor do acórdão. O autor do voto divergente citou ainda um
precedente do ministro Celso de Mello71, no qual admitia “a
alegação de afronta à coisa julgada, por ato jurisdicional, como
fundamento de Recurso Extraordinário por ofensa à Constituição”,
concluiu.

O quarto a votar, o ministro Marco Aurélio de Farias Mello,


manteve aceso debate com o relator do recurso. Mello chamou a
atenção para o que considerava uma obviedade: a assinatura do
procurador regional, no acórdão, não poderia ter outro sentido
senão o de dar-se por ciente da decisão para os efeitos processuais.
Na mesma linha do voto de Ilmar Galvão, Mello entendeu que o TSE
violara a garantia constitucional da coisa julgada.

Quando o ministro Marco Aurélio empatou a votação, a


tensão do ambiente aumentou. O voto proferido por Mello havia
causado um certo frisson entre amigos e correligionários de
Humberto, que se animaram com o resultado parcial. Cinco
funcionários do presidente do Senado deixaram o plenário e se
concentraram numa sala ao lado. Começaram a rezar em favor de
Lucena...

O mineiro Carlos Mário Velloso começou registrando o


respeito e a admiração que nutria pelo senador paraibano: “- Mas
sou um juiz, não posso agir de conformidade com o que sinto mas,
sim, como manda a Lei”, desculpou-se. E votou com o ministro Neri
da Silveira.

O quinto voto foi proferido pelo ministro Celso de Mello. Ele


entendeu que a questão jurídica suscitada pelos advogados do
71
Recurso Extraordinário n. 117.060, oriundo de Minas Gerais.
215
recorrente - a intempestividade do recurso -, se restringia ao âmbito
estritamente processual, o que inviabilizava, ante a ausência de
conflito direto com a Constituição Federal, o próprio conhecimento
do Recurso Extraordinário.

O ministro Sepúlveda Pertence que, na posição de


presidente do TSE, tinha negado seguimento ao Recurso
Extraordinário, iniciou seu voto lamentando o fato de decidir sobre a
sorte de Humberto Lucena. Assim expressou-se:

Senhor Presidente, depois de reler todo o material


recebido dos ilustres Patronos do recorrente e da
Procuradoria-Geral, dispuseram-me a limitar o meu
voto à leitura do despacho mediante o qual, na
Presidência do Tribunal Superior Eleitoral, indeferi o
processamento deste recurso extraordinário. Assim
procedendo e renunciando a maiores considerações
me pouparia de dois dissabores. O primeiro, o de
renovar a sensação penosa que me causara ver-me na
contingência de decidir, no TSE, episódio decisivo da
vida pública do Senador Humberto Lucena, por quem
nutro sincera e declarada estima pessoal...

O ministro Pertence – que, em maio de 1994 esteve na


Parahyba para encerrar conferência sobre reforma eleitoral e
afirmara que o TSE combateria “sem histeria e com seriedade as
transgressões às leis eleitorais” -, não perdeu a oportunidade de
glosar o agravo, formulado pelos advogados de Humberto Lucena:

...O segundo constrangimento a que me pouparia, e


de que me vou poupar, é o de responder às
jocosidades e contumélias de que fui objeto na minuta
de agravo, peça em que, se não impossível, será
extremamente difícil reconhecer o estilo
216
invariavelmente cavalheiresco e sério dos seus dois
ilustres subscritores.

Sepúlveda refutou o ministro Ilmar Galvão. Alegou que o


precedente invocado pelo autor do voto divergente em nada tinha a
ver com o caso concreto. E concluiu:

...É nesse sentido que o Tribunal reconhece que a


coisa julgada pode ser invocada como fundamento de
recurso extraordinário, como violada por outra
decisão judicial, e não apenas pela lei, como resultaria
de uma inteligência literal do preceito constitucional
que a protege.

O ministro Sidney Sanches chegou à conclusão de que o


caso envolvia o conflito entre duas leis especiais, a Lei Orgânica do
Ministério Público e a Lei de Inelegibilidades, ambas com
disposições distintas acerca da forma de intimação e do prazo do
Ministério Público para recorrer. Sanches afastou a alegação de
violação à coisa julgada, “porque se tratava de interpretação de lei
sobre prazo, sobre interposição de recurso, sobre intimação do
Ministério Público. Matéria estritamente legal, infraconstitucional”,
afirmou. Na parte conclusiva do seu voto, demonstrou certo
constrangimento em apreciar o recurso que decidiria a sorte política
do presidente do Senado:

Por todas essas razões, com a devida venia dos


eminentes Ministros MARCO AURÉLIO e ILMAR
GALVÃO, não conheço do recurso, confessando,
também eu, uma certa tristeza, por envolver quem
envolve este processo, com as consequências que o
desfecho lhe possa trazer. Mas temos que cumprir a
nossa missão constitucional, ainda que com fel no
coração. E a Constituição não nos dá o poder de, em
217
recurso extraordinário, modificar decisões do TSE, em
matéria estritamente legal, infraconstitucional. Nem a
Constituição ficou violada, em qualquer das normas e
princípios, apontados no R.E., como ficou dito.

O último a votar, o ministro Moreira Alves, também não


reconheceu, no acórdão do TSE, questão constitucional a ser
decidida em sede de Recurso Extraordinário. E argumentou:

Como já salientei, a questão relativa à intimação para


a configuração da ocorrência do dies a quo é questão
infraconstitucional, e só diretamente é que se poderá
pretender se caracterize ofensa à Constituição.

O mesmo sucede quanto à alegação de cerceamento


de defesa em decorrência de indeferimento de perícia,
com relação ao qual se pode até sustentar que esse
indeferimento implica interpretação dos fatos
alegados pelo Juiz, para verificar-se se foi ele
desarrazoado, ou não, o que não daria margem
sequer a recurso especial.

Ainda quando assim não se entenda, a questão de


cerceamento de defesa se situa no terreno
infraconstitucional, só indiretamente se podendo
configurar ofensa à Constituição.

(…)

O esforço dos advogados de Lucena foi em vão, prevaleceu o


poder de argumentação do Ministério Público, representado na
pessoa do procurador Aristides Junqueira Alvarenga.72 O acórdão

72
O mesmo que havia oferecido a denúncia contra o ex-presidente Fernando Collor de Melo,
em 1992.
218
do STF foi longo, 114 páginas. Não podia ser diferente. Em extenso
voto, as teses discutidas e os fundamentos jurídicos da polêmica
questão foram assim resumidos pelo relator:

EMENTA: - Recurso extraordinário. Matéria eleitoral.


Candidato ao Senado Federal. Registro. Cassação.
Inelegibilidade. Propaganda eleitoral. Abuso de poder
de autoridade. Lei Complementar n. 64/90, art. 22,
XIV. 2. Decisão do Tribunal Superior Eleitoral que
afastou a alegação do ora recorrente de
intempestividade do recurso ordinário interposto pelo
Ministério Público Eleitoral contra acórdão de Tribunal
Regional Eleitoral, ao julgar improcedente a
representação. Intimação do Ministério Público.
Forma. Lei Orgânica do Ministério Público (Lei n.
8.625, de 12.2.1993), art. 41, IV. Intimação pessoal.
Inocorrência da intimação, para os efeitos legais, com
a mera assinatura do órgão do Ministério Público
aposta no acórdão. Matéria decidida pelo Tribunal
Superior Eleitoral, com base na interpretação dada à
legislação infraconstitucional e à vista dos fatos. Não
cabe reapreciar esse ponto em recurso extraordinário,
por não se configurar questão constitucional.
Constituição, art. 102, inciso III. Súmula 279. Alegação
de ofensa à coisa julgada que não é, desse modo,
suscetível de acolhida. A ofensa à Constituição, para
servir de base ao recurso extraordinário, há de ser
direta e frontal, e não verificável por via oblíqua.
Precedentes do STF. 3. Calendários de 1994, com
fotografia do candidato, impressos na Gráfica do
Senado Federal, em grande volume, e distribuídos ao
eleitorado do Estado onde o parlamentar é candidato
a vaga de Senador. Decisão do Tribunal Superior
Eleitoral que afirmou configurar-se, no caso concreto,
abuso de poder de autoridade e de propaganda

219
eleitoral ilícita, que se realizou nas instâncias
ordinárias, à vista dos fatos, provas e da legislação
infraconstitucional. Inviabilidade de reapreciação da
matéria em recurso extraordinário. Constituição, art.
102, III, e Súmula 279. 4. Alegação de cerceamento de
defesa insuscetível de acolhimento. 5. Não se
caracteriza, na hipótese, a alegada interferência
indevida do Poder Judiciário em matéria 'interna
corporis' do Poder Legislativo. O acórdão não anula
sequer ato algum do Senado Federal referente à
organização e funcionamento da Gráfica, nem quanto
às denominadas quotas anuais utilizáveis pelos
parlamentares, de acordo com normas internas da
Casa Legislativa. No caso, o Tribunal Superior Eleitoral
julgou a ação do recorrente, ao distribuir ao
eleitorado calendários com fotografias, impressos na
Gráfica do Senado Federal, concluindo que ocorreu
abuso do poder de autoridade e propaganda vedada,
tendo como aplicável à hipótese o art. 22, XIV, da Lei
Complementar n. 64/90. A Justiça Eleitoral, no
exercício de sua competência, reconheceu, diante dos
fatos, que o recorrente descumpriu a lei específica.
Direitos políticos, legislação eleitoral. Normalidade e
legitimidade das eleições. Constituição, art. 14, §9º.
Não cabe, na espécie, a alegação de ofensa ao art. 2º,
da Constituição. 6. Recurso extraordinário não
conhecido.

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os


Ministros do Supremo Tribunal Federal, em sessão
Plenária, na conformidade da ata de julgamentos e
das notas taquigráficas, por maioria de votos, não
conhecer do recurso.

Brasília, 30 de novembro de 1994.

220
OCTÁVIO GALLOTI – PRESIDENTE
NERI DA SILVEIRA – RELATOR

Os longos e exaustivos debates, que duraram cerca de cinco


horas, foram sintetizados pela pena do jornalista Nelson Coelho:

Na Corte Suprema, cuja composição é de onze votos,


naquela sessão, foram nove os votos proferidos. Dois
Ministros, Marco Aurélio e Ilmar Galvão, votaram pelo
provimento do Recurso Extraordinário, os outros dez
Ministros votaram contra, negaram provimento ao
supracitado recurso. Mesmo votando contra o
Recurso Extraordinário, os ilustres Ministros
elogiaram o comportamento ético de Humberto
Lucena, fizeram todos uma verdadeira apologia sobre
a dignidade e a seriedade do Presidente do Senado
Federal, entretanto diziam que, da decisão do Tribunal
Superior Eleitoral, não cabia a interposição de Recurso
Extraordinário. E nós, os paraibanos, presentes, não
entendíamos nada, absolutamente nada. Ora dizia um
Ministro: 'O Senador Humberto Lucena é um homem
sério e digno, entretanto...nego provimento ao
recurso'. Para o leigo, parecia contraditório.

Houve um intervalo na votação. Clerot foi conversar


como o Ministro Galvão e com o ex-Consultor Geral da
República, doutor Célio Silva. O caso estava perdido.
Reiniciada a sessão, os votos proferidos por alguns
Ministros eram quilométricos. Entre um voto e outro,
doutor Saulo Ramos, advogado de Humberto Lucena,
veio conversar com Clerot, Inaldo Leitão, Irapuan
Sobral Filho e com este jornalista. E agora, que será
do mandato de Humberto Lucena? Frio ou cauteloso,
Saulo Ramos dizia que tinha perdido aquela batalha,
mas a causa principal ainda poderia triunfar. Eu só

221
imaginava, naquele instante, olhando nos olhos de
alguns extraordinários peemedebistas, históricos e
autênticos, que trabalharam durante anos e anos pelo
engrandecimento do PMDB e, de uma hora para
outra, viram uma sentença judicial, vista por muitos
como duvidosa, postegar um direito surgido das urnas
de maneira tão insofismável. Avaliava a frustração
generalizada entre os adeptos de Humberto Lucena,
de Cabedelo a Cajazeiras.73

O STF tinha sido atingido pela “síndrome de Pôncio Pilatos”:


para não interferir na decisão do TSE, lavou as mãos quanto à sorte
de Humberto Lucena. Os ministros do Supremo tomaram uma
“decisão penosa” em desfavor do presidente do Senado, um
verdadeiro “enterro de luxo”, com direito a todas as honras
prestadas ao senador paraibano!

Não havia nada mais a ser feito no âmbito do Poder


Judiciário: Roma locuta est, causa finita est!74

73
Idem. Registra ainda Nelson Coelho que, ao dirigir-se à residência de Humberto Lucena,
após o julgamento do STF, na companhia do advogado Irapuan Sobral Filho e o recém-eleito
deputado estadual, Inaldo Leitão, este, inconformado com a decisão, afirmou revoltado: Este
Supremo Tribunal Federal não aguenta cinco minutos de CPI. Ah, se eu fosse Deputado
Federal! Cinco anos depois, o Senado criaria a Comissão Parlamentar de Inquérito n. 118,
visando apurar denúncias de irregularidades praticadas por integrantes de tribunais
superiores, tribunais regionais (dentre estes, o Tribunal Regional do Trabalho da Paraíba, pela
acusação de “emprego irregular de recursos públicos, superfaturamento, nepotismo e outras
ilegalidades) e tribunais de justiça. O STF ficaria de fora da CPI.
74
Expressão latina frequentemente citada como argumento para o moderno dogma do Vatica-
no da infalibilidade do Papa. A origem da expressão advém de um dos Sermões de Santo
Agostinho e indica a autoridade final da Sé Apostólica. A paráfrase é aplicada ao STF, como úl-
tima instância do Poder Judiciário, indica que, após o seu pronunciamento, a causa dá-se por
encerrada.

222
* * *

Foto: O plenário do STF, enquanto julgava o “caso Humberto Lucena”


(Fonte: Jornal O NORTE, edição de 1994. Foto: O plenário do STF, enquanto
julgava o “caso Humberto Lucena” (Fonte: Jornal O NORTE, edição de
1994.

223
SOLIDARIEDADE CORPORATIVA
Durante o julgamento no STF, a cada cinco minutos, Lucena
recebia telefonemas de assessores que acompanhavam a sessão. No
final da tarde, quando o placar já acusava dois votos desfavoráveis
ao senador, alguns paraibanos que estavam no plenário ficaram
desanimados com a votação e decidiram ir visitar Humberto.
Temiam que ele entrasse em depressão! Àquela altura dos
acontecimentos, Lucena já começava a receber em sua residência, a
visita dos amigos e companheiros de partido. O clima era de
surpresa e de decepção!!

Não demorou muito para que a residência oficial do


presidente do Senado ficasse “coalhada” de correligionários. Além
dos amigos de Lucena, havia a presença maciça de jornalistas das
grandes redes de comunicação do país – GLOBO, BANDEIRANTES,
MANCHETE e RECORD -, que faziam a cobertura do evento.

O ambiente era uma tristeza só! Sem a mínima condição de


conceder entrevistas e sem qualquer ânimo para tratar
pessoalmente com os repórteres, Humberto incumbiu ao jornalista
Nelson Coelho a missão de transmitir aos jornais e emissoras de
televisão a seguinte mensagem: “- Decisão judicial não se discute,
cumpre-se.” Nelson desempenhou a missão de forma satisfatória.
Por inúmeras vezes repetiu o jargão jurídico!!...

Já próximo ao fim da noite, o máximo que repórteres e


jornalistas conseguiram arrancar de Humberto Lucena foi uma foto
que, depois, foi publicada na revista VEJA. Nela, o senador apareceu
com um copo de whisky nas mãos, e Nelson Coelho, ao telefone.

À medida que o tempo passava, aumentava a peregrinação


224
de senadores. Mais do que prestar solidariedade a Humberto
Lucena, a reunião do “alto clero do parlamento nacional” servia
para traçar estratégias jurídicas e políticas. Os grandes medalhões
do Senado - José Sarney, Jarbas Passarinho, João Calmon, Martins
Rodrigues, Júlio Campos, Alfredo Campos, Ney Maranhão, Pedro
Simon, Coutinho Jorge, Élcio Álvares, Flaviano Mello, Garibaldi
Alves, Mansueto Lavor, Mauro Benevides, Ronan Tito, Jutahy
Magalhães, Gerson Camata, Saldanha Derzi, dentre outros -,
75
discutiam as providências para salvar Lucena, de preferência, algo
que simbolizasse uma retaliação ao Poder Judiciário.

Misturado com o “alto clero”, alguns parlamentares mais


exaltados pertencentes ao “baixo clero” queriam confrontar os
ministros do TSE e do STF. Não faltaram discursos ardorosos e
propostas jurídicas as mais mirabolantes, advogando medidas
duríssimas em represália à decisão da Justiça Eleitoral, como registra
o jornalista Nelson Coelho:

O clima era nitidamente de confronto. As providências


sugeridas iam desde modificações profundas na Lei
Eleitoral até a extinção, pura e simples, da Justiça
Eleitoral. E estas sugestões eram sempre
acompanhadas pela disposição dos ilustres Senadores
de abrirem, ainda naquela noite, o Senado Federal e
votar uma legislação que servisse de represália.76

Mais cedo ou mais tarde, o Congresso Nacional haveria de


encontrar uma saída para preservar o mandato de Humberto.

No dia seguinte, Humberto Lucena experimentou a maior


ressaca moral de sua vida. Por alguns dias, ele que havia acreditado
75
Depoimento do jornalista Nelson Coelho, Ob. Cit., p. 235.
76
COELHO, Nelson. ESQUINA DO TEMPO, p. 236.
225
na vitória judicial no STF até o último minuto, caiu em depressão. A
tristeza do senador foi testemunhada por parentes e amigos. 77 O
advogado e correligionário Delosmar Mendonça quis prestar-lhe
solidariedade. Em vão. Os familiares de Humberto informaram que
o senador estava prostrado numa rede, sem condição de receber
visitas.78

No Parlamento, repetiu-se o que acontecera com a decisão


anterior do TSE: de um lado, uma avalanche de críticas ao STF; de
outro, elogios à decisão dos ministros da Suprema Corte. O
julgamento do Recurso Extraordinário tornou-se a principal notícia
dos jornais de Brasília, São Paulo, Rio de Janeiro.

Na Parahyba, foram muitos os artigos escritos, todos


comentando a decisão do STF, com destaque para o escrito pelo
jornalista Agnaldo Almeida:

40 anos cassados

Quarenta anos de vida pública foram cassados ontem


à noite pela Corte Suprema do Brasil. Ministros
vitalícios e reconhecidos no país como juristas acima
de qualquer suspeita decidiram que o senador
Humberto Lucena não tinha mais condições de exercer
o mandato para o qual foi eleito. Detectaram em suas
atitudes o vício da mau-versação dos dinheiros
públicos. Do abudo do poder.

Quarenta anos de atividade política terminam no


tapetão. De nada valeram os anos seguidos de
resistência democrática, que o senador viveu, lutando
77
Depoimento do advogado Delosmar Mendonça prestado ao autor.
78
Depoimento do advogado Delosmar Mendonça prestado ao autor, em 02 de dezembro de
2016.
226
inclusive para restabelecer a força do Judiciário. Onde
estavam esses ministros, que condenaram Lucena,
naquelas horas difíceis em que ele se expunha ao
arbítrio dos militares? Estavam nas ruas defendendo
as liberdades? Ou estavam rondando a periferia dos
gabinetes no Poder?

Quarenta anos não são quarenta dias. Na história do


Brasil, seja ela escrita por quem quer que seja,
Humberto Lucena sempre terá lugar. Qual a distinção
que a historiografia brasileira dará a essa equipe que
hoje compõe o Supremo? Quantas vezes estes juízes
foram submetidos ao julgamento popular? Será por
isso que não respeitam o resultado das urnas?

A cassação de Humberto e sua inelegibilidade por três


anos pode até ser um passaporte para o Judiciário,
finalmente, entrar em sintonia com opinião pública.
Se jogou para a plateia, o STF não poderia ter tido um
desempenho melhor. Se se dobrou aos interesses
maiores do poder econômico, não poderia ter agido
melhor.

Cassado, humilhado, expurgado da vida pública,


ainda assim, o senador Humberto Lucena, pela
história que construiu ao longo de sua vida, será
sempre maior do que este julgamento. Veredito
mesmo foi o de 3 de outubro, quando ele conseguiu o
apoio de mais de meio milhão de paraibanos, sem
distribuir um só real. Distribuiu 500 calendários, sem
datas marcadas e sem querer prejudicar ninguém.
Dirigia uma mensagem de Natal, do mesmo jeito que,
no tempo da ditadura, dirigia mensagens de
confiança ao Judiciário.

227
Decisão do Supremo não se discute. Se lamenta.79

Ao fechar as portas para Humberto e não apreciar o mérito


da questão, o STF deixava uma dúvida jurídica que ainda
permanece: quem teria julgado melhor, o TRE paraibano, que
conhecia os fatos mais de perto, ou o STF, que sequer chegou a
apreciar a matéria?

O fato de a decisão ter tido dois votos divergentes


aumentou entre os parlamentares a convicção de que Humberto
Lucena fora vítima de um erro judiciário. Essa tese foi reforçada pelo
fato de dois dos ministros - Pertence e Veloso -, já estarem
comprometidos com seus próprios votos, proferidos no TSE.

O Jornal FOLHA DE SÃO PAULO reverberou a manutenção


da cassação de Humberto Lucena sob o prisma de um “um marco
na tradição política nacional” e “um pequeno passo no processo de
moralização do Parlamento”. Eis o editorial:

Os calendários de Lucena

A condenação pela Justiça de um cidadão que violou a


lei constitui evento corriqueiro em qualquer Estado de
Direito. No Brasil, porém, se o cidadão é presidente do
Congresso e a lei é a que proíbe o uso de recursos
públicos em campanha eleitoral, o evento assume
ares de novidade e suscita mesmo um coro de reações
indignadas. De fato, a cassação da candidatura e a
inelegibilidade por três anos de Humberto Lucena,
devido ao uso da Gráfica do Senado com fins
eleitorais, chegam a representar um marco na
tradição política nacional. Práticas desse tipo, da

79
ALMEIDA, Agnaldo. 40 anos cassados. Jornal O NORTE, edição de 01.12.1994, p. 8.
228
parte de figuras públicas, costumeiramente
acabavam, no país, envoltas num manto de
impunidade.

A própria reação de diversos senadores é reveladora


do caráter inovador da condenação. Munidos de um
corporativismo irrefreado, pares d Lucena
reclamaram de 'intromissão' do Judiciário no
Legislativo – como se a independência dos Poderes
colocasse congressistas acima da lei.

Um senador, aliás, chegou ao cúmulo de protestar que


a pena era forte demais porque Lucena não saberia
estar cometendo crime com a impressão de seus
calendários. Juridicamente descartável, essa
desavergonhada alegação só faz sugerir que a prática
é tão comum há tanto tempo que, para alguns,
adquiriu ares de deturpada normalidade.

Outro comentário que surge à condenação de Lucena


é exatamente o de que ele estaria pagando sozinho
por algo que muitos fizerem. É realmente uma
injustiça, não com Lucena, mas com os brasileiros que
pagam os impostos desviados para fins eleitorais
privados.

A cassação da candidatura de Lucena representa


apenas um pequeno passo no processo de
moralização do Parlamento. Depende, para ter
sequência, de uma intensa fiscalização e de novas
condenações sempre que for necessário. Mas não
deixa de ser um sinal animador de que as novas
demandas da sociedade brasileira, por legalidade e
ética na esfera política, talvez tenham mesmo vindo

229
para ficar.80

No mesmo jornal, o comentarista político Jânio de Freitas se


reportou à solidariedade prestada pelos senadores a Humberto
Lucena. Disse ele:

Os solidários

A crise institucional que o Senado procura criar, na


tentativa de salvar a anulada reeleição do senador
Humberto Lucena, é a reação dos culpados impunes.
Os numerosos senadores que incitam o confronto do
Congresso com o Judiciário estão na situação de
devedores de Lucena, conhecido criador de privilégios
e favores para os colegas e suas famílias, ou de
praticantes do mesmo crime eleitoral que o condenou,
porém não punidos pela Justiça.

O argumento dos senadores indignados, segundo o


qual a punição de Lucena significa interferência do
Poder Judiciário no Poder Legislativo, vai além da
improcedência factual: entra na desonestidade.

O réu condenado, sucessivamente, pela Justiça


Eleitoral e pelo STF foi o candidato que, embora eleito
em 3 de outubro, cometeu ato impeditivo do exercício
do mandato pretendido. O atual mandato de Lucena,
do qual ele se aproveitou para imprimir na gráfica do
Senado calendários com propaganda do seu nome,
não foi atingido pela decisão judicial. Sequer foi
objeto de julgamento. Lucena continua senador até o
fim do atual mandato e até presidente do Senado.
Estes são os fatos.

80
Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, edição de 02.12.1994, in Os calendários de Lucena.
230
Mas os senadores excitados não se limitam à
deliberada confusão entre o senador Lucena e o
candidato Lucena. Escamoteiam que o candidato foi
julgado segundo a Lei Eleitoral que estes mesmos
senadores aprovaram em 93. Lei destinada à
aplicação pelo Judiciário, sem que isso represente
interferência de um poder no outro. O candidato
eleito Humberto Lucena foi julgado, portanto,
segundo as infrações e penas deliberadas pela
Câmara e pelo Senado. A improcedência da reação
dos senadores não equivale, no entanto, a considerar
correto o comportamento da Justiça Eleitoral.
Roseana Sarney, Alexandre Costa, Edson Lobão, Ney
Maranhão e outros beneficiaram-se,
comprovadamente, da mesma infração que condenou
Lucena. Continuam todos portadores dos futuros
mandatos obtidos nas últimas eleições. A anulação da
eleição de Lucena não torna mais apropriada a
palavra justiça no nome da Justiça Eleitoral.81

O JORNAL DO BRASIL viu na decisão do STF o primeiro


passo para aumentar a credibilidade na democracia brasileira:

Um Caso Exemplar

O Supremo Tribunal Federal recusou o recurso


extraordinário do senador Humberto Lucena e, com
isso, manteve a impugnação, pelo STE, da sua
candidatura. O presidente do Senado incorreu em
flagrante de ilegalidade e implantou um marco no
caminho da evolução política brasileira, desde que
não se fique num caso único. Tudo que contribuir para
dar aos políticos a noção de que novo tempo impõe
novo comportamento será bem-vindo, pois são eles o
81
Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, edição de 03.12.1994.
231
grande obstáculo à regeneração da vida pública.

O senador Humberto Lucena foi o primeiro, mas um


apenas é insuficiente para ampliar a credibilidade da
democracia tão desacreditada pelo fisiologismo e pela
fraude eleitorais. A punição exemplar de outros
políticos profissionais ajudaria o eleitor a entender
melhor a responsabilidade do voto e a ensinar os
políticos a dignidade da vida pública. A democracia
não cai do céu: brota das instituições e depende tanto
dos políticos quanto dos eleitores.

É exemplar o caso Lucena. Exerceu dois mandatos de


deputado Estadual na Paraíba, quatro de deputado
federal e dois de senador. Ao disputar a reeleição, foi
apanhado pelo braço da lei eleitoral no exercício da
presidência do Senado. Apesar da veemente reação
retórica a que se entrega todas as vezes em que é
lembrado como distribuidor de cargos públicos, a sua
imagem política se fundiu com a de mecenas de
amigos e parentes. Quando o sobrenome é o mesmo,
considera mera coincidência. Tanto negou que acabou
acreditando.

O fato é que 18 funcionários do Congresso são


parentes seus, entre eles três filhos, cinco sobrinhos e
o marido de sua parenta. E sem relacionar a
paternidade de nomeações que lhe são atribuídas no
âmbito das relações políticas tecidas com troca de
favores. A própria maneira de argumentar de Lucena
é característica do político que ainda não
compreendeu que o sentido da vida pública não está
em fazer favores por votos, mesmo quando os
eleitores estão em estágio pré-democrático.

O fato determinante da impugnação da última


232
candidatura foi a impressão, pela gráfica do Senado,
de 130 mil calendários com o seu retrato (para o
eleitor não o esquecer), e a distribuição mediante
convênio entre o Senado e os Correios. A lei eleitoral
proíbe a participação de órgãos públicos na
campanha eleitoral. Não surpreende que o tipo
político que Lucena tão bem representa tenha
pretendido esquivar-se da cassação alegando que o
calendário foi impresso e distribuído no final do ano
passado, quando ainda não era candidato. Claro, o
ano da eleição começaria logo depois. A intenção de
candidatar-se estava latente: ninguém distribui
sequer cartões de boas-festas a um círculo tão
grande, no mesmo estado, sem estar de olho no voto.
A decisão do STF foi acachapante: oito votos a dois,
entre outros motivos por não configurar matéria
constitucional nem caracterizar cerceamento de
defesa. O senador se confessou surpreendido pela
decisão. Já o eleitor se surpreendeu também, mas
agradavelmente, pelo motivo contrário. O próprio
Lucena se lembrou de dizer que nada havia a declarar:
‘Decisão do Supremo não se discute – cumpre-se.’
Cumpra-se, pois. E que não fique nisso.82

A primeira manifestação pública de Humberto Lucena após


a decisão do STF foi expressar a intenção de esgotar todos os meios
legais disponíveis para resgatar o seu mandato: “ - Estou
examinando com os meus advogados outros aspectos jurídicos da
matéria, para continuarmos a demanda judicial”.

Em nota divulgada pela imprensa, Lucena manifestou sua


indignação e revolta: “ - Se o TSE cometeu um lamentável equívoco,
o STF, amarrado à velharia processual do recurso extraordinário, não
82
JORNAL DO BRASIL, edição de 2.12.1994, p. 10.
233
me julgou, pois não entrou no mérito da questão, por entender que
não se tratava de matéria constitucional...”. Eis o teor da nota: 83

NOTA À IMPRENSA

Ao manifestar minha indignação e revolta com a


cassação do registro de uma candidatura vitoriosa
nas urnas, faço minhas as palavras do Dep. Luiz
Eduardo Magalhães, ao dizer que 'respeito a Justiça,
mas não concordo com a sua decisão.'

Se o TSE cometeu um lamentável equívoco, o Supremo


Tribunal Federal, amarrado à velharia processual do
recurso extraordinário, não me julgou, pois não
entrou no mérito da questão, por entender que não se
tratava de matéria constitucional, embora dois
eminentes Ministros admitissem o contrário.

Tenho absoluta convicção de que se o Supremo tivesse


tomado conhecimento do recurso o resultado seria
outro.

Agora, resta-me agradecer a solidariedade que venho


recebendo de todo o País e, de um modo especial, a
Paraíba, cujo povo não se conformar com a anulação
dos quase quinhentos mil votos que me reelegeram
Senador; agradecer a solidariedade dos meus
companheiros do Senado e da Câmara, que estão
numa verdadeira vigília cívica de caráter institucional,
em defesa das prerrogativas e atribuições do
Congresso Nacional.

Estou examinando como os meus advogados outros

83
Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, edição de 03.12.1994, in “PMDB e PFL já disputam vaga de
Lucena.
234
aspectos jurídicos da matéria, para continuarmos a
demanda judicial.

E, afinal, só me resta protestar contra a estarrecedora


entrevista do candidato Raimundo Lira, que derrotei
na eleição para o Senado Federal, que agradeceu a
Deus e considerou justa a decisão do Supremo.84

Humberto voltaria a tratar do tema em outro artigo, agora


em tom de desabafo:

O respeito e a discordância
Senador Humberto Lucena (*)

Em nota à imprensa, dia 02 último, apropriei-me das


palavras do Deputado Luiz Eduardo Magalhães, para
perfilar minha indignação e revolta diante da
cassação de minha candidatura, afirmando que
'respeito a Justiça, mas não concordo com a sua
decisão'. Afinal, os equívocos do Poder Judiciário, em
suas duas instâncias, representadas pelo Tribunal
Superior Eleitoral e pelo Supremo Tribunal Federal,
neste caso, saltam aos olhos.

Logo, ao primeiro momento em que fui perguntado


sobre a decisão do STF, não titubiei em usar o lugar
comum de que esta era para ser cumprida e não
discutida. Pois esta posição, antes de ser algo batido,
representa, mesmo, a própria essência da força que
deve emanar de um poder, cuja expressão e
fundamentalidade está justamente na condição de ele
ter suas decisões postas em prática, sem
contestações, para que se complemente o equilíbrio e
a harmonia democrática dos poderes da República.
84
Jornal A UNIÃO, edição de 03.12.1994, p. 3.
235
Entretanto, esse respeito ao Poder Judiciário, em
particular à sua instância máxima, não poderia nunca
fazer-me calar, como se concordasse em que
realmente tivesse cometido qualquer crime de caráter
eleitoral, pelo fato de ter, como muitos dos meus
pares do Congresso e eu, vimos fazendo há tempos,
publicado um calendário de fim de ano, para
comunicar-me e confraternizar-me com meus
eleitores e amigos, da Paraíba e do Brasil.

Por mais repetitivo, devo dizer que, em nenhum


momento, se cogitou com tais calendários de intervir
em proveito eleitoral próprio. Em bom senso, não se
poderia jamais considerar assim uma atitude que, do
ponto de vista da administração e normatização da
conduta dos membros do Congresso, e, no caso,
especificamente do Senado Federal, estava
devidamente embasada por ato soberano de uma
mesa diretora. Este o grande equívoco do TSE.

Usando das prerrogativas de qualquer cidadão


brasileiro, busquei os caminhos da retificação,
dirigindo-me ao STF, na forma legal. Esperava,
evidentemente, que aquela Corte viesse a tomar
conhecimento do recurso interposto por meus
advogados. E tenho, como já disse, absoluta convicção
de que, se o Supremo tivesse agido assim, o resultado
teria sido outro.

Pois bem. Agora, não adianta chorar sobre o leite


derramado. E resta-me agradecer do fundo do meu
coração, a solidariedade que tenho recebido de todos
os recantos do país, da parte dos que realmente me
conhecem e têm acompanhado os quarenta anos de
minha vida pública, na qual, me orgulho de dizer,
nunca se encontrou um viés sequer, capaz de manchar
236
a sua probidade e permanência de sua ação em
defesa dos benefícios e das saídas progressistas, para
o Brasil, para o Nordeste e a Paraíba.

Do mesmo modo, devo dizer do meu agradecimento


aos meus companheiros do Senado e da Câmara, que
continuam em verdadeira vigília cívica de caráter
institucional, em defesa das prerrogativas e
atribuições do Congresso Nacional.

Mas, como não poderia deixar de ser, tenho de


manifestar, sobretudo, o meu infinito agradecimento,
de um modo todo especial, ao povo da Paraíba. Um
povo que hoje não pode conformar-se de modo algum
com uma decisão judicial que lhe anula uma escolha
eleitoral insofismável, de quase quinhentos mil votos
que me reelegeram Senador.

Não obstante, continuo, como é do meu direito, a


examinar juntamente com os meus advogados os
aspectos jurídicos alternativos cabíveis, para
continuarmos a demanda judicial. E, para isso, lutarei
até o fim, continuando a asseverar que, antes de tudo
e de todos, tenho a certeza de que, por fim, se imporá
a Justiça Divina, encontrando-se uma forma
reparadora da referida decisão judicial.

Enfim, Deus e o povo são a quem devo curvar-me. A


ele, abrindo minha alma de ser humano, com suas
virtudes e limitações. Ao povo, para que continue,
como fez nas urnas e em suas manifestações de apoio,
a julgar-me. Certo de que não há como colocar-me no
rol dos que, representando interesses de grandes
grupos econômicos, têm usado a vida pública apenas
para servir-se e não para servir verdadeiramente ao
povo de sua terra, que os elegeram justamente para
237
isso.

Essa gente, a quem falta o escrúpulo próprio dos


grandes homens, e que são capazes de
estarrecedoramente se posicionar hoje, agradecendo
a Deus e considerando justa a decisão do Supremo
Tribunal Federal. Como o adversário Raimundo Lira, a
quem derrotei na última eleição, colocando-se, desse
modo, contra a honra dos paraibanos, que dele
esperavam outro comportamento, que não esse.

Mas, desabafos à parte, devo dizer que continuo firme


em meu propósito de fazer, com redobrado denodo, o
que sempre fiz: manter-me na política, pondo a
serviço do meu partido toda a minha experiência e
minha dedicação, para, junto com o povo,
construirmos as bases de uma nação renovada e
desenvolvida, em termos políticos e
socioeconômicos.85

Nos círculos políticos, jurídicos e entre os advogados que


atuavam nos Tribunais superiores em Brasília, ninguém acreditava
na decisão do TSE. Quando ela foi confirmada pelo STF, houve uma
reprovação geral. Poucos foram os advogados e juristas que
emitiram declaração sobre o “caso dos calendários”. Alguns, por
serem juízes, preferiram o silêncio, porque poderiam vir a julgar
casos semelhantes. Outros, por serem amigos dos ministros do TSE
e do STF.

Para o jurista Saulo Ramos, a decisão do STF apenas


confirmava o erro “espetacular e espetaculoso”, cometido pelo TSE.
Ramos criticou a Suprema Corte por não ter exercido o seu papel
constitucional de guardião dos direitos e garantias fundamentais do
85
LUCENA, Humberto. TEMAS EM FOCO. Brasília: Ed. Senado Federal, 1995, p. 265/266.
238
cidadão, quando não admitiu conhecer de inconstitucionalidade
indireta à Constituição. Afirmou:

Anistia no Congresso – Empate dos Inocentes

No caso do Senador Humberto Lucena, o Supremo


Tribunal Federal está inocente, tanto quanto o
Presidente do Congresso Nacional. Apesar de o
resultado registrar votos em dois sentidos, houve, na
verdade, um empate de inocentes. A palpitaria, que se
seguiu ao julgamento do recurso extraordinário, deu à
decisão do augusto tribunal a interpretação errada,
considerando-a uma espécie de confirmação da pena
imposta pela instância inferior, esta, sim, autora de
um erro judiciário espetacular e espetaculoso.

Na processualística brasileira, o recurso


extraordinário, depois de 1988, ficou mais estreito do
que era antes. Em matéria eleitoral, o estreitamento é
total, porque a Cidadã declara serem irrecorríveis as
decisões do Tribunal Superior Eleitoral, salvo as que
contrariem a Constituição (art. 121, parágrafo 1º).
Para contrariar a Carta da República, a
inconstitucionalidade, segundo jurisprudência do STF,
deve ser direta e frontal. Inconstitucionalidade
indireta não merece a guarda do augusto.

Isso quer dizer o seguinte: ao Supremo Tribunal


Federal foi confiada a guarda da Constituição (art.
102), somente da Constituição, mas não a do direito
do cidadão brasileiro, que sofre lesão em suas
garantias fundamentais por interpretação errônea de
fatos contra ele irrogados nos tribunais inferiores, ou
quando a inconstitucionalidade resultar de aplicação
de leis infraconstitucionais, porque, em ambas as

239
hipóteses, será indireta.

Vou dar logo um exemplo para evitar o tédio de quem


conseguiu ler este artigo até aqui: somente a pessoa
casada pode ser processada e condenada por
adultério, uma pessoa solteira, o Supremo Tribunal
Federal não pode tomar conhecimento do erro,
mesmo se a vítima invocar o devido processo legal, o
amplo direito de defesa, a falta de certidão do
inexistente casamento, porque tudo seria reexame da
prova, haveria a proibida valoração dos fatos,
somente possível nas instâncias ordinárias. Pode, a
pessoa solteira, espenear à vontade. Fica sendo
adúltera pelo resto da vida, porque o direito lesado
não configura inconstitucionalidade direta ao texto da
cidadã. A inconstitucionalidade é direta.

Assim ocorreu com o Senador Humberto Lucena.


Usou, como quase todos os Senadores desta
República, a Gráfica do Senado para imprimir e
distribuir calendários, no ano de 1993, quando não
era candidato. E o tal do calendário continha
mensagem de otimismo para o ano próximo, dirigida
aos brasileiros e não, apenas, aos paraibanos.
Nenhuma palavra sobre eleições.

Todos sabem que a lei eleitoral pune abusos do poder


econômico e do poder de autoridade quando
praticados em favor de candidato, sendo claro,
intuitivo, simples, que é preciso haver candidatura e
eleições para a configuração do delito, tanto como é
preciso haver casamento para a imputação do
adultério.

O Senador tornou-se candidato à reeleição no ano


seguinte, escolhido pelo seu partido em março e
240
registrado em junho. Logo não era candidato quando
distribuiu o calendário.

Apesar de absolvido no Tribunal Regional do Estado,


mais perto dos fatos e senhor de melhores condições
para avaliar a influência deles sobre a normalidade do
pleito futuro, foi o Senador condenado no TSE, que
acabou por entender ter havido propaganda eleitoral,
mesmo antes de o acusado ser candidato, porque veio
a sê-lo depois.

Voltando à história do adultério, deu-se a condenação


porque a pessoa solteira, que andou namorando
antes de casar-se, contraiu matrimônio depois do
passo em falso, que, cá para nós, não seria tão em
falso para um celibatário, mesmo se a consequência
fosse aquela história de que a moça ficou grávida um
pouco só.

No Supremo Tribunal Federal, pela via do recurso


extraordinário, tais circunstâncias não podem ser
apreciadas. Dai o não conhecimento do recurso,
profundamente lamentado no voto do Ministro
Francisco Resek ao declarar errada, no seu modo de
ver, a decisão do TSE e lamentar, angustiadamente,
não poder corrigí-la, por estar, como juiz, preso à
técnica recursal imposta pela jurisprudência da Casa.
É verdade que os Ministros Ilmar Galvão e Marcos
Aurélio tentaram acordar a Casa para a gravidade do
caso, procurando fazer com que a jurisprudência
desse um passo à frente. Mas ficaram vencidos.
Alguns filósofos entendem que a eternidade (ou os 40
séculos) das pirâmides do Egito deve-se ao fato de que
elas são estáticas. Teriam ruído se tentassem avançar.
O Ministro Marco Aurélio lutou bravamente pelo
conhecimento do recurso a partir da evidência de que
241
houvera lesão ao direito constitucional da coisa
julgada. Esse jovem magistrado, em que pese sua
inexperiência quando começou naquele augusto
Tribunal, inegavelmente tem o raciocínio aberto e, a
cada dia mais estudioso e culto, demonstra louvável
tendência a batalhar pela evolução e modernização
das pirâmides, ao contrário de outro Ministro que,
mais antigo da Casa e muito parecido com o Faraó
Ramsés, ainda usa a palavra 'contumélia', não se
sabem em qual dos sentidos, para agredir os
advogados das partes.

Agora, parte do Congresso Nacional quer reagir


contra o Supremo. Não seria justo. Tem, isto sim, de
reagir em favor de Humberto Lucena. Todos estão de
acordo num ponto: houve um erro judiciário. Impõe-
se, à autoridade e soberania do Congresso Nacional,
usando das prerrogativas que a Constituição lhe
confere no art. 48, inciso VIII, a imediata votação de
uma lei de anistia que beneficie, não apenas o
Senador Humberto Lucena, mas a todos que tenham
sido processados pelos mesmos fatos antes de serem
candidatos.

Assim o Parlamento brasileiro dará uma


demonstração de respeito aos candidatos eleitos pelo
povo, o verdadeiro e único juiz do político (Lucena
teve mais de meio milhão de votos), e um recado claro
às instâncias ordinárias do Judiciário: o Congresso
Nacional tem meio e modos, sabendo usá-los quando
preciso, de corrigir os erros praticados em nome da
Justiça e que, na verdade, ocultam, não os olhos, mas
interesses partidários, sem votos populares, com
pretensão a alterar, no tapetão, resultados eleitorais e
legítimos.

242
Antes que a palpitaria cometa outro engano, causado
por informações erradas de meu amigo Josias de
Souza, devo deixar registrado que não fui advogado
de Lucena neste caso.

JOSÉ SAULO PEREIRA RAMOS86

Com a cassação, familiares de Humberto passaram a viver


um verdadeiro “pesadelo”. Uma de suas filhas, Lisle Lucena,
chocada com a decisão do STF, desabafou: “ - Ele não tem um
imóvel. Está comprando um apartamento na Paraíba que ainda está
em construção. É um homem que não tem bens. Não sei o que vai
fazer”,87 disse. Em defesa do pai, a filha publicou o seguinte artigo:

Justiça seja feita


Lisle Heuse de Lucena*
_____________________
Sentar, pensar, escrever. Fiquei muitos dias
martelando essa ideia. O choque foi tão grande que
parecia que minhas forças estavam se esvaindo.
Precisava reagir. Precisava criar coragem. Sentia
vontade de gritar para todos sobre a tremenda
injustiça que envolvia o senador Humberto Lucena.
Mas isso não resolveria o problema.

Como poderia solucionar a questão, se o escândalo


estava feito?

Passei a me questionar: por que o escândalo interessa


tanto para a imprensa? Será que as notícias negativas
vendem mais jornais e revistas?

86
Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, edição de 7 de dezembro de 1994, p. 1-3.
87
Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, edição de 01.12.1994, p. 1-8.
243
O perigo da imprensa é exatamente o poder de
manipulação que ela tem sobre a opinião pública.
Mesmo assim, prefiro pensar que os leitores mais
conscientes não se deixam manipular tão facilmente.

Tudo bem, se existe um 'escândalo' tem de haver um


esclarecimento. Se existe uma acusação, tem de existir
defesa. E é ai que entra a responsabilidade da
imprensa de buscar a verdade, de esclarecer os fatos.
Por isso é importante que se mostre o outro lado.

Foi o que resolvi fazer, independente dos advogados


do senador Humberto Lucena, que o defendem na
Justiça. Resolvi defendê-lo na imprensa, mostrando
esse outro lado. Reuni, então, todas as provas que o
inocentam para mostrar que o senador Humberto
Lucena não agiu de má-fé.

Em primeiro lugar, um homem de bem com mais de


40 anos de vida pública, não se exporia dessa forma,
arriscando sua brilhante e coerente carreira política.
Um conceituado órgão de imprensa cometeu um
lamentável engano ao publicar, como definitiva, uma
instrução aprovada pela comissão diretora do Senado
em 1983. O decreto legislativo 64/90 do Congresso
Nacional, no artigo 9º, segundo leitura de
conceituado jurista, que apresentou a defesa do
Humberto Lucena, 'extinguiu quaisquer remunerações
acessórias, pagas em espécie, não previstas naquele
diploma, permitindo, em consequência, a
remuneração 'in natura', que foi regulada através de
instrução de cada uma das Casas do Poder Legislativo.
No Senado, entre as componentes da remuneração
paga, além do vencimento em dinheiro, incluem-se
expressamente quotas para imprimir calendários na
gráfica da Casa, o que compõe, portanto, a
244
remuneração do senador'…

Segundo outro documento (do Senado Federal),


intitulado 'Instruções para execução de trabalhos
gráficos, utilizados na atividade parlamentar pelos
senadores em suas quotas de publicações junto ao
Centro Gráfico doe Senado Federal', datado de 5 de
maio de 1992 e assinado pelo então presidente do
Senado Federal, no item 6, resolve: 'O conteúdo dos
serviços gráficos inerentes à atividade parlamentar
dos senhores senadores terão apropriação de custos
para débito em quota através da tabela de preços nº
1.Nessa tabela de preços nº 1 do Centro Gráfico do
Senado Federal (documento contendo 14 páginas)
para limitação da quota de cada senador, estão
especificados todos os itens, onde se vê a permissão
de imprimir cartões de visitas, cartões de Natal,
cartazes e calendários de parede, entre outros, com
quatro cores, três cores, duas cores, uma cor, sendo
que os calendários são impressos para distribuição no
fim do ano, para validade no ano seguinte.

Conforme essas normas, todos os senadores têm a


permissão de utilizar suas quotas, não sendo,
portanto, 'irregular', como estão afirmando alguns
conceituados órgãos de imprensa.

Se existe erro, então que sejam revistas as normas


internas da Casa e não que se transforme o presidente
do Congresso Nacional em 'bode expiatório'.

Tudo o que estou expondo é documentado e é do


conhecimento de todos os senhores senadores.
Hipócritas seriam aqueles que afirmassem não ter
conhecimento do fato.

245
Outro importante dado é que o senador Humberto
lucena não utilizou 30% de sua quota (a de impressos
e a de franquia pessoal) como também não fez
propaganda eleitoral.

Em dezembro de 93, quando os calendários foram


impressos, ele era candidato ao governo do Estado da
Paraíba. Portanto, se houvesse a intenção de
propaganda eleitoral estaria escrito 'Vote governador
94' e não 'senador Humberto Lucena'.

Não havia registro de candidatura na época. Sua


candidatura ao Senado Federal só foi homologada em
maio de 1994, portanto cinco meses depois da
confecção dos calendários. A própria imprensa da
Paraíba testemunhou o fato.

Por isso considero que fizeram um enquadramento


precipitado. Acredito que toda essa situação será
esclarecida, pois quem, como o senador Humberto
Lucena, que tudo faz com amor no coração e fé em
Deus, não pode ser sacrificado pela justiça dos
homens.

*LISLE HEUSI DE LUCENA, 35, filha do senador


Humberto Lucena (presidente do Congresso Nacional),
é bacharel em letras tradução-inglês pela UnB
(Universidade de Brasília) e secretária parlamentar da
Câmara dos Deputados.

O jornalista Josias de Souza rebateu a tese de “bode


expiatório”, defendida pela filha de Humberto Lucena:

O calendário
Josias de Souza

246
Humberto Lucena deve ser um bom chefe de família.
Aí estão a comprovar os depoimentos de sua filha,
Lisle, incansável defensora do pai.

Compute-se um outro ponto a favor do senador: seu


patrimônio, revolvido durante as investigações da CPI
do Orçamento, parece compatível com a sua renda.

Até prova em contrário, não se pode, portanto,


compará-lo aos personagens expurgados do
Legislativo graças à lama do Orçamento. Seria injusto.
Mas como político, o atual presidente do Congresso
sofre de um incurável defeito: é pequeno, um anão-
parlamentar, espécie de despachante de pequenas
causas.

Despacha para si – tem vários parentes instalados no


aparato do Estado – e para terceiros, em geral amigos
e aliados políticos.

A sessão de ontem do STF ofereceu uma eloquente


evidência do nanismo ético de Humberto Lucena.
Reuniram-se as principais e mais bem remuneradas
togas do país para debater o caso dos calendários.

O episódio é conhecido. Como senador, Lucena valeu-


se da Gráfica do Senado para imprimir 130 mil
calendários com sua foto. Distribui-os entre os
eleitores. O TSE cassou-lhe a candidatura.

Graças a uma decisão judicial provisória, pôde


manter-se na disputa. Eleito, aguardava o
pronunciamento do STF, para saber se poderia ou não
tomar posse.

Ao negar provimento ao recurso de Lucena, o STF


247
terminou por manter a cassação. Assim, o presidente
do Congresso, um dos Poderes da República, cai por
causa de um calendário.

Sob a argumentação de que muitos parlamentares se


utilizam irregularmente da Gráfica do Senado, os
defensores de Lucena afiram que a punição foi injusta.
Invertem-se os valores. A injustiça não está na
cassação de Lucena, mas na ausência de punição para
os deputados e senadores a mesma estatura.

Num país de tantos desafios, não pode haver espaço


para políticos sem a dimensão de suas atribuições.
Que sejam punidos os demais.88

Na Parahyba, Antônio Carlos Pessoa Lins avaliou a decisão


do STF como “histórica e irreversível”. Para o procurador regional
eleitoral, o caso Lucena passou a ser um divisor de águas: “- A partir
de agora, os políticos refletirão sobre a função de representar o
povo e não na obtenção de privilégios e facilidades que um mandato
lhe confere”, ponderou.89

Com a confirmação da decisão do TSE, pelo STF, os partidos


envolvidos começaram a disputar a vaga decorrente da cassação de
Lucena. O PMDB defendia que os votos dados a Humberto não
deveriam ser anulados, e sim transferidos ao primeiro suplente, o
empresário Wellington Roberto.

Logicamente que o PFL dava ao caso uma interpretação


diferente. Alegavam seus advogados que, segundo a legislação
eleitoral, a vaga de senador seria ocupada por um dos seus filiados,

88
Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, edição de 01.12.1994, p. 1-2.
89
JORNAL DA PARAÍBA, edição de 15.09.1994, p. 1.
248
o empresário Raimundo Lira, terceiro colocado no pleito com
381.186 votos.

A decisão da última instância do Poder judiciário significava,


na prática, um prêmio ao candidato derrotado, Raimundo Lira, que
também havia usado o serviço gráfico do Senado para imprimir
milhares de cadernos. Ciente desse detalhe, o diretório nacional do
PMDB espalhou que ia pedir ao TRE paraibano a realização de um
novo pleito para preencher a vaga aberta a partir da decisão do STF.
Para os peemedebistas, a ascensão de Raimundo Lira ao Senado,
por força de uma decisão judicial, representava a usurpação da
vontade popular. Em nota oficial, o presidente do PMDB nacional 90se
pronunciou:

direção Nacional do PARTIDO DO MOVIMENTO


DEMOCRÁTICO BRASILEIRO, por seu Presidente,
manifesta a seus filiados, ao público e, especialmente,
ao Povo do Estado da Paraíba o seguinte:

1 O PARTIDO DO MOVIMENTO DEMOCRÁTICO


BRASILEIRO se solidariza com o Senador HUMBERTO
LUCENA e com o eleitorado paraibano face à decisão
judicial que lhe retira o mandato de Senador Federal
para a próxima legislatura.

A vida pública do Senador HUMBERTO LUCENA, por


sua trajetória, pautada pela observância da mais
elevada dignidade, a que se acrescenta luta

90
Indagado pelo jornalista Nelson Coelho, sobre as providências que o partido estaria
tomando em defesa do presidente do Senado, o presidente nacional do PMDB, teria afirmado:
Eu vou lutar para preservar o mandato de Lucena que pertence ao povo paraibano. Agora, eu
não posso, diante de tanta gente, colocar como prioritário para o PMDB este problema que é
muito mais de natureza jurídica que política, além do seu caráter regional. (in COELHO,
Nelson, Ob. Cit., p. 245).
249
permanente em defesa do interesse público e da
democracia, particularmente, quando muitos
silenciavam, constitui o maior atestado para que se
faça digno do respeito da sociedade brasileira.

2 O PARTIDO DO MOVIMENTO DEMOCRÁTICO


BRASILEIRO não pode hipótese de usurpação da
vontade popular, em que candidato de venha a
assumir o mandato que livre e soberanamente lhe
negou.

3. Os votos dados ao HUMBERTO LUCENA foram o


PARTIDO DO MOVIMENTO DEMOCRÁTICO BRASILEIRO
dos quais não pode ser privado, motivo pelo qual as
providências adequadas preservação dos seus direitos
inclusive judicialmente.

Brasília, 1 de dezembro de 1994.


LUIZ HENRIQUE
Presidente

Adversário político de Lucena na Parahyba, Raimundo Lira


considerava justa a punição aplicada a Humberto. Em entrevista91

91
Eis a parte da entrevista publicada no Jornal Folha de São Paulo, edição de 01.12.1994, p. 1-
8:
“Da Agência Folha, em João Pessoa-PB

O senador Raimundo Lira (PFL-PB), 50, disse ontem à noite à Agência Folha, de sua
casa em Brasília, que a decisão de manter a cassação de Lucena foi justa.

Lira, adversário político de Lucena na Paraíba, também disputava a reeleição para


o Senado. Perdeu por 31 mil votos. A seguir, trechos da entrevista:

Agência Folha – O que o senhor achou da decisão do STF?

Raimundo Lira – Achei uma decisão justa, porque dez dias antes das eleições de
outubro eu estava 11 pontos na frente de Lucena, quando ele foi cassado pelo TSE e usou o
250
dada ao Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, atribuiu sua derrota nas
urnas, ao uso, por Humberto Lucena, dos famosos calendários
confeccionados na gráfica oficial que, segundo ele, serviram de peça
de marketing político-eleitoral suficiente para desequilibrar o pleito
em favor do presidente do Senado, dando-lhe a diferença de 31 mil
votos.

Mesmo se sentindo 'justiçado' com a decisão definitiva em


desfavor do seu adversário político, Raimundo Lira teve dificuldades
para explicar ao jornalista, a acusação de uso da Gráfica do Senado,
também no ano de 1993:

Eu mandei fazer 300 mil cadernos em 1993 na gráfica


do Senado. Quando chegou ao Congresso o projeto da
nova lei eleitoral, por precaução, mandei armazenar
os cadernos na própria gráfica. Não os usei em
campanha. Não tenho nada em relação à Justiça.92

Derrotado nas urnas, Raimundo Lira recebia, do Poder


Judiciário, um belo “presente” de Natal.

marketing, propaganda que foi injustiçado.

Agência Folha – A decisão do STF foi correta?

Lira – O Supremo tomou uma decisão correta porque a lei tem que ser igual para
todos. A lei prevê que o terceiro candidato mais votado assuma. Eu vou assumir.

Agência Folha – No TRE/PB tramita um processo contra o senhor por uso da


gráfica do Senado para imprimir cadernos…

Lira – Eu mandei fazer 300 mil cadernos em 1993 na gráfica do Senado. Quando
chegou ao Congresso o projeto da nova lei eleitoral, por precaução, mandei armazenar os
cadernos na própria gráfica. Não os usei em campanha. Não temo nada em relação à Justiça.
(Adelson Barbosa)
92
Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, edição de 01.12.1994, p. 1-8.
251
Naquele fim de ano de 1994, os funcionários do Centro
Gráfico do Senado – CEGRAF – tiveram menos trabalho do que em
anos anteriores. O motivo? O efeito Lucena. A maioria dos
parlamentares preferiu encomendar cartões de Natal a empresas
particulares em vez de mandar imprimi-los no Cegraf: “Estamos nos
limitando a responder as mensagens recebidas”, informou um
assessor do senador José Sarney, enquanto o senador Jarbas
Passarinho mandou comprar 300 cartões para enviar aos amigos. O
senador Hugo Napoleão (PFL/Piauí), encomendou 500 cartões a
uma gráfica particular: “O momento recomenda prudência. O risco
de críticas é maior do que o benefício”, justificou um assessor. Os
parlamentares não dispensaram a franquia postal para enviar as
mensagens de fim de ano.

Depois da desastrosa decisão do STF, o Natal de 1994 foi


inesquecível para Humberto Lucena, que não deixou de dar a sua
mensagem de Natal através dos jornais, mas, pela primeira vez, em
vários anos, não enviou nenhum calendário aos seus
correligionários. Eleito com quase meio milhão de votos, o senador
paraibano não sabia se seria diplomado. Diplomado, não tinha a
certeza da posse. Empossado, era incerto continuar no mandato.
Tudo estava a depender do Congresso Nacional.

Não sabia ele que 1995 seria bastante promissor. No


Parlamento, a ideia de um Projeto de anistia ganhava força!

* * *

252
Foto: O Ministro Sepúlveda Pertence acompanha, circunspecto, o
voto do relator Néri da Silveira, que não conhece do Recurso
Extraordinário interposto pelos advogados do senador Humberto
Lucena. (Fonte: Jornal O NORTE, edição de 1994).

253
CAPÍTULO 3
A REAÇÃO

254
O CONGRESSO PEGA FOGO!
“ - Um castigo muito grande para um pecado
pequeno”
(Senador Alfredo Campos).

Humberto Lucena era um Iceberg. Quem o conheceu sabe


que dificilmente ele se abalava. Não era dado a chiliques
emocionais. No entanto, a cassação de sua candidatura pela Justiça
Eleitoral e confirmada pelo STF causou-lhe um grande desconforto.
Mesmo assim, para a mídia, tentava passar a imagem de otimismo:
“- Vou dar a volta por cima, e daqui a quatro anos me candidatarei
novamente, e vou vencer. Não saio da política”, foi sua primeira
resposta à decisão do Supremo Tribunal Federal. 93 “- Os calendários
por mim distribuídos nada mais foram que mera rotina da vida
parlamentar”, justificou em outra ocasião.

Nas diversas entrevistas que deu aos jornais Lucena sempre


procurava preservar o Poder Judiciário. Tinha um respeito imenso às
instituições, até porque presidia uma das mais importantes do país,
o Congresso Nacional.

O mesmo não se podia dizer dos seus pares. Esvaziado há


mais de dois meses por causa da campanha eleitoral, o Senado
conseguiu formar quorum razoável para protestar contra as decisões
do TSE e do STF, nem sempre com a mesma elegância de Humberto
Lucena. Pelo contrário, quando deputados e senadores expressaram
indignação contra o TSE e o STF, o fizeram da forma mais
corporativista. Como o TSE havia pedido aos congressistas a dotação
do valor de R$ 140 milhões para a implantação da urna eletrônica
nas eleições seguintes, houve quem cogitasse retaliar quando
93
JORNAL DO BRASIL, edição de 02.12.1994, p. 7.
255
chegasse o momento de votar a Lei Orçamentária.

A promessa seria cumprida no fim do ano, quando o


Congresso apreciaria a Lei Orçamentária. Nos primeiros dias de
janeiro de 1995, o presidente do TSE, ministro Carlos Mário Velloso,
procurou o presidente Fernando Henrique Cardoso para rever os
cortes no orçamento da Justiça Eleitoral. O TSE havia solicitado R$
548 milhões, mas a proposta foi reduzida pela metade, para R$ 262
milhões, o que impossibilitava a implantação do voto eletrônico.

O Congresso Nacional era um misto só de decepção,


perplexidade e revolta. Foram muitas as reações, e das mais
variadas formas. Na residência de Humberto, o governador em
exercício da Parahyba, Cícero Lucena exagerou: “ - Pode até haver
uma convulsão na Paraíba”.94

“ - Os que elegem um e vêem outro tomar posse, podem


ficar revoltados”, advertiu o senador Chagas Rodrigues.

“- Respeito a Justiça mas não concordo com a decisão”,


indignou-se o deputado federal Luiz Eduardo Magalhães.

“ - Foram feridas a democracia e a interdependência entre


os poderes”, bradou o senador Ronan Tito.

“ - O tiro de canhão no Congresso foi dado no julgamento


inicial de Lucena”, dramatizou o senador Espiridião Amin, para
quem os abusos deveriam ser corrigidos, mas o TSE também deveria
definir o que é período eleitoral: se a partir do prazo de
desincompatibilização de quem ocupa cargo público, se a partir da
convenção dos partidos ou se a partir do registro de suas
94
Idem.
256
candidaturas, “para o parlamentar saber quando pode usar material
impresso pela gráfica”.

“ - Um castigo muito grande para um pecado pequeno”,


avaliou o senador Alfredo Campos, do PDMB mineiro, para quem
Humberto não havia praticado a conduta com a intenção de burlar a
Lei Eleitoral.

“ - Uma decisão vergonhosa e hipócrita”, criticou o


representante da Bahia, o senador Jutahy Magalhães; para ele,
Humberto Lucena estava servindo de “Cristo para ser apresentado à
opinião pública”95e o TSE havia extrapolado as “boas razões de
justiça”.

“ - Uma decisão precipitada, que contrariou uma lei


costumeira adotada e praticada na Câmara dos Deputados e no
Senado”, argumentou o senador João Rocha.

“ - Uma interferência indevida em assuntos internos do


Senado”, criticou o primeiro-secretário do Senado. Júlio Campos
advogou a ideia de o Senado recorrer ao STF. Depois, quando a
Suprema Corte não conheceu do recurso de Humberto, a
indignação de Campos aumentou: “ - O Supremo é Deus? É
semideus? É a Corte de Haia? Foi uma decisão drástica, antipolítica”.
E prosseguiu: “- Se o Supremo é uma Corte política, então o Senado
deve tomar uma decisão política. O senador Humberto Lucena foi
cassado politicamente e agora temos de resolver esta questão
também politicamente.”

Júlio Campos recorreu à história para convencer seus pares


de que o Poder Legislativo tinha condições de resolver o impasse
95
DIÁRIO DO CONGRESSO NACIONAL, Seção II, 15.09.1994, p. 5197.
257
estabelecido com a cassação do presidente do Senado: “ - Este
Congresso votou o parlamentarismo em menos de 24 horas e tirou
podes de João Goulart, em 1961. Este mesmo Congresso cassou o
mandato de Goulart e referendou o nome do marechal Castelo
Branco para seu lugar em 1964. Este Congresso cassou o ex-
presidente Collor, que tinha 35 milhões de votos.”96

“- Uma das mais draconianas sentenças da história da


Justiça brasileira, algo que estarreceu o País inteiro. “ - Nunca se viu,
nunca jamais se viu tanto rigor!”, vociferou o senador Mansueto de
Lavor.97

“ - Estou perplexo, não consigo entender o que ocorreu”,


disse o senador e ex-ministro da Justiça do Governo Itamar,
Maurício Corrêa.

“ - A decisão é um atentado à liberdade desta Casa. O


Congresso tem que arrancar do STF a decisão do mérito da
questão”, exaltou-se o deputado mineiro Bonifácio de Andrada, a
quem se atribui uma clássica definição do Parlamento brasileiro:
“Aqui tem de tudo. Tem ladrão, tem honesto, tem canalha, tem
gente séria. Só não tem bobo.”98

A indignação atingiu seu clímax quando o vice-presidente do


Senado, Chagas Rodrigues, do PSDB do Piauí, pregou a
desobediência civil contra a decisão do STF: “ - Temos que resistir.
Vamos fazer disto uma revolução”, insistiu Rodrigues, que estava no
exercício da presidência do Senado. Ele apresentou uma proposta
de Decreto Legislativo, visando garantir a posse de Humberto

96
Jornal TRIBUNA DA IMPRENSA, edição de 1994.
97
DIÁRIO DO CONGRESSO NACIONAL, Seção II, de 15.09.1994, p. 5206.
98
Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, edição de 1994.
258
Lucena em 1º de fevereiro.99

Com a exaltação dos ânimos, o nível dos discursos foi


caindo e atingiu seu ponto mais baixo com a oratória do senador
Ney Maranhão, do PRN de Pernambuco: “ - Tem muita gente que
veste calça, mas entre vestir e segurar, há muita diferença”. De
forma enfática, continuou: “ - Agora, o Congresso precisa vestir e
segurar a calça”. E fuzilou, de forma chula: “ - Nós somos o poder e
este poder, quando muito se abaixa, o fundo aparece.” 100

Depois, em tom mais ameno, o senador Maranhão tentou


explicar porque também mandara imprimir milhares de cadernos na
Gráfica do Senado: “- Prefiro distribuir cadernos para quem não tem
a gastar essa verba com cartões ou calendários. Nunca usei isso com
objetivos eleitorais”, defendeu-se.

As decisões do TSE e do STF “incendiaram” o Congresso


Nacional. O ambiente estava “carregado”. O presidente da Câmara
dos Deputados tentou agir como “bombeiro”: “ - Não é a crise de
um homem que vai gerar a crise entre os Poderes”, recomendou
Inocêncio Oliveira aos mais exaltados, tentando diminuir a explosão
de revolta. “ - Quem foi cassado foi o candidato a senador e não o
presidente do Congresso. Temos que evitar confronto. Não podemos
fazer nada que possa prejudicar a imagem da instituição. O
momento é de reflexão”, insistiu Inocêncio, em tom
contemporizador.

Aliados de Humberto Lucena passaram o dia ameaçando


juízes e tribunais. Prometiam uma retaliação que,
institucionalmente, demoraria dez anos, com a “CPI do Poder
99
JORNAL DO BRASIL, edição de dezembro de 1994.
100
Jornal A Tribuna da Imprensa, edição de 1994.
259
Judiciário”. A Emenda Constitucional nº 45 criaria os temidos e mal
digeridos Conselhos Nacionais - de Justiça e do Ministério Público. O
senador Antônio Mariz, que era procurador de justiça aposentado,
criticou seus colegas do Ministério Público que haviam denunciado
Lucena. Buscavam ganhar notoriedade nos jornais, disse Mariz, que
ainda ameaçou: “ - Vou processar um a um”, garantiu.

Para alguns formadores de opinião, as manifestações dos


parlamentares em favor de Humberto Lucena não passavam de
bravatas. O jornalista Marcelo Pontes, na famosa “Coluna do
Castelo”, assim se expressou:

As bravatas do Caso Lucena

Quer o destino que um presidente do porte acadêmico


e da seriedade de Fernando Henrique Cardoso, que
antes de inaugurar um novo estilo de governo reúne
em Brasília alguns dos mais qualificados cientistas
sociais da Europa e das Américas, seja empossado no
dia 1º de janeiro em sessão do Congresso Nacional
presidida por um senador cassado por mau uso do
dinheiro público.

Esse constrangimento, em si, já seria suficiente para


deixar em casa o senador Humberto Lucena,
condenado à perda de seu novo mandato obtido nas
urnas de 3 de outubro por ter usado como peça de
propaganda pessoal 130 mil calendários impressos na
gráfica do Senado com dinheiro do contribuinte.

Para poupar Fernando Henrique do vexame, e o


contribuinte de maior indignação, o que caberia ao
Senador Lucena fazer nesta hora, além de declarar
que discorda da decisão da Justiça mas a acata, é

260
deter-se na encruzilhada a que chegou, compreender
que os tempos mudaram e devolver o dinheiro
tomado do contribuinte para custear os seus
calendários de propaganda – algo em torno de R$ 18
mil apenas em material. Importa mais saber da
reposição do dinheiro dos calendários do que da
devolução das doações das empreiteiras ao PT. O dos
calendários é dinheiro público. O do PT é privado.

No entanto, a rejeição no Supremo Tribunal Federal


do recurso extraordinário com que Lucena tentava
anular a cassação do registro de sua última
candidatura, decidida pelo TRE da Paraíba e mantida
pelo Tribunal Superior Eleitoral, desencadeou no
Congresso uma onda de protestos e de solidariedade,
que servia apenas para lustrar o ego de Lucena se não
estivesse acompanhada de invenções casuísticas para
tentar salvar-lhe a pele.

As reações destemperadas de deputados e senadores


são apenas isso – bravatas. Não há risco de grave
crise institucional no país ou de convulsão social na
Paraíba, como alguns disseram. O único risco que
existe é, de novo, para o contribuinte: o de a gráfica
do Senado continuar sendo usada como instrumento
de propaganda eleitoral de alguns senadores e
deputados. E nada acontecer aos outros usuários
flagrados nos mesmos desvios de Lucena. 101

Para o jornalista Clóvis Rossi, do Jornal FOLHA DE SÃO


PAULO, as indignações dos parlamentares eram “cenas explícitas de
fisiologia”, como registrou em artigo publicado na edição de 03 de
dezembro de 1994:
101
JORNAL DO BRASIL, edição de 03.12.1994, p. 2.

261
Cenas de fisiologia explícita
Clóvis Rossi

O sociólogo Fernando Henrique Cardoso decretou o


fim da fisiologia, em inúmeras entrevistas concedidas
enquanto candidato e mesmo depois de eleito. O
episódio Humberto Lucena desmente, rotundamente,
a avaliação do sociólogo.

Não li, em todas as declarações em defesa de Lucena,


o único argumento aceitável no caso, ou seja, o de
que ele é inocente porque não mandou fazer na
Gráfica do Senado os calendários que deram motivo à
sua cassação.

Ao contrário. O argumento central utilizado pelo


presidente da comissão formada por seus pares para
defendê-lo, Bonifácio Andrada (PPR-MG), é uma
confissão de culpa. Diz Andrada que, entre as
prerrogativas dos senadores, figura a de mandar
imprimir material na Gráfica do Senado. Bingo. É a
confissão pública de que um punhado de senadores
aceita que se utilizem equipamentos e recursos
públicos em benefício de um particular (candidato é
um cidadão comum).

É também a confissão pública de que um punhado de


senadores joga no lixo o artigo 5º da Constituição,
aquele que diz que 'todos são iguais perante a lei, sem
distinção de qualquer natureza'.

Se um senador tem a prerrogativa de usar recursos


públicos para sua propaganda eleitoral deixar de ser
igual a outros candidatos que, por não serem

262
senadores, não dispõem de idêntica regalia.

O festival de corporativismo patrocinado anteontem


pelo Senado demonstra também que os senadores só
são capazes de agir em defesa própria.

Afinal, não ocorreu a senador algum revoltar-se


contra o Judiciário ou contra o Executivo quando
foram baixadas normas de discutível validade jurídica,
como o confisco da poupança, no bojo do Plano Collor.
Ao contrário, o Legislativo sancionou a medida, assim
como havia sancionado antes todos os pacotes
econômicos, muitos dos quais continuam
determinações que acabaram sendo contestadas pela
Justiça.

E depois essa turma ainda se queixa do desprezo da


opinião pública. Nada mais justo.

O JORNAL DO BRASIL, o mais contundente nas críticas a


Humberto Lucena, comparou os congressistas a um bando de
estudantes irresponsáveis. Eis o editorial:

Epitáfio de uma Crise

O colégio de líderes do Congresso tomou as dores do


senador Humberto Lucena, que ficou sem o mandato,
e improvisou uma sessão de protesto mais parecida
com uma reunião de dirigentes estudantis do que de
parlamentares responsáveis. A não ser que a explosão
de coleguismo corporativista tenha uma segunda
leitura como conforto moral de um aflito. A primeira,
como demonstração de valentia retórica, não
convenceu, pelo insuficiente teor de sinceridade de
ato dirigido a um único expectador: o próprio senador.

263
Mais tarde, o Senado tentou em vão gerar clima de
tensão institucional, mas a insuficiência de número –
mal congênito desta representação que chega ao fim
consagrada como a pior da história brasileira –
reduziu o protesto a uma verbiagem que misturou
jactância de cangaço com tintura de Barbacena no
tempo do bangue-bangue. Conversa fiada não tem
força para gerar a crise entre Judiciário e Legislativo,
como se apressaram a vaticinar os repassadores de
recados e alguns políticos, entre os quais muitos que
não se reelegeram.

A Mesa do Senado promoveu mais tarde uma sessão


secreta. Mas com apenas 26 presenças a esperada
declaração de guerra se transubstanciou em moção
de solidariedade ao colega Humberto Lucena. São de
natureza parlamentar tanto a alta temperatura
quanto o resfriamento. Não primou também pelo teor
das ideias a explosão dos senadores, que não
alcançaram a finalidade pretendida se queriam
confortar o senador nos últimos dias de mandato. Se a
intenção, porém, era desencadear uma crise de
proporções institucionais, para impingir à nação uma
daquelas fórmulas aventadas pela manhã, podem ir
saindo de fininho.

O presidente da Câmara, deputado Inocêncio de


Oliveira, deixou de saldo da estafante jornada de
protesto parlamentar a sabedoria ao alcance de
todos. Lembrou, pela Câmara, que 'decisão do
Supremo não se discute, cumpre-se.' Recomendou
'calma' ao Brasil, como se receitava outrora. E
sintetizou o recado numa frase lapidar: 'Não é a crise
de um homem que vai gerar a crise entre os Poderes'.
Como não ocorreu propriamente crise, a sentença
vale como epitáfio de episódio que mostrou um
264
Congresso sem a velha capacidade de gerar e de
resolver crises, de acordo com a conveniência dos
políticos, como acontecia nos áureos tempos
.
Do palavrório de combustão espontânea, próprio de
parlamentares, no colégio de líderes e na sessão
secreta do Senado, nada de aproveitável sobrou. Não
houve decisão por insuficiência de ideias. O
corporativismo se manifestou em propostas que, ao
fim e ao cabo, se resumiram à criação de um fato
maior, para obrigar o STF a examinar o mérito de uma
questão que escapa à competência legal. Os ministros
do Supremo cuidam de matéria que diz respeito à
Constituição, e o recurso do senador Lucena passa
longe.

Diante dos 130 mil calendários com retrato do


candidato, impressos na gráfica da casa, o TSE decidiu
que houve abuso de poder por parte do presidente do
Senado. O Congresso faz a lei eleitoral e a Justiça
Eleitoral a aplica. Obra dos constituintes, a
Constituição podia ter sido revista (para isso instalou-
se a comissão respectiva) este ano, mas os
parlamentares não perceberam a necessidade.
Ficaram sem base para alegar que a decisão do
Supremo, negando-se a examinar o mérito de matéria
não constitucional, e com isso deixando prevalecer a
decisão do TSE, interfere na autonomia de outro
Poder.

Quem apelou para o STF foi o próprio Humberto


Lucena, por discordar da impugnação da sua
candidatura. O presidente do Senado, com o recurso
extraordinário, bateu à porta do STF para manter a
candidatura a despeito da impugnação. Fez a
campanha e se elegeu, mas a questão continuou sub
265
judice. A eleição não mudou a natureza legal do
abuso de poder. Não houve, portanto, fato
consumado. A decisão do Supremo estava na ordem
natural de evolução do caso, logo, não cabe a
alegação de invasão da competência do Legislativo,
que fez as normas. Toda a sorte de sofismas políticos
foi aventada, mas a veemência não produz
racionalidade. Um mais exaltado chegou a falar de
'quebra-quebra e mortes' como consequência da
decisão do STF.

Melhor faria o Congresso se acabasse com a


facilidade de abuso que é o uso da gráfica do Senado
em proveito dos parlamentares. E, como prioridade,
os parlamentares – à margem da reforma
constitucional – poderiam mudar os costumes a que
se aferram como direito quando são privilégios que os
incompatibilizam com os eleitores. Não é por acaso
que a renovação nunca inferior a 50% varre em vão as
representações, por vontade dos cidadãos. Não
aprendem e não se dão por achados. Não têm o pudor
de propor modificação na própria Constituição para
forçar o Supremo a reexaminar uma questão decidida.
Com ameaças veladas ou abertas, não.102

A solidariedade dos parlamentares ao presidente do Senado


não ficou apenas nos discursos. A primeira providência concreta foi
criar uma comissão informal, integrada de quatro deputados e de
quatro senadores para discutir saídas jurídicas para o caso. 103 Foram
muitas as reuniões feitas pelos principais líderes do Congresso
Nacional. Experientes no ofício de elaborar leis, eles vasculharam o
cipoal jurídico em busca de uma fórmula que pudesse salvar o

102
JORNAL DO BRASIL, edição de 03/12/1994, p. 10.
103
Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, edição de 02.12.1994, p. 1-9.
266
mandato de Humberto Lucena. Era preciso encontrar um meio que
obrigasse o Supremo Tribunal Federal a se manifestar sobre o mérito
do caso.

Defensores extremos do dogma da soberania popular, os


parlamentares não admitiam a interferência de outro Poder no
Legislativo, principalmente com decisões consideradas “esdrúxulas”
como a proferida pelo TSE, que anulava a vontade da maioria dos
eleitores manifestada nas urnas.

A ideia inicial da comissão de parlamentares foi


regulamentar o §1º, do artigo 102 da Constituição Federal, que
prevê o instituto da Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental, a ser apreciada pelo STF, “na forma da Lei”. O mentor
do Projeto – o deputado Bonifácio de Andrada, do PTB de Minas
Gerais -, incluía o mandato parlamentar e suas prerrogativas como
um preceito fundamental e constitucional. A redação tinha
endereço certo: possibilitar o STF a se pronunciar sobre o mérito da
questão no “caso Humberto Lucena”.104

* * *

104
Jornal O GLOBO, edição de 02.12.1994, p. 3.
267
MOTIM PARLAMENTAR
Nós não vamos votar enquanto a Câmara não
tratar do senador Lucena” Senador Alexandre
Costa)

No plenário do Senado, a temperatura esquentou mesmo à


tarde. Além dos inflamados discursos em defesa do senador
paraibano recorreu-se à manobra regimental de obstrução das
votações; a ideia era boicotar as matérias de interesse do Governo.
Enquanto não encontrassem uma saída para salvar Lucena, não
haveria deliberação sobre qualquer tema que estivesse incluído na
Ordem do Dia.

O primeiro teste ocorreu durante as sessões em que se


discutia a indicação do economista Pérsio Arida, considerado o “pai
do Plano Real”, para dirigir o Banco Central. Além de Arida,
dezessete autoridades diplomáticas esperavam ter seus nomes
homologados. O plenário não conseguia reunir o número de
parlamentares para deliberar e validar as indicações feitas pelo
presidente Fernando Henrique Cardoso. Durante as sessões, um
grupo de senadores ia tomar café no Senado, o que contribuía para
que o quórum não fosse atingido. A “turma do cafezinho”
condicionava a aprovação do nome de Arida ao comprometimento
do Planalto em sancionar a anistia ao senador Humberto Lucena.
Coincidentemente, quase todos esses senadores “gazeteiros”
também haviam feito o uso da gráfica.

Por dois dias consecutivos, a manobra regimental surtiu


resultado e o corporativismo do Senado impediu que o país
continuasse sem ninguém na presidência do Banco Central. 105 “- O
105
JORNAL DO BRASIL, edição de 06.01.1995. O humorista da TV GLOBO, Jô Soares, em seu
268
presidente do Banco Central não é mais importante que o
presidente do Senado”, reagiu Ney Suassuna (PMDB/PB), um dos
organizadores do motim parlamentar ao lado do senador Ney
Maranhão (PRN/PE), ambos dispostos a obstruir a votação. No
primeiro dia, o quorum mínimo não foi atingido para validar a
indicação; no segundo, apenas 39 parlamentares dos 81 senadores
marcaram presença na sessão.

Para alguns, o boicote demonstrava o grau de prestígio que


Humberto gozava junto aos seus pares. Outros viam na ação
parlamentar uma chantagem explícita do Congresso Nacional.
Consciente de que era o pivô da crise e expressando mais uma vez o
seu espírito pacífico e conciliatório, Humberto Lucena manifestou-
se contrário à obstrução: “- Vocês vão me deixar mal”, advertiu.
Lucena telefonou e conversou com cerca de 60 senadores apelando
para que comparecessem à sessão. Em artigo publicado em jornal
do seu Estado, ele justificou a sua ação:106

Um erro não justifica outro


________________
Humberto Lucena*

Os contratempos da vida, já disse alguém, são como


facas. Pode-se pegá-los pelos cabos ou pelas lâminas.
E, até onde tem sido possível, temos tentado agir do
primeiro modo, com relação aos problemas que a vida
nos tem apresentado, como o que hoje enfrentamos,
por conta das decisões do Judiciário contra nossa
candidatura, com base na apreciação equivocada de
termos cometido crime eleitoral.

programa de meia-noite, colocou uma tartaruga em cima de sua mesa, numa alusão à
operação deflagrada pelos senadores, em defesa do mandato do presidente do Senado.
106 Jornal CORREIO DA PARAÍBA, edição de 1994.

269
Como todos sabem, tivemos a preocupação de tornar
público, assim que o Supremo Tribunal Federal decidiu
não julgar o mérito da questão, mantendo a decisão
do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) a nós desfavorável,
a posição de respeito à mais alta Corte de Justiça do
país, ao mesmo tempo em que anunciamos a nossa
completa discordância quanto à sua decisão.

Mais veio a reação do Congresso. E particularmente a


reação do Senado Federal, sob a consideração de que
o STF havia laborado em equívoco, assim como o TSE,
produzindo uma situação ameaçadora para quase
duas centenas de parlamentares das duas Casas do
Congresso, que poderiam ser processados (e alguns já
o estão) pelo mesmo suposto crime de uso indevido
da gráfica do Senado. E, então, o projeto da Anistia,
como única forma cabível para a reparação do erro
judiciário.

Pois bem. Desde esse momento avolumou-se a onde


de protestos por todo o país, com parte dos meios de
comunicação exacerbando-se em formar uma opinião
pública negativa ao nosso respeito, dando
continuidade a um processo de tentativa de
desmoralização do Congresso Nacional, que só
interessa aos inimigos de nossa democracia, que,
mesmo que ainda não se apresente tão forte, já está
amadurecida o bastante para que nossas esperanças
de ter uma Nação soberana e desenvolvida se
apresentem hoje renovadas.

Uma condição, que, sem lugar a dúvidas, teve no


desempenho do Congresso a chave-mestra de sua
consolidação, nos últimos nove anos.

Logicamente, essas pressões vieram reforçar a


270
complexidade do embate político na Câmara dos
Deputados, que, diferentemente do Senado, não
encontrou a mesma disposição de votar com rapidez a
questão do citado projeto de Anistia.

Por isso, alguns senadores procuraram enfrentar a


questão em termos mais aguerridos, a ponto de não
darem quorum para a aprovação do nome do
economista Pérsio Arida para a presidência do Banco
Central.

Entretanto, de imediato, e com toda a ênfase, não


concordamos com essa iniciativa. Sentimento que
pautou nossa conduta nos últimos acontecimentos do
Senado.

Não apenas pelo que de demeritório pode trazer esse


procedimento, como já vem ocorrendo, para nossa
imagem pública, à medida que aparecemos como pivô
de toda essa crise. Mas fundamentalmente, porque é
incontestável a alta relevância dessa matéria,
relacionada com a nova diretoria do Banco Central.

Ainda mais no momento mesmo em que se inicia um


novo Governo, cuja face é justamente a da própria
esperança renovada do povo brasileiro, e ao qual
devemos nosso apoio.

Sem dúvida, nosso desejo é o de que se consiga


reparar uma decisão injusta sobre nossa candidatura,
que contou com a aprovação de quase 500 mil votos
do povo paraibano.

Povo a quem devo todo o agradecimento pela


confiança de reelege-me para o Senado, sabedor da
probidade dos nossos atos e de nossa ação
271
permanente em prol do bem do Brasil, do Nordeste e
da Paraíba.

Mas não podemos querer agarrar esse contratempo


passageiro em nossa vida pública pelo fio de sua
lâmina. Nossa posição é a de enfrentar com
serenidade a realidade dos fatos sem colocar a nossa
situação acima dos interesses do país.

E esperar que a justiça venha a ser feita, conforme os


desígnios superiores de nossa existência. Até lá,
continuaremos firmes no respeito às decisão da
justiça dos homens, mas, como sempre dissemos,
nesse caso, dela discordantes, na expectativa de que a
justiça de Deus venha finalmente a se impor.

*Presidente do Senado Federal

Após a decisão do TSE, abriu-se uma discussão na tribuna do


Senado sobre a verdadeira função do serviço gráfico da Casa. O
senador petista e representante do Estado de São Paulo, Eduardo
Suplicy, sugeriu a regulamentação da atividade:

Sr. Presidente, aproveito a oportunidade para


formular questão de ordem de natureza
administrativa. Segundo notícias da imprensa e
diálogos que mantivemos no decorrer desta semana,
algumas providências estão sendo consideradas pela
Mesa do Congresso Nacional em relação ao uso da
Gráfica.

Considero oportuna, diante da decisão da Justiça


Eleitoral sobre o Presidente Humberto Lucena, a
decisão de disciplinar o uso da Gráfica. Acredito que,
no Congresso Nacional, devemos ter o propósito de
272
corrigir toda e possível janela para eventual abuso na
utilização de serviços gráficos. Por essa razão, Sr.
Presidente, é muito importante que, ainda nesta
Legislatura, a Mesa do Senado Federal proponha
projeto de resolução que possa dirimir dúvidas em
relação aos serviços que podem ser solicitados à
Gráfica. Deve haver total transparência nos atos da
Administração.

A meu ver, o uso da Gráfica não deve ser visto como


algo privado. Trata-se de utilização de recursos
públicos, e isso deve ser – repito – transparente.

Os jornalistas têm solicitado dos Parlamentares – que


deveriam atendê-los – a relação dos serviços
solicitados ao Centro Gráfico. De minha parte, mostrei
aos interessados todos os pedidos que fiz e o material
correspondente. São cartões de apresentação,
folhetos de explicação do Projeto de Garantia de
Renda Mínima. Responsabilizo-me por aquilo que
solicitei, pois está de acordo com as normas legais.

No entanto, como houve dúvidas em relação aos


serviços que podem ser pedidos, sugiro ação da Mesa,
decorrente do diálogo com os Srs. Senadores, no
sentido de regulamentar essa matéria. Não sabemos
exatamente se estão em vigor as normas
estabelecidas em 1982, as de 1985, ou outras, razão
pela qual se devem atualizar os parâmetros a serem
seguidos. Devemos aprender com esse episódio,
corrigir eventuais falhas e disciplinar essa matéria, de
forma que a população possa tomar conhecimento do
que se faz com os recursos à disposição do Congresso
Nacional.

273
O senador Mansueto de Lavor criticou a falta de definição
de regras claras acerca da conduta dos detentores de cargos
eletivos, durante o processo eleitoral. Para ele, urgia uma Lei
permanente, visando regular as eleições:

...Alguns consideram que esse processo eleitoral está


viciado. Quando se considera que o processo é
ilegítimo, o seu resultado também será ilegítimo.
Lamentavelmente, está se dizendo isso praticamente
todos os dias em alguns programas eleitorais e já se
publicaram notas e artigos em órgãos da imprensa
estrangeira, levantando-se essa tese da ilegitimidade
do processo eleitoral brasileiro.

Não comungo dessa visão tão pessimista, Sr.


Presidente. Temos razões para nos regozijarmos com
este processo que se desenrola. Digo isso porque não
estou participando como candidato e posso analisar
com mais frieza mental e emocional o curso das
maiores eleições que se realizarão desde 1954.

A questão abordada do uso da máquina


administrativa é levantada em todos os processos
eleitorais porque não há uma lei eu tenha delimitação
precisa a respeito do comportamento dos
mandatários de cargos e mandatos, seja no Executivo,
seja no Legislativo. Coloca-se aqui a necessidade de lei
permanente para eleições futuras, regulamentando-se
o que seja transitório pela própria Justiça Eleitoral.
Creio que devemos ter princípios válidos para todas as
eleições. Sempre estranhei e considero pernicioso
para o processo democrático-eleitoral o fato de
termos e cada eleição uma lei específica; isso provoca
a ideia de casuísmo. Por outro lado, se houvesse um
princípio geral, consubstanciado em lei permanente
274
para todas as eleições, o circunstancial, como disse,
ficaria para a Justiça Eleitoral, nas suas resoluções e
nos seus regulamentos. Não estamos sugerindo que o
Poder Judiciário substitua o Legislativo. Não é isso!
Estamos defendendo que se evitem os casuísmos da
lei para esta ou para aquela eleição.

Nesse sentido, as acusações sobre o uso da máquina


eleitoral – excetuando-se aqui casos isolados de
pessoas que caíram em tentação e até confessaram
publicamente o seu erro – não procedem, vez que o
conjunto do Governo, o conjunto do Poder Legislativo
não esteve envolvido nesse vício, a tal ponto que a
vontade popular fosse bloqueada ou tivesse, digamos
assim, obstáculos intransponíveis para se manifestar
na próxima segunda-feira (…)107

A ideia de anistiar os parlamentares que fizeram uso da


gráfica do Senado começou a ganhar força após o STF ter
referendado a cassação do registro de candidatura de Humberto
Lucena, pelo TSE. Atento ao que ocorria no Congresso Nacional, o
jornalista Josias de Souza criticou a manobra jurídica:

É proibido condenar
Josias de Souza

Foi flagrado sem cinto de segurança? Fumou na ala de


não-fumantes: Furou a fila do cinema? Flertou com a
vizinha? Chamou a patroa de balofa? Soltou pum no
elevador lotado?

Calma, relaxe. Você está salvo. Peça ao Congresso que


o anistie. Isso mesmo, recorra aos parlamentares.

107
DIÁRIO DO CONGRESSO NACIONAL, edição de 29.09.1994.
275
Sob o argumento de que Humberto Lucena não pode
ser cassado por ter mandato imprimir calendários na
Gráfica do Senado, o Congresso prepara-se para
perdoá-lo.

Deputados e senadores estão prestes banalizar a


anistia. Incluído na Constituição para ser utilizado em
ocasiões especialíssimas, o instrumento será acionado
para livrar a cara de Lucena e de tantos quantos
tenham utilizado irregularmente os serviços da
Gráfica do Senado.

O Aurélio oferece-nos uma boa definição de anistia:


'Ato pelo qual o poder público declara impuníveis, por
motivo de utilidade social, todos quantos, até certo
dia, perpetraram determinados delitos (…)'.

Você, pequeno infrator, deve ficar atento. Não seja


tolo. Lute por seus direitos. Ora, se o perdão a Lucena,
com seus calendários, será considerado socialmente
útil, por que não tornarmos impuníveis também
outros pequenos delitos? É justo. É muito justo. É
justíssimo.

A anistia a Lucena não é tudo. Há entre os


parlamentares quem queira mais. Além do perdão,
deseja-se incluir na lei eleitoral uma novidade: a
permissão para que deputados e senadores possam
utilizar a Gráfica do Senado em época eleitoral.

Assim, a impressão de calendários, cadernos e


congêneres, às expensas do erário, não seria mais um
ato criminoso.

Vejo na ideia o início de uma revolução. Criativos, os


parlamentares logo aprovarão uma lei que deixe de
276
tipificar como crime não só a impressão de
calendários, mas também o assassinato, o sequestro,
o estupro, o roubo, o tráfico de drogas...Livres de tão
hediondas práticas, viveremos num paraíso
estatístico.108

Os parlamentares procuravam não se intimidar com os


sistemáticos ataques dos meios de comunicação. O representante
do Ceará, senador Cid Sabóia de Carvalho, correligionário de Lucena
e líder do PMDB, concitou seus pares a não aceitar a “patrulha” da
grande imprensa. Para Sabóia, o presidente do Congresso Nacional
estava sendo vítima de uma “operação fascista, altamente perversa”
e que, por esse motivo, os senadores não deveriam ter medo de
votar uma Lei de Anistia. Lembrou ainda o parlamentar que a Lei de
Anistia de 1979, “ampla, geral e irrestrita”, havia perdoado
terroristas e torturadores. Cid Saboia criticou ainda “a sanha, a
força, a loucura com que se investe contra Humberto Lucena, a
força que não se teve contra Fleury, o torturador, que tanto abalou
os nervos da Nação”, afirmou, numa referência direta aos
parlamentares petistas que eram contrários ao Projeto de Lei que
beneficiaria Lucena.

Em resposta ao discurso de que a anistia era casuística,


retrucou Sabóia: “ - E qual a anistia que não é casuísmo? Casuística
é toda e qualquer lei onde o Estado favoreça de algum modo,
favoreça para não pagar impostos.109E, reportando-se à decisão do
STF, o líder peemedebista argumentou:

...O Supremo não admitiu que a matéria ingressasse


na sua Casa, nas suas portas, que fosse adiante dos
portais. A matéria voltou do Relator e do Plenário sem
108
Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, edição de 05.12.1994, p. 1-2.
109
DIÁRIO DO CONGRESSO NACIONAL, edição de 14.12.1994, p. 8971.
277
o conhecimento de mérito, porque não era
competência do Supremo examinar essa matéria. Mas
os Ministros reconheceram: há preclusão. Diziam:
'Não preclusão, mas coisa julgada'. 'Não há coisa
julgada, há preclusão. 'Preclusão, coisa julgada'. Os
ministros se sucederam dentro desse juízo e diziam:
'Com preclusão, este Tribunal não funcionou: sobre
preclusão, ele não trabalha, não analisa a preclusão.
Volta a matéria às vias ordinárias. 'Para quê'? Para a
Justiça Eleitoral reexaminar? Não tem como. Não há
ação rescisória na Justiça Eleitoral. Qual o remédio?

Meus companheiros entenderam que era a anistia. Eu


entendi que era instituir a rescisória na Justiça
Eleitoral e regulamentar o art. 102, para dizer que
prazo precluso que leve a sentença definitiva é, sim,
coisa julgada, da competência do Supremo, que, nesse
mister, diminuiu-se diante da opinião pública, por não
ter a devida coragem de examinar uma coisa julgada
e a intitulou, para tanto, de coisa preclusa. Mas eu,
como professor de Direito, digo: é coisa julgada, e não
coisa julgada meramente preclusa. Já estava bem à
frente da coisa meramente preclusa; era sentença
transitada em julgado; não podia ter o exame.

Qual a solução? A solução era a anistia. Mas nós, que


votamos a anistia de terroristas, que votamos a
anistia de estupradores de mulheres, inclusive de
freiras, que votamos a anistia dos que puseram
bombas em locais públicos – já pessoas aleijadas
pelas ações dos terroristas -, não poderíamos anistiar
o nosso companheiro Humberto Lucena, um homem
digno, que nem patrimônio fez durante mais de
quarenta anos de vida pública?

278
E concluiu seu emocionado discurso:

Essa (a anistia) eu voto vinte, trinta, mil vezes; voto


todo caso desse tipo, pronto a reparar o atentando à
cidadania. Jamais tolerarei o atentado à cidadania.
Coisa julgada, negócio jurídico perfeito, direito
adquirido, são as pilastras nas quais eu me monto,
como um democrata, para poder enfrentar os meus
alunos numa Faculdade de Direito. Eu não teria
coragem de negar esse voto aqui e depois me
apresentar diante de alunos da Faculdade de Direito.
(...)110

As decisões do TSE e do STF causaram um grande impacto


na classe política. O senador Josaphat Marinho, em discurso de
06.12.1994, registrou a dificuldade do Senado reunir, em plenário,
número regimentalmente exigido para qualquer deliberação, isto
por que, após a decisão do Supremo Tribunal Federal, “um estado
de espírito marcadamente emocional dominou esta Casa.”. 111 Além
do cassado ser o presidente do Congresso Nacional, pesava ainda o
fato de Humberto ter sido reeleito pelo voto popular, mesmo após a
decisão do TSE.

Oradores se revezaram várias vezes na Tribuna do Senado.


Queriam manifestar solidariedade. O senador Júlio Campos, um dos
mais indignados, alertou que a decisão do TSE “não iria parar em
Lucena”. Na opinião do secretário-geral do Senado, a Lei de Anistia
era a única forma de reparar o abuso da Justiça Eleitoral, que havia
aplicado uma pena desproporcional ao ilícito: “ - Só uma anistia
“ampla, geral e irrestrita” evitaria maiores danos para a classe
política brasileira”, defendeu Júlio Campos. Eis trecho do seu

110
DIÁRIO DO CONGRESSO NACIONAL, edição de 14.12.1994, p. 8973.
111
DIÁRIO DO CONGRESSO NACIONAL, edição de 07.12.1994, p. 8116.
279
pronunciamento:

...Essa decisão do TSE é muito grave, abriu um


precedente gravíssimo. Temos que ter muito cuidado.
Com todo o respeito que o Tribunal Superior Eleitoral
deve ter deste País, houve uma punição aquém da
necessidade, e cabe ao Congresso consertar qualquer
abuso. O Congresso é soberano. O Congresso
Nacional tem poderes para dar anistia para bandido,
para terrorista, para assassinos, como já deu no
passado; tem poderes para julgar, para absolver
presidente, para julgar até os ministros do Supremo
Tribunal Federal. (…)

Então, dentro de uma lógica legal e do respeito, as


duas Casas do Congresso têm que se reunir e tomar
uma decisão; caso contrário, os outros também serão
enquadrados na mesma punição recebida pelo
Senador Humberto Lucena; não só S. Exa. mas outros
10 ou 15 Parlamentares desta Casa e outros tantos –
o triplo, talvez, da Câmara dos Deputados. Se
fornecermos a listagem de quem usou a Gráfica do
Senado, podendo, então, ser enquadrados também no
mesmo crime de abuso eleitoral, causaremos um
tumulto muito grande; governadores até de Estados
grandes poderão ser enquadrados na lei que punirá,
com a cassação do mandato, muitos que já estão até
recebendo o diploma. Isso é muito grave! Temos que
analisar com cabeça fria. A anistia tem que ser
decidida com uma certa urgência, para evitar maiores
consequências à classe política.112

A revolta dos parlamentares recrudesceu quando a Suprema


Corte, poucos dias após julgar Humberto Lucena, absolveu o ex-
112
DIÁRIO DO CONGRESSO NACIONAL, edição de 07.12.1994, p. 8120.
280
presidente Fernando Collor de Mello, sob a alegação de
insuficiência de provas. Uma nova avalanche de críticas caiu sobre
os ministros do STF. Na ótica dos senadores, o Poder Judiciário
estava sendo hipócrita, quando punia severamente alguns, como
Humberto Lucena, enquanto acobertava a impunidade dos “grandes
malfeitores', numa alusão ao ex-presidente Collor de Mello.113 O
senador Jarbas Passarinho foi o único a sair em defesa do Supremo
Tribunal Federal:

...'A pior espécie de ignorância é cuidar uma pessoa


saber o que não sabe. Daí o número de leigos em
Direito que se têm manifestado, quer sobre a decisão
do Supremo a respeito do ex-Presidente Collor, quer
sobre o affair Humberto Lucena. Uma coisa é ir ao
colega, manifestar-lhe a solidariedade em seu
momento amargo. Outra é desancar os ministros, pois
que, ao negarem provimento ao recurso impetrado
pelo senador, não o julgavam quanto ao mérito, mas
quanto à impropriedade do recurso. Quem o julgou no
mérito foi o Tribunal Superior Eleitoral, e este nada
mais fez do que interpretar a lei que nós, senadores e
deputados, fizemos.114

Em artigo publicado no JORNAL DA PARAÍBA, Humberto


Lucena comentou a decisão do STF, por ele considerada equivocada.
Afirmou o senador:

O respeito e a discordância
Senador Humberto Lucena*

Em nota à imprensa, dia 02 último, apropriei-me das


113
Trecho do discurso do senador Jutahy Magalhães, do PSDB da Bahia, pronunciado em
14.12.94 (DIÁRIO DO CONGRESSO NACIONAL, edição de 14.12.94, p. 9139).
114
DIÁRIO DO CONGRESSO NACIONAL, Seção II, p. 9561.
281
palavras do deputado Luiz Eduardo Magalhães para
perfilar minha indignação e revolta diante da
cassação de minha candidatura, afirmando que
'respeito a Justiça, mas não concordo com a sua
decisão'. Afinal, os equívocos do Poder Judiciário, em
suas duas instâncias, representadas pelo Tribunal
Superior Eleitoral e pelo Supremo Tribunal Federal,
neste caso, saltam aos olhos.

Logo, ao primeiro momento em que fui perguntado


sobre a decisão do STF não titubiei em usar o lugar
comum de esta em parte ser cumprida e não
discutida. Pois esta posição, antes de ser algo batido,
representa, mesmo, a própria essência da força que
deve emanar de um Poder, cuja expressão e
fundamentalidade está justamente na condição de ele
ter suas decisões posas em prática, sem contestações
para que se complemente o equilíbrio e harmonia dos
Poderes da República.

Entretanto, esse respeito ao Poder Judiciário, em


particular à sua instância máxima, não poderia nunca
fazer-me calar, como se concordasse em que
realmente tivesse cometido quaisquer crime de
caráter eleitoral, pelo fato de ter, como muitos de
meus pares do Congresso e eu, vimos fazendo há
tempos, publicado um calendário de fim de ano, para
comunicar-me e congratular-me com meus eleitores e
amigos da Paraíba e do Brasil.

Por mais repetitivo, devo dizer que, em nenhum


momento, se cogitou com tais calendários de intervir
em proveito eleitoral próprio. Em bom senso, não se
poderia jamais considerar assim uma atitude que, do
ponto de vista da administração e normatização da
conduta dos membros do Congresso e, no caso,
282
especificamente do Senado Federal, estava
devidamente embaçada por ato soberano de uma
mesa diretora. Este o grande equívoco do TSE.

Usando das prerrogativas de qualquer cidadão


brasileiro, busquei os caminhos da retificação,
dirigindo-me ao STF, na forma legal. Esperava,
evidentemente, que aquela Corte viesse a tomar
conhecimento do recurso interposto por meus
advogados. E tenho, como já disse, absoluta convicção
de que, se o Supremo tivesse agido assim, o resultado
teria sido outro.

Pois bem. Agora, não adianta chorar sobre o leite


derramado. E resta-me agradecer do fundo do meu
coração a solidariedade que tenho recebido de todos
os recantos do país, da parte dos que realmente me
conhecem e têm acompanhado os quarenta anos de
minha vida pública, na qual, me orgulho de dizer,
nunca se encontrou um viés sequer, capaz de manchar
a sua probidade e permanência de sua ação em
defesa dos benefícios e das saídas progressistas, para
o Brasil, para o Nordeste e a Paraíba.

Do mesmo modo, devo dizer do meu agradecimento


aos meus companheiros do Senado e da Câmara, que
continuam em verdadeira vigília cívica de caráter
institucional, em defesa das prerrogativas e
atribuições do Congresso Nacional.

Mas, como não poderia deixar de ser, tenho de


manifestar, sobretudo, o meu infinito agradecimento,
de um modo tão especial, ao povo da Paraíba. Um
povo que hoje não pode conformar-se de modo algum
com uma decisão judicial que lhe anula uma escolha
eleitoral insofismável, de quase quinhentos mil votos
283
com que me reelegeram Senador.

Não obstante, continuo, como é do meu direito, a


examinar juntamente com os meus advogados os
aspectos jurídicos alternativos cabíveis, para
continuarmos a demanda judicial. E, para isso, lutarei
até o fim, continuando a asseverar que, antes de tudo
e todos, tenho a certeza de que, por fim, se imporá a
Justiça Divina, encontrando-se uma forma retificadora
da referida decisão judicial.

Efim, Deus e o povo são a quem devo curvar-me. A


Ele, abrindo minha alma de ser humano, com suas
virtudes e limitações. Ao povo, para que continue,
como fez nas urnas e em suas manifestações de apoio,
a julgar-me. Certo de que não há como colocar-me no
rol dos que, representando interesses de grandes
grupos econômicos, têm usado a vida pública apenas
para servir-se e não para servir verdadeiramente ao
povo de sua terra, que os elegeram justamente para
isso.

Essa gente, a quem falta o escrúpulo próprio dos


grandes homens, e que são capazes de
estarrecedoramente se posicionar hoje, agradecendo
a Deus e considerando justa a decisão do Supremo
Tribunal Federal. Como o adversário Raimundo Lira, a
quem derrotei na última eleição, colocando-se, desse
modo, contra a honra dos paraibanos, que dele
esperavam outro comportamento, que não esse.

Mas, desabafos à parte, devo dizer que continuo firme


em meu propósito de fazer, com redobrado denodo, o
que sempre fiz: manter-me na política, pondo a
serviço do meu partido toda a minha experiência e
minha dedicação, para, junto com o povo,
284
construirmos as bases de uma nação renovada e
desenvolvida, em termos políticos e sócio-econômicos.

(*) Presidente do Senado Federal

Os discursos na tribuna do Senado se alternavam entre


indignados e veementes. Algo precisava ser feito, não apenas para
livrar a “pele” de Humberto Lucena, mas também para evitar
decisões judiciais que viessem a criar uma jurisprudência que, com o
tempo, tal como uma metástase, viesse a atingir outros
parlamentares que haviam incorrido no mesmo ilícito. Segundo o
senador Carlos Patrocínio, entre 60 a 70 parlamentares estariam
incursos no mesmo deslize praticado pelo senador paraibano. 115
Sem o menor pudor, o senador Epitácio Cafeteira acusou a
estratégia:

...Será que esse artifício de ser marcar uma sessão, para


a qual muitos Senadores não vêm porque não sabem,
e se colocar uma Ordem do Dia que serve apenas de
boi de piranha – V. Exa. conhece: o boi é riscado com
uma faca para sangrar bastante e é jogado no rio
para que as piranhas corram para ele, enquanto a
boiada passa. Vamos usar esse artifício para votar, em
regime de urgência, um Projeto de anistia ao
Presidente Humberto Lucena? (…)

Todo mundo sabe que o Senador Humberto Lucena é


um homem sério, íntegro, honesto. Foi meu
companheiro de lutas no velho MDB, quando
passamos, muitas vezes, por dificuldades, inclusive
ameaças de cassação. Durante tantos anos de vida
pública, o Senador Humberto Lucena nunca se
envergou. A colocação que faço é que este homem

115
DIÁRIO DO CONGRESSO NACIONAL, edição de 08.12.1994, p. 8385.
285
sério e íntegro está despertando uma paixão em todos
nós. No entanto, acredito que em relação a esse
projeto de anistia existe um grupo muito grande que
quer se esconder atrás de um homem como o Senador
Humberto Lucena. E uma grande parte de nós está
aceitando que, tal como o Projeto do Senador
Eduardo Suplicy, o Senador Humberto Lucena seja um
boi de piranha nesse Projeto de anistia, que seja
apenas o estandarte do bloco, atrás do qual, tocando
a caixa e batendo o tambor, venha muita gente...

Enquanto o presidente do Senado e seus correligionários


lamentavam o revés sofrido no STF, o senador Raimundo Lira era
uma alegria só. Terceiro colocado nas eleições para o Senado, Lira
dava sinais que estava pronto para assumir a vaga de Humberto: “ -
Não tem jeito. Supremo é irrecorrível”, 116 disse entusiasmado com o
último pronunciamento judicial e dizendo-se “justiçado”. Julgava
que os aludidos calendários tiveram potencialidade suficiente para
decidir o pleito em favor de Lucena.

Ocorre que o senador Raimundo Lira também havia


mandado imprimir na Gráfica do Senado, 300 mil cadernos escolares
de 20 páginas com sua foto na contra-capa. Alertado por sua
assessoria de que a Lei Eleitoral tratava o fato como ilícito, ele não
distribuiu entre os seus eleitores: “ - Mandei guardar tudinho”,
garantiu Lira.

A mesma diligência não teve a assessoria do presidente do


Senado!

Quando se imaginava que o STF havia colocado um ponto-


final no assunto, uma nova polêmica passou a ser o centro das
116
JORNAL DO BRASIL, edição de 03.12.1994, p. 3.
286
discussões no meio jurídico: Humberto poderia ser diplomado pela
Justiça Eleitoral, mesmo após a decisão da Suprema Corte ter
negado o seu recurso? Advogados do senador Humberto largaram
na frente e ensaiaram nos jornais a seguinte tese: como o acórdão
do STF ainda não havia sido publicado no Diário da Justiça, era
direito de Lucena receber seu diploma de candidato eleito pelo voto
popular.

Os meios de comunicação especulavam a realização de uma


nova eleição na Parahyba, com o fim de preencher a vaga aberta
pela cassação. A tese era a de que a soma dos votos nulos da eleição
de senador – 405.060 -, com os votos dados a Lucena - 415.888, que
também deveriam ser anulados após a decisão do STF transitar em
julgado -, superaria o número dos votos válidos dados a todos os
candidatos, o que não era verdade. Cogitaram os jornais ainda que o
procurador regional eleitoral, Antônio Carlos Pessoa Lins, teria
tentado impedir a posse do senador eleito, mas a Corte teria
indeferido o seu pedido.

Para alguns juristas do país - Celso Ribeiro Bastos e Walter


Ceneviva -, não havia mais saída jurídica para Humberto Lucena.
Após o pronunciamento do STF, o último a dar palavra na
interpretação das leis, a cassação do senador paraibano era página
virada: “- A insurgência do Senado não tem cabimento”, afirmou
Ribeiro Bastos, professor de Direito Administrativo da PUC/SP.
Advogados do PMDB já se movimentavam no sentido de tentar
garantir na Justiça que a vaga ficasse com o suplente de Lucena,
Wellington Roberto.117

Nem Raimundo Lira, nem o suplente Wellinton Roberto.


Tampouco haveria nova eleição. Lucena não era nenhum “cão sem
117
Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, ed. de 03.12.1994, p. 13.
287
dono”. Presidente do Senado e o terceiro na ordem de sucessão da
presidência da República, ele havia sido reeleito senador com quase
meio milhão de votos! A resposta do Congresso Nacional viria
imediata. Deputados e senadores prepararam uma série de medidas
legais que ficou conhecido como “pacote Lucena”. Quatro Projetos
de Lei foram rapidamente elaborados para salvar o senador
paraibano: uma Lei de anistia; a criação da Ação Rescisória Eleitoral
para anular os efeitos da decisão do TSE; a regulamentação do
instituto da Ação de Arguição de Preceito Fundamental e a alteração
da Lei de Inelegibilidades.

Mais do que simples Projetos de Lei, eles simbolizavam uma


verdadeira declaração de guerra do Poder Legislativo ao Poder
Judiciário. Com o “pacote Lucena”, os parlamentares abriram uma
verdadeira “caixa de Pandora”!118

* * *

118
Um dos mitos gregos. Segundo a narrativa do poeta grego, Hesíodo, a chegada da primeira
mulher à Terra trouxe também a origem de todas as tragédias humanas. Pandora foi a
primeira mulher criada por Hefesto sob as ordens de Zeus. De acordo com Hesíodo, o titã
Prometeu presenteou os homens com o fogo para que dominassem a natureza. Zeus, o chefe
dos deuses do Olimpo, que havia proibido a entrega desse dom à humanidade, arquitetou sua
vingança criando Pandora, a primeira mulher. Antes de enviá-la à Terra, entregou-lhe uma
caixa, recomendando que ela jamais fosse aberta pois dentro dela os deuses haviam colocado
um arsenal de desgraças para o homem, como a discórdia, a guerra e todas as doenças do
corpo e da mente mais um único dom: a esperança. Vencida pela curiosidade, Pandora
acabou abrindo a caixa liberando todos os males no mundo, mas a fechou antes que a
esperança pudesse sair. Essa metáfora foi a maneira encontrada pelos gregos para
representar, num enredo de fácil compreensão, conceitos relacionados à natureza feminina,
como a beleza, a sensualidade e o poder de dissimulação e de destruição.
288
CAPÍTULO 4
A ANISTIA

289
O PROJETO LUCENA”
O Senado pode tudo. (senador Júlio
Campos).

Durante os trabalhos de elaboração da Constituição Federal,


em abril de 1988, ante um colegiado composto de quinhentos e
cinquenta e oito constituintes, Humberto Coutinho de Lucena
defendeu, com entusiasmo, Emenda de sua autoria, que viria a
consolidar e manter o presidencialismo como sistema de governo. A
proposta do senador paraibano enterrava a ideia alimentada por
alguns de ver implantado no Brasil o parlamentarismo.

Atuando em causa própria, o presidente da República, José


Sarney, empenhou-se pessoalmente na aprovação da “Emenda
Humberto Lucena”. Com trânsito fácil na Casa que presidia,
Humberto conseguiu arregimentar o maior número possível de
parlamentares em torno de sua Proposta. Esperava conquistar
trezentos e dez votos, mas o resultado da votação superou todas as
expectativas: a Emenda Constitucional foi aprovada pelo voto de
trezentos e trinta e quatro constituintes.

O presidente José Sarney não esqueceria o gesto do


senador paraibano!

Em 11 de maio de 1994, quando ainda contestava no TRE, a


representação feita pelo procurador regional eleitoral, Humberto
sancionou a Lei nº 8.878, que anistiava servidores públicos civis e
empregados da administração pública federal, exonerados
demitidos ou dispensados por motivações políticas, ou por
interrupção de atividade profissional em decorrência de
movimentação grevista.

290
Sete meses depois, era Humberto Lucena quem precisava
de uma Lei de anistia. Reeleito para um novo mandato no Senado,
seu registro estava cassado pelo TSE. Havia chegado o momento de
Sarney retribuir. O apoio do ex-presidente da República seria
fundamental para a aprovação da “Lei Humberto Lucena”. A
expressão, usada pelo senador baiano Jutahy Magalhães, era a que
melhor traduzia o conteúdo da Lei que livraria parlamentares que
fizeram uso da Gráfica do Senado, com fins eleitorais.

Senadores e deputados viam na anistia a forma mais viável


de não afrontar o Poder Judiciário: “Dando a anistia, estamos
buscando o entendimento, sem entrarmos em choque com o
Supremo”, disse o vice-líder do PFL, Humberto Souto, de Minas
Gerais.

Os membros do Congresso Nacional fizeram da “Lei


Humberto Lucena” a principal bandeira de luta em defesa da
autonomia do Poder Legislativo. Na avaliação dos parlamentares, as
decisões do TSE e do STF interferiam indevidamente em suas
prerrogativas: “ - Vamos usar todas as possibilidades jurídicas e
legislativas para garantir a posse de Lucena”, ameaçou o presidente
do PMDB, deputado federal Luiz Henrique, que prometia ainda que
o partido “não daria tréguas ao STF”. Henrique não admitia que
Raimundo Lira, do PFL, assumisse a vaga de Humberto.119 Notícias
de bastidores davam conta de que os senadores ficaram
constrangidos com a possibilidade da Justiça Eleitoral diplomar
imediatamente o terceiro colocado no pleito.

Além do apoio da cúpula do PMDB, a “Lei Humberto


Lucena” tinha a adesão do líder do Partido da Frente Liberal, 120
119
JORNAL DO BRASIL, edição de 02.12.1994, p. 7.
120
JORNAL DO BRASIL, edição de 19.01.1995, p. 2.
291
deputado Luiz Eduardo Magalhães, que defendia uma fórmula para
salvar o presidente do Senado: “ - A Justiça tem que ser respeitada,
mas o Congresso tem que encontrar uma saída jurídica para reverter
a cassação do senador Humberto Lucena”.121 Como em política não
existe altruísmo, a moeda de troca implicava no apoio do PMDB à
candidatura de Magalhães para a presidência da Câmara dos
Deputados. Juntos, deputados federais dos dois partidos formariam
a maioria dos votos do plenário suficientes para que o Projeto de Lei
tramitasse em regime de “urgência urgentíssima”. Sempre cruel em
suas análises quando envolvia o senador Humberto Lucena, o
JORNAL DO BRASIL usou da sua famosa “Coluna do Castelo” para
desnudar os reais motivos do PFL haver apoiado o “Projeto
Humberto Lucena”:

Marcelo Fontes
Um supermercado de ofertas

A anistia do senador Humberto Lucena é uma vitória


do corporativismo do Congresso e da chantagem
política. Tanto quanto o fato de a pena de cassação do
mandato de Lucena ser considerada desproporcional
ao crime eleitoral de imprimir calendários na gráfica
do Senado, pesou a favor dele o interesse de muitos
outros que cometeram o mesmo erro e temem
processos semelhantes na Justiça Eleitoral.

Os grandes partidos ficaram ao lado de Lucena.


Temeu-se até que quem viesse para a vaga de Lucena
no Senado fosse alguém pior do que ele – no caso
Raimundo Lira, terceiro colocado na eleição de
senador na Paraíba. Até a cúpula do PFL, o partido do
Lira, não topou essa troca. Preferiu Lucena. E a lei não
prevê uma nova eleição em situação como essa.
121
Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, edição de 02.12.1994, p. 1-9.
292
É impressionante como o caso Lucena se transformou
no assunto mais importante e mobilizador desta
semana de esforço concentrado do Congresso. O
destino pessoal e político de um senador, ou de
poucas dezenas de outros parlamentares, se sobrepôs
aos interesses mais relevantes de governo, no caso da
medida provisória que aumenta o Imposto de Renda
das empresas, ou da massa trabalhadora do país, no
caso do aumento do salário-mínimo para R$ 100.

Lucena foi o centro de um verdadeiro supermercado


em que se transformou o Congresso nesses últimos
dois dias. Deu-se abertamente no Congresso que, se
fosse negada anistia a Lucena, o governo perderia a
votação da medida provisória dos impostos. É muito
rasteira essa hipótese para se acreditar que pudesse
ser verdade. É inacreditável que um problema grave
de caixa do Tesouro ficasse subordinado a imposição
tão pequena.

Quer seja verdade ou não, ao menos a Câmara não
parou para examinar. A vinculação estrita entre
Previdência e salário-mínimo, ou a situação específica
da Previdência, não é o assunto mais importante do
momento. O importante é o proselitismo, a barganha.
Não seria surpresa se o mesmo Congresso que
aumentou o próprio salário e se submeteu ao
desgaste de anistiar Humberto Lucena aparecesse
como bonzinho para a classe trabalhadora,
aprovando o aumento do salário-mínimo para R$ 100.
Como ninguém tem dúvidas de que o presidente da
República vetará mesmo esse projeto, que se dane o
resto do mundo.

Não é a maneira mais responsável de tratar os


293
problemas do país.

Houve quem comparasse a trama dos congressistas com a


ação de grupos mafiosos. Professor de Ética da USP, o filósofo
Roberto Romano via a anistia como uma usurpação de poder do
Congresso Nacional. Eis trecho do artigo:

'Res publica' ou 'cosa nostra'

...Quando certo governador brasileiro, em data


recente, atirou na boca de um adversário, a maior
autoridade do Parlamento nacional veio a pública
para louvar a 'coragem' do sujeito. Esta mesma
autoridade, hoje, através de seus pares, desafia o
Supremo Tribunal Federal com manobras legais para
garantir-se no mando. O governador recebeu as
bênçãos dos deputados de sua Assembleia Legislativa.
Estas anistias devem ser combatidas com todas as
armas, através da imprensa livre, dos movimentos
sociais, das escolas etc.

A estratégia que se projeta no Parlamento, para


salvar o senador Humberto Lucena, é a última,
violência de uma legislatura que sistematicamente
voltou as costas para os eleitores. Com a anistia ao
senador Lucena ela rasga a lei, implode o respeito
pelos tribunais – no caso, o mais eminente da
República – e incentiva a todos os cidadãos a imitá-la.
Esperemos que os representantes honestos barrem
esse crime, para que reste alguma democracia em
nossa terra. Caso oposto, está aberta a porta para o
'monarca absolutista ou ditador de boa vontade'
indicados por Elliot. Como estes só existem nos contos
de fadas e não integram a vida real, é preciso salvar o
Estado de Direito. Neste, ninguém pode ser impune.

294
Para atingirmos este fim democrático, basta que os
deputados não mais confundam 'res publica' com
'cosa nosta'.122

No âmbito do Poder Executivo, os peemedebistas


esperavam que o novo presidente da República honrasse o
compromisso de campanha de sancionar a Lei. Eleito com o apoio
do candidato a governador na Parahyba - Antônio Marques da Silva
Mariz –. Fernando Henrique Cardoso havia prestado solidariedade
pessoal a Humberto Lucena após a decisão do TSE.

O Projeto de Lei de n. 88/94 – de autoria do senador


Jacques Silva -, também subscrito pelos senadores Irapuan Costa
Júnior, Júlio Campos, Nabor Júnior, Lucídio Portella, Mauro
Benevides, Ronaldo Aragão, João Calmon, João França e César Dias
- , concedia anistia aos candidatos nas eleições de 1994, que
estavam sendo processados ou condenados com base na Lei nº
8.713/1993. Reproduzo o Projeto de Lei, na íntegra:

PROJETO DE LEI DO SENADO N. 88, DE 1994

Concede, na forma do art. 48, inciso VIII, da


Constituição Federal, anistia aos candidatos às
eleições de 1994, processados ou condenados com
fundamento na legislação eleitoral em vigor.
O Congresso Nacional decreta:

Art. 1° E concedida ampla e geral anistia aos


candidatos às eleições de 1994, acusados ou
condenados pela prática de ilícitos eleitorais previstos
na legislação em vigor, em especial na Lei n° 4.737, de
15-7-65, na Lei Complementar nº 64, de 15-5-90, e na

122
Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, edição de 07.12.1994.
295
Lei nº 8.713, de 30-9-93, relacionados à impressão de
publicações e sua distribuição, nos limites das cotas
estabelecidas em cada uma das Casas do Congresso
Nacional, arquivando-se os respectivos processos e
restabelecendo-se todos os direitos por eles
alcançados.

Art. 2° Esta lei entra em vigor na data de sua


publicação, aplicando-se a quaisquer processos
decorrentes dos fatos e hipóteses previstos no artigo
anterior.

Art. 3° Revogam-se as disposições em contrário.

Justificação

Vive o País um momento de graves apreensões


quanto às relações entre os Poderes da República,
tendo em vista algumas decisões judiciais que, no
entender de parlamentares e legitimas representantes
do povo, invadiram a competência interna do
Legislativo a pretexto de aplicar a legislação eleitoral
e sob a invocação da igualdade de todos os
candidatos, titulares ou não de mandatos, aos vários
cargos eletivos.

Não é o momento de discutir-se o acerto ou desacerto


daqueles pronunciamentos do Judiciário. Não se pode,
porém, Ignorar que a Nação está chocada com o caso
do Senador Humberto Lucena, homem probo, de
ilibada reputação e s6lido conceito, construído ao
longo de quarenta anos na vida pública, com
incontáveis serviços prestados ao País e à República e
que teve cassado o registro de sua candidatura e, por
três anos, teve decretada sua inelegibilidade, pelo
simples fato de haver confeccionado, em ano anterior
296
às eleições, calendários na Gráfica do Senado Federal
a que tinha direito pelas normas internas da Casa.

Sabe-se que o processo contra o ilustre homem


público teve origem na Paraíba por iniciativa de um
membro do Ministério Público Eleitoral Sabe-se,
ainda, que apesar de absolvido pelo Tribunal Regional
Eleitoral, mais perto dos fatos e conhecedor da
realidade política do Estado, o Tribunal Superior
Eleitoral reformou a decisão condenando o honrado
Senador para dele fazer um exemplo de rigor
judiciário contra o alegado abuso eleitoral. Em vez de
exemplo fez um mártir.

Admitido recurso ao Supremo Tribunal Federal, a mais


alta Corte do País não pôde reapreciar a matéria,
proibida que está pelas regras técnicas que estreitam
em demasia a via do recurso extraordinário. No voto
do Ministro Francisco Rezek, ficou, com clareza,
expressa a angústia do augusto Tribunal, quando esse
ilustre magistrado registrou o erro do julgado do TSE
e a impossibilidade do STF de corrigi-lo.

Houve, no Congresso Nacional, naturais reações


contra a decisão do Supremo Tribunal Federal,
motivadas pela emoção que toda injustiça causa a.-..s
homens bem formados. Mas a verdade está no fato
de que a injustiça não foi perpetrada pela alta Corte,
pois, pelo sistema recursal vigente, esta não tem
competência para rever, na instância constitucional, a
apreciação da matéria de fato erroneamente
efetuada pela instância ordinária.

Não pode, porém, o Parlamento ficar indiferente ao


erro judiciário e à lesão causada a tão ilustre homem
público que teve nas umas das últimas eleições a
297
consagração de seus juízes os cidadãos de exercer o
mandato, que lhe foi outorgado por mais de meio
milhão de votos, seria cassar o direito fundamental do
povo paraibano de escolher seus representantes.

E não pode, por outro lado, ficar indiferente repita-se


ao erro judiciário e a lesão causada, porque tal
decisão prenuncia o enquadramento de dezenas de
Senadores e Deputados que se encontram na mesma
situação do Senador paraibano. Aliás, vários já
respondendo processos judiciais e outros que serão
enquadrados conforme orientação da Procuradoria-
Geral da República. E, mais ainda, porque não
praticaram qualquer ilícito eleitoral como se
demonstra a seguir.

Recorde-se, de início, que os Senadores e Deputados


não distribuíram durante a caiiip11lha eleitoral
qualquer boletim informativo, cartões os calendários
confeccionados pelo Centro Gráfico de Senado
Federal. Fizeram distribuição, sim, no final de 1993 e
início de 1994, longe das convenções partidárias cujo
prazo limite para realizá-las era 30 de maio de 1994,
longe, muito longe da campanha eleitoral, quando
sequer estavam escolhidos como candidatos à
reeleição ou a outro cargo sujeito ao voto popular.

Por outro lado, os calendários não continham


propaganda eleitoral, sendo apenas uma mensagem
de final de ano dirigida a toda sociedade brasileira.

Agiram, Deputados e Senadores, dentro da orientação


traçada pelo TSE, ao responder à Consulta nº 14.404,
do Distrito Federal, formulada pelo Senador Márcio
Lacerda da qual foi Relator o eminente Ministro Carlos
Veloso, hoje Presidente daquele Tribunal, e que é do
298
seguinte teor:

'O empréstimo do imóvel sob o regime de Comodato,


instituído pelo Código Civil Brasileiro (arts. 1.248 e
seguintes), para funcionamento de Comitês de
Campanha Eleitoral, será considerado como doação
estimável em dinheiro. e como tal deve ser
contabilizado como gasto de campanha?

2. Em caso afirmativo, assim também será


considerada a atividade do eleitor que, por sua
própria iniciativa, coletar material do candidato e
instalar em sua propriedade um comitê domiciliar, em
que se distribui material de divulgação e orienta
eleitores que buscam informação.

3. Quanto à propaganda eleitoral, o senador ou


deputado candidato que, durante o exercido do seu
mandato, sempre expediu Boletins informativos por
conta de seu gabinete parlamentar, levando a
sociedade de modo em geral o conhecimento de sua
atuação parlamentar, pode continuar a fazê-lo no
período da campanha eleitoral, sem que isto configure
propaganda ilícita ou ilegal.

O Tribunal Superior Eleitoral deu a referida consulta a


resposta a seguir transcrita, verbis:

Consulta nº 14.404, classe 10 instruções Distrito


Federal (Brasília)

Relator: Ministro Carlos Veloso. Eleitoral. Eleições de


1994. Gastos de campanha. Empréstimo de imóvel:
comodato. Valor estimável em dinheiro:
contabilização. Parlamentar. Candidato à reeleição.

299
Boletim Informativo: utilização. Propaganda Eleitoral:
caracterização.

I. O empréstimo de imóvel sob regime de comodato,


para funcionamento de comitês eleitorais, será
considerado como doação estimável em dinheiro e,
como tal, deve ser contabilizado como gasto de
campanha. Inscrições art. 51, VI; Lei n" 8.713/93, art.
47, VI.

II. O. eleitor pode realizar gastos pessoais, em bens e


serviços m apoio a candidato de sua preferência até
um mil IFJR, desde que esses gastos não sejam
sujeitos a reembolso pelo candidato ou pelos comitês
ou partidos.

III. O parlamentar que é candidato não pode, no


período da campanha Eleitoral expedir Boletins
Informativos por conta do Erário, divulgando a sua
atuação parlamentar. É que essa prática, durante a
campanha eleitoral, configura propaganda ilegal,
dado que constitui doação proveniente do Poder
Público, Instruções, art. 48, li,. e art. 75; Lei n" 8.
713/!13, art. 45, 11, Código Eleitora~ art. 377.

Decisão unânime. Presidência do Ministro Sepúlveda


Pertence. Presentes os Ministros Carlos Veloso, Marco
Aurélio, Antônio Pádua Ribeiro, Torquato Jardim, Diniz
Andrada."

Mesmo assim a Justiça Eleitoral considerou delitiva a


conduta dos congressistas.

Vê-se portanto, a todo o poder de clareza, o


lamentável equívoco da decisão do TSE no caso do
Senador Humberto Lucena e de outras decisões já
300
tomadas por TREs atingindo congressistas que se
encontram na mesma situação, sem falar em
inúmeros processos em andamento e outros a serem
intentados a partir da diplomação de vários
candidatos eleitos.

Como então o Congresso Nacional ficar inerte diante


de tal situação? Deve calar-se ou reagir para
proclamar o equívoco, o erro e a partir dele, num
gesto de soberania, resgatar a verdade e dela extrair
as consequências político-jurídicas, de modo a
restabelecer os direitos violados, prevenindo,
inclusive, a violação de outros? Deve reagir, não há
dúvida.

Assim o Congresso Nacional deve usar suas


prerrogativas e na forma prevista pelo art. 48, inciso
VI, da Constituição Federal, decretar, através de lei, a
anistia por delitos eleitorais para os candidatos ·que
foram por equívoco da Justiça Eleitoral e nas
circunstâncias acima descritas, processados,
condenados ou não, em razão do pleito deste ano de
1994, Carlos Maximiliano, em sua obra notável,
Comentários à Constituição Brasileira de 1946, ensina
que:

'Não se concede anistia por sentimentalismo, simples


bondade, simpatia pelo vencido ou misericórdia
pessoal. É medida "altamente política, adotada por
motivos que não humilham o cidadão a quem ela
aproveita, inspirada por sérias razões de estado.
Emprega-se quando a própria sociedade tem mais
interesse na demência que no rigor, porque
circunstâncias ocasionais aconselham o esquecimento
das infrações e a impunidade para certos crimes,
como supremo recurso para acalmar os ânimos e
301
pacificar uma região' (pág. 157).

No caso concreto, que inspirou este projeto, a anistia


aqui proposta visa, sobretudo, apagar o erro judiciário
e a acalmar os ânimos, que se acirram contra o
Tribunal Superior Eleitoral. No mais profundo objetivo
do instituto constitucional, o maior beneficiado com a
medida será o Poder Judiciário, posto que extinta e
esquecida a condenação injusta, pacificados ficarão
os eleitores da Paraíba pela acatação que a lei imporá
à manifestação de suas vontades nos votos
outorgados ao Senador Humberto Lucena.

Consagrar-se-á igualmente e por via legal o respeito


nos demais casos aos eleitores brasileiros de outros
Estados, que sufragaram os candidatos de suas
preferências, mas foram contestados através de
processos judiciais, evidentemente provocados pelo
inconformismo dos derrotados, que descobriram o
modismo de recorrer à Justiça Eleitoral para obter
aquilo que o povo lhe negou. Impõe-se, pois, uma
lição de respeito à vontade do povo, sempre
violentado nas urdiduras dos gabinetes.

Além do mais, a lei de anistia é imune à revisão


judicial, segundo o antigo entendimento do próprio
Supremo Tribunal Federal, recordado pelo jurista
Carlos Maximiliano na obra citada:

'Não se discutem os motivos, nem a justiça ou a


oportunidade da concessão, depois de feita esta. O
assunto de natureza essencialmente política
enquadra-se na competência exclusiva do Congresso,
cujo veredictum, sobre o caso, não sofre revisão do
Judiciário.' (pág. 159).

302
Assim justificamos a apresentação deste projeto,
registrando que, no atual sistema constitucional, a lei
de anistia envolve a manifestação de dois Poderes,
posto que está sujeita à sanção do Presidente da
República. Aprovado o presente projeto e sancionado
pelo Executivo, o Pais voltará à normalidade da
harmonia entre os Poderes, ficando registrado, na
atenção de todos, que os erros do Judiciário não são
absolutos e irremediáveis. O Congresso Nacional
sempre tem meios para corrigi-los prontamente e, se
necessário, severamente.

Sala das Sessões, 6 de dezembro de 1994 - Jacques


Silva - Irapuan Costa Júnior - Júlio Campos - Nabor
Júnior - Lucídio Portella – Mauro Benevides - Ronaldo
Aragão - João Calmon - João França - César Dias.123

No Senado, o “Projeto Lucena” entrou na Ordem do Dia da


sessão de 07 de dezembro de 1994, uma semana depois do STF
haver “decidido não decidir” o Recurso Extraordinário interposto
pelos advogados de Humberto. Na Comissão de Constituição e
Justiça, o senador Jutahy Magalhães emitiu parecer oral:

Sr. Presidente, Sras. e Srs. Senadores, o Projeto de Lei


do Senado n. 088, de 1994, de autoria do ilustre
Senador JACQUES SILVA e de outros membros desta
Casa, objetiva anistiar os candidatos às eleições
realizadas neste ano ‘acusados ou condenados pela
prática de ilícitos eleitorais...relacionados à impressão
de publicações e sua distribuição, nos limites das cotas
estabelecidas em cada uma das Casas do Congresso
Nacional, arquivando-se os respectivos processos e
restabelecendo-se todos os direitos por eles

123
DIÁRIO DO CONGRESSO NACIONAL, edição de 07.12.1994, p. 8121/8122.
303
alcançados.’, não foram apresentadas emendas.

É o relatório.

II – Dos Aspectos Jurídicos e da Redação

Os requisitos formais de constitucionalidade estão


satisfeitos pelo Projeto de Lei sob exame: a matéria é
de competência da União (Constituição Federal, art.
21, inciso XVII), de iniciativa concorrente (CF, art. 61),
e deve ser normatizada por intermédio de lei (art. 48,
inciso VIII).

Ainda quanto à constitucionalidade, não se verifica


qualquer vício material. O instituto da anistia é
passível de ser aplicado na hipótese de ilícito eleitoral
e, pela sua própria natureza, tem por objeto fatos
pretéritos, razão pela qual se descarta o argumento
de que contrarie o disposto na Carta Magna, art. 5º,
inciso XXXVI.

A proposição atende, ainda, aos demais requisitos de


juridicidade e foi elaborada com observância da
adequada técnica legislativa.

III – Do Mérito

Quanto ao mérito, deve-se reconhecer a correção e


oportunidade dos argumentos formulados na
justificação do Projeto, para os quais se pede a
especial atenção dos Senhores Senadores.

Nessa peça estão descritos os principais fatos


relacionados com a matéria sob exame, em particular
a punição sofrida pelo nobre Presidente desta Casa,

304
Senador HUMBERTO LUCENA, e o consequente risco
de tensões entre os Poderes Legislativo e Judiciário.

Na análise da polêmica, em todas as suas


especificidades, percebe-se que a concessão da anistia
é o meio jurídico e político mais adequado para a
superação desses episódios, pois, sem ferir a
autonomia das decisões do Poder Judiciário,
possibilita que se consume plenamente a vontade
popular expressa nas urnas.

Em outros termos, o caminho da anistia contém sem


traumas e sem prejuízo à independência de qualquer
dos Poderes – a vantagem de contornar o incipiente
conflito, pondo fim ao questionamento sobre estar, ou
não, havendo, nos processos judiciais eleitorais,
interferência do Judiciário em questões internas do
Legislativo e, por outro lado, conferindo aos eleitos o
direito de terem preservados os mandatos
populares.
IV. Conclusão

Em face dos argumentos expostos, opinamos pela


aprovação do Projeto de Lei do Senado n. 088, de
1994, quanto à constitucionalidade, juridicidade,
técnica legislativa e mérito, nos termos propostos pelo
nobre Senador JACQUES SILVA e demais subscritores.

Três parlamentares do PMDB - Mansueto de Lavor, Mauro


Benevides e Alfredo Campos -, usaram da palavra para discutir o
Projeto. Lavor foi o primeiro a falar:

Sr. Presidente, Sras. e Srs. Senadores, o processo em


tela vista à anistia a ser decretada pelo Congresso
Nacional àqueles que cometeram ou supostamente

305
cometeram crimes previstos na atual legislação
eleitoral.

Convém recordar que quando esta Casa tomou


conhecimento da decisão do Tribunal Superior
Eleitoral, em resposta à Consulta do eminente
Senador Márcio Lacerda, desta mesma tribuna, fiz um
pronunciamento – presidia a sessão o eminente
Senador Humberto Lucena -, alertando os membros
do Congresso Nacional, principalmente aqueles que
postulavam um novo mandato eletivo, sobre os riscos
permanentes em que estavam incorrendo, diante da
resposta do TSE, especificamente em relação à
terceira pergunta: ‘Quanto à propaganda eleitoral, o
Senador ou Deputado candidato que, durante o
exercício do seu mandato, sempre expediu boletins
informativos por conta do seu gabinete parlamentar,
levando à sociedade de modo geral o conhecimento
de sua atuação parlamentar, pode continuar a fazê-lo
no período da campanha eleitoral, sem que isso
configure propaganda ilícita ou ilegal’

Foi a pergunta cautelosa – se bem que nos pareça


inoportuna -, do eminente Senador Márcio Lacerda. O
TSE respondeu e a Mesa deu ciência a toda a Casa:

O Parlamentar, que é candidato, não pode, no período


da campanha eleitoral, expedir boletins informativos
por conta do Erário, divulgando a sua atuação
parlamentar. Essa prática, durante a campanha
eleitoral, configura propaganda ilegal, dado que
constitui doação proveniente do Poder Público
conforme instruções do art. 48, §2º, art. 76 da lei…

Diante dessa decisão do TSE, Sr. Presidente, Srs.


Senadores, desta tribuna, alertei que era impossível a
306
alguém ser Parlamentar e, ao mesmo tempo, ser
candidato sem infringir a legislação. Por quê Porque o
que é um salário indireto do Parlamentar, isto é, a
quota de comunicação com a sociedade, com os
eleitores, com os segmentos sociais aqui
representados, passava a ser doação. Aí é que está,
essa terminologia é que acabou por enterrar muitos
daqueles que estão hoje passíveis de cassação dos
seus registros, como ocorreu com o Senador
Humberto Lucena.

Todos nós sabemos que o Parlamentar tem o subsídio


direto, aquilo que ele ganha em espécie, mas existe
também o subsídio indireto para compor a soma de
bens ou de atribuições pecuniárias diretas ou indiretas
atinentes ao exercício de seu mandato. Ora, Sr.
Presidente, se a comunicação feita pela Gráfica do
Senado, dentro da quota estabelecida pelo Regimento
Interno, não é salário indireto, é doação do Poder
Público, também o são as passagens aéreas que o
Parlamentar recebe para ir ao seu Estado.

Então, todos aqueles que foram candidatos e


receberam a doação, segundo o TSE, de passagens
aéreas estão também passíveis de cassação do seu
registro, porque se utilizaram de abuso de autoridade
e do poder econômico, utilizaram-se do Erário para a
campanha eleitoral. Quem se assentou no seu
gabinete, Deputado ou Senador, sendo candidato,
utilizou um imóvel público; portanto, é passível de
cassação de seu registro e, se registrado e eleito, do
seu próprio mandato conquistado pelo povo. Quem
telefonou para o seu Estado ou usou de qualquer
telefone do gabinete representa doação do Poder
Público, é benesse, não é algo atinente ao exercício do
mandato. Eis o que o TSE caracterizou.
307
Alertei o eminente Presidente Humberto Lucena sobre
isto: disse que não havia saída, que cabeças iam rolar.
Jamais, entretanto, poderia suspeitar que ele seria a
primeira vítima deste processo. Não podemos aceitar
essa decisão, porque contraria a Constituição, já que
ela não determina que o Parlamentar se licencie do
seu mandato como ocorre com o Executivo.
Portanto, essa decisão do TSE, respondendo ao
eminente Senador Márcio Lacerda, deveria ter sido
judicialmente contestada. Nisso constitui o nosso
pecado, a nossa omissão, pois deixamos as coisas
ocorrerem.

A história do processo contra o Senador Humberto


Lucena está baseada nisso, pois baixamos a cabeça,
silenciamo-nos, aceitamos a definição de que usar
uma quota da Gráfica é doação do Poder Público,
quando todos sabem que isso faz parte do nosso
salário indireto, como fazem parte as passagens, o
apartamento funcional subsidiado, os telefones, o
papel, o carimbo e os funcionários do Senado que
utilizamos; também eles são pagos pelo serviço
público ou será que não utilizamos os servidores do
Senado durante o período em que fomos candidatos?
Portanto, Sr. Presidente, pecamos por omissão.
Chegou o momento da reparação! Não podemos
deixar que caia uma só cabeça, como se fosse
exemplo! Por mais emblemático que seja, não vamos
aceitar isso! Não vamos aceitar que ocorra como no
tempo de Hitler: quando os partigiani atentavam
contra os soldados de Hitler, pegavam um agindo
dessa forma, escolhiam dez ou doze para servir como
exemplo.’

Não podemos aceitar isso! Não queremos bodes

308
expiatórios! Devemos assumir! Deveríamos ter
corrigido muito antes essa situação esdrúxula,
insuperável até, criada por uma decisão, a nosso ver,
equivocada, do TSE. Tínhamos remédio a tempo para
prevenir a situação; agora temos que remediar. É
obrigação nossa! Temos que ter coragem perante a
Nação! Não devemos ficar aqui jogando para a
plateia, como alguns estão querendo jogar! Isso é
injusto! Devemos assumir!

Por isso, a palavra é esta: anistia já! Esse é o meio de


resolvermos essa situação, que sempre houve aqui! É
casuísmo! E casuísmos sempre houve para resolver
impasses institucionais, para restabelecer a harmonia
entre os Poderes constituídos. A história
compreender-nos-á depois!

O senador Mauro Benevides aparteou:

Nobre Senador Mansueto de Lavor, no instante em


que V. Exa. discute a matéria que esta Casa sobre ela
deliberará na sessão de hoje, V. Exa. se reporta à
consulta que foi feita pelo nobre Senador Mário
Lacerda e entende que a Mesa da Casa poderia ter
questionado aquela manifestação do Tribunal
Superior Eleitoral. Entretanto, se V. Exa. se debruçar
sobre o teor da consulta de que foi o Relator o
eminente Ministro Carlos Velloso, hoje Presidente do
TSE, V. Exa. vai encontrar no item 3º daquela consulta
o seguinte: ‘o parlamentar que é candidato não pode,
no período da campanha eleitoral, expedir boletins
informativos por conta do erário, divulgando a sua
atuação parlamentar.’

Mansueto de Lavor retrucou:

309
Mas teremos durante a campanha, está certo. Eu sei
onde V. Exa. vai chegar, mas quero dizer que defendo
que isso é permitido, mesmo no período de campanha
eleitoral, a não ser que a Constituição ordenasse o
nosso afastamento do cargo. Mas V. Exa. me desculpe
por ter interrompido o seu aparte.

Benevides fez nova intervenção:

Já discutimos esse tema aqui. Durante um discurso,


salvo engano, do Senador Eduardo Suplicy, chegamos
até a apreciar uma daquelas prerrogativas que temos
Senadores e Deputados Federais, que é divulgar,
através da Voz do Brasil, com um espectro muito
maior de alcance, porque é em todo o País, as nossas
atividades parlamentares. Veja V. Exa. que a Voz do
Brasil destina ao Senado Federal 15 minutos todos os
dias. O pronunciamento que V. Exa. faz aqui,
defendendo o seu Estado, defendendo temas
nacionais, são divulgados à noite pela Voz do Brasil.
Isso, no momento da campanha eleitoral, poder-se-ia
tirar uma ilação de que, implicitamente, poderia
significar propaganda eleitoral. Então, é mais um
ângulo dessa questão que eu me permito relembrar a
V. Exa. neste instante, no momento em que profere
um oportuno pronunciamento sobre a matéria
colocada na Ordem do Dia.

Principal interessado na vaga de Humberto Lucena,


Raimundo Lira criticou a proposta de anistia: “ - Uma lei como esta,
de caráter pessoal, colocaria o Congresso em profundo
constrangimento perante a sociedade brasileira. E seria um
confronto com o Judiciário”, criticou Lira.124

124
Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, edição de 06.12.1994.
310
O Projeto de Lei foi aprovado sem dificuldades no Senado.
Nos jornais, Humberto Lucena emitiu a sua opinião:

NADA A COMEMORAR

No último dia sete, o Senado Federal aprovou o


Projeto de Lei n. 88, que 'concede, na forma do art.
48, VIII, da Constituição Federal, anistia aos
candidatos às eleições de 1994, processados ou
condenados com fundamento na legislação eleitoral
em vigor.' E, como se sabe, a aprovação desse projeto,
que ainda deverá passar pelo crivo da Câmara dos
Deputados, nos próximos dias, decorreu justamente
da decisão judicial que cassou o registro de minha
candidatura e me torna inelegível, por três anos, pelo
mero fato de haver confeccionado, em ano anterior às
eleições, calendários, na Gráfica do Senado, a que
tinha direito pelas normas internas da Casa e, bem
assim, do envolvimento de dezenas de outros
parlamentares em processos semelhantes.

Por isso mesmo, insisti em que não há nada a


comemorar, no que diz respeito a mim,
especificamente. A atitude dos meus colegas de
Senado, que espero seja acompanhada pelos da
Câmara, na verdade, significa não uma ação para
'salvar-me', como persistentemente alguns órgãos de
comunicação têm dito. Mas, sim, uma reação legítima
do Poder Legislativo, pelo entendimento de que essas
publicações foram feitas, com base em normas
internas do Senado e da Câmara.

Comemoração, se dever haver, será para enaltecer a


tentativa de reparar um equívoco, que tem origem na
interpretação do Tribunal Superior Eleitoral, que

311
reformou a decisão do Tribunal Regional Eleitoral, o
qual, mais próximo dos fatos e conhecedor da
realidade política da Paraíba, já me absolvera. Pois,
como se sabe, admitido o recurso ao Supremo
Tribunal Federal, esta alta Corte do País não pôde
reapreciar a matéria, em face das restrições impostas
pelas regras técnicas ao recurso extraordinário.
Situação que causou vivo constrangimento naquele
Augusto Tribunal, como o que foi expresso no voto do
Ministro Francisco Resek, que registrou o erro da
decisão do TSE, ao mesmo tempo em que lamentava a
impossibilidade de correção pelo STF.

Entretanto, seria inconcebível que o Congresso ficasse


indiferente ao erro judiciário, depois de ter sido
consagrado nas urnas com quase meio milhão de
votos, pelos paraibanos, que realmente foram e são
os verdadeiros juízes da representação que deles
tenho feito na Câmara e no Senado, ao longo de
quase 40 anos de vida pública irretocável. Mesmo
porque, a decisão do TSE, antes de uma punição
injusta a mim, significou na prática a cassação do
direito fundamental do povo paraibano de escolher
seus representantes.

Ademais, tal decisão funcionaria como uma


verdadeira 'Espada de Dâmocles' sobre as cabeças de
dezenas de senadores e deputados que se encontram
na mesma situação, com vários já respondendo a
processos judiciais e outros na expectativa de
enquadramento, sem que tivessem praticado
qualquer ilícito eleitoral.

Sem dúvida, é preciso esclarecer melhor à opinião


pública a respeito dessa questão. Os senadores e
deputados não distribuíram nenhum material
312
confeccionado pelo Centro Gráfico do Senado Federal
com fins eleitorais. A distribuição de cartões,
calendário, etc. aconteceu, sim, no final de 1993 e
início de 1994, muito antes das convenções
partidárias, cujo prazo limite de realização era 30 de
maio de 1994, e muito antes ainda da campanha
eleitoral. Ou seja, não estavam sequer escolhidos
como candidatos a reeleição ou a outro cargo.

Também, é preciso destacar que os calendários não


continham propaganda eleitoral, sendo tão somente
uma mensagem de final de ano. E foi o próprio TSE
que, ao responder à Consulta n. 14.404 do Distrito
Federal, formulada pelo senador Márcio Lacerda, da
qual foi relator o eminente Ministro Carlos Veloso,
atual presidente daquele Tribunal, mostrou que o
delito por confecção e distribuição de material
daquele tipo só aconteceria se essa prática, normal
durante o exercício do seu mandato, fosse realizada
durante a campanha eleitoral, isto é, após as
convenções partidárias, configurando, assim, uma
propaganda ilegal.

Daí, a decisão dos líderes de proporem a anistia, que,


no atual sistema constitucional, requer a
manifestação de dois poderes, vez que está sujeita à
sanção do Presidente da República. A sua aprovação e
sanção, portanto, deverá objetivamente marcar a
atenção da sociedade para o fato de que os erros do
Judiciário não são absolutos e irremediáveis.
Registrando-se, ao mesmo tempo, uma lição de
respeito à vontade povo. E, desse modo, repito não eu
quem deve comemorar, caso se efetive a anistia em
foco, mas todos nós que desejamos um maior
aprofundamento e amadurecimento da nossa
democracia.
313
O escritor e intelectual paraibano, Francisco Pereira da
Nóbrega, em uma de suas colunas diárias, analisou o caráter ético
da anistia aprovada no Senado:

O Senado salva Lucena


___________________________
F. Pereira Nobrega*
Não se trata mais agora de discutir os méritos do
homem público mas a ética do Senado que ele
preside. Seguramente não estava em jogo um
interesse desse país. Se assim fosse, seriam opostos
Legislativo e Judiciário.

Esta é a primeira gravidade do caso. Solapa


instituições. Diz ao país que, para um senador não ser
cassado, seja cassado algum dos três Poderes. Se o
mal pega, se cada Poder conspira contra o outro, à luz
de corporativismos, da Nação que há 500 anos
tentamos construir não ficará pedra sobre pedra.

Errado foi o que o Senado fez, errado também como


fez. Pediu urgência urgentíssima para a solução de um
interesse pessoal. Desse, sem dizer, que
absolutamente nada mais urgente se abrigava
naquela Casa. Urgente se diz do que não foi feito a
tempo. A própria palavra é mal aplicada no caso.
Porque o que se fez não se deveria fazer em tempo
algum.

Mas feito está. E dito está que teve prioridade sobre


os mais augustos interesses nacionais. A Constituição,
ora revista, precisou desde 1988 de leis
complementares para ser aplicada. Nosso parlamento
não teve tempo para isso.

314
Meses atrás, funcionários públicos perderam a causa
de uma greve porque o Judiciário lhe deferiu a pecha
de ilegal. E ilegal estava porque nosso parlamento
não teve tempo de regulamentar o texto
constitucional pertinente. Funcionários públicos, sem
direito de greve, têm meia cidadania, porque o
Congresso não tem tempo para isso.

Juros bancários são ditos na Constituição não


superiores a 12%. Nós os vemos praticados acima de
30% porque o Congresso não teve tempo de fazer leis
complementares. Por falta de tempo, quase não
tivemos Constituição. A de 88 não conseguiu ser
regulamentada ontem, nem revista hoje.

Mariz, elaborou um projeto de lei tributando as


grandes fortunas. Nunca foi discutido. O Senado não
teve tempo para isso. São centenas, se não forem
milhares, os projetos de lei que dormem no
Congresso, esperando tempo. O Orçamento de 1994
quase foi aprovado em 95, quando deveria ter sido
em 93. O Congresso pede desculpas à Nação: o tempo
não deu.

O Senado não teve tempo para nos dar uma


Constituição regulamentada ou revista. Não teve para
nos dar um Orçamento a tempo, para garantir direitos
trabalhistas, para fazer melhor justiça na tributação,
nem para projetos inúmeros que esperam tempo para
serem julgados. Certamente tempo não teve porque
estava envolto em questões mais importantes que
estas. Quais, por exemplo.

É então que o Senado responde que mais urgente que


tudo isso é dar uma jeitinho para cassar o Judiciário e
salvar Humberto. Está pervertendo os fins da
315
instituição e jogando Poder contra Poder. Mais que
lapso, isto é subversão. Pervertendo os fins dos
Poderes, se subverte a própria Nação.
______________________
*Colunista

A revista Veja, em estilo conhecidamente pejorativo, glosou


a meteórica tramitação do Projeto de Lei no Senado em defesa dos
interesses corporativistas dos seus membros. Eis a matéria:

Rápidos na cumplicidade
Senadores dão anistia para salvar Lucena

Se o Senado fosse tão eficiente ao tratar dos


problemas nacionais quanto é rápido para cuidar dos
próprios interesses, o Brasil estaria muito bem
equipado de Legislativo. Em votação que durou
apenas um minuto na noite de quarta-feira, os
senadores aprovaram uma lei de anistia com o
objetivo único e exclusivo de beneficiar o senador
Humberto Lucena e outros dezesseis parlamentares
que usaram a gráfica do Senado em proveito próprio
para imprimir material de propaganda eleitoral.
Sistematicamente, o Senado mostra-se inepto e lento
no exame e na votação de matérias relevantes para o
país. A presteza demonstrada na quarta-feira cria um
novo motivo de constrangimento para seus membros.
Lucena usou a gráfica do Senado, sustentada com
dinheiro do contribuinte, para fazer 130.000
calendários com sua fotografia, distribuídos depois
entre seus eleitores na Paraíba. Por essa razão o
Tribunal Superior Eleitoral, TSE, cassou o registro de
sua candidatura à reeleição. Com a cassação, o
senador perde seu mandato a partir de 1º de
fevereiro, mesmo tendo ganhado a eleição de outubro

316
passado. A lei do Senado, que precisa ainda de
aprovação da Câmara dos Deputados e da sanção do
presidente Itamar Franco, passa por cima da sentença
do TSE e, com o maior descaramento, devolve o
mandato ao senador.

'É casuísmo mesmo. Já aprovamos vários projetos


casuísticos e agora vamos fazer novamente para
reparar um erro da Justiça', esbravejou o senador
Mansueto de Lavor (PMDB-PE), durante a sessão
relâmpago em que foi aprovado o projeto, com um
único voto contra do senador Eduardo Suplicy (PT-SP).
'Nós, já anistiamos ladrões, torturadores,
sindicalistas. Por que não anistiar Humberto Lucena?',
justificou o senador Júlio Campos (PFL-MT), primeiro-
secretário do Senado e responsável pela gráfica. Pelo
simples fato, responderia o eleitor, de que seria um
alerta para os outros parlamentares que cometem a
mesma imoralidade e uma prova de que o Senado
resolveu, enfim, ficar sério.

OPERAÇÃO – Apesar da repercussão negativa da


iniciativa do Senado junto à opinião pública, a Câmara
começou uma operação para garantir sua aprovação
pelos deputados. Na quinta-feira, a cúpula do PMDB
decidiu defender a anistia para salvar Lucena.
Conseguiu também o apoio do PFL, em troca da
adesão do partido à candidatura de Luís Eduardo
Magalhães à presidência da Câmara. A questão agora
passa a ser de tempo, já que no dia 15 começam as
férias parlamentares. O PMDB vai pedir urgência
urgentíssima para a tramitação do projeto que está
na Comissão de Constituição e Justiça e tentar reunir
252 deputados para votar o projeto na terça ou
quarta-feira.
Ideia do deputado Bonifácio de Andrada (PTB-MG), a
317
lei Humberto Lucena contém uma aberração jurídica:
além de Lucena, ela garante o perdão para os outros
parlamentares que foram acusados de usar
indevidamente a gráfica, mas que ainda não foram
julgados. 'É a primeira vez que vejo isso, anistia para
pessoas ainda não condenadas', desdenhou o
deputado Adylson Motta (PPR-RS).125

No Senado, Ney Suassuna defendeu a anistia e discorreu


sobre os principais aspectos jurídicos das decisões do TSE e do STF.
Na ótica de Suassuna, o TSE havia praticado “um clamoroso erro
judicial de inaceitável injustiça” contra o senador Humberto,
considerando três aspectos jurídicos: 1. a representação do
procurador regional eleitoral data de 18.02.1994; 2. a data da
convenção do PMDB que indicou Lucena candidato ao Senado, teria
ocorrido em 31 de maio de 1994 e, 3. a proibição contida na
Consulta nº 14.404, respondida pelo TSE em 28.06.1994, referia-se
apenas ao período da 'campanha eleitoral'.

Ney destacou ainda a preliminar de intempestividade do


recurso interposto por Antônio Carlos Pessoa Lins, as manifestações
divergentes do ministro Diniz de Andrada e o voto “claudicante”
emitido pelo ministro Carlos Velloso, que afirmou “inexistir
elementos concretos conducentes à conclusão de que teria havido a
distribuição de calendários após a escolha do Senador como
candidato à reeleição”.126 Para Ney, Humberto era réu de um crime
que não praticou, o que colocava o Poder Judiciário diante de um
dilema: “- Ou todos deveriam ser anistiados, ou todos deveriam ser
punidos”, afirmou. Na Parahyba, defendeu Suassuna,
correligionários de Lucena usavam adesivos nos automóveis, com os
125
REVISTA VEJA, edição de n. 1.370, ano 27, n. 50, de 14 de dezembro de 1994, p.
35.
126
DIÁRIO DO CONGRESSO NACIONAL, edição de 04.01.1995.
318
seguintes dizeres: “O meu voto foi cassado”,127 concluiu.

Depois do Projeto de Lei ser aprovado no Senado, era


preciso quebrar algumas resistências na Câmara dos Deputados.
Defensor ardoroso de Humberto Lucena, o senador Ney Suassuna
fez uma provocação aos deputados federais: ameaçou “dar nome
aos bois” com a divulgação de uma lista contendo o nome de
“centena de parlamentares” que teriam utilizado serviços do Centro
Gráfico do Senado para confecção de material de campanha
eleitoral no ano de 1994. O presidente da Câmara dos Deputados,
Inocêncio Oliveira – que encabeçava a lista de Suassuna -, havia
determinado a impressão do livro A Revisão Necessária. Além do
presidente da Câmara, havia mais 16, cujos nomes estavam sendo
divulgados pelos jornais. Ney incluiu mais 27 parlamentares na sua
lista, a maior parte deles filiados aos partidos que ameaçavam
obstruir a votação do Projeto de anistia, na Câmara dos Deputados.

À provocação de Suassuna, o deputado petista Chico


Vigilante respondeu com um requerimento endereçado à
procuradoria parlamentar do Congresso Nacional: queria processar
Ney e reparar a honra e a imagem de membros do Congresso
Nacional perante a Justiça Criminal. O deputado petista de São
Paulo, José Genoíno, revoltou-se: “Isto é uma chantagem de baixo
nível do Senado. Estão querendo misturar brindes (calendários) com
pronunciamentos, que no caso é obrigação da gráfica publicar”.

Houve divisão nas bancadas quanto à anistia, o que levou a


Mesa Diretora da Câmara dos Deputados a suspender os trabalhos

127
A expressão usada pelo senador Ney Suassuna se referia não apenas a adesivos,
mas a um artigo publicado no Jornal CORREIO DA PARAÍBA, intitulado “Cassaram o
meu direito de votar”, de autoria do professor da UFPB e advogado, José Baptista
de Mello Neto.
319
para que os líderes ouvissem seus liderados. O PT decidiu obstruir o
Projeto e se retirar para ameaçar o quorum. PDT e PL também
votariam contra. Os três partidos somavam 87 deputados. Para que
o Projeto de anistia fosse votado em regime de urgência o PMDB
precisava do apoio de 252 deputados, maioria absoluta. Com a
segunda maior bancada da Câmara, o PFL era o fiel da balança.
Desanimados com a possibilidade de não reunir pelo menos 300
deputados em plenário e considerando ainda as resistências no
próprio partido de Humberto Lucena, o PMDB, acerca do
Substitutivo Prisco Viana, a apreciação do Projeto foi adiada para o
início do ano de 1995: “Vamos ter a posse do presidente da
República e a eleição da mesa. Vai ser mais fácil”, avaliou o líder do
PMDB na Câmara, deputado Tarcísio Delgado.

* * *

320
Foto: Relação de senadores enrolados com a gráfica do Senado. Fonte:
Jornal O Estadão.

321
JUSTIÇA TARDIA, JUSTIÇA FALHA!
O Supremo Tribunal Federal levava dois a três meses para
publicar as suas decisões. A previsão era que o acórdão só seria
publicado cinco dias depois de Lucena ser empossado no novo
mandato, em 1º de fevereiro.

Dois dias antes da sessão de diplomação, o procurador


Antônio Carlos Pessoa Lins requereu ao presidente do TRE que o
Tribunal se abstivesse de proceder a diplomação do ocupante da
segunda vaga de senador, “até que houvesse uma comunicação
oficial do TSE, acerca de quem seria o legítimo e real detentor do
direito à referida vaga”.

No dia seguinte, 24 horas antes da sessão de diplomação, o


Tribunal apreciou o pedido do procurador regional eleitoral, que,
oralmente, insistiu no requerimento, para que Humberto Lucena
não fosse diplomado.

Na tribuna, o advogado Solon Benevides defendeu posição


contrária, visando garantir a diplomação do seu constituinte.

O relator do acórdão, juiz Marcelo Figueiredo, tentou


fulminar o pedido numa preliminar: propôs que o Tribunal sequer
conhecesse do requerimento feito por Pessoa Lins. Ficou vencido
mas, à unanimidade, os juízes indeferiram e mantiveram a
diplomação de Lucena.

O atraso do STF em publicar sua decisão beneficiou


Humberto Lucena, que teve tempo suficiente para ser reconhecido
eleito pelo TRE paraibano.

322
A sessão de diplomação ocorreu no dia 15 de dezembro de
1994, no salão do Tribunal do Juri, localizado no Forum da capital do
Estado, que estava lotado. A cerimônia – presidida pelo
desembargador Rivando Bezerra Cavalcanti -, contou com a
presença de quase todos os candidatos eleitos e seus familiares,
diversas autoridades civis e militares, e de correligionários e
simpatizantes em geral. Ausente, Humberto foi representado pelo
irmão, o engenheiro Haroldo Lucena, que apresentou uma
procuração e foi bastante aplaudido.

Humberto Lucena foi diplomado sob ressalvas: Rivando


mandou consignar em ata que a diplomação ficaria sujeita à
modificação em virtude de processo pendente em decisão em
instância superior, de acordo com o que previa o artigo 261, §5º do
Código Eleitoral, ou seja, após o trânsito em julgado da decisão do
STF, os votos dados a Humberto poderiam vir a ser declarados
nulos. Caso essa hipótese viesse a ocorrer, assumiria o terceiro
colocado na eleição, o empresário Raimundo Lira.

Durante a solenidade, Antônio Carlos Pessoa Lins foi


convidado a entregar o diploma a Antônio Mariz. Cordialmente,
Pessoa Lins apertou a mão do governador eleito e entregou-lhe o
certificado. Teve que “engolir o sapo”!

Enquanto o Poder Judiciário caminhava a passos de


tartaruga, o Congresso Nacional corria para salvar o seu presidente,
que convocou deputados e senadores para se reunir
extraordinariamente, durante o mês de janeiro de 1995. A
convocação extraordinária do Congresso custaria aos cofres públicos
cerca de R$ 1.400.000,00 (um milhão e quatrocentos mil reais).
Atento às manobras do Poder Legislativo, o JORNAL DO BRASIL
denunciou o presidente do Senado de convocar os 513 deputados e

323
os 81 senadores para votar o orçamento da União de 1995. Além do
salário extra, os parlamentares queriam aprovar o Projeto de Lei que
evitasse o constrangimento de Humberto Lucena ser desalojado do
seu gabinete e da presidência do Senado. O JORNAL DO BRASIL
acusou a manobra, através de dois artigos. Mas, no primeiro,
intitulado “A Última impressão”, sequer sabia o nome do Palácio do
Governo da Paraíba”:

A Última impressão

Seria mais adequado apelar para a 'relevância


amoral' do que invocar a 'relevância nacional' no caso
da autoconvocação extraordinária do Congresso.
considerando que o verdadeiro motivo do eufemismo
não consta das razões de chamar ao trabalho as cinco
centenas de deputados e as oito dezenas de
senadores. Quando o Executivo convoca, a
representação política nacional faz aquele ar de
vítima que se sacrifica pelo interesse público.

Este ano, o próprio presidente do Congresso,


Humberto Lucena, se adiantou para suprir a iniciativa
do Executivo. Afinal, a obrigação magna do Congresso
é aprovar o Orçamento da União. A Constituição
impede o recesso parlamentar enquanto o Orçamento
não está aprovado. Para dar conta do recado, o
Congresso dispõe das manhãs, tardes e noites até o
dia 30 de dezembro. Em último caso, pode resolver o
assunto mediante o mal-afamado voto de liderança,
pelo qual os líderes das bancadas votam pelos
liderados e tudo fica por isso mesmo. Ninguém é
interessado em salvar mais do que as aparências.

Acontece que a auto convocação, à sombra do


Orçamento, serve pessoalmente ao presidente do
324
Senado, que outro não é senão o próprio presidente
do Congresso, para viabilizar como natural a anistia
que apagará a impressão digital no crime eleitoral: o
TRE da Paraíba considerou uso indevido de dinheiro
público, porque com finalidade eleitoral, a impressão
de 130 mil calendários pela gráfica do Senado, com
retrato do candidato. A defesa se desculpou com a
circunstância de que a peça promocional é antes da
candidatura ao Senado. À época, estava de olho no
Palácio das Princesas. Logo, teve a intenção de
propaganda política. A candidatura Lucena era sabida
e consabida. Lucena jamais deixou de ser candidato a
algum lugar. Mandou imprimir com antecedência por
espírito previdente.

A convergência em torno da anistia está no ar,


instilando indignação cívica. Deputados e senadores,
corporativistas convictos, lixam-se para o eleitor. A
certeza de que tudo encaminha à imoralidade é a
convocação extraordinária do Congresso, com o custo
extra de um milhão e meio de reais, sob pretextos que
deixam com o rabo de fora a anistia.

O comportamento parlamentar de recorrer à


convocação extraordinária, depois de perder em
ociosidade o ano todo, é o mesmo dos estudantes que
passam o período escolar na flauta e, no final do ano
letivo, mergulham de cabeça nos livros, com a ajuda
de excitante, para recuperar o conhecimento. Perdem
o sono, mas salvam o ano. Ao estudante que só se
aplica sazonalmente, apenas para passar de ano,
corresponde o parlamentar que faz gazeta o ano todo
para ser digno da convocação extraordinária, que está
para os deputados e senadores como a antiga
segunda época ou a atual recuperação. A anistia fica

325
para a cola do que para a revisão de provas.128

Num outro editorial, denominado de “Ardil do Atraso”, o


editoral destacou o artifício parlamentar que soube explorar a
morosidade do Poder Judiciário:

O Ardil do Atraso

A diplomação por pessoa interposta do senador


Humberto Lucena pelo TRE da Paraíba, antes mesmo
de votada a anistia do crime eleitoral pelo qual foi
condenado pelo TSE com a cassação do registro de
sua candidatura, tem tudo para se tornar a sociologia
do atraso.

Em primeiro lugar, porque tipifica a resistência dos


políticos tradicionais e do corporativismo parlamentar
à saudável transformação do Brasil do privilégio num
Brasil em que as leis são para valer. Em segundo,
porque demonstra que o tradicionalismo se afirma,
não pela transgressão em si, mas no arreglo para se
moldar a lei segundo as conveniências do
transgressor.

No Brasil, as leis nunca são violadas por certas


categorias especiais de cidadãos (como senadores)
porque a legislação (ou a sua interpretação) varia
segundo as circunstâncias, exatamente para que esta
casta permaneça fora do seu alcance. No caso Lucena,
o mais espantoso está sendo toda essa ginástica
jurídico-parlamentar, essas chicanas de advogado,
essa mobilização intensa, para que a transgressão
receba o beneplácito da lei.

128
JORNAL DO BRASIL, edição de 20 de dezembro de 1994, p. 10.
326
O Brasil pode não ser um país ético. Mas é um país
muito apegado à formalidade legal. As péssimas
lições extraídas deste episódio, seu caráter
negativamente exemplar, são neutralizadas por
artifícios e engenharias jurídicas casuísticas que o
beatificam. O importante não é a petulante tentativa
de banalizar o abuso, de reafirmar o direito ao uso
pessoal da coisa pública e de inocentar por
antecipação a fraude. É a conformidade à lei. É fazer
com que o crime óbvio não seja enquadrável.

O importante não é a insolente tática do fato


consumado adotada por Lucena, afirmando-se
candidato mesmo sub judice para depois constranger
os tribunais, pressionar a opinião pública e justificar a
‘saída’ por alguma janela parlamentar. Mas, sim, não
respeitar o legalismo, que por ser tão tacanho não
deixa de ser legal.

O essencial não é o Senado haver desvirtuado o


instituto da anistia, destinado a apaziguar a
sociedade, segundo os melhores tratadistas. Mas,
respeitados os ritos da lei, favorecer um indivíduo que
simboliza com bonomia todas as práticas depravadas
dos grotões, ainda que isto perturbe a nação e
instigue a desarmonia entre os Poderes da República.
Formalismo tacanho é assim: para receber o diploma
por Humberto, o irmão Aroldo Lucena entregou ao
TRE paraibano uma procuração. O presidente do TRE,
Rivando Bezerra, se limitou a dizer que a procuração
era válida. Quando a Procuradoria Eleitoral da
Paraíba, que iniciou o processo contra Humberto em
setembro, tentou embargar a diplomação, seu
requerimento foi negado por Bezerra, sob a alegação
de que o acórdão do Supremo ainda não fora
publicado no Diário da Justiça.
327
Pela mesma lógica, o deputado estadual José Zito
(PSDB-RJ), condenado por homicídio e formação de
quadrilha, conseguiu ser diplomado graças a habeas-
corpus que neutralizou um pedido de prisão
preventiva contra ele. Pela mesma lógica, exigem-se
atos de ofício como prova de crime de corrupção
passiva, sem os quais a mais notória roubalheira da
história deste país é absolvida. Na batalha de
artifícios e liminares, ganha quem saca primeiro.

Tudo isso é surrealista, kafkiano, muito parecido com


o mundo descrito por Joseph Heller e filmado por Mike
Nichols em Catch-22, ou Ardil-22. É uma paródia
macabra situada em uma Base Aérea durante a
Segunda Guerra Mundial, onde o inimigo não é a
morte, mas as regras da formalidade burocrática:
sobrevive quem descobre o sistema de programação
da máquina. E que, recusando-se a se identificar com
seus produtos, sabe perturbá-la em seu benefício.
Humberto Lucena soube sobreviver.129

Num terceiro artigo, o JORNAL DO BRASIL criticou os


eleitores paraibanos por elegerem novamente Humberto, mesmo
depois dele ter seu registro cassado pelo TSE. A imprensa do Sul não
conseguia “engolir” o fato do presidente do Senado ter sido
condenado pelo Poder Judiciário e ainda ser diplomado pelo TRE
paraibano. O editorial do aludido periódico comparou a “Lei
Humberto Lucena” às famosas “Lei Fleury” e “Lei de Gérson”. Eis o
artigo:
Prata da Casa

Enquanto o TRE da Paraíba, o mesmo que pilhou em


flagrante a orgia dos 130 mil calendários, procede à

129
JORNAL DO BRASIL, edição de 12.12.1994, p. 10.
328
diplomação do senador Humberto Lucena, um outro
TRE, o de Pernambuco, suspende por três os direitos
políticos do senador Ney Maranhão, também acusado
de uso indevido da gráfica do Senado. Diante deste
vaivém, do sobe e desce sinistro dos políticos que se
apropriam do bem público e depois mudam as leis
para se enquadrar numa legalidade feita sob medida
para eles, a opinião pública se sente estarrecida com a
lama jogada no ventilador.

Para satisfazer necessidades pessoais, os políticos


esculpem leis ao sabor da correnteza. Da Lei Fleury à
Lei Lucena, passando pela Lei de Gérson, sempre
faltou vergonha aos políticos. A Lei Lucena é o melhor
retrato já feito, à revelia dos retratados, mas com a
impressão digital dos retratistas, da situação
nacional. O senador Júlio Campos, primeiro-secretário
do Senado e responsável pela gráfica, diz isto com as
palavras melhores: 'Já anistiamos ladrões,
torturadores, sindicalistas. Por que não anistiar
Humberto Lucena?

A anistia a Humberto Lucena, na sua imoralidade


flagrante, reporta-se ao passado de um político
apanhado com a mão na massa e se projeta no
futuro, ao garantir perdão aos outros parlamentares
(16, no total) acusados de usar indevidamente a
gráfica, mas ainda não julgados. Como disse um
deputado, é a primeira vez que se baixa no Brasil uma
anistia para pessoas não condenadas. Na República
dos Bruzundangas, de Lima Barreto, não se faria
melhor.

Imoralidade não tem limite. Tudo começou com a


leitura rasteira, na Constituição, das Atribuições do

329
Congresso Nacional, artigo 48, seção II, item VIII, onde
está escrito: 'Concessão de anistia'. Sendo, portanto,
conceder anistia atribuição do Congresso, conceda-se
sem pestanejar, sem escrúpulo, anistia ao
personagem dos calendários. Nos tratados de direito
se lê que anistia é instrumento concedido para um
evidente fim político e social. Tomada em seu sentido
amplo, a finalidade da anistia não é propriamente
favorecer o indivíduo, é antes apaziguar a sociedade.
A Lei Lucena inverte tudo. Só favorece o indivíduo, não
tem finalidade política ou social, não contribuir para
apaziguar a sociedade, e, acima de tudo, no seu
propósito oportunístico, lança sobre a sociedade o
manto da falta de ética.

Nem Humberto Lucena, nem Ney Maranhão, (o


'senador boiadeiro'), nem um só dos outros
parlamentares usufrutuários da gráfica se propôs a
devolver aos cofres públicos a diferença gasta na
impressão dos calendários além do que previa a sua
cota. São autênticos patrimonialistas, dedicados,
como saúvas, a transformar aquilo que pertence ao
Estado, portanto, a toda a coletividade, em bem
pessoal.

Este vezo ainda caracteriza a elite brasileira, incapaz


de criar novos valores para substituir os valores
arcaicos. Até hoje se mantém, por isto, a tradição da
valorização negativa dos políticos. Não há
preocupação com a ética, só com o imediato, o
momentâneo, o mesquinho. Há leis que dormem anos
a fio nos escaninhos do Congresso, à véspera de
votação. A Lei Lucena foi aprovada no Senado em
segundos e caminha sobre a Câmara como um rolo
compressor.

330
A falta de espírito público dos signatários da Lei
Lucena é prata da casa. A corrupção é congênita. E a
impunidade também. A opinião pública do país,
menos a da Paraíba, que lhe deu mais de três vezes
em votos o que mandou imprimir em calendários,
olha para a diplomação do senador Lucena com
espanto e horror. Sua permanência na berlinda é uma
demonstração de que, a continuar assim, os
problemas brasileiros não mudarão nunca, nem se
resolverão. O Brasil que tem a cara dos calendários
está condenado à mesmice, à eterna frustração das
expectativas.130

Altamente formalista, no Direito brasileiro as filigranas


jurídicas geralmente prevalecem sobre as questões de fundo.

* * *

130
JORNAL DO BRASIL, edição de 16.12.1994, p. 10.
331
Diploma do senador Humberto Lucena. Fonte: Anais do Congresso
Nacional, sessão de 02.02.1995.

Foto: Antônio Mariz e José Maranhão são diplomados. Humberto


Lucena não compareceu à diplomação. Fonte: Jornal O NORTE, ed.
de 18.12.1994.
332
O SUBSTITUTIVO PRISCO VIANA
Na Câmara dos Deputados, parlamentares divergiam quanto
ao Projeto de Lei aprovado no Senado, um dos motivos era a sua
abrangência, assegurando anistia a parlamentares que disputaram a
eleição de 03 de outubro de 1994 e foram condenados pela Justiça
“por qualquer crime eleitoral”. O relator do Projeto na Câmara,
deputado Prisco Viana, do PPR da Bahia, apresentou uma versão
mais branda, restringindo a anistia ao uso ilegal da Gráfica do
Senado e excluindo outros crimes eleitorais.

A exigência de devolver aos cofres públicos os valores


equivalentes aos custos do material impresso, foi a grande
novidade contida no Substitutivo Prisco Viana.

Vincular a concessão de anistia ao ressarcimento do valor


despendido pelos cofres públicos com as impressões realizadas no
Cegraf não apenas assegurava votos favoráveis em quase todos os
partidos como também minava os principais focos de resistência no
PT, no PCdoB e no PDT, que prometiam obstruir qualquer tentativa
de votação.

Antes de ocorrer a sessão extraordinária do Congresso


Nacional que definiria a sorte de Lucena, o jornalista e ex-deputado
federal, Márcio Moreira Alves, conhecedor dos bastidores da
política praticada no Congresso Nacional, comentou o Substitutivo
Prisco Viana:

O mandato de Lucena

Humberto Lucena, presidente do Senado, reeleito por


mais oito anos pelos paraibanos, terá o seu mandato

333
preservado da cassação imposta pelo TSE pelos
deputados que se reunirão, em esforço concentrado,
de terça a quinta-feira da próxima semana.

Prisco Viana, que já era uma raposa cheia de


matreirices no seu tempo de jornalista, aguçou a
esperteza ao longo de 25 anos de sucessivos
mandatos pela Bahia. Conhecedor dos movimentos
subterrâneos da opinião da Câmara, descobriu uma
fórmula que, a um tempo, salvará a eleição de Lucena
e a face dos deputados perante a opinião púbica.
Propõe, no substitutivo que redigiu ao projeto de
anistia aprovado no Senado, que se limite à anistia
aos que imprimiram material na gráfica do Senado,
desde que ressarçam o Tesouro. Ou seja, quer que
haja uma punição, financeira e moral, mas que se
preserve o resultado das eleições e não se perdoe, ao
mesmo tempo, os envolvidos em outros crimes
eleitorais. Pretende, desta forma, abrandar a ânimo
obstrucionista da bancada do PT.

A maioria dos deputados acha o castigo imposto ao


senador Lucena desproporcional ao delito em
imprimir calendários eleitoreiros às custas de verbas
públicas. Por outro lado, o PMDB, maior bancada da
Casa, está também interessado em conservar a
cadeira senatorial da Paraíba, conseguida com ampla
vantagem sobre o concorrente do PFL, Raimundo Lyra.
Por uma estranha determinação legal, a cassação de
Lucena implicaria em prêmio ao derrotado, que, aliás,
praticou idêntico crime. Lyra só não foi também
cassado por não ter sido denunciado a tempo perante
a Justiça Eleitoral.

Wilson Campos, PMDB-PE, primeiro-secretário da


Câmara, profundo conhecedor dos humores do baixo-
334
clero parlamentar, é ferrenho defensor de Lucena. Ele
mesmo já esteve envolvido em episódio semelhante.

A disposição dos assuntos na ordem do dia do esforço


concentrado é mais um reforço para garantir um alto
quorum. Em primeiro lugar, está a anistia a Lucena. Só
depois de ser votada é que os outros temas podem ser
examinados: o aumento dos subsídios parlamentares
para dez mil reais por mês, a partir de fevereiro, o
aumento dos salários do presidente da República e
dos ministros de Estado e a aprovação de uma pensão
condizente para o ex-presidente Itamar Franco.

Irresistível, Santo Humberto, protetor dos caçadores,


certamente não deixará seu homônimo à mercê de
cassadores de mandatos. Não precisa nem fazer
milagres.131

Sem dúvidas! O Substitutivo tornou o “Projeto Lucena” mais


palatável, como chegou a admitir o candidato do PFL à presidência
da Casa: “ - Com o substitutivo de Prisco Viana, a pena fica
compatível com o delito”, defendeu Eduardo Magalhães. A
mudança não apenas ajudava a defesa da anistia pelos aliados de
Humberto Lucena como facilitava a sanção pelo presidente da
República.

* * *

131
Jornal O GLOBO, edição de 13.01.1995, p. 4.
335
“ESFORÇO CONCENTRADO”
1994 foi considerado um “ano perdido” para o Congresso
Nacional. As atividades legislativas ordinárias da Casa foram
reduzidas aos debates sobre a revisão constitucional, às cassações
de deputados envolvidos na “CPI do Orçamento” e à campanha
eleitoral. Desde julho, as sessões da Câmara, do Senado e do
Congresso estavam suspensas para que não “atrapalhassem” os
parlamentares, que estavam à cata de votos para a reeleição.
Depois das decisões do TSE e do STF, a coisa mudou! Mais ainda
quando o Projeto de Lei de anistia começou a tramitar na Câmara
dos Deputados.

O Conselho Político do PMDB discutiu a anistia à portas


fechadas, durante uma hora. Solidários ao companheiro de partido,
os peemedebistas fizeram uma festa durante a chegada de
Humberto Lucena ao conclave. Ovacionado de pé, Lucena ficou
emocionado com a manifestação. O líder o PMDB no Senado, Pedro
Simon, alertou que a rejeição ao Projeto de Lei seria uma injustiça.
O ex-governador do Pará e senador eleito, Jader Barbalho,
completou: “- Isto é uma prática de 30 anos e é um exagero punir
Lucena neste momento”.

No decorrer da reunião, o apoio à anistia ganhou força com


a presença do governador eleito da Parahyba. Com a sua envolvente
oratória, Antônio Mariz voltou a inflamar deputados e senadores
presentes, repetindo o que havia feito na tribuna do Senado, após a
cassação de Lucena. No final do evento, o PMDB aprovou uma
moção, orientando a sua bancada na Câmara dos Deputados a
aprovar o Projeto de anistia:

O CONSELHO POLÍTICO NACIONAL DO PARTIDO DO

336
MOVIMENTO DEMOCRÁTICO BRASILEIRO, reunido
nesta data, pela unanimidade dos seus membros,
CONSIDERANDO a necessidade de preservação da
soberania popular na qual repousam os mandatos
parlamentares como condição para que seja
respeitada a soberania entre os poderes da República;

CONSIDERANDO QUE constitui erro judiciário a


interpretação de que parlamentares ficam sujeitos,
sobretudo fora do período de campanha eleitoral, a
perda de prerrogativas inerentes ao mandato quando
candidatos à reeleição;

RESOLVE:

Dar integral solidariedade ao Senado Federal pela


aprovação do projeto pelo qual é concedida anistia
aos Parlamentares que fizeram imprimir publicações
na gráfica daquela Casa e as distribuíram bem antes
do período eleitoral;
2. Recomendar aos seus Deputados Federais nos
termos do artigo 73, incisos V e VI, do seu Estatuto,
que aprovem o mencionado projeto quando
submetido à Câmara dos Deputados.
Brasília, 9 de dezembro de 1994.

337
Foto: Humberto é ovacionado pela cúpula do PMDB. Fonte: Jornal
CORREIO DA PARAÍBA, edição de 10.12.1994, p. 3.

338
A primeira batalha na Câmara dos Deputados foi para o
“Projeto Lucena” tramitar em regime de “urgência urgentíssima”. O
requerimento foi apreciado no dia 18 de dezembro de 1994, em
sessão conjunta com o Senado. Na pauta do Congresso Nacional,
constavam importantes matérias, três delas com pedidos de votação
preferencial: a anistia aos parlamentares, o novo valor do salário-
mínimo para o ano de 1995 e uma pensão para o ex-presidente
Itamar Franco. O Projeto de Anistia teria que enfrentar três
votações. A primeira - que precisava apenas de maioria simples -,
decidiria se ele passaria à frente dos demais. A segunda era mais
difícil, pois exigia maioria absoluta correspondente a 252 votos e
definiria se o Projeto tramitaria em regime de “urgência
urgentíssima”. A última votação dizia respeito à questão de mérito,
para qual bastaria uma maioria simples. 132 Estrategicamente, o
“Projeto Lucena” antecederia as demais matérias e se tornaria a
principal moeda de troca no Congresso Nacional!

Durante os debates parlamentares, divididos entre o valor


do novo salário-mínimo e a cassação do senador paraibano,
deputados e senadores saíram em defesa do Poder Legislativo. O
deputado do PPR do Rio Grande do Norte, Mario Rosado, fez
questão de registrar o principal motivo que o levou a comparecer
àquela sessão extraordinária: solidariedade ao companheiro do
Congresso Nacional era mais importante do que votar o novo valor
do salário dos trabalhadores. Afirmou ele:

...Mas vim aqui também por outro motivo. Não gosto


de ficar na sombra nem em cima do muro.
Acompanhei o périplo do Senador Humberto Lucena.
Vi este homem corajoso dar posse a Fernando
Henrique Cardoso e a Marco Maciel nos cargos de

132
JORNAL DO BRASIL, edição de 1995.
339
Presidente e Vice-Presidente da República, apesar de
ter sobre sua cabeça uma espada de Dâmocles, que
poderia acabar com sua brilhante carreira na política
nacional.

Venho posicionar-me ao lado desse velho guerreiro do


Congresso Nacional e dizer que o meu voto é a favor
de S. Exa., porque toda a sua vida não pode ser
desmerecida nem por um papel nem por 130 mil
papéis. Se eu tiver de ajudar a pagar a conta de
Humberto Lucena para S. Exa. continuar neste
Congresso defendendo os interesses nacionais, pode
S. Exa. contar com minha parcela e com minha
participação, porque eu gostaria de dividir essa conta,
para que não pesasse sobre seus ombros.

Outros que fizeram pior, que se locupletaram do bem


público estão por ai, soltos, impunes. Humberto
Lucena, que considero patrimônio nacional, tem neste
momento o meu pequeno apoio, mas o meu voto vale
tanto quanto o dos outros.

O voto de Mário Rosado é de Humberto Lucena. Voto


também pelo salário do trabalhador, ainda que me
envergonhe de votar a favor de um aumento tão
pequeno, embora sabendo ser o máximo que estamos
podendo oferecer hoje.133

Antes da aprovação do requerimento de tramitação urgente


do Projeto de anistia, houve discursos apaixonados. Os deputados
favoráveis não tiveram o mínimo pudor em afirmar que a Lei estava
sendo feita para reparar uma injustiça praticada pelo TSE contra o
senador Humberto Lucena e que seria uma hipocrisia votar contra.

133
DIÁRIO DO CONGRESSO NACIONAL, Seção I, edição de 19.01.1995, p. 956.
340
A deputada do PPR do Rio de Janeiro, Sandra Cavalcanti, que se
despedia do mandato, foi a primeira a defender o Projeto de Anistia:

Sr. Presidente, Sras. e Srs. Deputados, ocupo esta


tribuna hoje pela vez derradeira. Termina no dia 30 o
meu mandato, e provavelmente esta vai ser a última
oportunidade que tenho para me dirigir aos colegas;
e, ao fazê-lo, a Providência guardou para mim a
oportunidade de poder encaminhar votação que deve
ser um ato de justiça e de decência a ser praticado por
este Congresso.

É inadmissível que um político, eleito por mais de 500


mil votos na sua terra, venha a ter o seu mandato
cassado de forma absolutamente contrária à visão
democrática que sempre imperou nesta Casa. Quem
cassa mandato é o Congresso Nacional, e ele o faz
depois de todo um processo. Quem cassa mandato é o
povo, quando não vota. E quem cassa mandato
deliberadamente é o próprio político, quando resolve
que não quer mais disputar eleições.

Para isso, Sr. Presidente, acredito que esta Casa não


vai baixar a cabeça; não vai praticar essa ignomínia
que é retirar um mandato legítimo de um colega,
abrindo precedente gravíssimo na história das
relações do Poder Judiciário com o Poder Legislativo. É
o meu último apelo.

Eu cassei o meu próprio mandato. Não disputei


eleições, não volto a esta Casa. Mas não volto porque
não quero. Aqueles que não voltaram porque o povo
não quis, tudo bem, mas voltar com uma votação
belíssima, conseguida depois da cassação, é uma
forma de o Congresso se render definitivamente e

341
perder o seu último atributo, a altivez e a
independência diante de ato de prepotência e de
injustiça.

Votarei pela anistia com a consciência tranquila, não


praticarei hipocrisia no meu último momento de usar
o direito de votar. Quero votar co a mesma altivez, a
mesma dignidade, a mesma independência com que
sempre votei nesta Casa. E, ao fazê-lo, não temo o
julgamento de nada. Só temeria a minha consciência
se me acovardasse nesse instante final.

A todos os meus colegas um adeus cheio de afeto por


esses anos que passei aqui. Muito obrigado.134

O deputado Chico Vigilante, do PT do Distrito Federal, o


maior crítico da Lei de anistia na Câmara dos Deputados, afirmou
que estavam querendo criar uma crise entre dois poderes da
República - o Judiciário e o Legislativo. Demonstrando desconhecer
o processo de Humberto Lucena e a legislação eleitoral, afirmou
que Humberto havia permanecido candidato, mesmo após a
decisão do TSE, por força de uma liminar. Disse:

Sr. Presidente, Sras. e Srs. Deputados, está havendo


um profundo equívoco; não existe cassação de
mandato de ninguém. - O que não estão querendo é
respeitar lei aprovada por esta Casa. Foi o Congresso
Nacional que debateu a lei eleitoral, foi o Congresso
Nacional que votou e aprovou a lei eleitoral, e cabe a
este Congresso respeitar decisão da Justiça do meu
País.

134
DIÁRIO DO CONGRESSO NACIONAL, edição de 19 de janeiro de 1995, p.
1000/1001.
342
Estão querendo, Sr. Presidente, Sras. e Srs. Deputados,
criar um conflito entre o Poder Judiciário e o Poder
Legislativo. Não existia a candidatura Humberto
Lucena. Como tinha sido cassado o registro dessa
candidatura não poderia disputar S. Exa. as eleições.
O que houve é que o Senador, cumprindo o que existe
neste País, a indústria da liminar, conseguiu uma
liminar que lhe deu direito a concorrer e que depois foi
cassada. Essa é a verdade dos fatos, e é isso que deve
ser dito neste plenário.

Não estou discutindo a honra, não estou discutindo a


honestidade do Senador Humberto Lucena; o que
estou discutindo é se S. Exa. cumpriu ou não a lei
eleitoral. E quero dizer que não cumpriu; portanto,
não pode assumir o mandato, e o povo da Paraíba
tem se de manifestar novamente e dizer qual o
Senador que querem, porque também não deve ser o
Sr. Lira, que praticou o mesmo crime.

Sr. Presidente, quero dizer aos que estão vaiando que


esta Casa está ficando maluca, está perdendo o juízo.
Ontem afrontou a opinião pública, afrontou a
sociedade brasileira quando aprovou o novo salário
dos Parlamentares antes de aprovar o aumento do
salário dos demais trabalhadores brasileiros. Hoje
esta Casa novamente se reúne para afrontar o Poder
Judiciário brasileiro, para dizer que o que a Justiça
decide não vale nada. E, a quem interessa a
desmoralização do Congresso Nacional? Os atos são
tão ilegais que já estão fazendo fila na porta da
Gráfica do Senado para pagar a impressão de
calendários, cadernos e brindes. Isso não é papel da
Gráfica do Senado. Isso não é papel de um
Parlamento que tem de ser respeitado pelo povo e
pela sociedade brasileira.
343
Sr. Presidente, alguém me disse: 'Não vá contra,
porque vão ficar te marcando e você não terá nenhum
projeto aprovado nesta Casa'. Vou dizer o seguinte:
Querem me marcar, marquem-me. Não vão votar
nenhum projeto meu, não votem; este País já tem lei
demais, e o que falta é cumprir as leis vigentes. Sou
pelo cumprimento da lei. Assim sendo, voto contra
essa anistia, absurda.135

Na tribuna, houve pronunciamentos pró e contra anistia. O


deputado Bonifácio de Andrada fez uma das mais lúcidas defesas
em favor do Projeto. Orador experimentado, conhecedor profundo
das leis e baseando-se em aspectos eminentemente legais, o
parlamentar mineiro utilizou três argumentos para tentar convencer
seus pares a aprovar a matéria em discussão: o erro judiciário, o
espírito da Constituição e a desproporcionalidade da sanção
imposta pela Justiça Eleitoral ao senador Humberto Lucena. Pela
riqueza argumentativa, reproduzo seu discurso:

Sr. Presidente, Sras. e Srs. Deputados, não


pretendemos que as nossas palavras tenham
qualquer marca de emoção ou de radicalismo.

Pedimos aos nossos eminentes colegas que procurem


raciocinar democraticamente, legalmente,
constitucionalmente, quando temos diante de nós
indiscutivelmente a cassação do mandato de um
Senador da República, depois de S. Exa. obter a
consagração da maioria do eleitorado do seu Estado,
mesmo após duas decisões judiciais contra a sua
candidatura.

Porém, quero que meus caros colegas raciocinem

135
DIÁRIO DO CONGRESSO NACIONAL, edição de 19 de janeiro de 1995, p. 1001.
344
comigo a respeito dessa matéria. Por que a cassação
do mandato do Senador Humberto Lucena é contrária
ao espírito constitucional, ao espírito legal, ao espírito
democrático de nossa Constituição?

Sabemos que a mídia, os veículos de comunicação,


mal-informados, criaram no País um clima contrário a
esta Casa, contrário ao Senado da República e ao
Congresso Nacional. Esta é uma verdade indiscutível.
Quem nesta Casa acha que os veículos de
comunicação estão noticiando de forma justa e
correta? Na verdade, eles estão mal-informados a
respeito da nossa atração e da nossa instituição.

No caso do Senador Humberto Lucena – peço a


atenção da Casa -, três argumentos fundamentais
surgem de forma clamorosa em favor daquele
Senador da República Presidente do Congresso
Nacional; Presidente do Congresso Nacional, repito.
Cassaram a candidatura do Senador Presidente do
Congresso Nacional. Mas como foi a cassação? Todos
nós sabemos que a Justiça Eleitoral, pela Constituição
e pelas leis, tem o objetivo de apreciar questões
ligadas a candidatos, à eleições, às campanhas
eleitorais e à apuração. A Justiça Eleitoral existe para
cuidar de candidatos, do processo eleitoral, das
campanhas e da apuração dos votos.

Ora, quando o Tribunal Superior Eleitoral cassou a


candidatura do Senador Humberto Lucena, o fez
contra um ato ou contra um fato ocorrido no Senado
muito antes das eleições, quando S. Exa. ainda não
era candidato. Portanto, a decisão do TSE constituiu
um erro judiciário. O Tribunal não poderia apreciar o
problema da publicação do calendário, porque o
Senador Humberto Lucena, ao tempo da decisão, não
345
era candidato, tampouco havia eleições no País ou
campanha eleitoral. O calendário foi publicado em
novembro de 1993, e os candidatos só surgiram na
Paraíba em abril de 1994.

O segundo argumento, Sr. Presidente, é o da


proporcionalidade da pena. Mesmo que se
considerasse que houve irregularidade na publicação
do calendário – e sabemos que não houve porque
tudo foi feito de acordo com as normas da Gráfica do
Senado -, isso jamais justificaria pena tão elevada,
qual seja a cassação da candidatura do Senador, a
suspensão dos seus direitos eletivos.

E concluiu sua oratória:

Sr. Presidente, peço à Casa, ao final das minhas


palavras, que, no fundo de sua consciência, considere
essa questão: mesmo que houvesse irregularidade na
publicação do calendário, ela justificaria pena tão
elevada, ou seja, a cassação da candidatura, a
suspensão dos direitos eletivos de um Senador?
Não podemos, Sr. Presidente, concordar com essa
cassação, porque é uma invasão das atribuições da
Justiça eleitoral na vida interna do Congresso
Nacional. Faço um apelo à Casa; votem a favor da
consciência cívica.136

Para o deputado petista Paulo Delgado, também de Minas


Gerais, a proposta de anistiar o senador Humberto Lucena
representava um abuso de prerrogativa do Poder Legislativo.
Delgado elogiou a decisão do Poder Judiciário, entendia que ela
simbolizava a aplicação igualitária da Lei, independente de classe

136
DIÁRIO DO CONGRESSO NACIONAL, edição de 19 de janeiro de 1995, p. 1002.
346
social. Argumentou:

Sr. Presidente, Sras. e Srs. Deputados, esta é uma


situação delicada, eu diria até constrangedora, para
um Parlamentar, especialmente em se tratando do
Senador Humberto Lucena, porque conhecemos a sua
história na residência democrática deste País. Ela é
constrangedora também porque um homem da
estatura do Senador Humberto Lucena, que preside o
Congresso Nacional não pode esquecer uma lei escrita
por nós. Esse é o problema.

O crime eleitoral é insuscetível de anistia. Praticar


essa anistia é abusar da prerrogativa desse Poder,
visto que o soberano da vontade, que define o
mandato, é o eleitoral, mas a regra que permite a
disputa é anterior ao pleito.

Permito-me mencionar uma expressão em momento


tão grave: passar a mão na cabeça do mais
importante dirigente do Congresso Nacional é passar
a mão na cabeça do menos importante representante
do Parlamento municipal brasileiro. Imaginem onde
isso iria parar se um membro do Poder Judiciário de
qualquer Estado nordestino – e poderia ser do meu
Estado, Minas Gerais – cumprisse a lei feita pelo
Congresso Nacional, mas seu Presidente a
descumprisse. Neste momento, desejamos que a
Justiça cumpra a lei. Sou daqueles que acham que a
Justiça precisa de reformas, sim. E não pode a ética de
vingança produzir justiça, se imaginamos que é
preciso haver um controle do Judiciário porque
sabemos que uma decisão correta desse Poder colhe o
mais importante membro do Parlamento.

347
Ora, Sras. e Srs. Deputados, é lamentável estar aqui
elogiando o Judiciário em decisão que pode ter sido
abusiva, mas foi tomada com soberania por um Poder
independente.

Se o Presidente Fernando Henrique Cardoso – eu o


admiro e a Sr. Exa. desejo sucesso – antecipa-se e veta
o salário- mínimo, que se antecipe também e vete esta
anistia se, por acaso, ela for aprovada.

Não podemos entrar com uma moeda justa, quando


se trata do reajuste dos trabalhadores brasileiros,
propondo uma decisão injusta. Se alguém deve ser
colhido, que o seja o honrado Senador Humberto
Lucena, que errou ao descumprir a lei. Que S. Exa. se
recandidate no próximo pleito e volte consagrado ao
Senado. Não se pode rasgar a lei, abusar da
prerrogativa de conceder um indulto, o esquecimento
político, uma das mais solenes e belas prerrogativas
de um Poder, para um crime eleitoral desses, que é
muito mais um escândalo por envolver quem o
praticou e não pelo excesso da Justiça, que cumpriu a
lei felizmente, como queremos.

O deputado Geddel Vieira Lima, do PMDB baiano, saiu em


defesa do Projeto de Anistia:

Sr. Presidente, Sras. e Srs. Deputados, pela terceira vez


assumo a esta tribuna para falar sobre o que se
convencionou chamar de 'caso Lucena'. Nas vezes
anteriores, procurei, ainda que reconhecendo a minha
pequena dimensão diante deste caso. Alertava eu
para aspectos que considero de fundamental
importância para votação a que dentro em pouco irá
se proceder. Eu dizia à época que uma velha prática

348
nesta Casa permitia que os Parlamentares utilizassem
suas quotas para confecção de calendários,
informativos, etc., que isso se transformou em
jurisprudência e, como tal, criou uma ética a respeito
do tema.

A Lei Eleitoral aprovada por este Congresso veio


mudar esta realidade ao estabelecer que, durante o
período eleitoral os Parlamentares não poderia usar a
gráfica ou instrumentos públicos que pudessem
caracterizar abuso do poder político, a falta de
igualdade entre candidato parlamentar e não
parlamentar.

O Senador Humberto Lucena, sem o conhecimento da


lei que seria votada no Congresso no ano de 1993, fiel
à praxe, que fez com que tantos de nós nos
utilizássemos daquela prerrogativa, elaborou o seu
calendário. Veio a denúncia. O Tribunal Regional
Eleitoral da Paraíba absolveu o Senador Humberto
Lucena. Um Procurador Eleitoral, a destempo,
recorreu da sentença. O Tribunal Superior Eleitoral,
em flagrante e claro erro judiciário, revogou a decisão
do Tribunal Regional e manteve a impugnação da
candidatura do Senador Humberto Lucena. S. Exa.
recorreu, conseguiu uma liminar e se submeteu ao
julgamento do povo da Paraíba, que acompanhou de
perto a fase da denúncia. Lucena, candidato, foi
absolvido pelos juízes, por aqueles de quem todos nós,
políticos, procuramos a absolvição: o povo da sua
terra.

Surge aí a primeira questão: devemos, sim, respeitar o


princípio elementar da soberania popular. À soberania
popular cabe designar quem deve ter ou não assento
no Parlamento. Não à política dos tribunais.
349
Sr. Presidente, Sras. e Srs. Deputados, creio com
absoluta convicção que esta é a grande questão que
justifica a anistia e a tem justificado no decorrer dos
tempos e da História. Estamos aqui não para absolver
o Senador Humberto Lucena, não para estender o
manto protetor da anistia a outros que eventualmente
estejam respondendo ao mesmo processo. Estamos
propondo e apoiando a anistia, sim, para corrigir algo
que é reconhecidamente flagrante e grave erro
judiciário, comprovado por aqueles que tiveram a
pachorra, como eu tive, de ler os votos dos Ministros
do Supremo Tribunal Federal. Angustiados, alguns dos
mais ilustres Ministros daquela Corte, apesar de
reconhecer o flagrante equívoco da decisão do TSE,
proclamaram que não é a decisão do Supremo
analisar o mérito.

O representante do povo baiano expressou claramente que


o Projeto de Anistia era uma ode à classe política nacional. Assim
justificou:

Ora, Srs. e Srs. Deputados, este é o nosso grande


momento, este é um momento de afirmação. É
evidente que, político que sou, homem que busca o
reconhecimento popular, sei tão bem quanto a
maioria de V. Exas. Que a aprovação da anistia não
nos deixaria a todos nós em consonância com o que
deseja não a opinião pública, mas a opinião
publicada, como Churchill qualificou. Porém, nesta
hora, entre permanecer simpático à opinião
publicada, e fiel à minha consciência, prefiro ficar com
esta. Posto-me, pois, Sr. Presidente, como vassalo das
minhas crenças, como escravo das minhas convicções.
E as minhas crenças e as minhas convicções me
impelem neste momento, a convocar todos os

350
companheiros que queiram postar-se como escravos
das crenças e das convicções, como Disraele no
Parlamento inglês, ao voto e á vitória, que não será de
Humberto Lucena, mas da Casa, a Classe política
brasileira.137

Para o deputado do Partido Comunista do Brasil, Haroldo


Lima, seria uma hipocrisia caso o terceiro colocado na eleição,
Raimundo Lira, viesse a assumir o cargo: “ - Anistiar pura e
simplesmente o senador paraibano, não seria a decisão mais
correta”, ponderou. O ressarcimento em dinheiro pelo gasto
indevido da Gráfica corrigiria o excesso do Poder Judiciário, ao
mesmo tempo preservaria o acatamento às suas decisões. O
parlamentar comunista não considerava justo o STF ter cassado o
registro do presidente do Senado e, por outro lado, haver
inocentado o ex-presidente Fernando Collor de Mello. Registrou:

Sr. Presidente, Sras. e Srs. Deputados, na verdade,


estamos discutindo questão de muita importância. Ela
transcende à análise do caso de um Parlamentar, seja
o Presidente, seja outro Deputado, seja o Senador
Humberto Lucena, seja outro Senador. Mais
importante do que isso é o que estamos discutindo, e
é bom que tenhamos em conta os dados gerais da
situação na qual estamos envolvidos.

O País acaba de observar, de constatar que a Justiça


brasileira, através dos seus mais diferentes níveis,
julgou inocente o Sr. Fernando Collor de Mello e acaba
de inocentar o Sr. PC Farias e o Sr. Cláudio Vieira.
Todos foram inocentados pela Justiça brasileira,
através dos seus diferentes níveis.

137
DIÁRIO DO CONGRESSO NACIONAL, edição de 19.01.1995.
351
Eis que agora a Justiça brasileira, através dos seus
diferentes níveis, resolve pinçar no Congresso
Nacional um culpado, um homem que fez imprimir um
calendário com sua fotografia – foram feitas 130 mil
cópias - - e conseguiu 500 mil votos do povo da
Paraíba. Decidem que a candidatura desse homem
deve ser cassada e a cassaram. Agora está sendo
posta para nós Parlamentares a votação de um
referendum. Vamos referendar a cassação de um
mandato ou não? O mais é filigrana jurídica.

Somos políticos, não podemos nos perder nas


filigranas jurídicas. Se a lei é assim ou assado não nos
interessa. Lei por lei, a lei eleitoral em vigor deve ser
revogada. Não vamos respeitar esse negócio. Vamos
respeitar o princípio político básico que nos trouxe a
esta Casa, o mandato popular. E, tendo um mandato
popular, não podemos admitir o precedente brasileiro
de sermos cassados pelo Poder Judiciário. Não! Quem
pode cassar mandatos é uma assembleia politica por
excelência, este Congresso. E o Parlamento brasileiro
só poderá fazê-lo através de uma movimentação, de
uma discussão profunda, séria, convincente, como foi
feito no caso do Sr. Fernando Collor de Mello. Só assim
se cassa um mandato. Agora, querem fazer uma
cassação branca de mandato, por motivo que não a
justifica. Então, o mesmo Judiciário que delibera que o
Sr. Fernando Collor é inocente decide que a
candidatura do Presidente do Senado deve ser
cassada e os seus direitos políticos suspensos por três
anos. Será justo?

Srs. Deputados, nossa Casa enfrenta várias


dificuldades. Em primeiro lugar, devemos sempre ter
firmeza, convicção, tenacidade para enfrentar a

352
opinião pública, quando ela está manipulada por uma
mídia que não prima pela neutralidade, por ser
verdadeira e positiva. Muitas vezes a mídia tem dado
grandes contribuições na evolução da situação
política e democrática do nosso País. Entretanto, não
poucas vezes tem deformado os fatos. Refiro-me à
mídia que nunca contou lá fora que o voto que agora
exige dos Parlamentares é consequente. Aqui não
existe a possibilidade de se cassar um mandato. O
voto é uma moeda de duas faces: Quem votar contra
a anistia a Humberto Lucena estará fazendo entrar
pela porta do Senado uma pessoa que cometeu o
mesmo delito, ou seja, imprimiu o mesmo calendário
na mesma Gráfica, na mesma eleição apenas com
duas diferenças. Primeira, a de que foi derrotado pelo
povo. Aqui estaremos substituindo o povo da Paraíba,
dizendo aos paraibanos que os 500 mil votos que deu
a Humberto Lucena foram errados e que nós os
rejeitamos, colocando no Congresso a pessoa
derrotada naquele Estado.

A votação é consequente, Srs. Deputados. Não existe


votação neutra, parcial. Quem votar pela cassação
estará votando pela entrada do outro Senador.

Segunda diferença: o Senador derrotado é também


politicamente pessoa representativa de grande grupo
econômico, a Autolatina.

De sorte que estamos convocados a tomar uma


atitude corajosa. Sabemos sim que a mídia que está
ali trabalhada, que não se indignou quando Collor foi
inocentado, que não se indignou quando PC Farias foi
inocentado, vai dizer que os mesmos Parlamentares
que ontem votaram o aumento de seus salários hoje
inocentaram o Senador Humberto Lucena.
353
Srs. Parlamentares, não há forma de um Poder
levantar-se tentando fazer média e acovardando-se.
Não há forma de um Poder soberano se nas horas
decisivas, com receio da repercussão, abaixa a cabeça
e comete uma injustiça, a injustiça de permitir a
cassação de um mandato por um Poder que não pode
cassar, o Judiciário. Só quem cassa mandatos é o
Poder Legislativo, o Congresso e assim mesmo depois
de profundas e amplas discussões.

Srs. Parlamentares, encerro dizendo que o PcdoB


manifestou-se para que o aumento do salário-mínimo
fosse votado em primeiro lugar; em nenhum instante
deixou de votar contra a pretensão de postergarmos a
votação. Acabamos de perder: este projeto não será
votado em primeiro lugar. Agora ou votamos a favor
ou botamos dentro do Congresso Nacional quem o
povo da Paraíba botou para fora. Ficará no Congresso
Nacional a pessoa que cometeu o mesmíssimo delito
pelo qual estamos cassando o Senador Humberto
Lucena. O povo chama isso de hipocrisia, e um Poder
hipócrita jamais será um Poder soberano.

Confio em que o Legislativo, pela força, pela coragem,


pela audácia de esquerda ou de direita, possa
levantar a cabeça como nós, comunistas, fazemos
neste instante, sabendo que nossa história registra um
passado no qual a cassação de mandatos nos atingiu
diversas vezes. Em 1946, os mandatos de quinze
Deputados Federais do Partido Comunista do Brasil
foram cassados. Foi uma comoção nacional. Agora
querem cassar um mandato sem nenhuma razão
plausível.

Julgamentos que a anistia, nos termos em que foi


aprovada no Senado, não é correta. O PcdoB votará
354
contra ela e está encaminhando, juntamente com
Deputados que deram melhor forma à nossa
proposta, emenda na qual o Senador Humberto
Lucena é considerado culpado de culpa menor, para a
qual será convocado a se redimir, ressarcindo à
Gráfica pelo dinheiro que gastou indevidamente.

Ademais, Sr. Presidente, precisamos estabelecer uma


norma rígida pela qual a utilização da Gráfica do
Senado, seja por um, seja por não sei quantos
Parlamentares, jamais se dê com fins de vantagens
eleitorais.138

O representante do PSTU, deputado Ernesto Gradella, via a


anistia como um retrocesso e um estímulo à impunidade:

Sr. Presidente, Sras. e Srs. Deputados, o projeto de


anistia que ora se pretende seja votado nesta Casa
não é só de anistia para o Senador Humberto Lucena.
Há mais pessoas envolvidas na utilização de recursos
públicos em campanhas eleitorais, todos a serem
anistiados se aprovado este projeto.

Portanto, não se pode tornar absoluto o número de


votos como critério para que se possa perde ou não o
mandato.

Já houve na História deste País – é o caso do ex-


Presidente Fernando Collor de Mello – muitos políticos
eleitos com altíssimas votações, mas apoiadas no
abuso do poder econômico, na utilização da máquina
pública, na utilização de recursos escusos para sua
eleição.

138
DIÁRIO DO CONGRESSO NACIONAL, edição de 19.01.1995, p. 1003.
355
Portanto, o fato de ter sido ou não eleito não pode ser
considerado como critério absoluto por esta Casa
quando vamos votar projetos dessa natureza. Na
verdade, a aprovação do projeto ora em discussão vai
significar que mais uma vez a impunidade neste País
continua solta. Ela já ocorreu no julgamento do ex-
Presidente Fernando Collor de Mello, quando o
Supremo Tribunal Federal acabou inocentando o réu.
É um atestado de inocência. Esperamos que isso não
se repita nos próximos processos. Vê-se a impunidade
em todo o País, onde sempre há um jeitinho para
quem tem dinheiro, para quem representa o poder
econômico fugir da aplicação das leis.

Se este projeto for aprovado, vamos continuar sendo o


País da impunidade, onde só vai para a cadeia o
pobre, onde só são julgados e condenados aqueles
que não dispõem de recursos. Portanto, a aprovação
de um projeto como esse contribuirá para que as
instituições, até mesmo este Congresso, mais uma vez
sejam desmoralizadas, mostrando muito bem que os
interesses da classe trabalhadora acabam não sendo
representados aqui.

Fizeram um carnaval muito grande, e formou-se até


um processo quando o candidato Lula falou, em cima
de um caminhão, aos metalúrgicos do ABC, coisa que
sempre fez. E aí se fez todo um carnaval; disseram que
a lei eleitoral estava sendo desrespeitada. Mas,
quando é aplicado um dos artigos da lei – o que
impede a utilização do aparato público em prol de
candidaturas -, tentam anistiar aqueles que foram
condenados. Portanto, não há lógica em aprovar esse
tipo de anistia. Ao contrário, se esta Casa votou antes
uma lei, deveria exigir que outras pessoas envolvidas
nesse mesmo tipo de ilegalidade sofressem a mesma
356
pena e não tentassem, através da sua atuação, aqui,
ir contra decisão que, em nosso entendimento, é
acertada.

A população deste País não aceita mais conviver com


o clima de impunidade que aí está. É necessário dar
um basta nisso. E a melhor forma de este Parlamento
contribuir é votando contra este projeto.

O PSTU votará contra o projeto e contra o


requerimento de urgência.139

À medida que o tempo passava, os debates iam


esquentando! O discurso mais efusivo em favor da Lei de Anistia
partiu do deputado federal Roberto Jefferson, do PTB carioca.
Advogado atuante, Jefferson recorreu à sua experiência de orador
do Tribunal do Júri e fez uma apologia do Poder Legislativo, criticou
diretamente o discurso do deputado petista e tentou convencer
seus pares da viabilidade jurídica da anistia, mesmo nos casos de
condenação eleitoral. Disse:

Sr. Presidente, Sras. e Srs. Deputados, até o presente


momento não consegui ver o corpo de delito, o
calendário, exibido aos Srs. Deputados. Não vi na
imprensa, nem vi passar de mão em mão neste
plenário o fac-símile o original do calendário que leva
à cassação do mandato de um Senador da República,
Presidente do Congresso Nacional, eleito com 500 mil
votos.

Nobre Deputado Hélio Bicudo, não vi o corpo de


delito, como não li na imprensa o seu fac-símile. Não
sei e indago de V. Exas., se consta daquele calendário

139
DIÁRIO DO CONGRESSO NACIONAL, edição de 19.01.1995, p. 1004.
357
a expressão 'Humberto Lucena para Senador, 1994'.
Isto está lá escrito?

Pergunto aos vigilantes e aos intelectuais da cassação


se está escrito naquela folhinha de 1993 'Humberto
Lucena para Senador, 1994'. Não está!

A lei da inelegibilidade fala em abuso econômico do


candidato; contudo, os calendários foram publicados
e distribuídos. E S. Exa. o Presidente do Congresso
Nacional não era candidato; nem sequer era aspirante
nem convenção havia. Era um Senador da República,
Presidente do Congresso Nacional, no exercício das
suas funções.

Ouvi o discurso de intelectual de mão no bolso,


poseur, no sentido de que anistia para cassação
eleitoral é incabível. Não podemos anistiar os grandes
esquecendo os pequenos. Não é verdade! Ela cabe.
Esta Casa já anistiou os pequenos, os trabalhadores,
as donas-de-casa que se negaram a votar no
plebiscito sobre as formas de governo:
parlamentarismo, monarquia parlamentar ou
república presidencialista. E a multa – porque o voto,
no Brasil, é obrigatório – atingiria mais de 60% do
povo que não votou. O que fizemos? Votamos a
anistia para todo eleitor que, violando a lei eleitoral,
não votou no sistema e na forma de governo.

Então isso é conversa da carochinha para enganar a


imprensa, porque já votamos a anistia para os
pequenos. E a anistia que vamos votar agora é contra
um abuso do Ministério Público e do Poder Judiciário.
O Judiciário é limpo, probo; não podemos desafiar a
Justiça. O mais corrupto Poder no Rio de Janeiro é o

358
Tribunal Regional Eleitoral, é a Justiça Eleitoral
carioca. Se houve compra de votos no Rio – e
precisamos ganhar duas vezes a eleição – é porque
políticos compravam e juízes vendiam.

O poder não emana mais do povo, nem dos seus


representantes eleitos. O poder emana do concurso
público, e nós somos culpados por isso, Deputado
Bonifácio de Andrada, porque demos ao Ministério
Público e ao Judiciário poderes maiores do que os
desta Casa e dos representantes eleitos pelo voto.
Basta um promotor denunciar um político que a
sentença vai para o jornal no dia seguinte. A denúncia
já é a sentença. A imprensa escandaliza, e o Judiciário
covardemente se verga, fazendo a maior violência
contra qualquer dos Srs. Parlamentares.

Sr. Presidente, era na direita a cassação; começou lá


com o apoio dos 'vigilantões' e dos intelectuais que
fazem pose, mas são fascistas. Ela agora está no
centro-esquerda e vai chegar a vocês, se Deus quiser.
Mas estaremos aqui para repetir o que já fizemos
ontem, para defendê-los, apesar dos 'vigilantões' e
dos 'intelectualóides' fascistas com pode de grandes
homens.

O Presidente do Congresso, Senador Humberto


Lucena, foi absolvido da denúncia do Ministério
Público por sete votos a zero no TRE da Paraíba.

A Constituição diz que o Ministério Público é uno e


indivisível; é uma figura só, e não pode um promotor
fazer um ato diferente daquele outro titular da ação.
O Tribunal da Paraíba deu sete votos a zero em favor
do Senador Humberto Lucena. O Ministério Público
tomou conhecimento da sentença no plenário do
359
Tribunal – consta das notas taquigráficas. O Ministério
Público tem o prazo dobrado; a lei concede ao
Ministério Público o dobro do prazo para recorrer.
Passado o tempo, o Ministério Público não recorreu.
Publicaram o acórdão, e o Ministério Público já estava
intimado – consta das notas taquigráficas. O
Subprocurador recorre. O Ministério Público é uno e
indivisível. O Tribunal Superior Eleitoral acolhe essa
violência à lei.

Não morro de amores pelo Senador Humberto


Lucena, porque acho que S. Exa. é em parte
responsável pelo que vivemos hoje, quando as elites
econômicas fazem pressão através da mídia e os
'cassadores' começam a buscar o mandato
parlamentar. S. Exa. cedeu e paga o preço disso hoje,
mas é uma questão de princípios. Somos o Poder.

Constituída no voto, a aristocracia intelectual do País,


a do concurso público, os juízes e os promotores, que
não gostam do povo, não cheiram o povo, não sabem
onde o povo mora, para aparecerem um pouquinho
no jornal televisivo ou na página de um grande
veículo de comunicação escrita, querem competir
conosco, porque sabem que amanhã não terão de se
submeter ao crivo do voto ou à censura do povo.
Fazem isso porque são inamovíveis, o seu salário é
irredutível e o seu emprego vitalício. Temos de voltar a
estudar o assunto durante a revisão constitucional.

A esses senhores e aos que fazem eco à sua voz, os


'vigilantões' e os 'intelectualóides' fascistas, quero
dizer que esta Casa vai isolá-los! Eles perderam as
eleições, com Odebrecht e tudo. Não são os paladinos
da oral e da ética para ninguém! Vamos derrotá-los e
isolá-los, porque já estão a merecer essa atitude de
360
todos nós.140

O Partido dos Trabalhadores se mostrava irredutível, mesmo


que três dos seus parlamentares estivessem envolvidos em conduta
semelhante à do senador Humberto Lucena: o presidente da
Câmara do Distrito Federal, o deputado Geraldo Magela, o líder da
bancada na Câmara, José Fortunati, e o deputado Paulo Paim. O
partido voltou a criticar o que considerava um “casuísmo esdrúxulo
pós-condenação pelo Poder Judiciário”, como afirmou a deputada
do PT mineiro, Sandra Starling:

Sr. Presidente, Sras. e Srs. Parlamentares, ouvi com


muita atenção os oradores que me precederam e
venho a esta tribuna para humildemente trazer outra
contribuição ao debate que se trava nesta tarde.
Todos temos convicção da defesa intransigente do
Estado de Direito. O Estado de Direito é também a dor
diuturna de se conviver com leis e interpretações
equivocadas, mas sobretudo com a utilização do
próprio caminho da lei para reformular esses
equívocos. Se houve equívoco na lei aqui aprovada, se
houve equívoco na interpretação do Judiciário, não
podemos cometer outro erro, tentando consertar os
que foram antes cometidos, sob pena de sepultarmos
aquilo que todos temos obrigação de defender, o
Estado de Direito.

Oradores que me antecederam disseram que já foi


concedida anistia depois de fatos consumados. Existe
uma única hipótese de anistia posterior à
configuração do crime pelo Poder Judiciário. É quando
a ordem jurídica existente é suprimida por um
processo revolucionário de massas ou por uma

140
DIÁRIO DO CONGRESSO NACIONAL, edição de 19.01.1995, p. 1004/1005.
361
assembleia nacional constituinte. Por isso, muitos dos
Srs. Parlamentares que hoje aqui estão votaram em
1988 a anistia para aqueles que haviam sido
condenados pelos tribunais de exceção da ditadura
militar.

Trata-se de um momento em que se suprime a ordem


jurídica anterior e, portanto, as interpretações
equivocadas, e se constroem outras. Nesse caso, isso,
é possível; mas não é o que ocorre hoje. Quando o
orador que me precedeu falou da anistia concedida
aos que não compareceram ao plebiscito, esqueceu-se
de que não houve pronunciamento do Poder
Judiciário, que tem de ser seguido, sob pena de
estarmos acabando com o Estado de Direito.

Hoje, se aprovarmos essa anistia, estaremos criando a


figura esdrúxula do casuísmo pós-condenação pelo
Poder Judiciário. É o casuísmo pós-festo, pior do que
aquele com o qual convivemos durante anos, quando
se elaboravam leis para prevenir fatos que iriam
acontecer no futuro.

Por isso, e também fazendo minhas as palavras do


primeiro orador desta tarde, sem nenhuma emoção,
sem qualquer juízo que possa extrapolar este
momento grave que vive a Nação, apelo aos meus
pares para que não façamos hoje aquilo que Goethe
já anunciava como a pior coisa que pode acontecer.
Um malfeito é como uma pedra jogada num poço,
que vai fazendo círculos de malfeitos, vamos
interromper o malfeito que aconteceu e respeitar o
Estado de Direito em nosso País.141

141
DIÁRIO DO CONGRESSO NACIONAL, edição de 19.01.1995, p. 1005.
362
Considerado uma referência moral para os seus pares, o
deputado Gerson Peres, do PPR paraense se juntou aos que
defendiam o Projeto de Anistia:

Sr. Presidente, Srs. Deputados, refleti muito antes de


vir a esta tribuna para falar sobre matéria da mais
alta relevância, que envolve direitos políticos do
cidadão. E o faço com a autoridade modesta de quem,
na Constituinte, desta mesma tribuna, defendeu a
autonomia, a independência do Poder Judiciário.

O episódio Humberto Lucena ocorreu por omissão, no


cumprimento da lei por parte do próprio Poder
Judiciário, que ultrapassou os prazos previstos para
determinar o julgamento do Sr. Humberto Lucena
antes da realização das eleições. Com todo o respeito
que tributo ao Supremo Tribunal Federal, sem decidir
do mérito, devolvê-lo ao Tribunal Superior Eleitoral,
dizendo que a competência exclusiva era daquela
Corte.

Nesse exato momento, prestem bem atenção,


Humberto Lucena, garantido pelo efeito suspensivo
que lhe dava o processo, tinha o seu nome consignado
na chapa para receber o sufrágio popular. E no dia 3
de outubro, com o consentimento e o registro da
própria Justiça, o povo foi às ruas, após ouvir nos
programas de televisão todas as críticas e denúncias,
de ter conhecimento até do próprio processo
formalizado contra ele. Desse modo, pôde apreciar as
contestações e analisar as acusações. Assim mesmo,
julgando o Senador Humberto Lucena, deu-lhe 500 mil
votos, elegendo o novamente Senador da República, e
essa mesma Justiça conferiu-lhe o diploma do
Senador, que agora se encontra em suas mãos.

363
Ante esses fatos, abrindo a Constituição Federal – o
nosso catecismo, a nossa fé e a nossa crença em
defesa dos direitos do cidadão – leio o parágrafo
único do art. 1º: 'Art.
1º........................................................Parágrafo único.
Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio
de representantes eleitos ou diretamente, nos termos
desta Constituição'.

Ora, o Senador Humberto Lucena foi eleito pelo povo


com o consentimento da Justiça, e o julgamento do
povo se sobrepõe a todos os demais, porque foi ele
que garantiu a existência do Poder Judiciário, por
intermédio do Poder Constituinte.

Consequentemente, Srs. Deputados, cassar os direitos


políticos do cidadão Humberto Lucena é afrontar o
primeiro princípio, o fundamental entre todos os
consignados na Constituição de 1988.

Com estas considerações, voto a favor da anistia ao


Senador Humberto Lucena e convoco os que
respeitaram os direitos dos cidadãos a assim
procederem, porque estarão respeitando a própria
Constituição.142

Último a se pronunciar favorável à urgência na apreciação


do Projeto de Anistia, o deputado do PMDB mineiro, Tarcísio
Delgado, registrou as contradições do processo de cassação de
Humberto Lucena. Utilizando uma linguagem mais técnica, do
ponto de vista da Ciência do Direito, afirmou Delgado que a
aprovação do Projeto era um ato de “sabedoria política” do
Congresso Nacional:

142
DIÁRIO DO CONGRESSO NACIONAL, edição de 19.01.1995, p. 1005.
364
Sr. Presidente, Sras. e Srs. Deputados, a esta altura do
debate, gostaria de solicitar humildemente a atenção
dos companheiros da Casa, especialmente dos que até
agora têm-se manifestado contra esse projeto de
anistia, para ponderar alguns aspectos, com a
seriedade e a dignidade com que exercemos o
mandato parlamentar.

Não estamos entre aqueles que, no primeiro


momento, assumiram a anistia com sentimentos
corporativistas. Num primeiro momento até a
entendermos precipitada, mas, depois de estudar a
fundo todo o emaranhado das questões que levaram
ao julgamento, então concluímos que a aprovação
desta anistia é um ato de alta sabedoria política do
Congresso Nacional.

É preciso dizer, para início de conversa e para reavivar


a memória de muitos, que aqui não estamos
discutindo nem processo de indulto, nem graça, nem
perdão: estamos discutindo a anistia, instituto
específico que não representa o julgamento de coisa
alguma, instituto que representa o esquecimento.

Neste processo tivemos muitas contradições, desde o


uso da gráfica do Senado até o julgamento nos vários
níveis do Judiciário, que justificam um pedido de
esquecimento e uma decisão de alta sabedoria do
Congresso Nacional em conceder a anistia.

A anistia é um processo exclusivo. Só o Congresso


Nacional pode concedê-la. Só aquele Poder que faz a
lei que pune pode conceder a anistia, que faz esquecer
momentos que não mais devem ser lembrados.

Por isso, estamos concitando os companheiros a que


365
analisem bem esse processo. Tivemos, nisto tudo, um
processo de muitas contradições. É preciso que os
companheiros Deputados, membros desta Casa,
considerem que no momento do julgamento o
Supremo Tribunal Federal não podia conhecer dos
processos por questões processuais preliminares, e
não de mérito. Alguns Ministros foram muito claros
em dize que lamentavam não poder conhecer do
recurso porque, se o fizessem, corrigiriam o erro do
Tribunal Superior Eleitoral. Foram Ministros do
Supremo que disseram isso, e eles só não usaram a
anistia porque não têm anistia para usar. Se nós
temos, por que não a usarmos para corrigir erros
flagrantes como esses dos julgamentos consecutivos
do Supremo Tribunal Federal?

Outra questão sui generis, Sr. Presidente, Srs.


Deputados, que precisa ser considerada nesse
processo é a de que a representação contra Humberto
Lucena foi feita em fevereiro do ano de 1994. Essa
representação andou. Foi S. Exa. absolvido no Tribunal
do seu Estado e houve recurso para o Tribunal
Superior Eleitoral, que então o considerou inelegível
para as eleições de 1994 e deu pela cassação do
registro de sua candidatura. No interregno entre a
decisão do Tribunal Superior Eleitoral e o julgamento
do recurso cabível no Supremo Tribunal Federal,
quando a Sua Suprema Corte, não conhecendo do
recurso, manteve a decisão do TSE, houve um fato
importante, fundamental, e chamo a atenção da Casa
para isso: houve o julgamento da soberania popular,
houve a eleição. Quando a Suprema Corte julgou o
recurso não mais havia candidato, havia eleito; não
mais se podia cassar o candidato, porque a
candidatura já não mais havia; havia um eleito.
Quanto ao instrumento da cassação, está dito
366
claramente no art. 10 da Constituição que é um outro
processo. Não cabia o processo de impugnação da
candidatura porque não se pode impugnar
candidatura que já não existe. Não cabia o processo
de cassação do registro de candidatura porque não há
mais como cancelar o registro de candidatura de
alguém já eleito. Apenas caberia um outro processo, o
de análise da impugnação do mandato eletivo.

Sr. Presidente, no parecer do Relator, Deputado Prisco


Viana, há uma emenda restritiva que corrige o defeito
do projeto aprovado no Senado, pois apenas concede
a anistia àqueles que usaram a gráfica do Senado
naquele período, e não mais para qualquer outra
coisa. Assim, estamos repondo a verdade de algo que,
certo ou errado, vinha sendo costumeiramente usado.
Desculpe-me o Senador Humberto Lucena, meu
companheiro Presidente do Congresso mas,
pessoalmente, acho de mau gosto a impressão de
folhinhas. Mas achar de mau gosto não quer dizer que
haja irregularidades, e é preciso ter consciência disso.
Nós todos imprimimos na Gráfica do Senado outras
matérias; optamos por outro tipo de matéria, mas
isso não está definido, não está claro. Esta Casa, vai
então acocorar-se, andar de quatro, ao permitir que
tal injustiça seja cometida contra o Presidente do
Congresso Nacional e contra outros colegas que
possivelmente possam vir a estar em situação
semelhante?

Sr. Presidente, Sras. e Srs. Parlamentares, para não


encaminhar de maneira emocional, para não acusar
companheiros, temos de ouvir posições contra e a
favor: a favor, muito boas companhias; contra,
também muito boas companhias – pessoas sérias,

367
corretas, que firmam a sua convicção. Apenas quero
pedir àqueles que ainda estão contra o projeto que
pensem duas vezes e não votem contra a soberania
desta Casa, não votem contra o direito de alta
sabedoria política da concessão de anistia, o qual só a
nós compete, e a ninguém mais, em nenhuma
democracia civilizada. Não devemos, portanto, abrir
mão dele.

Quero pedir aos companheiros que analisem o


substitutivo do Deputado Prisco Viana e vejam que o
seu alcance é limitado ao equívoco cometido há anos
no uso da gráfica. Até peço permissão para dizer ao
Deputado Prisco Viana, Relator, que o acompanhei
inteiramente no seu parecer e no seu substitutivo, pois
não desejo criar dificuldades, mas quero ressaltar que
sou vencido, não convencido, no aspecto de
devolução, no aspecto do art. 3º. Acho que esta
matéria não devia entrar no processo de anistia, mas
sim contar de um projeto específico. Agora
deveríamos nos ater à concessão de anistia àqueles
que usaram a Gráfica do Senado – e nem quero saber
quem o fez, pois neste momento não estou julgando
quem usou mal ou quem usou bem. O momento do
julgamento é outro. Anistia não é momento de
julgamento de coisa nenhuma, nem de quem cometeu
a falha nem de quem puniu o que foi acusado de
cometê-la. Não se julga coisa nenhuma na anistia.
Num outro momento, sim, acho que deveríamos votar
uma resolução que fizesse ser ressarcido tudo aquilo
que foi indevidamente impresso. Mas agora não
importa quem imprimiu – não no projeto de anistia.

Dou-me por vencido, não por convencido, mas


pondero isso no que diz respeito ao projeto em si.

368
Por último, vou conclamar os companheiros – homens
progressistas e sérios, que dão tanto valor à soberania
popular – do PT, do PDT, do PPS e do PSB, esses
companheiros que valorizam a soberania popular, e
eu sei o quanto valorizam, a que agora não chutem o
balde da soberania popular e a abandonem nesta
hora tão difícil. Olhem bem, Srs. Deputados, e
imaginem que somos todos políticos disputando no
seu Estado uma eleição proporcional, muito mais
complicada do que a majoritária, acusado pelo
adversário de já ter sido condenado no Tribunal
Superior Eleitoral, e mesmo assim conseguir a
absolvição do seu povo, a aprovação da sua gente.
Vejam que, apesar da acusação de condenação no
Tribunal Superior Eleitoral, ainda assim houve a
absolvição pelo povo soberano da Paraíba, que
concedeu a anistia a Humberto Lucena.143

Inconformado, o deputado petista Chico Vigilante voltou à


tribuna. Além de criticar o Projeto de Lei, lançou um desafio ao
senador Ney Suassuna:

Como eu estava dizendo, desafio o Senador Ney


Suassuna, ou qualquer outro cidadão deste País, a
provar que mandei imprimir material eleitoral na
gráfica do Senado. Se S. Exa. acha que com esse tipo
de atitude vai intimidar aqueles que são contra o
projeto de anistia ao Senador Humberto Lucena,
enganou-se redondamente, porque, se eu era contra o
projeto, agora o sou com muito mais convicção. Não
aceito chantagem e vou estar aqui o dia todo, de
plantão, para obstruir o projeto de anistia ao Senador
Humberto Lucena, projeto esse que considero imoral,
indecente e irresponsável.
143
DIÁRIO DO CONGRESSO NACIONAL, edição de 19.01.1995, p. 1006.
369
E quero dizer mais: estão vendendo gato por lebre!
Não se está anistiando o Senador, porque seu
mandato não existia. O Senador não tinha o direito de
ser candidato, porque teve o registro de sua
candidatura cassado pelo Tribunal Superior Eleitoral.
Entretanto, S. Exa. entrou com um pedido de liminar
no Supremo Tribunal Federal, que foi concedida, para
depois ser cassada. Logo, sua candidatura não existia.
Indaguei de V. Exa., Sr. Presidente, quais eram os
nomes dos Deputados incluídos na tão propalada lista
dos que teriam produzido material eleitoral na gráfica
do Senado Federal. E V. Exa., um homem digno e de
palavra, estando na Presidência afirmou, naquele
instante, que não havia um único Deputado envolvido
nessa falcatrua da gráfica do Senado Federal.
Portanto, não aceito essa intimidação do Senador Ney
Suassuna e vou obstruir o projeto. Se houver quorum,
vou votar contra. Se quiserem continuar me
intimidando, que continuem, porque não fiz nem vou
fazer material eleitoral na gráfica do Senado Federal.
Exijo, portanto, que esta Casa, através dos órgãos
competentes, requeira o devido reparo à honra dos
Deputados atingidos por esse Senador, repito,
mentiroso, que não tem autoridade para falar esse
tipo de coisa.

Comunico também à Casa que, por verificar a


inutilidade do cargo de Suplente de Senador, que se
assume de graça, já que a maioria das pessoas que
vota em um Senador não sabe quem é o seu suplente,
apresentarei uma emenda constitucional acabando
com essa figura. Percebo que essa função, além de ser
inútil, só serve para que eles depois façam besteiras,
como é o caso do Sr. Ney Suassuna e, agora, do Sr.
Pedro Teixeira, envolvido com grilagem de terras no
Distrito Federal.
370
Concluo o meu pronunciamento dizendo à Câmara
dos Deputados e aos meus companheiros de partido
que não se intimidem com a falácia desse Senador
Falastrão de que existem 150 Deputados envolvidos
nesse jogo. Absolutamente, não existe qualquer
Deputado envolvido nisso. Portanto, vamos tentar
obstruir a votação desse projeto e depois votaremos
contra ele, porque é indecente, imoral e irresponsável.
Era o que tinha a dizer.144

Por 291 votos favoráveis, a Câmara dos Deputados aprovou


o requerimento de urgência. Da representação paraibana, Adauto
Pereira, Francisco Evangelista (PPR), Ivandro Cunha Lima (PMDB),
José Luiz Clerot (PMDB), Rivaldo Medeiros (Bloco), Robson Paulino
(PMDB) e Zuca Moreira (PMDB), votaram SIM; Efraim Morais (PFL) e
Evaldo Gonçalves (PFL) e Ivan Burity, se abstiveram; apenas Lúcia
Braga, do PDT, votou contra.145

Na mesma sessão, o presidente anunciou a votação do


Projeto de Lei nº 4851/94, (oriundo do Senado sob o nº 88/94) que,
sofreu modificações e tramitou da mesma forma que na Casa
originária com uma rapidez espantosa, considerando que começou a
ser discutido na Câmara dos Deputados, na sessão de 19 de janeiro
de 1995. Discutido em turno único, o deputado Prisco Viana, do PPR
da Bahia e relator do Projeto na Comissão de Constituição, Justiça e
Redação, fez um relatório do Projeto original do Senado e, em
seguida, do Projeto Substitutivo de sua autoria. Reproduzo o
relatório e o parecer:

144
DIÁRIO DO CONGRESSO NACIONAL, Seção I, edição de 19.01.1995, p. 958.
145
DIÁRIO DO CONGRESSO NACIONAL, Seção I, edição de 19.01.1995, p. 1010.
371
I – Relatório

O Projeto de Lei em apreço (PLS n. 88/94, na origem)


vem a esta Casa revisora sob o propósito de
anistiar candidatos às eleições de 1994, acusados ou
condenados pela prática de ilícitos eleitorais previstos
na legislação em vigor, em especial na Lei n. 4.737, de
15-7-1965, na Lei Complementar n. 64, de 18-5-1990
e, na Lei n. 8.713, de 30-9-1993, relacionados à
impressão de publicações e sua distribuição, nos
limites das cotas estabelecidas em cada uma das
Casas do Congresso Nacional, arquivando-se os
respectivos processos e restabelecendo-se todos os
direitos por eles alcançados.

É que prevê literalmente o enunciado do art. 1º,


acrescentando a cláusula de vigência (artigo 2º) que
dita lei se aplica a quaisquer processos decorrentes
dos fatos e hipóteses descritos no preceito
antecedente.

A longa justificação sobre que se inspirou a iniciativa


retrata aspectos e eventos de domínio público, ligados
a algumas controvertidas decisões judiciais na alçada
eleitoral, que atingiram, diretamente ou por via
reflexa, a representação política de modo geral, com
assento no Congresso Nacional, exemplificados na
pessoa do titular da presidência do Senado Federal,
que teve cassado o registro de sua candidatura, com a
perda consequente do mandato recém-conquistado
nas urnas, e decretada sua inelegibilidade por três
anos.

Sabe-se que o caso do Senador Humberto Lucena


surgiu o fato de haver mandado confeccionar no

372
Centro Gráfico do Senado Federal e feito distribuir
impressos ou material de divulgação, em período
anterior às eleições, valendo-se de cota a que tinha
direito segundo normas internas da referida Casa.

Afastando embora a discussão sobre o acerto ou


desacerto dos julgados, prossegue o arrazoado com a
narrativa do quadro de perplexidade que se formou
no seio da opinião pública e nos meios políticos,
mobilizando membros das duas Casas ao instituto de
reparar o que foi considerado erro judiciário e lesão
aos direitos de consagrado homem público, com a
mais alta investidura do Poder Legislativo e
chancelado novamente pelo eleitorado paraibano.

Ficou evidente aos olhos da classe política que não


poderia quedar-se indiferente ao ocorrido, porquanto
os julgados em questão 'prenunciam o
enquadramento de dezenas de Senadores e
Deputados que se encontram na mesma situação do
Senador paraibano', vários dos quais já respondendo
a processos judiciais e outros que serão enquadrados,
conforme orientação da Procuradoria-Geral da
República.

A peça que arrima a proposição reporta-se, com


ênfase, ao erro de entendimento a que foram levados
os congressistas em geral, diante dos termos da
resposta emenda da Colenda Corte Eleitoral à
Consulta n. 14.404, originário do Distrito Federal e
formulada pelo Senador Mário Lacerda, sobre a
ilicitude da expedição de 'boletins informativos' por
conta do Erário, destinados à divulgação das
atividades parlamentares.

373
A orientação firmada pelo E. TSE, no voto condutor
proferido pelo Relator Ministro Carlos Veloso, veda a
prática costumeira adotada para a comunicação
social de numerosos parlamentares 'durante a
campanha eleitoral' – fazendo supor que, fora do
período em tela, seria possível aos Gabinetes
Parlamentares continuarem promovendo essa forma
de interação com suas bases e comunidades
representadas.

Ora, como na generalidade dos casos essa divulgação


se verificou por ocasião dos festejos de fim de ano e
início de novo ano, bem distante da campanha
eleitoral – cujo interregno se pode situar entre a
realização das convenções partidárias para escolha
dos candidatos (no caso, até 30 de maio) e a data das
eleições (3 de outubro) -, pareceu a todos regular a
manutenção dessa atividade nos limites adrede
traçados.

Daí a ilação extraída pelos congressistas sobre a


emergência de erro judiciário no pronunciamento do
Colendo TSE, para cuja correção se preconiza a
manifestação de independência da instituição
congressual.

A esse propósito, tal como lhe reconhece a Carta


Política, caberia ao Congresso Nacional usar de suas
prerrogativas para decretar, através da lei, a anistia
por presumidos delitos eleitorais aos candidatos que
foram 'por equívoco da Justiça Eleitoral e nas
circunstâncias acima descritas, processados,
condenados ou não, em razão do pleito deste ano em
1994'.

Os fundamentos doutrinários do instituto, coligidos na


374
peça de sustentação da iniciativa, aludem á lição de
Carlos Maximiliano, em seus comentários à Carta de
46, sobre o caráter político da medida, adotada
quando 'circunstâncias ocasionais aconselham o
esquecimento das infrações e a impunidade para
certos crimes, como supremo recursos para acalmar
os ânimos e pacificar uma região'.

Além de apagar o nominado erro judiciário no caso


concreto e arrefecer os ânimos, tanto no seio do
Legislativo quanto entre o eleitorado da Paraíba, que
sufragou o nome do Senador Humberto Lucena, a
providência colimada virá propiciar o respeito à
vontade popular em relação a outros candidatos, em
diversos Estados, nas mesmas condições.

A proposta vem amparada no entendimento


jurisprudencial antigo da Suprema Corte, a teor do
qual a anistia é imune à revisão judicial por sua
natureza eminentemente política. 'Não se discutem os
motivos, nem a justiça ou oportunidade da concessão,
depois de feita esta'.

Finalmente, registram os signatários do Projeto que,


no atual sistema constitucional, a lei de anistia
envolve também a manifestação do Executivo, posto
que sujeita à sanção presidencial, consumada a qual o
País voltará à normalidade da harmonia entre os
Poderes.

II – Voto

Os pressupostos fáticos que deram origem ao


pronunciamento da Justiça Eleitoral e polarizaram as
ideias em torno da alternativa constitucional da
anistia, como meio e modo excepcionais para
375
superação do trauma político que se lhes seguiu são
por demais conhecidos, tornando prescindível
esmiuçar aspectos além daqueles retratados na
justificação do Projeto.

Cumpre-nos retomar os contornos jurídicos e a


natureza essencialmente política do instituto da
anistia, em cotejo com os termos em que foi plasmada
a presente ação legislativa, ao intuito de perquirir a
adequação do instrumento alvitrado para solução do
problema.

Recorremos, a esse escopo, às fontes de


doutrinadores consagrados, desde o esforço
enciclopédico de Carvalho Santos e J. Aguiar Dias, ou
de Pinto Ferreira e nomes outros, que enfrentaram
com maestria o tema, no direito pátrio e nos estudos
de direito comparado.

Tranquiliza-nos a certeza de que os pilares teóricos,


jurídicos, políticos e históricos de anistia se acham
plenamente perquiridos e consolidados, tendo larga e
milenar aplicação nos mais diferentes quadrantes e
contextos; particularmente, seus exemplos pontilham
ao longo da história republicana brasileira,
estendendo ainda raízes profundas ao período
imperial.

É cedido que anistia significa esquecimento da culpa,


apagar toda lembrança legal da ofensa,
consubstanciando medida de índole nitidamente
política, inspirada em razões de Estado e nas
conveniências do Poder Público.

Segundo as observações de P. Ferreira, 'a anistia é


concedida por um evidente fim político e social. O seu
376
fim não é propriamente o de favorecer o indivíduo; é,
antes, de apaziguar a sociedade; só secundariamente
o indivíduo é protegido. O seu destinatário imediato é
a sociedade, o destinatário mediato é a pessoa
humana.

Na realidade, dito instrumento transcende a moldura


clássica de apaziguamento dos espíritos e da tentativa
de criar condições à concórdia no seio da Nação, para
abarcar outras ordens de motivações. Seus
fundamentos extravasam o texto constitucional, indo
permear a seara penal e outros campos do
ordenamento jurídico.

Se no passado esteve ligada comumente aos delitos


de opinião, aos crimes políticos e conexos, hoje se
estende às infrações de variada ordem,
generalizando-se sua aplicação, sob diversas
denominações, às faltas de caráter administrativo,
trabalhista ou penal, sejam estas delitos comuns ou
especiais, até as chamadas anistias fiscais.

Em sede penal, é causa extintiva de punibilidade,


podendo ser declarada antes, durante e depois do
processo e alcança os casos julgados (CPP, art. 43, II,
61 e 742). Distingue-se dos atos de indulgências como
o perdão, o indulto e a graça, não só pela
peculiaridade já mencionada como por depender de
lei para concretizar-se e pelos efeitos jurídicos que lhe
são próprios.

Embora constitua igualmente causa de extinção de


punibilidade, o indulto é o perdão da pena pelo poder
público competente, concedido de forma genérica a
determinados criminosos, ao passo que a graça é
individualizada. Tem em vista a situação do criminoso
377
e não o crime por ele praticado – característica que o
aproxima do conceito de anistia.

De fato, a anistia não configura fator individual, mas


ato de interesse político ou de conveniência do Estado,
de elevado alcance no campo penal por obstar toda e
qualquer ação contra aqueles a quem é concedida. No
plano dos efeitos, portanto, evita a instauração de
processos ou impõe o arquivamento dos que se
acharem em curso contra os beneficiados e ainda
cancela as condenações havidas.

Segundo Nelson Hungria, da anistia decorrem efeitos


extensos porque ela extingue o fato punível em sua
origem. Mercê dessa ficção legal, os crimes são
olvidados como se os fatos incriminados não tivessem
sido praticados.

Em seus comentários a texto constitucional pretérito,


Pontes de Miranda observou que 'a anistia extingue
todas as ações de direito penal, quer toquem ao
Estado, quer aos particulares. Sempre que o efeito
penal é pressuposto negativo de algum fato não-
criminal, de direito público ou de direito civil, como o
exercício de cargos públicos, a eletividade ativa ou
passiva, (…) a anistia, apaga-o também como
pressuposto. Não importa ter, ou não, havido
condenação'.

Em outros termos, a anistia extingue tanto a ação


pública como a ação penal privada, extingue os
processos e anula as condenações ou as
incapacidades provenientes das condenações. Não há
limites ao exercício do poder anistiante, que se afirma
como único juiz da oportunidade e da extensão do
ato, conforme o proclamou acórdão da Suprema
378
Corte.

Essas notas fazem coro à lição de Carlos Maximiliano,


tendo por referencial a Carta de 46: 'Como a anistia é
media essencialmente política, inspirada pelo bem
público, e não pela piedade individual, concede-a o
parlamento nos termos que melhor convenham à
sociedade conturbada.'

Também se amoldam ao ensinamento de Rui, para


quem a anistia não só apaga a sentença irrevogável,
aniquilando, retroativamente, todos os efeitos por ela
produzidos, como vai até à abolição do próprio crime,
punido ou punível; ou, no dizer de Carrara, a anistia
não extingue só a pena: cancela o delito.

Em suma, a anistia repõe as coisas no mesmo estado,


eliminando o caráter criminoso do delito, como se a
infração nunca fosse cometida. Rui Barbosa a define
como 'ato político, pelo qual se faz esquecer o delito
cometido contra a ordem, o atentado contra as leis e
às instituições nacionais.'

O instituto, que remonta à Antiguidade, conserva na


atualidade sua inteira valia. Segundo observa Pinto
Ferreira, e suas origens, a anistia ou o esquecimento
do passado (amnestia) como era chamada entre os
gregos, ou a lex oblivionis dos romanos, era media
tomada pelo poder soberano para levar ao
esquecimento certas infrações criminais e, por
conseguinte, não só extinguia os processos
respectivos como tornava de nenhum efeito penal as
condenações.

No atual direito brasileiro, distingue-se a anistia da

379
graça e do indulto também porque a primeira só é
concedida por lei, de que participam os Poderes
Legislativo e Executivo, ao passo que os dois últimos
derivam de decreto do Presidente da República.

Ao poder concedente cabe delimitar os termos com


que se cumprirá a medida, dada a natureza política e
social da anistia. Diz-se então a anistia plena ou
restrita, quando para todos os efeitos ou, ao revés, se
delimitados estes; geral ou limitada, se cobre todas as
classes de ofensores políticos, ou apenas grupos
específicos; absoluta ou condicional, quando imposta
sem nenhuma condição, ou sujeita a determinadas
condições, previstas no ato de concessão.

Significativamente, sem embargo de a plenitude e a


amplitude melhor se afinarem com a anistia, a
doutrina registra que são muito frequentes as parciais
ou as limitadas, ao lado das condicionadas, no
repertório do direito pátrio.

Após essa incursão nos domínios teóricos do instituto,


há que se render à assertiva de seu cabimento na
hipótese contida no bojo do Projeto.

Objetiva-se, através da medida saneadora, restaurar


o clima de equilíbrio e harmonia entre os Poderes e
seus membros ou agentes políticos, restabelecer a
confiança nos pronunciamentos da Justiça e
resguardar os resultados das eleições e preservar a
autonomia das Casas Legislativas para editar suas
normas interna corporis, destinadas a reger não só as
atividades-fins como os serviços, os recursos e meios
com que contam para cumprir suas altas funções,
atendidos os pressupostos da legalidade e
constitucionalidade.
380
A cassação do mandato do Senador Humberto Lucena
e a ameaça que paira sobre tantos outros
congressistas encerram aspectos graves e riscos sérios
para o regime democrático, ao conturbar o cenário da
República, ao comprometer a harmonia entre os
Poderes e a autonomia das instituições.

Os recursos judiciais cabíveis foram esgotados e se


revelaram inócuos para corrigir a exorbitância do
julgado da Justiça Eleitoral, gerando intranquilidade e
inconformação aos titulares da representação
política, na medida em que raros são os membros do
Congresso Nacional que não se utilizaram dos serviços
gráficos disponíveis no Senado Federal.

O acesso a tais serviços obedeceu à normatividade


própria daquela Casa, expressa em instruções da
autoridade competente, cuja legalidade e
constitucionalidade nunca haviam sido, até então,
postas em dúvida.

A utilização dos serviços sempre esteve franqueada


indistintamente a todos os Senadores e Deputados,
em cotas individuais, o que afasta a tipicidade do
preceito constante do art. 22 da Lei Complementar nº
64, de 1990. Este, com efeito, pressupõe o uso
indevido, o desvio ou abuso de poder de autoridade
'em benefício de candidatos ou de Partido Político'.
Assim não se pode qualificar o serviço criado e
mantido no âmbito da Instituição e disponível a todos
os que a integram, nas mesmas condições, seja qual
for o partido a que pertençam.

A prática alvejada merece, todavia, reparos no plano

381
da isonomia erigida em princípio fundamental da
Constituição, porquanto coloca em desvantagem
terceiros, candidatos ou não à pugna eleitoral, porque
os recursos e meios gráficos utilizados no âmbito do
Congresso Nacional – se decorrem do exercício do
mandato, não expressam necessariamente uma forma
de contraprestação, com o mesmo caráter que têm as
cotas de franquia postal, de passagens aéreas, a
moradia funcional, o gabinete e seu secretariado.

Estas últimas prestações, digamos in natura assumem


caráter essencial para o deslocamento e a
permanência do parlamentar na Capital da República,
para a manutenção dos trabalhos do seu gabinete;
são, pois, indissociáveis do exercício do munus público
que compõe o mandato, as quais, em conjunto,
permitem ao parlamentar desincumbir-se dos
compromissos partidários e programáticos, realizar
seu projeto político, prestando contas aos segmentos
sociais por ele representados.

Relevâncias dessa ordem e magnitude não se fazem


presentes na hipótese da utilização graciosa de
serviços gráficos custeados pelo Erário. Depara-se
aqui a prestação de serviços públicos que podem e
devem ser ressarcidos, como soi ocorrer com aqueles
abertos à população.

Tem, pois, todo cabimento a observação feita pelo


nobre Deputado Haroldo Lima a esse respeito em sua
recente intervenção, na discussão do Projeto.

O fato de a normatividade interna do Senado Federal


consagrar a gratuidade e estabelecer cotas
disponíveis a cada congressista; a circunstância

382
comprovada da longa e iterativa prática, disseminada
entre os parlamentares, de uso gratuito dos serviços
daquela Casa; a constatação de que nem ditos atos
nem tal prática costumeira haviam sido até aqui
apreciados, em sede jurisdicional, quanto à sua
legalidade ou constitucionalidade, explicam os
lamentáveis desdobramentos havidos, que culminam
com a interferência do Poder Judiciário.

Torna-se de todo oportuno rever tais atos, e, nesse


sentido, aguardam-se providências cabíveis e céleres
das autoridades e dirigentes do Senado Federal, a fim
de que, preservada embora a continuidade e a
extensão dos serviços oferecidos pelo parque gráfico
de que dispõe, sejam estes devidamente ressarcidos,
ajustando-se preços compatíveis e adequados não só
para a clientela própria quanto para os usuários sem
vínculos com a Casa.

Este ponto precisa ser enfatizado, porquanto,


perfilhando os ensinamentos jurídicos expostos em
numerosas fontes nacionais ou estrangeiras, mesmo
com a anistia, os efeitos civis de condenação ou dos
delitos que as motivaram remanescem, gerando
responsabilidade quanto à reparação de danos ou
atos lesivos, ou à compensação de benefícios e
vantagens indevidas, onerosas ao Erário.

Chamo, em especial, a atenção, agora, do nobre e


honrado Deputado, Líder Tarcísio Delgado, pelas
observações que S. Exa. fez quanto ao mecanismo de
ressarcimento, que pretendemos propor.

A inconformidade de tantos quantos, colhidos nos


meandros da via interpretativa jurisdicional, se viram
de uma hora para outra acoimados da violação de
383
preceitos das várias leis eleitorais, em razão de fatos
alcançados retroativamente nos julgados da Justiça
Eleitoral, desprovidos embora da consciência de sua
licitude, não pode ser admitida ao ponto de extirpar-
lhes o dever de repor financeiramente os gravames ao
Erário a que deram causa, através da utilização de
serviços facultativos, divisíveis e perfeitamente
caracterizáveis, de custo estimável.

Forçoso reconhecer presentes, no caso, as condições


políticas e sociais e o substrato de interesse público na
pacificação dos agentes políticos do Estado,
pressupostos teóricos que informam o instituto da
anistia e fundamentam sua aplicação aos fatos
noticiados. Entretanto, a anistia que a situação
recomenda deve estar condicionada à justa e prévia
reparação cível, com o ressarcimento dos serviços
utilizados pelos beneficiados.

Acresça-se, ainda, a consideração, presente


principalmente entre os Líderes partidários reunidos
para o exame dos aspectos políticos da proposição em
exame, de que se deve condicionar a efetividade da
anistia ao pagamento dos serviços prestados pela
Gráfica do Senado Federal, o que, na prática levará à
revisão do sistema de cotas já referido.

Parece-nos que tal condição não se choca com a


doutrina aqui trazida, porque, por outro lado, é quase
unânime entre renomados comentaristas da matéria
que a anistia, ao revogar os efeitos penais de delito
cometido, não anula os seus efeitos civis.

Retiramos dos comentários do Professor Aloysio de


Carvalho Filho, que por muitos anos serviu ao País,
também na representação da Bahia no Senado
384
Federal, o excerto seguinte: '...o crime anistiado
desaparece, por si mesmo, e em todas as suas
consequências. Consequências penais, bem entendido.
Porque os efeitos civis da condenação persistem,
impondo ao anistiado, e apesar da anistia, a
obrigação de reparar o dano que o seu crime causou.
Ainda que a lei que condenou tenha silenciado a
respeito (…)'

Ocorre que, consoante o magistério de P. Ferreira, 'a


anistia não retroage civilmente, não liberta de
prejuízos civis ou reparações ao beneficiário que ela
alcança. Nem tampouco impede a reparação do dano,
de acordo, aliás, com a disposição do nosso CPP de
1941 (art. 67, II), bem como do próprio caráter civil da
culpa, a que alude José de Aguiar Dias em sua obra
Da Responsabilidade Civil'.

A propósito do que disse V. Exa. há pouco, nobre


Deputado Tarcísio Delgado, e de críticas que surgiram
a partir do instante em que se deu conhecimento de
que es estudava o mecanismo de ressarcimento,
quero trazer ao conhecimento da Casa que
recentemente, exatamente no dia 27 de outubro de
1994, o colendo Superior Tribunal de Justiça, alta
Corte de Justiça, abaixo apenas do Supremo Tribunal
Federal, julgou denúncia oferecida pela Procuradoria-
Geral da República contra um juiz por crime contra o
patrimônio público.

Referido magistrado, durante os dois anos em que


ocupou a presidência do Tribunal Regional Eleitoral da
4ª Região, em Porto Alegre, viajou 29 vezes, nos finais
de semana, para Curitiba, sua cidade de origem, para
isso recebendo passagens aéreas e diárias. Algumas
vezes, as diárias foram pagas em dobro, pelo Tribunal
385
Regional e pelo Conselho da Magistratura.

No julgamento da denúncia o advogado do réu


sustentou que aquele era excelente juiz, de caráter
exemplar, que conduzia consigo para Curitiba muitos
processos para estudo e, principalmente, que ao
tomar conhecimento das imputações que eram feitas,
cuidou de ressarcir o Tesouro de todas as
importâncias que lhe haviam sido entregues. Que
havia sempre agido de boa-fé, certo de que cumpria
adequadamente todas as regras de procedimento
administrativo. Até mesmo as diárias recebidas em
dobro resultavam em equívoco dos setores
administrativos, os quais realizavam créditos em sua
cota corrente sem lhe dar conhecimento.

O Superior Tribunal de Justiça – chamo a atenção da


Casa – por grande maioria, maioria esmagadora de
seus 33 membros, julgou, em outubro do ano
passado, improcedente a denúncia quando o acusado
ou indiciado haja ressarcido os cofres públicos das
importâncias ou valores em disputa. Em face desse
precedente judicial fornecido pela Alta Corte de
Justiça, podemos estar seguros da correção e
juridicidade da medida que estamos propondo em
favor de parlamentares que, de boa-fé e apoiados nos
regulamentos internos de suas Casas Legislativas,
utilizaram os respectivos serviços gráficos para a
divulgação de suas atividades legislativas.

Sr. Presidente, Sras. e Srs. Deputados, entendemos


que o projeto como veio no Senado é inaceitável,
devemos rejeitá-lo e substituí-lo por um outro que,
coerente com os objetivos iniciais, seja mais ajustado
ao que se pretende alcançar.

386
Assim, alguns aperfeiçoamentos de forma e de mérito
devem, por indispensáveis, ser oferecidos ao texto
oriundo do Senado Federal.

Com efeito, merece reparo a amplitude de ementa em


face do conteúdo da parte dispositiva do Projeto, que
expressamente se restringe aos apontados ilícitos
eleitorais decorrentes da utilização dos serviços
gráficos do Senado Federal.

Tal como redigida, a ementa parece abranger todos os


candidatos às eleições de outubro último, processados
ou condenados com fundamento na legislação
eleitoral em vigor, de forma portanto irrestrita ou
ampla.

O mesmo se não se argui em relação ao próprio


conteúdo do art. 1º, que está composto de duas
partes, podendo ser interpretadas autonomamente,
levando a efeitos desejados:

- a primeira, abrangendo de forma ampla e geral os


ilícitos eleitorais previstos na legislação em vigor;- a
segunda, objetivando 'em especial' os previstos na Lei
n. 4.737/65, LC nº 64/90 e Lei nº 8.713/93, estes
relacionados à impressão de publicações e sua
distribuição, nos limites das cotas estabelecidas em
cada uma das Casas do Congresso Nacional (…).

Por outro lado, não ficou claro que os serviços gráficos


são aqueles prestados através de órgão próprio do
Senado Federal.

Finalmente, dentro da linha de argumentação já


desenvolvida, deve a proposição ser acrescida de
artigo para condicionar o benefício legal ao
387
ressarcimento ao Senado Federal dos custos dos
serviços, a preços justos, excluídas quaisquer cotas de
liberalidade.

Diante dessas impropriedades ou falhas que refogem


ao intento declarado do Projeto, entendemos por bem
propor substitutivo, que acompanha este parecer, o
qual vou encaminhar à Mesa.

Em conclusão, e em nome da Comissão de


Constituição e Justiça e de Redação da Câmara dos
Deputados, manifestamo-nos pela
constitucionalidade, juridicidade e boa técnica
legislativa da proposição e, no mérito, pela sua
aprovação, mas nos termos do substitutivo, que
passamos a ler para conhecimento da Casa neste
instante.

Rogo a atenção da Casa para o texto do substitutivo,


que passarei a ler, sobre o qual todos haverão de
refletir, de meditar e deliberar:

SUBSTITUTIVO AO PROJETO DE LEI N. 4.851, DE 1994


Concede, na forma do art. 48, inciso VIII, da
Constituição Federal, anistia aos candidatos às
eleições de 1994, processados ou condenados com
fundamento na legislação eleitoral em vigor, nos
casos que especifica.

O Congresso Nacional decreta:

'Art. 1º. É concedida anistia especial aos candidatos


gerais de 1994, processados ou condenados ou com
registro cassado e consequente declaração de
inelegibilidade ou cassação do diploma, pela prática
de ilícitos eleitorais previstos na legislação em vigor,
388
que tenham relação com a utilização dos serviços
gráficos do Senado Federal, na conformidade da
regulamentação interna, arquivando-se os respectivos
processos e restabelecendo-se os direitos por eles
alcançados.

Parágrafo único. Nenhuma outra condenação pela


Justiça Eleitoral, ou quaisquer outros atos de
candidatos, considerados infratores da legislação em
vigor, serão abrangidos pela presente lei.

Art. 2º. Somente poderão beneficiar-se do


preceituado no caput do artigo precedente os
membros do Congresso Nacional que efetuarem o
ressarcimento dos serviços individualmente prestados,
na conformidade de tabela de preços para reposição
de custos aprovada pela Mesa do Senado Federal,
excluídas quaisquer cotas de gratuidades ou decontos.
Art. 3º. Esta lei entra em vigor na data de sua
publicação, aplicando-se a quaisquer processos
decorrentes dos fatos e hipóteses previstos no art. 1º.
Art. 4º. Revogam-se as disposições em contrário.

Sala das Reuniões, de de 1994 – Deputado Prisco


Viana, Relator.

Sr. Presidente, estes são o parecer e o substitutivo,


com os quais concluo a tarefa a mim delegada pela
Comissão de Constituição e Justiça e de Redação e
referendada pela douta Mesa, na pessoa de V. Exa.146

O deputado federal Hélio Bicudo, do PT paulista, fez um


voto em separado e, embora concordasse com o Projeto de Lei, do
ponto de vista técnico e jurídico, discordou da sua
146
DIÁRIO DO CONGRESSO NACIONAL, edição de 19.01.1995, p. 1013/1017.
389
constitucionalidade e mérito. Bicudo enxergou afronta a princípios
constitucionais básicos – moralidade e impessoalidade dos atos
políticos e da administração pública - e ao da isonomia. Afirmou ele,
em certa passagem de seu parecer:

...Nesta matéria não se pode conceder o benefício da


ingenuidade ou do desconhecimento ao Presidente do
Congresso Nacional. Na condição de Presidente do
Senado Federal o senador Humberto Lucena a
qualquer tempo, e não só no período de campanha
eleitoral, é o responsável pelo zelo no cumprimento
dos regulamentos internos da Casa. Não poderia,
portanto, sequer permitir que outros parlamentares
utilizassem a Gráfica do Senado para tais fins, quanto
mais para si próprio, haja vista a existência de normas
da própria casa proibindo tais impressos ou
publicações.

Segundo o deputado petista, os autores do Projeto de Lei de


anistia venderam uma falsa imagem de que havia uma razão
superior – a relação entre dois Poderes da República -, além dos
interesses pessoais dos seus beneficiários - o alegado “erro e
injustiça” das decisões proferidas pelo TSE e STF. No parecer, Hélio
Bicudo procurava desconstruir o falso “clamor popular contra o
Poder Judiciário pela condenação dos que se beneficiaram com
recursos públicos”. Não havia “razões de Estado” ou de “ordem
pública superior” a justificar a concessão da anistia pretendida,
asseverou.

O deputado federal discordou da tese da


“desproporcionalidade da pena” aplicada à Lucena argumentando
que a sanção prevista no art. 22 da Lei Complementar n. 64/90 é
proporcional ao bem jurídico protegido: a liberdade do voto e a

390
lisura do pleito, essenciais à democracia, justificou.

Finalmente, sobre o fato da distribuição dos calendários


terem sido distribuídos antes de Humberto lançar-se candidato,
ponderou Bicudo:

Ninguém desconhece que o lançamento de uma


candidatura, mormente a majoritária, interna nas
agremiações partidárias onde a disputa é em regra
acirrada, se inicia muito antes da realização da
convenção partidária. Aliás, não é exagerado afirmar
que o momento mais importante é o anterior, quando
o candidato precisa demonstrar politicamente ao seu
partido a viabilidade eleitoral de sua candidatura, a
qual é construída mediante atos concretos ou ações
de propaganda que fixam ou reforçam a sua imagem
perante o eleitorado. Neste sentido, quem duvida ou
contesta que a distribuição de 130 mil calendários,
nos moldes daqueles distribuídos pelo senador, tem o
condão de reforçar a imagem de seu autor? Afinal, é
de supor que aproximadamente 130 mil lares
paraibanos (atingindo cerca de 500 mil pessoas)
expuseram a fotografia do senador, quem sabe ao
lado da folhinha do Sagrado Coração de Jesus ou da
imagem de nossa Senhora Aparecida, como peça
decorativa em suas respectivas salas de visita. Enfim,
existiu um elo, um liame fortíssimo entre o objetivo do
material confeccionado e distribuído e a candidatura
à reeleição confirmada posteriormente. Aliás a lei das
inelegibilidades, especialmente seu artigo 22, aplicado
ao caso, não se destina a viabilizar as investigações
judiciais apenas em período eleitoral, mas a qualquer
tempo.

Assim, finalisticamente, a não existência de


391
candidatura no momento da ocorrência do fato não
impede a aplicação da pena prevista, desde que a
candidatura venha a se confirmar posteriormente e
desde que se possa estabelecer a vinculação entre o
objetivo do ato que deu causa a investigação e o
objetivo atingido, qual seja a confirmação da
candidatura pela convenção partidária e seu registro
perante a Justiça Eleitoral.

E, assim concluiu o voto em separado:

O auto-perdão concedido pelos integrantes do


Congresso Nacional, além de moralmente atacável
sob o ponto de vista da legislação em causa própria,
como já se disse anteriormente, neste momento, logo
após a absolvição pelo próprio Poder Legislativo de
membros seus evidentemente envolvidos nas
irregularidades reveladas pela 'CPMI do Orçamento' e
pela absolvição de Fernando Collor de Mello e PC
Farias por crime de corrupção pelo Supremo Tribunal
Federal, sinalizará pela sociedade o relaxamento
completo dos princípios que norteiam a convivência
em sociedade. Significará um execrável exemplo a
desestimular a prática da honestidade entre os
cidadãos, de respeito às lei e convenções sociais, além
do que aprofundará o fosso de descrédito da
população em relação às instituições.147

O PT, PDT, PPS, PcdoB, PSB, PRN e PSTU, ainda tentaram


obstruir a votação. Em vão! Foram vencidos pela malícia e pela

147
O voto em separado do deputado federal do PT de São Paulo, Hélio Bicudo, não
foi apreciado na Comissão de Justiça e Redação da Câmara dos Deputados, mas foi
juntado ao Projeto Substituto de autoria do deputado Prisco Viana, ao qual
também foi acompanhado do artigo denominado “Empate dos inocentes”, do
advogado e jurista, Saulo Ramos, publicado no Jornal FOLHA DE SÃO PAULO.
392
estratégia parlamentar. O PL liberou sua bancada. O PMDB, o PFL, o
PTB, o PP e o PPR votaram a favor em todas as votações. O PSDB
não usou o microfone em plenário, mas teve que votar porque o
PMDB ameaçou não aprovar o novo valor do salário-mínimo e
também não dar quorum à votação da Medida Provisória que
aumentava os tributos das empresas. O PMDB teria ainda
condicionado a anistia ao apoio à candidatura do deputado Luís
Eduardo à presidência da Câmara: “ - Se a anistia fosse rejeitada não
teríamos sequer esforço concentrado”, admitiu o líder do PMDB,
deputado Tarcísio Delgado, do PMDB de Minas Gerais.

No final da votação, os deputados aprovaram o Projeto


Substitutivo do relator por duzentos e cinquenta e três votos; cento
e dez parlamentares votaram NÃO e houve oito abstenções. A
bancada paraibana, em peso, votou a favor de Lucena: Adauto
Pereira, Francisco Evangelista, Ivandro Cunha Lima, José Luiz
Clerot, Rivaldo Medeiros, Robson Paulino, Vital do Rêgo e Zuca
Moreira. Efraim Morais e Evaldo Gonçalves se abstiveram; Lúcia
Braga votou NÃO.148

Proclamado o resultado, o clima de euforia tomou conta do


Congresso Nacional: “Viva, ganhamos a batalha!”, gritou o senador
Alexandre Costa, do PFL de Pernambuco, também acusado de uso
da gráfica. O irmão de Humberto Lucena, Luciano, sentando na
tribuna de honra, chorou de emoção. Em casa, com a família,
Humberto Lucena comemorou: “ - A Câmara me fez justiça”, disse
com a voz embargada.149

O Projeto retornaria ao Senado, para decidir se manteria, ou


não, o Substitutivo Prisco Viana.
148
DIÁRIO DO CONGRESSO NACIONAL, Seção I, edição de 19.01.1995, p. 1021.
149
JORNAL DO BRASIL, edição de 1995.
393
Só depois de aprovar o Projeto de Anistia é que a Câmara
dos Deputados apreciou e votou o Projeto de Lei que aumentava o
salário-mínimo de R$ 75,00 para R$ 100,00 e a Medida Provisória
que alterava a legislação do Imposto de Renda.

* * *

394
SESSÃO RELÂMPAGO
No Congresso Nacional, geralmente a Ordem do Dia começa
no início da noite. Mas, em se tratando de matérias polêmicas, a
madrugada tem sido o momento preferido para deputados e
senadores deliberarem. Recentemente, durante a apreciação das
“10 Medidas Anticorrupção, propostas pelo Ministério Público, um
grupo de parlamentares tentou incluir, no referido Projeto de Lei,
uma emenda que anistiava aos que praticaram a conduta de “CAIXA
2” (recursos não-contabilizados), durante a campanha eleitoral de
2014. O “jabuti” jurídico visava beneficiar os parlamentares alvos da
“Operação Lava Jato”. Para evitar desgaste perante a opinião
pública, a votação seria simbólica, o que não permitiria ao povo
saber como cada deputado votaria.

Com um histórico de decisões tomadas pela madrugada, a


apreciação da “Lei Humberto Lucena” não seria diferente! Já
passava da meia-noite do dia 19 de janeiro de 1995, quando o
Senado começou a apreciar o Projeto Substitutivo da Câmara dos
Deputados proposto pelo deputado Prisco Viana. Durante os
debates, senadores circulavam pelo plenário, pedindo votos para a
sua aprovação.

A sessão extraordinária do Senado que aprovou o Projeto


Substitutivo da Câmara dos Deputados foi meteórica, durou apenas
sete minutos. A votação simbólica teve um quorum baixo e não
contou com a presença de Humberto Lucena, que só chegou depois
do encerramento da sessão. Após a vitória, e menos tenso,
Humberto sorria e gesticulava para os parlamentares.

Os congressistas encerraram a madrugada com “chave de


ouro”: aprovaram um Decreto Legislativo que aumentava em 97,5%
395
os seus próprios vencimentos, além de criar o 13º salário e duas
ajudas de custo por ano, de R$ 8.000 cada, equivalentes ao 14º e
15º salários.

No dia seguinte, os jornais registraram o flagrante do


presidente do Senado erguendo o polegar direito erguido em
direção aos seus pares, em sinal positivo. Os editoriais criticaram a
forma como o Projeto de anistia foi aprovado, para “desencanto dos
cidadãos”.150
* * *

Humberto Lucena comemora anistia com outros Senadores. Fonte: Jornal


FOLHA DE SÃO PAULO, edição de janeiro de 1995.

150
Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, edição de 20.01.1995, p. A3.
396
“VAQUINHA” PARA LUCENA
Na política, Humberto Lucena não conseguiu fazer fortuna,
mas tinha muitos amigos! Antes e durante a “sessão relâmpago” do
Senado, seus amigos mais próximos e endinheirados arrecadaram
R$ 15.200,00 (quinze mil e duzentos reais), o suficiente para ele
pagar as despesas pela impressão dos 130 mil calendários, na
gráfica do Senado. Até as 17h30, havia se cotizado em favor de
Lucena o senador eleito Ronaldo Cunha Lima, os deputados
federais – José Luiz Clerot e Ivandro Cunha Lima -, o primo de
Humberto, Cícero Lucena, e os deputados estaduais Domiciano
Cabral e Valter Brito. Entre os não-políticos, José William e José
Humberto Sobreira.151

“- Estava passando no corredor e levei uma facada de mil


reais. Já avisei que o cheque não tem fundos,” brincou Ronaldo
Cunha Lima, que não conseguia esconder a sua alegria: “- O
Congresso reparou um erro da Justiça. Vamos fazer uma grande
festa para receber Humberto em João Pessoa”, prometeu Ronaldo.

O deputado federal José Luis Clerot, e o estadual Domiciano


Cabral, ambos do PMDB, estavam entre os que haviam passado o
chapéu, em favor de Lucena: “ - A contribuição é de R$ 1 mil ou R$ 2
mil. Mas se quiser dar R$ 500, estamos aceitando”, disse Clerot.

Anunciado o resultado da votação, o senador Ney Suassuna,


amigo de Lucena a mais de quarenta anos, queria que Humberto
desfilasse, no fim de semana, em carro aberto pelas principais ruas
das duas maiores cidades do seu Estado - João Pessoa e Campina
Grande: “ - A Parahyba está pronta para comemorar”, disse
Suassuna. Embora não acreditasse no veto presidencial, Humberto
151
JORNAL DO BRASIL, edição de 20.01.1995.
397
Lucena recusou a proposta: “ - Enquanto o presidente Fernando
Henrique Cardoso não sancionar a lei, ela não existe. Vamos esperar
a publicação no Diário Oficial”, afirmou de forma cautelosa. Para
Lucena, a anistia teria sido uma decisão soberana do Congresso
Nacional.152

No gabinete da presidência do Senado, Ney Suassuna abriu


duas garrafas de champanhe Moet & Chandon. Festejava junto com
Humberto e outros parlamentares. Os copos tilintaram, ao comando
de Suassuna:

“ - Um brinde à Justiça que foi feita!”

* * *

Cheque assinado pelo Senador Humberto Lucena, ressarcindo aos cofres


públicos o valor despendido pela confecção dos calendários, para fins de
benefício da Lei de Anistia. (Fonte: Autos da Representação Eleitoral)

152
Jornal O GLOBO, edição de 20.01.1995 e JORNAL DO BRASIL, edição de janeiro
de 1995.
398
A OPINIÃO DOS JURISTAS
Para o jornalista paraibano Nonato Guedes, Humberto foi
vítima de uma injusta campanha da chamada “Grande Imprensa”,
comandada pelo Jornal do Brasil, que nunca o perdoou por ter
derrotado Nelson Carneiro na eleição para a presidência do
Senado.153 Com a aprovação da anistia, pelo Congresso Nacional,
essa campanha foi intensificada e Lucena passou a ser o principal
alvo das críticas dos diversos meios de comunicação.

Segundo comentaristas políticos da época, havia duas alas


no PMDB: os denominados “éticos” e os chamados “fisiologistas”.
Na opinião dos grandes jornais do país, Humberto Lucena fazia
parte dos últimos.

Alimentava a imagem negativa do senador paraibano a


desenvoltura de afamado personagem criado pelo gênio do
humorismo nacional, Chico Anísio: o “deputado Justo Veríssimo”,
que tinha “ojeriza a pobre”, era um dos quadros mais populares do
programa televisivo CHICO CITY, de grande audiência da TV GLOBO,
todas às quintas-feiras. Embora o humorista cearense tenha negado
em entrevistas que o personagem tenha sido inspirado em
Humberto Lucena, é inegável a sua semelhança física com o senador
paraibano.

Voltando ao “Projeto Lucena”, uma vez consumada a


votação no Congresso Nacional, aumentaram os ataques ao seu
principal beneficiário. O Jornal FOLHA DE SÃO PAULO publicou um
perfil de Humberto Lucena, baseado nas análises de Ari Cipola e do
paraibano Adelson Barbosa, este último correspondente do diário
paulista. Eis o teor da matéria:
153
Ob. Cit., p. 10.
399
Senador conhece a máquina

O senador paraibano Humberto Lucena (PMDB), 66,


tem 40 anos de mandato parlamentar. Seu primeiro
emprego foi no governo federal, quando ainda era
estudante de direito em Recife (PE). Lucena chegou a
Brasília na sua fundação. Desde 1950, quando se
candidatou pela primeira vez, perdeu uma única
eleição, em 1970. A devoção aos amigos e políticos a
Lucena pode ser explicada pelo fato de ser ele um
político que conhece, como poucos, a máquina
federal.

É foco da convergência de pedidos que vão desde a


transferência de servidores ao emprenho em
conseguir obras para a Paraíba. Segundo seu irmão
Haroldo, esse perfil teria sido reforçado por Tancredo
Neves, quando eleito indiretamente presidente da
República. “O Tancredo escolheu um político por
região do país para conduzir o preenchimento dos
cargos de segundo e terceiro escalões. O Humberto
ficou com o Nordeste”, conta o irmão.

“As bancadas estaduais enviavam os pedidos para ele


e os jornais diziam que ele eram quem mais cobrava
cargos no país,” diz Haroldo Lucena.

O empenho do senador em resolver os problemas que


chegam a ele acabou trazendo denúncias de
nepotismo em sua carreia. Lucena já chegou a ter 12
parentes empregados no Congresso. Hoje são três
filho e uma sobrinha.

Se o ex-presidente do Senado não é um milionário,


tampouco é 'pobre' como escreveu o advogado Saulo

400
Ramos nesta Folha, ou um 'sem teto', conforme
definiu a si mesmo quando investigado pela CPI do
Orçamento, entre outubro de 93 e janeiro de 94.

Ocupava dois imóveis funcionais em Brasília: a casa


do presidente do Senado, que deve deixar a partir de
hoje, e um apartamento, a que tem direito por ser
senador, emprestado a uma das filhas e para onde
está para se mudar.

Como senador, recebe 15 salários de R$ 8.000,00 por


ano. Segundo sua declaração de renda de 1994,
entregue ao TRE (Tribunal Regional Eleitoral) da
Paraíba e obtida pela Agência Folha, possui um
apartamento de 300 metros quadrados que ocupa
todo o 21º andar do edifício Pégaso, na praia de
Manaíra, um dos bairros mais valorizados de João
Pessoa.

Seu patrimônio total declarado é de R$ 136 mil. O


apartamento de Lucena, nunca habitado, foi
comprado há 13 meses por R$ 131,5 mil, segundo
declarou ao Fisco. No mesmo prédio, o construtor tem
hoje à venda um apartamento idêntico por R$ 220
mil.

A cozinha já está pronta, mas o apartamento ainda


não está mobiliado. Enquanto os móveis eram
confeccionados sob encomenda, a um custo superior a
R$ 15 mil —o valor da dívida do senador com a
Gráfica do Senado—, seus amigos em Brasília faziam
uma "vaquinha" para saldar essa dívida.

Lucena vai pouco à Paraíba. Costuma ter suas contas


no restaurante Adega do Alfredo, seu preferido, pagas

401
por amigos.154

O JORNAL DO BRASIL publicou o seguinte editorial:

Salvo-conduto

O Congresso brasileiro acaba de lançar no mercado


uma criação exclusiva que passará a história marginal
do Brasil com a denominação de anistia preventiva. É
uma inovação de grande alcance político no futuro,
destinada a evitar situações de constrangimento para
eleitos e eleitores. Por trás dessa anistia restrita ao
âmbito parlamentar, por um crime eleitoral, falou
mais forte que o senso moral do espírito da
impunidade que baixa com assiduidade sobre a
Câmara e o Senado. Anistia é exclusiva de crime
político. Desta vez a criatividade excedeu-se: o perdão
não esperou pelo crime.

Dentro do Congresso, o único dos transgressores


gráficos punidos (quando era apenas candidato, sem
direito à imunidade) foi o senador Humberto Lucena,
apanhado com a boca na botija. Para a Justiça
Eleitoral os demais – deputados e senadores que
desrespeitaram a lei – eram apenas suspeitos, e suas
candidaturas não tinham sido impugnadas em tempo
hábil. Depois de eleitos, seria necessária a licença da
Câmara e do Senado para processar senadores e
deputados. Sabe-se de sobra que a tradição fisiológica
concede licença parlamentar para tudo, viajar,
acumular, receber em dobro, mas nunca para um
deputado ou senador ser julgado, mesmo por delitos
que levam os comuns mortais a cadeia.
Lucena, pego em flagrante, foi exibido ao país, em

154
Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, edição de 01.02.1995.
402
plena campanha, como uma exceção da impunidade
que é a armadura do Congresso. Pelo menos a
oportunidade era exemplar. Depois de tentar todos os
artifícios sem qualquer resultado. Lucena passou a
trabalhar o corporativismo que reveste as paredes e
os assentos do Congresso. Já que não era possível
contornar a lei, a solução foi apelar para a anistia.
Tendo em vista que ficaria gritante uma anistia
pessoal, a criatividade parlamentar, sem qualquer
escrúpulo moral, tratou de arranjar sócios para
empreitada. Da noite para o dia multiplicou-se como
milagre econômico o número de transgressores da lei
eleitoral. Houve abertura de voluntariado.

A comissão de impunidade deixou subentendido que


todo o Congresso era suspeito de cometer abuso
gráfico e, portanto, sujeito à punição. Lucena seria
apenas o primeiro da fila. O sentimento de culpa
aflorou nos deputados e senadores e a ideia de anistia
prosperou com um sentido político, mas na verdade a
contribuição jurídica é de inestimável valor. A anistia
prévia, no Brasil evidentemente, tem futuro garantido
dada a abundância de delitos eleitorais.

Não é tudo. O corporativismo tem no Congresso o seu


mais importante clube político. Quando os
parlamentares perceberam a impopularidade que se
acumulava no horizonte, um deles teve a luminosa
ideia de atenuar a afronta mediante o ressarcimento
dos gastos abusivos com o pagamento de uma parte
dos custos pelo anistiado. A fórmula de pagar a
absolvição do crime eleitoral com dinheiro do
criminoso dá a medida ética dos parlamentares. Tudo
o que está à venda pode ser comprado. E vale por
uma admissão de culpa.

403
Nem só de criatividade vivem os eleitos.
Parlamentares competem nas eleições mas são
solidários na hora do aperto. A moralidade pública
não chega perto da Câmara e do Senado sem ser
enxotada como intrusa e indesejável. Assim que ficou
claro o coleguismo, por efeito do sentimento de culpa
coletiva, o instinto rural vibrou a alma pecuária numa
representação cuja maior bancada é a de fazer
fazendeiros. A ideia providencial de 'fazer uma
vaquinha' dispôs de viçoso pasto e farta aguada
parlamentar. Cada um daria um dízimo dos seus
ganhos antigos para ajudar Lucena a reembolsar o
Tesouro pelas despesas com os 130 mil calendários.

A intenção era mais astuta que generosa: dar a


impressão de que o senador é um quebrado, que
abusou da gráfica por não poder pagar a impressão
dos seus calendários com retrato. O eleitor, no
entanto, é de opinião de que não precisava esse
mutirão pecuário. Bastaria que todos os funcionários
com o sobrenome Lucena (sem ser necessariamente
aparentados com ele) dessem uma cota do seu
vencimento para o senador quitar o débito moral.

Está aberto o precedente toda vez que a Justiça


conseguir apanhar um parlamentar em flagrante,
uma anistia entrará em cena. Afinal, a malandragem
nacional, também criativa, criou a figura do entera,
que nada mais é que a receita do espírito corporativo
em baixo, correr o pires entre os do ramo para salvar
o que estiver na pior. O verbo enterrar gerou o
substantivo praticado pelos malandros. Quando faltar
a solidariedade rural, a urbana providenciará uma
entera para suprir a ausência de uma vaquinha.

404
Nenhum eleitor se reconhece nessa representação. 155

No Senado, o líder do PMDB, senador Pedro Simon,


considerado um dos ícones do parlamento brasileiro, fez longo
discurso em defesa da instituição e de Humberto Lucena:

...Sr. Presidente, estou enfrentando o diabo, porque


defendi V. Exa. No Rio Grande do Sul, Senadores e
Deputados dizem-me que as emissoras estão,
permanentemente, denunciando. O Senador
Espiridião Amin disse-me, hoje, que teve de ouvir
desaforos – porque o povo do meu Estado não aceita
que o Pedro Simon esteja defendendo o Senador
Humberto Lucena. E estou defendendo, Sr. Presidente,
por um ato de consciência.

A notícia que está no jornal é de que V. Exa. fez a


propaganda política toda na Gráfica do Senado. É
mentira! Contudo, ninguém consegue vender para o
Rio Grande do Sul outra imagem que não esta: o
Senador Humberto Lucena fez toda a campanha
política na Gráfica do Senado; e aquele Pedro Simon,
que é uma pessoa a quem sempre respeitamos, que
sempre foi um homem de bem, defende isso…

Sr. Presidente, Sras. e Srs. Senadores, digo o contrário:


o costume faz a lei. Se pegarmos a Constituição
escrita da Inglaterra, veremos que a Rainha governa.
É ela quem manda mensagem ao parlamento, quem
lê a mensagem do trono, no início do ano, e diz o que
vai acontecer durante aquele ano. O costume é que
mudou a lei. No costume, ela lê o que o Primeiro-
Ministro manda ler, porque ela não manda em nada.

155
JORNAL DO BRASIL, edição de 23.01.1995, p. 10.
405
Há 30 anos, usa-se a Gráfica do Senado para imprimir
cartão de Natal e muito deles em forma de
calendário. A imprensa diz que se imprimiu toda a
propaganda política na Gráfica do Senado. Tenho
tranquilidade para contestar mas nem por isso tenho
que condenar. Disseram-me que eu estava perdendo a
grande chance de bater nesse negócio e, assim,
ganhar manchete. Eu disse: ‘Manchete assim eu não
quero’.
...
Não tenho medo algum de dizer que moro em
apartamento do Senado – é verdade! – porque, se
assim não fosse, eu não teria como viver em Brasília,
porque eu não tenho dinheiro para pagar aluguel. Eu
viajo de Brasília para Porto Alegre com passagem que
o Senado me dá - é verdade! -, porque, se não me
desse, eu não teria dinheiro para viajar. Talvez, então,
eu tivesse que morar, como a Dra. Zélia Cardoso de
Mello, na Academia de Tênis, com alguém pagando
para mim.

Ora, nós termos que ser claros!

Está lá, hoje, no jornal, que uso o telefone. Eu uso o


telefone! Mas qual jornalista que não usa o telefone
do jornal? Qual é o Secretário de Estado e qual o
Ministro de Estado que não usa o telefone e que não
usa o fax da repartição? De repente, aparece como
um escândalo, que o que estou usando é o salário
indireto. Mas o que é salário indireto¿ Telefone é o
meu meio de trabalho, é o meu meio de comunicação.
O fax é o meu meio de comunicação. A Gráfica do
Senado publica os meus discursos, e os publica porque
não saem nos jornais e alguém tem que ler o que
estou dizendo aqui.

406
Isso tem que ser dito, perdoem-me a sinceridade.

Sr. Presidente, Sras. e Srs. Senadores, por que ocorreu
o problema da Gráfica¿ Porque votamos uma lei sem
nos darmos conta do que tínhamos votado. E se, na
verdade, formos olhar para a lei que votamos, não é
só a gráfica, não, mas o uso do Senado como um todo
é irregular: o uso do telefone é irregular, o uso do fax
é irregular e até aparecermos no horário da Voz do
Brasil é irregular, porque esta é a lei que votamos.

Fui falar com um Ministro do Tribunal Superior e S.


Exa. mostrou-me a lei, dizendo: ‘Mas vocês que
votaram!’ Eu disse: ‘Mas há 30 anos que se faz isso e
nunca ninguém fez nada!’ Há 30 anos se faz isso e
nunca apareceu uma lei como esta, que vocês
votaram’.

Então, são essas questões que temos que analisar.


Temos a imagem do Congresso. Quando leio as
manchetes de hoje, meus amigos, vejo que não
houve, na História do País, um Congresso com essa
atuação. Este Congresso viveu a página histórica de
afastar, por corrupção, um Presidente da República.
Na História do Brasil, na História da América, na
História do mundo, não houve uma questão como
essa, dando amplo direito de defesa ao Presidente,
com a presença do Supremo Tribunal Federal, com a
presença de todo o mundo, com o Presidente no
poder. O Sr. Collor estava no poder, usava a cadeia de
rádio e televisão quantas vezes queria; o povo nas
ruas, democraticamente, pedia o impeachment; e nós
votamos. Este Congresso teve essa missão histórica. E
foi além: este Congresso cortou na própria carne,
criou uma CPI d corrupção do Orçamento, cortou
gente sua, analisou, debateu e aprofundou essa
407
matéria!
...
Sr. Presidente, não estou fazendo uma análise
responsabilizando quem quer que seja, muito menos o
Senador Humberto Lucena ou o Senador Mauro
Benevides. Estou assumindo a responsabilidade: eu e
nós todos, por omissão, deixamos essas coisas
acontecerem…

Os meios de comunicação questionaram as formalidades da


votação da anistia. A alegação era de que não fora aprovado regime
de urgência necessário para a votação do projeto. O artigo 169 do
Regimento Interno do Senado previa que, somente em casos
excepcionais poderiam ser incluídas na Ordem do Dia matérias que
chegassem ao Senado até o dia 30 de novembro e que o mesmo
artigo não dispensava a aprovação do regime de urgência para que o
projeto fosse votado imediatamente após a sua chegada, na Casa
Legislativa.156

Jornalistas – Márcio Moreira Alves, Josias de Souza, Carlos


Heitor Cony, Gilberto Dimenstein, Jânio de Freitas, Clóvis Rossi -,
juristas – Celso Antônio Bandeira de Mello, José Carlos Dias, José
Roberto Batochio, Luiz Flávio Gomes e Saulo Ramos – cientistas
políticos, filósofo (Roberto Romano) e diversos editoriais dos
principais jornais do país - O GLOBO, ESTADO DE SÃO PAULO,
FOLHA DE SÃO PAULO e o JORNAL DO BRASIL -, travaram uma
verdadeira batalha em torno do tema.

Na Parahyba, o drama de Humberto Lucena foi comentado


por Adelson Barbosa, Agnaldo Almeida, Arimatea Souza, Djacy
Andrade, Francisco Pereira da Nóbrega, Geraldo Beltrão, João
156
Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, edição de 27.01.1995. “Votação da anistia de
Lucena foi irregular”.
408
Trindade, Josué Silvestre, Marcondes Gadelha, Mário de Araújo
Filho, Nelson Coelho e Rômulo de Araújo Lima. Ex-senador da
República e presidente do Instituto Tancredo Neves de Estudos
Políticos, Marcondes Gadelha comentou a anistia, destacando a
desproporcionalidade da sanção aplicada a Humberto. Disse ele:

Além da anistia

O que surpreende nesta história toda, envolvendo o


senador Humberto Lucena, além do surrealismo do
enredo, e o farisaismo de alguns, que, em círculos
restritos, reconhecem a injustiça de que está sendo
vítima o representante da Paraíba, mas para efeito
externo se posicionam contra a anistia concedida pelo
Senado. Todos sabem que há uma desproporção
brutal entre o suposto delito e a pena aplicada.
Desproporção que faria o Marquês de Beccaria revirar
na tumba ou reaparecer em Antares, clamando aos
céus. É como se alguém pronunciasse um palavrão e
recebesse a pena de morte por sanção; ou, acordasse
transformado numa barata, como Gregor Samsa.

Todos sabem que, ao imprimir os seus calendários, o


senador agiu em absoluta boa-fé, que não era sequer
candidato e que adotou uma prática normal e
corriqueira, de resto amparada em Resolução do
Senado e expressamente permitida pelo TSE,
conforme resposta a consulta formal do senador
Márcio Lacerda. Que usar a Gráfica é apenas uma das
prerrogativas dos senadores e que estes, assim,
deviam ser punidos por usar os telefones, ou as
passagens aéreas ou por se valerem do pessoal ou
receberem os seus próprios salários, pois tudo isso é
pago pelos cofres públicos.

409
Todos estão carecas de saber, enfim, que estes
míseros calendários não respondem pela brilhante
votação obtida nas urnas pelo senado e nenhuma
influência pode ter tido sobre o andamento geral do
pleito. Nada obstante, alguns lavam as mãos ou
voltamos rosto ante a contrafação iminente da
vontade do povo e a crucificação de um homem de
bem contra aquele pano de fundo de disparates
iniquidades. Argumenta-se que a anistia poderia
representar um confronto com o Judiciário. Ora,
vamos procurar sem bem objetivos. O ponto forte da
anistia está exatamente em contornar ou esvaziar o
conflito entre os Poderes, poupando ao Supremo o
dissabor de ter que examinar dezenas de casos
semelhantes e desencadear uma sucessão
interminável de cassações, a golpes de calendário,
numa situação no mínimo patética, para não dizer
ridícula ou trágica, como um pastiche terceiro-
mundista, da ética e da moral.

A anistia dá expressão legal convicções e sentimentos,


que estão no mundo da consciência, sem revolver
feridas. É responsabilidade do Poder Legislativo, com
o concurso do executivo; o Supremo não é parte, não
opina e não é chamado à colocação. Tecnicamente
também, a anistia é o instrumento perfeito, nestas
horas, pois é de sua natureza a retroatividade, só se
pode anistiar o fato pretérito; não se pode anistiar
para a frente. A anistia simplesmente apaga os fatos;
elide a sua existência, pouco importando eles tenha
incidido, ou não, assim com a anistia recente,
sindicais. Dir-se-ia, porém, que casuísmo. Mas, santo
Deus, toda casuística. Não existe anistia inespecífica.
Não se pode anistiar, toda a população de um país,
ou, milhões de brasileiros, de uma só se poder aplicar
anistia aos quad ou a quem interessar possa. A um
410
grupo de pessoas, por definição, é casuísmo, vai
sacrificar o conteúdo pela forma.

Por último um lembrete, ao Legislativo, a iniciativa de


lei de anistia, é sábia, porque a concessão, sempre a
vontade da sociedade, ato político por excelência. Se
meta a besta de perguntar na Paraíba o que o povo
pensa desse assunto. Só anistia não casa com os
fatos, aspecto semântico. Porque anistia conotação de
graça, clemência, E não é disto que o senador Talvez
os seus algozes precisem. Para Lucena, só se pede
Justiça.

O jornalista e professor de Direito, João Trindade, afirmou


que a anistia concedida à Lucena representava “inequívoco
casuísmo, eivado de perfeita contradição”, haja vista que, na prática,
o Congresso Nacional, com o gesto, estava vetando os efeitos de
uma lei que ele mesmo criara. Mais do que um equívoco, Trindade
nominou a anistia especial concedida aos parlamentares que
fizeram uso da gráfica do Senado como uma “perversão” do
processo legislativo brasileiro.157

No Jornal O ESTADO DE SÃO PAULO, o juiz de Direito Luiz


Flávio Gomes, considerava a “lei Lucena” inconstitucional, produto
de um “código ético próprio, forjado à margem da legalidade geral
com o fim de assegurar a impunidade”. Gomes, que também era
mestre em Direito Penal pela USP, via na Lei de anistia um artifício
destinado a tornar inoperante a decisão do TSE que havia retirado
de Humberto Lucena a possibilidade de exercer mais um mandato
político. Lembrou o professor que, por tradição e índole, o instituto
157
TRINDADE, João. 'CASO HUMBERTO LUCENA – PERVERSÃO DO PROCESSO
LEGISLATIVO?' Trecho de monografia intitulada O PROCESSO LEGISLATIVO NA
CONSTITUIÇÃO, apresentada como trabalho de conclusão de curso de Pós-
Graduação da Escola Superior da Magistratura. João Pessoa: 1995.
411
sempre foi reservado a crimes políticos e conexos e destinada a
colocar “silêncio perpétuo” sobre alguns “fatos”, não sobre
“pessoas”.158

Um dos grandes expoentes do Direito Administrativo, no


Brasil, o professor Celso Antônio Bandeira de Mello considerou o
ato do Congresso Nacional um abuso do Poder Legislativo:

ANISTIA A LUCENA
Desvio de Poder Legislativo
CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO

Ao aprovar anistia de deputados e senadores que se


utilizaram de verbas públicas para sua campanha
eleitoral ou interesse puramente pessoal, o Congresso
Nacional praticou um ato inválido, nulo.

Sabem as pessoas formadas em direito que existe


uma modalidade de ilícito muito conhecida
denominada 'desvio de poder'. Ela consiste na
utilização de um 'poder' por alguma autoridade
pública, para atingir uma finalidade jurídica diferente
daquela em vista da qual foi concebida tal
competência.

Em suma: alguém possui atribuições previstas para


dar bom atendimento a um dado interesse prestigiado
pelo direito; sem embargo, vale-se delas a fim de
atingir um outro resultado, distinto, isto é, diverso
daquele que correspondia à competência utilizada.
Nem mesmo importa se o resultado baseado é lícito
ou justo, como bem acentuou Seabra Fagundes. Basta
que não seja o alcançável por aquela competência.

158
Jornal O ESTADO DE SÃO PAULO, edição de 19.01.1995, p. 2.
412
O vício de desvio de poder é causa de nulidade do ato
praticado, sendo considerado um dos mais graves em
que uma autoridade pode incorrer. Através dele, sob o
capuz da legalidade, embaçado nela, pratica-se uma
traição à lei ou à Constituição, conforme o caso.

Dai a observação de Caio Tácito: 'A ilegalidade mais


grave é a que se oculta sob aparência da legitimidade.
A violação maliciosa encobre os abusos de direito com
a capa de virtual pureza'. É que, em tais casos, o ato
aparentemente atende a legitimidade, pois quem a
pratica está a valer-se de poderes que 'abstratamente'
possui. Só não os tem para fazer o uso que deles fez.

Não é, pois, uma hipótese em que o sujeito


ostensivamente descumpre uma lei, viola uma
disposição normativa e, dessarte, se expõe, de peito
aberto, às consequências do que fez. Não. Pelo
contrário.

Trata-se de um caso em que o agente procede se


escondendo atrás da lei, age 'mascarado' por ela.
Quando, embora consciente do vício, atua
desvirtuando a finalidade da norma de direito,
propõe-se a iludir os cidadãos. Usa, para fins
indevidos, poderes que pode ostentar, mas que lhe
foram outorgados, unicamente para que cuidasse dos
assuntos da coletividade e não de interesses menores.
Em situações dessa ordem, o ato praticado e como o
dissemos, em obra teórica, um sepulcro caiado, pois
só se lhe reconhece o verdadeiro caráter ao
desvendar-lhe a intimidade.

Tanto pode existir desvio de poder em atos


administrativos – e o primeiro caso de fulminação de
um destes ocorreu em 1864, em acórdão do Conselho
413
de Estado francês, no aresto Lesbast – quanto em
relação a atos legislativos e jurisdicionais.

É que, em rigor jurídico, os exercentes de cargos


públicos, políticos ou não, mais do que detentores de
poderes, são meros cumpridores de deveres: os de
bem conduzir os assuntos públicos.

Na verdade, estão investidos em 'deveres-poderes',


pois os poderes que lhes são outorgados têm natureza
simplesmente instrumental, são apenas meios
indispensáveis para poderem bem cumprir as
obrigações que lhe são afetas, visto que, nos termos
da Constituição: 'Todo o poder emana do povo'.

Segue-se que os poderes atribuídos a autoridades


públicas lhes são confiados unicamente para
atenderem as finalidades em vista das quais os
receberam do povo. Logo, se o Legislativo ou o
Judiciário usam de tais poderes para fins diversos
daqueles que constitucionalmente lhe servem de
justificativa, burlando a Constituição ou a lei, estão
incorrendo em 'desvio de poder'.

O 'poder' de anistiar que assiste ao Congresso no art.


48, VIII, da Constituição obviamente não foi previsto
na Lei Magna para que congressistas se livrem de
sanções judiciais. Isto é, a anistia não foi suposta para
ser utilizada em proveito próprio e com a finalidade
de elidir sanções judiciais que atingiram congressistas
por terem violado a ordem jurídica.

Note-se, de resto, que o uso de recursos públicos para


fins pessoais, além de ser, como era no caso, ilícito
sancionável pela Justiça Eleitoral, configura também
hipótese prevista na lei n. 8.429, de 2/06/92, como
414
ato de 'improbidade administrativa que importa
enriquecimento ilícito' (art. 9º, inciso IV e XIII).

Para ato desta natureza as sanções previstas pela


citada lei são da mais extrema severidade, a saber:
'Perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao
patrimônio, ressarcimento integral do dano, quando
houver, perda da função pública, suspensão dos
direitos políticos de oito até dez anos, pagamento de
multa civil de até três vezes o valor do acréscimo
patrimonial e proibição de contratar com o poder
público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou
creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por
intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio
majoritário, pelo prazo de dez anos' art. 12, I.

Finalmente, diga-se que a hipótese de desvio de poder


ato legislativo não está aqui sendo apresentada como
uma inovação concebida 'ad hoc', apenas diante do
impacto da repreensível medida tomada pelo
Congresso.

Em obra teórica 'Discricionariedade Administrativa e


Controle Jurisdicional', no capítulo sobre desvio de
poder, abrimos um título especificamente para desvio
de poder em atos legislativos e jurisdicionais.

Quanto aos primeiros, exemplificamos com hipótese


de lei que extinguisse cargos públicos com a finalidade
de burlar decisão judicial que neles reintegrasse
anteriores ocupantes. Uma vez que existe no Brasil o
controle jurisdicional da constitucionalidade das leis –
por via direta, ação direta de inconstitucionalidade ou
no curso de alguma lide -, seria cabível fulmina
judicialmente o efeito danoso de leis imersas em
desvio de poder.
415
De resto, Caio Tácito, em artigo recente sobre o desvio
de poder em atos administrativos, legislativos e
jurisdicionais, publicado na 'Revista de Direito
Administrativo', também abordou o tema e com a
proficiência habitual.

Sem embargo, certamente não será necessária


providência judicial alguma para anular a anistia em
apreço. A matéria irá à sanção do Presidente da
República e, uma vez que é dever do chefe do Poder
Executivo vetar leis inconstitucionais, art.66,
parágrafo 1º, este certamente o fará, demonstrando
que novos costumes políticos estão por se impor.
Afinal, para isso foi eleito.

CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO


Advogado e professor159

Quatro dias depois, no mesmo jornal, o professor Celso


Antônio Bandeira de Mello era refutado pelo doutor Saulo Ramos.
Em artigo, cujo título era bastante sugestivo, o ex-ministro da Justiça
afirmou que a alegada inconstitucionalidade da Lei estava embasada
mais em motivações político-ideológicas e menos em razões
técnico-jurídicas. Ramos defendeu a constitucionalidade da “Lei
Humberto Lucena” e também a Parahyba:

A Paraíba também é Brasil


SAULO RAMOS

Nossa querida, livre (graças a Deus) e espetaculosa


imprensa está fazendo com o senador Humberto
Lucena a mesmíssima coisa que, em 1992, fez com
Alceni Guerra. Lembram-se?

159
Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, edição de 20.01.1995, p. 3.
416
No primeiro semestre daquele ano, todos os dias as
manchetes acusavam escândalos e mais escândalos
de responsabilidade do então ministro da Saúde. E o
mais doloroso veio com o ridículo das mochilas,
bicicletas, mata-mosquito. A culpa do ministro
transitou em julgado e ele foi jogado na vala comum
dos corruptos, sob a pá de cal do famoso
apresentador de televisão 'É uma vergonha'.

No final, o ex-ministro era inocente. Nenhuma linha


sobre o desfecho. Apenas uma pequena notícia na
revista 'Imprensa' a respeito de tímidas autocríticas
de jornalistas sensibilizados com o erro.

Agora é a vez de Humberto Lucena e do Congresso


Nacional, que o anistiou. Falar mal de parlamentares
é moda e facílimo, mesmo porque não há quem
conteste, a não ser os próprios. O povão gosta e
aplaude quem critica, mas vota nos criticados e não
nos críticos. Depois de cassado o registro de sua
candidatura, Lucena foi eleito com cerca de meio
milhão de votos, pelos paraibanos.

Tanto notícias, como editorais, de respeitáveis


periódicos, afirmam sempre que Lucena foi
condenado pelo Tribunal Superior Eleitoral e que a
condenação foi confirmada pelo Supremo Tribunal
Federal. É a meia-verdade.

Realmente, o senador paraibano foi condenado pelo


TSE, mas o STF confirmou coisa alguma, porque não
conheceu do recurso extraordinário, uma vez que a
Constituição diz serem irrecorríveis as decisões
daquele tribunal eleitoral (art. 121, parágrafo 3º).
Mas alguns ministros do STF, entre os quais os que
votaram contra o recurso do senador, lamentando
417
não poder corrigir a decisão condenatória diante da
vedação constitucional, disseram com todas as letras
ter havido, no julgamento de Lucena, um erro
judiciário, uma decisão injurídica, que não teriam
proferido fossem eles membros do tribunal eleitoral.

Essas observações fundamentaram a ideia da anistia,


posto que o Congresso pode através da competência
constitucional do inciso VIII, do art. 48, anular os
efeitos até de julgamentos judiciais corretos, quanto
mais daqueles que ficaram na penumbra sob a dúvida
do erro, do expediente meio maroto de fazer-se de
'bode expiatório' um figurão, porque presidente do
Congresso Nacional, diante do fato praticado por
tantos e há tanto tempo.

Claro está que não concordo (mas quem sou eu?) com
as regalias dos parlamentares em usar gráficas das
casas legislativas para publicidade pessoal. No caso
do presidente do Congresso, a transgressão seria a
prevista no parágrafo 1º, do art. 37, da Constituição e
jamais ilícito eleitoral, tipificado apenas para as
épocas de campanhas em benefício dos que sejam
candidatos, registrados de acordo com a lei.

Lucena, como fazia todos os anos, mandou imprimir


calendários, com mensagem de boas festas, em
dezembro de 1994, ano não eleitoral, quando não era
candidato a nada. Distribuí-os para o Brasil todo e
não só para a Paraíba.

Somente em março do ano seguinte teve sua


candidatura homologada pela convenção partidária e
registrada logo depois. Ai alguém encontrou o
calendário pendurado na parede da casa de um
eleitor e dedou abuso de autoridade. O Tribunal local,
418
que conhece bem os fatos, o absolveu. Mas o
Ministério Público em recurso muito bem escrito
conseguiu a reforma da decisão. Quando quer, a
Procuradoria da República, sabe fazer as coisas.

Assim o velho Lucena, político há mais de 40 anos,


probo, honesto, pobre, teve seu registro cassado
porque, como candidato, seria beneficiado, em tese,
pelos calendários impressos no ano anterior. É fato
parecido com aquela história que já contei: o solteiro
condenado por adultério porque veio a casar-se
depois ter caído em tentação com outra namorada,
mas quando era solteiro.

Claro está que em matéria de direito pode haver


divergências. Um ilustre colega meu, advogado
constitucionalista, afirmou que a lei de anistia
configura desvio de poder do Congresso Nacional
porque beneficiaria aos seus próprios membros.
Paciência.

Não se pode esquecer que este mesmo Congresso


anistiou os líderes sindicais condenados por greves e
outros atos, considerados delituosos, praticados entre
1988 e 1993. E mais: a lei decretou o direito de serem
reintegrados aos empregos perdidos. Ninguém disse
ter havido desrespeito às decisões judiciais que o
condenaram. Leia-se a lei nº 8.632, de 4 de março de
1993.

Aquela história de dizer-se inconstitucional a lei de


anistia em razão do beneficiário é, no mínimo,
novidade curiosa, mas apaixonada em razão de
posições políticas, não científicas.
Inconstitucionalidade se verifica quando a lei fere a
Constituição. Se o Congresso pode anistiar, pode,
419
portanto, anistiar. Não importa quem, ou teríamos
que admitir que a Constituição discrimina, pecado
bem mais grave.

O Datafolha divulgou pesquisa informando que 62%


dos paulistas reprovam a lei de anistia. A pesquisa
deveria ter sido feita, também, na Paraíba. Lucena foi
eleito pelos paraibanos e depois da cassação do
registro de sua candidatura, tendo ganho mais votos,
após a decisão, do quanto indicavam as pesquisas.

Os paulistas também acharam que Alceni Guerra era


culpado. Mas tudo isto no contexto do contraditório
jurídico, e insuficiente para alterar o direito
constitucional. Se o Congresso tem poderes,
instituídos pela Constituição, e resolveu usá-los, o
perdão legislativo é legítimo. Não podemos analisar
tais fatos sob paixões políticas, a menos que os
juristas parem de estudar a ciência constitucional e
passem a ouvir boleros mexicanos sob o risco do
efeito tequila ou marrachi.

Fernando Henrique é presidente de todos os


brasileiros e, portanto, também dos paraibanos. Se a
Paraíba elegeu Lucena para representá-lo como
Estado federado, por que nós, de São Paulo, temos de
dizer que o eleito deveria ter sido o Cacareco? Se o
povo elegeu e o Congresso anulou os efeitos da
condenação, a lei é constitucional. Veta não,
presidente. A Paraíba também é Brasil.

JOSÉ SAULO PEREIRA RAMOS 62 é advogado em São


Paulo.
Foi consultor-geral da República e ministro da justiça

420
(Governo Sarney).160

O doutor Saulo Ramos foi contestado pelo advogado José


Carlos Dias:

Contestação a Saulo e Lucena

Sob o título 'A Paraíba também é Brasil', o brilhante


Saulo Ramos arrazoa com arte, sofisma e talento de
sobra, em favor de seu cliente senador Humberto
Lucena, fazendo-o perante a corte
Tendências/Debates (24/01/95).

Como a sagacidade é um dos seus fortes, temo que


talvez o Saulo haja convencido muitos de que a anistia
aprovada em favor de Lucena e vários parlamentares,
fregueses da gráfica do Senado para uso eleitoral, e
ato de justiça feita pelo Poder Legislativo, para sanar
ilegalidade perpetrada pelo Judiciário contra aquele
que seria o probo senador paraibano e outros
representantes. E começa por desancar a imprensa,
lembrando que hoje se faz com Lucena o que se fez
com Alceni Guerra em 1992, acusado de escândalos e
depois beatificado com a presunção de inocência, que
a todos assiste, pois nenhuma culpa lhe foi atribuída
pelo Ministério Público, muito menos reconhecido
pelo Judiciário.

Que não se acuse a imprensa pela notícia, que não se


julgue o exegeta do fato. o direito a informação sobre
o fato, também do que se pensa sobre o fato. Se é
direito nosso ouvir o Boris falar 'é uma vergonha' a
concessão de anistia ao senador Lucena, é direito
nosso do convencimento desenvolvida pelo advogado
160
Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, edição de 24.01.1995, p. 1-3.
421
Saulo Ramos é capaz de fazer.

Não vou entrar na discussão sobre a


inconstitucionalidade da decisão do Congresso, tão
bem sustentada neste espaço por juristas da estirpe
de um Celso Antônio Bandeira de Mello, como
também pelo presidente da OAB, o advogado José
Roberto Batochio. Quero o desafio de seguir a linha de
raciocínio de Saulo.

Segundo o advogado, não constitui transgressão à lei


eleitoral a publicação de calendário e sua distribuição
por correio, como fez Lucena. E assim tenta justificar a
tese: "Lucena, como fazia todos os anos, mandou
imprimir calendários, com mensagens de boas festas,
em dezembro de 1993, ano não-eleitoral, quando não
era candidato a nada. Distribuiu-os para o Brasil todo
e não só para a Paraíba. Somente em março seguinte
teve sua candidatura homologada pela convenção
partidária e registrada logo depois".
Se é legal a utilização de gráfica oficial, pelos nossos
representantes, claro está que há de estar vinculada
ao exercício da representação popular, para que
possamos acompanhar o trabalho legislativo,
recebendo, por via postal, o material produzido pelos
senadores e deputados, no exercício do mandato:
pronunciamentos, projetos de lei, pareceres em
comissões. O interesse público é que fundamenta tal
prática.

É absurdo imaginar-se que a gráfica do Senado possa


ser utilizada para publicação de calendários e de
"santinhos" de propaganda eleitoral. Se os
calendários de Lucena foram distribuídos em
dezembro de 1993, é indisfarçável que se destinavam
a uso em 1994, quando Lucena seria candidato a
422
reeleição, vindo a ser oficialmente reconhecido como
candidato três meses depois.
Se foram panfletados para o Brasil todo e não só para
a Paraíba, como sustenta o brilhante advogado, no
intuito de demonstrar que o objetivo não foi
eleitoreiro, tal circunstância, ao contrário de
descaracterizar o abuso, agrava-o ainda mais, pois
que aumentou desnecessariamente os gastos, quando
o objetivo era o eleitorado restrito da Paraíba. Se o
calendário de 1994 não é obra política elaborada pelo
senador da República em benefício do povo, para que
sua panfletagem pelo futuro candidato? Qual o
interesse público de serem impressos e difundidos
calendários? Se os calendários foram publicados no
ano anterior, a verdade é que se destinavam a
granjear a simpatia dos eleitores para uma
candidatura posta em praça pública três meses
depois. Ficou descarado o propósito.

Diz, no entanto, Saulo Ramos que "o velho Lucena" é


"político há 40 anos, probo, honesto, pobre". Vá lá
que assim seja. No entanto, não é honesto, não é ético
fazer campanha com o chapéu alheio, com o chapéu
do contribuinte, distribuindo, a mãos cheias, as
folhinhas do ano eleitoral de 94. Não importa que
tenha sido canonizado pelo povo de seu Estado, com
os votos recebidos e que lhe deram a reeleição. Ele
não é senador da Paraíba, ele representa aquele
Estado como senador da República.
Está chegada a hora de pôr um basta a tais
expedientes imorais de se fazer política.
Possivelmente, muito possivelmente, Humberto
Lucena seria eleito pelos paraibanos sem que
precisasse usar do recurso espúrio de se valer do
dinheiro público para se eleger. Se não pôs o dinheiro
no bolso, o pôs nas urnas, em proveito próprio, o que
423
vem a dar no mesmo. O que sempre foi um costume
político abjeto hoje é reconhecido pela opinião pública
nacional como imoral e aético. E é lamentável que o
senador que assim se reelegeu tenha sido perdoado
por seus pares, através do instituto da anistia que
deve ser usado mitigadamente, em momentos graves
em que os inimigos merecem a clemência em nome
de um bem maior, ou seja, a convivência política.

O grande penalista Nelson Hungria, analisando a


anistia como causa extintiva da punibilidade,
lembrava que se trata de "medida política de natureza
excepcional", salientando seu caráter de "concórdia e
conciliação, muitas vezes a única medida para
desanuviar o ambiente social e político,
restabelecendo a paz nos espíritos, conturbados por
profundas desinteligências de natureza política". E é
ainda Hungria que salienta o caráter mais de
esquecimento do que de perdão de que se reveste. E é
isso mesmo, nasce de um momento histórico em que a
pátria exige, em seu prol, que se esqueçam os atos
vistos como agressões à ordem estabelecida, os
desvios puníveis.

"Veta não, presidente". É assim que Saulo perora no


seu discurso defensivo, tão efusivo na exortação a
Fernando Henrique para que deixe "passar batido" o
que decidiu o Congresso, em momento tão
mesquinho.

Conhecemos as dificuldades de nosso presidente,


dividido entre o compromisso com a ética que o tem
verticalizado em sua brilhante e ascensional carreira
de homem público e a necessidade premente de
propor e consumar as grandes reformas necessárias
para tornar adulto nosso país, hoje famélico.
424
Compreendemos que se encontre, talvez, na situação
de quem vive o terrível dilema da extorsão: ou paga o
resgate ou morre a pessoa que ama. E o pior da
história: a pessoa amada é o Brasil.

Diz, no entanto, Saulo Ramos que 'o velho Lucena' é


'político há 40 anos, probo, honesto, pobre'. Vá la que
assim seja. No entanto, não é honesto, não é ético
fazer campanha com o chapéu alheio, com o chapéu
do contribuinte, distribuindo, a mãos cheias, as
folhinhas do ano eleitoral de 94. Não importa que
tenha sido canonizado pelo povo de seu Estado, com
os votos recebidos e que lhe deram a reeleição. Ele
não é senador da Paraíba, ele representa aquele
Estado como senador da República.

Está chegada a hora de pôr um basta a tais


expedientes imorais de se fazer política.
Possivelmente, muito possivelmente, Humberto
Lucena seria eleito pelos paraibanos, sem que
precisasse usar do recurso espúrio de se valer do
dinheiro público para se eleger. Se não pôs o dinheiro
no bolso, o pôs nas urnas, em proveito próprio, o que
vem a dar no mesmo. O que sempre foi um costume
abjeto hoje é reconhecido pela opinião pública
nacional como imoral e aético. E é lamentável que o
senador que assim se reelegeu tenha sido perdoado
por seus pares, através do instituto da anistia que
deve ser usada mitigadamente em momentos graves
em que os merecem clemência em nome de um bem
maior, ou seja, a convivência política.

O grande penalista Nelson Hungria, analisando a


anistia como causa extintiva de punibilidade,
lembrava que se trata de medida política de natureza
excepcional, salientando seu caráter.
425
O editorial do JORNAL DO BRASIL criticou a posição de Saulo
Ramos:

Folhinhas do Crime

É inaceitável que os candidatos à presidência do


Senado apadrinhem a anistia do senador Humberto
Lucena como se fosse vítima equivocada da
moralidade pública. Não está em causa o passado do
representante da Paraíba, mas a impressão de 130 mil
calendários pela gráfica do Senado, por autorização
pessoal dele, na condição de presidente da casa, e
com finalidade indisfarçavelmente eleitoral.

A primeira linha de defesa em que se entrincheirou


Lucena foi o argumento de que a encomenda dos
calendários foi feita quando ainda não era
formalmente candidato. Ora, todos os deputados e
senadores são candidatos naturais à reeleição, e
Lucena não era exceção. Tinha um olho o governo do
estado e o outro no Senado. O erro fatal foi a
autorização de próprio punho para a impressão dos
calendários.

Veio em seguida uma pseudocrise institucional, como


se a decisão do STF, recusando-se a examinar a
matéria que não é constitucional, permitisse a
interpretação. O episódio Lucena não é exatamente
igual ao dos 17 outros parlamentares que infringiram
normas eleitorais na gráfica do Senado. No caso dos
18 do Congresso, a intenção oculta era fazer crescer o
bolo de anistia. A salvação do presidente do Senado
passou a depender do maior número, para peso de
crise política. O argumento apocalíptico justificaria

426
uma anistia in extremis. Na verdade, o estado mais
grave, terminal mesmo, é só o de Lucena, que
autorizou o abuso em causa própria.

O último alento da velha representação está à vista.


Esvaziada do alarmismo que acenou com um choque
de Poderes, onde tudo é uma questão moral, a
Câmara deve dar a palavra final esta semana. Muito
mais importante que salvar o corporativismo,
empenhado em proteger um senador que se perdeu
pelas próprias mãos, seria resguardar a
respeitabilidade da representação que entra dia
primeiro. Basta a Câmara abster-se para dar sua
contribuição à causa da moralidade pública, que tanto
sensibiliza os cidadãos desde o impeachment
presidencial.

Qualquer raciocínio leva de volta ao começo: o TRE da


Paraíba entendeu que o candidato à reeleição
Humberto Lucena exorbitou por ter autorizado a
impressão dos 130 mil calendários. Só lhe restava
cassar a candidatura, tendo em vista a intenção
eleitoral. O calendário era exatamente para o ano da
eleição. A defesa de Lucena resolveu apelar para ao
Supremo, com a intenção de manter a questão sub
judice e, elegendo-se, criar o fato consumado. Como
poderia ser cassado, sem licença do Congresso, o
mandato de um senador eleito? Aconteceu que, não
se tratando de matéria constitucional, o STF absteve-
se.

Nem tudo que vale na Paraíba vale igualmente para o


Brasil. A ideia da impunidade teve dupla presença na
eleição para senador pela Paraíba: o abuso de poder
de Lucena e a absolvição do governador Cunha Lima,
que atirou publicamente sobre um ex-governador,
427
tendo tudo ficado por isso porque a Assembleia
Legislativa recusou a licença para que fosse
processado. O uso indevido da imunidade
parlamentar está clamando por uma revisão que a
limite às opiniões e votos no exercício do mandato, e
não como o manto protetor da violência física ou
moral. O caso Lucena pode ser o começo do fim da
impunidade como eufemismo da imunidade.161

À medida que os juristas se pronunciavam através dos


jornais, aumentava a polêmica. O presidente da Ordem dos
Advogados do Brasil, José Roberto Batochio, foi um dos que
cerraram fileiras contra a “Lei Humberto Lucena”. Para Batochio,
“soava estranho, muito estranho” que a anistia fosse aplicada em
causa própria: “ - O privilégio (a lei feita para um só) é odioso e
contrário ao princípio republicano”, afirmou. Em favor de um dos
seus membros, continuou o representante da OAB, a anistia
significava uma ampliação das imunidades parlamentares previstas
na Constituição Federal.162

As Três Armas não ficaram fora do debate sobre a anistia.


Em “mensagem à nação”, os presidentes dos clubes Militar, da
Aeronáutica e da Marinha, se dizentes representantes dos
“sentimentos de milhares de oficiais das Forças Armadas”, cobraram
“força moral” do Executivo e do Judiciário. O texto mais duro foi
endereçado aos congressistas: “...como se não bastassem os
pecados já cometidos, garantiram-se salários injustificáveis
aposentadorias absurdas e mordomias discutíveis”. A nota criticava
também a anistia concedida ao senador Humberto Lucena:

161
JORNAL DO BRASIL, edição de 17 de janeiro de 1995, p. 8.
162
BATOCHIO, José Roberto. Anistia em causa própria. In Jornal FOLHA DE SÃO
PAULO, edição de 26.01.1995, p.3.
428
Ao anistiarem quem fez uso da coisa pública para
propaganda pessoal, feriram a moral e tentaram
institucionalizar a anistia do crime desde que
indenizado.163

Às favas , as críticas. O esprit de corps falou mais alto!

Empolgado pela sua atuação no processo de Impeachment,


em 1992, na condição de relator da Comissão que deu parecer pela
admissibilidade do pedido de impedimento do ex-presidente da
República, Antônio Mariz defendeu a Lei que anistiava Humberto
Lucena e demais parlamentares. Com ares de jurista, Mariz
registrou para a posteridade:

Por que anistiar o senador Humberto Lucena?

A proibição de utilizar publicações da Gráfica, contida


na Consulta n. 14.404, de 28.6.94, do próprio TSE,
refere-se apenas ‘ao período eleitoral’, do candidato,
evidentemente. Já a sentença do TSE, desde a ementa,
refere-se a ‘ano eleitoral’, violando, portanto, normas
estabelecidas pelo próprio Tribunal. Trata-se, pois, de
clamoroso erro judicial de inaceitável injustiça contra
o Senador Humberto Lucena.

I – VÍCIO FORMAL

1. O processo contra Humberto Lucena é de 18 de


fevereiro de 1994.

2. A defesa apresentada pelo Senador é também de


fevereiro de 1994

163
Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, edição de 10.02.1995.
429
3. A convenção que o indicou candidato ocorreu em
31-5-94 (maio)

4. A resolução do TSE fala em candidato, o que só


existe após a convenção. A proibição de utilizar
publicações da Gráfica, contida na Consulta n. 14.404,
de 28.6-94, do próprio TSE, refere-se apenas ao
período da ‘campanha eleitoral’, do candidato,
evidentemente.

5. Há uma questão preliminar de importância


fundamental no caso em tela. O Ministro Marco
Aurélio, examinando a questão de se o recurso
ordinário contra a decisão do Tribunal Regional
Eleitoral favorável ao Senador Humberto Lucena se
deu em prazo hábil ou não, conclui que o Ministério
Público recorreu quando o prazo para tanto já havia
passado, incorrendo, pois, em afronta à coisa julgada,
o que é vedado pela Constituição. Ou seja, o recurso
está viciado de inconstitucionalidade. Quanto ao
assunto, assim se manifestou o douto Juiz
supracitado:

‘O meu convencimento sobre o tema, repito, decorre


da circunstância de o Ministério Público haver aposto
a assinatura no acórdão em data anterior aos três
dias do prazo recursal, com o que tornou induvidosa a
ciência inequívoca do que foi decidido. Assentadas a
premissa e a passagem do tempo sem a protocolação
oportuna do recurso, concluo pela incidência da
preclusão maior. O que decidido pela Corte de origem
transitou em julgado e, portanto, sob pena de violar-
se o inciso XXXVI do rol das garantias constitucionais –
art. 5º da Carta da República de 1988 – não há como
proceder ao exame do merecimento, ou não, do
acórdão da Corte de origem que implicou a
430
improcedência da representação. Concluo, portanto,
pela intempestividade, e não conheço o ordinário’
(Grifo nosso) (Relatório do Ministro Marco Aurélio
supra-referido, p. 14).

O inciso XXXVI da Constituição Federal dispõe: Art.


5º..............XXXVI – a lei não prejudicará o direito
adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.

Dessa forma, ao conhecer o recurso ordinário aqui


tratado, o Tribunal Superior Eleitoral desconheceu o
fato de que a decisão do Tribunal Regional Eleitoral da
Paraíba já havia se tornado coisa julgada, não
cabendo dela mais se recorrer, sob pena de se ferir
direito constitucional da parte, no caso do Senador
Humberto Lucena.

II – OS ERROS MATERIAIS

6. Por outro lado, é importante registrar que, como


disse o Acórdão recorrido, do TRE/PB, ‘a propaganda
eleitoral, quando efetivamente dirigida aos eleitores,
há de ser nítida, com objetivo claro, preciso, direto, a
fim de alcançar seu resultado. No caso em
julgamento, houve tão-somente uma mensagem de
um homem público, atualmente exercendo o cargo de
presidente do Congresso Nacional que, nessa
condição, procurou desejar indistintamente ao povo
brasileiro fé e esperança no ano de 1994, na
expectativa de uma saída para a grave crise
econômica e social que assola o nosso País.’

Ora, se a confecção de um simples calendário com


votos de um ano-novo melhor pode ser considerada
abuso de poder de autoridade, uma vez radicalizada

431
essa interpretação, seria legítimo o entendimento de
que o parlamentar, uma vez candidato à reeleição,
deveria se afastar do exercício do mandato, pois a
utilização do gabinete parlamentar e sua estrutura
material e humana, o acesso à Voz do Brasil, entre
outras prerrogativas, configuraria uso indevido dessas
prerrogativas. Ocorre que, como é sabido, nem a
Constituição Federal, nem a legislação
infraconstitucional, exigem do parlamentar o
afastamento do exercício do seu mandato, quando
candidato à reeleição ou a outro cargo eletivo.

Importante ressaltar que o Senador Humberto Lucena


não fez imprimir os calendários em questão apenas no
ano de 1993. Em verdade, o ilustre parlamentar vem
fazendo uso da sua cota na Gráfica do Senado Federal
para a confecção de calendários desde 1987 e,
sucessivamente, nos anos de 1988, 1989, 1990, 1991,
1992 e, finalmente, 1993. (Tal fato consta do Relatório
do Ministro Marco Aurélio por ocasião do julgamento
da matéria no Tribunal Superior Eleitoral, à p. 6). Ora,
isso vem demonstrar que a feitura e distribuição dos
calendários não tinha objetivos de propaganda
eleitoral, mas apenas a repetição corriqueira, pois
existente desde 1987, do uso de prerrogativa
extensiva a todos os membros do Congresso Nacional.

7. Ademais, é preciso recordar que, na ocasião da


confecção dos calendários, ocorrida no mês de
dezembro de 1993, bem como da sua distribuição, o
Senador Humberto Lucena não era ainda candidato, e
a lei, com base na qual se pediu a impugnação da
candidatura, exige que o impugnado seja candidato.
Com efeito, diz o caput do art. 22 da Lei
Complementar n. 64: ‘Art. 22. Qualquer partido………...

432
Também o caput do art. 45 da Lei n. 8.713/93: ‘Art.
45…

Aliás, como bem disse o Ministro Diniz de Andrada,


por ocasião do seu voto no julgamento da matéria no
Tribunal Superior Eleitoral (p. 53): ‘Tenho para mim,
que os dispositivos invocados não têm aplicação ao
caso. Bem ressaltou o ilustre patrono do recorrido da
tribuna, que ao tempo da apontada distribuição, não
tinha o recorrido, ainda, a condição de candidato e na
lei existe a referência expressa a candidato. Os
candidatos surgem com a escolha feita pelas
Convenções.

A própria Lei n. 8.713, que aí está a reger as próximas


eleições, não disciplinou nenhum tema antes de
ordenar a realização das convenções entre 2 de abril e
31 de maio. Depois, sim, vem a fase do registro.
Começa então a propaganda.’ (Grifo nosso).

6. É importante, ainda, registrar, a propósito, que o


próprio Ministro Marco Aurélio, relator do recurso no
Tribunal Superior Eleitoral, que votou pelo
acolhimento da representação e pela impugnação da
candidatura do Senador Humberto Lucena, mais
adiante, ao apartear o Ministro Carlos Velloso,
adendou: ‘Nós não temos nos autos elementos
concretos conducentes à conclusão de que teria
havido a distribuição de calendários após a escolha do
Senador como candidato à reeleição.’ (p. 56) (Grifo
nosso).

Ora, com a máxima vênia do ilustre Juiz, não nos


parece razoável, nem jurídica, nem politicamente,
que, uma vez que não restou comprovada a

433
distribuição dos calendários em questão, se possa,
com base na chamada tese da probabilidade (?) de
abuso de autoridade, impugnar a candidatura de
quem quer que seja.

Antes, em se tratando de direito político fundamental


da cidadania, o direito de pleitear cargo público
eletivo, nos parece inafastável que qualquer restrição
a esse direito deve, necessariamente, ser cercada dos
cuidados suficientes para que não sejam cometidas
injustiças.

7. Finalmente, devemos recordar que mesmo a


Constituição (v.g. art. 102, I, j) admite que decisões já
transitadas em julgado e de que não caibam mais
recursos tenham sido objeto de injustiça. Não é por
outra razão que o direito brasileiro consagra o
instituto da ação rescisória.

Nas palavras de Antônio Cláudio da Costa Machado,


em recente e festejado trabalho:

‘O fundamento jurídico da rescindibilidade é o vício


formal ou substancial da sentença como ato jurídico.
Politicamente falando, o seu fundamento é a
necessidade de reparar injustiças contidas em
decisões transitadas em julgado e prover a
reestabilização das relações jurídicas.’ (CF. ‘Código de
Processo Civil Interpretado’, Ed. Saraiva, 1993, p. 418).
Sendo assim, se o próprio Direito admite que decisões
definitivas do Poder Judiciário sejam injustiças e prevê
instrumentos para corrigir tais decisões, o Congresso
Nacional, igualmente, pode e deve, pelos meios que
lhe são próprios, procurar corrigir decisões injustas da
Justiça, como é o caso da decisão que atingiu o
Presidente do Congresso Nacional, Senador Humberto
434
Lucena.164

Uma semana depois do Projeto de Lei ser aprovado no


Congresso Nacional, os beneficiados com a anistia se anteciparam e
decidiram quitar as dívidas com a Gráfica do Senado. O órgão já
havia arrecadado R$ 278.210,00 das dívidas de dois governadores –
Antônio Mariz (PB) e Albano Franco (SE) -, sete senadores, e dois
deputados federais. Só o senador Ney Maranhão pagou R$
100.000,00 (cem mil reais). Os que ainda não haviam feito o
pagamento levantavam as dívidas. Queriam adquirir o mais rápido
possível a certidão de quitação de débito e garantir os benefícios da
anistia.165

Para virar Lei, só faltava a anuência do presidente da


República ao “Projeto Lucena”!

* * *

164
MARIZ, Antônio. Por que anistiar o Senador Humberto Lucena, in Anistia não é
perdão. Senador Humberto Lucena, discurso pronunciado na Sessão de 12.05.1995.
165
JORNAL DO BRASIL, edição de 24.01.1995, p. 4.
435
FINALMENTE, A SANÇÃO!
“...se eu vetasse o projeto, corria o risco de
criar um conflito grave entre poderes – o da
Justiça, que impediu um senador de concorrer,
e o do Congresso, que achou esse castigo
exagerado para a gravidade do delito”.
(Fernando Henrique Cardoso)

No dia primeiro de janeiro de 1995, aos 63 anos, o


respeitado acadêmico e sociólogo Fernando Henrique Cardoso
tomava posse como o 38º presidente do país. FHC havia sido eleito
em 03 de outubro de 1994, com 34,3 milhões de sufrágios, o que
correspondia a 54,28% dos votos válidos no pleito. Com a sua
vitória, gerou-se uma grande expectativa no seio da população.
Pesquisa Datafolha indicava que, para 70% dos brasileiros, o novo
Governo seria bom ou ótimo. O índice de aprovação do Plano Real,
do qual Cardoso era o principal fiador quando ministro da Fazenda
do Governo Itamar Franco, era ainda maior, de 79%.

FHC foi um dos senadores solidários a Humberto Lucena,


após a bombástica decisão do TSE. Se Lucena cometera um ilícito,
ele não estava só. Em 1992, a pedido do senador Fernando
Henrique Cardoso, a gráfica do Senado imprimiu 10.000 exemplares
de um Manual de Campanha do Candidato, que foi distribuído para
vereadores do PSDB utilizarem nas eleições municipais. O manual
custou à gráfica do Senado dois centavos a unidade; no mercado,
custaria vinte vezes mais.

O vice-presidente da República, eleito com FHC, Marco


Maciel, no fim de 1992, também havia mandado imprimir
calendários para distribuir como brinde eleitoral, à semelhança do
436
que fez Lucena, em 1994. A única diferença era que, no caso dos
calendários de Maciel, eles ficaram pendurados nas residências dos
eleitores durante o ano de 1993, em que não houve eleições. O
senador Mário Covas, ouvido pela Revista Veja, também admitiu: “ -
De fato, imprimo meus cartões de Natal lá e não considero isso
crime. Queria mesmo era saber dos juízes dos tribunais se os seus
cartões de Natal são pagos por eles mesmos ou pelos tribunais”,
insinuou Covas.166

Empossado no cargo, Fernando Henrique Cardoso, de cara,


tinha dois desafios imediatos a enfrentar – um econômico, outro
político -, mas ambos serviriam de teste à sua condição de estadista:
a questão do câmbio e a sanção da “Lei Humberto Lucena", votada
em convocação extraordinária pelo Congresso Nacional. Era a
primeira prova de fogo do presidente!

Além de cometer falta semelhante à de Lucena, no passado,


FHC era um animal político por natureza. Finalmente, havia chegado
o momento de pôr em prática o que ele mesmo pregava no campo
das ideias: “- Não se governa só com amigos bem-intencionados”.

Setores da sociedade brasileira, principalmente a grande


imprensa nacional, julgava o Projeto de Lei da anistia o ápice do
corporativismo do Congresso Nacional. A repercussão negativa foi
ampliada pelo fato do presidente FHC anunciar que vetaria a Lei que
aumentava o salário-mínimo, mas sancionaria a que anistiava
parlamentares que fizeram uso da gráfica do Senado. Essa
contradição fazia com que parte da opinião pública nacional
considerasse o Brasil “o reino da imoralidade”. 167

166
Revista VEJA, edição de 21.09.1994.
167
Aliás, esse foi um dos artigos e autoria do jornalista Jânio de Freitas, do jornal
FOLHA DE SÃO PAULO, edição de 20.01.1995, p. 1-5. Na mesma edição, Frei Betto
437
“ - Governo é como remédio. A bula sempre realça mais as
virtudes do que os efeitos colaterais”, afirmou certa vez o jornalista
Josias de Sousa. No caso, o presidente Fernando Henrique Cardoso
estava numa verdadeira “sinuca de bico”. FHC ouvia pessoas,
conselheiros, lideranças... Chegou a torcer pela rejeição do Projeto,
na Câmara, assim não arcaria com o desgaste perante a sociedade,
que era algo certo. Por outro lado, temia ceder ao histórico
fisiologismo dos congressistas...Sem saber que rumo tomar, decidiu
não emitir qualquer opinião sobre a votação do Projeto de Lei de
anistia, mas, caso o Poder Legislativo o aprovasse, o sancionaria. O
discurso já estava pronto: não iria interferir na “soberania do
Congresso”.

Não obstante, nem sempre a moral do homem comum


coincide com a ética do governante que, no dia a dia do exercício do
poder precisa conciliar interesses e vencer arestas. Independente de
ideologia política, todo presidente da República precisa ter uma boa
relação com os demais atores do poder do Estado, principalmente
com o Legislativo, com quem participa na elaboração da feitura das
Leis. A realidade política o exige. É uma questão de sobrevivência
política!

Em seu quarto dia de mandato, o Senado, de onde FHC era


oriundo, apresentou suas credenciais ao novo presidente e impôs-
lhe a primeira derrota política: um grupo de treze senadores
condicionou a aprovação do nome do economista Pérsia Arida, para
a presidência do Banco Central, ao compromisso do Planalto em
sancionar a anistia para salvar Humberto Lucena. Os senadores

escreveu artigo em que criticava a Lei que anistiou Lucena e outros parlamentares.

438
rebelados reuniam-se na sala do cafezinho do Senado e se
recusavam a entrar em plenário, em claro boicote à indicação do
economista. O primeiro sinal havia sido dado: caso vetasse a Lei,
corria o grande risco de perder o apoio do PMDB - partido ao qual
pertencia Lucena -, e do PFL – também solidário a Humberto.

Mas não era apenas o “caso dos calendários” que estava em


jogo. Os parlamentares queriam rapidamente que FHC distribuísse
os cargos do segundo e terceiro escalões do governo. Caso não
fizesse a partilha do poder, Cardoso perderia também o apoio de
outras legendas – PTB e PP – que se consideravam fora da
composição dos ministérios.

Ciente dessa realidade, Fernando Henrique Cardoso não


quis cair no erro do outro Fernando, o Collor de Melo. Este, quando
esteve na presidência da República, governou de costas para os
representantes do povo. Deu no que deu!…

Na abertura da sessão legislativa do Congresso Nacional,


ocorrida no dia primeiro de fevereiro de 1995, 168 o presidente
Fernando Henrique Cardoso deixava claro o tipo de relação que
gostaria de ter com o Congresso Nacional. Para tanto, não hesitou
em sancionar o Projeto da “Lei Humberto”, como justificou na parte
final do seu pronunciamento:

...Nos últimos dias, recebi centenas de cartas e


telegramas pedindo que vetasse esse projeto. Isso
mostra que o Brasil não tolera mais o mal uso de
recursos públicos. Eu também não tolero e serei

Na mesma sessão, Humberto Lucena tomava posse para exercer o seu


168

terceiro mandato de senador, ao lado do seu companheiro de partido e


candidato mais votado, Ronaldo Cunha Lima.
439
inflexível com os desvios que vierem a acontecer
dentro do Executivo. Mas se eu vetasse o projeto,
corria o risco de criar um conflito grave entre poderes
– o da Justiça, que impediu um senador de concorrer,
e o do Congresso, que achou esse castigo exagerado
para a gravidade do delito. É bom que se diga que
alguns juízes, ao condenar o senador Lucena,
ressalvaram que a pena era excessiva. E também que
o povo da Paraíba reelegeu-o com votação expressiva.
Quando os poderes da República brigam, quem acaba
perdendo é o Brasil. Eu quero que o governo, o
Congresso e a Justiça trabalhem em harmonia para
que o Brasil ganhe. Para que as reformas de que o
Brasil precisa saiam logo.

A responsabilidade do Congresso que se inicia é


enorme. As emendas à Constituição são hoje uma
exigência da sociedade. O Governo não deixará de
assumir sua responsabilidade, propondo-as,
discutindo-as com o País e articulando-se com as
lideranças partidárias. Mas caberá aos deputados e
senadores a palavra final. Eu confio no patriotismo
dos representantes do povo.

Vamos colocar o Brasil em primeiro lugar. Com muita


fé, austeridade e trabalho.
Muito obrigado.

No final, entre a ética do homem comum – a opinião pública


pedia o veto - e a ética do Príncipe – o Congresso garantiria a
governabilidade - , o presidente preferiu a segunda opção e praticou
o primeiro ato no exercício da presidência da República: sancionou a
Lei “Humberto Lucena”.

Na informalidade, Fernando Henrique justificou-se: “ - Se


440
vetasse a anistia, eu brigaria com meio Congresso”, confidenciou a
interlocutores. “ - Fiz uma opção responsável”, pondo fim ao
diálogo.169

Três dias depois, em cadeia de rádio e televisão, FHC repetiu


o discurso, registrando a importância de o Congresso e o Governo
trabalharem afinados:

“- Se eu vetasse o projeto, corria o risco de criar um


conflito grave entre poderes – o da Justiça, que
impediu um senador de concorrer e o Congresso, que
achou esse castigo exagerado para a gravidade do
delito…

Quando os poderes da República brigam, quem acaba


perdendo é o Brasil.170

Já fora do poder, em seu livro de memórias, o ex-presidente


voltou ao tema:
...Eu poderia vetar a lei ou, escondendo-me, deixar
que o próprio Congresso a promulgasse. Estava convencido,
porém, como disse na exposição de motivos da sanção,
que a decisão da Justiça Eleitoral abrigava ânimo de
política local. Embora eu não tivesse jamais lançado
mão desse tipo de recurso e o julgasse equivocado, ele
não estava capitulado dessa forma no Regimento do
Senado nem nos costumes vigentes. Punir apenas um,
quando muitos incorriam na mesma prática, seria
discriminatório. Sancionei lei de anistia por essas
razões. A opinião pública, no entanto, queria 'punir'
um poderoso, coisa que se compreende, mas não deve
servir de base para uma decisão presidencial. Não
169
Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, edição de 09.02.1995.
170
JORNAL DO BRASIL, edição de 04.02.1995, p. 3.
441
faltou quem interpretasse meu gesto como adesão ao
clientelismo dominante.171

Fernando Henrique Cardoso tinha Lucena como um


parlamentar de práticas clientelistas, mas não deixava de
reconhecer a honradez do senador paraibano, conforme registrou
para a posteridade:

A anistia não é ao Lucena, pega uma porção de gente.


Pega o Albano Franco, o presidente Sarney, uns trinta
senadores e deputados, mais adiante seria um tumor
permanente. A solução foi fazer essa dupla cirurgia
desagradável: aprovar a anistia ao Lucena e vetar a
questão do salário-mínimo. No caso do Lucena houve,
na verdade, um exagero na condenação, ele fez uma
coisa que muitos senadores e deputados faziam, mas
foi pego como bode expiatório, até porque tem o
physique du rôle. É como o personagem da novela, um
homem que pede por todo mundo, faz nomeações. Ele
é honesto, correto, mas tem um vezo clientelista
insopitável, e ai não tem jeito, ficou uma espécie de
estigma, e esse estigma respingou.172

Em seu último dia como presidente do Senado, Humberto


propôs que fossem mudadas as regras da utilização da gráfica: “ -
Acho que a nova Mesa Diretora pode propor a reformulação da
gráfica”, sugeriu Lucena sem tecer maiores detalhes sobre a
proposta. Afirmou ainda que terminava o seu segundo mandato na
Casa “com a consciência tranquila” e que, durante o terceiro
mandato que se iniciaria no dia seguinte, seria “um senador soft”, o
171
CARDOSO, Fernando Henrique. A ARTE DA POLÍTICA – A HISTÓRIA QUE VIVI. Rio
de Janeiro: Ed. CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA, 2006, p. 347.
172
CARDOSO, Fernando Henrique, DIÁRIOS DA PRESIDÊNCIA (1995/1996).
Companhia das Letras, 2015, p. 61.
442
que significava não ocupar cargos e não ter grandes projetos. “ –
Esqueçam de mim”, disse Humberto Lucena, repetindo a famosa
frase dita pelo último presidente do Regime Militar. 173

Na cerimônia de posse dos cinquenta e quatro novos


senadores, o primeiro-secretário da Casa, Júlio Campos (PFL/MT),
num gesto de apoio ao senador paraibano, gritou o nome de
Humberto Lucena para que, junto com os outros pares, fizessem o
juramento de cumprir a Constituição e defender a unidade do
Brasil.174 Lucena tomava posse para exercer seu terceiro mandato de
Senador, ao lado do companheiro de partido e candidato mais
votado, Ronaldo Cunha Lima. Ao todo, eram 40 anos no Congresso
Nacional – quatro mandatos de deputado e três de senador.
Somados aos dois mandatos de deputado estadual, Humberto
contabilizava cinquenta anos de vida pública. Durante esse tempo,
só havia ficado sem mandato quatro anos.

Dias após investir-se na presidência do Senado, José Sarney


(PMDB/AP) elogiou a decisão do presidente de sancionar a “Lei
Humberto Lucena” e anunciou mudanças na gráfica do Senado. A
intenção era transformar o Cegraf num órgão de publicação de todo
o material impresso solicitado pelos parlamentares, transformando-
o em um “serviço de imprensa do legislativo”, nos moldes do
Departamento de Imprensa Nacional/DIP do Poder Executivo.
Segundo Sarney, a gráfica fora criada para ser um “instrumento da
autonomia do Congresso”, explicou.175

Quatro dias após a sanção da Lei de anistia, o novo


primeiro-secretário da Mesa Diretora do Senado, Odacir Soares, do

173
Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, edição de 01.02.1995.
174
Jornal O ESTADO DE SÃO PAULO, edição de 02 de fevereiro de 1995, p. A4.
175
Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, edição de 04.02.1995.
443
PFL de Roraima, com o aval do novo presidente da Casa, proibiu a
publicação, pelo Centro Gráfico do Senado/Cegraf, de qualquer
material estranho à atividade legislativa. Disse Soares: “ - A partir de
agora, a gráfica só publica documentação relativa à atividade
parlamentar, como separatas, discursos e resenhas”, sentenciou. 176

Com a medida adotada, não havia mais espaços para a


impressão de livros de poesia (o ex-senador Áureo Mello, do PRN
do Amazonas, havia publicado vários), cadernos, cartões de Natal e
calendários, como os impressos pelo senador paraibano.

Para o jornalista Josias de Souza, além da sanção à Lei de


anistia, o PMDB havia “arrancado” do presidente Fernando
Henrique Cardoso a Secretaria de Desenvolvimento Regional, que
tinha o estatuto de Ministério e que foi entregue ao parente de
Humberto, Cícero Lucena.177 Ainda assim, os deputados do PMDB
paraibano ganhariam fama de “governistas ingratos”, pois, a
despeito de terem conseguido de “FHC” a sanção à Lei de anistia
Humberto Lucena (PMDB/PB) e um cargo relevante do Governo,
ajudaram a “esquartejar” o projeto de reforma da Previdência, uma
das metas do “Governo FHC”.178

Traído por aliados, o presidente da República viria a sofrer


diversas derrotas no Congresso Nacional. A sanção à “Lei Humberto
Lucena” não garantiu a almejada “governabilidade”! Exemplo disso
é que, no mês de maio de 1995, o Governo enfrentou a greve de
petroleiros. Em represália, a Petrobrás demitiu 59 trabalhadores e,
findo o movimento, a empresa se recusava a rever todas as
demissões e chegou a publicar edital para contratar novos

176
Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, edição de 11.02.1995.
177
Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, edição de 26.03.1995.
178
Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, edição de 26.03.1995.
444
trabalhadores para substituir os grevistas. O Congresso Nacional
propôs uma Lei, visando anistiar as pesadas multas aplicadas aos
sindicados, pelo Tribunal Superior do Trabalho. FHC vetou a Lei, ao
argumento de que a anistia representaria uma ingerência indevida
do Legislativo e do Executivo sobre o Judiciário. O presidente não
conseguia esconder a incoerência em relação à “Lei Humberto
Lucena”.

O jornalista Josias de Souza, em artigo denominado “A


lucenização de FHC” - acusava o presidente da República de ter
descido ao nível do senador paraibano, no aspecto moral, cedendo
ao fisiologismo do PMDB, “tão bem representado pela figura de
Lucena”.179 A contradição de FHC levava parte da opinião pública
nacional a considerar o Brasil o “reino da imoralidade”, um dos
artigos de autoria do jornalista Jânio de Freitas, do jornal FOLHA DE
SÃO PAULO.180 Na mesma edição, Frei Betto escreveu outro, no qual
criticava a “Lei Humberto Lucena”:

O Triângulo das Bermudas


FREI BETTO

A Câmara dos Deputados aprovou, por 253 votos a


110, a anistia ao presidente do Congresso, o senador
Humberto Lucena (PMDB-PB), que usou a gráfica do
Senado – um serviço público, mantido pelo bolso do
contribuinte – em proveito próprio.

O Supremo Tribunal Federal, que absolveu o ex-


presidente Collor, havia condenado e cassado Lucena.
Parece o jogo dos coelhos em parque de diversões.
Quem não encontra a porta da impunidade pelo

179
FOLHA DE SÃO PAULO, edição de 23.01.1995, p. 1-2.
180
FREITAS, Jânio de. In Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, edição de 20.01.1995, p. 1-5.
445
Judiciário, tem a chance de atravessá-la pelo
Legislativo ou, em último caso, pela sanção do
Executivo.

Enquanto ladrões de galinha são presos, espancados e


trancafiados, homens públicos e locupletam com os
recursos da nação, protegidos pelo 'seguro
cumplicidade política', graças ao qual os corruptos
agem impunes e imunes, confiantes de que aquele
terreno de ação entre amigos chamado Brasília
haverá de ser condescendente com seus crimes.

Executivo, Legislativo e Judiciário seriam o Triângulo


das Bermudas onde naufragam os nossos sonhos de
conquista de cidadania e consolidação da democracia
se não fossem as exceções à regra; juízes que não
votam contra o senso ético da indignação nacional
nem compram apartamentos barateados por favores
do tráfico de influências; senadores e deputados que
não utilizam os recursos da nação em benefício
próprio; membros do Executivo que não vendem a
dignidade por um prato de lentilhas dessa fama tão
fugaz e dúvida chamada poder político.

Na falta do rigor da lei – o que torna imperativo a


reforma da Constituição -, pequenos homens
tripudiam sobre essa grande nação. Somos a décima
economia do planeta, o sexto produtor mundial de
alimentos e o primeiro de frutas. Merecemos da
natureza e da geopolítica um território de dimensões
continentais desprovido de catástrofes naturais ou
obstáculos à produção, como neve, vulcões,
montanhas inabitáveis, terremotos, furacões etc., tão
frequentes em outros países.

Para ser o paraíso, só falta ao Brasil um detalhe:


446
homens públicos à altura da grandiosidade deste país
de milhões de trabalhadores, de jovens que sonham,
de mulheres que lutam por seus direitos, de artistas
que fomentam utopias. É a falta de governo voltado à
maioria que explica tanta riqueza natural cercada
pela afronta da coletiva miséria humana.

No mesmo jornal – FOLHA DE SÃO PAULO, edição de 11 de


abril de 1995 -, o próprio Humberto defendeu a Lei que levava o seu
nome. Iniciou o texto fazendo uma análise técnico-jurídica da anistia
para, logo depois, se referir ao caso concreto, em que fora o
protagonista. Eis o artigo:

Anistia não é perdão


HUMBERTO LUCENA

A maioria das pessoas não conhece o verdadeiro


significado da anistia. De modo geral, confunde-se
com a graça ou indulto. É preciso, pois, distinguir a
anistia desses dois outros instrumentos jurídicos que
lhe podem ser assemelhados, mas não iguais.

'A graça é o ato de clemência do poder, em favor do


réu definitivamente condenado, nos crimes comuns,
para conceder-lhe, individualmente, a extinção,
diminuição ou comutação da pena', segundo Antônio
Luiz da Câmara Leal ('Comentários ao Código de
Processo Penal Brasileiro').

A 'graça' deverá ser requerida pelo interessado.

O 'indulto', por sua vez, é diferente da graça, pois


enquanto esta é um favor individual, concedido a um
sentenciado, o indulto é um favor coletivo, concedido
a vários condenados, espontânea e simultaneamente.
447
Tanto a graça como o indulto só podem beneficiar
autores de crimes comuns. Tanto a graça como o
indulto são atos de império do Presidente da
República, em favor do sentenciado, extinguindo a
punibilidade pelo perdão.

A anistia é concedida pelo Poder Legislativo, com a


sanção presidencial, e faz desaparecer o ilícito, o
delito, extinguindo a ação penal.

A anistia favorece os seus beneficiários, quer antes,


quer durante, quer depois de definitivamente
condenados. A graça e o indulto amparam seus
beneficiários com o perdão, a anistia ampara os seus
beneficiários com o esquecimento do ilícito, tanto
assim que o culpado pode ser responsabilizado pelo
dano resultante do fato. 'A anistia não faz
desaparecer o fato, apenas lhe tira o caráter
delituoso' (Luiz Galloti, ex-procurador da República no
Distrito Federal).

'A anistia é medida tipicamente política' (Pontes de


Miranda, 'Comentários à Constituição de 1946').

É ainda Pontes de Miranda quem sentencia:

'Anistia é apagar na lembrança, privar da lembrança,


esquecer-se do que ocorreu. Com a anistia olvida-se o
fato criminal, com a consequência de se lhe não
poderem atribuir efeitos de direito material ou
processual.

'Aconteceu o ato; agora, indo-se ao passado, mesmo


onde ele está, acontece juridicamente desaparecer,
deixar de ser, 'não ser'. O oblívio é total, ou parcial.
Não se confunde com o perdão ou o indulto que se
448
inspiram em valor subjetivo do condenado, como
indivíduo ou parte do grupo' ('Comentários à
Constituição de 1967', grifo nosso).

Essas considerações valem, a propósito da anistia


concedida pelo Congresso Nacional, com a sanção do
sr. presidente da República, aos candidatos às eleições
de 1994, processados ou condenados por ilícitos
previstos na legislação eleitoral vigente, em virtude de
publicações impressas na gráfica do Senado Federal.

A hipótese de a Justiça Eleitoral ser induzida a erro


inspirou alguns congressistas a defenderem a anistia
aos candidatos às eleições de 1994 processados por
eventuais ilícitos decorrentes de publicações na
gráfica do Senado, passíveis de punição com cassação
de registro ou diploma e, consequentemente, de
inelegibilidade, por três anos.

Isso porque a Justiça Eleitoral tem as suas decisões, as


quais não podem ser revistas pelo Supremo Tribunal
Federal, a não ser através da velharia processual do
recurso extraordinário, dificilmente conhecido pela
egrégia corte, nem mesmo quando se alega ofensa à
coisa julgada, porque seria matéria infraconstitucio-
nal.

Em suma, o mérito da questão julgada pelo Tribunal


Superior Eleitoral, em face da celeridade inerente ao
processo eleitoral, praticamente morre na Superior
Corte da Justiça Eleitoral, salvo quando se tratar de
decisão que transgrida, frontalmente, a Constituição.

Em face dessa realidade é que foi objeto de discussão


no Congresso Nacional não só a hipótese da inclusão
da ação rescisória na competência do Tribunal
449
Superior Eleitoral, mas também de regulamentação
de uma nova ação de descumprimento de preceito
fundamental, baseada no art. 102, parágrafo único da
Constituição Federal, como formas de se garantir um
novo julgamento do mérito, na própria Justiça
Eleitoral, ou da constitucionalidade da decisão judicial
no Supremo Tribunal Federal, via ação especial.

É de ser ressaltado ainda que a anistia aos candidatos


às eleições de 1994, ao contrário do que foi
amplamente divulgado pela mídia, beneficiava não
apenas um senador, mas diversos senadores e
deputados também envolvidos em processos,
semelhantes na Justiça Eleitoral, por terem
distribuídos publicações sem qualquer mensagem de
propaganda eleitoral.

E, aliás, por oportuno, convém também esclarecer


que, malgrado a pressão de alguns jornalistas, como
presidente do Senado em nenhum momento
admitimos a divulgação de nomes e publicações de
dezenas de outros parlamentares que, mesmo sem
terem sido denunciados à Justiça Eleitoral,
imprimiram material idêntico ou semelhantes na
gráfica do Senado.

O projeto de anistia aprovado pelas duas casas do


Congresso Nacional e, afinal, sancionada pelo sr.
presidente da República, em vez de perdoar os
eventuais infratores, pôs uma pedra em cima do
assunto, ao mandar arquivar os processos, após o
ressarcimento das despesas, embora autorizadas por
norma legal interna.

Portanto, anistia é decisão política do Congresso


Nacional, com sanção do presidente da República (art.
450
48, da Constituição Federal). A anistia não é perdão, é
esquecimento.

Antônio Carlos Pessoa Lins, um dos principais críticos da Lei


de Anistia, antecipou-se e expressou o entendimento do ministério
público federal de que o projeto de anistia era inconstitucional,
porque violava a coisa julgada.

Com serenidade, o chefe do Executivo federal fez questão de


registrar em seu discurso que a sanção teria sido uma decisão difícil,
mas que assim o fez para afastar qualquer risco de conflito entre os
poderes da República, o que não seria bom para o país. 181 A fala do
presidente soava como uma espécie de pedido de desculpas à
Nação, considerando a natureza casuística da Lei, como aparecia
logo em seu primeiro artigo:

“LEI Nº 8.985, DE 7 DE FEVEREIRO DE 1995

Concede, na forma do inciso VIII do art. 48 da


Constituição Federal, anistia aos candidatos às
eleições de 1994, processados ou condenados com
fundamento na legislação eleitoral em vigor, nos
casos que especifica.

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o


Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte
lei:

Art. 1° É concedida anistia especial aos candidatos às


eleições gerais de 1994, processados ou condenados
ou com registro cassado e conseqüente declaração
de inelegibilidade ou cassação do diploma, pela

181
Jornal A UNIÃO, 04 de fevereiro de 1995.
451
prática de ilícitos eleitorais previstos na legislação
em vigor, que tenham relação com a utilização dos
serviços gráficos do Senado Federal, na
conformidade de regulamentação interna,
arquivando-se os respectivos processos e
restabelecendo-se os direitos por eles alcançados.

Parágrafo único. Nenhuma outra condenação pela


Justiça Eleitoral ou quaisquer outros atos de
candidatos considerados infratores da legislação em
vigor serão abrangidos por esta lei.

Art. 2° Somente poderão beneficiar-se do preceituado


no caput do artigo precedente os membros do
Congresso Nacional que efetuarem o ressarcimento
dos serviços individualmente prestados, na
conformidade de tabela de preços para reposição de
custos aprovada pela Mesa do Senado Federal,
excluídas quaisquer cotas de gratuidade ou descontos.

Art. 3° Esta lei entra em vigor na data de sua


publicação, aplicando-se a quaisquer processos
decorrentes dos fatos e hipóteses previstos no art. 1°
desta lei.

Art. 4° Revogam-se as disposições em contrário.

Brasília, 7 de fevereiro de 1995; 174° da


Independência e 107° da República.

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO


Nelson Jobim”

Setores da sociedade brasileira, principalmente a grande


imprensa condenavam o corporativismo do Congresso Nacional. A
452
repercussão negativa aumentou quando o presidente da República
anunciou que vetaria a Lei que aumentava o salário-mínimo, mas
sancionaria a Lei nº 8.895, que anistiava parlamentares que fizeram
uso da gráfica do Senado. Resultado: em menos de um mês no
exercício da presidência da República, houve declínio na aprovação
do governo FHC: de 70% de ótimo/bom, em dezembro de 1994,
despencou para mirrados 36%, no fim de janeiro de 1995.

A primeira “dor de cabeça” de Fernando Henrique Cardoso


não havia sido uma crise econômica, mas o “caso Lucena”.

* * *

Depois da Lei de anistia já em vigor, Humberto Lucena


voltaria a defendê-la em duas ocasiões. A primeira, em artigo
publicado no Jornal FOLHA DE SÃO PAULO; a segunda, em discurso
proferido na sessão de 12 de maio. Eis o artigo do jornal:

Anistia não é perdão


HUMBERTO LUCENA

A imensa maioria das pessoas não conhece o


verdadeiro significado da anistia. De modo geral,
confunde-a com graça ou indulto. É preciso, pois,
distinguir a anistia desses dois outros instrumentos
jurídicos que lhe podem ser assemelhados, mas não
iguais. 'A graça é o ato de clemência do poder, em
favor do réu definitivamente condenado, nos crimes
comuns, para conceder-lhe, individualmente, a
extinção, diminuição ou comutação da pena', segundo
Antônio Luiz da Câmara Leal ('Comentários ao Código
de Processo Penal Brasileiro').

A 'graça' deverá ser requerida pelo interessado.


453
O indulto, por sua vez, é diferente da graça, pois
enquanto está é um favor individual, concedido a um
certo sentenciado, o indulto é um favor coletivo,
concedido a vários condenados, espontânea e
simultaneamente.

Tanto a graça como o indulto só podem beneficiar


autores de crimes comuns. Tanto a graça como o
indulto são atos de império do presidente da
República, em favor do sentenciado, extinguindo a
punibilidade pelo perdão.

A anistia é concedida pelo Poder Legislativo, com a


sanção presidencial, e faz desaparecer o ilícito, o
delito, extinguindo a ação penal.

A anistia favorece os seus beneficiários, quer antes,


quer durante, quer depois de definitivamente
condenados. A graça e o indulto amparam seus
beneficiários com o perdão, a anistia ampara seus
beneficiários com o esquecimento do ilícito, tanto
assim que o culpado pode ser responsabilizado pelo
dano resultante do fato. 'A anistia não faz
desaparecer o fato, apenas lhe tira o caráter
delituoso'. (Luiz Galloti, ex-procurador da República
no Distrito Federal).

'A anistia é medida tipicamente política (Ponte de


Miranda, 'Comentários à Constituição de 1946').

É ainda Pontes de Miranda quem sentencia:

'Anistiar é apagar na lembrança, privar da lembrança,


esquecer-se do que ocorreu. Com a anistia olvida-se o
ato criminal, com a consequência de se lhe não

454
poderem atribuir efeitos de direito material ou
processual.

'Aconteceu o ato; agora, indo-se ao passado, mesmo


onde ele está, acontece juridicamente desaparecer,
deixar de ser, 'não ser'. O oblívio é total, ou parcial.
Não se confunde com o perdão ou indulto que se
inspiram em valor subjetivo do condenado, como
indivíduo ou parte do grupo'. ('Comentários à
Constituição de 1967', grifo nosso). Essas
considerações valem, a propósito da anistia concedida
pelo Congresso Nacional, com a sanção do sr.
presidente da República, aos candidatos às eleições de
1994, processados ou condenados por ilícitos
previstos na legislação eleitoral vigente, em virtude de
publicações impressas na gráfica do Senado Federal.

A hipótese de a Justiça Eleitoral ser induzida a erro


inspirou alguns congressistas a defenderem a anistia
aos candidatos às eleições de 1994 processados por
eventuais ilícitos decorrentes de publicações na
gráfica do Senado, passíveis de punição com cassação
de registro ou diploma e, consequentemente, de
inelegibilidade, por três anos.

Isso porque a Justiça Eleitoral tem as suas decisões, as


quais não podem ser revistas pelo Supremo Tribunal
Federal, a não ser através da velharia processual do
recurso extraordinário, dificilmente conhecido pela
egrégia corte, nem mesmo quando se alega a ofensa
à coisa julgada, porque seria matéria
infraconstitucional.

Em suma, o mérito da questão julgada pelo Tribunal


Superior Eleitoral, em face da celeridade inerente ao
processo eleitoral, praticamente morre na Suprema
455
Corte da Justiça Eleitoral, salvo quando se tratar de
decisão que transgrida, frontalmente, a Constituição.
Em face dessa realidade é que foi objeto de discussão
no Congresso Nacional não só a hipótese da inclusão
da ação rescisória na competência do Tribunal
Superior Eleitoral, mas também de regulamentação
de uma nova ação de descumprimento de preceito
fundamental, baseada no art. 102, parágrafo único da
Constituição Federal, como formas de se garantir um
novo julgamento do mérito, na própria Justiça
Eleitoral, ou da constitucionalidade da decisão judicial
no Supremo Tribunal Federal, via ação especial.

É de ser ressaltado ainda que a anistia aos candidatos


às eleições de 1994, ao contrário do que foi
amplamente divulgado pela mídia, beneficiava não
apenas um senador, mas diversos senadores e
deputados também envolvidos em processos
semelhantes na Justiça Eleitoral, por terem
distribuídos publicações sem qualquer mensagem de
propaganda eleitoral.

E, aliás, por oportuno, convém também esclarecer


que, malgrado a pressão de alguns jornalistas, como
presidente do Senado em nenhum momento
admitimos a divulgação de nomes e publicações de
dezenas de outros parlamentares que, mesmo sem
terem sido denunciados à Justiça Eleitoral,
imprimiram material idêntico ou semelhante na
gráfica do Senado.

O projeto de anistia aprovado pelas duas casas do


Congresso Nacional e, afinal, sancionada pelo sr.
presidente da República, em vez de perdoar os
eventuais infratores, pôs uma pedra em cima do
assunto, ao mandar arquivar os processos, após o
456
ressarcimento das despesas, embora autorizadas por
norma legal interna.
Portanto, anistia é decisão política do Congresso
Nacional, com a sanção do presidente da República
(art. 48, Constituição Federal). A anistia não é perdão,
é esquecimento.182

No discurso feito na sessão de 12 de maio de 1995,


Humberto Lucena fez uma retrospectiva da luta que travou para
preservar o mandato conquistado nas urnas. Queria afastar dos
novatos que não o conheciam, qualquer falsa impressão, na sua
opinião, construída por uma campanha midiática e negativa contra
sua pessoa. Aproveitou para fazer uma nova defesa, em favor da Lei
de Anistia. Disse ele:

ANISTIA NÃO É PERDÃO

Sr. Presidente, Sras. e Srs. Senadores, durante a luta


que travei, pela manutenção do meu mandato de
Senador reeleito pela Paraíba, em 1994, mantive
contato permanente com a Nação, através dos meios
de comunicação de massa e, bem assim, com os
Senadores e Deputados que, então compunham o
Congresso Nacional.

Hoje volto a abordar o assunto, para levar a minha


mensagem aos congressistas da nova Legislatura,
grande parte dos quais não me conhece de perto, o
que poderia contribuir para uma má impressão.

“Anistia não é perdão”

Senhor Presidente, Senhoras e Senhores Senadores,

182
Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, edição de 11.04.1995.
457
durante a luta que travei, pela manutenção do meu
mandato de Senador reeleito pela Paraíba, em 1994,
mantive contato permanente com a Nação, através
dos meios de comunicação de massa e, bem assim,
com os senadores e deputados que, então,
compunham o Congresso Nacional.

Hoje, volto a abordar o assunto, para levar a minha


mensagem as congressistas da nova Legislatura,
grande parte dos quais não me conhece de perto, o
que poderia contribuir para uma má impressão a meu
respeito, já que a mídia nacional envolveu o meu
nome, numa campanha sórdida e perversa, como se
realmente eu tivesse utilizado a Gráfica do Senado,
para imprimir propaganda eleitoral.

Com o objetivo de ilustrar os acontecimentos da


época, transcrevo, na íntegra, nos Anais do Senado, o
artigo que publiquei, no O GLOBO, de 29 de novembro
de 1994.
Pela verdade
________________
Humberto Lucena

‘Ninguém desconhece o extraordinário papel que a


imprensa vem desempenhando no País, a partir da
democratização, quando ela passou a exercer o
quarto poder, no pleno exercício de sua ação
fiscalizadora.

Há dois anos, sobretudo, a imprensa contribuiu, de


modo eficaz, para iniciarmos um processo de
purificação de nossa vida político-administrativa. Foi
assim em 1992, ao se instalar, no Congresso Nacional,
uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito – CPMI

458
-, para investigar as denúncias de Pedro Collor contra
o esquema PC Farias, cujo relatório final fundamentou
o pedido de impeachment do ex-Presidente Fernando
Collor. Foi assim, também, em 1993, ao se instalar, no
Congresso Nacional, a Comissão Parlamentar Mista
de Inquérito – CPMI, destinada a apurar as denúncias
contra a chamada 'máfia' do Orçamento, a qual
redundou na perda do mandato de vários deputados.
Mas, pra evitar que a versão valha mais do que o fato,
a imprensa tem de recolher informações exatas,
visando a preservar a imagem das pessoas
porventura envolvidas em um determinado noticiário.

Trago o exemplo da impugnação do registro de minha


candidatura pelo Ministério Público, perante o TRE-
PB, alegando-se a impressão de calendários de Ano-
Novo, na Gráfica do Senado, que, apesar de derrotada
na Paraíba, foi aceita, em grau de recurso, pelo TSE,
em decisão que ainda não transitou em julgado, por
haver recorrido ao Supremo Tribunal Federal, o que
me permitiu continuar candidato e ser reeleito pelo
povo paraibano, por cerca de meio milhão de votos.

É indispensável que a verdade dos fatos chegue, à


opinião pública, para que não haja injustiça de um
prejulgamento.

Desde que a Gráfica do Senado foi criada, o Senado


instituiu, para os senadores, uma quota de
publicações que, de um modo geral, sempre foi
utilizada. Mais recentemente, o presidente Mauro
Benevides baixou as instruções sobre o uso da gráfica,
atualizando as normas especiais, com força de lei, que
regem a matéria. Surgiram, então, as novas tabelas
de preços e o valor das quotas dos senadores,
incluindo os cartões de Natal e os calendários de Ano
459
Novo.

Desde meu primeiro mandato de senador, em 1979,


independentemente de eleição, imprimi e distribui
cartões de Natal e calendários de Ano Novo, com as
mesmas características, como consta dos autos do
meu processo. Aliás, a grande maioria dos senadores
sempre agiu do mesmo modo.

Em dezembro de 1993, os calendários que mandei


imprimir nada tinham a ver com a eleição do ano
seguinte, limitando-se a uma mensagem de Ano
Novo, dirigida, inclusive, aos brasileiros, face à minha
condição de presidente do Senado, nos seguintes
termos:

'Que 1994 seja um marco na vida dos brasileiros,


sobretudo dos mais pobres que são a imensa maioria
de nossa população.

Que Deus nos aponte os caminhos para a saída da


grave crise econômica e social que leva, cada dia
mais, a miséria e a fome aos lares de milhões e
milhões de pessoas carentes.

É tempo de servir, e não de servir-se'.

Por isso mesmo, dezenas e dezenas de calendários


foram enviados a pessoas dos vários estados, que
mantinham correspondência comigo. Entretanto, o
subprocurador Eleitoral da Paraíba afirmou que teria
havido abuso de poder político, face ao disposto no
art. 45, II da Lei Eleitoral, que veda a candidato e
partido 'receber, direta ou indiretamente doação em
dinheiro ou estimável em dinheiro, inclusive através
de publicidade de qualquer espécie, procedente de
460
órgão da administração pública.'

Ora, esse argumento não pode me atingir, pois, em


dezembro de 1993, quando os calendários foram
impressos, não era candidato. A cúpula do PMDB da
Paraíba, nessa época, queria que eu fosse candidato a
candidato a governador.

Pois bem, em 11 de março de 1994, já impugnada a


minha candidatura no TRE, lancei um manifesto aos
paraibanos, desistindo da indicação do meu nome
como eventual candidato a governador, colocando-me
à disposição do MPDMB, como candidato ao Senado,
o que só ocorreu em 29 de maio de 1994, na
Convenção Regional do partido, quando nenhum
calendário foi distribuído na Paraíba.

Portanto, os calendários não continham qualquer


propaganda eleitoral, até porque se isso fosse o meu
propósito a mensagem seria referente a governador
do estado que, na ocasião, era o cargo que os meus
companheiros me reservavam.

Resta-me, agora, esperar e confiar na Justiça do meu


país, que certamente haverá de descobrir onde está a
verdade.

Enfim, a opinião pública pode até achar que essa


prática de imprimir cartões de Natal e calendários de
Ano Novo, na gráfica do Senado, não é certa. A
imprensa pode até criticá-la, duramente. Não seria,
porém, justo que um procedimento legal, por um
lamentável equívoco, pudesse justificar a cassação do
registro de uma candidatura, às vésperas das eleições

461
e, agora, vitoriosa nas urnas.183

Afinal, espero e confio que o PMDB consiga fazer uma


grande aliança com outros partidos, não só para
ampliar a sustentação popular de Antônio Mariz e de
toda a chapa majoritária e proporcional, mas,
também, para elaborarmos juntos, o grande Projeto
de uma nova Paraíba.’

Lamentavelmente, o Supremo Tribunal Federal, como


acentuei logo após a sua decisão, em face da velharia
processual do Recurso Extraordinário, por maioria de
votos, dele não tomou conhecimento, sob o
argumento de que não se tratava de flagrante
agressão à norma constitucional, apesar da ofensa à
coisa julgada, já que o recurso ao TSE foi considerado
intempestivo pelo próprio relator da matéria.

Portanto, o STF não julgou o mérito da questão. Se o


tivesse feito, não resta a menor dúvida de que
reformaria o acórdão do Tribunal Superior Eleitoral,
não só pela grande possibilidade de êxito, da
preliminar de ofensa à coisa julgada (o Subprocurador
Eleitoral, junto ao TER da Paraíba, havia assinado o
acórdão, tomando assim conhecimento da decisão
local, só recorrendo, entretanto, após mais de quinze
dias, quando o prazo que a lei lhe assinalava era
apenas de três), mas, também, porque, certamente, a
própria matéria de fato, melhor examinada, deixaria
claro que, ao imprimir e distribuir os calendários, nem
sequer era candidato e não fiz qualquer propaganda
eleitoral.

Sr. Presidente, Sras. e Srs. Senadores, por oportuno,

183
Jornal O GLOBO, edição de 29.11.1994, p. 6.
462
convém lembrar que, salvo no caso de ofensas à
Constituição, as decisões do TSE são irrecorríveis, o
que põe, gravemente, em risco, os direitos das partes,
sobretudo quando se trata, como era a hipótese, de
impugnação de registro de diploma de candidato ou
de mandato eletivo, com consequente inelegibilidade
por três anos.

Por isso mesmo, além do projeto de anistia aos


candidatos às eleições de 1994, processados ou
condenados, por publicações na Gráfica do Senado,
afinal aprovado pelas duas Casas do Congresso
Nacional e sancionado pelo Sr. Presidente da
República (Lei n. 8.985, de 1995), foram apresentados,
no Senado, dois projetos de lei: um, incluindo a Ação
Rescisória na competência do TSE, nos casos de
impugnação de registro, de diploma de candidatos ou
de impugnação de mandato, com consequente
inelegibilidade, e outro, que institui a Ação de
Descumprimento de Princípios Fundamentais, de
competência do Supremo Tribunal Federal, ambos
para evitar que futuras injustiças possam ocorrer,
inapelavelmente.

Sr. Presidente, Sras. e Srs. Senadores, ao longo de todo


o período em que o meu mandato de Senador esteve
ameaçado, o apoio e a solidariedade que recebi, não
apenas da Paraíba, que me conhecendo como me
conhece, se levantou numa verdadeira revolta cívica,
desde o primeiro momento, mas de todo o País,
apesar da sanha demolidora de fortes segmentos da
mídia, sensibilizaram-me profundamente,
fortalecendo o meu espírito e retemperando o meu
caráter, para que pudesse aguardar, com a
consciência tranquila, no seio de minha família e dos
meus amigos, a justiça de Deus e dos homens.
463
Mas nessa fase de luta sem trégua contra essa
injustiça (havia uma imensa desproporção entre o ato
de que me acusavam, e a pena que pretendiam me
impor), recebi também o apoio de corajosos e
brilhantes jornalistas e escritores, em nível nacional,
como Saulo Ramos, Gerardo Melo Mourão, Tarcísio
Holanda, João Emílio Falcão, Ricardo Lessa, Carlos
Chagas, Hélio Fernandes, Ari Cunha, Josemar Dantas,
Rui Fabiano, Vicente Limongi Neto, Ives Gandra, sem
esquecer os paraibanos Nelson Coelho, Paulo Santos,
Severino Ramos, Hélio Zenaide, Francisco Pereira
Nóbrega, Luiz Augusto Crispim, Marconi Ferreira,
Djacy Andrade, Ignácio de Aragão, Mário Araújo Filho,
Marcondes Gadelha, Geraldo Beltrão, Agnaldo
Almeida, Marco Tavares, Carlos Pessoa de Aquino,
Gonzaga Rodrigues e Nonato Guedes.

Sr. Presidente, Sras. e Srs. Senadores, ao falar na


imprensa, não posso olvidar, por exemplo, o artigo de
Ricardo Lessa, publicado no Correio da Paraíba e no
Correio Braziliense, que lhe valeu uma demissão
sumária de um jornal da grande imprensa do País. É
que ele, que fora escolhido para me acompanhar na
campanha eleitoral da Paraíba em 1994, logo após a
decisão do TSE, com a missão específica de fazer uma
investigação sobre minha vida, segundo revelou à
pessoa de minha intimidade, ficara tão surpreendido
com o que encontrou a meu respeito, na Paraíba, que,
além da reportagem divulgada que muito me honrou,
resolveu fazer um artigo, para relatar a verdade dos
fatos. Entretanto, o jornal que, sem dúvida, queria
uma matéria contrária, não só não publicou o seu
artigo, como o puniu com uma demissão arbitrária e
injusta, pela sua divulgação em outros órgãos da
imprensa.

464
Numa homenagem a esse extraordinário jornalista,
transcrevo seu artigo:

‘Procura-se um Coronel’

Parti do Rio de Janeiro, armando da santa fúria de


caça-corruptos, à procura de um típico coronel
nordestino, com seus bigodões pintados, fazendas,
casas de praia, carros luxuosos, filhos empoleirados
em cargos públicos. Para minha decepção, o que
encontrei foi um preconceito.

Minha reportagem já tinha até título: O Coronel de


Bananeiras, origem da família de Humberto Lucena.
Parti então para descobrir as propriedades do suposto
coronel naquele rincão do Brejo paraibano. As
informações dos adversários políticos de Lucena me
desestimularam.

‘Não há nada’, disseram, ‘ele não tem fazenda lá, ‘vai


perder a viagem’.

Então, cadê a casa de praia? A mansão da cidade? –


Ninguém soube me dizer. E os filhos?

A Lisle, ex-namorada de Itamar, ainda não comprou o


fusca que bateu e anda a pé. E os outros? Levam vida
de classe média. Não encontrei nenhum jagunço
yuppie. Ao contrário, o que pude observar foi que até
adversários políticos, mesmo no tradicional clima de
disputa renhida das eleições nordestinas, saíram a
público para defender a honestidade do senador.
Muitos eleitores paraibanos, que não iam votar no
senador, indignados com a cassação, que
consideraram indevida, resolveram mudar seu voto.

465
Ainda não estava totalmente convencido. Parti, então,
ao encontro do Presidente do Congresso, condenado
pela impressão de calendários eleitorais. Estava
enfurnado nos municípios mais distantes da capital,
quase na fronteira com Pernambuco e Ceará. Atitude
suspeita. Decidi ir lá para ver como ele faz campanha.
Encontrei o velho político de 65 anos, 40 deles como
parlamentar, filho de um telegrafista e neto de
político, subindo em improvisados palanques para
repetir aos eleitores que tinha sofrido uma injustiça e
que sempre se dedicou à Paraíba. Em Desterro,
Imaculada, Água Branca, Juru e Princesa Isabel,
cidades paupérrimas do sudoeste paraibano – onde a
professora para a aula quando chove, para mostrar
aos alunos o que é – contou que o que mais se
orgulhava em sua carreira era ter ocupado a liderança
da oposição durante vários anos no regime militar.

De fato, comecei a lembrar, Lucena esteve sempre


junto de Ulysses Guimarães. Não votou com seu
colega de PSD, quando o partido decidiu ‘eleger’
Castelo Branco em 1964. Visitou presos políticos.
Botou na Constituição a norma que prevê a anulação
da nomeação do funcionário público e a punição do
nomeante, se não for por concurso público, e por aí
vai.

Então, cadê o nepotista? Cadê o estereótipo? Não


encontrei. E contrariar o estereótipo é sempre mais
complicado. Já senti na pele isso uma vez quando
escrevi que o maior latifundiário do Acre era a favor
de Chico Mendes. Era um latifundiário de papel, tão
endividado no Incra que vivia num quase barraco de
teto de zinco e paredes de madeira. Os que
conspiraram contra Chico Mendes eram novos
proprietários vindos do Sul, com terras de dimensões
466
modestas para os padrões do Acre. Mas ninguém
entendeu nada e fui condenado pelo comitê central
dos ecológicos reunidos.

No caso Lucena, me convenci que estava diante de um


equívoco legal e jornalístico. Se a sociedade considera
errado o Senado imprimir calendários com mensagens
de Boas-Festas, precisa mudar as regras de
funcionamento do Congresso Nacional. Depois disso,
pode cobrar dos parlamentares obediência às novas
regras, mais condizentes, talvez, com a nova ética na
política. Antes de mudar o regulamento do Congresso,
condenar alguém que se comportou dentro das
normas é um apressamento injustificado, ilegal e
antiético.

No mínimo, o Tribunal Superior Eleitoral, tão cioso na


distribuição de minutos e segundos de oportunidade
política, deveria ser mais equânime ao julgar um
político, que disputa com outros, igualmente
processados na mesma corte, a chance de voltar para
o Senador. Por que não julgar os outros ao mesmo
tempo? Por que não julgar juntamente os outros 64
senadores que fizeram calendários, muitos disputando
eleições nos seus Estados?

Por que o escolhido foi o Presidente do Legislativo?


Seria uma vingança tardia de alguns juízes nomeados
pelo ex-Presidente Collor, cujo processo de
impeachment foi iniciado com a assinatura de Lucena,
entre outros? Aliás, o senador que disputa a vaga com
Lucena pertenceu aos quadros do PRN, quando Collor
estava na ribalta. Depois, passou por seis outros
partidos. Está sendo acusado de abuso do poder
econômico. Quando entrou para o Senado, tinha
quatro concessionárias de automóveis; hoje tem nove.
467
Não era o caso de uma investigação tão eficiente
quanto a que foi feita no caso da Gráfica pelo TSE?
Pelo menos como igualdade de oportunidades.

Afinal, nenhum adversário político fez um trabalho


tão bom para atacar a honorabilidade de um
candidato quanto o TSE. Quem vai julgar se isso é
interferência indevida ou não é o Supremo Tribunal
Federal. Quem vai pagar o prejuízo causado ao
Presidente do Senado, encarregado de passar a faixa
ao próximo Presidente da República? Só o tribunal
divino, possivelmente.’

Sr. Presidente, Sras. e Srs. Senadores, na honra de


confessar a minha gratidão não posso omitir o
trabalho dedicado e competente dos meus ilustres
advogados junto aos Tribunais Superiores, Raphael
Mayer, Saulo Ramos e Luiz Carlos Betiol e, na primeira
instância, Solon Benevides e Roosevelt Vita.

Sr. Presidente, Sras. e Srs. Senadores, antes de


terminar, chamo a atenção de V. Exas., para um
aspecto final que tem a ver com o projeto de anistia
aprovado pelo Congresso e sancionado pelo Senhor
Presidente da República. Ao contrário do que
amplamente se divulgou e se divulga, a anistia foi
sugerida, não apenas para que a justiça contra mim
não se consumasse, mas para evitar que outros
companheiros, mais de uma dezena de senadores e
deputados, governadores e vice-governadores
também processados, fossem também condenados,
por terem feito publicações na Gráfica, igualmente
sem qualquer mensagem de propaganda eleitoral.

Sr. Presidente, Sras. e Srs. Senadores, esta é a história


da luta pela preservação do meu mandato de Senador
468
reeleito pela Paraíba.

O Judiciário, o Legislativo e o Executivo cumpriram as


suas atribuições constitucionais.

Afinal, volto o meu pensamento para Deus, a quem,


desde a primeira hora, entreguei o meu destino
pessoal e político. Ele me deu força necessária, para
manter o equilíbrio emocional e, sobretudo, a fé na
vitória, que não foi minha, mas do generoso povo
paraibano.

Senhor Presidente, nos termos regimentais, requeiro a


V. Exa. que autorize a publicação no Diário do
Congresso, como partes integrantes deste
pronunciamento, os Documentos anexos de ns. 1, 2, 3
e 4.184

Em maio de 1995, o juiz eleitoral de São José dos Campos


proferia uma decisão no mínimo, inusitada: anistiou um
comerciante que se recusou a trabalhar nas eleições municipais de
1992. A fundamentação jurídica da sentença? A mesma que anistiou
candidatos nas eleições de 1994. Era um protesto formal contra a
“Lei Humberto Lucena” que, segundo ele, abriu um precedente para
que outras pessoas pudessem ser anistiadas: “Eticamente, não há
como impor ao comum dos mortais qualquer sanção penal,
enquanto não se declarar inconstitucional e afrontosa à Nação
referida Lei.185

Puro ativismo judicial!

184
Discurso publicado no DIÁRIO DO CONGRESSO NACIONAL, Sessão II, de 13 de
maio de 1995.
185
Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, edição de 18.05.1995, p. 7-3.
469
Depois de anistiar Humberto Lucena, deputados e
senadores buscaram se redimir perante a opinião pública:
propuseram um perdão para eleitores que não votaram nas últimas
eleições. Foram dois Projetos de Lei - o de nº 68, proposto pelo
senador Júlio Campos; o segundo, de número 534, de autoria do
deputado federal paraibano, José Luiz Clerot.186 Ambos anistiavam o
débito de eleitores que não tinham votado nas eleições 15 de

186
O referido Projeto de Lei, continha as seguintes justificativas:

Eis o seu inteiro teor: “PROJETO DE LEI N. 534, DE 1995


(Do Sr. José Luiz Clerot)

Anistia débito dos eleitores que deixaram de votar nas eleições de 3 de


outubro e 15 de novembro de 1992 e 1994.

O Congresso Nacional decreta:

Artigo 1º – Ficam anistiados os débitos dos eleitores que deixaram de


votar nas eleições realizadas em 03 de outubro a 15 de novembro, nos anos de
1992 e 1994.

Art. 2º – Esta lei entra em vigor na data de sua publicação, revogadas as


disposições em contrário.
JUSTIFICATIVA

São inúmeros os eleitores que deixaram de vota rnas eleições de 03 de


outubro e 15 de novembro de 1992 e 1993, em virtude dos mais variados motivos e,
por isso, estão sujeitos ao pagamento de multas. Sem essa satisfação legal,
milhares de eleitores não poderão regularizar suas situações perante a Justiça
Eleitoral.

A quase totalidade dos eleitores em falta com a Justiça fazem parte das
camadas menos favorecidas da sociedade, notadamente do meio rural, não pode
arcar com o pagamento das multas impostas pela legislação em vigor.

Daí a necessidade de que se conceda, segundo a tradição do nosso direito,


anistia aos débitos das eleições de 1992 e 1994.
470
novembro de 1994. O Projeto de autoria do parlamentar paraibano
era mais abrangente, pois incluía as eleições de 03 de outubro de
1992. O histórico ajudava, a Lei nº 8.744, de 09 de dezembro de
1993 havia anistiado débitos dos eleitores que deixaram de votar no
plebiscito de 21 de abril de 1993.

Populista e bastante criativa, a ação dos parlamentares

Por oportuno, registre-se que a última anistia de débitos eleitorais foi


concedida através de LEI 8.744, DE 09/12/1993 e relativa aos eleitores que
deixaram de votar no plebiscito realizado em 21/04/93.

A aprovação deste projeto abre a oportunidade de milhares de brasileiros,


livrando-se de pesadas multas, regularizarem suas situações perante a Justiça
Eleitoral.

Plenário Ulysses Guimarães, 30 de maio de 1993.

Deputado José Luiz Clerot”

O Projeto de Lei foi exitoso e transformou-se na Lei n. 9.274, de maio de


1996:

LEI Nº 9.274, DE 7 DE MAIO DE 1996.

Dispõe sobre anistia relativamente às eleições de 3 de outubro e de 15 de


novembro dos anos de 1992 e 1994.

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional


decreta e eu sanciono a seguinte Lei:

Art. 1º Ficam anistiados os débitos dos eleitores que deixaram de votar


nas eleições de 3 de outubro e 15 de novembro, dos anos de 1992 e 1994, bem
como, nas mesmas eleições, dos membros das Mesas Receptoras que deixaram de
atender à convocação da Justiça Eleitoral.

471
procurava amenizar, na opinião pública, o casuísmo da “Lei
Humberto Lucena”, tentando convencer a população de que, no
Brasil, a igualdade de todos perante a Lei, era uma realidade!

Em dezembro de 1999, durante o segundo mandato de


presidente da República, Fernando Henrique Cardoso cometeria
mais uma incoerência: vetaria integralmente o Projeto de Lei que
anistiava multas aplicadas pela Justiça Eleitoral nas eleições de 1996
e 1998, por orientação do seu ministro da Justiça, o jurista José
Carlos Dias. Nas razões de veto, o argumento era de que a “anistia
contrariava o interesse publico e estimulava a impunidade”.

Entre a coerência acadêmica do sociólogo intelectual e a


dura realidade do exercício do poder político havia uma distância
evidente, que a “vã filosofia” do simples cidadão-eleitor jamais
poderia alcançar!

* * *

Parágrafo único. A anistia a que se refere este artigo aplica-se aos fatos
definidos como crime no art. 344 da Lei n° 4.737, de 15 de julho de 1965 - Código
Eleitoral.

Art. 2° Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Art. 3° Revogam-se as disposições em contrários.

Brasília, 7 de maio de 1996; 175º da Independência e 108º da República.

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO


Milton Seligman

(DIÁRIO DO CONGRESSO NACIONAL, edição de 8 de agosto de 1995,


seção I, p. 16.573)

472
Foto: Chapas oficiais para as eleições de 1994. O apoio de Mariz a FHC
exigiu do candidato a presidente a sanção à “Lei Humberto Lucena”. Fonte:
Jornal CORREIO DA PARAÍBA, edição de 1994.

473
Foto: O candidato a presidente, FHC, recomenda voto a Mariz. Fonte:
Jornal CORREIO DA PARAÍBA, capa da edição de setembro de 1994.

474
Foto: A “dobradinha”, FHC-Mariz, garantiu a sanção à Lei de anistia. Fonte:
Jornal O NORTE, edição de 1994.

475
Foto: Humberto e Ronaldo, no Senado. O senador Ney Suassuna e o
presidente do PMDB, Luiz Henrique, observam. Fonte: Jornal A UNIÃO,
edição de 02.02.1995, p. 6.

476
CAPÍTULO 5

477
A AÇÃO RESCISÓRIA ELEITORAL
“Fruto de uma 'lei de ocasião', para referendar
um casuísmo”; “uma maquinação jurídica para
retalhar a unidade do sistema eleitoral”; uma
“invencionice particular, recoberta com
roupagem bizarra” (Fávila Ribeiro)

A anistia a deputados e senadores que haviam feito uso de


gráfica do Senado - nas mesmas circunstâncias de Humberto Lucena
-, não era uma unanimidade, nem mesmo entre os membros do
Congresso Nacional. A decisão de investir em um novo Projeto de
Lei ocorreu após intensos debates. O presidente da Câmara dos
Deputados, Inocêncio Oliveira, havia mandado um recado informal
ao Senado: a aprovação da anistia, na Câmara, estava condicionada
à garantia de que o presidente Itamar Franco o sancionasse.
Pressionado por senadores, Itamar se esquivou.187 Extremamente
impopular, o Projeto de Lei de anistia sofria a execração pública e,
por isso, se mostrava fadado ao fracasso.

Para não correr riscos, os congressistas adotaram um “Plano


B” - o Projeto de Lei, de nº 90/1994 -, que introduzia uma novidade
no Direito Eleitoral brasileiro: a Ação Rescisória Eleitoral. A ideia –
surgida após as reações negativas de alguns deputados federais à Lei
de anistia - intencionava dar uma sobrevida de 120 dias a Lucena e
foi acolhida pela Mesa do Senado 24 horas depois der ter sido
apresentado o Projeto de anistia para salvar Humberto e outros 16
parlamentares. Consultado sobre o assunto, o presidente Itamar
Franco aconselhou o grupo de parlamentares que apoiava Lucena a
apostar todas as fichas nessa segunda alternativa.

187
Jornal O GLOBO, edição de 07.12.1994, p. 4.
478
O autor do Projeto - o senador Ney Maranhão, filiado ao
Partido da Reconstrução Nacional/PRN de Pernambuco -, estava tão
“enrolado” com a Justiça Eleitoral do seu Estado quanto Lucena com
os calendários. O Movimento pela Ética na Política, liderado pelo
advogado Fernando Matos, e O Centro de Cultura Luiz Freire, uma
organização não governamental, haviam pedido ao TSE e à
procuradoria-geral da República a cassação do registro da
candidatura de Ney Maranhão. A acusação era de que o senador
pernambucano mandara imprimir 1,5 milhão de cadernos escolares,
na Gráfica do Senado, com os dizeres: “Senador de fé – Ney
Maranhão 94”.

Além de salvar a pele de Humberto Lucena, o Projeto de Lei


que criava a Ação Rescisória Eleitoral tentava evitar o chamado
“efeito dominó”: motivados pela decisão do TSE, os Tribunais
Regionais Eleitorais iriam à “caça” de outros parlamentares que
também haviam praticado a mesma conduta que o presidente do
Senado. O Tribunal Regional Eleitoral de Pernambuco, por quatro
votos a um, cassaria o senador Ney Maranhão pelo uso da gráfica
do Senado, depois que o TSE cassou Humberto Lucena, pela
confecção dos calendários.

O Projeto de Lei Complementar nº 90/1994 acrescentava a


alínea “j” ao inciso I do art. 22 do Código Eleitoral de 1965 e conferia
competência originária ao TSE para conhecer e processar a Ação
Rescisória, em casos de inelegibilidades. Eis o inteiro teor do
Projeto:

PROJETO DE LEI NO SENADO Nº 90, DE 1994 –


COMPLEMENTAR

Acrescenta dispositivo ao Código Eleitoral, a fim de


permitir a ação rescisória em casos de
479
inelegibilidades.

O Congresso Nacional decreta:

Art. 1º. Acrescente-se ao inciso I do art. 22 da Lei n.


4.737, de 15 de julho de 1965, alínea j, com a seguinte
redação:
'…...................................................…
.
j) a ação rescisória, nos casos de inelegibilidade,
desde que intentada dentro de 120 (cento e vinte) dias
da decisão irrecorrível, possibilitando-se o exercício do
mandato eletivo até o seu trânsito em julgado.'

Art. 2º. Esta lei entra em vigor na data de sua


publicação, aplicando-se, inclusive, às decisões
havidas até 120 (cento e vinte) dias anteriores a sua
vigência.

Art. 3º. Revogam-se as disposições em contrário.

Justificação

A celeridade do processo eleitoral não permitiu, até


hoje, a existência da ação rescisória, procurando as
partes, na maioria das vezes, obter efeitos
modificativos de julgado através do estreito caminho
dos embargos declaratórios.

Daí o presente projeto, incluindo-se, na competência


do Tribunal Superior Eleitoral, a de processar e julgar,
originariamente, a ação rescisória, nos casos de
inelegibilidade.

Sala das Sessões, 7 de dezembro de 1994. - Ney

480
Maranhão.188

O presidente do TSE, ministro Carlos Mário Velloso, foi o


primeiro a criticar o Projeto de Lei: “ - Isso é o casuísmo dos
casuísmos. A Câmara vai prestar enorme prejuízo à verdade eleitoral
caso aprove o projeto. Quero apelar ao bom senso dos
parlamentares para que não cometam esse erro. A ação rescisória
não combina com o processo eleitoral”, protestou. Velloso lembrou
que a legislação já previa meios jurídicos para os candidatos
recorrerem das sentenças desfavoráveis: “ - Se o recurso contra
cassação de mandatos e impugnação de diplomas chegava a durar
quase dois anos, com a ação rescisória os casos poderão chegar a
quatro anos”, advertiu. O ministro encerrou fazendo um
questionamento: “ - Como punir o parlamentar com a perda de
mandato por decisão da Justiça, se o próprio mandato já acabou”? ,
indagou.189

Os parlamentares não deram ouvidos aos apelos do


presidente do TSE.

No início, o Projeto proposto por Ney Maranhão teve


tramitação rápida, mas depois, com a aprovação da Lei de Anistia
em janeiro de 1995, teve o ritmo diminuído e só voltou a ser
apreciado em 13 de setembro de 1995, na Comissão de Constituição
e Justiça, quando o senador Ronaldo Cunha Lima deu o seu parecer.
Cunha Lima apresentou uma Emenda supressiva, que retirava do
texto original a expressão final contida no art. 1º: “...possibilitando-
se o exercício do mandato eletivo até o seu trânsito em julgado”.
Mesmo sendo um defensor ferrenho e amigo de Humberto Lucena,

188
DIÁRIO DO CONGRESSO NACIONAL, edição de 08.12.1994, p. 8383.
189
Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, edição de 22.12.1995, in Projeto impede cassação
de mandato pela Justiça.
481
Ronaldo estava convencido da inconstitucionalidade parcial do
Projeto de Lei. Em sua opinião, a expressão suprimida prejudicava a
coisa julgada, prevista no art. 5º, XXVI da Constituição Federal, dai a
sua retirada do texto.

A Emenda supressiva procurava compatibilizar o texto do


Projeto de Lei com a Carta Magna, dando ares de
constitucionalidade, juridicidade e regimentalidade ao Projeto,
explicou Ronaldo, durante a defesa oral do seu parecer:

I – RELATÓRIO

A proposição epigrafada objetiva acrescentar


dispositivo à Lei n. 4.737/65 (Código Eleitoral) com o
fim de possibilitar ação rescisória em casos de
inelegibilidades. Nesse sentido, o seu art. 1º dispõe,
aditando dispositivo ao inciso I do art. 22 do Código
Eleitoral, que compete ao Egrégio Tribunal Superior
Eleitoral processar e julgar, originariamente, 'a ação
rescisória, nos casos de inelegibilidade, desde que
intentada dentro de 120 (cento e vinte) dias de
decisão irrecorrível, possibilitando-se o exercício do
mandato eletivo até o seu trânsito em julgado'. Por
seu turno, o art. 2º dispõe sobre a cláusula de
vigência, firmando que os efeitos da lei colimada
serão aplicados, inclusive, às decisões havidas até
cento e vinte dias anteriores à sua vigência.
Finalmente, o art. 3º da iniciativa em tela dispõe
sobre a cláusula revogatória.

Na justificação correspondente registre-se que 'A


celeridade do processo eleitoral não permitiu, até
hoje, a existência de ação rescisória, procurando as
partes, na maioria das vezes, obter efeitos
modificativos de julgado através do estreito caminho
482
dos embargos declaratórios. Daí o presente projeto,
incluindo-se, na competência do Tribunal Superior
Eleitoral, a de processar e julgar, originariamente, a
ação rescisória, nos casos de inelegibilidade'.

Indo a Plenário para apreciação em sessão


extraordinária e regime de urgência, no dia 19 de
janeiro próximo passado, foi proferido parecer
favorável à matéria pelo relator designado em
substituição à Comissão de Constituição, Justiça e
Cidadania, Senador CID SABOIA DE CARVALHO, não
sendo, porém, votada a proposição por falta de
quorum. Incluída na Ordem do Dia de 08 do mês de
março próximo passado, foi aprovado requerimento
de adiamento de votação para que a matéria fosse
reexaminada por esta Comissão.

Cabe a esta Comissão opinar sobre a constituciona-


lidade, juridicidade e regimentalidade da proposição
em apreço, bem como sobre o seu mérito, nos termos
do art. 101, I e II, do Regimento Interno.

É o relatório.
II – VOTO

No que diz respeito à competência para iniciar o


processo legislativo, não há reparos a fazer, uma vez
que a matéria de que se trata compõe o rol daquelas
cuja iniciativa legislativa está prevista no art. 61,
caput, combinado com o art. 48, caput, da
Constituição Federal.

Devemos anotar, de outra parte, que apesar de a Lei


n. 4.737/64 ser, originariamente, lei ordinária,
algumas de suas partes adquiriram força de lei
complementar com a entrada em vigor da
483
Constituição de 05 de outubro de 1988, em
decorrência dos fenômenos da recepção e da novação
das leis. Nesse caso se incluem as que tratam da
competência da Justiça Eleitoral (art. 121, caput, da
C.F.). Por essa razão, o art. 22 da Lei n. 4.737/65 só
pode ser alterado por lei complementar, estando, pois,
o presente projeto de lei, também no tocante a esse
aspecto, plenamente de acordo com o nosso Direito
Constitucional.

Ainda no que diz respeito à constitucionalidade,


devemos frisar que a ação rescisória não se confunde
com o recurso. Com efeito, o inesquecível Ministro
COQUEIJO COSTA, em obra ora revista e atualizada
pelo insigne jurista ROBERTO ROSAS, preleciona sobre
a natureza da ação rescisória:

Tem natureza de ação, e não de recurso, antes do


mais por exclusão e classificação, pois não está
catalogada como recurso e sim como ação; tem prazo
preclusivo muito maior do que o desse, e admite a
produção de prova. Além do mais, impõe petição
inicial e citação, revestida de todos os requisitos
processuais. Instaura outro processo, com nova
relação processual, e, como ação, demanda as
condições desta (admissibilidade no direito objetivo,
pertinência subjetiva e interesse de agir, este
decorrente, na rescisória, do trânsito em julgado da
decisão rescindenda)' (Cf. 'Ação Rescisória', 6ª ed., 1,
Tr. 1993, p. 24).

Sendo assim, a ação rescisória não está abrangida


pela norma inscrita no art. 121, §3º, do Estatuto
Supremo.

No entanto, muito embora concordemos que a


484
instituição de ação rescisória específica para os fins de
desconstituição de sentença que declarou impugnada
candidatura ou mandato eletivo, encontra guarida na
Constituição Federal (uma vez que, conforme ilustrado
acima, ação rescisória não é recurso), estamos
convencido da inconstitucionalidade parcial do
projeto de lei complementar em tela. Ocorre que, a
nosso ver, a expressão final do art. 1º do projeto
'...possibilitando-se o exercício do mandato eletivo até
o seu trânsito em julgado' prejudica a coisa julgada e,
conforme expresso no art. 5º, XXVI, da Carta Magna,
a lei não pode laborar neste sentido.

Esse é o entendimento colhido da lição de JOSÉ


AFONSO DA SILVA, que ensina sobre a matéria em
pauta:

'A proteção constitucional da coisa julgada não


impede, contudo, que a lei preordene regras para a
sua rescisão mediante atividade jurisdicional. Dizendo
que a lei não prejudicará a coisa julgada, quer-se
tutelar esta contra a atuação direta do legislador,
contra-ataque direto da lei. A lei não pode desfazer
(rescindir ou anular ou tornar ineficaz) a coisa
julgada. Mas pode prever licitamente, como o fez o
art. 485 do Código de Processo Civil-CPC, sua rescisão
por meio de ação rescisória' (in 'Curso de Direito
Constitucional Positivo, 5ª edição, Editora Revista dos
Tribunais, 1989, p. 376).

E ocorre que a expressão '...possibilitando-se o


exercício do mandato eletivo até o seu trânsito em
julgado' quer significar que, uma vez proposta a ação
rescisória, fica suspensa a execução da sentença
contestada.

485
Ora, como bem ensina JOSÉ AFONSO DA SILVA, na
lição supratranscrita, o legislador não pode atuar
diretamente sobre a coisa julgada, a lei não pode
atacá-la diretamente e, conforme entendemos, a
expressão final do art. 1º da proposição traz em si
esse vício na medida em que implica a suspensão da
execução da sentença mediante a sImples propositura
da ação.

Ademais, a expressão em pauta infringe, também, o


princípio da divisão funcional do Poder, consagrado
em nossa Lei Maior pelos arts. 2º, 44, 76 e 92,
quando, por ato legislativo, se exerce atribuição que é
precípua do Poder Judiciário, a de conceder ou não
suspensão de decisão judiciária.

Não obstante, o afastamento da expressão acima


transcrita sanaria a inconstitucionalidade apontada,
ficando o projeto em harmonia com a Constituição
Federal. É o que estamos propondo mediante a
emenda supressiva indicada ao final deste parecer.

No que diz respeito à juridicidade e a


regimentalidade, parece-nos que não há óbices à livre
tramitação da proposição em pauta.

Quanto ao mérito, entendemos que o projeto tem


inegável relevância porquanto pretende conceder
mais efetividade ao direito à prestação jurisdicional.
Com efeito, como é sabido, o fundamento da ação
rescisória é exatamente o vício, formal ou substancial,
da sentença que se pretende rescindir. Nas palavras
de ANTÔNIO CLÁUDIO DA COSTA MACHADO, em
recente e festejado trabalho:

'O fundamento jurídico da rescindibilidade é o vício


486
formal ou substancial da sentença como ato jurídico.
Politicamente falando, o seu fundamento é a
necessidade de reparar injustiças contidas em
decisões transitadas em julgado e prover a
reestabilização das relações jurídicas' (Cf. 'Código de
Processo Civil Interpretado'. Ed. Saraiva, 1993, p. 418).
Dessa forma, o projeto em tela é de todo louvável e
meritório.

Ante todo exposto, o nosso voto é pela


constitucionalidade, juridicidade e regimentalidade do
Projeto de Lei do Senado n. 90, de 1994 –
Complementar, e, quanto ao seu mérito, pela
aprovação, com a seguinte emenda:

Emenda - CCJ
Suprima-se a expressão final do art. 1º do projeto
'...possibilitando-se o exercício do mandato eletivo até
o seu trânsito em julgado.'

Em 12 de dezembro de 95, o plenário do Senado aprovou o


Parecer n° 911/95-CCJ, proferido por Ronaldo e julgou prejudicado o
Projeto de Lei da Câmara.

Na Câmara dos Deputados, em sessão de 17 de abril de


1996, o Projeto de Lei Complementar nº 90/1994, sofreu as mesmas
críticas assacadas ao Projeto de Lei de anistia. O Partido dos
Trabalhadores e o Partido Comunista do Brasil denunciaram a
conotação personalista da proposta, com base em três argumentos:
a restrição da Ação Rescisória Eleitoral às situações de
inelegibilidades; a previsão de retroação das decisões judiciais para
alcançar situações passadas e, finalmente, a preservação do
mandato até o trânsito em julgado da decisão o que, na prática,
dava à ação rescisória um efeito suspensivo, que só era próprio dos
487
recursos eleitorais. O líder do PT, o deputado federal Marcelo Deda,
de Sergipe, acusou o casuísmo e explicou porque o seu partido era
contrário à propositura:

Sr. Presidente, quando da votação desta matéria aqui


na Câmara, o Partido dos Trabalhadores teve
oportunidade de manifestar sua divergência e de
questionar o conteúdo do projeto que, muito mais do
que resolver o problema da legislação eleitoral ou do
processo eleitoral, buscava resolver um caso
particular.

Buscamos, Sr. Presidente – e a Casa é testemunha -,


através de conversas com as Lideranças e com o
autor, uma redação que resguardasse a Casa e
solucionasse a omissão, se é que houve omissão, do
Direito Eleitoral, que não contemplou a ação
rescisória, de forma que fosse uma contribuição
qualificada ao aperfeiçoamento do processo eleitoral,
não colocasse em risco a respeitabilidade da Casa e
não transformasse a aprovação de um projeto em
mais um instrumento para a hostilização da mídia
contra a Câmara dos Deputados, contra o Congresso
Nacional, acusando-nos de casuísmo.

O projeto, Sr. Presidente, busca introduzir a ação


rescisória nos casos de inelegibilidade. Repare V. Exa.
como é reduzido o espaço que o projeto de lei quer
regrar: não quer introduzir o instituto da ação
rescisória no processo eleitoral como um todo, mas
apenas nos casos de inelegibilidade. E o que é pior:
não se estabelece nenhuma condição. Ao contrário, o
tratamento que o legislador do Código de Processo
Civil deu à ação rescisória estabeleceu as condições
em que ela seria cabível, entre as quais o erro de fato

488
e a comprovação de que o juiz foi, por alguma
maneira, parcial em seu julgamento. Não há o
estabelecimento de condições para que se possa
requerer a ação rescisória.

Além do mais, Sr. Presidente, a ação rescisória não é


um recurso, mas uma ação independente e, como tal,
é inaceitável, é contraditório ao Sistema Jurídico
Nacional que haja uma ação com efeito suspensivo,
que é uma característica dos recursos, jamais de uma
ação independente.

Portanto, Sr. Presidente, nossa posição é de extrema


preocupação. Entendemos as razões do autor e
achamos que elas têm sua justificação, mas, que não
se produza aqui mais um diploma que possa vir a ser
atacado como casuístico, uma legislação que busca
resolver um caso particular. Ademais, o art. 2º
permite que a lei retroaja para decisões tomadas até
120 dias anteriores a sua vigência.
Nesse sentido, Sr. Presidente, achamos que seria um
absurdo que esta Casa aprovasse tal legislação. O PT
vota contra, Sr. Presidente.

Os deputados contrários ao Projeto de Lei apresentaram


quatro requerimentos de destaques para votação em separado. O
objetivo era suprimir algumas expressões do texto original.

Incorporando o espírito de corpo do Poder Legislativo, o


representante do Pará, deputado Gerson Peres, contraditou o
discurso petista:

Sr. Presidente. Quero contestar a abordagem do


eminente Deputado Marcelo Deda para esclarecer ao
Plenário sobre o seguinte: a tese desse projeto de lei
489
tem fundamento na Constituição Federal. Quem cassa
mandato popular é a instituição, o Congresso. Apenas
os Deputados podem cassar os Deputados; apenas os
Senadores podem cassar os Senadores. Queremos
cumprir o preceito da Constituição que começa no art.
55. Os processos judiciais, mesmo quando terminam
seu julgamento, têm de vir ao Plenário para ser ou
não homologados. Caso não o sejam, o processo
paralisa, é sustado. Esse é o princípio da rescisória,
que nos leva a aprovar esse projeto.

Em absoluto, estamos legislando sobre casuísmo:


queremos reajustar as regras com relação à
independência dos Poderes. Não nos imiscuímos nos
julgamentos dos juízes. É o Pleno dos tribunais que
pune os juízes de acordo com a Lei Orgânica da
Magistratura. Portanto, não podemos admitir que o
Tribunal Superior Eleitoral ou o Supremo Tribunal
Federal casse o mandato de Deputados eleitos pelo
povo. Essa é a tese dessa lei, necessária para
regulamentar o princípio fundamental e inicial da
independência entre os Poderes.

O Bloco PPB\PL, baseado nesse princípio, recomenda


aos Deputados votarem ‘sim’, aprovando o Projeto de
Lei n. 75-A.

Apesar das resistências dos deputados do PT e do PCB, o


Projeto Ney Maranhão foi aprovado pelo folgado placar de 321 X 80
votos. Houve 12 abstenções. Todas as emendas de destaques de
voto em separado foram derrotadas. E mais: foi incluída a redação
que havia sido suprimida pela Emenda Cunha Lima, proposta no
Senado.

490
Nove dos doze deputados federais paraibanos estavam
presentes à sessão. Todos eles votaram a favor do Projeto: Adauto
Pereira (PFL); Armando Abílio, Cássio Cunha Lima, Gilvan Freire,
Ivandro Cunha Lima, José Luiz Clerot e Roberto Paulino, do PMDB;
Enivaldo Ribeiro, do PPB e, Wilson Leite Braga, do PDT.

O presidente do TSE não conseguia absorver mais um


casuísmo. Na sua ótica, a Lei Complementar nº 86/1996, que criou a
Ação Rescisória Eleitoral, instaurava a impunidade nos casos de
crime eleitoral. Inconformado, Carlos Mário Velloso enviou ofício ao
ministro da Justiça, Nelson Jobim. Tentava convencer o presidente
da República a vetar o Projeto de Lei que cognominara de “Projeto
impunidade”.190

Para o Jornal FOLHA DE SÃO PAULO a Ação Rescisória


Eleitoral era um escárnio, porque possibilitava retardar os processos
de cassação de parlamentares condenados por crime eleitoral até
depois do final de seus mandatos, o que ofendia a lógica do
direito.191

Dois dias depois de aprovado no Parlamento, o Projeto de


Lei foi enviado à presidência da República, que não se manifestou no
prazo constitucional previsto para a sanção. À moda de Pilatos,
Fernando Henrique Cardoso “lavou as mãos”: nem vetou, nem
anuiu, preferiu o silêncio! O presidente do Congresso, senador
Humberto Lucena, também se absteve, por motivos óbvios! Sobrou
para o vice-presidente do Senado, senador Júlio Campos - que havia
autorizado a impressão gráfica dos calendários de Humberto Lucena
-, concluir as fases finais de sanção e promulgação. Campos não se
fez de rogado: em 14 de maio de 1996, sancionou e promulgou a Lei
190
Idem.
191
Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, edição de 24.12.1995.
491
Complementar nº 86, que tem a seguinte redação:

Lei Complementar n. 86, de 14 de maio de 1995

Acrescenta dispositivo ao Código Eleitoral, a fim de


permitir a ação rescisória em casos de
inelegibilidades.

O Congresso Nacional decreta:

Art. 1º Acrescente-se ao inciso I do art. 22 da Lei n.


4.737, de 15 de julho de 1996, a seguinte alínea 'j':

j) a ação rescisória, nos casos de inelegibilidade,


desde que intentada dentro do prazo de cento e vinte
dias de decisão irrecorrível, possibilitando-se o
exercício do mandato eletivo até o seu trânsito em
julgado.'

Art. 2º Esta Lei entra em vigor na data de sua


publicação, aplicando-se, inclusive, às decisões
havidas até cento e vinte dias anteriores á sua
vigência.

Art. 3º Revogam-se as disposições em contrário.


Senado Federal, em 14 de maio de 1996.

Senador JÚLIO CAMPOS


Segundo Vice-Presidente do Senado Federal no exercício da presidência.

O objetivo das lideranças partidárias havia sido alcançado:


reduzir os poderes do TSE quando da apreciação de cassações de
candidatos. Com o novo instituto, “outros vexames”, semelhantes ao
de Humberto Lucena, não se repetiriam.

492
A restrição da Ação Rescisória Eleitoral aos casos de
declaração de inelegibilidade e a previsão de aplicação retroativa a
casos transitados em julgado “até cento e vinte dias anteriores à sua
vigência” evidenciavam o caráter casuístico da proposta.

* * *

493
INCONSTITUCIONAL?
Repetindo a “Lei Humberto Lucena”,192 a Lei Complementar
nº 86 foi alvo de críticas. E elas partiram principalmente dos
estudiosos da Ciência do Direito Eleitoral: Pedro Henrique Távora
Niess, Carlos Mário Velloso, Torquato Jardim, Tito Costa, Fávila
Ribeiro…

Pedro Henrique Távora Niess defendeu a incompatibilidade


da ação com o Direito Eleitoral, cujo ramo do Direito necessita da
“absoluta indestrutibilidade da coisa julgada”, em razão da
celeridade do processo eleitoral e dos mandatos que têm prazo
certo. Niess apontou a inconstitucionalidade da Lei Complementar
n. 86/96 por vício de iniciativa e, ao buscar beneficiar pessoa
determinada – no caso, Humberto Lucena -, o legislador teria
atuado com desvio de poder.

O professor Fávila Ribeiro - um dos maiores cultores do


Direito Eleitoral, no Brasil -, deu vários qualificativos à Lei
Complementar nº 86/1996:

fruto de uma 'lei de ocasião', para referendar um


casuísmo”; “uma maquinação jurídica para retalhar a
unidade do sistema eleitoral”; uma “invencionice
particular, recoberta com roupagem bizarra”; “uma
repescagem de candidato que se excedeu em abuso
de poder” e, finalmente, uma “ofensiva do legislador,
em flagrante abuso de poder, com o fim de
desconstituir um julgado que aplicou sanção de
inelegibilidade.

192
NIESS, Pedro Henrique Távora. Ação Rescisória Eleitoral. Belo Horizonte: Ed. Del
Rey, 1997, p. 13/51.
494
E deu sua impressão sobre o instituto da Ação
Rescisória Eleitoral:

Tudo parece demonstrar haver sido instalado pelo art.


1º da Lei Complementar n. 86, de 15 de maio de 1996,
a mais acintosa investida para romper a estrutura
normativa delineada na Constituição Federal
destinada a enfrentar os abusos de poder, ao
acrescentar no art. 22, I, do vigente Código Eleitoral,
norma que ficou alojado na alínea j, incluindo no
elenco do Tribunal Superior Eleitoral, competência
para processar e julgar originariamente:

'Art. 22).................................................…

j) a ação rescisória, nos casos de inelegibilidade,


desde que intentada dentro do prazo de cento e vinte
dias de decisão irrecorrível, possibilitando-se o
exercício de mandato eletivo até o seu trânsito em
julgado.'

Para mais acentuar a extravagância que caracteriza


esse diploma legal, ainda mais desfigurado resultou
em retroceder a sua eficácia a 120 dias que
precederam à data de sua vigência, tomando evidente
feição casuística.

Pretendeu-se, simples e ostensivamente, inviabilizar


as decisões definitivas emanadas da jurisdição
eleitoral que aplicaram ou poderiam aplicar sanções
de inelegibilidade, não denotando preocupação com
os aspectos de técnica jurídica que foram postos
inteiramente à margem, prevalecendo uma
autosuficiência despótica.

A ideia de rescindibilidade de julgados a tudo


495
dominou, embora terminasse exatamente por essa
impressão não aquilatada, ficando restrita aos casos
que versam sobre julgados tendo por objeto a
inelegibilidade dessa franquia política, ficando
implicitamente excluídos os que tiveram logo
denegados os seus registros como candidatos, para
eles se encerrando a competição eleitoral, porque até
aquela fase não era ainda a oportunidade a que se
perfizesse, como produto acabado, o objeto
concernente à perda de diploma ou mandato eletivo.
Estariam suscetíveis ao amparo rescisório apenas os
postulantes que se defrontassem com supervenientes
arguições de inelegibilidade, exaurindo-se
definitivamente para os outros a participação
eleitoral, antes de se transporem ao nível em que
pudessem estabelecer contato direto com
questionamentos sobre o específico objeto do
mandato eletivo, porque não lhes fora lícito
permanecer no contexto do processo eleitoral, em
razão, por certo, de impugnações ao próprio registro.
Ora, ao processo jurisdicional eleitoral não se
compadece a inclusão da ação rescisória, pela
vertiginosidade de seu andamento, pela delimitação
de seus prazos por contagens regressivas, a partir da
data prefixada para eleição, com as distâncias dos
fluxos processuais calculadas, em termos temporais
para as diferentes fases que a precedem, sempre
delimitadas cada uma destas por efeitos preclusivos
que podem levar à exaustão das impugnações ou de
providências de outra ordem.

Essa peculiar forma de contagem regressiva não tem


por fato predominante, de natureza isolada, a data
mesma da eleição, sendo essa, por sua parte, uma
decorrência do período previsto para as novas
investiduras eletivas, cumprindo-se, na data
496
aprazada, o revezamento das investiduras eletivas,
expirando-se os mandatos representativos,
assomando os titulares que integram a nova
composição, após devidamente diplomados.

Vê-se, assim, que os dois eventos políticos, com os


seus correspondentes condicionamentos jurídicos,
estão substancial e inseparavelmente atados, e de tal
maneira, que um não existe sem correlacionar-se ao
outro, em termos de antecedente/consequente e vice-
versa.

Assomam, portanto, ao primeiro plano de análise os


mais relevantes e intransponíveis interesses nacionais
de colocar em movimentação as instituições
representativas, porque o povo antes disso já terá
cumprido a parte que lhe concerne em relação ao
exercício dos sufrágios universais, com as escolhas
empreendidas mediante o sigilo de seus votos e
descerrados para a devida contagem ou simplesmente
computados por processos eletrônicos.

Essas instituições, algumas ou todas, não faz


diferença, não admitem exercício por quem não esteja
legitimamente municiado do reconhecimento com seu
título de representação, não cabendo que se atribuam
essas qualidades uma vez que os resultados das
provas coligidas no julgamento eleitoral evidenciaram
a existência de condição determinante da
inelegibilidade do candidato, caracterizando-se um
hiato de vacância e, de pronto, conferindo-se o
mandato definitivo, ao que se lhe seguir na ordem,
pelo critério legal vigorante.

É inteiramente fora de propósito a suspensividade da


decisão eleitoral que declara a perda do mandato,
497
porque a atividade representativa não pode ser
imantada em caráter sumário, uma vez que a
investidura deve ser proveniente do povo e enquanto
não se provar que teve ela essa límpida procedência
não será possível resgatar um mandato reconhecido
destituído da legitimidade, e somente por uma
decisão fundamentada final poder-se-ia admitir e
concluir por erro judiciário. E não podem ficar em
exercício os titulares dos mandatos expirantes,
enquanto se estiver por definir a pendência
rescindenda, porque do anterior munus
representativo nada mais subsiste, com o surgimento
do período renovado.

Os dissídios judiciais estabelecidos têm pautas exíguas


de tramitação, tudo se exaurindo sincronizadamente
em cada transposição de etapa processual.
Não é cabível acrescentar-se, a esmo, uma reabertura
de litigiosidade, quando a mudança que se exibe
permanece à margem de uma concepção unitária,
não passando de acabrunhante remendo que é
repelido à soleira, não encontrando condição de
acesso, razão a que permanecera de fora, como
extravagantemente se insinuou, e não teve ingresso
por sua completa incompatibilidade, computando-se o
próprio desvio das exigências axiológicas e finalidades
que lhe negam condições de vigência.

Inverteu-se a ordem de precedência substancial


consagrada no regime político nacional
consubstanciada em postulados jurídicos que
resguardam a sua autenticidade, o que somente
haveria se os seus valores e finalidades não fossem de
nenhum modo postergados, para que os padrões
políticos encontrassem exata correspondência na
prática ao que admite e ao que repe, mantendo-se
498
íntegros em seu modelo institucional e nos
procedimentos previstos para atingirem resultados
sem que em nenhum ponto tivesse ficado
comprometida a sua lisura e legitimidade, sem perder
qualquer traço característico de sua mesmidade, e
sem permutar as suas finalidades e valores por outros
ditados soprados por ocasionais influências.

Ajusta-se a ponderação do inesquecível Pedro Lessa


no seu pontificado jurídico, quando salienta que 'as
normas jurídicas, as leis, devem ser formuladas de
acordo com a teoria científica do direito. À
consagração em disposições legais preexistem
logicamente os direitos estudados e reclamados pela
ciência.'

Os elementos normativos agora examinados nada
possuem em comum com a unidade do sistema e nem
ao menos tomaram com ele contato, para que
formasse uma visão, mesmo incipiente, antes de
embrenhar-se no desconhecido e obscuro para traçar
diretrizes políticas com repercussão na sociedade, e
muito mais difícil se havia de afigurar, adquirissem,
subitamente, a compreensão da totalidade, vendo-se
perdido nos trabalhos afoitamente empreendidos, e
somente após produzi-los aperceberam-se que as
normas não possuem vida destacada de um sistema
em que sejam acolhidas, não podendo permanecer
desgarradas, em espaços de marginalidade com o
sistema, porque não há vida jurídica fora deste, razão
mesma a que não subsistam divisionismos atônitos.

Isso se evidencia na montagem de inopinada
implantação de ação rescisória, pretendendo infiltrar-
se no processo eleitoral para lhe retirar o lastro
indispensável de estabilidade, tudo assim feito para
499
repescagem de candidatos que se exarcebaram em
abusos e que querem arrebatar a firmeza e
inalterabilidade dos julgados eleitorais.

A ação rescisória faz parte do repertório das ações


consagradas no Direito Brasileiro, mas há em torno
dela um elevado clima de ponderação, para evitar
transponha-se do seu apropriado leito e passe a
prejudicar a estabilidade nas atividades participativas
populares, sendo embora elas o fator que dinamiza o
regime político em suas nascentes, ou sejam as
energias políticas do povo, contra as quais ficam a
lançar utensílios correlatos a atividades privatistas,
com ações rescisórias, com estas pretendendo
desarticular as medidas defensivas e repressivas em
torno da lisura do processo eleitoral.

O que se observa é o insistente empenho de abalar a


coisa julgada, para que disso resulte a impunidade
dos infratores que foram processados e julgados por
atos atentatórios à legitimidade do processo eleitoral,
com as mais amplas garantias de defesa, com as
provas que a tudo resistiram sendo condenados e, por
isso, aplicando-se-lhes as sanções pertinentes.

Esse ingresso da Ação Rescisória no processo eleitoral
representará um descalabro, principalmente, porque
o delineamento foi realizado de modo imprudente e
para servir de anteparo aos candidatos fulminados
por sanções de inelegibilidade, ao resultar
comprovada a mais grave infração eleitoral prevista
no direito positivo.

Parece que a fonte de inspiração teve origem em
outro planeta, chegando por alguma imaginosa nave
cósmica, tudo em forma de aventura experimental,
500
sem a menor reserva de prudência analítica, com o
desconhecimento da atmosfera para entrar na
atmosfera terrestre, a ponto de logo sucumbir por
total e definitiva inadaptação.

Não somente é uma deprimente postura ética, como


subverte a finalidade precípua de fazer respeitar a
vontade genuína do povo, sem fraudes e corrupções
eleitorais.

Desse modo, é o interesse público acima de tudo que


intenta a ordem jurídica manter inabalável, não
podendo em assunto dessa grandeza coletiva, como
favor integrante da própria essência do regime
político, no seu mais límpido sentido, ser subvertido e
suplantado por escamoteações de princípios, movidos
por exacerbações individualistas para sempre ficarem
seguros de suas impunidades, enquanto mutila-se o
processo político e querem arrebatar-lhe a segurança
contra as investidas audaciosas dos manipuladores de
abusos de poder.

Temos de segurar com firmeza as instituições


democráticas, porque elas não sobrevivem se faltar a
enérgica disposição de luta dos que a cultivam com
sincero apego.
...
Por todos os aspectos assinalados a ação rescisória é
constitucionalmente desacomodada e incompatível,
por completo, para aconchegar-se, retardar e
tumultuar a conclusão do processo eleitoral, ficando
uma invencionice particular, recoberta em roupagem
bizarra, somente por isso, ficando a dispor de uma
capacidade negativa ou obsessiva, utilizando
instrumentos desvaliosos para o bloqueio a resultados
emanados de julgados procedentes da Justiça
501
Eleitoral, merecendo repulsa a presunção do desvalor
do julgado até a data remota em que essa cogitada
ação rescisória, se existente, se encerrasse pela perda
do seu objeto, ficando inócua a sanção de
inelegibilidade aplicada.

A ter que admitir-se, contrariamente a todo sentido


de razoabilidade, fosse desencadeada ação rescisória
relativa ao processo eleitoral, não se poderia perder
de vista que ela jamais chegaria ao seu desfecho,
chegando ao término do período sem julgamento
definitivo, valendo somente a propositura dessa
malsinada ação, automaticamente, com a sua
propositura arredando a eficácia que impusera a
perda do mandato, averbando-se nos autos apenas
que desaparecera o objeto, em virtude da exaustão do
período, o que já estava previsto no ensejo mesmo da
propositura da rescisória, e somente com isso, e logo
daí, se desconstituiria a sentença rescindenda, e o
infrator tendo desfrutado o benefício imerecido do
mandato que lhe não cabia.

Não é possível curvar-se ao fetiche da lei, se outros


princípios irradiam superior força que impede a valia
dessas maquinações, não deixando que o sistema
eleitoral seja retalhado e perca a unidade dos seus
princípios refletidos na unidade de sua codificação.

É mais plausível que o Código Eleitoral e as leis com


ele identificadas persistam seguindo a trilha da
aplicabilidade com apoio nos superiores
delineamentos constitucionais, repelindo os
atropelamentos e as adições que têm sido feitas, não
sendo aceitável, de modo algum, ter-se como regular
uma situação anômala, de lei de ocasião, para

502
referendar os casuísmos. 193

No dia 16 de maio de 1996, quando se despedia da


presidência do TSE, o ministro Carlos Mário Velloso ainda fazia
severas críticas à Lei Complementar nº 96/1996: “ - É o casuísmo
dos casuísmos” - repetiu.194 Velloso recebeu o apoio do presidente
do Colégio dos presidentes dos Tribunais Regionais Eleitorais do
país, desembargador Luiz Perrotti, que pediu à procuradoria-geral
da República que entrasse com uma ação direta de
inconstitucionalidade, questionando a ação rescisória eleitoral: “-
Essa lei é um retrocesso, um viva à impunidade e à imoralidade”,
afirmou.

Não demorou muito para que a Ação Direta de


Inconstitucionalidade fosse ajuizada. No mesmo mês em que a Lei
Complementar nº 86/1996, entrou em vigor, o Partido dos
Trabalhadores protocolou a ADI nº 1459. No dia 30 de maio do
mesmo ano, a menos de quinze dias de seu registro no protocolo, o
plenário do Supremo Tribunal Federal 195 julgou o pedido da ação
parcialmente procedente. Os ministros declararam inconstitucionais
duas expressões: “possibilitando-se o exercício do mandato até o
seu trânsito em julgado” e “aplicando-se, inclusive, às decisões
havidas até cento e vinte dias anteriores à sua vigência”.

Cunha Lima tinha razão!

* * *

193
RIBEIRO, Fávila. O ABUSO DE PODER NAS ELEIÇÕES. Rio de Janeiro: Ed. Forense,
2001.
194
Jornal O GLOBO, edição de 18.05.1996, p. 5.
195
Na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1459-5, julgada em 17.03.1999.
503
CAPÍTULO 6

504
OUTROS CASUÍSMOS
“O Brasil tem tradição em casuísmos.”
(Senador Chagas Rodrigues)

“O pacote Lucena” foi a expressão encontrada por


deputados e senadores para dar nome a um conjunto de medidas
legais para salvar o mandato do presidente do Congresso. Liderada
pelo deputado petebista mineiro, Bonifácio de Andrada, a comissão
pretendia fazer alterações em todos os dispositivos da legislação
eleitoral que tivessem relação com a atividade parlamentar.
Andrada defendia que era preciso retirar, da Lei Eleitoral, as partes
consideradas ambíguas, que levavam os tribunais a interpretações
equivocadas, como a dada pelo TSE, no caso “Humberto Lucena”.

Além das Leis de anistia e da Ação Rescisória Eleitoral,


surgiram mais duas fórmulas visando reduzir os poderes da Justiça
Eleitoral na apreciação de cassações de seus mandatos.

Foi essa a intenção do terceiro Projeto de Lei – o de n.


196
91/94, subscrito pelo senador Áureo Melo. Segundo o seu autor,
196
Eis o teor do referido projeto:

PROJETO DE LEI DO SENADO Nº 91, DE 1994


COMPLEMENTAR

Acrescenta dispositivo à Lei Complementar nº 64, de 1990, que


'estabelece, de acordo com o art. 14, §9º, da Constituição Federal, casos de
inelegibilidade, prazos de cessação e determina outras providências.

O Congresso Nacional decreta:

Art. 1º. A Lei Complementar nº 64, de 18 de maio de 1990, fica acrescida


de novo art. 27, com a redação abaixo, renumerando-se o atual e o subsequente:
505
a partir do acréscimo do art. 27 à Lei das Inelegibilidades, não mais
incorreriam nas vedações e sanções previstas no referido Estatuto,

“as providências e despesas de ordem administrativa, destinadas


à comunicação social de cada poder, compreendendo a
impressão, expedição e distribuição de material gráfico para a
divulgação de atividades propostas ou mensagens: do Poder
Executivo, seus órgãos e entidades na forma da lei; do Poder

'Art. 27. Não incorrem nas vedações e sanções previstas nesta Lei as
providências e despesas de ordem administrativa destinadas à impressão,
expedição e distribuição de material gráfico para a divulgação de atividades
propostas ou mensagens:

I – do Poder Executivo, seus órgãos e entidades na forma da lei;


II – do Poder Legislativo, seus órgãos e membros consoante as normas
internas de cada uma das Casas do Congresso Nacional;
III – do Poder Judiciário e de seus órgãos, nos termos da lei.
Parágrafo único. Não configura abuso de poder político ou de autoridade,
passível de sanção penal ou de outra natureza, a impressão, expedição ou
divulgação do material de que trata este artigo, de acordo com a lei, ou com as
normas internas de cada Poder.

Art. 2º. Esta Lei entre em vigor na data de sua publicação.

Art. 3º. Revogam-se as disposições em contrário.

Justificação

A Constituição Federal, na parte referente à organização dos Poderes,


especifica elementos peculiares de ordem política e jurídica para o funcionamento
de cada um deles.

O Poder Legislativo busca a sua razão de ser nos sufrágios eleitorais que
visam constatar os escolhidos pelo povo e compor cada uma de suas Casas.

É aquele Poder que assina o modelo democrático porque, através das


eleições os governadores exercem a sua vontade e fazem incidir a sua presença
506
Legislativo, seus órgãos e membros, consoantes as normas
internas de cada uma das Casas do Congresso Nacional; do
Poder Judiciário e de seus órgãos, nos termos da lei.”

O Projeto acrescentava ainda que não configurava abuso de


poder político ou de autoridade, passível de sanção penal ou de
outra natureza,

soberana no Estado Democrático de Direito.


A regulamentação das eleições é, portanto, uma providência de
significativa relevância para o regime democrático e as instituições.

Nesse contexto, a Lei das Inelegibilidades constitui peça fundamental para


a compreensão do processo político-eleitoral. Ela há de ficar, porém, dentro de
limites tais que não venham a dificultar o processo para o qual deve contribuir,
afastando as irregularidades e legitimando os pleitos.

A prática democrática, no dia-a-dia das atividades dos Partidos e dos


candidatos, deve revelar experiências novas para aperfeiçoar a sistemática eletiva,
de odo que se resguarde a vontade soberana do povo e as prerrogativas
indeclináveis dos escolhidos para o exercício de mandato representativo.

A Lei Complementar n. 64, de 1990, coloca-se como instrumento


significativo para a defesa da regularidade e da normalidade dos pleitos eleitorais
entre nós, criando mecanismos para afastar vícios, fraudes e falhas no
desdobramento de campanhas partidárias e eleitorais.

Ultimamente alguns problemas têm sido aflorados no tocante à definição


de proibições a candidatos e agentes políticos e ainda em relação aos imperativos
do pleito popular.

O Projeto de Lei Complementar que ora se propõe visa a esclarecer


aspectos fundamentais do funcionamento dos Poderes, no tocante à indispensável
providência de comunicação social que hoje passa a ser, em face dos avanços
tecnológicos da mídia, uma providência de inafastável significação, a qual todavia,
pelos descaminhos da hermenêutica ortodoxa, se viu situada no campo da ilicitude
com todas as consequências daí decorrentes.

507
“a impressão, expedição ou divulgação do material de que trata
este artigo, de acordo com a lei, ou com as normas internas de
cada Poder.”

A Comissão, que estudava salvar o mandato de Humberto


Lucena, pretendia pôr às claras, no texto da Lei, que a utilização da
Gráfica para a impressão de discursos e até de calendários era algo
inerente à atividade legislativa, assim como o uso de telefones,
gabinetes, correios, energia elétrica e microfones de plenário: “ -
Sem a possibilidade de utilizar esses serviços, o parlamentar não

Procura-se no Projeto indicar as condições para o uso lícito de meios e


recursos oficiais destinados à divulgação de atividades, iniciativas ou propostas a
mensagens oriundas de cada Poder, seus órgãos ou membros, exigindo a esse fim
sua previsão em lei, no caso do Poder Executivo e do Poder Judiciário ou em
normas internas de cada Casa do Poder Legislativo, que disponham sobre a
impressão, expedição e distribuição de material gráfico.

Em tal quadro, busca-se situar a exegese do texto legal dentro das


finalidades para as quais foi editado, evitando-se que, pela via interpretativa, se
chegue a acoimar de ilicitude atividades regulares ou institucionais de comunicação
social desenvolvidas em cada Poder, frustrando-se aspecto essencial das atividades
dos Poderes constituídos.

Ao assim dispor, o Projeto qualifica como abuso de poder político ou de


autoridade a produção ou veiculação de material informativo ou de divulgação em
desconformidade com as normas legais ou interna corporis que regulam ou
venham a regular ditas atividades.

A presente iniciativa contribuirá, por conseguinte para sanar dubiedades


ou senões averiguados em alguns editos legais, máximo na Lei nº 64/90 que
lamentavelmente repercutiram em recentes decisões judiciais que abalaram as
instituições e deixaram à mostra as imperfeições da legislação vigente, levando-a a
desservir ao processo democrático e político nacional.

Sala das Sessões, 7 de dezembro de 1994 – Áureo Mello.

508
pode exercer suas funções”, justificaram.197

O Congresso tinha pressa. Precisava dar uma resposta


imediata ao Poder Judiciário. Por isso, os três projetos – o de anistia
PL nº 88), o que criava a Ação Rescisória Eleitoral (PL nº 89) e a
alteração na Lei de Inelegibilidades (PL nº 90)-, tramitaram em
regime de “urgência urgentíssima”. Tentava-se a todo custo dar ares
de legalidade ao uso do serviço gráfico, até então somente regulado
pela Resolução do Senado.

* * *

O quarto e último Projeto de Lei, de n. 91/94,198


197
Jornal A Tribuna da Imprensa, edição de 1994.
198
Reproduzo o inteiro teor do Projeto de Lei n. 92, de 1994:

PROJETO DE LEI N. 92, DE 1994


Regulamenta o §1º do art. 102 da Constituição Federal

O Congresso Nacional decreta:

Art. 1º. A arguição de descumprimento de preceito fundamental, prevista


no §1º do art. 102 da Constituição da República, fica regulamentada na forma
desta Lei.

Art. 2º. São preceitos fundamentais decorrentes da Constituição os


seguintes:
I – o pluralismo político;
II – a dignidade da pessoa humana;
III – o livre exercício dos direitos políticos;
IV – a forma republicana federativa;
V – a indissolubilidade da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios;
VI – a temporariedade do mandato eletivo;
VII – o voto direto, secreto, universal e periódico;
VIII – a separação, garantias, inviolabilidade e prerrogativas dos poderes
509
regulamentava o §1º do art. 102 da Constituição Federal e, assim
como os demais projetos que interessavam ao senador paraibano,
tramitou em regime de urgência 199 e pretendia definir como “direito
fundamental”, para fins de arguição de descumprimento, “as
prerrogativas do mandato parlamentar”.

A providência atendia aos advogados de defesa de Lucena,

da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, no tocante a funções e


mandatos eletivos de seus membros, dentro e fora das eleições;
IX – os direitos e deveres individuais e coletivos;
X – os direitos sociais e os direitos dos trabalhadores urbanos e rurais;
XI – as limitações do poder de tributar;
XII – os princípios gerais da atividade econômica;
XIII – outros preceitos fundamentais decorrentes do Estado Democrático
de Direito adotado pela Constituição.

Art. 3º. Podem propor a arguição de descumprimento de preceito


fundamental perante o Supremo Tribunal Federal:
I – qualquer cidadão que tiver interesse e legitimidade;
II – partido político com representação nas duas Casas do Congresso
Nacional;
III – Procurador-Geral da República;
IV – confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.
Parágrafo único. Caberá ao Supremo Tribunal Federal processar e julgar
originariamente a arguição de descumprimento de preceito fundamental.

Art. 4º. O prazo para interposição da arguição de descumprimento de


preceito fundamental será de 180 (cento e oitenta) dias contados do trânsito em
julgado da decisão proferida ou do artigo arguido.

Art. 5º. Nas deliberações plenárias do Supremo Tribunal Federal,


computado o voto de seu Presidente, apurando-se o empate, prevalecerá o ato ou
decisão impugnada.

Art. 6º. É cabível a arguição de descumprimento de preceito fundamental,


em caso de decisão não transitada em julgado até publicação desta lei.

510
para quem a cassação do senador, pelo TSE, teria sido
inconstitucional, sob duas vertentes: o fato do recurso do
procurador regional eleitoral ter sido interposto fora do prazo, em
ofensa à garantia constitucional da coisa julgada e também em razão
de ter atingido a prerrogativa de Humberto Lucena de fazer uso da
Gráfica do Senado, ao decidir que a impressão dos calendários era
ilegal.

Art. 7º. Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.

Art. 8º. Revogam-se as disposições em contrário.

Justificação

O Direito Constitucional brasileiro, nos últimos anos anteriormente a


1988, época da nova Constituição, adotou nas Constituições o mecanismo da
relevância da questão federal, inspirado na sistemática judicial norte-americana.

O objetivo do §1º dp art. 102 da Carta Magna brasileira é de restabelecer,


dentro de uma conceituação mais clara e mais acessível a atividade forense, aquela
importante providência, instituindo um instrumento mais eficaz e expressivo para a
defesa de preceitos básicos de nossa sistemática constitucional. Assim, o que se
pretende é que o cidadão, em especial, e outras entidades significativas – como os
partidos políticos, e as confederações – tenham caminhos e canais para levar
diretamente ao Supremo Tribunal Federal a lesão do preceito fundamental da Carta
Magna.

E a lei se pretende, em seu art. 2º, indica os preceitos constitucionais


fundamentais para que a Suprema Corte brasileira, diante da lista de questões
relevantes para a vida republicana, a forma federativa, os direitos básicos do
cidadão, individuais, políticos e sociais, a separação dos Poderes, possa reconhecer
as prerrogativas a que foram desrespeitadas, quer na órbita da União, quer na dos
Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

Matéria de competência do Supremo Tribunal Federal, a arguição de


descumprimento de preceito fundamental, surge neste instante da vida brasileira,
em que se pretende conseguir, através do Supremo Tribunal Federal, o respeito e o
acatamento a mandamentos de alta importância para a ordem constitucional do
511
Como a Corte Suprema havia entendido que a questão
tratada no Recurso Extraordinário não era constitucional, o projeto
de Lei, regulamentando a Arguição de Incidente de
Inconstitucionalidade, obrigaria o mesmo Supremo Tribunal
Federal200 a decidir sobre o mérito de todas as ações que lhes
fossem submetidas, inclusive o recurso de Lucena.

País.

Julgamos – os que apresentam este projeto – da maior atualidade esta


iniciativa, pois se abre aos cidadãos deste País as condições indispensáveis para
fazer prevalecer, contra uma série de atentado hoje existentes à Constituição, os
princípios basilares desta a buscar garantias imprescindíveis dentro da ordem
jurídica nacional.

Verifica-se em nosso tempo, como acentua Karl Loweinstein, que, em


geral, a consciência jurídica constitucional não vem alcançando hoje a presença
significativa que teve no passado recente, do meio século e anteriormente.

As preocupações sociais de nossa época, confluência dos fatores


econômicos e da tecnologia que, dia a dia, sugeriam ferramentas novas aos
cidadãos, tudo isso fez com que as preocupações para com os direitos básicos e
fundamentais do homem ficassem sob dimensão menos relevante, o que
representa grave perigo para a ordem jurídica e para o exercício das prerrogativas
essenciais do cidadão dentro da comunidade respectiva. É a sociedade de massa
que aliena as pessoas e as submete, ora ao domínio da mídia, ora ao esquecimento
dos próprios direitos humanos.

Verifica-se que a necessidade do conhecimento das normas


predominantes da Constituição se tornam uma exigência para todos os setores que
atuam nos meios forenses, e mesmo perante os mais altos órgãos judiciais do País,
em dizer a própria opinião pública.

Há necessidades de que a Constituição seja mais conhecida, seja mais


estudada, seja melhor compreendida, seja vivida nas suas formas de expressão
maior, por parte dos integrantes da comunidade, e possa assim alimentar o regime
democrático frente ao Estado avassalador e sufocante.
512
Em plenário, o deputado Bonifácio de Andrada, um dos
mais empenhados em aprovar o instituto, defendeu a ideia. Disse
ele, de forma entusiasmada:

...Precisamos nos empenhar nesse sentido, sobretudo


para conseguir que o Supremo Tribunal Federal,
através da legislação competente, de fato examine e
dê sua interpretação a respeito dessa matéria. Não

Na Constituição é que o cidadão mais humilde, mais simples, encontra os


remédios bastantes para superar os obstáculos que muitas vezes lhes são colocadas
pelos mais fortes, pelos poderosos, pelos donos do poder econômico ou poder
politico.

O projeto regulamenta matéria importantíssima que a Constituição abriu


ao cidadão para que os direitos fundamentais, prescritos na Carta Magna, fossem
servidor por um novo instrumento a possibilitar melhores garantias e condições
mais eficazes da sua presença no ordenamento jurídico e no convívio dos
concidadãos.

É urgente aprovação desta matéria para que se possa, através desse novo
canal, buscar no Supremo Tribunal Federal o conhecimento e as decisões em favor
dos direitos fundamentais ao cidadão brasileiro.

Sala das Sessões, 7 de dezembro de 1994. - Jacques Silva. (DIÁRIO DO


CONGRESSO NACIONAL, edição de 08.12.1994, p. 8394/8395.

199
Os quatro projetos, que tramitaram em regime de “urgência urgentíssima”,
apenas o terceiro não foi aprovado. O primeiro, de n. 88/94, foi aprovado em
tempo recorde. Leitura em plenário, na sessão do dia 06.12.1994; inclusão na
Ordem do Dia da sessão do dia 07.12.1994, quando foi dado parecer oral favorável
pela Comissão de Constituição e Justiça e votado no mesmo dia - inclusive com o
oferecimento de redação final -, e remetido na mesma data para a outra Casa
Revisora. Na Câmara dos Deputados, foi lido e aprovado em sessão do dia
18.01.1995, o Projeto Substitutivo do Deputado Prisco Viana, que recebeu parecer
favorável da Comissão de Constituição e Justiça. No dia seguinte, 19 de dezembro,
foi enviado à Presidência da República, para sanção, o que ocorreu em 01 de
fevereiro de 1995.
513
pode o STF se afastar do julgamento da substância de
uma questão política que diz respeito ao
relacionamento dos Poderes. Esse caso não pode
passar desapercebido pela mais alta Corte brasileira,
porque isso é uma desconsideração com os
representantes do povo brasileiro.

É nesse sentido que estamos, juntamente com outros


colegas, elaborando e trazendo à tramitação nesta
Casa e no Senado Federal um projeto de lei que
regulamentar o texto do §1º do artigo 102 da
Constituição, que trata da arguição do
descumprimento do preceito fundamental decorrente
da Constituição. Uma vez disciplinado, pode nos dar
meios de levar ao Supremo Tribunal Federal o nosso
pedido no sentido de que estude o mérito dessa
questão que envolve um preceito fundamental, como
sejam as prerrogativas do mandato parlamentar.201

A redação do artigo sexto constante no aludido Projeto,


indicava o casuísmo da proposta ao prever a possibilidade de
cabimento da arguição em caso de decisão que ainda não transitara
em julgado, até a publicação da Lei. De igual modo, a parte final da
justificativa do Projeto de Lei, ao defender a aprovação urgente,
para que fossem restabelecidos os direitos fundamentais do
presidente do Senado. O autor desse Projeto foi o senador Jacques
Silva, que havia sido o primeiro subscritor do Projeto da Lei de
Anistia.
200
Para o deputado mineiro, Bonifácio de Andrade - relator do Projeto de Lei n.
92/94, na Câmara dos Deputados -, o STF era a mais poderosa Corte do mundo
ocidental: “Não há na América nem na Europa corte com tantos poderes quanto o
Supremo Tribunal Federal do Brasil”, afirmou num tom de indignação. Para o
representante mineiro, o Congresso Nacional deveria promover uma reforma
constitucional de forma a limitar os poderes do STF.
201
Diário do Congresso Nacional, Seção I, edição de 02.12.1994, p. 14408.
514
* * *

CAPÍTULO 7

515
DECODIFICANDO SAULO RAMOS

As mulheres do mundo inteiro poderão parir


durante os próximos cem anos, mas nenhuma
delas vai parir um outro Saulo Ramos!
(Humberto Lucena)

José Saulo Pereira Ramos foi um grande jurista brasileiro.


Não à toa, chegou a ser Consultor-Geral da República e ministro da
Justiça. No Governo José Sarney, era a eminência parda do poder, à
semelhança de Francisco Campos (Chico Ciência) e Vicente Raó, na
ditadura Vargas e de Neemias Gueiros, Carlos Medeiros e Gama e
Silva, durante o Regime Militar.

Em Best Sellers de sua autoria, um misto de romance


jurídico e de autobiografia, Saulo Ramos narra a sua participação
em alguns episódios jurídicos relevantes da história política do país.
No livro, ao mesmo tempo em que relata a história de um processo
judicial, rememora as suas experiências no exercício da advocacia,
pública e privada.

Registra o doutor Saulo que a sua orientação jurídica foi


determinante para que o vice-presidente José Sarney viesse a
assumir a presidência da República, após a morte do titular,
Tancredo Neves. Na verdade, não fosse o aval do General do
Exército, Leônidas Pires Gonçalves, de pouca valia teria a opinião
técnica de Saulo Ramos. É que a autoridade militar, de posse de um
exemplar da Constituição Federal, leu o artigo 76, que tratava da
posse do presidente e do vice-presidente da República. Sem querer
discordar do general e double de “jurista”, Dr. Saulo deu o seu
parecer, conforme sua narrativa:
516
“Aproximei-me de Sarney e disse, apontando para o
general:

- Eu e meu colega aqui, emérito constitucionalista,


concordamos que o Vice pode tomar posse por causa
do 'eu'. Se o Congresso não se reunir, a Constituição
autoriza a posse perante o Supremo Tribunal
Federal...”202

No TSE, havia um precedente de 1977 tratando de caso


análogo e que permitiu o vice assumir o cargo, mesmo o prefeito
eleito e já diplomado ter falecido antes da posse. A tese é que o vice
é titular de direitos subjetivos, que não se extinguem pela morte do
titular.203 Sarney assumiu a presidência e Saulo Ramos passou a ser
o seu braço-direito em questões jurídicas. Ajudou a criar a
Advocacia Geral da União e diversos institutos jurídicos, a exemplo
da prisão provisória e da Súmula Vinculante. Colaborou ainda na
redação da Lei de Crimes Hediondos e coordenou estudos para
criação da Lei das Licitações e do Contrato Administrativo. Foi o
doutor Saulo que sugeriu ao presidente Sarney a indicação, para
compor o STF, do seu secretário-geral e colaborador na Consultoria-
Geral da República, o talentoso promotor público de São Paulo, José
Celso de Mello Filho.

A consagração de Saulo Ramos como profissional do Direito


se deu no processo de Impeachment, contra o presidente Fernando
Collor de Mello. Como advogado, Saulo defendeu o Senado nos
202
RAMOS, Saulo. O CÓDIGO DA VIDA – FANTÁSTICO LITÍGIO JUDICIAL DE UMA
FAMÍLIA: DRAMA, SUSPENSE, SURPRESAS E MISTÉRIO. São Paulo: Ed. Planeta do
Brasil, 2007, 4ª impressão.
203
Recurso Especial nº 4886, oriundo de Tobias Barreto/Sergipe.

517
autos do Mandado de Segurança impetrado pelo ex-presidente,
contra a pena de inabilitação aplicada pelos senadores.

Além de grande jurista, Saulo tinha uma forte relação com a


Parahyba. Na época da ditadura, Ronaldo Cunha Lima havia
trabalhado no escritório do professor Vicente Ráo, de quem Saulo
Ramos era discípulo. Com o tempo, se tornaram bons amigos. O
gôsto pela poesia popular tornou-se um forte elo entre os dois.

Em 05 de novembro de 1993, Saulo Ramos impetrou um


Habeas Corpus por fax, no STJ, em favor do governador Ronaldo
Cunha Lima, que se encontrava detido pela Polícia Federal na
entrada de Campina Grande, após atirar no desafeto político,
Tarcisio de Miranda Burity. No Best Sellers, o doutor Saulo fez piada
sobre Ronaldo: “Bom poeta, mas analfabeto em armas”!

Sempre que podia, o jurista Saulo Ramos passava férias no


Nordeste, incluindo a Parahyba, onde se juntava a populares. Certa
vez, em João Pessoa, chegou a fazer parte de uma comissão
organizadora do Primeiro Congresso Brasileiro de Repentistas. 204

Em 2007, Saulo voltou a defender Ronaldo Cunha Lima


quando este, às vésperas de ser julgado pelo crime cometido no
Restaurante Gulliver, recorreu a uma manobra legal e renunciou ao
cargo de deputado federal para fugir da condenação, que era certa.
A artimanha jurídica levou o relator, ministro Joaquim Barbosa, à
indignação pública. Resultado: o processo foi desaforado para o
Tribunal do Júri da capital da Parahyba, mas Cunha Lima nunca foi a
julgamento. Saulo Ramos nominou o caso de Ronaldo como
“jabuticaba jurídica”. E vangloriou-se:

204
RAMOS, Saulo. Ob. Cit., p. 320.
518
Só existe no Brasil. Em entrevista à revista VEJA,
gabou-se: “Fui advogado de Ronaldo Cunha Lima
quando começou o processo. Consegui que ele fosse
solto com um pedido de habeas corpus – o primeiro
no Brasil feito por fax. Depois, ele prosseguiu o
processo com outros advogados. A renúncia ao
mandato teria de sustar o processo contra ele no
Supremo, porque ele deixava de ter foro privilegiado.
O ministro Joaquim Barbosa, sem a necessária
serenidade de magistrado, entendeu tratar-se de um
desaforo. É isso mesmo: desaforamento da ação
penal. É um legítimo direito de defesa do réu. Não
acredito que o Supremo prosseguirá no julgamento de
um cidadão comum, não mais deputado.”205

Um ano depois de livrar Ronaldo Cunha Lima da prisão em


flagrante era a vez do jurista Saulo Ramos emprestar a sua
inteligência ao “caso dos calendários” e socorrer o senador
Humberto Lucena.

Após decisão histórica do TSE, cassando Lucena, Ramos


assumiu informalmente a coordenação da defesa de Humberto e
somaria à sua bem-sucedida carreira jurídica, mais um histórico caso
judicial envolvendo um paraibano.

No “caso dos calendários”, Saulo preferiu não atuar


diretamente no processo, em favor de Lucena, junto ao Supremo
Tribunal Federal. Ele entendia que, dessa forma, tinha maior
liberdade para criticar o erro do Tribunal Superior Eleitoral e lutar
pelos votos que serviriam de fundamento para criação da Lei que
salvaria Humberto, como declarou em entrevista ao jornal FOLHA

205
RAMOS, Saulo. “Migalhas”, visitado em 19 de novembro de 2015.
519
DE SÃO PAULO, alguns anos depois.206 Por esse motivo, recorreu a
um velho amigo, o advogado Luiz Carlos Bettiol, que, junto com o
paraibano e ex-presidente do STF, Raphael Mayer, assinou a petição
do Recurso Extraordinário.207

Em suas memórias, Saulo Ramos afirma que foi sua a ideia


de provocar o TSE, mediante a interposição dos Embargos de
Declaração, a fim de abrir as portas para o manejo do Recurso
Extraordinário, no STF. Saulo queria que o TSE corrigisse uma
omissão que ele considerava grave: a existência de matérias
constitucionais e a obrigação do presidente do TSE de votar em tais
matérias: “ - senão o julgamento estaria incompleto”, arrematou o

206
Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, edição de 20.08.2007.
207
Em resposta ao artigo de José Carlos Dias, Saulo Ramos fez as seguintes
observações:
“Injustiças

'A Folha publicou no dia 30/01, em Tendências/Debates, artigo do meu


querido colega José Carlos Dias, rebatendo alguns pontos do comentário que
escrevi sobre a lei de anistia e o caso Humberto Lucena ('A Paraíba também é
Brasil', Folha, edição de 24/01). Sempre muito inteligente, José Carlos cometeu,
porém, um equívoco: jamais fui advogado de Humberto Lucena. Seus patronos, no
caso dos litígios eleitorais, foram Sólon Benevides, de João Pessoa, e, em Brasília,
Rafael Mayer, ex-ministro e ex-presidente do STF, e Luiz Carlos Bettiol. Quanto ao
reparo feito por Boris Casoy, nesta coluna e sobre o mesmo artigo, penitencio-me e
confesso-me envergonhado pela injustiça cometida contra o excelente jornalista,
que admiro desde os tempos em que ele trabalhava na Folha, mas registro, com
alegria, seu correto procedimento de assegurar ao ex-ministro Alceni Guerra (este,
sim, foi meu cliente) o direito de defesa, perante as câmeras do TJ Brasil, a um
acusado que, afinal, era inocente. As injustiças sempre magoam. Convém, pois e
rapidamente, corrigi-las, tanto pelo 'confiteor' como pelas leis de perdão."
(J. Saulo Ramos, advogado e ex-ministro da Justiça (São Paulo, SP)'”. Fonte: Jornal
FOLHA DE SÃO PAULO, edição de 02.02.1995).

520
jurista.

Narrada na forma de fanfarronices, o próprio Saulo evocou,


para si, a autoria intelectual da Lei que preservaria o mandato de
Humberto Lucena conquistado nas urnas. Considerado por muitos
profissionais do Direito como um fato praticamente ‘consumado e
perdido’, Saulo Ramos entendia exatamente o contrário. Na sua
longa experiência de advogado, “a decisão do TSE era idiota, mas
recorrível”, avaliou, de forma presunçosa!

O autor de “O Código da Vida” afirmou que os votos


vencidos de dois dos ministros do STF lhe deram a munição
necessária para construir a principal linha de argumentação que
viria a embasar o Projeto da “Lei Humberto Lucena”. A barreira
jurídica, eminentemente de ordem técnica, não permitia aos
ministros da Suprema Corte tomar conhecimento do recurso e
corrigir o exagero da decisão da Justiça Eleitoral. Ao registrar o fato,
Saulo Ramos voltou a se ufanar:

O que eu nunca esperava na minha vida era o tipo de


elogio que recebi do Senador Humberto Lucena, em
um jantar em sua residência, quando comemorava o
sucesso de uma solução para o problema que lhe foi
criado pela decisão do Tribunal Superior Eleitoral que
lhe cassou o mandato de Senador pela Paraíba.
Tilintou uma faca no copo, pediu silêncio aos
presentes e disparou:

- As mulheres do mundo inteiro poderão parir durante


os próximos cem anos, mas nenhuma delas vai parir
um outro Saulo Ramos!

E pronto. Acabou o discurso. Levantou o copo para um


brinde e veio me abraçar. Não há dúvida de que foi
521
uma saudação, no mínimo, pouco usual. Tão
inusitada, que nem mesmo a minha própria mãe,
caipira do interior paulista, eu poderia repeti-la. Mas
já estava acostumado com os paraibanos. Afinal,
minha convivência com Eurícledes Formiga e Ronaldo
Cunha Lima fora um curso completo sobre a gente
alegre e generosa do Nordeste.

Lucena estava radiante, porque me procurara para


resolver um fato consumado e perdido: o TSE havia
cassado seu mandato de Senador, porque ele usara a
gráfica dessa casa para imprimir calendários com sua
fotografia. E os distribuíra no Estado da Paraíba.
Abuso disto, abuso daquilo, e o simpático paraibano
ficou sem mandato.

Acontece que a Constituição declara solenemente, no


§3º do art. 121, esta gracinha de comando:

'§3º São irrecorríveis as decisões do Tribunal Superior


Eleitoral, salvo as que contrariarem esta Constituição
e as denegatórias de habeas corpus ou mandado de
segurança.'

Não tinha jeito. A decisão que lhe cassara o mandato


fora proferida em processo ordinário e tratava de
matéria de prova: o uso da gráfica do Senado para
imprimir folhinha. Era idiota, mas irrecorrível. Diante
da angústia do Senador, tive eu uma ideia: vamos
recorrer assim mesmo. Eu não devo assinar o recurso,
para não me expor. Mas o Luiz Carlos Bettiol, meu
velho amigo, assinaria, como, de fato, assinou. E mais:
conversando sobre o assunto com Rafael Mayer, ex-
presidente do Supremo Tribunal, aposentado, ele ficou
tão indignado, que resolveu assinar também o recurso
contra a irrecorrível decisão.
522
Veio o julgamento no Supremo Tribunal e desancou
uma pauleira geral contra a decisão do TSE, mas
seguida das lamentações: não se pode tomar
conhecimento do recurso, porque a Constituição
proíbe. Dois ministros chegaram a conhecer do apelo
extremo,208 mandando às favas o comando
constitucional, tal a revolta com o erro judiciário
cometido pelo Tribunal Superior Eleitoral. De voto em
voto, ouvia-se a forte censura, e a expressão corrente
era ‘erro judiciário’. Falou-se em reforma da
Constituição. O Congresso deveria eliminar aquela
vedação, para evitar casos como aquele.

Foi, como dizem os advogados, um enterro de luxo,


mas esperado, porque, na realidade, o Supremo não
podia apreciar o recurso extraordinário diante da
expressa vedação constitucional.

E agora? - perguntou-se Lucena.

- Agora, calma, meu querido paraibano! – disse eu –


Vamos tirar certidões de todos esses votos.

- E fazer o que com eles?

- Fundamentar um projeto de lei de anistia. Quando


208
103. A expressão 'conhecer', na linguagem jurídica, aplica-se a várias situações.
Conhecer da ação, conhecer do recurso. Significa avaliar se a ação tem as condições
processuais legais para ser julgada ou se o recurso preenche os requisitos para ser
apreciado no mérito. Quando não atendem a tais condições os juízes não conhecem
da ação ou do recurso. Os ministros que, no caso de Humberto Lucena, chegaram a
'conhecer do apelo extremo' desprezaram a proibição constitucional de recurso
extraordinário contra decisões do TSE. Constituição art. 121, §3º. E pretendiam
julgar o mérito. A maioria, porém, não conheceu do recurso pela vedação da lei
maior, mas quase todos os ministros afirmaram tratar-se de uma falha do
constituinte.'
523
estamos diante de declaração do Supremo Tribunal
Federal sobre um erro judiciário, expressamente
proclamada em todos os votos, e a conclusão de que
não pode ser judicialmente corrigido, cabe ao
legislativo providenciar a correção por meio de lei.

Apresentou-se o projeto ao Congresso, com a


justificação transcrevendo os votos dos ministros do
Supremo, juntados por certidão, e a anistia foi
formalmente decretada por lei, o que chegou a
beneficiar outros senadores em situação
assemelhada. Um projeto de lei no mesmo sentido,
sem a fundamentação nos protestos dos ministros do
Supremo, seria considerado corporativismo, receberia
as costumeiras críticas da imprensa e não convenceria
nossos parlamentares. O ingrediente do julgamento
da Suprema Corte tornou o projeto viável. Na noite de
votação, Antônio Carlos Magalhães me telefonou:

- Você salvou o Lucena.

- Não senhor! – protestei. Quem salvou foi o


Congresso. E, na minha opinião, a salvação estende-se
ao Tribunal Superior Eleitoral, apagando da história
judiciária brasileira um vexame inominável.209

Não foi difícil encontrar um parlamentar que subscrevesse o


Projeto de Lei, idealizado pelo doutor Saulo Ramos!

* * *

209
RAMOS, Saulo. CÓDIGO DA VIDA – FANTÁSTICO LITÍGIO JUDICIAL DE UMA
FAMÍLIA: DRAMA, SUSPENSE, SURPRESAS E MISTÉRIO. São Paulo: Ed. Planeta do
Brasil, 2007, p. 401/403.
524
Foto: o autor intelectual da Lei de anistia, jurista Saulo Ramos, o anistiado
Humberto Lucena, e o terceiro colocado, Raimundo Lira. Fonte: JORNAL
DO BRASIL, edição de 1994.

525
CAPÍTULO 8

526
SUPREMA ANISTIA
“Anistia não é perdão” (Humberto Lucena)

Desde o início da tramitação do Projeto que lhe deu origem,


a “Lei Humberto Lucena” tornou-se um dos mais polêmicos
diplomas legislativos do ordenamento jurídico brasileiro.
Renomados juristas,210 mediante artigos publicados nos grandes
jornais do país, questionaram a sua constitucionalidade. 211 “ – A
legislação aprovada pelo Congresso é um casuísmo revoltante”,
afirmou o conselheiro Paulo Lopo Saraiva, coordenador da
Comissão de Assuntos Constitucionais da OAB e responsável pela
elaboração da Ação Direta de Inconstitucionalidade. 212

No entanto, no Supremo Tribunal Federal havia precedente


favorável. A Lei de Anistia, nº 6.683, 28 de agosto de 1979, criada
para conciliar o país após vinte e um anos de Regime Militar, ao
conceder perdão aos que tivessem cometido “crimes políticos ou
conexos, e crimes eleitorais”, refutava a tese de
inconstitucionalidade da “Lei Humberto Lucena”:

“- Se a Lei 6.683 foi aceita pelo STF, por que não seria
acolhida uma nova lei de anistia de crimes eleitorais?”,
prejulgou em off um dos ministros do STF.213

O precedente do STF não impressionou o presidente do

210
Saulo Ramos (Consultor-Geral da República e ministro da Justiça do Governo
Sarney), José Roberto Batochio (presidente da OAB), Celso Antônio Bandeira de
Melo, Celso Ribeiro Bastos, Luiz Flávio Gomes e José Carlos Dias.
211
Edições de 21, 26, 28 e 30 de janeiro de 1995.
212
Jornal O GLOBO, edição de 21.01.1995, p. 3.
213
JORNAL DO BRASIL, edição de 1995.
527
Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. José Roberto
Batochio ajuizou a Ação Direta de Inconstitucionalidade n.
1231/DF.214 Alguns anos depois, Batochio explicou as razões porque
era contra a anistia aos parlamentares que fizeram uso da Gráfica do
Senado. Justificou:

“Era 23 de fevereiro de 1995 quando entrei com a ADI.


O senador Humberto Lucena estava sendo acusado de
usar a gráfica do senado em proveito próprio. Ajuizei,
representando o Conselho, com uma Ação Direta de
Inconstitucionalidade”, lembra Batochio, na ocasião
presidente do Conselho Federal da OAB. Batochio
lembra que sua ADI opunha-se à lei “que concedia
anistia a todos os parlamentares condenados por
utilização de recursos públicos em benefícios pessoais,
eleitorais ou não, por entender que a lei era imoral e
inconstitucional. A lei visava revogar a punição que o
Judiciário havia imposto a Lucena pelo uso indevido
da gráfica.” O processo da ADI tramitou no Supremo
durante dez anos até que em 15 de dezembro de
2005, mais de 10 anos depois, a ação foi julgada
improcedente, contra os votos dos ministros Marco
Aurélio, Sepúlveda Pertence e Carlos Britto, com
ausência de Eros Grau.

'O ilustre e notável jurista Saulo Ramos labora em


manifesto equívoco quando diz que aquilo foi uma
movimentação minha na tentativa de me eleger
deputado. Como, se eu me candidatei apenas 4 anos

214
Feitas às pressas, para atender os interesses dos parlamentares,
respectivamente, as três Leis - “Lei Humberto Lucena”, Lei Complementar n. 86 que
criou a Ação Rescisória Eleitoral e a Lei n. 9.274, de 07.05.1996, que anistiou os
débitos dos eleitores que deixaram de votar nas eleições de 03.10.1992 e de
15.11.1994 foram contestadas no STF mediante o ajuizamento de três Ações Diretas
de Inconstitucionalidade: ADI nº 1231-2, ADI nº 1.460-9 e ADI nº , respectivamente.
528
depois de haver deixado a OAB?', pergunta-se
Batochio. Ademais é dever legal da OAB zelar pela
constitucionalidade das leis inferiores”, diz Batochio
identificado no livro como “advogado do ex-ministro
Antonio Palocci”.215

A petição inicial da ADI se baseava em três pilares:


inobservância ao princípio da separação de poderes; ofensa aos
princípios republicanos da isonomia e da impessoalidade e violação
ao princípio da moralidade.

O STF demorou a apreciar a ADI, o que aconteceu somente


em 15 de dezembro de 2005, onze anos depois da histórica decisão
do TSE que havia cassado o registro de Humberto Lucena. Por uma
ironia do destino, o relator da ação foi o ministro Carlos Mário
Velloso, o mais crítico ao Projeto de anistia aos parlamentares que
usaram indevidamente a gráfica do Senado. O jurista Saulo Ramos
atuou na ADI em nome do Congresso Nacional.

O ministro Velloso, citando Saulo Ramos, rechaçou a tese


de “imoralidade” da anistia, porque feita para beneficiar uma única
pessoa. Disse ele:
'…
Toda a sanção aplicada com fundamento na lei pode
ser objeto de anistia, desde que concedida igualmente
pelo legislador que editou norma punitiva. Não há, no
direito e na tradição, nenhuma reserva contra o ato
de perdão legislativo, que substitui o medieval ato do
príncipe, porque, no mundo moderno, é de
competência do príncipe dos príncipes, o parlamento
que representa o povo.'...

215
BATOCHIO, José Roberto, in Consultor Jurídico. Disponível em:
<http://www.conjur.com.br/> Acesso em: 19 Nov 2015.
529

De fato, a alegação de que a lei em questão foi
editada com abuso de poder não merece acolhida, vez
que o Congresso Nacional detém competência
constitucional para conceder anistia, inclusive aos
seus membros, pois a Constituição da República não
impôs restrição alguma quanto aos destinatários
dessa espécie de 'graça'. Destarte, se a Constituição
não restringe a possibilidade de concessão desse
privilégio, descabe ao intérprete restringi-la.

Ademais, merece destaque o art. 2º da lei impugnada


que estabelece como condição para ser agraciado
com a anistia, 'o ressarcimento dos serviços
individualmente prestados', revelando que o ato
questionado não foi editado com a finalidade única de
beneficiar congressistas, mas sim, a par de permitir
que o povo possa ver seus representantes reeleitos, a
de garantir o ressarcimento ao erário.

Como dito, a mencionada lei não foi editada com o


intuito exclusivo de beneficiar uma pessoa específica,
não se constituindo, por tal razão, em ofensa ao
princípio da impessoalidade que deve reger a
atividade administrativa.

De outra parte, frágil se revela, na hipótese, a


alegação de ofensa ao princípio da moralidade
administrativa, até mesmo em decorrência da
aplicação do princípio constitucional da legalidade...

Cezar Peluso, o primeiro a votar após o relator, sequer


conheceu do pedido contido na ação. Ele entendeu que se tratava
de norma de natureza individual. Explicou:

530
Trata-se de norma de caráter concreto e individual.
Concreto, porque, na verdade, se refere a uma
situação histórica determinada e absolutamente
irrepetível, isto é, não há outro caso que possa ser de
candidatos daquela data; é situação que se exauriu na
história, não pode ser repetida, não é, enfim, nenhum
tipo ao qual possa outra ação histórica vir a
corresponder: é a situação daquele ano, naquela
data. E de caráter individual, porque se refere
especificamente a um grupo determinado de pessoas,
e, portanto, nenhuma outra pessoa é capaz de se
inserir na órbita de incidência dessa norma. É regra
tipificamente concreta e de caráter individual, que
não é susceptível de ser objeto de ação declaratória
de inconstitucionalidade.
Não conheço do pedido.

Marco Aurélio de Farias Melo divergiu do voto do relator:

Quanto ao tema de fundo, peço venia ao relator para


divergir. Presente a Constituição Federal, não
empolga, pelo menos a mim, o enquadramento do
conteúdo da norma como político. Há de se fazer, de
qualquer modo, o cotejo com os princípios explícitos e
implícitos da Carta da República. Cumpre levar em
conta que a lei em jogo se antecipou até mesmo a
uma lei complementar que criou, no âmbito da Justiça
Eleitoral, a ação rescisória, fazendo-o de forma muito
limitada, considerados os pronunciamentos judiciais
acerca da inelegibilidade, e jungindo a propositura ao
prazo de decadência de cento e vinte dias.

Aqui tivemos uma rescisória abrangente, que ganhou


contornos de algo contrário aos princípios inseridos na
Carta da República, não só quanto à autoridade e

531
segurança jurídica dos pronunciamentos judiciais,
como também no tocante à sinalização, sob o ângulo
da busca de preservação de princípios, para eleições
futuras.

Não consigo perceber que, praticamente – não estou


generalizando os beneficiários da norma – em causa
própria, possa se partir, como se partiu, para uma
anistia, desautorizando-se – e, aí, colocando em plano
secundário a primazia do Judiciário – o Judiciário
Eleitoral. A anistia versou sobre a existência de títulos
eleitorais, no sentido da jurisdicionalização, já
devidamente formalizados.
Por isso, peço venia para julgar procedente o
pedido.216

216
Em ação anterior – ADIN n. 2306-3 -, Marco Aurélio manteve a coerência em
relação à crítica que fazia ao instituto da anistia, no Direito Eleitoral, da seguinte
forma: “...Fiz ver, portanto, que também levava em conta tratar-se de um diploma
que ganha contornos de ação rescisória legislativa, afastando, até mesmo, do
cenário jurídico o primado do Judiciário, cassando, como que, decisões proferidas
pela Justiça Eleitoral, mormente quando se avizinham eleições, época em que a
postura a ser adotada deve ser de rigor no tocante aos parâmetros estabelecidos e
ao respeito à ordem constituída.” Diferente da “Lei Humberto Lucena” (Lei
8,985/1994), a Lei de Anistia n. 9.996/2000, foi vetada pela presidência da
República, por ser contrária ao interesse público, conforme consta das razões de
veto constantes na Mensagem do Poder Executivo:

MENSAGEM Nº 1.990, DE 21 DE DEZEMBRO DE 1999.

Senhor Presidente do Senado Federal,

Comunico a Vossa Excelência que, nos termos do parágrafo 1o do artigo


66 da Constituição Federal, decidi vetar integralmente o Projeto de Lei no 81, de
1999 (no 934/99 na Câmara dos Deputados), que "Dispõe sobre anistia de multas
aplicadas pela Justiça Eleitoral em 1996 e 1998".

Ouvido, o Ministério da Justiça assim se manifestou:


532
O voto do ministro Gilmar Ferreira Mendes foi o mais
denso. De forma bastante didática, mas sem prejudicar a técnica, ele
rejeitou os fundamentos da Ação Direta de Inconstitucionalidade.
Ao argumento de violação ao dogma da separação de poderes,
Gilmar rebateu afirmando que a anistia era um instituto previsto na
Constituição para relativizar o aludido princípio. Mendes lembrou
precedente do próprio STF em que foi reafirmada a competência do

'A concessão de anistia de débitos eleitorais dos eleitores que deixaram de


votar em pleitos determinados, em decorrência do art. 7o do Código Eleitoral, e de
membros das mesas receptoras que deixaram de atender à convocação da Justiça
Eleitoral, por aplicação do art. 124 desse mesmo Código, assim como os alcançados
pelo art. 344 desse ordenamento codificado, provenientes da recusa ou abandono
do serviço eleitoral sem justa causa, encontra precedentes no ordenamento legal
pátrio, como demonstram as Leis nos 7.444, de 20 de dezembro de 1985 (§ 3o do
art. 3o), 8.744, de 9 de dezembro de 1993 (art. 1o), 9.274, de 7 de maio de 1996
(art. 1o).

Não obstante, o projeto de lei em questão é muito mais amplo do que as


leis que lhe serviram de inspiração. Pela proposta, são anistiados todos os débitos
resultantes de multas aplicadas pela Justiça Eleitoral, a qualquer título, em
decorrência de infrações praticadas nos anos eleitorais de 1996 e 1998, o que
importa dizer que todas as penas de multa cominadas pela prática de crime
eleitorais também serão anistiadas, sejam elas aplicadas alternativamente à pena
privativa de liberdade ou cumulativamente com aquela. Tal afirmação é possível em
virtude da generalidade do termo infração, que abrange tanto infrações
administrativas como infrações penais, vocábulo esse inclusive utilizado no art. 355
do Código Eleitoral.

Não é despiciendo alertar para o fato de os débitos anistiados pelas


normas legais anteriores terem a natureza de penalidade administrativa, caso dos
arts. 7º e 124 do Código Eleitoral, citados anteriormente, ou serem pena pecuniária
de natureza criminal, cominada em substituição à pena privativa de liberdade (art.
344 do Código Eleitoral). O mesmo não ocorre com a disposição do art. 2o da
norma projetada, uma vez que muitos crimes eleitorais são punidos com pena
privativa de liberdade e pena pecuniária, concomitantemente (v. art. 348 do Código
Eleitoral, entre outros). Nesses casos, o infrator tem o benefício da anistia apenas
em relação ao débito, persistindo a pena de privação da liberdade, ou seja, o fato
533
Congresso Nacional para conceder anistia, inclusive a seus
membros. Sobre a alegada “imoralidade” da Lei de Anistia, Mendes
afirmou que “reações de repúdio por parte do senso comum, da
moralidade pública e da consciência jurídica” não poderiam servir,
por si só, de parâmetro de controle em abstrato de
constitucionalidade dos atos normativos e que o Tribunal não
poderia se ater unicamente à fluidez do conceito de moralidade

continua merecendo repúdio, com a conseqüente privação deste do convívio social,


sem, contudo, que o Estado persista em seu interesse de punir monetariamente.

Muito embora o poder concedente da anistia possa estabelecer os termos


em que ela se dará, parece-nos que a anistia de parte da condenação, apenas a
relativa aos débitos, nos crimes em que há pena cominada de privação de
liberdade, afasta-se do conceito tradicional de anistia, o esquecimento do passado,
como era chamado entre os gregos, ou o esquecimento de determinadas infrações
criminais - a lex oblivionis dos romanos – constituindo-se em nova modalidade do
instituto, uma vez que o esquecimento do Estado não apaga o fato, mas apenas
parte de sua conseqüência. Ora, ou a pena de multa não deve ser imputada ao fato
ou ela é devida. Se ela não deve ser imputada, cabe alteração legal nesse sentido;
se ela é devida mas o Poder Público resolve não aplicá-la, em virtude da anistia, é
necessária motivação política e social para isso, sem o que o benefício será em prol
do indivíduo e não da coletividade, ou seja, não será propriamente anistia.

A motivação política ou social que respaldaria a anistia pretendida no art.


2o, nos termos amplos em que está projetada, não foi suficientemente esclarecida,
como se depreende das justificativas apresentadas por ocasião das emendas da
Câmara dos Deputados, juntadas aos autos, o que poderá ensejar o veto ao art. 2o,
por contrariedade ao interesse público. Igualmente, o art. 1o da proposta, a par de
encontrar precedente na legislação pátria, poderá gerar, pela reiteração de normas
legais de anistia com o mesmo fundamento, falsa ideia de impunidade,
desestimulando o cidadão a cumprir seu dever constitucional de votar e de, se
convocado, atender ao chamado do Poder Judiciário. Assim, a concessão de anistia
de tamanha amplitude poderá ser um estímulo a atos lesivos ao processo eleitoral e
aos padrões igualitários que o norteiam, decorrente da presunção de impunidade
que adviria de, em parte, reiterado e, na totalidade, perigoso precedente legal
concessivo do benefício."

534
para anular atos do Poder Legislativo.217 E concluiu:

Intento apenas alertar o Tribunal para o problema da


declaração de nulidade de uma norma sob o único
argumento de que é imoral ou, melhor dizendo, de
que afronta uma indefinida moral pública. Entendo
que, neste caso, estaríamos a penetrar indevidamente
no juízo político e ético do legislador e,
consequentemente, a estabelecer uma indesejável
vinculação do Direito à Moral, que seria muito cara à
própria democracia, cuja essência está no pluralismo
de valores éticos; pluralismo este declarado como
'valor supremo' no preâmbulo da Carta de 1988.
Com essas breves considerações, voto pela
improcedência da ação.

O ministro Sepúlveda Pertence votou por último. Reportou-


se à decisão anterior, de sua relatoria, proferida na Ação Direta de
Inconstitucionalidade de número 2306. A ação havia discutido a
validade da Lei n. 9.996/2000, que anistiou eleitores, membros de
mesas receptoras e candidatos dos débitos resultantes de multas
aplicadas pela Justiça Eleitoral nas eleições de 1996 e 1998. No
referido precedente,218 ele havia expressado o seguinte

Estas, Senhor Presidente, as razões que me levaram a vetar totalmente o


projeto em causa, as quais ora submeto à elevada apreciação dos Senhores
Membros do Congresso Nacional.
217
Coerente, o ministro Gilmar Mendes utilizaria o mesmo argumento por ocasião
do julgamento da ADIN que questionou a constitucionalidade da famosa “Lei Ficha
Limpa”, de 2010.
218
ADIN n. 2306-3, relatora ministra Ellen Gracie, julgada em 21.03.2002. Durante o
julgamento da referida ação, o ministro Neri da Silveira, fez um importante registro,
de natureza histórica: “Esta é a primeira vez que uma lei de anistia, em matéria
eleitoral, vem ao exame do Supremo Tribunal Federal.” Na ADIN 2306-3, o ministro
Sepúlveda Pertence entendeu que a anistia era um abuso cometido pelo poder
legislativo.
535
entendimento:

Sr. Presidente.
Reporto-me ao voto que proferi na liminar e
acrescento que a lei ofende, a meu ver, o devido
processo legal substantivo, na medida em que
inviabiliza a administração do processo eleitoral pela
Justiça Eleitoral, com relação à disciplina da
propaganda eleitoral e das regras da campanha
eleitoral. Votada a anistia pelos próprios eleitos, acaba
por tornar-se inócua toda a administração eleitoral,
entregue, no nosso sistema, à Justiça Eleitoral.
Peço venia para julgar procedente a ação.

A maioria dos ministros do STF - Carlos Mário Veloso,


Gilmar Ferreira Mendes, Carlos Britto, Nelson Jobim e Joaquim
Barbosa – votaram pela constitucionalidade da “Lei Humberto
Lucena”. Ficaram vencidos Cezar Peluso, Marco Aurélio de Mello e
Sepúlveda Pertence. A Ação Direta de Inconstitucionalidade foi
assim resumida:

EMENTA: CONSTITUCIONAL. ANISTIA: LEI


CONCESSIVA. Lei 8.985, de 07.02.95. CF., art. 48, VIII,
art. 21, XVII. LEI DE ANISTIA: NORMA GERAL.

I – Lei 8.985/95, que concede anistia aos candidatos


às eleições gerais de 1994, tem caráter geral, mesmo
porque é da natureza da anistia beneficiar alguém ou
a um grupo de pessoas. Cabimento da ação direta de
inconstitucionalidade.

II – A anistia, que depende de lei, é para os crimes


políticos. Essa é a regra. Consubstancia ela ato
político, com natureza política. Excepcionalmente,

536
estende-se a crimes comuns, certo que, para estes, há
o indulto e a graça, institutos distintos da anistia (CF,
art. 84, XII). Pode abranger, também, qualquer sanção
imposta por lei.

III – A anistia é ato político, concedido mediante lei,


assim da competência do Congresso e do Chefe do
Poder Executivo, correndo por conta destes a
avaliação dos critérios de conveniência e
oportunidade do ato, sem dispensa, entretanto, do
controle judicial, porque pode ocorrer, por exemplo,
desvio do poder de legislar ou afronta ao devido
processo legal substancial (CF, art. 5º, LIV).

IV – Constitucionalidade da Lei 8.985, de 1995.

V – ADI julgada improcedente.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os


Ministros do Supremo Tribunal Federal, em Sessão
Plenária, sob a Presidência do Senhor Ministro Nelson
Jobim, na conformidade da ata de julgamento e das
notas taquigráficas, por maioria, conhecer da ação,
vencidos os Senhores Ministros Cezar Peluso, Joaquim
Barbosa e Sepúlveda Pertence e, no mérito, julgar
improcedente, nos termos do voto do relator, vencidos
os Senhores Ministros Marco Aurélio, Carlos Britto e
Sepúlveda Pertence. Votou o Presidente, o Senhor
Ministro Nelson Jobim. Ausente, justificadamente,
neste julgamento, o Senhor Ministro Eros Grau.

Brasília, 15 de dezembro de 2005.

537
CARLOS VELOSO – RELATOR

Em suas memórias, Saulo Ramos deu a versão de que por


trás da Ação Direta de Inconstitucionalidade havia interesse
particular do presidente da OAB, que procurou fazer do “caso
Lucena” trampolim político para chegar à Câmara dos Deputados.
Sem fugir do seu estilo soberbo, jactou-se Ramos:

Claro que a OAB ingressou no Supremo com uma ADI,


pedindo a declaração de inconstitucionalidade da lei.
Não obteve liminar. Justiça seja feita: não foi
propriamente a OAB, mas José Roberto Batochio,
presidente da instituição e que já maquinava sua
candidatura a deputado federal. Humberto Lucena foi
reeleito com quinhentos mil votos na Paraíba e
continuou Senador até morrer.

Sem cobrar honorários, aceitei defender o Congresso


Nacional naquela ação, mesmo porque proposta
contra uma lei que eu inventara. A ação da OAB foi
julgada vinte anos depois, em dezembro de 2005.
Improcedente. Coisas do nosso Judiciário. Batochio foi
eleito deputado. Depois também foi julgado
improcedente e não voltou à Câmara. Voltou a
advogar. Hoje é o defensor de Antônio Palocci. Servi,
porém, naquela época, ao angustiado consulente que
buscou meu apoio e esgotei todos os caminhos lícitos
do Direito, procurando fundamentos até para criá-lo,
diante da lacuna da lei. Esta é a lição de Couture nos
Mandamentos ao advogado:

'Cada advogado, em sua condição de homem, pode


ter a fé que sua consciência indique. Mas, em sua
condição de advogado, deve ter a fé no direito, porque
até agora o homem não encontrou, em sua longa e
538
comovedora aventura sobre a terra, nenhum
instrumento que lhe assegurasse melhor a
convivência.

Advogado não pode desanimar nunca. Mesmo diante


do fato insolúvel, alguma coisa pode ser feita para
minorar a angústia das pessoas que o procuram
pedindo ajuda, sobretudo das pessoas injustiçadas. Se
não for possível encontrar solução, o esforço de lutar
pelo socorro abrandará o sofrimento do socorrido,
que às vezes, não pede e não espera milagre, mas a
compreensão e o apoio que podem minorar seu
desespero e o desassossego de sua alma. 219

Já anistiado, em setembro de 1995, Humberto Lucena


presidiu a comissão responsável pela análise do Projeto de Lei
180/1995, que viria regular as eleições de 1996. No Projeto
Substitutivo elaborado pela Câmara, em seu artigo 40 estava dito
em bom português: “Não se subordinam às regras desta Lei os
gastos realizados por candidatos, no exercício de mandato,
decorrentes de prerrogativas consignadas nos regimentos e normas
das Casas Legislativas que integram.” O texto era uma prévia do
inciso II do artigo 73 da Lei das Eleições, aprovada em 1997.

Para o professor de Direito Constitucional da Pontifícia


Universidade Católica de São Paulo, Celso Ribeiro Bastos – também
integrante da comissão nomeada pelo TSE para elaborar uma
proposta de legislação eleitoral -, o texto do Projeto de Lei
“representava uma vantagem indevida em relação aos que não
possuem mandatos”, ferindo o princípio constitucional da igualdade

219
RAMOS, Saulo. CÓDIGO DA VIDA – FANTÁSTICO LITÍGIO JUDICIAL DE UMA
FAMÍLIA: DRAMA, SUSPENSE, SURPRESAS E MISTÉRIO. São Paulo: Ed. Planeta do
Brasil, 2001, p. 404.
539
entre os candidatos.

Houve a propositura de uma subemenda, desautorizando os


candidatos fazerem uso dos serviços gráficos custeados pelas Casas
Legislativas para a confecção de impressos de propaganda eleitoral.
A proposta vedava, ainda, a utilização de materiais e serviços que
excedessem as prerrogativas consignadas nos regimentos e normas
das Casas Legislativas. Essa tese prevaleceu e foi acolhida pela Lei
9.100, de 29 de setembro de 1995, em seu artigo 40:

Art. 40. Os candidatos detentores de mandato eletivo


não poderão utilizar serviços gráficos custeados pelas
Casas Legislativas para a confecção de impressos de
propaganda eleitoral, sendo-lhes, também, vedada a
utilização de materiais e serviços que excedam as
prerrogativas consignadas nos regimentos e normas
das Casas que integram.

Três anos depois do “caso dos calendários”, o Congresso


Nacional finalmente preocupou-se em fazer uma Lei eleitoral
permanente, a de nº 9.504, de 24 de setembro de 1997, fruto do
Projeto de Lei n. 2695/1997. O procurador-geral da República,
Aristides Junqueira, já advertira: “ – É preciso cessar com leis
casuísticas e fazer uma lei perene para todas as eleições, doa a
quem doer”, afirmou.

Nem a Lei foi perene, nem deixou de ser casuística!!

Inspirado no “caso Lucena” o legislador autorizou os


parlamentares a utilizar materiais e serviços, desde que não
extrapolem “prerrogativas consignadas nos regimentos e normas
dos órgãos que integram”. Diz o texto:

540
Art. 73. São proibidas aos agentes públicos, servidores ou não,
as seguintes condutas tendentes a afetar a igualdade de
oportunidades entre candidatos nos pleitos eleitorais:

(…)

II - usar materiais ou serviços, custeados pelos Governos ou Casas


Legislativas, que excedam as prerrogativas consignadas nos
regimentos e normas dos órgãos que integram;

Numa espécie de “vale tudo” eleitoral, o dispositivo


legalizou o uso da máquina pública em Estados e municípios onde as
Casas Legislativas possuíssem o serviço gráfico.

Celso Ribeiro Bastos tinha razão! A “brecha” legal, sem


dúvida, desequilibra a disputa em relação aos candidatos que não
têm mandato, confirmando o que o doutor Aristides Junqueira já
sentenciara: “ – O brasileiro não perdeu a mania de procurar
brechas na lei para fraudes”.

Até hoje, porém, o inciso II do artigo 73 da Lei das Eleições


não teve a sua constitucionalidade questionada.

* * *

541
EPÍLOGO

542
“MALDITA CASSAÇÃO”
Desde que chegou à presidência da República, em janeiro de
1993, Fernando Collor de Melo nunca teve uma convivência
harmônica com o Poder Legislativo. Eleito por um partido “nanico”,
sem nenhuma expressão no cenário político, o Partido da
Reconstrução Nacional serviu-lhe apenas de legenda de aluguel para
conquistar seu objetivo. O “Caçador de Marajás” não passava de um
blefe. O exercício do poder e o tempo ajudariam a confirmar.

No segundo ano do mandato presidencial, seu irmão mais


velho, Pedro Collor de Mello, denunciou um esquema de corrupção
no Governo, que levou à criação de uma Comissão Parlamentar
Mista de Inquérito no Congresso Nacional.

Durante as apurações da CPMI, comprovou-se a existência


dezenas de cheques depositados por “fantasmas,” nas contas
bancárias da secretária do presidente da República, dinheiro que
seria usado para pagar as contas da Casa da Dinda, residência oficial
do Governo.

As conclusões da Comissão deram início a dois processos:


um, de natureza política, o Impeachment; o outro, na esfera penal,
junto ao Supremo Tribunal Federal.

Governando de costas para o Congresso Nacional e sem


possuir uma base parlamentar sólida, a queda de Collor de Melo era
só uma questão de tempo.

Pressionada pela geração “cara-pintada”, que tomaram às


ruas pedindo a saída do presidente, a maioria dos deputados
federais pegou carona no discurso em defesa da moralidade e
543
aceitou o processo de Impeachment.

Na Comissão Especial do Senado para examinar o pedido de


afastamento de Fernando Collor de Mello, o senador Antônio Mariz
relatou e votou favorável ao processo. Os senadores aprovaram o
parecer de Mariz e o presidente foi defenestrado do cargo.

Humberto Lucena teve uma participação importante no


processo de Impeachment do ex-presidente Fernando Collor de
Mello. Além de ter sido o primeiro senador a subscrever a Comissão
Parlamentar de Inquérito para apurar os fatos, no Senado, em
sessão de 16 de junho de 1993, Lucena foi bastante incisivo em seu
discurso e comparou Collor de Mello ao conspirador Lúcio Sérgio
Catilina, acusado de demagogo e conspirador contra a República
romana pelo advogado e orador Cícero. Disse Humberto, sobre
Collor:

Srs. Senadores, para melhor ilustrar o tema que hoje


lhes trago à consideração, permitam-me recordar, em
poucas palavras, a história de Catilina.

No ano de 62 a. C., Lúcio Sérgio Catilina, patrício


romano corajoso e ousado, mas sem escrúpulos,
fomentou contra o Senado uma conjuração, da qual
participaram os cidadãos mais depravados e
endividados de Roma. O nome desse conspirador,
desde então, passou a designar todos aqueles que
desejariam reconquistar as riquezas malbaratadas,
sobre as ruínas da própria Pátria.

Ao mesmo tempo, como as intenções de Catilina


foram denunciadas, em quatro veementes acusações
de Cícero, passaram essas a ser denominadas
catilinárias.
544
Pois bem, Senhores Senadores, não lhes trago ao
conhecimento uma catilinária, uma censura acerba.

Cumpro, porém, com o dever de comunicar à Nação


que o ex-Presidente da República, inconformado com
a pena de suspensão de seus direitos políticos por oito
anos, impetrou Mandado de Segurança contra ato do
Presidente do Senado Federal, e faço, agora, o
relatório das informações que tive oportunidade de
prestar ao ilustre Relator do processo, o Ministro
Carlos Mário Velloso, do Supremo Tribunal Federal.

Cinco dias antes da votação final, Humberto Lucena e


outros senadores teriam recebido cartas anônimas; na de Lucena,
havia ameaças a ele e à sua família, caso votasse contra o presidente
afastado.

A agonia de Collor durou cem dias, tempo correspondente


ao recebimento do pedido de impedimento, pela Câmara, até a
sessão de julgamento, no Senado. Quando o presidente da sessão, o
ministro Sidney Sanches, do STF, anunciou o julgamento do
processo, o advogado José Guilherme Vilela pediu a palavra e
passou a ler a carta-renúncia de Fernando Collor de Mello. Com a
estratégia, Collor queria escapar da sanção de inabilitação para o
exercício da função pública, pelo prazo de oito anos. Em vão. O
Senado prosseguiu o julgamento e a condenação foi inevitável.

Na esfera penal, Collor de Melo teve uma melhor sorte.


Contrariando todas as expectativas da opinião pública, foi absolvido
no STF por insuficiência de provas. Houve uma frustração cívica com
o resultado do julgamento. Na denúncia oferecida pelo procurador-
geral da República Aristides Junqueira, constava a acusação da
prática de corrupção passiva, imputada ao ex-presidente. Seu sócio,

545
o empresário Paulo César Farias, respondia a um “rosário de
crimes”: falsidade ideológica, supressão de documentos, corrupção
de testemunhas, coação no curso do processo e corrupção passiva.

Ouvido sobre a decisão do STF, no “caso Collor”, Humberto,


sem conseguir esquecer a sua decepção, foi curto e grosso:

Como brasileiro e primeiro signatário do requerimento


que criou a CPI do PC Farias e, depois, como líder do
processo de impeachment no Senado Federal, fico
frustrado com essa decisão porque, na verdade, é
público e notório o processo de corrupção que grassou
no país durante o governo Collor.220

Já eleito em segundo turno governador da Parahyba, o


senador Antônio Mariz foi mais incisivo, ao se referir à absolvição
do ex-presidente, pelo STF: “A absolvição de Collor e de PC é um
escândalo para o país”, indignou-se Mariz.221

Humberto foi condenado pelo STF e pela opinião pública.


No Supremo Tribunal Federal, Collor foi absolvido por falta de
provas, mas condenado pelo Parlamento e pela sociedade que, por
sua vez, também condenou o STF por haver absolvido Fernando
Collor: “O Executivo já foi varrido pela onda ética e o Collor caiu. O
Legislativo já foi varrido pela onda da ética e cassou parlamentares.
Chegou a hora de o Judiciário também se submeter à ética pública.
A Justiça não é um Olimpo e os juízes não são novos Deuses”,
afirmou o sociólogo Herbert de Souza (Betinho) em um artigo
publicado no JORNAL DO BRASIL.

Assim como grande parte da sociedade, parlamentares que


220
Jornal CORREIO DA PARAÍBA, edição de 1994.
221
Jornal CORREIO DA PARAÍBA, edição de 13.12.1994, p. 4.
546
votaram pelo impedimento do ex-presidente da República ficaram
aturdidos com a sua absolvição pelo STF. O comparsa de Collor, o
empresário Paulo César Farias, mesmo condenado a sete anos de
prisão, iniciaria a cumprir a pena em regime semi-aberto. Em outro
processo, os ministros do STF levaram apenas dez minutos para
absolver PC Farias, Cláudio Vieira e Roberto Carlos Maciel por
crime contra a administração pública.

Advogado e ex-ministro do Superior Tribunal Militar, o


deputado federal, José Luiz Clerot, que trabalhou pela aprovação do
Projeto de anistia na Câmara, acreditava que a absolvição do ex-
presidente Fernando Collor pelo Supremo Tribunal Federal
favoreceria o presidente do Congresso: “Se o Supremo tivesse
conhecido e julgado o processo contra Lucena fazendo o exame das
provas, com certeza o teria absolvido”, disse Clerot, que andava com
uma cópia da Lei Francesa nº 88.828, de 21 de julho de 1988 e
pretendia utilizá-la como argumento para beneficiar Lucena. A lei
concedia anistia a todos os parlamentares franceses que
respondiam a processo por delito eleitoral, principalmente por
financiamento direto ou indireto de campanhas antes de 11 de
março de 1988. Na época o financiamento das campanhas na França
havia se tornado um escândalo.222

As decisões do STF sobre Collor e seus acólitos mudaram o


ambiente na Câmara. Alguns deputados considerados “de esquerda”
e contrários ao Projeto de anistia mudaram de opinião e começaram
a se mostrar favoráveis à “Lei Humberto Lucena”. A relação entre o
Congresso e o Judiciário que não era das melhores, com a imposição
ao senador paraibano de uma pena considerada desproporcional,
“azedou” de vez com a absolvição de Fernando Collor de Melo que,
antes do julgamento, já era considerada certa, conforme rumores
222
JORNAL DO BRASIL, edição de janeiro de 1995.
547
que circulavam nos meios jurídicos. Em meio às críticas, não faltou
quem defendesse a relação entre os dois casos. O artigo do
jornalista Arimatea Souza insinuou a misteriosa coincidência entre o
caso Collor de Melo e o “caso Lucena”:

O Supremo e a coincidência
Arimatéa Souza

Novamente o Supremo Tribunal Federal centraliza as


atenções da nação nesta quarta-feira, ao julgar o
destino político do presidente do Congresso Nacional,
senador Humberto Lucena (PMDB-PB). Não podemos
deixar de atestar que o STF, mesmo lastreando suas
irrecorríveis decisões no direito, consubstancia um
julgamento político.

E é justamente nesse aspecto que paira sobre o


destino de Humberto o ‘fantasma’ de uma triste
coincidência. Daqui a doze dias, o mesmo tribunal vai
estar julgando um presidente da República já deposto
por força do impeachment. Não há como negar que
os dois julgamentos, a partir de hoje, apesar da
natureza distinta, são em alguma proporção
signatários da mesma sorte.

Para fazer face à cobrança da chamada grande


imprensa, que brada a todo momento a necessidade
de passar o país a limpo, nada como converter ‘dois
peixes graúdos’ nos estandartes dos novos tempos,
símbolos de um Brasil corrupto e que está sendo
extirpado por força da justiça, tão repetidamente
execrada pela sua letargia e até omissão. É
sintomático que nas celas de Brasília já esteja
apodrecendo um símbolo vivo dessa fachada
moralizante. PC Farias ‘jaz’ entre quatro paredes, de

548
forma questionável sob o aspecto legal, justamente
para demonstrar com sua exceção a regra
consuetudinária somente pobre vai para a cadeia
neste país tropical.

Não tenho nenhuma pretensão, até mesmo por força


de minhas limitações na seara jurídica, de discutir o
mérito – ético ou legal – da atitude de Humberto
Lucena de mandar confeccionar calendários com a
sua fotografia e remetê-los ao eleitorado paraibano,
presumivelmente com objetivos eleitorais. Mas
entendo que tais concessões conferidas à classe
política – em especial aos integrantes do Congresso
Nacional – teriam muito mais consistente repreensão
na obrigatoriedade de reembolsar aos cofres públicos
a importância utilizada, caso constatada a sua
aplicação indevida. Cassar um mandato há pouco
tempo renovado pelo supremo veredicto popular,
talvez seja desproporcional à infração imputada e de
significação nula para os recursos públicos.

Além do mais, dezenas de outros parlamentares, até


mesmo o presidente eleito, Fernando Henrique
Cardoso, já confessaram aos olhos da opinião pública
um novo ciclo na cultura política brasileira. O
Supremo Tribunal Federal poderá hesitar diante da
inevitável cobrança popular e selar para dois dos mais
altos mandatários da República, em menos de 15 dias,
penas que nivelariam no mesmo ‘’fogo da inquisição’
uns míseros calendários gregorianos e o timoneiro de
um tentacular esquema de corrupção.

Esperemos que o STF aja com discernimento e não


transforme as duas importantes decisões que tem de
tomar num fetiche de moralidade, até porque um
eventual equívoco não poderá ser reparado no campo
549
jurídico.

A absolvição de Collor de Mello, pelo STF, teria sido uma


bofetada definitiva na cara de quem ainda acreditava no combate à
corrupção na vida pública brasileira. Comparado à corrupção do
Governo Collor, o uso da gráfica era tido como um “deslize menor”.
Mostrava a face paradoxal do país. Poucos dias antes, numa decisão
polêmica, o STF havia fulminado o mandato do senador Humberto
Lucena, azeitando uma crise entre o Judiciário e o Legislativo. Uma
semana depois – era apenas uma questão de calendário -, absolveu
o ex-presidente.223

Por uma filigrana jurídica – a gravação das fitas pelas quais


se comprovava a corrupção teria sido obtida por meios ilícitos -,
Collor foi inocentado por falta de provas. Uma preliminar também
impediu os ministros do mesmo Tribunal de conhecer o recurso
interposto pelos advogados de Humberto Lucena.

Teria realmente o STF usado de dois pesos, duas medidas?


Para o presidente da Corte, ministro Luiz Otávio Galloti, o Supremo
não podia ser reduzido a um instituto de opinião pública: “Como
guardião da Constituição, não deve ser conduzido por um suposto
clamor publico, mas agir de acordo com a consciência de seus
ministros”, declarou Galloti em defesa do STF. “

Para alguns parlamentares, a decisão absolutória do STF em


relação ao ex-presidente era uma afronta à Câmara e ao Senado,
que votaram pela admissibilidade e procedência do Impeachment. A
ideia de criar uma instituição que servisse para controlar
externamente o Poder Judiciário ganhou corpo no Congresso

223
MOURA, Helder. A suprema contradição. Jornal CORREIO DA PARAÍBA, edição de
11.12.1994, p. 2.
550
Nacional. A absolvição de Collor de Mello no STF foi o combustível
que aumentou a sanha de retaliação ao Poder Judiciário. Mas não
apenas isso: estava criado o caldo de cultura favorável à aprovação
do Projeto de Lei para salvar os parlamentares envolvidos com o uso
da gráfica do Senado. O caldeirão ia ferver! A resposta mais eficaz e
contundente? A anistia, que tornaria sem efeito a cassação de
Lucena.

Durante a tramitação do Projeto de Lei de anistia, o senador


Áureo Mello, do PRN do Amazonas, e o deputado Roberto
Jefferson, do PTB do Rio de Janeiro, ambos integrantes da “tropa de
choque” do ex-presidente, haviam apresentado Emendas agregando
uma anistia a Fernando Collor no projeto que beneficiava Lucena.
Collor - , que evitava até citar o nome de Humberto Lucena -,
desautorizou todas as iniciativas nesse sentido:

“ - Não quero que misturem as coisas. Se eu fui absolvido


não há razão para pedir anistia, só anistia quem é culpado”,
argumentou.

Na verdade, não havia clima político favorável à anistia de


Fernando Collor de Melo, no Congresso Nacional. As forças que
declararam o seu impedimento, não permitiriam a sua volta. Além
do mais, a tentativa de reabilitação política do ex-presidente através
de um mesmo diploma legislativo poderia prejudicar à de Lucena e
a dos outros parlamentares. Seria um “abraço de afogados”, como
se diz na expressão popular.

O ex-presidente solicitou aos seus aliados que não


apresentassem qualquer Emenda que viessem a beneficiá-lo. Mais
que isso: uma semana após ser absolvido pelo STF, Collor de Mello
orientou os seus acólitos a obstruir a votação do Projeto de anistia,

551
na Câmara:

“- Mobilizem o PRN e todos os nossos amigos para não


permitir que utilizem meu nome em favor do outro”, disse Collor a
dois de seus fieis escudeiros, o presidente do PRN, Daniel Tourinho
e o deputado Ivan Burity, do PFL da Parahyba. O ex-presidente não
admitia ver seu nome comparado ao do presidente do Senado,
conforme ironizou:

“ - Eu sofri uma condenação política e fui absolvido


pela Justiça.; o outro está condenado pela Justiça por
ter descumprido uma lei votada pelo próprio Senado
e busca agora uma anistia política”, disse. 224

Passado o processo de impedimento de Collor no Senado,


uma série de acontecimentos e coincidências ajudou a criar, no
imaginário popular dos brasileiros, a lenda urbana da “maldição do
impeachment”, ou “a maldição de Collor”. A expressão era uma
alusão ao destino de pessoas e de parlamentares responsáveis pelo
Impeachment do ex-presidente da República.

Segundo depoimento narrado em livro pela ex-primeira


dama, Rosane Collor, havia, com frequência, no porão da Casa da
Dinda, sessões de magia negra, presidida pela ex-mãe-de-santo,
Mãe Cecília – hoje convertida ao Protestantismo. Na residência
oficial do governo eram feitos “trabalhos” contra os adversários do
presidente. O ritual incluía o sacrifício de galinhas e outros animais.

Embora Collor negue a versão, as afirmações da ex-esposa


merecem mais credibilidade. É que, em 15 de julho de 2015, quando
a Polícia Federal cumpria ordem judicial de busca e apreensão na

224
Jornal A TRIBUNAL DA IMPRENSA, edição de 1994.
552
Casa da Dinda, ainda residência oficial do senador Fernando Collor
de Mello, encontrou algo parecido com um “despacho de
macumba”, endereçado ao procurador-geral, Rodrigo Janot, e ao
seu braço direito no Conselho Nacional do Ministério Público, o
paraibano Fábio George, conforme registrou o jornal O GLOBO:

“Numa mesa, os agentes encontraram uma foto do


conselho do CNMP com os rostos de Janot e de
George assinalados num círculo feito a caneta. Acima
da foto, numa folha de papel com o timbre do Senado,
os nomes de vários orixás: Iemanjá, Elegbara, Oxalá,
Ogum, entre outros.”225

O mistério não estava apenas nos “despachos” realizados


por Collor de Mello na Casa da Dinda, rondava também a residência
oficial do presidente do Senado, como revelou uma das filhas de
Humberto, Iraê Lucena, ao jurista e historiador Joacil de Brito
Pereira:

A Deputada Iraê Lucena me fez uma revelação do


mau agouro que ronda aquela residência oficial dos
Presidentes do Congresso Brasileiro. E cita os
acontecimentos funestos dos que por lá passaram:
Petrônio Portela morreu quando morava naquele
palácio, prejudicando o seu sonho de ser Presidente
da República; Nilo Coelho também faleceu prematura
e inesperadamente; Humberto Lucena perdeu ali um
netinho e faleceu quando ainda tinha forças para
alçar-se em outros vôos; Antônio Carlos Magalhães,
teve de ouvir a nênia triste, o canto funéreo da
fatalidade que arrebatou o seu jovem e inteligente
filho, Luiz Eduardo Magalhães na hora em que estava
de marcha batida para presidir a Nação. São fatos
225
Jornal O GLOBO, edição de 02 de novembro de 2015.
553
terrificantes que evidenciam uma influência maligna.
É preciso decifrar esse sinistrismo.226

À margem as questões transcendentais, o fato é que todos


os que cruzaram o caminho do ex-presidente Collor de Mello foram
atingidos pela lendária “maldição” que leva o seu nome, senão
vejamos.

Seu irmão mais velho, Pedro Collor, delator do “esquema PC


Farias”, morreu de câncer no cérebro, dois anos depois.

Pivô do escândalo Collorgate, o empresário Paulo César


Farias foi encontrado morto de forma misteriosa na Praia de
Guaxumã, em Alagoas, junto com a namorada Suzane Marcolino.

Os parlamentares que compunham a cúpula do PMDB e que


apoiaram o Impeachment de Collor – Ulisses Guimarães, Orestes
Quércia, Mauro Benevides, Ibsem Pinheiro, Genebaldo Correa e
Humberto Lucena -, também caíram em desgraça.

Quércia foi acusado de corrupção; Benevides, citado na “CPI


dos Anões do Orçamento”, não foi reeleito para o Senado;
Genebaldo, cujo nome também constava na mesma CPI, renunciou
para não ser cassado; Ibsen Pinheiro foi cassado pela CPI e Ulisses
Guimarães - a quem Collor havia chamado de “Velho Gagá” -, não
chegou a ver a renúncia do presidente: desapareceu no mar de
Angra dos Reis, no Rio de Janeiro, em outubro de 1992, vítima de
acidente aéreo. Até hoje seu corpo não foi encontrado.

Nessa mesma versão, os parlamentares paraibanos que

226
PEREIRA, Joacil de Brito. PARAÍBA – Nomes do Século. HUMBERTO LUCENA. A
UNIÃO EDITORA, p. 39.
554
diretamente se envolveram com o processo de Collor, no Senado,
também teriam sido vítimas da “maldição de Collor”: Antônio
Mariz, relator do processo na Comissão Especial do Senado, morreu
de câncer em pleno exercício do mandato de governador e,
Humberto Lucena - o primeiro a subscrever o pedido de
Impeachment no Senado -, teve o seu registro de candidatura
cassado pelo uso da gráfica do Senado, pelo TSE.

Lendas urbanas à parte, Humberto Coutinho de Lucena não


viveu o suficiente para ver o Supremo Tribunal Federal declarar
válida a Lei que levava o seu nome. Faleceu no mesmo dia e mês da
morte do seu pai - 13 de abril de 1998 -, aos 69 anos, no Instituto do
Coração/INCOR, em São Paulo, em consequência de uma parada
cardíaca, dez dias após fazer uma intervenção cirúrgica para receber
duas pontes de safena e uma mamária. Os danos emocionais
decorrentes da decisão do TSE lhe foram irreversíveis, “não havendo
exagero em dizer que a tristeza e o desgosto lhe abreviaram a vida”,
segundo depoimento do ex-senador Efraim Morais227 ou, como
afirmou Joacil de Brito Pereira:

“Perdera o gosto pela vida. O ‘caso dos calendários’ o


matou, numa agonia lenta e fatal. As ‘Parcas’ cortaram-lhe o fio da
existência.”228

Ésquilo, um dos maiores teatrólogos da Grécia antiga, já


havia registrado: “O erro não deve prevalecer por causa da
tecnicidade.” Para os eleitores de Humberto, a decisão do TSE que
cassou o seu registro teria sido um clamoroso erro judiciário,
principalmente considerando a desproporcionalidade da pena

227
Depoimento do senador Efraim Morais, em discurso pronunciado no Senado
Federal em 22 de abril de 2008.
228
PEREIRA, Joacil de Brito. Ob. Cit., p. 40.
555
imposta a um “pequeno delito”.

Inspirado no “caso Humberto Lucena”, o legislador, no artigo


73, inciso II da Lei das Eleições, ao haver permitido o uso das
gráficas oficiais para confecção de matéria parlamentar, legitimou o
desequilíbrio no processo eleitoral, em favor de senadores,
deputados federais, deputados estaduais e vereadores candidatos à
reeleição.

Com toda dramaticidade que o marcou, o “caso Humberto


Lucena” entrou para o rol dos grandes julgamentos da história da
Justiça Eleitoral.

556
POSFÁCIO

HUMBERTO FOI CASSADO INJUSTAMENTE. RENAN QUANDO


SERÁ CASSADO LEGITIMAMENTE?

Antônio Germano Ramalho229

O Brasil redemocratizado e de Constituição nova (ainda não


completou trinta anos), posterior ao momento da promulgação de
nossa atual Carta Política, assistiu e talvez poucos tenham entendido
os motivos que levaram a cassação do Senador da República,
Humberto Lucena, que naquele momento presidia o Congresso
Nacional, se postando na linha sucessória das autoridades que
poderiam a qualquer momento assumir a Presidência da República.

A ambiguidade do fato é que o respeitado senador


paraibano sofreu uma única acusação que o incriminou por ter se
beneficiado dos serviços da gráfica do senado que imprimiu um
simples e útil calendário contendo os meses do ano, cuja utilidade é
corriqueira no Nordeste. Todo cidadão simples, principalmente que
resida na zona rural se interessa em receber um daqueles
calendários fazendo questão de expor tal presente de final de ano,
orgulhosamente, na parede principal da sala de suas casas.

Esse fenômeno aconteceu envolvendo o nosso conterrâneo


de saudosa memória, Humberto Lucena que, aquela época, ocupava
a Presidência do Senado da República e do Congresso Nacional.
Meses antes ocupara lugar de destaque na mesa da Assembleia
Nacional Constituinte e marcando definitivamente para a história o
seu nome e sua representação política, em 1988 ao lado do
229
Mestre em Direito pela UFC, Doutor em Educação pela UFPB e Professor da
UEPB.
557
deputado federal Ulisses Guimarães e do Presidente do Supremo
Tribunal Federal.

Em uma das inúmeras defesas em favor de Humberto


Lucena – com destaque para o discurso inflamado do Senador
Antônio Mariz -, declarou-se que jamais o senador presidente teria
autorizado tal impressão, sendo responsabilizado e punido por um
erro que jamais cometeu. Documentos comprobatórios indicavam
que Humberto nunca autorizou a impressão dos calendários e que
tudo não passou de um afago dos seus assessores. Foi julgado e
considerado culpado. Por este motivo foi cassado. Retornou aquela
casa parlamentar pelos braços do povo nas eleições de 1994.
Portanto, foi absolvido pela sociedade.

Contraditoriamente, assistimos recentemente e em pleno


século vinte e um, o comportamento vil, prepotente e abusivo do
senador Renan Calheiros, cujo nome está envolvido em processos
judiciais com acusações graves de enriquecimento ilícito por parte
do Procurador-Geral da República, sem deixar de anotar que em
pleno processo de Impeachment de Dilma Rousseff em 2016,
contrariando o que está definido na Constituição Federal de 1988
quanto as implicações de impedimentos políticos contra Presidente
da República que seja afastado definitivamente do Poder Executivo
Federal, Renan desafiando a história, as ciências jurídicas e o papel
de guardador e defensor legítimo da Constituição Federal, afrontou
o STF e seu Presidente, quando por iniciativa própria deu
interpretação diversa da unanimidade dos constitucionalistas
brasileiros aprovando a isenção da presidente cassada pelo não
impedimento para o exercício político previsto na lei maior.

Fazendo uma comparação entre o que ocorreu com o


Senador Humberto Lucena e o que ocorre atualmente com Renan

558
Calheiros, só nos faz recordar histórica frase do Presidente da
França, De Gaulle, ao declarar que “o Brasil é um país que não deve
ser levado a sério”.

559
CRONOLOGIA
18.02.1994 – O então Procurador Regional Eleitoral, Antônio Carlos
Pessoa Lins, ajuizou a Representação Eleitoral contra o Senador
Humberto Coutinho de Lucena, no Tribunal Regional Eleitoral da
Parahyba.

07.03.1994 – O advogado de Humberto Coutinho de Lucena, Solon


Henriques de Sá e Benevides, apresentou contestação à ação do
Ministério Público Eleitoral.

11.04.1994 – O advogado Solon Henriques de Sá e Benevides


apresentou alegações finais, pelo investigado, Humberto Coutinho
de Lucena.

15.04.1994 – O Procurador Regional Eleitoral, Antônio Carlos


Pessoa Lins, apresentou as suas alegações finais.

15.06.1994 – O Tribunal Regional Eleitoral, por maioria de votos, 4 X


2, julgou improcedente a Representação Eleitoral.

28. 07.1994 – Data em que a decisão do TRE/PB foi publicada no


Diário da Justiça.

31.07.1994 – A Procuradoria Regional Eleitoral interpôs recurso ao


Tribunal Superior Eleitoral.

13.09.1994 – Por maioria de votos, 5 X 2, o TSE deu provimento ao


recurso interposto pela Procuradoria Regional Eleitoral da Parahyba
e aplicou a Humberto Lucena as sanções de cassação do registro de
candidatura e a declarou-o inelegível pelo prazo de três anos.

560
14.09.1994 – O Senador paraibano, Antônio Marques da Silva
Mariz, fez veemente discurso no plenário do Senado, em defesa de
Humberto Coutinho de Lucena.

16.09.1994 – Os advogados de Humberto Lucena interpuseram


recurso de Embargos de Declaração.

03.10.1994 – Data de realização do pleito. Humberto Lucena é


reeleito para o Senado, com 415.899 votos.

18.10.1994 – O presidente do TSE, ministro José Paulo Sepúlveda


Pertence, negou seguimento ao Recurso Extraordinário apresentado
pelos advogados de Humberto.

23.10.1994 – Os advogados do senador interpuseram um novo


recurso, o Agravo, para obrigar o Recurso Extraordinário subir ao
STF.

17.11.1994 – O ministro Nery da Silveira proferiu despacho,


conhecendo do Recurso Extraordinário e transfere para o plenário
da Corte a decisão sobre o caso dos calendários.

30.11.1994 – Por uma maioria de 8 votos a 2, os ministros do STF


não conheceram do Recurso Extraordinário interposto pelos
advogados de Humberto Lucena.

15.12.1994 – Sessão do Tribunal Regional Eleitoral, realizada no


Tribunal do Júri da Capital, para diplomação dos eleitos em outubro
de 1994. Humberto Lucena não compareceu. Seu diploma foi
recebido pelo seu irmão, o engenheiro Haroldo Coutinho de
Lucena, por procuração.

561
19.12.1994 – Data da diplomação, pelo TRE/PB, dos eleitos.
Humberto não compareceu à sessão.

18.01.1995 – Em sessão extraordinária, realizada pela Câmara dos


Deputados, é aprovado, por 253 votos a favor e 110 votos contra, e
oito abstenções, o projeto de Lei que anistia os políticos que usaram
a Gráfica do Senado.

07.02.1995 – Data da publicação da Lei n. 8,985, que concedeu


anistia aos candidatos que praticaram atos ilícitos. A referida Lei
significou uma retaliação do Congresso Nacional à decisão do poder
judiciário que negou registro a Humberto Coutinho de Lucena.

15.12.2005 – O Supremo Tribunal Federal julgou improcedente a


Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1231-2, que havia sido
proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil
contra a Lei n. 8.985, de 07.02.1995.

13.04.1998 – Data de falecimento do senador Humberto Coutinho


Lucena, em pleno exercício do mandato.

562
REFERÊNCIAS
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ARAÚJO, Fátima. Humberto Lucena – O verbo e a liderança. João
Pessoa: Ed. A UNIÃO & textoarte, 1999.
BRONZEADO, Luiz. Justiça a Humberto. Jornal CORREIO DA PARAÍBA,
edição de 1994.
HUMBERTO LUCENA - Grandes Vultos que Honraram o Senado.
Brasília: Senado, 2006.
LUCENA, Humberto. A REELEIÇÃO PARA O SENADO. Brasília/DF,
1988.
_ATUAÇÃO PARLAMENTAR. Brasília/DF, 1991.
_SUSPENSÃO DOS DIREITOS POLÍTICOS DO SR. FERNANDO AFFONSO
COLLOR DE MELLO. Brasília/DF, 1993.’
_ANISTIA NÃO É PERDÃO. Brasília/DF: 1995.
_TEMAS EM FOCO. Volume III. Brasília/DF: 1995.
MARIZ, Antônio Marques. O Impeachment do Presidente do Brasil –
Relatório do Senador Antonio Mariz, texto-chave para se
compreender um dos períodos mais dramáticos da nossa história
contemporânea. Brasília: 1994, Centro Gráfico do Senado Federal.
PEREIRA, Joacil de Brito. PARAÍBA – Nomes do Século: HUMBERTO
LUCENA. A UNIÃO EDITORA,

563
RAMOS, Saulo. CÓDIGO DA VIDA – FANTÁSTICO LITÍGIO JUDICIAL DE
UMA FAMÍLIA: DRAMA, SUSPENSE, SURPRESAS E MISTÉRIO. São
Paulo: Ed. Planeta do Brasil, 2007, p. 401/403.
II – Jornais
A Folha de São Paulo, A UNIÃO, A Tribuna da Imprensa, CORREIO DA
PARAÍBA, Jornal do Brasil, Jornal O ESTADO DE SÃO PAULO, Jornal O
GLOBO, O NORTE.
III - Artigos
ALMEIDA, Agassiz. Defendam-se. Jornal CORREIO DA PARAÍBA,
edição de 28.01.1995, p. 2.
_A Justiça e a Ópera Bufa. Jornal A UNIÃO, edição de 1994.
ALMEIDA, Agnaldo. Humberto cassado. Jornal O NORTE, edição de
15.09.1994, p. 2.
_Grito de Alerta. Jornal O NORTE, edição de 15.09.1994, p. 4.
_E se Lucena voltar? Jornal O NORTE, edição de 17.09.1994, p. 2.
_Sem retaliações. Jornal O NORTE, edição de 18.09.1994, p. 2.
_É caso antigo. Jornal O NORTE, edição de 20.09.1994, p. 2.
_Mandato legítimo. Jornal O NORTE, edição de 29.11.1994, p. 2.
_O Congresso tem culpa. Jornal O NORTE, edição de 03.12.1994, p.
2.
_Vem aí a anistia. Jornal O NORTE, edição de 04.12.1994, p. 2.
_Tá tudo errado. Jornal O NORTE, edição de 11.12.1994, p. 2.
564
ANDRADE, Djacy. Cássio protesta contra a cassação. Jornal A
UNIÃO, edição de 17.09.1994, p.2.
Humberto é candidato. Jornal A UNIÃO, edição de 20.09.1994, p.2.
_Mesquinharias. Jornal A UNIÃO, edição de 21.09.1994, p. 2.
_Decisão acertada. Jornal A UNIÃO, edição de 24.09.1994, p. 2.
_ A anistia é a solução. Jornal A UNIÃO, edição de 06.12.1994, p. 2.
_Remédio extremo. Jornal A UNIÃO, edição de 13.12.1994, p. 2.
_Dois pesos e duas medidas. Jornal A UNIÃO, edição de 14.12.1994,
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_Fim do drama. Jornal A UNIÃO, edição de 17.01.1995, p. 2.
_Humberto anistiado. Jornal A UNIÃO, edição de 30.01.1995, p. 2.
ALVES, Márcio Moreira. Alegrias e tristezas. Jornal O GLOBO, edição
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BETTO, Frei. O Triângulo das Bermudas. Jornal FOLHA DE SÃO
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CARVALHO, João Manoel de. Mariz e a Gráfica. Jornal O NORTE,
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_A anistia intranquiliza. Jornal O NORTE, edição de
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568
LIMA, Rômulo de Araújo. Injustiça, até quando? JORNAL DA
PARAÍBA, edição de 1994.
LUCENA, Humberto. Paraibanos, obrigado. Jornal O NORTE.
_Pela verdade. Jornal O GLOBO, edição de 29.11.1994, p. 6.
_Anistia não é perdão. Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, edição de
11.04.1995.
_O respeito e a discordância. Jornal O NORTE.
_Vamos à vitória. Jornal CORREIO DA PARAÍBA, edição de outubro
de 1994.
_Continuo candidato. Jornal O NORTE.
_Novamente, obrigado. JORNAL O NORTE.
_Confio na Justiça. Edição de 15.11.1994.
_Um erro não justifica o outro. Jornal CORREIO DA PARAÍBA, edição
de 1995.
LUCENA, Humberto. Dados biográficos. Centro de Documentação da
Fundação Getúlio Vargas. Visitado em 13 de dezembro de 2016.
LUCENA, Sebastião. Lucena, Tavares e Chico. Jornal CORREIO DA
PARAÍBA, edição de 1994.
MATOS, Eilzo. Em defesa de Humberto Lucena. Jornal CORREIO DA
PARAÍBA, edição de 1994.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. ANISTIA A LUCENA - Desvio de
Poder Legislativo. Edição de 20.01.1995, p. 1-3.
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MORA, Helder. A suprema contradição. Jornal CORREIO DA
PARAÍBA, edição de 1994.
_O tempo esquentou. Jornal CORREIO DA PARAÍBA, edição de
16.09.1994, p. 2.
_O santo corrupto. Jornal CORREIO DA PARAÍBA, edição de
13.12.1994, p. 2.
_A maldição de Collor. Jornal CORREIO DA PARAÍBA, edição de
07.12.1994, p. 2.
_Por conta da cassação. Jornal CORREIO DA PARAÍBA, edição de
1994.
_A decisão do Supremo. Jornal CORREIO DA PARAÍBA, edição de
01.12.1994, p. 2.
_O rigor do TSE. Jornal CORREIO DA PARAÍBA, edição de 15.09.1994,
p. 2.
_O humor do Judiciário. Jornal CORREIO DA PARAÍBA, edição de
08.12.1994, p. 2.
MOURA, Levy G. O caso Lucena. Jornal O NORTE, edição de
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NETO, Cândido Furtado Maia. Anistia, corrupção e impunidade.
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570
NETO, Olímpio Cruz. Projeto impede cassação de mandato pela
Justiça.
_Ministros do STF vêem inconstitucionalidade. Edição de
16.09.1995.
_Senado veta candidato à Procuradoria. Edição de 10.06.1995.
NETTO, José Baptista de Melo. Cassaram o meu direito de voto.
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NÓBREGA, Francisco Pereira da. O Senado salva Lucena. Jornal O
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RAMOS, Saulo. Empate dos Inocentes. Edição de 07.12.1994.
_A Paraíba também é Brasil. Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, edição de
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_'Res publica' ou 'cosa nostra'? Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, edição
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ROSSI, Clóvis. Cenas de fisiologia explícita. Jornal FOLHA DE SÃO
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_Parlamentares tramam anistia para Lucena. Edição de 05.12.1994.
_FHC se rende à 'barganha' com partidos. Edição de 09.02.1995.
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TRINDADE, João. CASO HUMBERTO LUCENA – PERVERSAO DO
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como trabalho de conclusão de Pós-Graduação na Escola Superior
572
da Magistratura/ESMA. João Pessoa: 1995.
ULHOA, Raquel. Senado proíbe uso particular de sua gráfica. Edição
de 11.02.1995.
_Projeto de anistia a Lucena sofre restrições. Edição de 06.12.1994.
_TSE deide hoje se cassa ou não. Edição de 13.09.1994.
_Senado aprova projeto que concede anistia a Lucena. Edição de
08.12.1994.
VAZ, Lúcio. Lucena usou servidores em campanha. Edição de
01.11.1994.
XAVIER, Olivan. Era só o que fartava. Jornal A UNIÃO, edição de
04.02.1995, p. 4.
_A propósito, quem é Humberto Lucena. Jornal A UNIÃO, edição de
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IV - Documentos
Autos do Processo da Representação Eleitoral n. 134/94.
V - Editoriais:
1. A UNIÃO
_JUSTIÇA E ANISTIA. Edição de 11.12.1994, p.4.
2. FOLHA DE SÃO PAULO
_Extorsão política. Edição de 07.01.1995.
_Parlamentáveis. Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, edição de
16.01.1995.
573
_Folhinhas do Crime. Jornal do Brasil, edição de 17.01.1995, p. 8.
_O desencanto dos cidadãos. Jornal O ESTADO DE SÃO PAULO,
edição de 1995.
_Senado quer trocar Arida por Lucena. Edição de 05.01.1995.
_Palhaçada. Edição de 09.12.1994.
_Os calendários de Lucena. Edição de 02.12.1994.
3. JORNAL CORREIO DA PARAÍBA
_Nós, entre Collor e Humberto. Edição de 13.12.1994, p. 6.
_Os poderes da fraca República. Edição de 13.12.1994, p. 2.
_Legislativo e Judiciário sofrem. Edição de 16.12.1994, p. 4.
_Humberto pagou sua conta sem dever. Jornal CORREIO DA
PARAÍBA, edição de 15.09.1994, p. 2.
4. JORNAL DO BRASIL
_Um Caso Exemplar. Edição de 02.12.1994, p. 10.
_Nova distinção entre brasileiros. JORNAL O ESTADO DE SÃO PAULO,
edição de 03.12.1994, p. A-3.
_Salvo-conduto. Edição de 23.01.1995, p. 10.
_Lucena propõe anistia para servidor grevista punido. Edição de
15.01.1988.
_Epitácio de uma Crise. Edição de 03.12.1994, p. 10.
_Rasgando a fantasia. Edição de 20.01.1995, p. 8.
-Laços de família. Edição de 14.09.1994, p. 10.
574
_Os Dois Brasis. Edição de 06.01.1995.
_Um Caso Exemplar. Edição de 02.12.1994, p. 10.
_A última impressão. Edição de 1995.
_Ardil do Atraso.
_Prata da Casa.
5. O ESTADO DE SÃO PAULO
_Recomeçando a luta. Edição de 02.12.1994, p. A3.
_O desencanto dos cidadãos. Edição de 20.01.1995, p. A3.
_Nova distinção entre brasileiros. Edição de 03.12.1994, p. A3.
_A confusão que pode vir dia 1º.
_PMDB e PFL já disputam vaga de Lucena. Edição de 03.12.1994.
_Lucena agora propõe mudar uso da gráfica. Edição de 01.02.1995.
_A maldição do impeachment. Edição de 24.06.1996.
_Projeto de anistia a Lucena sofre restrições. Edição de 06.12.1994.
_Senador elogia decisão de Fernando Henrique Cardoso. Edição de
04.02.1995.
_Lucena agora propõe mudar uso da gráfica. Edição de 01.02.1995.
_Eleitores paulistas protestam contra anistia e salários de
parlamentares. Edição de 26.01.1995.
_Militares criticam congressistas. Edição de 10.02.1995.
-Incoerência. Edição de 11.02.1995.
_OS 9O DIAS DE FHC À FRENTE DO GOVERNO. Edição de 02.04.1995.
575
_Lucena vai presidir comissão. Edição de 08.09.1995.
_Para deputado, mídia faz campanha contra Congresso. Edição de
03.07.1995.
_ANIMAL POLÍTICO. Edição de 03.04.1996.
_Corrupção impune é o que mais frustra a sociedade. Edição de
20.08.2007.
_Humberto Lucena morre aos 69 em SP. Edição de 14.04.1998.
TREVISAN, Cláudia. Para advogados, anistia é inconstitucional.
Edição de 21.01.1995.
_FHC se contradiz, diz advogado. Edição de 04.04.1996.
Tribunal Regional Eleitoral da Paraíba. Processo n. 132/2004.
Tribunal Superior Eleitoral. Recurso Ordinário n.
Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n.
VI - LEGISLAÇÃO
1. BRASIL. Presidência da República. Constituição da República
Federativa do Brasil. 1988. Disponível em:
<https://www.planalto.gov.br/> Acesso em: 15 abr 2017.
2. BRASIL. Presidência da República. Lei Complementar nº 64, de 18
de maio de 1990. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/>
Acesso em: 15 abr 2017.
3. BRASIL. Presidência da República. Lei n. 8.985, de 07 de fevereiro
de.1995. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/> Acesso
576
em: 15 abr 2017.
VII - REVISTAS
A CARTA
VEJA: Pecados impressos – O TSE cassa a candidatura de Lucena e
investiga senadores que fizeram campanha à custa do Erário. Edição
de 21.09.1994.
_Cordel da Gráfica (Para ser impresso na gráfica do Senado).
SOARES, Jô.
VIII - DISCURSOS
Discurso de posse de Fernando Henrique Cardoso na presidência da
República. Proferido 01.01.1995. Disponível em:
<https://www.planalto.gov.br/> Acesso em: 15 abr 2017.

577
CHARGES

578
Fonte: Jornal O ESTADO DE SÃO PAULO, edição de 15 de setembro de
1994.

579
Fonte: Jornal O GLOBO, edição de 15 de setembro de 1994.

580
Fonte: Jornal O GLOBO, edição de 16 de setembro de 1994.

581
Fonte: Jornal O ESTADO DE SÃO PAULO, edição de 06 de janeiro de
1995.

582
Fonte: Jornal CORREIO DA PARAÍBA, edição de 08.01.1995, p. 2.

583
Fonte: Jornal O ESTADO DE SÃO PAULO, edição de 09 de janeiro de
1995.

584
Fonte: Jornal O ESTADO DE SÃO PAULO, edição de 09 de janeiro de
1995.

585
Fonte: JORNAL DO BRASIL, edição de 10 de janeiro de 1995.

586
Fonte: Jornal O ESTADO DE SÃO PAULO, edição de 11 de janeiro de
1995.

587
Fonte: JORNAL DO BRASIL, edição de 19 de janeiro de 1995.

588
Fonte: Jornal CORREIO DA PARAÍBA, edição de 19 de janeiro de 1995,
p. 2.

589
Fonte: Jornal O ESTADO DE SÃO PAULO, edição de 20 de janeiro de
1995.

590
Fonte: Jornal O GLOBO, edição de 20 de janeiro de 1995.

591
Fonte: Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, edição de 20 de janeiro de 1995.

592
Fonte: Jornal O GLOBO, edição de 21 de janeiro de 1995.

593
Fonte: Jornal O GLOBO, edição de 28 de janeiro de 1995.

594
Fonte: A CARTA

595
Fonte: Jornal O NORTE, Edição de 18.02.1994

596
Fonte: Jornal do Brasil, edição de 1995.

597
Fonte: Jornal Correio da Paraíba, edição 19955.

598
Fonte: Jornal O Globo, edição 1995.

599
Fonte: Jornal Correio da Paraíba, edição 1995.

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