001.sobre As Cantigas Medievais Galego-Portuguesas
001.sobre As Cantigas Medievais Galego-Portuguesas
001.sobre As Cantigas Medievais Galego-Portuguesas
FACULDADE DE LETRAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS
Estudos Literários II
Prof. Fernando Fábio Fiorese Furtado
LOPES, Graça Videira; FERREIRA, Manuel Pedro et al. (2011-), Cantigas medievais galego-
portuguesas [base de dados online]. Lisboa: Instituto de Estudos Medievais, FCSH/NOVA. Consulta
em 05 out. 2013. Disponível em: <http://cantigas.fcsh.unl.pt>.
pendente ao sul, parecem ter afetado imediatamen- Convém, pois, ter presente, que quando falamos
te esta unidade linguística e cultural, cujas origens de poesia medieval galego-portuguesa falamos
remontam à antiga Galiza romano-gótica. Da menos em termos espaciais do que em termos lin-
mesma forma, a extensão do novo reino português guísticos, ou seja, trata-se essencialmente de uma
até ao extremo sudoeste da Península (que se de- poesia feita em Galego-Português por um conjunto
senrola, até 1250, ainda no movimento da chamada de autores ibéricos, num espaço geográfico alarga-
reconquista cristã), é um processo que pode ser do e que não coincide exatamente com a área mais
entendido, nesta primeira fase, como um alarga- restrita onde a língua era efetivamente falada.
mento natural desse espaço linguístico e cultural
único. Assim, como escreve Carolina Michaëlis de 3. Os autores
Vasconcelos, comentando este sentido alargado
que dá ao termo Galego-Português: “Tal extensão As cantigas galego-portuguesas são obra de um
de sentido justifica-se pela uniformidade da língua conjunto relativamente vasto e diversificado de
desde o extremo da Galiza até ao extremo do Al- autores, que encontram nas cortes régias de Leão,
garve, apenas com algumas variantes provinciais, de Castela (ou de Castela-Leão) e de Portugal, mas
dentro de um tipo comum; e também pela grande também eventualmente nas cortes de alguns gran-
semelhança de modos de viver, sentir, pensar, poe- des senhores, o interesse e o apoio que possibilita a
tar – uniformidade e semelhança que falam elo- sua arte. Não se trata, no entanto, de um mero pa-
quentemente a favor da afinidade primitiva de lusi- trocínio externo: na verdade, e de uma forma que
tanos e galaicos”[Vasconcelos: 1904, II, 780]. não mais terá paralelo nos séculos posteriores, os
Na verdade, pode dizer-se que, paralelamente à grandes senhores medievais ibéricos não se limi-
independência do reino de Portugal, é a progressiva tam ao mero papel de protegerem e incentivarem a
e lenta deslocação do centro político da Hispânia arte trovadoresca, mas são eles próprios, por vezes,
cristã do noroeste galego-leonês para Castela (no- os seus maiores, ou mesmo mais brilhantes, produ-
meadamente após a conquista de Toledo em 1085 tores. Como é sabido, dois reis, Afonso X e o seu
e, posteriormente, a conquista de Sevilha em 1248) neto D. Dinis, contam-se entre os maiores poetas
que conduzirá gradualmente à rutura desta unidade, peninsulares em língua galego-portuguesa, num
ao potenciar o desenvolvimento das duas línguas notável conjunto de autores que inclui uma parte
que mais imediatamente correspondiam a entidades significativa da nobreza da época, de simples cava-
políticas autónomas, o Português e o Castelhano. A leiros a figuras principais. Ao lado deste conjunto
partir desse momento, que poderemos situar, de de senhores, designados especificamente trovado-
forma genérica, em meados do século XIV, o Ga- res, e para quem a arte de trovar era entendida,
lego-Português deixa de ser uma designação opera- pelo menos ao nível dos grandes princípios, como
cional: de facto, e ao mesmo tempo que a Galiza uma atividade desinteressada, encontramos um não
entra culturalmente no período que habitualmente menos notável conjunto de jograis, autores oriun-
se designa por “séculos escuros”, com um caste- dos das classes populares, que não se limitam ao
lhanismo acelerado das suas elites e sem verdadei- papel de músicos e instrumentistas que seria soci-
ra produção cultural em língua própria, o Português almente o seu, mas que compõem igualmente can-
assume a sua identidade linguística e cultural autó- tigas, e para quem a arte de trovar constituía uma
noma, partilhando a partir de então com Castelhano atividade da qual esperavam retirar não apenas o
(e, até certa altura, com o Catalão) o espaço cultu- reconhecimento do seu talento mas igualmente o
ral ibérico. respetivo proveito.
O período que medeia entre os séculos X e XIV Se bem que o percurso de alguns trovadores, até
constitui, pois, a época por excelência do Galego- pelo seu estatuto de figuras públicas, seja bem co-
Português. É, no entanto, a partir de finais do sécu- nhecido, em relação a muitos outros, e também em
lo XII que a língua falada se afirma e desenvolve relação à maioria dos jograis, os dados biográficos
como língua literária por excelência, num processo de que dispomos são escassos ou mesmo nulos. Na
que se estende até cerca de 1350, e que, muito em- base de dados o leitor encontrará, no entanto, uma
bora inclua também manifestações em prosa, al- curta biografia de cada um, com os dados que a
cança a sua mais notável expressão na poesia que investigação conseguiu apurar até ao momento.
um conjunto alargado de trovadores e jograis, ga- Caso surjam novos dados decorrentes dessa inves-
legos, Portugueses, mas também castelhanos e leo- tigação, de resto atualmente bastante ativa, eles
neses, nos legou. irão sendo gradualmente disponibilizados.
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ramente se distingue dos outros dois, e que pode- faz nas suas margens), enquanto a outra (V) se des-
remos classificar simplesmente como satírico. Tra- tinaria eventualmente a qualquer oferta. Para além
ta-se, de qualquer forma, e na esmagadora maioria destas três grandes recolhas trovadorescas, chega-
dos casos, de uma sátira pessoalizada, ou seja, diri- ram ainda até nós algumas folhas volantes com
gida a uma personagem concreta, cujo nome, de cantigas, duas delas importantes, já que incluem
resto, surge geralmente referido logo nos primeiros notação musical, o Pergaminho Vindel e o Perga-
versos da composição. Acrescente-se que, embora minho Sharrer (de que adiante se falará).
a Arte de Trovar não o refira explicitamente, nesta De resto, as questões em torno da tradição ma-
arte “dizer mal” trovadoresca (de bem “dizer mal”) nuscrita das cantigas galego-portuguesas não são
o riso é igualmente um elemento fundamental. Te- fáceis de deslindar e continuam a suscitar interro-
maticamente, as cantigas de escárnio e maldizer gações (e pesquisa). Ao que tudo indica, terá sido
abarcam um vastíssimo leque de motivos, persona- D. Pedro, conde de Barcelos, trovador e primogéni-
gens e acontecimentos, em áreas que vão dos com- to bastardo de D. Dinis, o compilador das cantigas
portamentos quotidianos (sexuais, morais) aos que chegaram até nós (através dos apógrafos italia-
comportamentos políticos, devendo muitas delas nos), talvez o seu compilador final, se aceitarmos,
ser entendidas como armas de combate entre os como crê Giuseppe Tavani, que já na corte de
vários grupos e interesses em presença. Formal- Afonso X se teria realizado uma primeira compila-
mente, as cantigas satíricas tendem a ser de mes- ção [Tavani: 1986, 65-66]. Seja como for, nunca
tria, embora quase um terço das conservadas (31%) será demais realçar o mérito do notável trabalho
incluam um refrão. quinhentista de Angelo Colocci, trabalho sem o
qual a nossa visão da lírica galego-portuguesa se
5. Os manuscritos teria de restringir ao Cancioneiro da Ajuda, ou
seja, às cerca de 310 composições de amor já refe-
No seu essencial, conhecemos as cantigas pro- ridas, em lugar das cerca de 1680 de todos os géne-
fanas galego-portuguesas através de três manuscri- ros de que dispomos atualmente.
tos. O mais antigo, datável de inícios do século
XIV (e, portanto, o único que será contemporâneo 6. A música
da última geração de trovadores), é o Cancioneiro
da Ajuda (A), rico manuscrito iluminado, mas que Cantiga ou cantar, implica que o texto poético
é também o mais incompleto, já que contém apenas se cantava. A forma como o texto era publicamente
310 composições, na sua esmagadora maioria de apresentado, pressupondo uma emissão melódica e
um único género, a cantiga de amor. Descoberto na uma audiência, tinha consequências quer na con-
biblioteca do Colégio dos Nobres em inícios do cepção do poema, quer na sua recepção. A inter-
século XIX, e hoje guardado na Biblioteca do Pa- mediação musical impõe que o texto se desvele e
lácio da Ajuda, em Lisboa, pouco sabemos sobre as se saboreie pouco a pouco, a sua continuação re-
suas origens ou sobre o seu percurso. Trata-se, de servando uma e outra surpresa, sugerindo uma ou
qualquer forma, de um manuscrito que ficou mani- outra associação; e simultaneamente carrega-o de
festamente inacabado, como é muito visível nas sinais retóricos e tonalidades afetivas, que prepa-
suas iluminuras, muitas delas com pintura incom- ram, enquadram e condicionam a reação do ouvin-
pleta ou mesmo com figuras apenas desenhadas (o te. A eficácia da atuação trovadoresca dependia,
mesmo se passando com as iniciais). Os outros pois, quer da bondade do casamento entre poesia e
dois manuscritos, conhecidos como Cancioneiro música, quer de uma receptividade educada, soci-
da Biblioteca Nacional (B, também chamado Can- almente diferenciada e diferenciadora.
cioneiro Colocci-Brancuti, o mais completo, guar- A cantiga trovadoresca como um todo dependia,
dado em Lisboa, na BNP) e Cancioneiro da Vati- para a sua circulação, sobretudo da memória e do
cana (V, guardado na Biblioteca Apostólica Vati- bom ouvido, quer dos autores quer dos jograis que
cana), são manuscritos copiados em Itália, nas pri- os serviam e, na invenção, os imitavam. Com a
meiras décadas do século XVI, sob as ordens do vinda de França e entronização de D. Afonso III, é
humanista Angelo Colocci, e a partir de um canci- provável que se tenha introduzido a ideia de que,
oneiro anterior, muito certamente medieval, hoje em recolhas de cantigas exemplares, a música, à
desaparecido. Uma das cópias mandadas fazer por imagem do texto, podia ser escrita recorrendo a
Colocci (B) destinar-se-ia a uso próprio (como uma notação o mais moderna possível, permitindo
parecem comprovar as numerosas anotações que a sua visualização e fácil reprodução. Foi neste
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espírito que se copiaram as cantigas de Martim A partir da década de 1950, o declínio da moti-
Codax no Pergaminho Vindel (folha volante ou vação nacionalista em Portugal deixou o campo
bifólio central de um caderno, encontrada pelo li- livre para a afirmação, em diálogo com os autores
vreiro madrileno Pedro Vindel em 1913 e posteri- medievais, de poéticas sonoras individuais (Lopes-
ormente por ele vendida) e as de Dom Dinis no Graça, ou, mais recentemente, Eurico Carrapatoso,
Cancioneiro perdido de que sobra somente um fra- entre outros), enquanto as edições de Rodrigues
gmento, o Pergaminho Sharrer (nome do seu des- Lapa e as modernizações textuais de Natália Cor-
cobridor, o académico Harvey Sharrer, que o loca- reia abriam espaço para a composição de versões
lizou na Torre do Tombo em 1990). O mesmo deve em idiomas musicais mais populares (como as pro-
ter sucedido a centenas de cantigas; o Cancioneiro tagonizadas por Amália, Zeca Afonso e José Mário
da Ajuda foi preparado para receber pautas, mas Branco). Entretanto, o desenvolvimento da musico-
ficou incompleto, e até hoje não se encontraram logia aplicada às fontes mais antigas e a gradual
outras fontes medievais. emergência de um movimento de interpretação de
A redescoberta, no século XIX, da tradição líri- música medieval com instrumentos antigos fizeram
ca galego-portuguesa baseou-se, como antes se surgir, quer propostas de reconstrução musical de
disse, em cópias italianas do início do século XVI cantigas profanas a partir da reutilização de melo-
(Cancioneiros da Biblioteca Nacional e da Biblio- dias medievais de outra proveniência (contrafacta),
teca Apostólica Vaticana), que não reproduziram a quer múltiplas gravações tentando recriar um am-
música presumivelmente preexistente. Só com a biente sonoro trovadoresco, a partir das melodias
edição de fotografias do Pergaminho Vindel, em originais, de contrafacta ou de recriações “ao estilo
1915, se tornou clara a dimensão da perda. A partir medieval”. A par destes desenvolvimentos, o mo-
de então, o crescendo nacionalista em Portugal, derno nacionalismo galego apropriou-se, por sua
primeiro em plena época republicana, depois du- vez, da tradição lírica do século XIII, produzindo a
rante o Estado Novo, levou à revalorização da he- partir dela múltiplas expressões musicais, de cará-
rança literária mais antiga, que habitualmente se ter mais historicista, mais erudito, ou mais popular
apresentava misturando trovadores medievais com (Amancio Prada, Uxía, Xurxo Romani). Este com-
autores quatrocentistas recolhidos no Cancioneiro plexo panorama está a partir de agora refletido na
de Resende e até com a obra lírica de Camões. Este riqueza e variedade dos conteúdos musicais que
interesse levou vários compositores (Tomás Borba, aqui acolhemos e divulgamos, e que estão abertos a
Ruy Coelho, Frederico de Freitas, Cláudio Car- novas atualizações.
neyro, Croner de Vasconcelos, Filipe Pires, Victor
Macedo Pinto...) a propor novas versões musicais
de textos Galego-Portugueses medievais, fosse
como forma de divulgação, como tentativa de criar
uma tradição nacional de “lied”, ou como exercício
de diferenciação sonora de um património.