Lembrar É Preciso

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PAULO KNAUSS Lembrar é preciso: a historia do patriménio cultural no Brasil a luz da atualidade’ MEMORIAS DO PRESENTE No ano de 2020, os significados do patriménio cultural foram coloca- dos em questo de modo inusitado numa escala internacional inédita, quando eclodiram manifestages publicas denunciando a violéncia do Estado diante de comunidades negras e seus individuos. A mobilizacao antirracista foi movida sob a inspiracao do movimento social Black Li- ves Matter, ou Vidas Negras Importam, surgido nos Estados Unidos em 2014.! Em tempos de redes sociais, os acontecimentos de 2020 foram far- tamente difundidos pelo noticiario globalizado e repercutiram muito rapidamente no Brasil. De modo geral, pode-se dizer que a mobilizagiio social eclodiu a par- tirde 25 de maio daquele ano, na cidade norte-americana de Minneapo- * Uma versio preliminar desse texto foi publicada sob o titulo “Morte e vida da memé- ria nacional” (Knauss, 2021), 1. Site oficial do movimento, disponivel em: , Acesso em: 16 mai. 2021, 65 Digitalizado com CamScanner a | lis, no estado de Minnesota, quando uma agao policial desproporcional e despropositada resultou na morte do cidadao afro-americano George Floyd. Os registros do assassinato em redes sociais logo alcangaram as midias de massa e rapidamente o fato ocupou intensamente a opinio publica globalizada em torno do debate sobre o racismo estrutural, que condicionaa brutalidade policial ea desigualdade do sistema de Justica, Na sequéncia dos dias, a solidariedade 4 causa se desdobrou em demons- tragdes ptiblicas com grande expresso em varias partes dos Estados Unidos e em diversos paises.” O contexto geral de dentincia social contribuiu para afirmar a atua- lidade do patriménio cultural. A partir do ato inicial de depositar flores em homenagem a memoria de George Floyd, 0 local do assassinato pas- sou a ser um ponto onde as manifestagées contra a violéncia de estado € 0 racismo se combinaram com a criagao artistica. Valorizando o que é proprio da légica dos monumentos, 0 local foi investido de sentido historico e se constituiu em lugar de memoria, dando origem ao “Ge- orge Floyd Global Memorial”. A originalidade do memorial esta na sua concepgao como espaco de ocupacao permanente, definido como living memorial, ou memorial vivo, pela organizacao social que se constituiu para sua preservacao.’ Assim, a iniciativa acompanhou a missao do mo- vimento Black Lives Matter de combater a violéncia “criando espaco de imaginagao e inovagao negra, promovendo a alegria negra” A partir dai, afirmou-se na cidade um ponto de referéncia sempre renovado por intervencées efémeras que se combinaram com o marco duradouro da imagem de George Floyd, em retrato de grande escala, pintado em pre to-e-branco, de autoria do artista de rua urbano Peyton Scott Russell.” 2. A imprensa internacional deu noticia de que o ex-policial Derek Chauvin, em Ry de 2021, havia sido julgado e considerado culpado pelo assassinato de George Fl°Y" Ver: Mars, A. “Ex-policial que matou George Floyd é condenadoa22anos e meio deP sio”, El Pats, 25 un. 2021, Disponivel em: , Acesso em: 16 mai, 2021. 4, A missio do movimento BLM est4 disponivel em: . Acesso em: 16 mai, 2021, 66 # Monumentos, memériae violencia Digitalizado com CamScanner Na sequéncia dos acontecimentos zagao do movimento, em 07 de Inglaterra, € no processo de internacionali- junho de 2020, na cidade de Bristol, na uum grande protesto chamou igualmente muita atengao das midias pela noticia de que o movimento antirracista local promoveu a derrubada de uma antiga estétua situada em praca publica. O.alvo do ato iconoclasta foi a imagem de Edward Colston, personagem da passagem do século XVII para o século XVIII, cuja meméria foi celebrada. pelo seu Papel de filantropo, mas cuja riqueza pessoal tinha origem nos lueros do trafico negreiro. As fotografias da derrubada da escultura publica correram o mundo, documentando como o movimento social arrancou aobra de seu pedestal e terminou jogando a imagem histérica nas éguas do canal da cidade. 0 ato simbélico foi claramente uma reacao popu- lar & repressio policial, apoiada pelo posicionamento das autoridades de governo nacional diante das grandes demonstrages publicas que ocorriam em varias cidades inglesas, repercutindo o alcance da causa de Black Lives Matter, levantada em varias partes do mundo depois do assassinato de George Floyd, nos Estados Unidos.° Em Bristol, a onda global antirracista se encontrou com uma reivindicagéo social anterior de retirada do espaco piblico da cidade daquela estdtua, inaugurada no fim do século XIX.’ Ao final, a estatua com as marcas do ataque do movimento social se tornou objeto de exposigo em museu histérico da cidade, como documento da luta social e da causa antirracista.* Na verdade, pode-se dizer que o ato iconoclasta de Bristol no bojo da luta de defesa dos direitos da comunidade afrodescendente afirmou como incontornavel que a politica de preservagio do patriménio cul- tural se desenvolva de modo atualizado com as releituras contempora- neas da historia e em sintonia com os temas da vida em sociedade, as- sumindo o papel de representagdo de causas sociais dos novos tempos. Se, de um lado, o caso evidencia como o estado se manteve indiferente a essa tendéncia do tempo presente, por outro lado, aponta para o fato de que a preservacdo implica necessariamente em renovar processos de significagdo que mantenham vivo o diflogo do bem cultural com 8, Sobre os protestos em que esttua de Edward Colston fol derrubada, ver: “Edward Colston statue: Protesters tear down slave trader monumento”, BBC, 08 jun, 2020, Dis- Pontvel em: «www, bbe,com/news/uk-52954305>, Acesso em: 16 mal, 2021, 7, “Bristol MP calls for Edward Colston statue to be removed”, BBC, 11 out, 2018, Dispo- nivel em: , Acesso em 16 mal. 0, 8."Edward Colston statue: Work has begun on new display”. BBC, 15 abr, 2021, Disponi- vel em: , Acesso em: 16 mai, 2021, Lembrar é preciso @ 67 Digitalizado com CamScanner a sociedade, evitando sua solidao, abandono ou destruicao. No caso especifico, trata-se de colocar o problema de que nao basta resumir a preservagio a dimensio material do bem cultural, mas ¢ preciso tratar sua dimensao simbélica e intangivel, evitando 0 risco de o patriménio cultural servir para naturalizar antigas visdes de mundo e se distan- ciar das ideias das novas geracoes. No Brasil, 0 caso da estatua da cidade de Bristol lembra o debate re- corrente sobre os monumentos aos bandeirantes na cidade de Sao Pau- lo. De tempos em tempos, esses monumentos sao alvo de intervengdes que confrontam a memoria estabelecida de que os bandeirantes sio herdis do desbravamento do territério nacional. Ao longo dos anos, a imprensa paulista sempre noticia diversos casos de pichagdes que ma- nifestam a critica a meméria enquadrada dominante. Em fevereiro de 2020, antes da repercussio no Brasil da mobilizagio social decorrente do assassinato de George Floyd, o artista Helé Sanvoy provocou uma chama temporaria no monumento a Anhanguera, localizado no cora- &o cultural da cidade de Sio Paulo, na avenida Paulista, em frente a0 Parque Trianon, do outro lado da rua do Museu de Arte de Sio Paulo (MASP). A imagem incendiada do bandeirante Bartolomeu Bueno da Silva, conhecido pelo nome indigena Anhanguera, de acordo com o ar- tista, tem como inspiragio a ideia de um fogo antropéfago que “evoca ou invoca, ilumina e transforma”. A intervengio artistica, segundo seu autor, nao pretendia destruir monumentos, mas defender o ponto de vista de que sejam repensados.? Meses depois, em outubro do mesmo ano de 2020, ja no contexto do movimento Black Lives Matter no Brasil, os jornais noticiaram que algumas das conhecidas estatuas paulistanas veneer cena enogrns Te significados histéricos dos band in wate ue eee tes da escravizagio deindigenas.e, por cone and os come aE Bristol, chama atengio quea mobilizagée oe oo movimento de emnenhumaameaga integridadedete ent ne ras nao resulton gridade de bens culturais tradicionais, mas@ 9. 0 registro em video esta Acesso em: 16 mai. 2021. . Sant’s “ it a wipes lB ot 20. Ba cats para marcar historia violentaem SP”=Folht cranios-visitam-estatuas pare hist) folha.uol.com,br/cotidiano/2020 crantonvi >ars-marcar-historia-violenta-em-sp.shtml>, Acess0 em: 16 disponivel em: 68 # Monumentos, memériae violencia Digitalizado com CamScanner defesa de novos olhares sobre o patriménio cultural em favor da revisio da légica de monumentos. PRODUGAO DO ESQUECIMENTO A historia do pensamento sobre o patriménio cultural no Brasil tem um marco importante no ano de 1967, quando ocorreu o langamento do livro Morte da meméria nacional (Oliveira, 1967), escrito pelo jorna- lista Franklin de Oliveira (1916-2000), Embora publicado no ano em que 0 Servigo do Patriménio Histérico e Artistico Nacional, dito SPHAN, completava 30 anos de sua criagio, o livro nada tinha intengdo de celebrar a efeméride, afinal, seu tom foi de critica a politica nacional de preservagao do patriménio cultural. Portanto, o titulo jé anuncia- va a adverténcia sobre o risco do Brasil se transformar numa nagao “atacada de amnésia histérica” (Oliveira, 1967, p. 35) pelo processo de “desintegracao do acervo cultural brasileiro”", conforme pautava 0 autor. Sem deixar de valorizar os significados valiosos do patriménio cultural de norte a sul do pais, poucas vezes a aco do Estado diante do patriménio cultural foi objeto de uma consideracio tao sistematica em caracterizar “a situagdo de abandono em que jazem os bens culturais do Brasil” (Oliveira, 1967, p. 207). Claramente, o argumento central tendia a caracterizar que o descaso com o patriménio cultural traduzia uma politica de produgiio de esquecimento. A rigor, Morte da meméria nacional é um livro pouco citado na bi- bliografia especializada atual. O autor, o jornalista Franklin de Oliveira, era um notério mestre da reportagem, que nao manteve uma dedicacaio permanente com os mundos do patriménio cultural e nunca teve qual- quer intengdo de fazer escola nessa diregdo. Oliveira tampouco inte- grava o universo da Academia SPHAN, que na feliz expressio cunhada pela socidloga Mariza Veloso, caracterizava o grupo de intelectuais que capitaneou a formagao discursiva que serviu de base para aatividade da repartigao federal que tinha como missao a preservagao do patriménio cultural nacional (Veloso, 1996, 2018). Outro fato que pode justificar a desconsideragdo pelo livro no terreno dos estudos especializados é que © seu langamento ocorreu no ano em que o diretor fundador da insti- tuig&o, Rodrigo Melo Franco de Andrade, afastou-se de suas funcdes executivas, permanecendo apenas como membro do conselho consul- UL, Titulo do segundo capitulo (Oliveira, 1967), Lembrar é preciso @ 69 Digitalizado com CamScanner tivo do érgio até seu falecimento dois anos depois. A gestio do SPH AN passava entao ‘as maos de uma nova geracao. Além disso, ° Predominio do interesse na histéria institucional termina nao dimensionando as contribuigdes externas a0s quadros do Iphan, mesmo que o livro valori- dedicagao dos servidores do orgao federal. ze muito o trabalho ea repercussa0 publica do livro que era resul- Noseu tempo, éinegavel a quee tado de um entrelagamento entre a imprensa eo mundo editorial carac- teristico do Brasil dos anos de 1960. O produto era um desdobramento da série de nove textos de reportagem publicados nas paginas do jornal 0 Globo e que se iniciou em dezembro de 1966. Uma viagem as cidades histéricas de Minas Gerais foi a base da reportagem, em que ojornalista foi acompanhado pelo fot6grafo Luis Alberto Pefia, cujas imagens en- riqueceram os textos publicados, tanto no jornal, quanto na primeira edicio do livro. A reuniao das crénicas de reportagem, acrescidas de outras quatro inéditas, deu forma ao livro com 13 capitulos, apresenta- gio e bibliografia essencial, que a partir do quadro regional de Minas Gerais oferece dados sobre o patriménio cultural em varias partes do pais. Pode-se dizer que a obra representa um género narrativo préprio do jornalismo que tem a reportagem como método e combina pesquisa descritiva com opiniao. Como o préprio autor descreveu na apresentacao do livro, a repor- tagem foi pensada como a ponta de lanca de “uma campanha de defesa dos bens culturais do Brasil” (Oliveira, 1967, p. 5). A pratica buscava atrair leitores a partir de reportagens com potencial para concentrar 0 debate publico sobre questées nacionais. O préprio Franklin de Oliveira repetia assim o modelo de reportagem investigativa que havia resulta- do em outro livro de sua autoria, sobre o processo de descapitalizacie do Brasil meridional e que também se originou de uma série de textos publicadas no jornal 0 Correio da Manha (1961). Nesse tipo de campanha conduzida pela imprensa, a noticia da repercussiio do debate chamav@ atengao para o préximo texto da série, definindo um circuito em ¥° qualquer manifesto de personalidades piblicas inerementava 90 Forts Ara Herne teseap Uys oaleance do debate proposto Pél® 8a, mobilizava-se diferentes instincias da sociedade civil e da politi icaem i i No caso, esse tom erae ‘ ‘ nvolvi ‘ - perimentado, ido ainda pela aura do autor, jornalista& mas cu direitos politicos ay bowelonamento Politico levou a cassagiio de seus to Institucional n,1(AI-1), que marcou uma fase 70 @ Monumentos, memorlae violéncia Digitalizado com CamScanner > | daconstrucao da ordem autoritaria no Brasil instaurada a partir do golpe de Estado de 1964. A publicaciio da grande reportagem deixou claro que, mesmo sem direitos politicos, o jornalista no havia abandonado sua profissio e nem havia perdido a motivacao para participardo movimento de ideias de seu tempo, encontrando apoio no mercado de trabalho. Em alguma medida, o livro era uma manifestagao em favor da liberdade de expressao sob a sombra do autoritarismo que marcava o Brasil daquele momento. Nao sem razio, advertia que o pretexto da protecdo dos bens culturais nao podia “degenerar em planificacao fascistizante da cultura”, ou “espartilhar o impeto criador da inteligéncia brasileira” (Oliveira, 1967, p. 216-7). Elementos como esse conferem ao livro um claro trago de época e deixa transparecer o seu carater de documento histérico. Mesmo sendo uma reflexao datada, a reportagem ainda ¢é capazde en- volver os leitores de hoje ao explorar a curiosidade e colocar a erudigao ao alcance de todos. O narrador experimentado que aborda o singular para tratar o universal, faz da crénica um libelo, que se confirma quan- do, na apresentagao da segunda edigo do livro, o autor recordava que 0 livro fora publicado “como dentincia e protesto” (Oliveira, 1991, p. 13). A reportagem explicitava, entao, um ponto de vista de que os bens cultu- rais do Brasil se encontravam “em fase inicial de derrocada, pelo colapso do sistema instituido para Ihes assegurar a preservacao” (Oliveira, 1967, p.5). Ao enfatizar a derrocada ou o colapso dos mecanismos institucio- nalizados pelo estado de preservacao do patriménio cultural nacional, a narrativa elaborada mobilizava o sentimento de inconformismo que traduzia a aspiragdo de “manter acesa a peleja” explicitada na primeira edigéio do livro (Oliveira, 1967, p. 14). De fato, 0 autor concluiu o tiltimo capitulo clamando por uma “ago de solidariedade aos érgaos de encar- regados da defesa, preservagio e ampliagéo de nosso acervo cultural”, defendendo a deflagracao de uma mobilizagao do povo, “a fim de queo Brasil nao se transforme numa grande nacio historicamente desmemo- riada” (Oliveira, 1967, p. 218-9). Para leitura nos dias atuais, a evidéncia do paralelismo dos fatos de ontem e de hoje é incontornavel, fazendo o livro ultrapassar a sua condigio de documento histérico, Aconsisténcia ea legitimidade da causa da defesa dos bens culturais eram reforgadas pela referéncia a exemplos histéricos que ofereciam uma genealogia a luta que no permitia defini-la como exclusiva de um contexto historico, 0 autor recorria a lembranga do conde das Galveias, vice-rei do Brasil, que a partir de Salvador da Bahia, em 1742, se ops & transformagio em quartel de tropas do antigos Palfcio das Duas Tor- Lembrar é preciso @ 71 Digitalizado com CamScanner - ¢.0 barao do Bom Retiro qu ido pelos holandeses: © mae res de nia 2 Temper, despachou ordem para que se cuidassem ae enumentos preservando suas inscrigoes. Acrescentou ainda sma lista de personalidades que sustentaram a declaragao da cidade de Ouro Preto como cidade-monumento nacional: Bruno Lobo, Luis i jma. Com o mesmo sentid 0 Filho & Augusto de Lima. 0, Cedro, José Marian Sr tise’ i jagao, arrolava outros nomes que apoiaram acrii nate Patriménio Histérico ¢ Artistico Nacional (SPHAN): Raimundo Lopes, Wanderley Pinho € Mario de Andrade. Ao final, a genealogia de defesa do patriménio cultural nacional se completava com mengao a “bravura silenciosa” e “luminosa competéncia” de Rodrigo Melo Franco de An- drade, lider da geragao heroica da fundagao do SPHAN (Oliveira, 1967, p. 14). Nessa altura do argumento geral, fica evidente que 0 problema nao estava nama gestdo das instituigdes culturais, mas destacava uma crise estrutural de sistema. Acrénica exemplificava, entio, asituagao da gestaoda cultura nacio- nal atingida pela falta de orgamento, comprometendo a ampliagao de colecdes puiblicas e favorecendo 0 comércio de antiguidades. O quadro tragado apontava igualmente que a falta de seguranca dava espaco para furtos constantes de bens culturais, assim como a caréncia de uma le- gislagio de controle do patriménio cultural permitia descartes inconse- quentese legitimavaa transferéncia de acervos para instituigdes estran- geiras, o que era comparado a um saque cultural. Havia ainda 0 cas? dos interesses imobiliarios que atingiam a preservacao da arquitetura das cidades historicas. A imagem da “ameaga que nos ronda”, ganhava vida na reportagem iniciada em 1966. Ao lado disso, areflexao ensaistica proclamava no capitulo 6 que cultura no deve ser tratada como lux mas como bem de producao, antecipando em décadas a pauta da relaga0 entre cultura e desenvolvimento que foi fixada por Celso Furtado no comando do Ministério da Cultura, na década de 1980 (Furtado, 1984). ae fates .aeseeae por Franklin de Oliveira tornam inevitavel aco™ falta de reese ei ao evidenciar que, na década de 1960." om trataro patriménio ina eae dificuldade de gover" Mesmosendo situada déeadas atras, a atividade de Estado nest ne fatos contemporaneos, iluminand : Fi ronica de énoes tee a ir a preervasio dos bane enlturls no Bredcome taf atual dea Observa-se que 0 aparato do Betade p mall come um Fungho do s especialmente entre as décadas di 0 foi construido ao longo dos sn as de 1930 e 1950 depois rearranjadas™ 72 Monumentos, memoria e violencia Digitalizado com CamScanner passagem dos anos de 1980 ¢ 1990, mas as instituigdes seguem fragiliza- das pelo seu desprestigio diante dos programas de governo e pela saz0- nalidade de agées. Sem uma base conceitual sistematica, Franklin de Oliveira, em Mor- teda meméria nacional, investe na andlise do processo de institucionali- zagao do patriménio cultural no Brasil. Essa abordagem converge com as tendéncias contemporaneas de linhas de pesquisa que se desenvolve- ram principalmente a partir dos programas de pés-graduagio do pais, na década de 1990.” Essa bibliografia mais recente emergiu sob a inspi- ragao otimista do contexto de redemocratizacao politica e construgao renovada de politicas publicas. A criagdo do Ministério da Cultura, em 1985, certamente serviu como referéncia para aprofundar as pesquisas que tomavam o patriménio cultural como objeto de politicas puiblicas. Nao hé como negar que a conjuntura coincidiu com o processo de am- pliacdo da agio do Estado na area do patriménio cultural, o que pode ser exemplificado pelo marco legal do registro do patriménio imaterial estabelecido no ano de 2000, ou com a criagao do Centro Nacional de Arqueologia, vinculado ao Iphan, e do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), em 2009. Os fatos, porém, indicam que essa: ampliagao de estru- turas nao significou necessariamente a superagio historica de fragilida- de institucional dos érgios ptiblicos relacionados a ago cultural, que jAera apontada na década de 1960 pelo jornalista Franklin de Oliveira e que encontrou sua maior expresso em tempos recentes no incéndio do Museu Nacional, ocorrido em 02 de setembro 2018. Poucos meses depois desse triste acontecimento, com a mudanga de governo, o Ministério da Cultura foi extinto em janeiro de 2019. Diante desse quadro, ainda que a reflexio de Franklin de Oliveira represente o ponto de vista de outra geragio, pode ser igualmente con- siderada antecipadora ao situar um processo histérico que permanece inconcluso e que inscreve uma duragio que se estende pela atualida- de, A originalidade de Morte da meméria nacional, no entanto, esta em apontar que 0 descaso de governos em relagdo ao patriménio cultural transmuta qualquer politica de meméria em produgio social do esque~ cimento e que vai transformando 0 Estado em agente da iconoclastia Por fazer desaparecer colegdes e bens culturais, Essa adverténcia faz 12, Nessa linha, pode-se destacar Fonseca (1997). Lembrar é preciso # 73 Digitalizado com CamScanner e Morte dameméria nacional se defina como um documento, com qui ‘os novos tempos: , A i ‘rigor, pode-se mesmo indicar que 8 reflexdo de Franklin deO}iyg, n \ itecipa a tendéncia da historiografia recente que valorizaq abords. ani 4 iménii ir mat dda historia da nfo preserva¢ao & do patrimonio que Se eSvaiu (em Fen toa hatin social da cultura preservacionista que diy, is. odesaparecimento de bens culturais- USOS DO PASSADO Evidentemente, a atualidade do livro Morte da meméria nacional pre. cisa ser confrontada com o que ha de novo no mapa social da cultura brasileira e que distingue os tempos histéricos. Certamente, Franklin de Oliveira nao contava que o movimento social de luta por direitos de cidadania se tornaria a base da defesa do patriménio cultural no Brasil contempordneo. Enquanto, no fim da década de 1960, o quadro das instituicdes cultu- rais era dominado por 6rgaos de Estado, na atualidade, convive-se com a vitalidade do patrocinio privado que sustenta acées as mais diversis de preservagio do patriménio cultural, aproveitando as oportunidades criadas pelas leis de incentivo a cultura que tém como referéncia omo- delo federal que vem sendo aperfeigoado desde sua criacao na década de 1980. O patrocinio cultural criou espago igualmente para 0 prot gonismo de instituicdes privadas ou sob gestdo privada que inexistiam no Brasil de outros tempos, Ao lado disso, no se pode deixar de rec nhecer que a Constituicio de 1988 foi decisiva ao definir a ampliacio conceito de cidadania, instituindo os direitos culturais no Brasil. Nes sentido, a politica cultural nacional em todas as esferas de Estado fico" comprometida com a garantia da liberdade de expressio e da atividad oa ®, bem como a valorizagtio da diversidade cultural, Cabe sind etapa ee da politica de patriménio cult we clonal, abriucse a tee 2a material e imaterial, Nessa chave COM a Para afirmar a cultura como terreno de 13, Bsa tendé hand Aq a tna retention ra cariocas em perspectiva rauitetura evanescente: O desaparecimento 4° 3 referéneia, Mistériea (2019), Agradego a Anciren Slemian a lembra0s 74 ¢ Monumentos, meméria evioléncia Digitalizado com CamScanner de direitos de cidadania e como espago para projetar causas sociais con- tempordneas no Brasil. Em grande medida, a tendéncia nacional sobre a ampliagao do uni- verso do patriménio cultural acompanhou o debate internacional ao menos desde a aprovagao da Convengio para a Protegao do Patrimonio Mundial, Cultural e Natural, em 1972, e da Convengio para a Salvaguar- da do Patriménio Cultural Imaterial, de 2003, ambas produzida no 4m- bito da Organizagao das Nacées Unidas para a Educagio, a Ciéncia e a Cultura (Unesco). Na mesma dire¢do, pode-se apontar a renovagao da Museologia pelo compromisso com a fungao social dos museus que se afirmou especialmente a partir da Declaragao de Santiago de 1972, que resumiu os resultados da Mesa-Redonda sobre o papel dos museus na América Latina, promovida pelo Conselho Internacional de Museus (ICOM), abrindo o horizonte para o pensamento renovador da Nova Museologia e da Museologia Social. No Brasil, a reflexio tedrica contemporanea sobre o patriménio cul- tural e os museus participou ativamente do processo de aprovagao de registros de bens culturais e natureza imaterial e da multiplicacao de ecomuseus e museus comunitarios no Brasil. Segundo dados fornecidos pelo Iphan, atéoano de 2018, constavam 48 bens registrados pelo Progra- ma Nacional do Patriménio Imaterial.* Vale destacar que o programa tem como resultado promover o protagonismo dos agentes dos saberes tradicionais que sio 0 foco do patriménio imaterial. Por sua vez, a pes- quisa de Suzy Santos (2017) apontou que, entre 1968 e 2017, formaram-se 196 ecomuseus ou museus comunitarios no Brasil. Os dados indicam que a conjuntura da Constituigao de 1988 foi decisiva para multiplicagao desse género de instituigao museal. Contudo, foi na primeira década do século XXI que o maior nimero de ecomuseus e museus comunitrios foram criados, somando um total de 76 instituigdes reconhecidas (de cardter mais ou menos formal), conforme o levantamento realizado.” A reboque da forga dessa tendéncia social, foi implantando o Progra- ma Pontos de Memoria, criado pelo antigo Ministério da Cultura, que langou editais, entre os anos de 2009 e 2014, para patrocinar “proces- Calabre (2009), debate intelectual encontra-se em Santos (2017), tronica do Iphan, dispontvel em: - 17. Ver quadro apresentado em Santos (2017, P. 2 Lembrar preciso @ 75 Digitalizado com CamScanner sos museais protagonizados e desenvolvidos por povos, comunidades, grupos e movimentos sociais”." Nesse quadro geral, multiplicaram-se Os museus indigenas, quilombolas, de comunidades de trabalhadores (rurais, extrativistas, da pesca, ete.), de comunidades urbanas e favelas e representativos de causas ambientais ou identitarias, como os museus que trabalham a luta LGBTQI+. Assim, tanto o registro do patriménio imaterial, como 0 da criagio de museus comunitérios apontam no sentido de que o patriménio cul- tural tem sido elemento importante na mobilizagdo social no Brasil, “ora como espaco de luta e reivindicacdes e busca de reconhecimento, ora como espaco pedagégico”, para usar os termos que Marilia Xavier Cury empregou para caracterizar os museus indigenas contemporaneos (Cury, 2016, p. 14). Nesse universo especifico indigena, o exemplo pionei- ro do Museu Magiita, localizado no municipio de Benjamin Constant, no estado do Amazonas, e estabelecido definitivamente em 1990, possui uma historia que resulta do processo de luta pela demarcagdo de terras indigenas do povo ticuna da regiao do Alto Solimées.” A causa do direi- to a terra nao é exclusiva da luta indigena e, igualmente, no contexto de lutas de comunidades quilombolas e extrativistas também se verifi- cam experiéncias em que a promogio da meméria coletiva e do patri- ménio cultural fez a diferenga ao relacionar identidade e territério. No contexto das cidades, a sombra da politica de remogées afirmou a luta pelo direito a cidade e a habitagao, fazendo da construcao da meméria coletiva uma estratégia de resisténcia social, que pode ser traduzida no mote “meméria nao se remove” que identifica o movimento Museu das Remogées que da continuidade a luta da comunidade da Vila Autédro- mo removida em 2016, no contexto da promogio dos Jogos Olimpicos da cidade do Rio de Janeiro.” Essa associagao entre patriménio cultural e luta pela conquista de direitos, na verdade, estd afirmada em varios paises onde a democracia anda junto com o controle social do Estado, Fato marcante, sem dit- vida, ocorreu em 1970, quando o chanceler alemao, Willy Brandt, em visita oficial 4 Polénia, surpreendeu o mundo ao se ajoelhar diante do 18, Pégina eletrénica do Programa Pontos de Meméria, disponivel em: . Acesso em: 16 mai, 2021, 19, Ahist6ria do Museu Magiita é tratada em Oliveira (2012), 20. © movimento mantém um site: . Acesso em: 12 fev. 2022. 76 @ Monumentos, memériae violéncia Digitalizado com CamScanner = monumento ao levante do gueto de Varsévia e pedir perdao pela vio- léncia impetrada pelo Estado alemao durante o regime nazista. Abriu, entiio, novos rumos para a relagio do Estado com a construgio social da meméria. Anos depois, em 1995, também o presidente francés, Jacques Chirac, reconheceu em piblico a responsabilidade francesa na deporta- gio de judeus durante a Segunda Guerra Mundial, o que foi reconhecido formalmente pelo Conselho de Estado da Franca em 2009. Nesse mes- mo ano, o Senado dos Estados Unidos aprovou pedido de desculpas aos negros americanos, em nome de todo o pais, pela escravidao e a segre- gacio racial, confirmando a manifestagao que o presidente Bill Clinton havia feito em 1998, em viagem a Africa do Sul, lamentando a pratica da escravidao. No ano de 2000, o papa Joao Paulo II também pediu perdao a humanidade pela Inquisicao. Em diferentes paises do mundo, atos oficiais semelhantes se repeti- ram e se combinaram com programas de reparacao histérica. Assim, inaugurou-se uma era de reconhecimento piblico de crimes contra a humanidade e de promogao da reparagao no plano simbélico, que se associa a promogao de antimonumentos diversos e globalizagao de mu- seus memoriais. Na Alemanha, localizam-se antimonumentosinaugu- rais da década de 1980, como o Monumento contra 0 fascismo, de Esther Shalev-Gerz e Jochen Gerz, em Hamburgo, inaugurado em 1986, ou a Fonte Aschrott, de Horst Hoheisel, em Kassel, inaugurada em 1987”, aos quais se pode juntar o Memorial aos Judeus Mortos da Europa, de Peter Eisenman, inaugurado em 2005. O Brasil ainda parece distante desse tipo de politica de memoria ao nao desenvolver uma politica publica de reparagio simbélica diante da histéria do genocidio indigena, da pra- tica da escravidao africana e diante dos casos das vitimas da repressao politica durante as ditaduras. Da perspectiva da definigao de uma politi- ca piblica de meméria, isso mantém o Estado distante da compreensao da fungio social contempordnea do patriménio cultural e nao contribui para associar democracia e justica social. Pode-se dizer que essa é anova 21. Para uma caracterizagao geral e discussio de antimonumentos e museus memo- riais, ver: Seligmann-Silva (2016); Sodaro (2019), 22. Ver pigina no site da artista Rsther Shalev-Gers, disponivel em: , Acesso em: 16 mal, 2021, 23, Informagdes gerais disponivels da obra constam em verbete da Wikipédia alema, disponivel em: , Acesso em: 16 mai. 2021, Dispontvel em: . Certamel” te, ainda mais significativas sdo as ruinas do Cais do Valongo, na cidade do Rio de J neiro, que pela intervengio arqueolégica, realizada em 2011, tirou do esqueciment0# histéria do principal porto de entrada de africanos escravizados no Brasil e nas Amer cas, e logo em 2017 passou a integrar a lista de Patriménio Mundial da organizagao das Nagdes Unidas paraa Educagio, Ciéncia ea Cultura (Unesco), Informagaes disponivels em: . Acesso em: 18 mai, 202), 78 @ Monumentos, memériae violencia Digitalizado com CamScanner REFERENCIAS Atique, F. Arquitetura evanescente: 0 desaparecimento de edificios cariocas em perspectiva histérica. Sio Paulo: Edusp / Fapesp, 2019. Calabre, L. Politicas culturais no Brasil: Dos anos 1930 ao século XXI. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009. Cury, M. C. (org.). Museus e indigenas: Saberes e ética, novos paradi mas em debate. Sao Paulo: Secretaria da Cultura / ACAM Portinari / Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, 2016. Fonseca, C. L. 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Napolitano, Marcos. cDD 363.69 ee Elaborado por Mauricio Amormino Junior - CRBS/2422 Consetho editorial Todos os direitos desta edigio reservados & LETRAEVOZ Rua Dr, Jodo Ferraz, 67 03059-040 — Sio Paulo— SP www.letraevoz.com.br fb.com/letraevoz Digitalizado com CamScanner

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