Conímbriga - Ficheiro Epigráfico, FE - 98 - 2012

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 16

UNIVERSIDADE DE COIMBRA

FACULDADE DE LETRAS

FICHEIRO EPIGRÁFICO
(Suplemento de «Conimbriga»)

98

INSCRIÇÕES 442-445

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA, ARQUEOLOGIA E ARTES


SECÇÃO | INSTITUTO DE ARQUEOLOGIA
2012
ISSN 0870-2004

FICHEIRO EPIGRÁFICO é um suplemento da revista CONIMBRI-


GA, destinado a divulgar inscrições romanas inéditas de toda a Península Ibé-
rica, que começou a publicar-se em 1982.
Dos fascículos 1 a 66, inclusive, fez-se um CD-ROM, no âmbito do
Projecto de Culture 2000 intitulado VBI ERAT LVPA, com a colaboração da
Universidade de Alcalá de Henares. A partir do fascículo 65, todos os volumes
estão também disponíveis no endereço http://www.uc.pt/fluc/iarq/documentos_
index/ficheiro.
Publica-se em fascículos de 16 páginas, cuja periodicidade depende
da frequência com que forem recebidos os textos. As inscrições são numeradas
de forma contínua, de modo a facilitar a preparação de índices, que são publi-
cados no termo de cada série de dez fascículos.
Cada «ficha» deverá conter indicação, o mais pormenorizada pos-
sível, das condições do achado e do actual paradeiro da peça. Far-se-á uma
descrição completa do monumento, a leitura interpretada da inscrição e o res-
pectivo comentário paleográfico. Será bem-vindo um comentário de integração
histórico-onomástica, ainda que breve.

Toda a colaboração deve ser dirigida a:

Instituto de Arqueologia
Secção de Arqueologia | Departamento de História, Arqueologia e Artes
da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra
Palácio de Sub-Ripas
P-3000-395 COIMBRA

A publicação deste fascículo só foi possível graças ao patrocínio de:

Composto em ADOBE in Design CS4, Versão 6.0.6 | José Luís Madeira | IA | DHAA | FLUC | UC | 2012
442-444

INSCRIÇÕES ROMANAS NO PAÇO DA EGA


(CONDEIXA-A-NOVA)
(Conimbriga – Conventus Scallabitanus)

Reaproveitados numa janela do chamado ‘Paço da Ega’ que


incorporou o antigo castelo templário, foram encontrados, nos
finais de 1985, três fragmentos de inscrições funerárias romanas.
Ega é freguesia do concelho de Condeixa-a-Nova.
Partiu-se, por conseguinte, do princípio de que teriam
provindo da vizinha cidade de Conimbriga. A primeira
preocupação foi, pois, tentar identificá-los com algumas das
epígrafes de que havia conhecimento e dadas como perdidas;
por outro lado, cotejámos, também sem resultado, os textos com
os de fragmentos publicados,1 na esperança de que algum os
pudesse completar.

1 Étienne (Robert), Fabre (Georges) e Lêvêque (Pierre et Monique), Fouilles

de Conimbriga, vol. II: Épigraphie et Sculpture ( = Fouilles II], Paris, 1976.

Ficheiro Epigráfico, 98, 2012


442

Fragmento de placa funerária romana, de calcário local,


reaproveitada como avental de janela. O reaproveitamento
implicou a colocação de um banco de pedra de través, que destruiu
parte do texto. As dimensões infra indicadas corresponderão, com
apenas ligeira diferença, à face original e ao campo epigráfico.
Dimensões: 145 x 52,5 x 23.
Campo epigráfico: 145 x 52,5.

AVITO (hedera) CA[E]NO/NIS (hedera) F(ilio) (hedera)


SV[N]VA / TANGIN[I (hedera) F(ilia)] / MATER / 5 (hedera)
F(aciendum) (hedera) [C(uravit) (hedera)]

A Avito, filho de Cenão, Súnua, filha de Tangino, a mãe,


mandou fazer.

Altura das letras: 6,5. Espaços: 1: (5,5); 2 a 5: 3; 6: (2,5).

Mau grado o desgaste provocado pela reutilização,


reconstitui-se sem dificuldade a totalidade do texto: na l. 1, temos
o arranque do A, a 2ª haste do N e a quase totalidade do O; na l.
2, metade do 1º V, a metade direita do 2º e do A só o trecho final
desapareceu; na l. 3, a primeira perna do N, havendo espaço para
o I e para o F; na l. 4, o R está perceptível; na l. 5, a reconstituição
proposta não oferece dúvidas, decerto.
Paginação extremamente cuidada, com recurso a linhas
de pauta singelas ainda visíveis – que emprestam, aliás, ao
conjunto enorme graciosidade, corroborada pelas hederae de
raro pecíolo ínfero e limbo cordiforme alongado. Obedeceu-se
a um alinhamento à esquerda, que, na última linha, postulou o
recurso a uma hedera inicial, a fazer supor que também no final
outra se teria gravado também.
Caracteres actuários, geometricamente desenhados, de
ductus vertical (inclusive no S, em que apenas se vislumbra
mui leve inclinação para a frente), terminados com requinte
nos vértices em forma de minúsculos triângulos. Gravação com
badame, em bisel. Note-se o G, que se distinguiu do C pela adição
de um discreto traço curvo ao vértice inferior, dando uma forma

Ficheiro Epigráfico, 98, 2012


não registada por Battle.2
Do ponto de vista da onomástica, documenta-se claramente
o início do contacto entre os antropónimos de etimologia lusitana,
diríamos, atendendo à distribuição que deles se conhece,3 e a
adopção, para o filho, de um nome latino cujo significado cedo
foi bem assimilado pelos indígenas: Avitus, «o mais velho».4
Para além de se tratar de um monumento esbelto, a
documentar o uso da onomástica pré-romana, a epígrafe – de teor
simultaneamente funerário e honorífico, frise-se bem – patenteia
uma atitude comum na epigrafia conimbricense: o visível papel
da mulher no seio da família, como se tem salientado.5
Pela paleografia, pelo modo de identificação das personagens
e pela simplicidade textual, é documento datável da primeira
metade do século I da nossa era.

2 Battle Huguet (Pedro), Epigrafía Latina, Barcelona, 1946, p. 12, fig. 9.


3 Vide Navarro Caballero (Milagros) e Ramírez Sádaba (José Luís) [coord.],
Atlas Antroponímico de la Lusitania Romana, Mérida / Bordéus, 2003: para
Caeno, p. 125-126 e mapa 65 e, também, Encarnação (José d’), «Os epitáfios
como expressão literária», Liburna 4 (Novembro 2011) [Homenagem a Jaime
Siles], p. 145-146 [acessível em: http://hdl.handle.net/10316/18059]; para Su-
nua, p. 308, mapa 283; para Tanginus, p. 313-316, mapa 289.
4 É, seguramente, um dos nomes mais comuns na Lusitânia: veja-se o mapa
51 (p. 108) do Atlas referido. No conjunto da Hispania, Juan Manuel Abascal
indica-o em 3º lugar, entre os nomes pessoais mais frequentes, com 197 teste-
munhos (Los Nombres Personales en las Inscripciones Latinas de Hispania,
Múrcia, 1994, p. 31).
5 Encarnação (José d’), «Mães e filhos passeando por entre epígrafes», in

Mª Carmen Sevillano San José et alii (edits.), El Conocimiento del Pasado.


Una Hierramienta para la Igualdad, Salamanca, 2005, 101-113 [acessível em:
http://hdl.handle.net/10316/11518].

Ficheiro Epigráfico, 98, 2012


442

443

Ficheiro Epigráfico, 98, 2012


443

Fragmento de placa funerária romana, de calcário local,


reaproveitada como pardieira de uma janela. O reaproveitamento
implicou um recorte em arco de círculo, correspondente à luz
superior da janela, que destruiu a parte inicial da maioria das
linhas do texto.
As dimensões 149 x 56 cm correspondem muito
aproximadamente à face original da peça, que mostra uma
moldura a toda a volta (picada no reaproveitamento), com cerca
de 8 cm de largo. O campo epigráfico assim marcado mediria 81
x 43 cm.

D(iis) M(anibus) / [I]VLIO FORTVNATO / [A]NN(orum)
XXVIII (duodetriginta) / [RO]MAE SEPVLTO / 5 [CLAV]DIA
VITALIS / MATER / [IVL]IA SOROR

Aos deuses Manes. A Júlio Fortunato, de 28 anos, sepultado


em Roma – Cláudia Vital, a mãe; Júlia, a irmã.

Altura das letras: l. 1: 8; l. 2: 5,5 (I=2,5; V=1,5; O=2); l. 3:


5,5 (III=4); l. 4: 4,2 (O=2,5); l. 5: 4,2 (I=5,3; I=2,1); l. 6: 4,5; l. 7:
4,5 (I=5,5). Espaços: 1 e 2: 2,8; 3 a 7: 3; 8: (9,5).

Paginação muito cuidada, regular, verosimilmente segundo


um eixo de simetria, sem pontuação (veja-se a cuidada colocação
da dedicatória aos Manes, na l. 1). Linhas auxiliares imperceptíveis
à vista, mas perfeitamente perceptíveis no resultado obtido.
Recurso inteligente e frequente – para economia de espaço e em
obediência à lógica textual – às pequenas (por vezes, minúsculas)
letras e também ao I mais alto.
Caracteres actuários, geometricamente desenhados a rigor,
gravados com badame, em bisel, terminados nos vértices com
requinte. R feito a partir do P, O perfeitamente circular.
Onomástica latina habitual na Lusitânia, tanto a nível dos
nomina (Iulii, Claudii) como dos cognomina.1

1 Cf. Atlas atrás citado: Iulius (p. 197-204, mapa 158), Claudius (p. 145-

146, mapa 93). Fortunatus é menos frequente: 13 exemplos (ibidem, p. 178,

Ficheiro Epigráfico, 98, 2012


Romae sepulto é expressão de que temos outro exemplo
em Conimbriga: P. Lucanius Reburrinus, de 37 anos, também
sepultado em Roma, é recordado por sua mãe Publia Procula
(Fouilles II nº 34). Aliás, também Fouilles II nº 33 refere o filho
de Coelia Romula, de 32 anos, que faleceu no caminho para
Roma e aí foi sepultado: «in itinere urbis defuncto et sepulto».
São, pois, três testemunhos muito significativos, a demonstrar
o relacionamento estreito entre as duas cidades, a que Silvio
Panciera teve também oportunidade de aludir por ter identificado
em Roma a epígrafe de um conimbricense.2
A dúvida que os autores de Fouilles II tinham em relação
à ausência de fórmula final na epígrafe nº 34 fica resolvida com
este achado, porque também aqui não existe.
De salientar de novo o papel da mulher, pois é a mãe e a irmã
que prestam a homenagem, pretexto evidente para mostrarem a
aliança entre os Iulii e os Claudii¸ importantes também eles na
sociedade conimbricense.
Pela paleografia e pela simplicidade textual, é documento
datável da 1ª metade do século I da nossa era.

mapa 135), dos quais 2 em Conimbriga. Dos 22 testemunhos de Vitalis na


Lusitânia (ibidem, p. 344, mapa 332), anote-se que 5 se localizaram na civitas
Igaeditanorum e 5 em Emerita Augusta, o que denuncia um cognomen de
preferente recorte urbano e aqui usado logo no início do Império.
2 Panciera (Silvio), «Domus a Roma. Altri contributi alla loro inventariazione»,

en Angeli Bertinelli (Maria Gabriella) e Donati (Angela) [ed.], Usi e abusi


epigrafici. Atti del Colloquio Internazionale di Epigrafia Latina (Genova 20-22
settembre 2001), Roma, 2003, 355-374. Trata-se de um legado, Silo Andronici
(filius), ligado à civitas Conimbrigens[ium?] (p. 370-371): cf. Encarnação
(José d’), «Lusitani nell’Italia romana», in Sartori (António) e Valvo (Alfredo)
[coord.], Hiberia – Italia / Italia – Hiberia (Actas do Convegno Internazionale
di Epigrafia e Storia Antica – Gargnano-Brescia – 28-30 aprile 2005), Milano,
2006, 48-49. No âmbito da epigrafia romana peninsular, a darmos crédito ao
repertório de Hispania Epigraphica on line, o registo nº 6733, de Cuenca
(Castilla-La Mancha), referido em AE 1982, 600, assinala que Iullia Auctilla,
de 40 anos, foi sep(ulta) Rom(ae).

Ficheiro Epigráfico, 98, 2012


444

Fragmento de epígrafe romana, de calcário local,


reaproveitada como pardieira de uma porta interior. O
reaproveitamento deve ter dividido o bloco original em várias
fatias, de que se conserva apenas esta, que contém a parte inicial
das linhas do texto. Pela espessura conservada, pela (verosímil)
presença original de moldura (um meio-redondo côncavo) e
pela invulgar extensão do texto, a epígrafe poderá certamente
inserir-se no âmbito dos cipos simultaneamente funerários e
honoríficos, ainda que encostado ou mesmo embutido num
elemento arquitectónico.
Dimensões: 124 x (21) x 41.
Campo epigráfico: 122 x (13).

D(iis) [M(anibus)]
M(arco) L(ucanio vel Lucceio?] [FLA]
VINO […]
REN […] [OM]
5
NIBV[S HONO]
RIBV[S MVN(icipii) ?]
CO[NIMBRI?]
GEN[SI vel SIS vel S(ibus)?] [HO?]
NORI[BVS]
10
PERFV[NCTO]
M(arcus) · V(alerius?) […]
AMIC[O] [OP]
TIME [sic] […?]
F(aciendum) [C(uravit)]
15
H(ic) · S(itus) [E(st)] [S(it) T(ibi)
T(erra) L(evis)] [?]

Ficheiro Epigráfico, 98, 2012


Tradução: Atendendo às dificuldades de interpretação, não
arriscamos uma tradução, remetendo para os comentários que se
fazem a seguir, susceptíveis de contribuírem para enquadrar as
informações que o texto vem facultar.

Altura das letras: 4,5/4,0 (O da l. 9 = 2,5; E da l. 10 = 2; H


da l. 15 = 5,5).
Espaços: 0,7/1 (não foi medido o espaço final).

Atendendo à extensão do texto e à posição do D inicial,


o ordinator terá tentado um alinhamento segundo um eixo de
simetria, porquanto também não há rigoroso alinhamento à
esquerda, conseguido apenas da linha 2 à 6. A pontuação,
triangular, só se observa nas linhas 11 e 15.
Caracteres actuários, gravados com badame, em bisel.
Notem-se: a assimetria do traçado dos NN; R feito a partir do
P e de perna ondulada; barras do E, do A, do F, do T e do H
não horizontais, a denotar um ductus que segue o fluir do gesto,
sem recurso a régua; esse carácter não-geométrico da gravação
acentua-se, por exemplo, no H, inclinado para diante e cuja
haste da esquerda é rasgada de cima para baixo num gesto
levemente encurvado; também o F, o G (a terminar inferiormente
em curva para dentro) e o nexo ME denunciam essa tendência
para a cursividade, assim como a forma como os vértices das
letras se apresentam (veja-se como, no M, as pernas da direita
se prolongam para além do vértice…). Paleograficamente – e
embora sabendo quanto é falível esse argumento, na ausência de
outros dados – é monumento que dataríamos da 1ª metade do
século II.
O que resta da epígrafe lê-se bem; contudo, para se sugerir
uma outra interpretação e, ainda, para se justificar a hipótese de
reconstituição que já ousámos propor, o primeiro problema a
encarar é, sem dúvida, o da largura do campo epigráfico completo.
Há, porém, indícios passíveis de fornecer algumas pistas, se
não inteiramente válidas, pelo menos verosímeis. Assim, na l.
1, a fórmula habitual – patente, por exemplo, na inscrição de
Fortunatus atrás estudada – será D M; ora, considerando, como
nesse caso, a possibilidade de uma paginação segundo um eixo de
simetria, o que nos resta é menos do que metade da linha, ou seja,
pode prever-se a existência de mais quatro ou, até, cinco letras

Ficheiro Epigráfico, 98, 2012


em cada, consoante a sua grafia. A proposta de reconstituição que
apresentamos radica, pois, nesse pressuposto – frágil, portanto,
até porque o recurso a nexos ou a pequenas letras está aqui
documentado e desconhecemos as opções (inclusive de siglas e
de abreviaturas) que o ordinator seguiu.
Em quatro observações prévias nos baseámos:
1ª) Na última linha, a colocação das siglas fez-nos suspeitar
de que, após o E em falta, se haja gravado o voto S · T · T · L
(com eventual nexo TL).
2ª) Na penúltima linha, o F surge isolado, o que dá a
entender que fará parte da fórmula F(aciendum) C(uravit), de
que o C estaria sensivelmente equidistante da moldura do lado
direito.
3ª) Nas linhas 2 e 11, afigura-se-nos plausível estar a
identificação do homenageado e a do dedicante; só que as duas
siglas estão bastante afastadas e, inclusive, na l. 11, são nítidos
os pontos após o M e o V; ou seja, ao interpretarmos M como o
vulgar praenomen Marcus, não só estamos a pensar que se trata de
duas personagens masculinas como também que foram gravados
em sigla os respectivos gentilícios – decerto por demasiado
conhecidos na comunidade (e é mais uma razão para datarmos a
epígrafe do século II). A objecção principal será, porém, a de que
está muito claro o nexo ME na l. 13, a apontar para um dativo
feminino: AMIC[AE] [OP]/TIME, em vez de AMIC[O] [OP]/
TIMO. Em todo o caso, estas duas linhas, a serem reconstituíveis
como se propõe, dão-nos uma possibilidade de chave para
resolução da questão em aberto, a confirmar que serão 4 ou 5 as
letras em falta em cada linha.
4ª) Na l. 10, PERFV lê-se bem: o E mais pequeno e o
arranque do V também provavelmente menos alto; ora, essa
palavra sugere, de imediato, a reconstituição perfuncto, adjectivo
que detém um lugar específico em epígrafes honoríficas ou,
como é o caso, em epígrafes simultaneamente honoríficas e
funerárias: in rempublicam omnibus honoribus perfuncto. Sirva-
nos de exemplo a epígrafe CIL II 4522, de Barcelona (registo nº
10 192 de Hispania Epigraphica on line), onde se leu o seguinte:
G(aio) Iul(io) G(ai) f(ilio) Gal(eria) / Paulino / Barc(inonensi)
/ omnib(us) honorib(us) / in re p(ublica) sua per/functo / marito
optimo / (...). É também uma epígrafe honorífica, mas, por ter

Ficheiro Epigráfico, 98, 2012


sido mandada lavrar pela esposa, assume clara característica
funerária, como aqui.
Este exemplo de Barcelona pode eficazmente ajudar-nos a
tecer outras considerações capazes de trazer alguma luz sobre a
porção de texto em falta.
Também aqui o gentilício não vem grafado por extenso,
mas abreviado; no nosso caso, temo-los em sigla e as propostas
apresentadas – Lucanius ou Lucceius e Valerius – outra justificação
não têm senão a de serem famílias atestadas em Conimbriga.3
Também nos baseámos na ocorrência do cognomen Flavinus na
epigrafia da cidade para aqui o propormos sem hesitação, até
porque, sendo Conimbriga a Flavia Conimbriga (Fouilles II nº
10), é natural que a muitos dos seus naturais haja sido atribuído
esse cognome.
REN – a observação atenta da pedra não nos permite optar
por REM – lembra-nos de imediato res publica, o que, atendendo
ao que se lê de seguida, nos leva a propor que Flavino in rem
publicam omnibus honoribus perfunctus (est): exerceu todos os
cargos na cidade. O habitual seria escrevermos «na sua cidade»;
aqui há, todavia, duas linhas que parecem fazer essa formulação
sair do normal: CO e GEN (ll. 7 e 8) incitam-nos à reconstituição
do adjectivo toponímico Conimbrigensis. E, por conseguinte,
temos duas opções: ou se indica a origo do homenageado –
Conimbrigensi –, como no exemplo de Barcelona, menção
que é habitual neste tipo de epígrafes, ou se especifica que se
trata das honras referentes à própria cidade, eventualmente
identificada como municipium; esta segunda possibilidade, mais
fora do comum, acabaria, porém, por justificar a repetição (em
princípio, escusada) da palavra honoribus (das linhas 8 e 9),
cuja reconstituição se nos afigura plausível, designadamente por
anteceder de imediato o particípio perfuncto.
Temos consciência, enfim, de que as dúvidas são maiores do
que as certezas. Em todo o caso, permita-se-nos que salientemos
ainda dois aspectos:
1º) Mais uma vez, atendendo ao contexto, a amizade é
invocada não apenas no aspecto sentimental e familiar (digamos

3 Veja-se o apêndice II de Fouilles II (p. 99): «Tableau des relations entre

grandes familles à Conimbriga».

Ficheiro Epigráfico, 98, 2012


assim) mas também, obviamente, com uma ampla conotação
político-social, como Serrano Delgado sublinhou,4 e – porque
não? – económica também, como Verboven teve ensejo de
analisar.5 Neste caso, a homenagem feita por um elemento da
gens Valeria (?) reforça seguramente os laços já existentes com a
gens Lucania ou a Lucceia (?), de que um dos membros exercera
todos os cargos disponíveis na cidade.
2º) Esse exercício de funções reforça o estatuto municipal
de Conimbriga; não havia, naturalmente, grandes dúvidas acerca
desse estatuto; é, contudo, notória a ausência de epígrafes que
o documentem – e este constituirá um dos testemunhos que
doravante deverá ser invocado nesse contexto6.

José d'Encarnação
Virgílio Hipólito Correia

4 Serrano Delgado (José Miguel), «La aparición de listas de amici en las


inscripciones latinas», in Rodríguez Neila (Juan Francisco) [coord.], Actas del
I Coloquio de Historia Antigua de Andalucía – Cordoba 1988, tomo II, Cór-
doba, 1993, 33-40 [com mais bibliografia sobre o tema].
5 Verboven (K.), The Economy of Friends. Economic Aspects of Amicitia and

Patronage in the Late Republic, Bruxelas, 2002. Baseia-se, de modo especial,


sobre os dados fornecidos pelas fontes literárias.
6 A identificação destes monumentos ocorreu numa altura em que, no âm-
bito da prospecção solicitada pelo Serviço Regional de Arqueologia da Zona
Centro, a Dra. Maria Conceição Lopes esteve no local, em Junho de 1991, e
elaborou sobre eles um primeiro relatório. Pensou-se de imediato na sua pu-
blicação, mas circunstâncias várias foram determinando o seu sucessivo adia-
mento, até porque se desejava saber que parte das epígrafes estaria dentro da
parede. Entretanto, para além de alguns estudantes do Instituto de Arqueologia
de Coimbra que, em trabalhos de índole escolar, se foram referindo às epígra-
fes, também o Dr. António João Nunes Monteiro se interessou por estas peças,
no âmbito da dissertação de doutoramento que estava a preparar, fotografando-
as e medindo-as. Em Abril de 1991, o Dr. Mário Jorge Barroca, da Faculdade
de Letras da Universidade do Porto, igualmente esteve no local, para confirmar
se se tratava mesmo de textos romanos (e não medievais), e gentilmente me

Ficheiro Epigráfico, 98, 2012


forneceu indicações precisas acerca do local onde as peças se encontravam bem
como as dimensões e a sua leitura. A todos agradeço as achegas que, em varia-
dos momentos, tiveram a amabilidade de me facultar e, de modo particular, ao
Dr. José Beleza Moreira, que, na sua qualidade de Director do Serviço Regional
de Arqueologia da Zona Centro do Instituto Português do Património Cultural,
me deu autorização para publicar estes textos, cuja prioridade científica perten-
cia, de facto, ao serviço que dirigia. Tendo também eu ido ao «paço», cheguei
mesmo a elaborar uma primeira redacção destinada ao Ficheiro Epigráfico, mas
acabaram por fazer-se diligências no sentido de as peças serem retiradas do
local, a fim de melhor se estudarem e, de novo, se optou por esperar essa opor-
tunidade, até porque com essa intenção se mantiveram contactos estreitos com
os proprietários do imóvel. De 2007 a 2009, devido às obras de recuperação
que, finalmente, foram licenciadas, houve acompanhamento arqueológico por
Ana Lima Revez, supervisionada pela Dra. Helena Frade, por parte da Direc-
ção Regional de Cultura do Centro, e pelo Dr. António João Nunes Monteiro,
do Instituto Português de Arqueologia: veja-se, de Ana Lima Revez, «Traba-
lhos arqueológicos no projecto de recuperação do Paço da Ega (2007-2009)»,
Arqueologia Medieval 12 2012 41-58. Houve, assim, possibilidade, com a
anuência dos proprietários (com quem, aliás, tive igualmente ocasião de trocar
impressões amiudadas vezes e aproveita-se o ensejo para agradecer ao actual
proprietário, Prof. Doutor Francisco Corte Real, todas as facilidades concedi-
das para este estudo), de se retirarem as epígrafes, fotografá-las na totalidade
existente, medi-las e repô-las em condições de serem observadas. Sabe-se, por
documentos, que no paço foram levadas a cabo obras no início do século XVI,
entre 1508 e 1509, atribuídas a Marcos Pires. A análise dos aparelhos constru-
tivos e a identificação das epígrafes romanas reaproveitadas nesses paramentos
reabilitados em época moderna permite-nos inferir da utilização de pedras pro-
venientes de Conimbriga, de S. Fipo ou das imediações.
Por outro lado, embora, à primeira vista, a posição do outeiro em que o paço e
a própria povoação assentam possa sugerir a hipótese de ter servido, em tempos
romanos, como um primeiro posto avançado no que concerne à vigilância e
segurança da cidade na direcção do mar, Ana Revez assinala que «não há quais-
quer evidências de ocupação romana no local», estando provado que o antigo
castelo doado aos Templários em 1128 é de «fundação islâmica». Ana Revez
teve ainda a gentileza de nos dar a conhecer um outro fragmento de inscrição,
cujo estudo se encara para muito em breve.
Por conseguinte, o facto de este estudo vir assinado por mim e por Virgílio
Hipólito Correia deve-se tão-somente a esses circunstancialismos e ao facto de
parte do estudo físico do monumento ter sido efectuada por ele, assim como
as fotos serem de Humberto Rendeiro, ao serviço do Museu Monográfico de
Conímbriga. Ainda que não estejam resolvidas todas as questões que tão sin-
gulares monumentos (nomeadamente o nº 444) despertam, pensamos que não
se deve esperar mais tempo para os dar a conhecer, na presunção, inclusive, de
que devem ser considerados integrantes do acervo epigráfico de Conimbriga.–
J. d’E.

Ficheiro Epigráfico, 98, 2012


445

ÁRULA ANEPÍGRAFA

Árula romana ora anepígrafa, que terá sido encontrada, nos


princípios dos anos 50 do século passado, numa herdade ao pé
da vila de Odivelas, concelho de Ferreira do Alentejo (Conventus
Pacensis). Pertence à filha de João Monjardino, que a conserva
em sua casa; agradeço a ambos o convite para a estudar.
De mármore esverdeado, de Viana do Alentejo, com alguma
pátina, sofreu, com o tempo, as naturais escoriações. O capitel,
algo desgastado, com fastígio triangular breve a meio, ostenta
dois toros lisos (ambos parcialmente danificados), conjunto que
uma ranhura separa, nas quatro faces, da molduração superior
do fuste, constituída por uma faixa saliente seguida de gola
encurtada. O fuste, alisado nas quatro faces, assenta numa base
moldurada, de garganta reversa e faixa saliente, que uma ranhura
divide do plinto inferior.
Dimensões: 36,5 x 20,2/18/21 x 11,8/9,3/12.

Trata-se de monumento preparado para receber a inscrição


(votiva ou funerária), pois que são visíveis, na face dianteira,
duas presumíveis linhas de pauta. Poderia também ter recebido
uma inscrição pintada, ora desaparecida.
Não havendo texto, torna-se difícil propor uma datação
plausível; contudo, a tipologia não a afasta de monumentos
semelhantes datáveis do século I da nossa era.

José d’Encarnação

Ficheiro Epigráfico, 98, 2012


445

Ficheiro Epigráfico, 98, 2012

Você também pode gostar