BOM DIA ANGUSTIA Andre Comte Sponville

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BOM DIA, ANGÚSTIA!

André Comte-Sponville

O medo é o primeiro sentimento por certo, pelo menos ex útero: o que mais angustiante que nascer? E em geral deve
ocorrer que ele seja o derradeiro: o que mais angustiante do que morrer?

Aí está: nascemos na angústia, morremos na angústia. Entre os dois, o medo quase não nos deixa. O que mais
angustiante do que viver? É que a morte é sempre possível, e é isso a que se chama um vivente: um pouco de carne oferecida à
agressão do real. Um pouco de carne ou de alma expostas ali, à espera de sabe-se lá o quê. Sem defesas. Sem auxílio. Sem
amparo. Que é que é a angustia, senão esse sentimento em nós, com ou sem razão, da possibilidade imediata do pior?

Não se refuta um sentimento, e este menos do que os outros. Que o pior seja de fato possível, sempre possível, quem o
pode negar? Certas pessoas parecem separadas da angústia apenas pela pobreza da sua imaginação, como se fossem por
demais tolas ou por demais inteligentes para ter medo. Invejo-as às vezes, mas erroneamente. A angústia faz parte de nossa vida.
Abre-nos para o real, para o futuro, para a indistinta possibilidade de tudo. Ter de libertar-se dela é o que ela própria nos indica
suficientemente, pelo desconforto. Mas não depressa demais nem a qualquer preço. O medo é uma função vital – é uma
vantagem seletiva evidente –, e não poderíamos viver por muito tempo sem ele. A angústia não passa, por certo, de sua ponta
mais fina, a mais sensível, a mais refinada... Demais? Quem o pode julgar? Que seria o homem sem a angústia? A arte, sem a
angústia? O pensamento, sem a angústia? Depois, a vida é o pegar ou largar, e é disso também que a angústia, dolorosamente,
nos lembra. Que não há vida sem risco. Não há vida sem sofrimento. Não há vida sem morte. A angústia marca a nossa
impotência, é nisso que é verdadeira também, e definitivamente. Fazem-me rir nossos pequenos gurus, que querem proteger-nos
dela. Ou nossos pequenos psis, que querem curar-nos dela. Por que não nos curam, em vez dela, da morte? Por que não nos
protegem, em vez dela, contra a vida? Não se trata de evitar, e sim de aceitar. Não de curar, e sim de atravessar. O universo nada
nos prometeu, dizia Alain. E o que mais além do universo? Como seríamos os mais fortes? Tudo nos ameaça; tudo nos machuca,
tudo nos mata. O que mais natural do que a angústia? Os animais só são protegidos dela, se o são, por uma atenção demasiado
estrita ao presente. Mas nós, que nos sabemos mortais? Que só amamos aquilo, ai de nós, que vai morrer? O que mais humano
que do que a angústia? A morte nos liberta dela, certamente, mas sem refutar. Certas drogas a tratam mas sem a desmentir.
Verdade da angústia: somos fracos no mundo, e mortais na vida. Expostos a todos os ventos, a todos os riscos, a todos os
medos. Um corpo para as feridas ou para as doenças, uma alma para as mágoas, e ambos prometidos à morte somente...
Ficaríamos angustiados por menos.

Evoquei apenas de passagem a diferença entre o medo e a angústia, e nada disse da ansiedade. Essas sutilezas
terminológicas não me interessam muito. Por que a língua teria razão? O corpo sabe mais sobre isso. Costuma-se distinguir o
medo, que suporia um perigo real, da angústia, que só se basearia nos perigos imaginários, até mesmo não teria objeto. E, por
certo, não é a mesma coisa ter medo de um cão real, que ameaça você, e sabe-se lá o quê, que oprime você. Será tão simples,
porém? A criança que tem medo do escuro, como se diz, terá medo de algo determinado? Real? Imaginário? Terá medo dos
fantasmas, dos ladrões, da morte? Terá medo de nada? De tudo? Isso depende, claro, das crianças e dos momentos. Mas ela tem
medo, é o que cada qual bem sabe, e o que ela diz de fato. Acreditarão que seu medo mudará de natureza porque o terão
batizado ansiedade, angústia ou fobia? “Seja qual for a diversidade de ervas que haja”, dizia Montaigne, “tudo é abrangido pelo
nome de verdura.” Seja qual for a diversidade de medos, igualmente, pelo nome angústia ou ansiedade. Não passam de palavras,
e nunca a teremos em número suficiente para expressar o infinito do real ou de nossos pavores. Que os especialistas tenham
necessidade dessas categorias, muito bem. Mas a angústia, não. Mas o medo, não. Um objeto? Não há objeto? Quem o pode
saber, quando tem medo? Você está caminhando sozinho, à noite, numa rua deserta e sombria de um bairro deserto... Ou então
numa floresta, e a noite jamais é tão negra como nas florestas. Você tem medo de que haja alguém ou porque não há ninguém?
De ambos sem dúvida, indissociavelmente. E, depois, outra coisa também, que já aterrorizava a criança pequena que você era: os
fantasmas talvez, ou os ladrões, ou a escuridão, ou a loucura de uma mãe, ou a sua... Quanto, a saber, se o objeto é real ou
fantasmagórico... Quem pode estar certo de que fantasmas não existem? E que lhe importa, se ela os teme apesar de tudo? O
medo produz um rela suficiente: as fantasias fazem parte do mundo, e cumpre mesmo defender-se também contra o que não
existe. O que mais real do que a morte? O que mais imaginário contudo? Será ela um objeto possível? Talvez não, mas por que
isso é ainda mais apavorante, como o nada necessário... Medo? Angústia? Ansiedade? Nem por isso deixamos de morrer. A vida
é curta demais para contentar-se com palavras. E difícil demais, porém para dispensá-las.
Aconteceu-me, porque me interrogavam, distinguir o medo, ante um perigo real, da ansiedade, que se basearia só em
perigos possíveis, e da angústia, que se basearia num perigo necessário. Queria com isso levar em conta não só uma espécie de
graduação (a ansiedade é menor do que o medo, parece-me, e menor também do que a angústia), mas sobretudo o que há de
inelutável no próprio sentimento da angústia, ou melhor, o sentimento de inelutável que ela dá, como de um perigo que não se
poderá evitar nem superar, como de uma morte certa, o que ela é de fato, e próxima, o que nem sempre é... A angústia é um
medo imaginário e necessário – sem objeto real, sem saída possível. É por isso que nos pega e nos corrói. Como se poderia
vencer, quando não há nada para enfrentar?

Bem sei que cumpre distinguir aqui a crise de angústia, com suas manifestações somáticas tão espetaculares, da
angústia existencial, que o mais das vezes é desprovida delas. Mas não é indiferente que se utilize a mesma palavra, e que a
ideia de morte, para descrever ambas, intervenha tão espontaneamente. “Doutor, ela diz que vai morrer!” Era esse o título de um
longo artigo que um seminário de grande circulação consagrou, há alguns meses, às crises de angústia e ao seu tratamento de
urgência (no caso por SOS-Médicos) na região parisiense. E imagina-se o infeliz companheiro desarvorado que lhe dá
palmadinhas na mão, ou a infeliz colega, que só sabe repetir esperando o médico, para tranquiliza-la, ou para tranquilizar a si
mesma: “Mas não, não, você não vai morrer...” É, porém, ela vai morrer – mas não logo em seguida. Ela só está doente de
antecipar, de ter razão, como se diz, cedo demais. Mas que é que isso muda no fato? A angústia se engana sobre os prazos, sem
dúvida; mas, e sobre a morte? É como que um curto-circuito do tempo. Um atalho insuportável rumo ao essencial. Pensamos em
Pascal, e é verdade que a angústia lhe dá razão, ou que ele dá razão à angústia. Lembrem-se: “Que se imagine grande número
de homens acorrentados, e todos condenados à morte, sendo todos os dias uns deles degolado à vista dos outros, aqueles que
restam veem sua própria condição naquela de seus semelhantes, e, olhando-se uns aos outros com dor e sem esperança,
esperam a sua vez. Essa é a imagem da condição dos homens.” Como não ficariam angustiados? Contra o que cada um se vira
como pode. “Cumpriria, para agir corretamente, que ele se tornasse imortal; não o podendo, teve a ideia de impedir-se de pensar
nisso...” Angústia ou diversão. Não digamos precipitadamente que a saúde está exclusivamente do lado desta, nem que aquela,
por conseguinte, seria sempre patológica. A sanidade mental não poderia medir-se apenas pelo bem-estar. A angústia do soro
positivo, a angústia do condenado à morte, a angústia da mãe cujo filho está doente, quem as julgará patológicas? E quem não vê
que a nossa de certo modo se parece com a deles? Qual dentre de nós escapará da morte? E qual de nossos filhos? Que podem
os ansiolíticos contra uma ideia verdadeira? Isso não impede de utilizá-los, quando é preciso, quando a vida seria muito mais
insuportável ou atroz. Mas é preciso sempre? E não será pagar caro, muito amiúde só suprimir o sofrimento – mediante
medicação ou diversão – em troca da coragem e da lucidez? Será a saúde que se quer, ou o conforto? A capacidade de enfrentar
o real, ou a possibilidade de fugir dele?

Compreendam-me bem: não ignoro que existam ansiedades patológicas, que merecem tratamento. Vi algumas de bem
perto. Revejo ainda Althusser, em sua clínica, incapaz quase de falar, de comer, de defecar (o corpo inteiro atado de angústia,
explicava-me ele), suplicando às enfermeiras que aumentassem as doses de ansiolítico... Depois outras lembranças, mais
próximas, que não contarei. Os progressos da quimioterapia, em matéria psiquiátrica, aqueles também embora menos
espetaculares, das psicoterapias, fazem parte das boas novas desta época, e estaríamos errados em desprezá-los. Demasiado
sofrimento está em jogo aí, para os doentes e para seus próximos. Demasiada infelicidade. Demasiada impotência. Um de meus
amigos, por exemplo, narrando-me suas crises de angústia e de depressão, fala-me desse novo medicamento que nos vem dos
Estados Unidos, que decerto lhe salvou a vida, diz ele, e sem efeitos secundários observáveis... Cumpriria ser bem simplório ou
bem insensível para fazer-se de rogado. Quem não prefere os neurolépticos à camisa-de-força, os antidepressivos aos
eletrochoques, os ansiolíticos ao internamento? Vejo que ficam chocados, aqui ou ali, com que tantos de nossos contemporâneos
consumam psicotrópicos. Mas onde está o mal, se com eles vivem melhor? Será o caso? Isso é que eles devem examinar, com
seu médico, e que ninguém poderia decidir no lugar deles. O sofrimento comanda. O horror comanda. Cada qual resiste como
pode. Será nossa culpa se não temos mais fé?

Não esqueçamos, porém, que a medicina só é válida, para os doentes, e que não se poderia considerar como tal todo
indivíduo que teme morrer, sofrer ou não ser amado. Onde está o sintoma? Onde está a patologia? Ele sofrerá de fato, morrerá de
fato, e jamais será amado, com toda evidência, como o teria desejado. E então? Resta-lhe enfrentar isso, aceitar isso, superar
isso, se puder, em vez de fugir. Sofre com isso? Mas onde se viu que todo sofrimento seja patológico? Que todo sofrimento seja
nefasto? Ele o é, se impede de viver ou agir. Mas se ele ajuda? Se impele a isso? Se é fator de revolta ou de combate? Vai-se
renunciar a pensar, porque isso angustia? A viver, porque isso causa medo? A amar, porque isso causa dor? Aceitemos, ao
contrário, tanto quanto pudermos, e o podemos apesar de tudo, ao menos um pouco, ao menos às vezes, e esse é justamente o
sinal de nossa sanidade, aceitemos em vez de sofrer e de tremer. Quem não tem medo pelos filhos, e por isso deve-se correr ao
psiquiatra? Quem não tem medo da doença, da velhice, da solidão? A vida é feita de tal modo que só se pode escapar a um
desses males (por exemplo, a velhice) caindo noutro (por exemplo, uma morte prematura). Aliás, é por isso que a vida por vezes é
mais fácil, apesar de tudo, do que a imagem que dela nos fizéramos: porque as angústias se somam, quase sempre (receamos a
um só tempo a velhice e a morte prematura), ao passo que os males, por vezes e necessariamente, se subtraem. Receamos mil
mortes, e jamais vivemos senão uma... Toda angústia é imaginária; o real é seu antídoto.

Isso não impede que a vida seja de fato insatisfatória, pelo menos enquanto se espera outra coisa (“a angústia é
incontestavelmente relacionada com a espera”, escrevia Freud), e enquanto a angústia sempre acompanha nossos sonhos, ou os
precede. Que o medo seja primeiro, é o que creio, e que jamais se espere senão com base numa nostalgia ou num medo (numa
nostalgia e num medo) prévios. O que se espera é o que se perdeu, talvez, ou que se receia perder. A verdade é que a angústia e
a esperança andam juntas. “Não há esperança sem receio”, dizia Spinoza, “não há receio sem esperança”. Espera-se só o que
não se tem, só o que se ignora, só o que não depende de nós: como não se ficaria angustiado? E como não se esperaria, já que
se tem medo? Poder libertar-se disso, talvez. “As afeições da esperança, e do receio não podem ser boas por si próprias”,
escrevia ainda Spinoza, e todos os esforços da razão tendem a livrar-nos disso. Daí aquilo a que chamei o desespero, a que
Freud chama o trabalho do luto, e que não passa de aceitação da vida tal como é, difícil e arriscada, cansativa, angustiante,
incerta... Nada está adquirido nunca, nada está prometido nunca, senão a morte. Por isso só se pode escapar à angústia
aceitando isso mesmo que ela percebe, que ela recusa e que a transtorna. O quê? A fragilidade de viver, a certeza de morrer, o
fracasso ou o pavor do amor, a solidão, a vacuidade, a eterna impermanência de tudo... Essa é a vida mesma, e não há outra.
Solitária sempre. Mortal sempre. Pungente sempre. E tão frágil, tão fraca, tão exposta! “Todo contentamento dos mortais é mortal”,
dizia Montaigne; é isso que a angústia vê bem (pelo que está mais certa do que a diversão), mas não sabe aceitar. Seria preferível
a sabedoria que soubesse dizer sim. Mas quem é capaz disso? A diversão, em todo caso, não poderia ser seu sucedâneo: não é
dizer sim falar de outra coisa... Nem a saúde, que nada diz. Como gostariam de fazer dela uma filosofia! Uma sabedoria! Uma
religião! Contra a doença! A medicina. Contra a angústia? A medicina. Contra a morte? A medicina. E contra a vida, o quê? A
medicina? Conto do vigário! A vida não é uma doença, nem a morte, nem, pois, a angústia que ambas inspiram, pelo menos esta
angústia, que não impede viver, que não impede pensar, mas nasce, ao contrário, do fato de que se vive e pensa como se pode,
com todos os riscos sem saber (se soubéssemos viver e pensar, que restaria para pensar e para viver?), sem sequer poder
aprender verdadeiramente, ou tarde demais para que isso possa servir por muito tempo ou mudar o essencial. “O tempo de
aprender a viver já é tarde demais...” Mas jamais tarde demais para ter medo, nem cedo demais, e é o que a angústia significa.
Que há sempre futuro suficiente diante de si para apavorar, sempre pouco demais, para tranquilizar ou consolar. Verdade da
angústia: o tempo é essa abertura para o futuro, ou não é nada. Pelo que só tem escolha entra angústia e a eternidade, ou
melhor, não é uma escolha, mas os dois polos de viver. Não é certo que eles se excluam. Tudo é eterno, por certo, já que tudo é
presente; mas nada é definitivo além da morte.

Conta-se no Oriente esta história, que já não sei se é de origem budista ou taoísta. Um monge caminha na floresta,
pensativo e preocupado. É apenas um monge comum, não um sábio, não um liberto vivo: não conheceu o despertar, não
conheceu a iluminação. Por que está preocupado? Porque ficou sabendo que seu mestre – que era, por sua vez, um sábio, um
liberto vivo, um desperto –, que seu mestre, portanto, morreu, o que não é grave, assassinado a pauladas por salteadores, o que
tampouco o é. Não há a menor necessidade de ser um sábio para compreender que é preciso morrer mais um dia menos dia e
que a causa não importa muito, que isso é apenas impermanência e vacuidade. Qualquer monge que seja sabe isso. Por que,
então, essa fronte preocupada, essa perplexidade, essa inquietude vaga? Porque uma testemunha, que viu a cena, contou ao
nosso monge que o sábio, durante as pauladas, gritara atrozmente, E era isso que perturbava o nosso monge. Como um liberto
vivo, um desperto, um buda, podia gritar atrozmente por algumas pauladas impermanentes e vazias? Para que serve a sabedoria,
se é para gritar como um ignorante qualquer? Absorto nessa meditação, nosso monge não viu aproximar-se um bando de
salteadores, que o atacam e partem-lhe os ossos a pauladas. Durante as pauladas, nosso monge gritou atrozmente. Ao gritar,
conheceu a iluminação.

Que lição tiro disso? Entre outras, esta, que a dor e a angústia fazem parte do real. Que fazem parte da salvação. Que
são eternas e verdadeiras, tanto quanto o resto. E que a sabedoria está na aceitação do real, não em sua negação. O que mais
natural, quando se sente dor, do que gritar? O que mais sábio, quando se está angustiado, do que aceitá-lo? “Enquanto fazes uma
diferença entre o samsara e o nirvana”, dizia Nagarjuna, “estás no samsara.” Enquanto você faz uma diferença entre sua pobre
vida e a redenção, está em sua própria vida.

Não sei se é verdade, que toda angústia é de morte, como ás vezes acreditei; mas, como toda vida é mortal, como se
escaparia à angústia?

Nem se toda a angústia revela o nada, como o pretendia Heidegger, diante do que se destacam a contingência ou o
estranhamento do ser (por que haverá alguma coisa em vez de nada?) e de nós mesmos como antes. Mas, como todo ser é
contigente, comose escaparia à angústia e ao estranhamento?

Por que alguma coisa em vez de nada? Por que isto em vez de outra coisa? Eu, em vez de outro? Viver, em vez de
morrer? Assim, e não de outra maneira? Todas as pílulas do mundo, embora possam fazer-nos esquecer essas questões, não
poderiam suprimi-las – e ainda menos responder a elas.

Que é a sanidade psíquica? Talvez a capacidade de enfrentar o real e o verdadeiro sem perder toda a força, toda a
alegria, toda a liberdade. Onde há margem para a angústia, e é isso que distingue a sanidade da sabedoria. Pois o sábio (“na
medida que é sábio”, como dizia Spinoza, e, claro, ninguém o é por inteiro), o sábio, portanto, está livre de angústia, por certo,
mas somente na medida em que está livre de si. Mais ninguém para salvar, e é a própria salvação. Fim do eu: a morte ou a
angústia já não tem onde pegar. Nirvana: extinção. Mas é porque agora só há a luz. Morrer para si mesmo? Se quiserem. Mas é
nascer enfim, viver enfim, em vez de simular. O eu nada é senão o conjunto das ilusões que ele faz sobre si mesmo. A sabedoria,
libera disso, mas sem o salvar. Ou o salva, mas perdendo-o. Narciso não leva vantagem nisso, sendo por isso que estremece.
Mesmo a sabedoria lhe dá medo, a qual só o libertaria dissipando essas miragens que são ele. Esse é o verdadeiro preço a pagar,
e nenhuma droga, nenhuma terapia – e nenhuma filosofia – poderia dispensar-nos disso.

Para nós, que não estamos nesse ponto, que estamos muito longe dele, resta-nos aceitar a angústia, habitá-la, e o mais
serenamente que pudermos. É apenas um semiparadoxo. Por que cumpriria ter medo de ter medo? Se o sábio é quem já não tem
angústias, o filósofo talvez seja quem já não se angustia de tê-las.

Que é a sanidade psíquica? É o estado, essa definição não é inferior a outra, que torna a filosofia possível e, aliás,
necessária. Dirão que houve filósofos loucos. Mas, se o fossem deveras, não teriam filosofado; tendo-o ficado completamente
(Nietzsche), deixaram de filosofar. Que um filósofo, às vezes, tenha necessidade de um psiquiatra, isso não poderia, pois,
dispensar os psiquiatras de filosofar. É isso que a angústia lembra a uns e aos outros, marcando os limites da filosofia, quando a
angústia é patológica, bem como da medicina, quando ela não o é. Que tais limites sejam imprecisos, que por vezes se invadam
mutuamente (onde termina o normal? Onde começa o patológico?), isso é uma evidência, mas que não poderia suprimi-los. A
angústia existencial não é uma doença, a neurose de angústia não é uma filosofia. Bom trabalho a todos.

COMTE-SPONVILLE, André. Bom dia angústia! / André Comte-Sponville ; tradução Maria Ermantina Galvão G. Pereira. – São
Paulo : Martins Fontes, 1997, p. 11-21.

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