Fernão Lopes

Fazer download em docx, pdf ou txt
Fazer download em docx, pdf ou txt
Você está na página 1de 11

FERNÃO LOPES

CONCEÇÃO DA HISTÓRIA E MÉTODO HISTORIOGRÁFICO


 O carácter admirável da obra de Fernão Lopes deve-se, em
grande parte, à originalidade da sua conceção da História, tanto em
relação à tradição historiográfica como aos autores
contemporâneos.
 Antes deste cronista, todos os textos que se reportassem a
acontecimentos do passado — independentemente de serem
lendas, contos tradicionais, romances de cavalaria e narrativas de
crónicas e de livros de linhagens — eram aceites como relatos
históricos sem que a sua veracidade fosse averiguada.
 A experiência profissional de Fernão Lopes como notário e
arquivista não só lhe incutiu a consciência da necessidade
de fundar a verdade histórica num documento escrito, como também
lhe proporcionou o acesso a documentos escritos e
testemunhos orais que, caso contrário, lhe estariam vedados.
 No prólogo da Crónica de D. João I, o autor expõe o seu ponto de
vista sobre o trabalho do historiador, descrevendo o método
utilizado para tentar manter a imparcialidade.
a) Recolher informação de numerosos testemunhos escritos, de modo
a assegurar o rigor dos factos históricos avançados;
b) Apesar de seguir a historiografia anterior no processo de
elaboração do texto, procedendo ao corte e montagem de textos
de outros autores, sujeitou as fontes a uma análise criteriosa,
procurando verificar qual seria a mais verosímil ou a mais
adequada à lógica interna dos factos; verificou também
a verdade destes testemunhos escritos através do seu confronto
com documentos oficiais.

ATORES INDIVIDUAIS E COLETIVOS


 Como afirma António José Saraiva (1965), a história que Fernão
Lopes tinha de contar era bastante complexa, pela diversidade da
natureza de cenas que deveria incluir. No entanto, o cronista
narra os eventos históricos em causa com enorme mestria,
alternando o fio da narrativa com instantâneos
intensamente dramáticos, momentos em que, ao desenvolver
situações através do confronto de personagens (como, por
exemplo, no episódio do assassinato do conde Andeiro), mostra
ter características de um verdadeiro dramaturgo.
 Fernão Lopes foi um dos mais fecundos e poderosos criadores de
caracteres tanto individuais como coletivos, vindo, por este
motivo, a influenciar poetas, romancistas e dramaturgos de
épocas posteriores.

1. Atores individuais
 As personagens individuais criadas por Fernão Lopes
são variadas e complexas, sendo devassadas na sua intimidade por
um olhar incisivo.
 Na Crónica de D. João I, três personagens se destacam pelo seu
protagonismo: D. Leonor Teles, o Mestre de Avis e D. Nuno Álvares
Pereira.
a) A primeira é caracterizada de forma profundamente negativa, na
medida em que é descrita como objeto de um ódio profundo por
parte do povo, sendo, além disso, alvo das acusações do partido
que queria a independência do trono português. Apesar disto, o
cronista não oculta a sua grandeza e força, que lhe
permitem manipular figuras masculinas, como D. Fernando, D.
João de Castro (filho ilegítimo de D. Pedro e de Inês de Castro) e
o próprio Mestre de Avis, e enfrentar, mesmo após a derrota, o rei
de Castela, recusando-se a ingressar num convento.

b) Quanto ao Mestre de Avis — e ao contrário do que seria de


esperar — é caracterizado como um homem vulgar, hesitante e
vulnerável às fraquezas, como é possível verificar, por exemplo,
pelas oscilações no seu comportamento aquando da conjura
contra o conde Andeiro (depois de se mostrar indeciso, adere à
conjura, fugindo em seguida para o Alentejo, de onde regressa
quando se apercebe de que a conspiração será inevitavelmente
descoberta). Apesar destes defeitos — que o tornam uma
personagem profundamente realista —, o Mestre de Avis mostra
também ser capaz de atos espontâneos de solidariedade, o que o
converte numa figura cativante.
c) Finalmente, Nuno Álvares Pereira é caracterizado num outro
registo, sendo convertido num herói hagiográfico (isto é, com
traços de santidade) e, ao mesmo tempo, num grande guerreiro.

2. Atores coletivos
 Nas crónicas de Fernão Lopes, as personagens coletivas (como, por
exemplo, a população de Lisboa) têm um papel ativo e decisivo,
determinando o curso dos acontecimentos.
 Com efeito, sempre que é narrado um evento importante, o
cronista faz questão de expor o que pensava dele a opinião pública,
como sucede aquando do cerco de Lisboa, momento em que a
população da cidade oscila entre a esperança de que a frota
castelhana fosse derrotada e o receio de que os castelhanos
saíssem vitoriosos, exercendo uma vingança cruel sobre os
sitiados.
 Esta expressão de sentimentos da coletividade é, por vezes,
resumida através de um dito que sai de uma multidão — como
sucede com as cantigas entoadas durante o cerco de Lisboa, que
mostram a profunda determinação dos habitantes da cidade.
 A importância conferida a uma entidade coletiva nos eventos históricos
(como sucede aquando da derrota dos castelhanos no cerco de
Lisboa, cujo mérito é atribuído à população da cidade) torna
Fernão Lopes um cronista único entre os seus congéneres
medievais.

AFIRMAÇÃO DA CONSCIÊNCIA COLETIVA


 Na Crónica de D. João I emerge um sentimento coletivo do povo
português que se traduz na consciência de se pertencer a uma
mesma nação. A consciência nacional dos portugueses advém, em
grande medida, de temerem a invasão estrangeira (castelhana) e
de sentirem a independência do reino e a sua liberdade ameaçadas
durante a Crise de 1383-1385.
 O sentimento nacional afirma-se porque, nessa ameaça, se
fortalece a noção de comunidade. O povo de Lisboa manifesta-se
contra a regente D. Leonor e contra a influência estrangeira (cap.
11) e sofre em conjunto a dureza e as privações do cerco que João
de Castela monta à capital (cap. 148). Contudo, são também
portugueses de várias terras e regiões que se mobilizam para
preparar a resistência a essa invasão e que enfrentam o exército
castelhano nas batalhas de Atoleiros e de Aljubarrota.
 A ideia de ser português está enraizada na «arraia-miúda» (o povo);
mas dela comungam também a burguesia e a nobreza que se
mantém fiel à causa patriótica. De facto, o povo ganha a
consciência coletiva de que tem um papel mais ativo e quer
participar na vida política do reino e na condução dos destinos da
nação: intervém para «salvar» o Mestre, mobiliza-se para enfrentar
os castelhanos e quer decidir quem será o próximo rei de Portugal.
 Em termos narrativos, a consciência de grupo e o sentimento
nacional são representados através da noção de personagem
coletiva (cf. p. 87), quando se trata da multidão de Lisboa, que
revela uma vontade comum (cap. 11), que se organiza em
conjunto para defender a capital (cap. 115) e que sofre em
conjunto o cerco imposto (cap. 148). Mas a enumeração de
grupos sociais e profissionais (soldados) chama a atenção
também para o facto de a unidade nacional se fazer a partir da
motivação e do empenho dos grupos que a compõem.
 No plano da escrita da história, a própria Crónica de D. João
I contribui, ao mesmo tempo, para representar o sentimento
coletivo vivido durante a Crise de 1383-1385 e para afirmar essa
consciência nacional. A obra foi encomendada pelo rei D.
Duarte, filho de D. João I. Um dos objetivos de Fernão Lopes foi
demonstrar o patriotismo dos portugueses e valorizar o papel do
Mestre de Avis, fundador da Casa de Avis, na defesa da
independência do reino e na construção do novo Portugal, que
nasce na segunda dinastia. Fernão Lopes ajuda a legitimar
(justificar) o direito de D. João I ao trono do Reino português.

 D. João I ao trono do Reino português.

ESTILO E ARTE NARRATIVA DE FERNÃO LOPES


 As crónicas de Fernão Lopes testemunham um estádio da língua
portuguesa que se costuma classificar como português antigo e
exibem construções sintáticas, expressões e vocabulário com
marcas da língua de um período de amadurecimento. Apesar dos
arcaísmos («talente», «aadur», «açalmamento») e de
construções arcaicas («Ca nenhuu˜ por estonce podia outra cousa
cuidar»), é claro que a língua portuguesa já sofreu uma evolução
que a distingue dos seus primórdios.
 No texto da Crónica de D. João I, a narração alterna com
a descrição e com o diálogo para incutir vivacidade e energia no
relato dos episódios mais relevantes da Crise de 1383-1385. (Não
surpreende que os campos lexicais dominantes sejam o militar e o
da realidade social.) Fernão Lopes consegue criar ritmo e
tensão na forma expressiva de narrar os acontecimentos e com a
introdução de discurso direto no relato («— U matom o
Meestre?»).
 A vivacidade, o ritmo e a emoção das personagens são também
conseguidos através de características do discurso como as
marcas de oralidade e a simplicidade da linguagem (registo corrente
e vocabulário familiar), os verbos de movimento, os verbos
introdutores do discurso («braadar»), as interjeições e as
apóstrofes («Ó Senhor!»). O dinamismo da ação resulta do uso de
tempos, formas e aspetos verbais como o imperfeito do indicativo,
o gerúndio e o aspeto durativo. O uso de recursos expressivos é
relativamente parco e pouco vai além da comparação, da
metáfora e da personificação.
 As descrições são pautadas pelo forte apelo visual. O narrador
desempenha o papel da testemunha dos acontecimentos;
percorre os espaços e caracteriza os lugares, os ambientes e as
figuras (indivíduos ou grupos) que encontra. O uso de verbos
associados ao olhar («oolhae», «veede») ajuda a salientar o
visualismo das situações descritas. Por vezes, as sensações
visuais são associadas às auditivas (cap. 15).
 Numa técnica semelhante à do cinema ou da reportagem, o
narrador percorre os espaços, detendo-se em figuras individuais
ou em grupos, como sucede na descrição do sofrimento do povo
de Lisboa (cap. 148). Em colaboração com as outras técnicas
anteriormente descritas, assim se consegue criar um
estilo expressivo que põe em destaque pormenores patéticos da
situação descrita.

Glossário
Crónica — Palavra derivada do vocábulo grego «chronos» (tempo), é
usada na Idade Média e posteriormente para se referir a uma
narrativa histórica em que os acontecimentos são dispostos por ordem
cronológica, ou seja, obedecendo à ordem do tempo. Mais
recentemente, o termo «crónica » passou a remeter para um género de
texto jornalístico de opinião sobre assuntos da atualidade.
Historiografia — Arte de escrever a história; conjunto de obras ou
estudos de carácter histórico; estudo crítico sobre obras acerca da
história ou
sobre historiadores.
Ideologia — Conjunto de valores e de crenças que determinam a
forma como um indivíduo ou um grupo veem o mundo. Em Fernão
Lopes, vislumbra-se a ideologia nacional.

Você também pode gostar