Livro-Trabalho e Sociabilidade Unidade I
Livro-Trabalho e Sociabilidade Unidade I
Livro-Trabalho e Sociabilidade Unidade I
Doutora em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Doutora em Educação
pela PUC-SP. Mestre em Direito Civil pela UNIP. Mestre em História Contemporânea pela PUC-SP. Graduada em
Direito pela PUC-SP. Pós-doutorado em Direito Constitucional pela PUC-RS. Docente da área de Direito da UNIP.
Professora colaboradora do programa de mestrado em Administração da UNIP. Membro da Comissão de Qualificação
e Avaliação da UNIP. Professora e Coordenadora do MBA de Gestão Jurídica de Seguros e Inovação da Escola de
Negócios e Seguros (ENS). Vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT). Membro do
Conselho Científico do Comitê Ibero Latino-Americano da Associação Internacional de Direito de Seguro (Aida).
Advogada e parecerista. Pesquisadora na área de inovação e seguro pelo centro de pesquisa e economia do seguro
da Escola de Negócios e Seguros.
CDU 301.188.1
U511.73 – 21
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permissão escrita da Universidade Paulista.
Prof. Dr. João Carlos Di Genio
Reitor
Comissão editorial:
Dra. Angélica L. Carlini (UNIP)
Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR)
Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT)
Apoio:
Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD
Profa. Deise Alcantara Carreiro – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos
Projeto gráfico:
Prof. Alexandre Ponzetto
Revisão:
Bruno Barros
Aline Ricciardi
Sumário
Trabalho e Sociabilidade
APRESENTAÇÃO.......................................................................................................................................................7
INTRODUÇÃO............................................................................................................................................................7
Unidade I
1 TRAJETÓRIA HISTÓRICA DO TRABALHO NAS SOCIEDADES ORGANIZADAS................................9
1.1 Formação do Estado e das formas de governo......................................................................... 20
1.2 O absolutismo......................................................................................................................................... 22
1.3 Revoluções burguesas: Inglaterra, Estados Unidos e França............................................... 26
1.4 Os principais pensadores do Estado moderno........................................................................... 31
1.5 A Revolução Industrial........................................................................................................................ 43
2 PENSAMENTO LIBERAL E PENSAMENTO MARXISTA: PRODUÇÃO E TRABALHO..................... 50
3 ESTADO DE BEM-ESTAR SOCIAL E A DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA.......................................... 59
4 CAPITALISMO HEGEMÔNICO E GLOBALIZAÇÃO.................................................................................. 70
Unidade II
5 DEFINIÇÃO DE TRABALHO: FORMAS DE ORGANIZAÇÃO EMPRESARIAL
DO TRABALHO....................................................................................................................................................... 79
5.1 Formas de organização empresarial.............................................................................................. 86
6 TECNOLOGIA, SOCIEDADE E PRODUÇÃO ECONÔMICA..................................................................... 96
7 NOVAS FORMAS DE PRODUÇÃO E TRABALHO: PLATAFORMAS DIGITAIS,
EMPREENDEDORISMO DIGITAL E NECESSIDADE DE PROTEÇÃO JURÍDICA
E SOCIAL DO TRABALHADOR.........................................................................................................................106
8 TRABALHO E SOCIABILIDADE....................................................................................................................126
8.1 O papel do serviço social na sociedade 4.0..............................................................................133
APRESENTAÇÃO
Esse mundo tecnológico já foi chamado de muitas formas diferentes pelos estudiosos: sociedade
pós-moderna, sociedade em rede, sociedade de informação, sociedade de inovação entre outros. Mas o
mais importante não é a denominação que possa ser dada ao conjunto de características da sociedade
contemporânea. O mais importante é nos dedicarmos à reflexão de como essas novas características
da sociedade afetam as relações sociais e, muito em especial, as relações de produção e trabalho.
Com aportes teóricos, reflexões e análises da realidade, o percurso pretende iluminar a prática
dos profissionais de serviço social, para que ela se concretize de forma muito positiva em um mundo
marcado por transformações importantes que precisam ser conhecidas, analisadas e compreendidas.
A atuação dos profissionais de serviço social, assim como em outras categorias profissionais, educação,
por exemplo, precisa estar afinada com as transformações dos modos de produção e da organização
da vida em sociedade, para que os projetos e a construção das políticas públicas levem em conta as
possibilidades e particularidades do nosso tempo.
Nosso olhar atento de estudiosos das relações sociais deve percorrer os diferentes aspectos que
na atualidade caracterizam o mundo em que vivemos, como esses aspectos impactam o Brasil e sua
sociedade e que reflexões poderemos construir para concretizarmos um país mais livre, justo e
solidário que a Constituição Federal determinou como objetivo maior a ser alcançado.
INTRODUÇÃO
O fio condutor de nossos estudos são as relações que se constroem a partir do mundo do
trabalho. É um objetivo vigoroso e complexo que vai exigir nossos melhores esforços de estudo,
pesquisa e reflexão.
Para que possamos dar conta dos objetivos, vamos estudar, primeiramente, a trajetória histórica
do trabalho nas sociedades organizadas; o pensamento liberal e o pensamento marxista nas relações
de produção e de trabalho; e o estado de bem-estar social e os fundamentos da doutrina social da
Igreja, que foram relevantes para a regulação das relações de trabalho. Vamos finalizar com a análise
sobre o capitalismo como prática hegemônica e a globalização que vivemos no mundo a partir do fim
da Guerra Fria, em 1989.
7
Depois, vamos nos dedicar a compreender a sociedade contemporânea, tecnológica e de
informação e como se dá a produção nesse novo cenário. Em seguida, vamos analisar o mundo do
trabalho e suas relações nesse ambiente de predomínio tecnológico, em especial a terceirização, o
teletrabalho, o trabalho intermitente, os novos espaços de trabalho (coworking e home office), e
como os instrumentos tecnológicos impactam as relações de trabalho, com o uso da inteligência
artificial, das máquinas que aprendem (machine learning) e outras tecnologias de produção.
Vamos encerrar refletindo sobre as novas formas de trabalho nas plataformas digitais, as relações
sociais na sociedade em rede e, em especial, sobre o papel do profissional de serviço social nesse
mundo em transição.
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TRABALHO E SOCIABILIDADE
Unidade I
1 TRAJETÓRIA HISTÓRICA DO TRABALHO NAS SOCIEDADES ORGANIZADAS
Os estudos históricos e antropológicos apontam que os seres humanos sempre viveram em grupos.
As pesquisas que conhecemos sobre a história da humanidade relatam que os homens sempre viveram
em grupo para sobreviver, porque juntos possuíam maior força física para solucionar os problemas
da alimentação, abrigo e defesa contra animais, contra outros grupos humanos e a defesa contra os
imprevistos da natureza.
O grande temor dos primeiros habitantes humanos da Terra foram os fenômenos naturais, como
chuvas, terremotos, raios e trovões, ou ainda o frio ou calor intensos que provocam riscos para a
sobrevivência. Foi preciso utilizar força física, inteligência e capacidade de organização do grupo
para garantir alimentação e abrigo para enfrentar as diferentes dificuldades naturais. Em grupos,
os homens se protegeram, se defenderam e se organizaram para produzir de forma eficiente o
necessário para sua sobrevivência, inclusive para a procriação de filhos para se constituírem em novos
componentes do grupo.
Vamos fazer uma rápida passagem por importantes marcos da história da humanidade, que
certamente você já estudou em outros momentos, mas que agora servirão de balizadores para nossas
reflexões em torno do trabalhos e da sociabilidade.
Parece ser possível afirmar que os homens sempre trabalharam mesmo no período que definimos
como fase anterior à agrícola, e, para desenvolverem seu trabalho, produziram várias formas de
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Unidade I
conhecimento em relação ao meio em que viviam. Yuval Noah Harari, doutor em História pela
Universidade de Oxford e professor da Universidade Hebraica de Jerusalém, faz importantes
observações a respeito desse período. Leia com atenção:
[...]
10
TRABALHO E SOCIABILIDADE
Figura 1
É importante refletir sobre o fato de que os Homo sapiens não eram meros coletores da natureza,
mas também desenvolviam atividade de construção de conhecimento para aprender habilidades que
pudessem garantir sua subsistência. Isso, de fato, é muito semelhante ao que fazemos na atualidade
em nossas atividades de trabalho: desenvolvemos o intelecto na construção de conhecimento a fim
de desempenhar atividades pelas quais somos remunerados e pagar o que é necessário para uma vida
digna como alimentos, moradia, roupas e outros.
O trabalho e suas diversas formas ao longo da história parece ser um importante fio condutor para
compreendermos a trajetória da humanidade e das relações sociais.
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Unidade I
Observação
Vamos prosseguir acompanhando a linha do tempo da humanidade e suas relações como trabalho.
Adhermar Marques afirma:
[...]
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TRABALHO E SOCIABILIDADE
Repare que tanto os fenícios como os persas desenvolveram atividades de produção – agrícola
ou de comércio marítimo – e por meio delas, desenvolveram suas relações sociais e de organização.
A necessidade de sobrevivência incentivou os grupos sociais para a produção de alimentos e de
bens para sua proteção. Com o tempo, a sobrevivência deixou de ser a única razão do trabalho e
da produção, surgindo novas necessidades sociais e de ampliação de domínios territoriais que levaram
a humanidade por caminhos de sempre cada vez maior e intensa produção.
Adhemar Marques afirma que nas civilizações da chamada Antiguidade Oriental, algumas
características merecem destaque, como, por exemplo:
—
Centralização político-administrativa, que culminou com
a constituição do Estado, no qual o poder encontrava-se
institucionalizado e era exercido sobre o conjunto da sociedade
num determinado território. Essa instituição foi importante
para a mobilização de numerosos contingentes de trabalhadores
indispensáveis à realização de obras de drenagem e irrigação e para
a “agricultura de regadio” (MARQUES, 2006, p. 13).
Podemos perceber que algumas questões que atormentam a sociedade até hoje têm sua origem
em um passado muito distante e que, nem por isso, conseguimos encontrar a solução para problemas
como regime de trabalho compulsório ou escravo; surgimento de elite; e exploração social de alguns
homens em relação a outros.
O trabalho como atividade humana de subsistência está presente em todas as diferentes épocas
da história da humanidade como teremos oportunidade de analisar detalhadamente. Da produção
agrícola inicial dos primeiros tempos históricos da agricultura, passando pela Revolução Industrial
até chegar ao momento em que vivemos: a chamada sociedade de inovação, com automação da
produção industrial e de muitas áreas de prestação de serviços, a Indústria 4.0. O trabalho e os
trabalhadores foram e continuam sendo elementos essenciais para construirmos um diálogo com a
organização do Estado e com as formas de governo, a fim de podermos analisar a história e contribuir
para a construção do futuro.
No campo das relações de trabalho, os problemas e tensões precisam ser solucionados de forma
institucional, ou seja, por meio da aprovação de normas para organização e proteção do trabalhador,
da remuneração e para possibilidades de empregabilidade. A prevalência da força de alguns grupos
sobre outros – povos conquistadores sobre conquistados –, ou da elite sobre os homens comuns não
foi uma solução capaz de viabilizar harmonia e paz social. Ao contrário, os atritos na área das relações
de trabalho sempre existiram e até hoje causam consequências sociais, econômicos e políticas.
O trabalho foi sempre uma relação essencial para a sociedade nas diferentes épocas históricas que
a humanidade vivenciou. Da mesma maneira foi essencial para a formação do Estado e das formas de
governo, bem como para a organização dos diferentes grupos humanos que agem em cada sociedade.
A ideia de Estado surge exatamente da necessidade de organizar os grupos sociais para que eles
respeitem uma determinada ordem e, desse modo, vivam em paz e com oportunidade de garantir
sobrevivência e bem-estar. Subjacente a essa ideia de organização está, evidentemente, a ideia de
poder, como ele se constitui, se organiza e se mantém.
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TRABALHO E SOCIABILIDADE
Seja em uma tribo ou em uma cidade-Estado, como viviam os gregos, ou em um império, como
viveram os romanos durante um largo período de tempo, não importa a forma como tenham se
organizado, quem é que tem legitimidade para mandar e exigir obediência às suas ordens?
O poder deve ser exercido por aqueles que tenham mais força física ou por aqueles que tenham
mais capacidade intelectual? O poder deve ser exercido isoladamente por um único membro do grupo
ou deve ser exercido por diferentes membros em sistema de alternância? O poder deve ser absoluto ou
seguir regras votadas por todo o grupo?
Como podemos perceber, existem muitas questões a serem discutidas e decididas pelos diferentes
grupos sociais em todo o mundo, sob pena de não conseguirem se organizar de forma eficiente e
adequada para suas necessidades e para manutenção de seus valores.
Todas essas questões que estamos começando a discutir estão na base da ideia de Estado
politicamente organizado e, até hoje, podemos afirmar que não foi possível encontrar uma forma de
governo que atenda todas as necessidades dos homens, que satisfaça todos os anseios de uma vida
em paz e com garantia de qualidade de vida adequada para atender todas as necessidades dos seres
humanos. Ao contrário, quanto mais avançamos nas questões de produção e de consumo, quanto
mais complexas se tornaram as relações na sociedade contemporânea, mais difícil é encontrar uma
forma de organização de Estado e de governo que agrade a todos os cidadãos, que traga paz social e
condições dignas de vida para todos.
A história da humanidade é repleta de conflitos políticos e sociais que nada mais foram do que
disputas pelo poder. No século XX, duas guerras mundiais convulsionaram a Europa em razão da
luta pela tentativa de organização de um poder hegemônico, que dominasse grande parte daquele
território, como pretendeu o nacional-socialismo ou nazismo, como ficou conhecido o movimento
liderado por Adolf Hitler.
Mas no século XXI, ou seja, nesse exato momento em que vivemos e estudamos sobre trabalho e
sociabilidade, a mesma Europa vivencia a triste experiência de assistir a grupos de refugiados políticos
que se lançam em perigosas travessias marítimas ou terrestres para poderem chegar a outros países.
Alimentam a esperança de encontrar em novos países meios melhores para viver.
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Unidade I
Figura 2
Observe a seguir os dados da Agência da Organização das Nações Unidas (ACNUR) sobre refugiados
em todo o mundo no ano de 2019.
Figura 3
São milhares de pessoas que deixaram a Síria, por exemplo, para fugir de uma guerra civil que
teve início em 2010 e que ainda não terminou e gera grande número de mortos e feridos a cada ano,
além de pessoas que não se sentem seguras naquele país e se refugiam em outro lugar até que a
guerra termine.
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TRABALHO E SOCIABILIDADE
Repare que os sírios foram em 2019 o maior contingente de refugiados segundo o quadro da
ACNUR, com seis milhões e seiscentos mil pessoas que se tornaram refugiados.
Parte dos europeus é favorável à chegada dos refugiados e defende que eles devem receber
ajuda humanitária e que esforços sejam realizados para que eles sejam plenamente integrados nos
novos países. A Turquia, por exemplo, foi o país do mundo que mais recebeu refugiados segundo
dados da ACNUR.
Os refugiados são diferentes dos imigrantes. Refugiados abandonam seu país porque estão em
risco, porque podem ser atingidos por guerras internas, atos terroristas, perseguição de governos que
se opõem às suas tendências políticas ou até mesmo a sua identidade étnica. Refugiados também
fogem da escassez de alimentos e condições mínimas de vida segura, como acontece nas regiões
devastadas por acidentes da natureza como terremotos, por exemplo. O Haiti é um dos exemplos mais
frequentes de país com alto número de refugiados em decorrência das precárias condições sanitárias
e de segurança alimentar decorrentes de terremotos que devastaram grandes áreas daquele país.
Imigrantes procuram novas opções de vida, de trabalho ou experiências culturais pelas quais
se sentem atraídos. São diferentes dos refugiados que a rigor, não têm mais opção de vida com
segurança em seus países e aceitam correr o risco de fugir para outro país em que nem sempre são
bem recebidos ou morar em acampamentos de refugiados em condições muito precárias.
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Unidade I
Esse é um problema complexo para o qual a humanidade não encontrará soluções simples. E não é
um problema tão distante da realidade brasileira como foi no passado. Leia a nota a seguir publicada
no portal da ACNUR (2020) em janeiro de 2020:
Como sabemos, a Venezuela tem vivido período histórico de grave crise política e consequentemente
econômica, que fez com que milhões de pessoas deixassem aquele país na condição de refugiados
para tentar viver de forma mais segura e digna em outros países. A proximidade geográfica tornou o
Brasil um dos destinos mais procurados pelos venezuelanos.
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TRABALHO E SOCIABILIDADE
No passado recente e por motivos semelhantes, foram os bolivianos que deixaram seu país e
vieram para o Brasil. Segundo dados da Polícia Federal e da Secretaria Municipal de Direitos Humanos
e Cidadania de São Paulo, são mais de 75 mil bolivianos vivendo na capital do estado (apud SP2, 2020).
Os refugiados abandonam seus países, famílias, pertences, sua cultura, porque não enxergam
mais possibilidades de vida digna onde estão. Precisam sair para poder tentar uma vida mais segura
e com melhor qualidade. Quase sempre por trás dessa decisão difícil, estão problemas políticos e
econômicos e, muitas vezes, é difícil saber qual deles começou primeiro: se o econômico ou o político.
Mesmo quando se trata de eventos da natureza como furacões, tufões ou terremotos, em países de
governos mais estáveis e economia produtiva, a recomposição da situação é razoavelmente rápida
e as vítimas são assistidas naquilo que necessitam, sem que seja preciso fugir. Em países nos quais a
estrutura econômica e estatal é precária, corroída pela corrupção e pelas práticas de governo pouco
honestas, não existem recursos para atender as vítimas de tragédias da natureza. Nesses casos, fugir
é a única solução para muitas pessoas.
A organização política e governamental está, quase sempre, na base dos problemas que a
humanidade enfrenta e que geram milhões de vítimas em muitas partes do mundo.
Mesmo no Brasil vivemos nos últimos trinta anos problemas políticos e econômicos que têm em
sua origem dificuldades para organizar o Estado e as formas de governo.
Já há algum tempo que o debate sobre corrupção, impeachment (perda do mandato por crime
de responsabilidade, entre outros motivos previstos na Constituição Federal), recursos financeiros
para campanhas políticas, caixa dois (dinheiro não contabilizado para fins tributários) e lavagem de
dinheiro tomaram conta do cenário político brasileiro, desvendaram práticas de corrupção muito
antigas e de desvio de dinheiro público lamentáveis e motivaram a população brasileira a participar
de manifestações de rua que poucas vezes haviam ocorrido com tanta intensidade e quantidade.
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Unidade I
Assim, é essencial conhecer a formação histórica e política do Estado e as formas de governo, porque
isso pode aprimorar nossa percepção sobre diferentes situações políticas, históricas e sociais e auxiliar a
construir opiniões críticas e propostas profissionais mais adequadas e eficientes em serviço social.
Como vimos anteriormente, a opção por viver em grupo e de forma organizada foi adotada pelos
primeiros seres humanos que habitaram o planeta Terra, mas, nem por isso, deixou de ser uma forma
de vida marcada por embates e tensões, porque a luta pelo poder é um traço marcante na vivência
dos diferentes grupos sociais.
É razoável pensar que nos períodos mais antigos, o poder fosse exercido pelos mais fortes, por
aqueles em melhores condições físicas para impor pela força a liderança das atividades sociais.
Mas as atribuições dos grupos sociais foram se tornando complexas com a incorporação da tecnologia
na agricultura, produção de excedentes, necessidade de construção de habitações nos lugares em
que a produção agrícola era mais importante, organização dos grupos sociais que passaram a dividir
o mesmo espaço territorial e a produção, ou seja, uma gama de novas necessidades que a cada
momento eram incorporadas à vida dos homens e dos grupamentos sociais.
Há, no entanto, quem discorde do fato de que as técnicas e instrumentos agrícolas tenham sido
benéficos para a humanidade. Essa opinião polêmica é de Yuval Noah Harari e é importante conhecê-lo
porque o confronto de ideias é sempre uma forma positiva para construirmos reflexões ampliadas e
que nos permitam avaliar diferentes pontos de vista.
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TRABALHO E SOCIABILIDADE
Sem dúvida é uma opinião polêmica e exatamente por isso é tão importante. Provoca reflexões e
propõe que façamos mais pesquisa sobre o tema para aprofundar nosso conhecimento e conseguir
opinar com fundamentação. De todo modo, para nós que estamos estudando trabalho e sociabilidade
ao longo da trajetória histórica da humanidade, a compreensão de que a agricultura não foi apenas
solução, mas também fonte de conflitos entre os diferentes atores históricos, é muito importante.
Aliás, conflitos que em boa medida ainda não foram satisfatoriamente solucionados no mundo
contemporâneo em muitas regiões do planeta, como no Brasil, em que ainda temos expressivos
conflitos sobre o uso e a posse da terra, latifúndios, áreas improdutivas e tantos outros problemas.
Voltaremos a esse tema um pouco mais à frente.
21
Unidade I
Figura 5
Os diferentes períodos de organização social foram se sucedendo, das tribos para grupos
maiores e produtores até chegar à sociedade em que vivemos e à organização política do Estado
como conhecemos em nossos dias, a trajetória da humanidade foi longa e marcada por muitas
tentativas e erros.
Nosso maior interesse, nesse momento, é o estudo do Estado, sua formação e suas principais
características, porque o objetivo é explorar esse conhecimento a partir da perspectiva das relações
de trabalho e sociabilidade. É o Estado por meio de leis que organiza as relações de trabalho e muitas
outras relações sociais, mesmo as de caráter mais privado como casamento, separação, sucessão
de bens, guarda de filhos e outras. A presença do Estado é antiga na história da humanidade e é
importante compreender como essa ideia se consolidou.
Para isso vamos precisar de aportes teóricos das ciências políticas, da sociologia, do direito. Todas
essas ciências têm contribuições para que seja possível estabelecer amplo diálogo com o serviço
social e, assim, alargar as condições de análise e projetos de ação.
1.2 O absolutismo
O final do período histórico da Idade Média foi marcado pelo ressurgimento das práticas de
comércio e muito em especial pela organização de grandes feiras em diferentes regiões da Europa,
com a presença de inúmeros mercadores.
Em razão da atividade comercial, surgiram importantes cidades, muitas das quais conhecemos até
hoje, como Veneza e Gênova, na Itália; Bruges, na Bélgica; Colônia, na Alemanha, entre outras.
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TRABALHO E SOCIABILIDADE
Vários aspectos importantes podem ser extraídos desse trecho da obra de Saes e Saes. O primeiro
é a descrição do funcionamento das corporações de ofício ou guildas, que mostra a existência de
uma hierarquia muito bem organizada e com o objetivo de estabelecer reserva de mercado, ou seja,
restrição ao surgimento da concorrência.
A hierarquia das corporações de ofício era forte a ponto de determinar quem poderia e quem
não poderia exercer determinada atividade profissional e quem poderia ou não organizar uma loja
ou oficina de trabalho. Essas ideias seriam insustentáveis no mundo em que vivemos, marcado pela
liberdade da atividade profissional e empresarial e pela forte concorrência como forma de proteção
23
Unidade I
dos consumidores, porque, afinal, onde há concorrência, há, teoricamente, disputa para oferecer a
melhor qualidade pelo melhor preço e, com isso, conquistar maior número de consumidores.
É importante observar, ainda, que a organização dos trabalhadores é antiga e teve início antes do
processo de industrialização.
No plano político, o final da Idade Média, séculos XI a XV, foi marcado pela centralização do
poder. O poder fragmentado dos senhores feudais e a universalidade da Igreja foi substituído pela
centralização política exercida pela monarquia que passa a ter o poder político, militar e administrativo.
Essa passagem de modelo de organização social não ocorre ao mesmo tempo em todas as regiões da
Europa, mas, paulatinamente, ganha força e se estabelece como forma predominante.
O absolutismo não se firmou apenas por razões de ordem política, militar ou administrativa.
A produção econômica exerceu influência marcante como explica Adhemar Marques:
De fato, uma das correntes históricas que explica o fortalecimento do absolutismo fundamenta
suas explicações no fato de a burguesia ter se aliado aos reis para conseguir melhores condições para
o comércio. Saes e Saes ao analisarem essa hipótese histórica relatam:
O poder dos monarcas foi construído, assim, com o apoio da Igreja, cujos clérigos ocupavam
lugar de destaque junto aos reis, pela burguesia comercial, que tinha interesse em aumentar seus
lucros e diminuir impostos e também pelos membros da aristocracia, que tinham interesse em possuir
privilégios que variavam da isenção de impostos a cargos de representação política. Uma aliança
que vigorou por um bom tempo, mas que foi substituída quando novos interesses começaram a se
construir de maneira mais forte.
Souto Maior traça as principais características do absolutismo e, com isso, facilita a nossa
compreensão sobre as razões que levaram esse sistema a ser modificado. Ele afirma:
Tanto poder não demorou a causar conflitos, em especial, com a burguesia, que desejava maior
liberdade para desenvolver suas atividades de comércio. As revoluções contra o absolutismo foram
chamadas de revoluções burguesas exatamente por isso: foram lideradas por burgueses insatisfeitos
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Unidade I
com as práticas despóticas dos reis e, principalmente, com as regras que os impediam de ter maior
lucratividade com suas atividades mercantis.
Vamos conhecer brevemente os principais aspectos das três revoluções mais importantes que
determinaram o fim do absolutismo e a construção do Estado das leis, com alguma semelhança com
o que conhecemos na atualidade.
A primeira revolução burguesa correu no período de 1640 a 1688, na Inglaterra. Aquela sociedade
fortemente hierarquizada e pródiga em manter privilégios de nascimento – apenas para os membros
da realeza –, começava a perder a força. Os revolucionários eram homens que queriam assumir o
protagonismo das decisões políticas e econômicas e não queriam mais se sujeitar aos mandos e
desmandos de reis e rainhas. Além disso, desejavam maior estabilidade do poder político sem tantas
guerras entre os descendentes da realeza para estabelecer de quem seria o poder, porque a instabilidade
política era muito negativa para o desenvolvimento das atividades econômicas.
A Declaração de Direitos de 1689, conhecida em inglês como Bill of Rights, foi o marco principal
da Revolução Inglesa. Trata-se de uma declaração de direitos com o objetivo de limitar o poder do
monarca e aumentar a influência do poder legislativo, ou parlamento, como esse poder é chamado
até hoje na Inglaterra.
• que a estrutura do sistema de poder fosse organizada pela existência de três poderes, Legislativo,
Executivo e Judiciário, em que o primeiro-ministro escolhido pelo Parlamento governava e
o rei apenas representava o Estado. Esse modelo permanece em vigor até hoje na Inglaterra.
A rainha tem obrigações de representação do país, mas não governa. O poder de governar é do
primeiro-ministro escolhido pelo parlamento;
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TRABALHO E SOCIABILIDADE
• que o poder judiciário tivesse independência para julgar sem nenhuma interferência do rei;
• que o rei não obtivesse e nem utilizasse recursos públicos para uso pessoal, sem prévia aprovação
do Poder Legislativo.
A revolução burguesa da Inglaterra foi um exemplo para outros países e contribuiu para
incentivar a luta por mudanças, tanto na esfera de poder político como na autonomia para as
atividades econômicas.
A segunda revolução burguesa ocorreu nos Estados Unidos da América e culminou com a
Declaração de Independência, em 4 de julho de 1776, quando os norte-americanos declararam sua
liberdade em relação à Inglaterra, de quem até então eram colônia.
O conflito que culminou com a revolução pela independência teve origem em razões de ordem
econômica. A Inglaterra havia passado muito tempo em guerra e estava com suas finanças corroídas,
por isso aumentou impostos em relação às mercadorias produzidas nos Estados Unidos, que à época
era chamado de Treze Colônias, também reduziu a liberdade econômica da colônia.
Os norte-americanos não estavam dispostos a pagar maiores tributos e nem a reduzirem sua
liberdade mercantil, por isso declararam a independência em relação à Inglaterra e afirmaram no
texto da Declaração de Independência que o que o rei inglês havia violado os direitos mais básicos da
liberdade, o que tornava insustentável a continuidade da relação colonial.
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Unidade I
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TRABALHO E SOCIABILIDADE
A terceira revolução denominada burguesa foi a Revolução Francesa que teve início com o
episódio que ficou conhecido como Queda da Bastilha, em 14 de julho de 1789. A Bastilha era uma
prisão situada em Paris, capital da França, e seu prédio foi demolido. Simbolicamente, na atualidade,
no lugar em que se encontrava a Bastilha, existe um prédio estatal; na praça em frente ao prédio, há
uma torre, que tem na ponta uma estátua que representa a liberdade.
Os historiadores apontam que o absolutismo na França foi marcado por inúmeros exemplos de
irresponsabilidade e arbítrio dos reis, que resultaram em miséria e revolta do povo francês. Isso explica
em parte porque a monarquia era odiada pelo povo e a violência imperou na revolução. Além da
camada popular que vivia na miséria em razão dos desmandos da monarquia, também a burguesia
estava insatisfeita, porque esses mesmos desmandos impediam o desenvolvimento das atividades
econômicas, em especial do comércio.
De outro lado, a burguesia na França era muito forte, porque tinha o controle sobre o comércio,
a indústria e as finanças, mas não tinha o poder político que desejava. O caminho mais curto para
concretizar o projeto burguês de maior liberdade para agir foi derrubar a monarquia e, para isso, se
uniu ao povo. A motivação era diferente, porém, naquele momento, a união de interesses foi mais
forte e o resultado, positivo. Depois disso, a burguesia angariou maior poder, e a população voltou a
sofrer com as dificuldades de subsistência.
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Unidade I
Como é possível constatar, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão colocou a lei
acima de tudo, para ser cumprida por governantes e pelos cidadãos, de forma a garantir o que eles
denominaram de “felicidade geral”.
Lembrete
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TRABALHO E SOCIABILIDADE
Entre as várias teorias criadas para explicar o Estado, talvez a mais conhecida seja a teoria do contrato
social, que tem na obra de Jean-Jacques Rousseau que leva o mesmo nome – O contrato social –, um
estudo até hoje bastante debatido entre os estudiosos.
Mas Rousseau não foi o primeiro estudioso a propor essa ideia. Antes dele, dois outros pensadores
justificaram a organização política social a partir da formação de um contrato entre as pessoas que
desejavam viver em sociedades organizadas e, com isso, abrir mão de uma parte de sua liberdade em
troca de segurança e garantia para seus direitos.
Essa é a ideia central que orienta a formação do Estado: todos terão direitos e deveres, o que
significa que terão de agir em conformidade com as leis aprovadas por aquele grupo social e que serão
de cumprimento obrigatório para todos, independentemente do poder econômico, político ou social de
cada um.
O primeiro a estudar e teorizar sobre o Estado foi Thomas Hobbes, inglês, nascido em 1588 e
falecido em 1679. Foi filósofo e cientista político e viveu em um período especialmente conturbado
da história da Inglaterra, marcado por guerras e disputas de poder político.
Hobbes escreveu uma obra considerada fundamental para a compreensão do Estado, o livro se
chama Leviatã e faz alusão a um monstro bíblico. A capa da primeira edição do livro em 1642 tinha
a imagem do Leviatã.
Hobbes tinha seu entendimento no sentido de que a humanidade, naturalmente, tende a viver
em conflito porque todos os homens desejam ter direitos ilimitados. O exercício de direitos ilimitados
gera luta pelo poder, insegurança e guerras.
Por acreditar nessa tendência natural da humanidade, Hobbes afirmava que “O homem é o lobo
do homem”, frase que ficou bastante famosa e, não raro, é utilizada ainda em nossos dias. Para esse
pensador, o homem em estado de natureza é um ser que age na concretização de seus próprios
interesses, sem se importar com os demais. Para obter o que acredita que tem direito, o homem
emprega a força e pode, inclusive, matar outros homens, pois não há limites para a sua ação.
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Unidade I
Se a tendência natural do homem é pelo uso da força para garantia de direitos ilimitados, a
necessidade de autopreservação faz com que o homem concorde em viver sob o comando de um
Estado, ao qual caberá organizar direitos e deveres com o objetivo de preservar a segurança de todos.
O Estado para Hobbes é o poder comum que garante segurança para todos os homens, que
reduz os direitos de forma coercitiva porque pune aqueles que não cumprem as regras, mas, ao
mesmo tempo, se aplica a todos. Os homens concordam em se submeter voluntariamente ao poder
do Estado para alcançar o objetivo de viver em paz, harmonia e construir progresso material por
meio do desenvolvimento de atividades econômicas.
Saiba mais
John Locke, que nasceu em 1632, em Bristol, Inglaterra, e faleceu em 1704, é outro importante
pensador da teoria do Estado. Ele estudou em Westminster e Oxford, escolas inglesas muito tradicionais
onde estudaram os representantes da elite econômica e política. Exerceu vários cargos políticos e
viveu na França de 1674 a 1679. Depois foi obrigado a se exilar na Holanda, em 1683, em decorrência
de perseguições políticas, e só retornou à Inglaterra em 1689. Suas principais reflexões ocorreram
durante o período de conflitos vividos pela Inglaterra no século XVII.
Locke se opunha ao absolutismo e foi exatamente por isso que teve de se refugiar na Holanda
durante um período de tempo. Só retornou à Inglaterra após o triunfo da revolução burguesa e a
mudança das relações de poder naquele país.
Para Locke, o homem vivia em um estado de natureza onde era livre e só concorda em sair dessa
situação para firmar um acordo, um contrato social, por meio do qual todas as pessoas terão direitos
e obrigações, sem privilégios de nascimento ou de qualquer outra natureza.
A diferença no pensamento de Hobbes e de Locke é que, para este, o estado de natureza não era o
espaço de conflitos e de medo; ao contrário, era uma situação de relativa paz e harmonia. Para Locke,
a guerra entre os homens no estado de natureza era apenas uma possibilidade, porque não acreditava
na teoria de que os homens poderiam se destruir por qualquer motivo. A possibilidade existia, mas
não foi o medo o fator determinante para que os homens decidissem viver no regime de direitos e
32
TRABALHO E SOCIABILIDADE
deveres, sob a organização do Estado. O fator que determina a opção pela organização da vida em um
Estado é a garantia de estabilidade no governo e a tranquilidade social.
Viver em sociedade é melhor para Locke com a organização de um poder central e a escolha de
juízes para solucionarem eventuais conflitos.
Um aspecto muito importante para os nossos estudos é que Locke define a propriedade como um
direito amplo, que inclui a vida, a liberdade e os bens. Por isso é que as sociedades precisam de
um governo que proteja o direito de propriedade de seus cidadãos. O mais importante direito do estado
de natureza é mantido pelo Estado, que é o direito de propriedade; e o único direito retirado dos homens
é o de realizar justiça por conta própria utilizando a força física. Esse direito é subtraído dos indivíduos,
mas é garantido ao Estado, porque Locke acredita que este deve possuir poder de vida e morte sobre
aqueles que a ele se submetem.
Ele defende, ainda, que o Estado não tem poder contra a propriedade e deve respeitá-la e protegê-la.
Podem imaginar como essas ideias agradaram a burguesia?
É claro que agradaram porque a burguesia tinha como objetivo que a propriedade fosse
respeitada por todos, inclusive pelo Estado, a quem caberia também defendê-la de ameaças. Não há
produção econômica sem segurança política! Aliás, uma lição que se mantém até hoje na sociedade
contemporânea em que vivemos.
John Locke acredita que a propriedade é um direito que os homens possuem pelo simples fato
de existirem. Não é o Estado e nem a sociedade que criam a propriedade privada, é a capacidade de
trabalho de cada ser humano. Ao Estado, compete apenas respeitar e fazer respeitar o direito
de propriedade.
Para ele, o homem se torna proprietário da terra pelo trabalho e deve ser dono do local em que
trabalha. Ele destaca que é o esforço pelo trabalho que torna o homem proprietário da terra, por isso,
ela é um direito natural.
Assim, para Locke, a vida na sociedade organizada tem por objetivo principal proteger o direito
natural, que é, fundamentalmente, o direito de propriedade. Ele afirma que o Estado será tirânico
todas as vezes em que desrespeitar a propriedade, e nessas situações o indivíduo terá direito de
resistir, de se voltar contra o Estado porque estará ancorado em um direito natural.
Por essas ideias e convicções, John Locke é considerado o fundador da doutrina política liberal,
que vamos estudar aqui.
33
Unidade I
As ideias de Locke nos permitem refletir sobre o fato de que a propriedade como um direito natural
de quem trabalha nela é uma concepção muito antiga na trajetória da humanidade. Com o passar do
tempo, nos países de matriz econômica capitalista, essa ideia foi substituída por propriedade como
direito de quem a adquire, e não de quem trabalha. Esse é um ponto de conflito ainda presente em
muitos países como no Brasil, por exemplo.
A maior parte dos trabalhadores na agricultura e na pecuária não são donos da terra e nem
sempre são remunerados de forma adequada para garantir sua subsistência com dignidade.
Ao mesmo tempo, na atualidade, a produção econômica globalizada incentiva a utilização de
tecnologia na agricultura e na pecuária, o que torna os investimentos mais vultosos e acessíveis
apenas aos grandes grupos econômicos.
Figura 8
O último pensador importante da teoria do contrato social como fundamento para a organização
Estado é Jean-Jacques Rousseau, que nasceu em 1712 em Genebra, que era uma república protestante,
e faleceu em 1778, em Paris. Sua mãe morreu no seu parto e seu pai era um relojoeiro sem muitas
posses, por isso Rousseau teve infância pobre, seu pai teve que se exilar por motivos políticos. Sem o
pai, ele foi obrigado a viver com um familiar e depois em abrigos e orfanatos, uma vida difícil e sofrida,
que marcou sua existência.
Rousseau viveu no chamado Século das Luzes, ou seja, no século XVIII, período em que a ciência e
o conhecimento passaram a ser muito valorizados como resultado da ação humana, da racionalidade
e do uso do método científico, comprobatório das teorias e experiências. Foi um período em que a
humanidade abandonou as ideias de predeterminação próprias da Idade Média e passou a valorizar o
uso da razão, da ciência, como forma de conseguir progresso.
34
TRABALHO E SOCIABILIDADE
Essa fase histórica, que também é chamada de Iluminismo, foi marcada pela utilização do raciocínio
lógico e objetivo em todas as áreas do conhecimento e pelo abandono das crendices e superstições,
que não combinavam com a racionalidade que era vista como a base do desenvolvimento econômico,
científico e social.
Lembrete
Apesar de ter vivido nesse período, Rousseau acreditava que o homem selvagem, ou seja, quando
vivia no estado de natureza, sem leis e sem a organização do Estado, era livre e feliz porque tinha
plena liberdade. Para ele, o homem natural é o bom selvagem, ideia totalmente diferente daquela que
aprendemos em Hobbes, para quem “o homem era o lobo do homem”.
Por qual razão, então, o homem teria concordado em viver em sociedade e sob um regime de leis
se ele era mais feliz antes? Bem, Rousseau acreditava que a apropriação de conhecimento nas áreas
de metalurgia e agricultura tinha sido possível apenas para alguns homens, e não para todos. Isso
teria criado uma divisão no trabalho e, em consequência, os homens com maior conhecimento de
técnicas agrícolas e de metalurgia haviam se tornado mais poderosos que os demais.
Para ele, é nesse momento que os bens da natureza, antes disponíveis para o uso de todos, passam
a ser propriedade somente de alguns. E, no pensamento de Rousseau, disso decorrem a escravidão e a
miséria e também os conflitos sociais.
É importante refletir sobre como as ideias de Rousseau são atuais e ainda podem estar na base da
compreensão do mundo contemporâneo, principalmente para a construção da crítica da meritocracia,
tema sobre o qual refletiremos adiante.
No livro O contrato social, Rousseau reflete sobre a possibilidade de construção de uma nova ordem
jurídica, política e social. Uma sociedade radicalmente democrática, fundamentada na vontade geral
como elemento fundamental de sua existência e organização. Para ele, a vontade geral dos homens
é a única vontade legítima, e a vida em sociedade deve ter por função a realização do bem comum.
Para Rousseau, o Estado deve ser o resultado da participação ativa dos homens, e o governo deve
ser subordinado ao povo e exercido pelos membros da sociedade. Ele acredita que a participação
política do povo deve ocorrer de forma direta e contínua e que, para isso, todos deverão ter boa
educação e formação moral. Essas são, para Rousseau, as ferramentas essenciais para que o povo se
previna de governos tirânicos, mantenha sua liberdade e garanta sempre a proteção do bem comum.
35
Unidade I
Novamente, nesse aspecto, a abordagem é muito semelhante àquela que temos na sociedade
contemporânea, principalmente em relação à necessidade de educação com qualidade para que a
população possa exercer corretamente seus direitos e, principalmente, possa cobrar os deveres das
autoridades. Também é fundamental que a educação capacite a população para escolher corretamente
seus representantes em todos os níveis políticos: federal, estadual e municipal.
As fotografias a seguir são do Panteão, em Paris, local em que está enterrado o corpo de Jean‑Jacques
Rousseau. Esse lugar presta uma homenagem a grandes pensadores, cientistas e políticos que fizeram
a glória da França e de seu povo. Justa homenagem a esse pensador tão importante.
36
TRABALHO E SOCIABILIDADE
Assim surge a ideia central para explicar o que hoje entendemos como Estado. O espaço de
organização política, social e econômica no qual nossa liberdade é limitada por leis que definem o que
podemos e não podemos fazer, ou seja, o que são nossos direitos e nossos deveres. Essa organização
social deve nos garantir, em tese, segurança e possibilidades de acesso a tudo que é essencial para que
nossa vida tenha qualidade e dignidade.
Maquiavel teria sido o primeiro a utilizar a expressão Estado. Ele é um pensador importante cujo
nome deu origem à expressão “maquiavélico”. Vamos conhecer um pouco mais sobre esse importante
pensador político?
Nicolau Maquiavel nasceu em Florença em 1469 e faleceu em 1527. Florença nasceu como uma
colônia romana em 59 a.C. e na Idade Média tornou-se uma cidade-Estado independente. No século XIII,
foi um dos polos comerciais mais importantes do mundo, assim como um notável centro cultural
e intelectual da Europa. Além da riqueza econômica, Florença também foi detentora de enorme
37
Unidade I
riqueza artística e intelectual, porque Dante Alighieri, Petrarca, Maquiavel, Botticelli, Michelangelo e
Donatello foram pensadores e artistas florentinos.
Maquiavel foi funcionário público do governo de Florença durante vários anos e foi, também,
escritor, historiador e músico. Mas, sem nenhuma dúvida, ele foi, principalmente, um pensador
político que exerceu influência em razão de suas ideias.
Ele recebeu educação clássica já com vistas a uma futura carreira pública, mas, como a vida
política em Florença era muito conturbada, sua trajetória profissional sofreu impacto desses conflitos
e nem sempre foi muito bem-sucedida. Ele trabalhou para o governo que expulsou os Médici de
Florença e, mais tarde, serviu aos Médici quando estes retornaram ao poder.
Os Médici foram uma poderosa família de Florença que viveu seu apogeu político entre os
séculos XV e XVII. Sua riqueza era oriunda do comércio de produtos têxteis e da participação na
guilda da Arte della Lana. Alguns dos Médici foram banqueiros, políticos, nobres, clérigos e até papa,
Giovanni Médici (1475-1521), que foi o papa Leão X.
Maquiavel escreveu o livro O príncipe em 1513 e dedicou a obra a Lorenzo, filho de Piero de
Médici. Provavelmente, sua intenção com a obra tenha sido agradar os governantes da época e obter
benefícios políticos.
As imagens a seguir são de Florença, a cidade em que Maquiavel nasceu e viveu. Uma é da
Catedral de Florença, e a outra, de uma parte do Palácio dos Médici.
38
TRABALHO E SOCIABILIDADE
Maquiavel em suas reflexões políticas separava a virtude política da virtude moral. Além disso,
não acreditava em poder político como ação política orientada pelo sentido divino, ou seja, para
ele, a política é uma ação exclusivamente humana. Mas essa ruptura com o poder oriundo da igreja
não rendeu bons resultados para Maquiavel. A Igreja Católica como reação passou a utilizar o termo
“maquiavélico” como sinônimo daquilo que é ruim ou perverso. Até hoje, em pleno século XXI, nós
utilizamos essa expressão para designar uma pessoa ardilosa, que usa métodos pouco transparentes
para obter os resultados que deseja. Referimo-nos a pessoas que articulam de forma obscura para obter
vantagens. O termo é sempre utilizado em sentido pejorativo, como crítica, ou, até mesmo, ofensa.
O sentido em que ele utiliza o termo virtude é bem diferente de qualquer conotação religiosa, que
sempre associa virtude àquilo que é bom, justo e expressa sentimento de fraternidade. Em Maquiavel
virtude expressa outro sentido, muito mais objetivo e racional, destinado à garantia de atributos que
permitissem o exercício do poder.
Para Maquiavel, as bases essenciais de um Estado são as boas leis e as boas armas. O príncipe, para
exercer o poder, deve recorrer não apenas às leis, mas também à força, porque estas seriam as únicas
39
Unidade I
formas de se prevenir da manifestação da maldade humana. Para ele, é fundamental que o príncipe
tenha o poder e saiba mantê-lo.
É de Maquiavel a ideia de que o governante precisa parecer honesto mesmo que não seja. Essa lição,
infelizmente, tem sido muito utilizada entre os políticos em várias partes do mundo. Todos se dizem
honestos e com objetivos nobres e, no entanto, muitos são flagrados com práticas de corrupção e
falta de transparência com o uso dos recursos públicos. Não foi à toa que Maquiavel ficou conhecido
pela frase “os fins justificam os meios”, porque defendia a ideia de que todos os meios utilizados são
válidos, mesmo que violentos ou desonestos, desde que sirvam para que se alcance o objetivo final.
As ideias de Maquiavel precisam ser estudadas no contexto histórico em que ele viveu, que
foi marcado por constantes conflitos políticos. Isso explica, certamente, a defesa que ele faz de
um governo monárquico absolutista que, no entanto, seria útil naquele momento para garantir
estabilidade política, social e econômica.
40
TRABALHO E SOCIABILIDADE
Após analisar o pensamento de Hobbes, Locke e Rousseau, que explicam porque o homem decide
viver em sociedade e conhecer o pensamento de Maquiavel, o primeiro a utilizar a expressão Estado,
podemos estudar as características dos Estados contemporâneos.
De forma geral, os estudos sobre o Estado são feitos pela Ciência Política e pelo Direito. Há certo
consenso de que o Estado moderno se caracteriza pela existência de elementos constitutivos que são
o território, o povo, a finalidade e a soberania.
Território é a porção do solo, subsolo, mar territorial, espaço aéreo, navios e aviões de uso militar
ou civil, em que apenas uma ordem jurídica pode agir de forma coercitiva.
Povo é um conjunto de pessoas que podem participar da vida política de um Estado porque
possuem vínculo jurídico com ele e, por essa razão, podem exercer direitos como votar e ser votado,
por exemplo. Esse vínculo jurídico da pessoa com o Estado tem caráter permanente e, por isso, é
preciso que sejam cumpridas as regras fixadas pelo Estado. Todos os que vivem no Estado estão
submetidos a essas regras, que também podemos chamar de leis.
A finalidade do Estado é a garantia do bem comum, do interesse público, ou seja, de todos os que
vivem sob suas leis. Definir o que é bem comum ou interesse público não é tarefa simples, porque
individualmente as pessoas têm objetivos muito diferentes umas das outras. Porém, quando se
trata da vida em sociedade e organizada a partir das leis que formam o Estado, parece correto
afirmar que o bem comum consiste em garantir a todos e a cada um, individualmente, condições
para uma vida digna. Para isso, é responsabilidade do Estado criar, implementar e monitorar
políticas públicas nas áreas essenciais como segurança alimentar, de educação, saúde, moradia,
segurança pública, assistência e previdência social, para que todos possam concretizar condições
para uma vida com dignidade.
Estado é, como podemos perceber, um conceito político diferente do conceito de nação. Nação é
a união de pessoas que integram o mesmo grupo étnico, falam o mesmo idioma e possuem cultura
e costumes semelhantes, construídos ao longo de um período histórico. A identidade de costumes e
tradições e a unidade da língua caracterizam o sentido de pertencimento a todos aqueles que
integram uma nação.
Povo é um conceito derivado do vínculo jurídico que as pessoas estabelecem com um Estado.
Nação é um conceito mais amplo porque depende de elementos que dão unidade às pessoas, partilham
valores, língua, tradição, costumes e vivências.
Não é difícil compreender que existam nações sem Estado, ou seja, grupos de pessoas unidas por
valores, língua e tradição comuns que não possuem um território para compartilhar e, assim, vivem
41
Unidade I
espalhadas em territórios de outros grupos, muitas vezes, em condições bastante precárias ou até
de perseguição.
Os curdos são, nesse momento histórico, a maior nação sem território no mundo. Eles vivem na
Síria, Turquia, Iraque, Irã, entre outros países, estão estimados em mais de 20 milhões de pessoas e não
possuem um Estado curdo com território e legislação determinados. Outro exemplo são os palestinos,
estimados em cerca de 7 milhões de pessoas que se encontram no Oriente Médio e desejam recuperar
áreas territoriais que lhes pertenciam, mas foram ocupadas por Israel. Também os tibetanos, estimados
em 6 milhões de pessoas, vivem em uma região da Ásia ocupada pelos chineses e desejam conquistar
sua autonomia para terem a possibilidade de viver livremente suas tradições, em especial a cultura e
religião budista.
É nesse modelo de vida social que vivemos, trabalhamos, estudamos, pensamos, nos manifestamos
livremente, opinamos sobre questões coletivas e individuais e, principalmente, no exercício da
atividade profissional, buscamos melhoria para políticas públicas, para atenção aos mais vulneráveis,
para a concretização do bem comum e do interesse público.
Para chegarmos a esse modelo de organização social, a humanidade percorreu um longo caminho
que, quase sempre, foi marcado por disputas e tensões, lutas violentas entre grupos com interesses
diversos e que pretendiam ocupar o poder e impor suas vontades.
Assim foi durante o Império Romano, a Idade Média, o absolutismo e nas revoluções burguesas.
Afastar o poder absoluto de uma única pessoa e organizar a vida em sociedade de forma mais
equilibrada, com tratamento mais equânime para todos os participantes da vida social, foi sempre a
meta a ser atingida. Mas, da mesma forma, sempre existiram e sempre existirão aqueles que pretendem
fazer prevalecer seus interesses sobre os demais.
Essas tensões e conflitos entre diferentes grupos sociais e econômicos aparece em todos os setores
da vida em sociedade. Nas relações mais íntimas e familiares até nas relações públicas e políticas.
Também aparece nas relações de produção e de trabalho.
Essa é a dimensão que tem maior interesse para nós e à qual vamos nos dedicar agora, com a
abordagem sobre a Revolução Industrial e as relações de trabalho.
42
TRABALHO E SOCIABILIDADE
A Revolução Industrial, ocorrida entre os séculos XVIII e XIX na Europa e que hoje denominamos de
“primeira revolução” em razão da existência de outros marcos históricos importantes para a produção
industrial, teve como principais características o êxodo rural, a chegada de milhares de trabalhadores
para as cidades que não estavam preparadas para essas mudanças e relações de trabalho que estavam
ainda muito próximas do regime de escravidão porque se caracterizavam por pesada carga de trabalho
com remuneração insuficiente para a subsistência.
Os trabalhadores daquele período histórico trabalhavam muitas horas por dia, ganhavam tão
pouco, que praticamente só tinham recursos para se alimentar, moravam em condições muito
precárias e morriam de doenças e de acidentes de trabalho com enorme frequência.
Figura 14
43
Unidade I
A contribuição de Diogo Freitas do Amaral é positiva para expandir nossa compreensão sobre a
Revolução Industrial:
O trecho reproduzido está escrito com grafia de português praticado em Portugal, porque o autor
e a edição do livro são daquele país. Por isso a forma diferente de grafar o século – 17, e não XVII
como nós utilizamos –, e outras palavras que estão escritas de forma diferente daquela que usamos
no Brasil. Mas, independentemente da grafia, que não dificulta a interpretação do texto, é possível
perceber que Diogo Freitas do Amaral, que é catedrático da Universidade Nova de Lisboa e pesquisador
nas áreas de ciências políticas, direito e história, manifesta incontido entusiasmo com o processo de
mecanização ocorrido durante a Revolução Industrial.
Ele afirma que esse período melhorou o rendimento e a qualidade de vida das pessoas, mas
também reconhece que:
Dois aspectos são importantes para nossa reflexão: (i) a melhoria tecnológica provocada pela
Revolução Industrial foi benéfica para alguns e muito ruim para outros; e, (ii) há notória semelhança
com o processo de inovação que o mundo vive na atualidade, com a implementação veloz de novas
tecnologias de informação utilizadas em todas as áreas de produção econômica e que poderão
contribuir para diminuir o número de vagas de trabalho, ao mesmo tempo que trarão maior riqueza
para poucos. Isso será analisado adiante, quando vamos refletir sobre o trabalho na sociedade das
novas tecnologias que estamos vivendo.
45
Unidade I
Ainda a respeito das mudanças provocadas pela Revolução Industrial, Marques observa:
[...]
[...]
Figura 15
As afirmações de Adhemar Marques nos fazem repensar a trajetória histórica que acompanhamos
anteriormente: do trabalho agrícola em que as pessoas eram donas de seu tempo, de seus instrumentos
de trabalho e, algumas vezes, até da terra em que produziam; ou, se não eram donas da terra e
trabalhavam para os proprietários, podiam acompanhar o resultado de seu trabalho – a colheita –
e partilhar dele, para o sistema de total domínio do capital que se torna dono da integralidade da
produção, dos maquinários, ferramentas, produtos fabricados e, principalmente, do tempo e da vontade
do trabalhador que agora tem apenas a opção de trabalhar e receber o salário que lhe for destinado.
É possível refletir que a condição de submissão da Idade Média estava reproduzida em muitas
fábricas e que a liberdade obtida nas revoluções burguesas foi efetivamente apenas para os próprios
burgueses que puderam ampliar suas formas de produção sem as restrições e ônus que o absolutismo
determinava. Para os trabalhadores, as condições da Idade Média se modificaram muito pouco.
E tudo com a complacência do Estado cujas leis não protegiam as classes menos favorecidas e, em
contrapartida, permitiram que os capitalistas adotassem condições de trabalho bem pouco favoráveis
para os trabalhadores.
Michelle Perrot, historiadora e professora emérita da Universidade de Paris VII, em sua obra Os excluídos
da história, nos traz um relato importante e original sobre a visão dos operários franceses em relação a
seus patrões. A pesquisa foi feita em autobiografias de operários e de publicações de organizações sindicais
pesquisados pela professora francesa. Vale a pena ler atentamente o relato que ela nos traz:
47
Unidade I
Diz um Chant des Mineurs (Canto dos Mineiros) de 1896. Por ocasião das
greves, essas residências são alvos de manifestações, mescla de busca de
um poder que se esconde – o deus oculto – e de expedições punitivas:
O relato da pesquisa da professora Michelle Perrot sobre a visão dos operários em relação aos
patrões burgueses é bastante interessante. A opinião dos trabalhadores não era das mais favoráveis
48
TRABALHO E SOCIABILIDADE
e, certamente, era fruto das experiências vividas em seus locais de trabalho marcados pela intensa
disciplina, ocupação total do tempo para a produção, ausência de diálogo e condições em geral muito
ruins de trabalho e remuneração.
E. K. Hunt relata:
[...]
[...]
[...]
A Revolução Industrial ou, mais especificamente, a introdução das máquinas na produção industrial
trouxe progresso tecnológico e econômico para uma pequena parcela da população – os capitalistas/
patrões –; trouxe submissão total dos trabalhadores aos novos meios de produção – cumprimento de
horário, alienação e baixos salários –; e, em especial, mudou por completo as relações sociais daquele
momento até nossos dias.
Vamos conhecer agora alguns importantes elementos para ampliar nossa capacidade de reflexão
sobre trabalho e sociabilidade: o conceito de liberalismo e o pensamento de Karl Marx.
O pensamento liberal começou a ser construído a partir das ideias do Iluminismo e no movimento
das revoluções burguesas, nos séculos XVII e XVIII. John Loocke, que já estudamos, foi um dos
pensadores que melhor inspiraram as ideias do liberalismo que, como o próprio nome já sinaliza, é o
pensamento que defende a liberdade política e econômica sem a interferência do Estado.
De fato, o que desejavam os burgueses com as lutas para derrubar o absolutismo dos reis?
Liberdade para participar da vida política por meio da escolha de representantes que falassem por
eles no parlamento (Poder Legislativo); e, principalmente, liberdade econômica para movimentar
seus negócios da forma como considerassem mais adequada com presença mínima do Estado
nessas atividades.
O pensamento liberal se organiza contra os tributos cobrados pelos reis e contra as corporações de
ofício, que também já estudamos e que detinha o poder de evitar a concorrência e, consequentemente,
precificar seu trabalho da forma como considerasse melhor, o que nem sempre coincidia com os
interesses dos comerciantes burgueses.
Um dos pensadores econômicos mais conceituados do liberalismo foi Adam Smith, criador da
ideia da “mão invisível”, supostamente capaz de regular as atividades dos homens em sociedade e
garantir harmonia de forma natural, sem intervenção do Estado.
Smith nasceu em 1723 e morreu em 1790, era de uma família escocesa muito influente e teve
acesso a ótimos professores, tornando-se ele próprio professor de retórica, letras, jurisprudência e
filosofia moral. Ele construiu suas reflexões econômicas a partir de uma investigação que promoveu
sobre ciência da sociedade (BACKHOUSE, 2007).
51
Unidade I
Para Smith o papel mais importante que o governo deveria desempenhar na sociedade era a
implantação e o funcionamento de um sistema de justiça. Para ele, sem justiça, o sistema de liberdade
natural não poderia funcionar. Repare que nesse sentido as ideias de Smith se coadunam em grande
parte com as ideias dos pensadores que estudamos e que receberam a qualificação de “contratualistas”.
Eles defendem que o Estado deve existir para garantir os direitos dos cidadãos e, ao mesmo tempo,
exigir que cumpram seus deveres de forma que haja ordem, segurança e harmonia, essenciais para o
desenvolvimento de todas as atividades humanas, em especial a economia.
Mas as ideias de Adam Smith foram além, porque ele realizou também importante análise sobre as
origens e o desenvolvimento dos conflitos de classe na sociedade e de que forma o poder era exercido
na luta de classes (HUNT, 2005).
Uma das ideias mais importantes no pensamento de Smith era a relevância do trabalho para a
produção de riquezas, sendo de sua autoria a afirmação:
Adam Smith não foi o único pensador sobre o liberalismo, mas, com certeza, foi um dos mais
importantes. Para Streck e Moraes:
52
TRABALHO E SOCIABILIDADE
[...]
O liberalismo continua sendo uma forma de pensamento que influencia a economia e a política
e, após o término da Guerra Fria e dos regimes socialistas, as ideias de neoliberalismo adquiriram
muita força. Vamos tratar desse tema – neoliberalismo – ainda nesse momento quando estudarmos
o capitalismo hegemônico e a Globalização.
Outro pensador muito importante para estudos políticos, sociais e econômicos foi Karl Marx, que
vamos conhecer melhor agora.
Figura 16
A frase abaixo do busto de Karl Marx é famosa e foi expressa por ele e por Friederich Engels no livro
Manifesto comunista. A tradução é “Trabalhadores do Mundo, uni-vos”. No original a expressão teria
53
Unidade I
sido “Proletários do mundo, uni-vos”. Foi uma frase muito utilizada na antiga União das Repúblicas
Socialistas Soviéticas, país surgido com a Revolução de 1917 e que se dissolveu em 1991.
Nasceu em Treves, na Alemanha, capital da província alemã do Reno, em 1818. Seu pai era
advogado e sua mãe era judia e oriunda da Holanda. Sua família se converteu ao cristianismo quando
ele tinha seis anos. Ele foi casado com Jenny von Westphalen, filha de um barão da Prússia com quem
teve cinco filhos.
Sua vida pessoal alternou momentos de estabilidade financeira com outros de completa penúria,
quando teve que contar com a ajuda de amigos para poder sobreviver.
Em razão de suas ideias, de sua participação em movimentos políticos e de suas obras, foi expulso
da Alemanha, da França e da Bélgica e, em 1883, morreu na Inglaterra em razão de forte depressão
motivada pela morte de sua esposa que havia ocorrido dois anos antes.
Marx estudou Direito em Berlim e, em seguida, encaminhou seus estudos para a história e a
filosofia, tendo se doutorado nesta última área do conhecimento. Estudou com os juristas da Escola
Histórica do Direito e teve contato com a filosofia de Hegel, contemporâneo dos professores de Marx.
Nesse momento histórico, a filosofia hegeliana era como tida como filosofia oficial alemã. Em 1840
Marx conviveu de perto com os movimentos operários alemão e francês e, inspirado por essa vivência,
produziu textos e artigos que o tornam visado por perseguições de ordem política, o que o obrigou a
se mudar para Londres.
Marx conheceu o pensador inglês Friedrich Engels de quem se tornou, ao longo de toda vida, um
parceiro intelectual. Engels seria ainda um importante apoio material para Marx nos momentos de
maior dificuldade econômica.
Escreveram juntos a Ideologia alemã, obra em que criticam o pensamento do filósofo Ludwig
Feuerbach e marcam sua oposição ao idealismo típico da filosofia alemã. Também escreveram juntos
em 1848 a obra O manifesto comunista, muito conhecida e estudada.
A parceria intelectual de Marx e Engels se prolongaria até a morte do filósofo em 1883. Engels
faleceu em 1895.
José Arthur Giannotti tem importante reflexão sobre a interpretação a ser dada ao pensamento
de Karl Marx.
A observação de Giannotti é muito adequada para um momento histórico em que boa parte da
sociedade, em especial no Brasil, se divide de forma binária em prós e contras sem adotar a cautela
e o cuidado de conhecer, profundamente, tanto as ideias que adotam como aquelas que rechaçam.
Assim, conhecer o pensamento de Karl Marx e de seu grande parceiro intelectual Friedrich Engels
é um exercício de grande responsabilidade porque não podemos nos apropriar de ideias, defendê-las
ou criticá-las, sem antes nos dedicarmos a um conhecimento profundo que inclui a pesquisa direta
de textos, livros e trabalhos acadêmicos de qualidade.
As principais ideias de Marx e Engels colocadas têm por objetivo compreender como eles
analisavam a relação capital (investidores/empreendedores) e trabalho (operários/trabalhadores) e,
principalmente, como essas ideias poderão ampliar nossa compreensão sobre essa complexa relação
de produção que ainda hoje é fundamental para a organização social, política e econômica da
sociedade em que vivemos e de boa parte do mundo.
Marx afirmou o caráter social, concreto, ativo, produtivo da existência. É nas condições materiais
da vida, e não na consciência ou na evolução geral do espírito humano, que se encontra sua concepção.
O materialismo histórico está fundado nas relações sociais, o que tornou a dimensão do
materialismo no pensamento moderno uma dimensão de materialismo vulgar, porque derivada dos
sentidos e da materialidade direta.
Para Marx, o homem apreende-se socialmente nas relações sociais, históricas e produtivas que
o conformam.
O materialismo histórico é ideia importante no pensamento de Marx. Para ele, são as relações
concretas dos homens envolvidos no sistema produtivo que constroem as ideias, as dimensões
políticas, sociais e jurídicas. Mascaro nos esclarece que:
O termo materialismo, utilizado por Marx e pelos marxistas, pode dar margem
a pensar que se trata de uma visão que leva em conta apenas os átomos,
moléculas, as questões físicas, biológicas ou naturais. Não é disso que se
trata o materialismo histórico de Marx. Justamente para se diferencia dos
55
Unidade I
Sobre a teoria da história de Marx, o economista norte-americano e professor Stanley L. Brue afirma:
Marx e Engels acreditavam que as contradições do capitalismo o levariam ao seu fim e que os
trabalhadores do mundo deveriam se unir para evitar as consequências disso, assim, o melhor caminho
era os próprios trabalhadores organizarem a produção e o compartilhamento de seus resultados.
Brue explica que Marx “não traçou um esboço do socialismo; esse não era o seu objetivo. [...] ele
quis determinar o processo por meio do qual as forças de produção no capitalismo produziriam uma
antítese e inevitável queda” (BRUE, 2005, p. 177).
Sobre mais-valia, o economista Stanley L. Brue nos fornece uma explicação bastante clara que,
por certo, facilitará a compreensão. Ele afirma:
O conceito de mais-valia é essencial no pensamento de Marx e Engels e, por essa razão, vale a
pena consolidar nossa aprendizagem com a definição de Paulo Sandroni:
57
Unidade I
O conceito de mais-valia foi um dos mais debatidos do pensamento marxista entre pensadores
políticos, econômicos e sociais em todo o mundo. Não poderia ser diferente, porque ele é a base a
partir da qual se pode concluir que o capitalismo nunca será justo com os trabalhadores, ou seja,
nunca vai remunerá-los de forma correta porque a concepção sobre a qual se estruturam as ideias
de trabalho, remuneração e lucro tem essa defasagem importante que leva à remuneração injusta do
trabalhador. A questão é, ainda, bastante debatida e sempre é recomendável conhecer o pensamento
marxista em sua própria fonte, ou seja, nos escritos de Marx e Engels, para que seja possível avaliar
corretamente as ideias e propostas por eles apresentadas.
No pensamento de Marx e Engels, o homem que está impedido de produzir em seu próprio benefício
se torna alienado, exatamente porque fica inserido em relações que submetem totalmente o trabalho
ao capital, sem qualquer oportunidade de atender seus próprios interesses porque prevalecem os
interesses econômicos de produção para o lucro.
58
TRABALHO E SOCIABILIDADE
Em outras palavras, se os homens não têm o domínio dos meios de produção e não podem
organizar e controlar o processo produtivo, são apenas vendedores de sua força de trabalho e, nessa
medida, equivalem a mercadorias. Isso os torna alienados porque há total subordinação àqueles que
organizam e detêm os meios de produção. Para Marx e Engels, o trabalhador perde uma parte de seu
próprio ser em decorrência da total subjugação ao trabalho, sem qualquer possibilidade de intervir na
organização da produção da qual ele faz parte, porém, não tem voz ativa.
A definição de Sandroni nos fornece mais elementos sobre esse importante tema:
Essa também é um conceito do pensamento marxista que é bastante debatido entre os estudiosos
e que merece de nós melhor atenção e reflexão.
Observação
Para compreender o estado de bem-estar social e a doutrina social da Igreja, precisamos recuar
um pouco na história e analisar alguns aspectos da chamada Revolução Russa, ocorrida em 1917.
A Rússia vivia um regime político de poder absoluto dos czares, que eram o equivalente a reis,
ao mesmo tempo, o início do século XX é marcado por grave crise de produção econômica, carência
de alimentos e meios de se proteger do frio intenso e, consequentemente, de enorme insatisfação
59
Unidade I
da população. Mesmo nessa situação de penúria para a população, o czar Nicolau II determinou que
o país deveria participar da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), na Europa, o que aumentou a
insatisfação da população.
[...]
Em outubro de 1917, os bolcheviques tomaram o poder. Eles eram um grupo marxista ortodoxo
e conquistaram o poder político com relativa facilidade em um país que estava mergulhado no caos
político e econômico. Elegeram como lema as palavras: Paz, Terra e Pão que, sem dúvida, é bastante
significativo. Também denominaram o novo tipo de governo que iriam implantar como “ditadura do
proletariado”, e determinaram que a Rússia sairia da Primeira Guerra Mundial.
Passaram a ser de propriedade do Estado todas as terras, minas, usinas, máquinas, bancos, ferrovias,
fábricas e qualquer meio de produção econômica.
Evidentemente que os antigos proprietários se revoltaram com a decisão, o que gerou uma guerra
civil. Países europeus que não concordavam com o regime instalado na Rússia e nem com a saída
60
TRABALHO E SOCIABILIDADE
daquele país da guerra mundial trataram de apoiar os capitalistas proprietários que lutavam contra
o regime recém-implantado. A guerra interna na Rússia demorou longo tempo e, ao seu final, com
a destruição dos irresignados capitalistas que haviam perdido sua propriedade, o país necessitava de
completa reorganização econômica, pois estava caótico.
Figura 17
Para a reconstrução econômica, foram organizados planos quinquenais que estabeleciam metas e
cujo maior objetivo era implementar completamente o regime socialista e estabelecer uma sociedade
sem classes sociais.
A Rússia se tornou a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, conhecida pela sigla URSS.
Há certo consenso entre os estudiosos da Revolução Russa de 1917: ela conseguiu progressos
como a redução do analfabetismo; melhoria dos métodos de produção; evolução significativa nos
campos da tecnologia e saber científico; acesso a educação e cultura para todos os membros da
sociedade; eficiente sistema de saúde e de amparo aos filhos de pais que trabalhavam; eliminação
do desemprego e redução das horas de trabalho; assistência aos inválidos, entre outros importantes
aspectos econômicos e sociais.
No âmbito político, no entanto, foi um regime de força que não permitiu ideias contrárias e nem
liberdade de expressão.
61
Unidade I
A Rússia fez a transição para o regime econômico de mercado e ingressou no mundo globalizado.
O apogeu do modelo socialista da União Soviética enquanto força política se deu durante a
Segunda Guerra Mundial, quando a ação do exército “vermelho”, ou seja, russo, foi fundamental para
conter os alemães. Embora isso tenha sido positivo para os interesses dos países Aliados em ganhar
a guerra (Inglaterra, França, Estados Unidos e União Soviética) contra o Alemanha, Itália e Japão, é
certo que o poderio militar dos russos deixou os países aliados atentos.
Ao final da Segunda Guerra Mundial, tem início a chamada Guerra Fria que se não chegou a ser
uma guerra com armas e batalhas, foi, sem dúvida, um dos episódios mais conflituosos e tensos da
história da humanidade.
Alguns estudiosos apontam que o início da Guerra Fria foi a declaração do presidente norte-americano
Henry Truman, em 1947, que os Estados Unidos dariam assistência a qualquer país que se considerasse
ameaçado pela expansão do comunismo. Outros estudiosos apontam que a Guerra Fria teria tido
início com as explosões das bombas nucleares de Hiroshima e Nagasaki, cidades japonesas, em agosto
de 1945, desnecessárias para selar o fim da Segunda Guerra Mundial, mas sinalizadoras de que os
norte-americanos dominavam a tecnologia nuclear e eram belicamente mais fortes que os russos.
A expansão do socialismo era uma realidade.
62
TRABALHO E SOCIABILIDADE
Frieden afirma:
[...]
A expansão socialista que chegou até Cuba deixou os norte-americanos e seus aliados preocupados.
É preciso ressaltar que Fidel Castro e seus compatriotas não pretenderam fazer uma revolução
socialista, apenas derrubar um governo marcado por violência e má gestão econômica que resultava
em extrema pobreza da população. Como a resposta norte-americana foi ruim, os revolucionários
encontraram proteção na URSS e a ela se aliaram durante muitos anos, fato que quase provocou um
conflito bélico entre norte-americanos e russos durante a Guerra Fria. Felizmente, não ocorreu.
Conter a expansão socialista era uma tarefa a ser realizada e, para isso, não bastavam armamentos.
Assim, fatos históricos como a Revolução Russa, as duas guerras mundiais na Europa e todas as
suas consequências e, por fim, a expansão socialista são motivos suficientes para o surgimento de
alternativas, entre elas, o Estado do Bem-Estar Social.
Para Wilensky, Estado de Bem-Estar Social, Welfare State ou Estado Assistencial, pode ser definido
como: “Estado que garante tipos mínimos de renda, alimentação, saúde, habitação, educação,
assegurados a todo cidadão, não como caridade, mas como direito político” (WILESNKY, 1975 apud
REGONINI, 2004, p. 416).
63
Unidade I
Essa característica – um direito político e não caridade estatal – é ressaltada por Gloria Regonini:
[...]
E Regonini acrescenta:
64
TRABALHO E SOCIABILIDADE
[...] pode-se caracterizar este modelo de Estado como aquele que garante
tipos mínimos de renda, alimentação, saúde, habitação, educação,
assegurados a todo cidadão, não como caridade, mas como direito político.
[...]
O Estado do Bem-Estar Social, ou seja, a garantia de acesso a direitos sociais que tornem a vida
digna, é resultado de um processo historicamente construído pelos trabalhadores, em todo o mundo,
após a Revolução Industrial e as modificações significativas ocorridas no trabalho, na produção, na
economia e na sociedade. Os trabalhadores se organizaram em sindicatos, fizeram greves, criaram
jornais e panfletos para difundir suas ideias, realizaram reuniões para debater e divulgar seus objetivos,
trabalharam muito e de forma bastante organizada para concretizar seus ideais. Um dos resultados
foi a adoção de práticas sociais mais justas pelo Estado, em especial o acesso gratuito a educação,
saúde, assistência social, acesso a crédito facilitado para moradia, entre outros.
A implementação do Estado de Bem-Estar Social foi em boa parte a resposta dos países capitalistas
ao temor da expansão do socialismo; mas isso só ocorreu porque a organização dos trabalhadores e
suas lutas em prol de melhores condições de vida foram decisivas, mostraram claramente que não era
possível seguir com relações de trabalho que tivessem por objetivo apenas a exploração, sem garantia
de vida digna para quem trabalha.
O Estado de Bem-Estar Social não ocorreu em todos os países da mesma forma. No Brasil, por
exemplo, não temos a concretização do Estado do Bem-Estar Social como em alguns países da
Europa, por exemplo. Mas a Constituição Federal garante os direitos sociais e protege os direitos dos
trabalhadores, e isso já representa uma conquista significativa de todos os trabalhadores brasileiros.
Desde o início do momento histórico que se convencionou chamar de Revolução Industrial e que
já estudamos, as condições de trabalho e de vida dos operários das indústrias chamava a atenção
pela precariedade. Horas excessivas de trabalho, salários insuficientes para garantir a subsistência
com dignidade, ausência de diálogo entre patrões e empregados, violência utilizada como forma de
obter os resultados planejados na produção, uma série de abusos que contrariavam por completo os
direitos humanos.
Essa situação não passou desapercebida para parte da Igreja Católica, instituição que ao longo da
história viveu momentos de grande influência na vida política, econômica e social da humanidade.
65
Unidade I
[...] antes de meados do séc. 19, se defrontaram no plano das ideias, assim
como, mais para o fim do século, no plano político e sindical, as duas
maiores ideologias e forças políticas decorrentes da Revolução Industrial –
o capitalismo conservador-liberal e as várias ideias e movimentos
socialistas. À medida que o conflito se foi agudizando, surgiram vozes
moderadas, cheias de bom senso, que condenaram as duas correntes
que tendiam a extremar-se e defenderam, com bastante êxito prático,
doutrinas intermediárias. [...]
É sempre importante lembrar que a obra de Diogo Freitas do Amaral está redigida em português de
Portugal e por isso tem expressões e formas de redação diferentes das nossas, o que não nos impede
de compreender as ideias e refletir sobre elas. Nesse trecho que lemos anteriormente, fica evidente
que o Papa Leão XIII, que viveu de 1810 a 1903, teve papel importante em propor a conciliação para
os conflitos de sua época e foi o fundador da chamada Doutrina Social da Igreja. Ele cumpriu seu
pontificado de 1878 a 1903.
Em 1891, o Papa Leão XIII publicou a Encíclica Rerum Novarum, que retoma o pensamento
de Santo Tomás de Aquino no sentido da justiça social. Com esse documento, ele sugere para os
capitalistas para que respeitassem a dignidade de seus trabalhadores como homens e como cristãos
e não os tratassem como instrumentos de fazer dinheiro.
Em 1961, o Papa João XXIII cujo pontificado foi de 1958 a 1963, escreveu a encíclica Mater et
Magistra, e orientou para a prioridade do trabalho sobre o capital. A propriedade privada dos bens
de consumo e dos meios de produção era não apenas um instrumento indispensável à liberdade da
pessoa humana, mas também uma garantia dos direitos sociais.
O Papa João XXIII afirmou na encíclica que conforme o plano de Deus Criador, a abundância de
todos os bens existe, primeiramente, para a subsistência digna dos homens.
A missão da OIT desde sua criação foi “promover oportunidades para que homens e mulheres
possam ter acesso a um trabalho decente e produtivo, em condições de liberdade, equidade, segurança
e dignidade” (OIT, [s.d.]).
A OIT foi criada pela Conferência de Paz realizada após a Primeira Guerra Mundial e foi mencionada
na parte XIII do Tratado de Versalhes. O Tratado de Versalhes foi o acordo internacional firmado entre
várias nações com objetivo de colocar fim aos conflitos da Primeira Guerra Mundial – 1914 a 1918
A OIT é anterior à criação da Organização das Nações Unidas (ONU), que só ocorreu em 1948, após
o final da Segunda Guerra Mundial.
67
Unidade I
A proteção ao trabalho no Brasil teve início em 1930 com a criação do Ministério do Trabalho.
O portal do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea (CPDOC), da Fundação
Getúlio Vargas, informa sobre esse período da história do Brasil
Saiba mais
A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), ou Decreto-Lei n. 5.452, entrou em vigor em 1º de maio
de 1943, ainda no governo do presidente Getúlio Vargas, e colocou em vigor normas que regulam as
relações individuais e coletivas do trabalho.
A CLT sempre teve muitos críticos entre os estudiosos de direito porque teria sido inspirada na
Carta del Lavoro, de 1927, implantada na Itália pelo líder fascista Benito Mussolini. Para os fascistas,
o Estado deveria ser o principal mediador das relações de trabalho, por isso previa a existência de um
sindicato único, proibição de greve, entre outros aspectos polêmicos.
O certo é que com todas as críticas, a CLT brasileira é ainda hoje no Brasil uma lei em vigor,
atualizada pela Reforma Trabalhista de 2017, e que mantém íntegros os princípios da Constituição
Federal brasileira de 1988.
O artigo 7º da Constituição Federal brasileira, cuja leitura é recomendada para todos, estabelece
em trinta e quatro incisos os direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de estabelecer que
outros possam ser criados sempre com o objetivo de melhorar as condições sociais dos trabalhadores.
Além disso, nos artigos subsequentes, a Constituição Federal garante que é livre a associação
profissional ou sindical, portanto, ninguém poderá ser obrigado a filiar-se ou manter-se filiado a
sindicato; obriga a participação dos sindicatos nas negociações coletivas de trabalho; garante o
direito de greve; entre outros relevantes aspectos da proteção dos trabalhadores.
69
Unidade I
Em 1989 o mundo assistiu à queda do Muro de Berlim e, com ele, o sistema socialista implantado na
Europa começava a ser substituído. Alemanha Ocidental – capitalista – e Alemanha Oriental – socialista
– foram reunificadas e adotaram o modelo capitalista. E as repúblicas que compunha a URSS passaram
a ter vida independente. A Rússia fez a transição de sua economia para o modelo capitalista.
Por essa razão, é que se costuma afirmar que o capitalismo é hegemônico no planeta, porque entre
os países capitalistas, estão economias muito fortes como dos Estados Unidos, Inglaterra e Alemanha,
embora a China seja a segunda economia mais forte atrás apenas dos norte-americanos. Aliás, o
modelo chinês na economia e na política não é mais considerado socialista porque os empreendimentos
privados são a base da economia, tanto com capital nacional como com investidores estrangeiros.
Não ocorreram grandes mudanças no regime político, mas no regime econômico a China protagonizou
transformações significativas.
O fim dos regimes socialistas parecia ter trazidos novos ares para o mundo. Geoffrey Blaney,
professor da Universidade de Harvard, nos ensina que:
70
TRABALHO E SOCIABILIDADE
Nessa década plena de otimismo, a internet lançou sua teia sobre o mundo,
aumentando a atmosfera de esperança. Pessoas que viviam afastadas
passaram a comunicar-se com enorme facilidade. Mas tal otimismo era
prematuro (BLANEY, 2011, p. 277)
Se por um lado não foi possível concretizar o entendimento humano e os episódios do terrorismo
– 11 de setembro de 2001 principalmente – provam isso, no âmbito econômico, o fenômeno da
globalização se alastrou e trouxe vantagens e desvantagens para todos os países e para toda a
população, muito em especial para os trabalhadores. A globalização da economia não é um fenômeno
recente, ao contrário, existe desde as empreitadas comerciais dos fenícios. Observa Niall Kishtainy:
[...]
A globalização, em especial no século XXI, não é apenas um fenômeno econômico. É, antes de tudo,
uma aproximação intensa entre diferentes povos e culturas, conhecimento em tempo real de fatos e
eventos em diferentes partes do planeta e despertar para uma consciência de que alguns problemas
sociais e políticos se repetem em diversos países e não ocorrem apenas no local em que estamos.
Esse fenômeno se tornou possível graças ao desenvolvimento tecnológico que interligou o mundo
a partir de rápidos “clics” em telefones celulares, tablets, notebooks e nas televisões que transmitem
programas produzidos em diferentes locais do planeta, sempre em tempo real e com imensa quantidade
de informações e dados para serem absorvidos, embora nem sempre com a necessária reflexão sobre
todas as informações recebidas.
Como vocês puderam perceber, o texto transcrito anteriormente também está redigido em português
de Portugal, porque a obra é publicada por uma editora de Lisboa. Facilidades da globalização!
Mas a ideia central de Giddens é o que importa: a globalização não é um fenômeno apenas
econômico, embora tenha provocado muitas mudanças nesse setor. Mas ocorreram mudanças
também nas relações sociais, políticas e culturais.
72
TRABALHO E SOCIABILIDADE
Resumo
73
Unidade I
das Nações Unidas (ONU). Ambas difusoras dos ideais de respeito aos
direitos dos trabalhadores e aos direitos humanos. No Brasil, o governo de
Getúlio Dornelles Vargas aprovou e colocou em vigor a CLT, importante
marco legal na proteção dos trabalhadores brasileiros. Recentemente a lei
foi alterada por uma reforma realizada em 2017.
75
Unidade I
Exercícios
I – Os homens caçadores e coletores conheciam muito bem a natureza, os animais e as plantas que
coletavam e não tinham que administrar os excedentes da produção.
Está(ão) correta(s):
A) I, somente.
B) II, somente.
C) III, somente.
D) I e II, somente.
E) II e III, somente.
I – Afirmativa correta.
Justificativa: para Yuval Noah Harari em seu livro Sapiens: uma breve história da humanidade:
“os caçadores-coletores conheciam os segredos da natureza muito antes da Revolução Agrícola, já
que sua sobrevivência dependia de um conhecimento íntimo dos animas que eles caçavam e das
plantas que eles coletavam. Em vez de prenunciar uma nova era de vida tranquila, a Revolução
76
TRABALHO E SOCIABILIDADE
Agrícola proporcionou aos agricultores uma vida em geral mais difícil e menos gratificante que a dos
caçadores-coletores. Estes passavam o tempo com atividades mais variadas e estimulantes e estavam
menos expostos à ameaça de fome e doença.” (L&PM, 2016, p. 56). A administração dos excedentes
de produção teria sido ensejadora de conflitos sociais e do surgimento de elites favorecidas.
II – Afirmativa correta.
Justificativa: para Harari o trabalho na agricultura se mostrou mais exaustivo que o trabalho
de caça e coleta de alimentos, além do que a produção de excedentes gerou as elites favorecidas e
contribuiu para a desarmonia social porque incentivou a busca por lucratividade e poder político para
viabilizar o domínio de maiores áreas agricultáveis.
Questão 2. Podemos associar a Revolução Russa de outubro de 1917 com as ideias centrais do
pensamento de Marx e Engels porque:
A) Eles defendiam que os trabalhadores tomassem o poder para construir outra forma de capitalismo
que deveria ser mais justo e dinâmico.
B) O capitalismo com suas contradições o levaria ao próprio fim e, para evitar isso, os trabalhadores
deveriam se unir e organizar a produção econômica por si próprios.
C) A alienação dos trabalhadores no capitalismo permitiu que a Revolução Russa fosse promovida
pelo exército burguês.
D) Os trabalhadores na visão de Marx e Engels teriam como destino histórico o materialismo, ou seja,
a acumulação progressiva da produção econômica.
A) Alternativa incorreta.
Justificativa: a ideia não era a construção de outra forma de capitalismo, mas de socialismo na
primeira etapa e comunismo como objetivo final a ser alcançado.
77
Unidade I
B) Alternativa correta.
Justificativa: a ideia de Marx e Engels era de que o capitalismo repleto de contradições na produção
e distribuição das riquezas enfrentaria crises sucessivas e poderia chegar ao fim. Para evitar isso, a
classe trabalhadora em todo o mundo deveria se unir e assumir a produção e garantir a distribuição
de forma igualitária e justa.
C) Alternativa incorreta.
Justificativa: a Revolução Russa não foi iniciativa do exército burguês, ao contrário, foi iniciativa
de adeptos das ideias de Marx e Engels conhecidos por bolcheviques.
D) Alternativa incorreta.
E) Alternativa incorreta.
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