Para Uma Didática Da Análise Linguística Enunciativa Na Educação Libertadora

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Estudos Linguísticos

e Interculturalidade:
Texto, Discurso e Ensino
Guilherme Figueira-Borges
Luana Alves Luterman
Marília Silva Vieira
(organização)

Estudos Linguísticos e Interculturalidade:


Texto, Discurso e Ensino

1a edição
São Paulo
Todas as Musas
2022
Supervisão Editorial: Fernanda Verdasca Botton
Editor: Flavio Felicio Botton
Diagramação e capa: Studio Vintage Br
Guilherme Figueira-Borges © Luana Alves Luterman ©
Marília Silva Vieira ©
A revisão é de responsabilidade dos autores e autoras

É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem a prévia


autorização da organização

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Kátia Aguilar CRB – 8/8898
Estudos linguísticos e interculturalidade: texto, discurso e en-
E82 sino/ Organização de: Figueira-Borges, Guilherme; Luterman,
Luana Alves; Vieira, Marília Silva. São Paulo: Todas as Musas,
2022.
325p.

Bibliografia
ISBN 978-65-88543-79-5

1. Linguística 2. Interculturalidade I. Figueira-Borges,


Guilherme II. Luterman, Luana Alves 3. Vieira, Marília Silva.

CDD 410
Catálogo Sistemático
Linguística 410; Interculturalidade 378.
Sumário

Apresentação
Guilherme Figueira-Borges, Luana Alves Luterman e Marília
Silva Vieira............................................................................. 7

Alguns Apontamentos da Concepção Sociorretórica dos


Gêneros Textuais
Aline Moreira da Fonseca Nascimento e Eleone Ferraz de
Assis ...................................................................................... 17

Explorando a Iconicidade e a Multimodalidade no Estudo de


Línguas
Darcilia Simões e Rosane Reis de Oliveira .......................... 29

O Enunciado Doutrinário sobre a Simplificação da Linguagem


no Processo Penal: Uma Maneira de Olhá-lo pela Ótica
Foucaultiana
Návia Regina Ribeiro da Costa e Eliane Marquez da Fonseca
Fernandes ............................................................................ 59

Para uma Didática da Análise Linguística Enunciativa na


Educação Libertadora – De Freire e Franchi à Agenda 2030
Sinval Martins de Sousa Filho e Madalena Teixeira ........... 83

Memórias de Leitura em Abordagem Discursiva no Contexto


Acadêmico: Possibilidades de Resistência na Escrita de Si
Sarah Suzane Bertolli, Cristina Batista de Araújo e
Alexandre Ferreira da Costa...............................................105
Postulações e Fake News: Os Efeitos de “Verdade” nos
Discursos Midiáticos
Damião Francisco Boucher e Thiago Soares Barbosa ........ 125

“Li Tudo”: Discursos sobre a Leitura e o Orgulho de Ser Leitor


Luzmara Curcino, Gustavo Rosa e Simone G. Varella ....... 147

Pierre Bourdieu e o Homo Academicus como Fenômeno de


Enunciação Sociocultural
Juan Alberto Castro Chacón............................................... 165

O Nascimento de Vênus, Muito Além de Botticelli: O Corpo


Trans de uma Afrodite na Publicidade da Shell Rimula
Guilherme Rodrigues Valadão, Luana Alves Luterman e
Guilherme Figueira-Borges ................................................ 181

O Xadrez como Prática de si: Sobre o Ensino de uma Vida em


Exercício
João Kogawa, Kevyn R. Nascimento e Jonathan A. Feitosa
........................................................................................... 201

Discurso, Pós-Verdade e Liberdade


Cesar Eduardo Duarte Elizi ................................................ 217
Expandindo Olhares sobre Emoções e Identidades na
Aprendizagem de Línguas a Partir dos Discursos de uma
Aprendiz
Mariana Rosa Mastrella de Andrade e Hélvio Frank ......... 231

Livros Didáticos e Tecnologias Digitais na Educação


Linguística: Algumas Problemáticas e Outras Possibilidades
Cristiane Rosa Lopes e Carla Conti de Feitas ..................... 251

Histórias da Formação Docente: Reflexões sobre Colonialidade


Linguística
Julma Dalva Vilarinho Pereira Borelli, Lígia Christie Coelho
Silva e Patrícia Alves Santos Oliveira ................................ 265

Reconhecimento Lexical em Língua Inglesa de Alunos de uma


Escola Pública Goiana
Stênio Magalhães Silva e Eduardo Batista da Silva .......... 283

Sobre os Autores e Autoras .................................................... 313


Apresentação
Guilherme Figueira-Borges
Luana Alves Luterman
Marília Silva Vieira

A iniciativa de criação do Mestrado Acadêmico em Língua, Litera-


tura e Interculturalidade – POSLLI – surgiu em agosto de 2014, du-
rante o evento científico do GELCO (Grupo de Estudos da Linguagem
do Centro-Oeste), realizado na Cidade de Goiás (GO). A partir de en-
tão, formou-se um grupo de 21 docentes das áreas de Linguística e Li-
teratura, dentre os quais 17 pertenciam ao quadro permanente da UEG
e 04 eram externos. Desde que iniciou suas atividades, em 2017, o
POSLLI viabilizou, a esses pesquisadores, a possibilidade de intercâm-
bios de informações e o aumento da produção intelectual do grupo,
ampliando, assim, a implementação de melhorias acadêmico-científi-
cas, especialmente em Goiás, mas também em estados circunvizinhos.
POSLLI legitima, desse modo, seu compromisso no que tange à for-
mação em Stricto Sensu de egressos de graduação e de especialização,
bem como de outros interessados, tais como docentes da educação bá-
sica e do ensino superior. A avaliação exitosa do POSLLI pela Capes,
que resultou em nota 4, em seu primeiro quadriênio, está expressa na
valorosa contribuição do Programa de Pós-Graduação em prol da pre-
servação e da salvaguarda do patrimônio linguístico, literário, cultural
e artístico, local e globalmente, com mestres atuantes no ensino e
aprovados em Programas de Doutorado em importantes instituições
do país. O POSLLI é o novo período helênico na Cidade de Goiás. Já
são 56 mestres formados(as) na cidade que é Patrimônio Mundial da
Humanidade, lembrada e visitada pelo legado de Cora Coralina, reper-
tório cultural que motiva nosso fazer acadêmico.

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Guilherme Figueira-Borges, Luana Alves Luterman e Marília Silva Vieira

O primeiro volume da obra, intitulado Estudos Linguísticos e In-


terculturalidade: Texto, Discurso e Ensino, elenca 15 artigos e relatos
de experiências vinculados à área de Linguística.
O artigo que inaugura o primeiro volume, Alguns apontamentos
da concepção sociorretórica dos gêneros textuais, de Aline Moreira
da Fonseca Nascimento (UEG) e Eleone Ferraz de Assis (UEG), obje-
tiva apresentar a concepção sociorretórica dos gêneros textuais. A con-
cepção sociorretórica baseia-se em uma análise linguística que discute
a construção do texto a partir de práticas sociais, ou seja, o gênero é
compreendido a partir do propósito comunicativo que ele desempe-
nha em uma comunidade discursiva. Os autores partem da hipótese
de que conhecer a concepção sociorretórica do gênero é adentrar na
sua organização retórica, que compreende observar o texto em uma
situação recorrente (MILLER, 1984). Para a elaboração deste artigo,
eles optaram por uma pesquisa bibliográfica que traz conceitos basila-
res da concepção sociorretórica dos gêneros textuais. Para tanto, foi
necessário mobilizar algumas definições, tais como: gênero, comuni-
dade discursiva e propósito comunicativo. Este estudo teve como
aporte teórico autores como Silveira (2005), Swales (1990), Bhatia
(1993, 1997), dentre outros. Os pesquisadores esperam que este es-
tudo contribua com a concepção sociorretórica dos gêneros textuais.
No artigo Explorando a iconicidade e a multimodalidade no es-
tudo de línguas, Darcilia Simões (UERJ, UEG) e Rosane Reis De Oli-
veira (Membro SELEPROT – UERJ) explicam e demonstram a explo-
ração da iconicidade no ensino de línguas, por meio, também, de re-
cursos multimodais. Há uma breve explanação sobre as novas tecno-
logias e sua influência nas ações didáticas. As autoras abordam os re-
cursos multimodais como ferramentas produtivas na prática didática,
uma vez que o advento da internet os deixa disponíveis para acesso
rápido e fácil. Elas abordam sucintamente os procedimentos metodo-
lógicos e a estimulação dos estudantes como elementos necessários à
produtividade das aulas. Na primeira parte, consideram a contribui-
ção da semiótica no desenvolvimento de métodos e técnicas didático-
pedagógicos para o desenvolvimento das competências da leitura. À
guisa de rememoração, discorrem sobre o que é iconicidade, aprovei-
tando para falar de índices, ícones e símbolos, bem como exemplificá-

8
Apresentação

los nos textos verbais e não verbais, com vista a demonstrar sua apli-
cação. Na segunda parte, apresentam uma breve explanação dos fun-
damentos da multimodalidade, segundo Kress e Van Leeuwen. Na ter-
ceira parte, apresentam as vantagens do trabalho com a iconicidade e
com a multimodalidade no ensino da leitura e da produção textual,
uma vez que a identificação de índices, ícones e símbolos nos textos-
corpus construirá o arcabouço a partir do qual será não só produzida
a compreensão e a interpretação dos textos, como também será viabi-
lizada a produção de textos a partir dos insumos extraídos das leituras.
Em O enunciado doutrinário sobre a simplificação da linguagem
no processo penal: uma maneira de olhá-lo pela ótica foucaultiana,
de Návia Regina Ribeiro da Costa (PUC-Goiás) e Eliane Marquez da
Fonseca Fernandes (UFG), as pesquisadoras compartilham um relato
de experiência baseado no aporte teórico-epistemológico foucaulti-
ano. O objetivo é apresentar como a teoria foucaultiana contribui para
estudar enunciados da prática discursiva jurídica, especificamente do
Processo Penal (perante o Tribunal do Júri). O objeto é um enunciado
sobre o uso de “linguagem simplificada (clara)”, inscrito em uma dou-
trina do Direito Processual Penal, numa relação com os enunciados
emergentes na própria prática discursiva jurídica do Tribunal do Júri,
sendo estes últimos materializados em um processo judicial de crime
doloso contra a vida em trâmite nesse domínio discursivo. O relato de
experiência ancora-se em estudo bibliográfico (ALMEIDA, 2007),
tendo como principal base teórica os estudos de Foucault (2000,
2003a, 2003b, 2008 e 2014). Elas apresentam o trabalho como uma
“nova maneira de olhar” o objeto pela ótica da teoria foucaultiana, ex-
pressando uma ação de reflexão sistemática sobre um paradigma que
constrói uma realidade de mundo jurídico na esfera pesquisada. Por
isso, entendem ser necessário problematizá-la.
A investigação científica intitulada Para uma didática da análise
linguística enunciativa na educação libertadora: de Freire e Franchi
à Agenda 2030, cuja autoria é de Sinval Martins de Sousa Filho (UFG-
UA) e de Madalena Teixeira (UA), ao articular os pressupostos teóri-
cos e metodológicos da educação libertadora de Paulo Freire e da aná-
lise linguística de Carlos Franchi, demonstram como essa proposta de
imbricação pode se relacionar o objetivo 4 para o desenvolvimento

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Guilherme Figueira-Borges, Luana Alves Luterman e Marília Silva Vieira

sustentável (ODS 4) da Agenda 30 da ONU. Os dois pesquisadores ob-


jetivam, ainda, refletir como a categoria criatividade (re)elaborada por
Freire e Franchi pode impulsionar e transformar a educação escolar,
alçando-a a um patamar de formação para a liberdade. A partir de uma
pesquisa bibliográfica qualitativa, valemo-nos dos estudos de Freire
(1981; 1985; 1993) e Franchi (1991; 2002; 2006) para o desenvolvi-
mento da problemática apresentada, redimensionando o eixo franchi-
ano para Análise Linguística Enunciativa e demonstrando como as ati-
vidades com temas geradores da proposta freireana podem ser corre-
lacionadas com as das atividades linguísticas, epilinguísticas e meta-
linguísticas em aulas de língua portuguesa. As análises do ODS 4 da
Agenda 30 e das obras de Freire e Franchi demonstram ser viável a
construção de uma educação escolar libertadora a partir das interven-
ções didáticas propostas pelos dois educadores, indo ao encontro do
preconizado para a sociedade do século XXI.
Sarah Suzane Bertolli (IFG), Cristina Batista de Araújo (CEPAE-
GO) e Alexandre Ferreira da Costa (UFG), na obra Memórias de lei-
tura em abordagem discursiva no contexto acadêmico: possibilida-
des de resistência na escrita de si, investigam memoriais de leitura e
formação escolar, a partir de uma prática enveredada no contexto aca-
dêmico com proposta interativa de leitura/escuta e escrita de memo-
riais. A partir de uma abordagem dialógica do discurso (BAKHTIN,
2011 e 2017; VOLÓCHINOV, 2019), analisaremos o gênero discursivo
memorial em sua maleabilidade e escritura literário-acadêmica de re-
sistência. Na teia da história das pedagogias e práticas da leitura,
busca-se encontrar o processo de leitura da memória desnudada pela
escrita de si de professores em formação, a partir da análise de doze
memoriais que constituíram a trilha e a culminância da disciplina Es-
tágio de Português na Universidade Federal de Goiás. Tal conjuntura
memorial é tecida para compreender a formação leitora, quanto à po-
sição axiológica das práticas de ensino-aprendizagem da leitura reme-
moradas, a fim de analisar o movimento que vai do discurso à prática
da leitura na escola e para problematização dos processos teórico-me-
todológicos envoltos na constituição do sujeito-leitor. Constata-se a
relevância de uma prática de memória de leitura em tempos contem-
porâneos autoritários, em que as práticas para uma educação voltada

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Apresentação

à liberdade se embatem com movimentos censitários que prejudicam


a formação de leitores.
Já no artigo Postulações e fake news: os efeitos de “verdade” nos
discursos midiáticos, de Damião Francisco Boucher (UFT) e Thiago
Soares Barbosa (UFT), a proposta foi traçar um percurso descritivo-
interpretativo acerca dessas redes de dizeres sobre a (des)informação,
categorizada popularmente pelo sintagma de origem inglesa “fake
news” (notícias falsas). Nesse percurso, verificamos como estas redes
se constituem através da mídia e se estabelecem como força mantene-
dora de um imaginário que concebe os sentidos de verdade como já
estabilizados e emanentes de um espaço social exclusivo, a saber, o
campo midiático. Para tal análise, utilizamos o arcabouço teórico-me-
todológico da Análise do Discurso com o objetivo de examinar como
os discursos sobre as “fake news” fazem funcionar seus efeitos e, por
conseguinte, projetar a verdade como sendo uma propriedade parti-
cular do campo intelectual, um produto exclusivamente institucional.
Sobre o objeto de análise, buscamos construir um corpus variado,
constituído por trechos de matérias de sites de grande circulação como
o Blog do Google Brasil (2022), intitulado “PL 2630 pode aumentar
desinformação online e prejudicar usuários” e de outros sites de notí-
cias como, G1 (2022) e Uol (2022), a fim de compreender como é cons-
tituída a composição da rede de sentidos sobre as fake news.
O artigo científico empreendido por Luzmara Curcino (UFSCar),
Gustavo Rosa (UFSCar) e Simone G. Varella (UFSCar), denominado
“Li tudo”: discursos sobre a leitura e o orgulho de ser leitor, analisa
alguns enunciados sobre a leitura, nos quais se pode depreender ma-
neiras dessa expressão do “orgulho” de ser leitor que compõem os dis-
cursos sobre essa prática, o enunciável social e historicamente legiti-
mado sobre esse tema. O exemplo investigado foi destacado de um
conjunto de outros enunciados obtidos em entrevistas realizadas com
personalidades conhecidas nacionalmente e que foram produzidas e
publicadas na mídia tradicional brasileira. Nestas entrevistas, entre
outros temas mais centrais, tais personalidades eram instadas a falar
de si e o fizeram recorrendo, entre outros aspectos de seu perfil e em
corroboração com um certo ethos por elas visado, à alusão a seus há-
bitos e gostos de leitura. Essas entrevistas com políticos, empresários,

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Guilherme Figueira-Borges, Luana Alves Luterman e Marília Silva Vieira

artistas e cientistas ou especialistas tornaram-se ocasião privilegiada


para se aludir à leitura, mesmo que en passant, mesmo que de ma-
neira muito gratuita e sem relação com os temas principais condutores
da entrevista. Os autores fundamentam-se em princípios da Análise
de Discurso, em especial, segundo a “ordem dos discursos”, do filósofo
Michel Foucault (1999), da História Cultural da leitura, conforme es-
tudos de Roger Chartier (1998, 2019), e dos estudos recentes sobre a
história das ‘emoções’, tais como desenvolvidos por Jean-Jacques
Courtine (2016). Sobre os estudos dos discursos sobre a leitura no Bra-
sil, apoiam-se especialmente em Márcia Abreu (2001a, 2001b, 2006)
e nas reflexões desenvolvidas pelos pesquisadores do LIRE.
O texto Bourdieu e o homo academicus como fenômeno de enunci-
ação sociocultural, de Juan Alberto Castro Chacón (UFG), objetiva re-
fletir sobre a academia, no sentido que lhe dá o sociólogo Pierre Bour-
dieu (2004; 2008; 2010; 2011; 2015), e, consequentemente, sobre o
homo academicus, como fenômeno de enunciação sociocultural, uma
vez que o acadêmico/cátedra se afinca, segundo Bourdieu, como pri-
vilégio e distinção. Assim, mediante leituras e reflexões bibliográficas,
observamos como se constrói a enunciação da distinção e do prestígio
da academia, além de discutir a idealização do capital sociocultural in-
serida nessa enunciação. Finalmente, e ao percebermos a sua consti-
tuição, refletimos sobre acadêmico (catedrático) como fenômeno
enunciativo, no processo que se instaura, segundo o próprio Bourdieu
(2008, p. 61), na reprodução do campo universitário como campo de
poder.
Em seguida, Guilherme Rodrigues Valadão (UEG), Luana Alves
Luterman (UEG) e Guilherme Figueira-Borges (UEG) apresentam a
pesquisa chamada O nascimento de Vênus, muito além de Botticelli:
o corpo trans de uma afrodite na publicidade da Shell Rimula. Os au-
tores objetivam analisar, à luz dos pressupostos teóricos da Análise do
Discurso de linha francesa, o vídeo O Causo da Afrodite, parte da cam-
panha publicitária De Causo em Causo, da marca de lubrificantes au-
tomotivos Shell Lubrificantes, produzida pela Wunderman Thomp-
son Brasil. Investiga a construção/constituição discursiva do sujeito
Afrodite, além de esquadrinhar seu corpo para decifrá-lo conforme os
deslizamentos da normalidade que circula sobre como pode e deve ser

12
Apresentação

adestrado à utilidade e docilidade homogeneizante da(s) forma-


ção/formações discursiva(s) que compõem esse sujeito. Como resul-
tados, constatamos que o sujeito Afrodite se constitui a partir do que
é considerado ordem do universo feminino de acordo com o domínio
da memória dos sujeitos e que o corpo do indivíduo Afrodite apresenta
elementos que o fazem feminino segundo imagens intericônicas do
que é ser mulher. Como conclusões, apontamos que a falta de uma re-
ferência de um corpo trans no meio publicitário voltado para o mer-
cado automotivo de caminhões, predominantemente masculino, cis-
gênero e heterossexual, causa estranheza, por ser deslizante do perfil
discursivo heteronormativo, biopoder cristalizado numa sociedade
patriarcal e falocêntrica.
O capítulo intitulado O xadrez como prática de si: sobre o ensino
de uma vida em exercício, de João Kogawa (UNIFESP), Kevyn R. Nas-
cimento (UNIFESP) e Jonathan A. Feitosa (UNIFESP), propõe uma
reflexão discursiva sobre uma prática extensionista desenvolvida em
nossa universidade. A partir das lições ensinadas no projeto de exten-
são O Xadrez no espaço acadêmico: lazer, integração e conexão so-
cial, elencamos alguns aprendizados daí resultantes no que concerne
à formação do sujeito como sujeito do (auto)conhecimento. Nessa
perspectiva, jogar xadrez é mais do que simplesmente mover peças,
mas constituir-se sujeito a partir de uma série de práticas de si. Autor-
reflexão, cálculo, abstração e disciplina, portanto, compõem um es-
paço amplo para o exercício da promoção intelectual de si para si
mesmo.
O artigo Discurso, pós-verdade e liberdade, de Cesar Casella
(UEG), referencia a Pós-verdade, um ambiente cultural em que carac-
terísticas específicas deste nosso tempo influenciam a relação que os
sujeitos estabelecem com a maneira de produzir e consumir textos,
tanto escritos quanto orais, o que parece redesenhar alguns contornos
do que entendemos como discurso. O autor pretende atualizar o con-
ceito de discurso, bem como atuar numa breve análise das consequên-
cias já observadas e sentidas de sua nova configuração vis-à-vis sobre
o fenômeno da Pós-verdade.
Em Expandindo olhares sobre emoções e identidades na aprendi-
zagem de línguas a partir dos discursos de uma aprendiz, Mariana

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Guilherme Figueira-Borges, Luana Alves Luterman e Marília Silva Vieira

Rosa Mastrella de Andrade (UnB) e Hélvio Frank (UEG) buscam ca-


racterizar aspectos discursivos das emoções a partir da problematiza-
ção de um contexto de aprendizagem de LE (inglês), com vistas à am-
pliação de análise dos fatores emocionais em meio às questões identi-
tárias e de poder. Para isso, utilizam como referencial teorias sociais
de identidades e relações de poder para rediscutir a maneira como, a
partir das práticas identitárias que ocorrem em sala de aula, as emo-
ções podem ser repensadas fora e para além da dicotomia individual
versus social. O contexto de análise se deu a partir das experiências de
aprendizagem em sala de aula e de relação com a língua inglesa vividas
por uma estudante de inglês no Brasil. Os autores compreendem que
nervosismo, ansiedade, baixa autoestima e falta de motivação (tradi-
cionalmente considerados fatores afetivos individuais, segundo a lite-
ratura de aquisição de segunda língua) são também socialmente forja-
dos a partir de construções identitárias, práticas discursivas e relações
desiguais de poder. Essa rediscussão abre espaço para as emoções se-
rem repensadas, com a problematização e desnaturalização do espaço
de aprendizagem chamado sala de aula.
No capítulo Livros didáticos e tecnologias digitais na educação
linguística: algumas problemáticas e outras possibilidades, Cristiane
Rosa Lopes (UEG) e Carla Conti de Feitas (UEG), pesquisadoras/es do
Programa de Pós-Graduação em Língua, Literatura e Interculturali-
dade (POSLLI/UEG), participantes do Grupo de Estudos e Pesquisas
sobre Formação de Professoras/es de Línguas (GEFO-
PLE/CNPq/UEG), têm em vista a promoção de uma educação linguís-
tica, que considere as pluralidades que nos constituem e nos cercam,
e com as quais interagimos cotidianamente. A partir de percepções ad-
vindas da realização de alguns desses estudos, os objetivos das auto-
ras, no artigo deste livro, são: (i) discutir algumas problemáticas na
educação linguística, relativas a materiais didáticos e tecnologias digi-
tais; (ii) refletir sobre novas possibilidades de educação linguística
proporcionadas pelo uso de tecnologias digitais.
O texto Histórias da formação docente: reflexões sobre coloniali-
dade linguística, de Julma Dalva Vilarinho Pereira Borelli (UFR), Lí-
gia Christie Coelho SILVA (SEDUC-MT/PPGEdu-UFR) e Patrícia Al-
ves Santos OLIVEIRA (SEDUC-MT), remete a um corpus de pesquisa

14
Apresentação

composto por histórias compartilhadas e discutidas num grupo for-


mado por professoras(es) que se reúnem para compartilhar suas prá-
xis, para discutir suas experiências diárias e exercitar um olhar crítico
às questões que perpassam a docência de língua inglesa no estado de
Mato Grosso, na região Centro-Oeste do Brasil. O grupo é chamado
GEPLIMT, um grupo de estudos formado por duas professoras uni-
versitárias e cerca de vinte professoras(es) de inglês de diferentes es-
colas da rede pública de ensino. Foi criado em dezembro de 2019 e,
desde então, os integrantes têm se encontrado mensalmente para dis-
cutir questões abordadas em materiais selecionados para ler ou assis-
tir previamente. Algumas professoras relataram episódios que reme-
tem a colonialidades que experienciaram durante seu curso de gradu-
ação. A discussão focalizou o desafio de aprender inglês para se tornar
docente, enfrentando a colonialidade linguística que ainda está pre-
sente na universidade e é mantida por docentes e discentes em dife-
rentes espaços educacionais. Esses relatos remetem às palavras de
Kilomba (2019, p. 51), quando afirma que “[n]esse sentido, a academia
não é um espaço neutro nem tampouco simplesmente um espaço de
conhecimento e sabedoria, de ciência e erudição, é também um espaço
de v-i-o-l-ê-n-c-i-a”. Ao interpretar tais episódios com base no pensa-
mento decolonial, as autoras esperam poder também encontrar for-
mas de reconstruir suas práxis em outros termos.
O artigo que finaliza a obra comemorativa do primeiro quadriênio
chama-se POSLLI, reconhecimento lexical em língua inglesa de alu-
nos de uma escola pública goiana, cuja autoria é de Stênio Magalhães
Silva (UEG) e de Eduardo Batista da Silva (UEG). O objetivo principal
é problematizar o ensino de vocabulário em uma perspectiva quanti-
tativa. Os objetivos específicos são os seguintes: 1) avaliar o nível de
reconhecimento lexical de alunos de uma escola pública da cidade de
Caldas Novas-GO; 2) observar diferenças entre as turmas analisadas;
3) destacar o vocabulário que apresenta dificuldade aos alunos. Apli-
camos um teste de nível vocabular, The Updated Vocabulary Levels
Test (WEBB; SASAO; BALLANCE, 2017), que averigua o conheci-
mento das palavras mais frequentes da língua inglesa; e 4) analisar as
expectativas do Documento Curricular para Goiás (GOIÁS, 2019)
quanto ao tratamento a ser dispensado ao léxico da língua inglesa. Os

15
Guilherme Figueira-Borges, Luana Alves Luterman e Marília Silva Vieira

autores optaram por incluir uma discussão pautada no referido docu-


mento porque pretenderam realizar uma comparação entre as exigên-
cias do documento e o nível lexical do alunado, não como uma relação
de causa-consequência, mas, sim, em uma perspectiva analítica
quanto à preocupação com questões lexicais. Eles Aplicaram um teste
de nível vocabular, The Updated Vocabulary Levels Test (WEBB; SA-
SAO; BALLANCE, 2017), em formato múltipla escolha. Participaram
da pesquisa 466 alunos, divididos em 7 turmas, do 6º ao 9º anos do
Ensino Fundamental e 9 turmas do 1º ao 3º anos do Ensino Médio.
A miríade temática dos artigos e dos relatos de experiências e a he-
terogeneidade dos procedimentos metodológicos preconizada por eles
ampliam a formação intelectual sobre as perspectivas descritivas, in-
terpretativas e analíticas. Ao proporcionarmos a circulação desses tex-
tos científicos cuidadosamente elaborados para a democratização do
conhecimento desenvolvido em diversas universidades brasileiras e
estrangeiras, almejamos não apenas a extensão das percepções episte-
mológicas e temáticas, mas também das operacionalizações analíticas
e críticas por meio das interdisciplinaridades e das interculturalidades
convocadas nos artigos pelas interfaces com múltiplas áreas das ciên-
cias humanas.
Por fim, gostaríamos de agradecer à Universidade Estadual de
Goiás Câmpus Cora Coralina, pelo apoio destinado às atividades do
Programa de Pós-graduação em Língua, Literatura e Interculturali-
dade (POSLLI/UEG). Agradecemos também à Coordenação de Aper-
feiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pelo apoio finan-
ceiro que possibilitou a publicação desta obra.

16
Alguns Apontamentos da
Concepção Sociorretórica dos
Gêneros Textuais

Aline Moreira da Fonseca Nascimento


Eleone Ferraz de Assis

1. PALAVRAS INICIAIS

Sabe-se que a concepção sociorretórica tem orientado muitos estu-


dos sobre gêneros textuais. Essa perspectiva tem contribuído, sobre-
tudo, com a discussão sobre as especificidades dos gêneros que circu-
lam socialmente no contexto universitário e profissional. Ela, de
acordo com Marcuschi (2008), analisa e identifica os movimentos e os
passos da estrutura do gênero, preocupando-se com o aspecto socio-
institucional. Nessa concepção de gênero, nota-se que há uma maior
preocupação com a escrita e uma visão marcada pelos conceitos de co-
munidade discursiva e propósito comunicativo.
A concepção sociorretórica do gênero sintetiza as teorias e tendên-
cia das Ciências Sociais a partir das contribuições de Bakhtin (1992),
Miller (1994) e Swales (1990). Uma obra que tem destaque nos estu-
dos sociorretóricos de Gêneros é Genre Analysis: English in academic
and research setting (SWALES, 1990), que formaliza alguns critérios
de identificação de gênero textual, comunidade discursiva, organiza-
ção retórica e modelo CARS.
É importante ressaltar que Swales (1990) apresenta o modelo
CARS (Create a research space), que em português significa criar um
espaço de pesquisa, como fonte metodológica para a realização da aná-
lise de gêneros acadêmicos ou profissionais, como resumos, resenhas,

17
Aline Moreira da Fonseca Nascimento e Eleone Ferraz de Assis

ofícios, entre outros. Por meio deste modelo, é possível realizar uma
descrição sociorretórica do gênero a partir da forma prototípica, ou
seja, a forma mais comum de determinado gênero. Esta forma, tida
como prototípica, tem sido utilizada em diferentes ocasiões dos con-
textos sociocomunicativos.
A concepção aqui discutida foi consolidada a partir de vários estu-
dos sobre a linguagem e o discurso na segunda metade do Século XX.
Bhatia ([1997]2001), Miller (1984) e Swales (1990) são os principais
autores que desenvolvem estudos a partir da organização retórica com
propósitos comunicativos do texto. A concepção sociorretórica conso-
lidou ideias de caráter social da linguagem que estavam imbricadas na
busca de um ensino de escrita renovado tanto na perspectiva acadê-
mica quanto na profissional.
Pensando nisso, este artigo busca, a partir de uma pesquisa biblio-
gráfica, apresentar alguns apontamentos sobre a concepção sociorre-
tórica dos gêneros textuais que discute a construção do texto a partir
de práticas sociais, ou seja, o gênero é compreendido a partir do pro-
pósito comunicativo que ele desempenha em uma comunidade discur-
siva.

2. APORTE TEÓRICO

A perspectiva sociorretórica consolidou-se na segunda metade do


século XX com a “virada retórica” dos estudos do comportamento hu-
mano e do discurso (SILVEIRA, 2005). Essa “virada retórica” contri-
buiu para uma reflexão sobre a necessidade de a escrita ser adequada
aos propósitos comunicativos. Ou seja, ela defende que os produtores
de textos, sobretudo no espaço acadêmico, utilizem-se de procedimen-
tos para que o texto se torne adequado aos padrões e às regularidades
das situações recorrentes (SILVEIRA, 2005). Além disso, é preciso
atentar para o contexto e a situação em que os eventos de fala aconte-
cem.
Irmanado a essas assertivas, Silveira (2005, p. 78) afirma que a:

As palavras realizam muito mais do que simplesmente fazer afirmações


sobre o mundo. Veja-se, para ilustrar, o exemplo clássico da sentença
“A janela está aberta”, que pode ter significados muito além de uma

18
Alguns Apontamentos da Concepção Sociorretórica dos Gêneros Textuais

simples afirmação factual sobre um fenômeno físico. Dependendo do


contexto em que ocorre o enunciado, ele pode veicular vários atos de
fala, como, por exemplo, um pedido para fechar a janela, uma reclama-
ção sobre algo anteriormente acertado e não cumprido, uma explicação
de um fato ocorrido, etc.

Desse modo, o sentido do enunciado se constrói no contexto em


que ele é produzido. Como defende Miller (1984), a linguagem é con-
siderada uma forma de ação, não é isolada. Portanto, sempre está re-
lacionada a um contexto, em uma dada situação, para que tenha sen-
tido.
A perspectiva aqui discutida foi consolidada graças a vários estudos
feitos sobre a linguagem na segunda metade do século XX, entre eles
os de Bhatia ([1997]2001), Miller (1984) e Swales (1990). Vale regis-
trar que a concepção sociorretórica defende ideias acerca do caráter
social da linguagem que estão imbricadas na busca de um ensino de
escrita renovado tanto na perspectiva acadêmica quanto na profissio-
nal.

Dentro dessa visão sociorretórica, convém assinalar mais especifica-


mente a grande contribuição que a análise de gênero vem dando à ne-
cessária tarefa de se descreverem alguns gêneros escritos que circulam
nas esferas acadêmicas e profissionais, cujo domínio é de grande inte-
resse dos indivíduos que deles necessitam para bem desempenharem
suas tarefas comunicativas institucionais. (SILVEIRA, 2005, p. 10).

Essa perspectiva, nesse sentido, analisa e identifica os movimentos


retóricos que caracteriza como os passos da estrutura do gênero. Pre-
ocupa-se, sobretudo, com o aspecto socioinstitucional, primordial-
mente, dos gêneros acadêmicos ou vinculados ao campo profissional.
Nota-se assim que, na abordagem sociorretórica, há uma maior preo-
cupação com a escrita e uma visão extremamente marcada pelos con-
ceitos de comunidade discursiva e propósito comunicativo.
Pesquisas mostram que o gênero se institui em uma situação recor-
rente em um dado contexto (MILLER, 1984) e se dá por meio de ações
tipificadas em vários momentos da comunicação humana, seja no tra-
balho, na escola, em casa, na universidade ou no trabalho. Indo nessa
direção, para a análise sociorretórica de um gênero, Swales (1990)
propõe o modelo chamado CARS, instrumento capaz de examinar os

19
Aline Moreira da Fonseca Nascimento e Eleone Ferraz de Assis

movimentos/passos da estrutura do gênero que possuem certa regu-


laridade.
Dedicando-se sobremaneira ao estudo da abordagem sociorretó-
rica, Swales (1990) apresentou reflexões acerca da construção do
texto. Seus estudos basilares sobre gênero, comunidades discursivas e
propósito comunicativo revelam as influências dos gêneros na sintaxe,
no discurso e na retórica. Também atribui importância às situações de
leitura, por compreender que um enunciado pode ter mais de uma
função, dependendo do propósito comunicativo do falante. Sua pro-
posição é observar a estrutura retórica do gênero e seus movimentos.
É o caso dos gêneros acadêmicos ou profissionais – resenhas, resu-
mos, ofícios –, presentes em duas comunidades discursivas (acadê-
mica e profissional) e inseridos com determinado propósito comuni-
cativo.
Salienta-se, portanto, que a abordagem sociorretórica tem como
ponto de partida em seus estudos os conceitos de gênero, comunidade
discursiva e propósito comunicativo. Assim, o primeiro conceito que
ganha destaque é o dos gêneros textuais.
Acerca dessas assertivas, Biasi-Rodrigues, Araújo e Sousa (2009)
afirmam que os usos da linguagem influenciam o mundo social e se
concretizam em diferentes gêneros textuais, uma vez que os fatos so-
ciais consistem em ações sociais significativas realizadas pela lingua-
gem, ou atos de fala. Esses atos concernem a formas textuais padroni-
zadas, típicas e, portanto, inteligíveis (BAZERMAN, 2005).
Nesse sentido, a perspectiva sociorretórica enfatiza a inter-relação
dos gêneros e como estes se constituem em práticas sociais entre os
indivíduos. Segundo Miller (1994), o gênero tem o propósito de indu-
zir o interlocutor em favor de um determinado discurso, por se tratar
de concepção que parte da retórica (a arte de argumentar), pois é sa-
bido que todo discurso carrega uma intenção ou defesa de alguma ide-
ologia.
A esse respeito Bhatia ([1997]2001, p. 103) defende que

os gêneros se definem essencialmente em termos de uso da linguagem


em contextos comunicativos convencionados, que dão origem a con-
juntos específicos de propósitos comunicativos para grupos sociais e

20
Alguns Apontamentos da Concepção Sociorretórica dos Gêneros Textuais

disciplinares especializados que, por sua vez, estabelecem formas es-


truturais relativamente estáveis e, até certo ponto, impõem restrições
quanto ao emprego de recursos léxico-gramaticais.

Martin (1984, p. 25) afirma que os gêneros são “uma atividade gra-
dativa, direcionada para um objetivo e dotada de um propósito, na
qual, como membros de uma cultura, os falantes se engajam”. Os gê-
neros, portanto, são utilizados para realizar determinadas funções
dentro da interação social, com propósito comunicativo e intenções
que podem ser públicas ou particulares – o que Swales (2004) deno-
mina propósitos múltiplos.
Bazerman (2005, p. 32) conceitua gêneros da seguinte maneira:

Gêneros são tão-somente os tipos que as pessoas reconhecem como


sendo usados por elas próprias e pelos outros. Gêneros são o que nós
acreditamos que eles sejam. Isto é, são fatos sociais sobre os tipos de
atos de fala que as pessoas podem realizar e sobre os modos como elas
os realizam. Gêneros emergem nos processos sociais em que pessoas
tentam compreender umas às outras suficientemente bem para coor-
denar atividades e compartilhar significados com vistas a seus propó-
sitos práticos.

Na percepção de Bazerman (2005), os gêneros são utilizados para


a concretização de fatos sociais, na relação entre os sujeitos mediante
atos de fala cuja atividade compartilhada possui determinados propó-
sitos comunicativos. Swales (1990) considera que a noção de gênero
está vinculada ao uso efetivo da língua e também às interações sociais
ou atividade discursiva e é dependente do tipo de atividade que o in-
divíduo executa, o que tem influência na forma de se comunicar.
Bawarshi e Reiff (2013, p. 16) defendem que

Os gêneros são entendidos como formas de conhecimento cultural que


emolduram e medeiam conceitualmente a maneira como entendemos
e agimos tipicamente em diversas situações. Essa concepção reconhece
que os gêneros tanto organizam como geram espécies de texto e ações
sociais numa complexa e dinâmica relação recíproca.

Portanto, os textos que produzimos nas situações comunicativas


durante a atividade humana demonstram nossa bagagem de conheci-
mento cultural, os quais se concretizam por meio dos gêneros.

21
Aline Moreira da Fonseca Nascimento e Eleone Ferraz de Assis

Segundo ainda Silveira (2005), a noção de gênero liga-se aos inú-


meros fatores circunscritos à produção e à recepção de textos, consi-
derando, portanto, os entornos contextuais, principalmente os socio-
culturais e ideológicos, que estão na subjacência dos usos da língua
nas interações humanas.
Bezerra, Biasi-Rodrigues e Cavalcante (2009, p. 180) explicam que

Os gêneros, desse modo, são socialmente autorizados por meio de con-


venções e inserem-se nas práticas discursivas dos membros de culturas
disciplinares específicas. Essas práticas discursivas, em grande parte,
refletem não somente as convenções utilizadas por comunidades disci-
plinares específicas, mas também as convenções sociais, incluindo mu-
danças sociais, instituições sociais e conhecimento social, que, de certo
modo, podem ser vistos como contribuições significativas para o que a
teoria de gêneros chama de “conhecimentos de gênero”.

Desse modo, a interação entre os indivíduos permite saber o que


pode ou não pode ser admitido dentro do conjunto de conhecimento
de determinada comunidade. Para Swales (1990), a definição de gê-
nero se distingue ainda em: classe, propósito comunicativo, prototipi-
cidade, a razão ou lógica subjacente ao gênero e a terminologia elabo-
rada pela própria comunidade discursiva.
O gênero é tido como uma classe de eventos comunicativos. O
evento, portanto, é uma situação de comunicação. O propósito comu-
nicativo, por sua vez, se dá com o objetivo ou objetivos do gênero, au-
xiliando na identificação da comunidade discursiva, seus valores, ex-
pectativas e repertório.
Para muitos estudiosos, a noção de propósito comunicativo apre-
senta-se como um dos conceitos centrais para a compreensão da cons-
trução, a interpretação e o uso dos gêneros, ainda que nem todos eles
se utilizem dessa terminologia (BEZERRA, 2006).
Bhatia (1993) destaca que o propósito comunicativo representa as
regularidades típicas da organização do gênero. O autor defende ainda
que essas regularidades devem ser consideradas como cognitivas, já
que elas refletem as estratégias que os membros de uma determinada
comunidade de discurso profissional utilizam na elaboração e enten-
dimento do gênero – um conhecimento social convencionalizado den-
tro de uma comunidade.

22
Alguns Apontamentos da Concepção Sociorretórica dos Gêneros Textuais

Swales (1990) também afirma que

Um gênero compreende uma classe de eventos comunicativos, cujos


exemplares compartilham os mesmos propósitos comunicativos. Esses
propósitos são reconhecidos pelos membros mais experientes da co-
munidade discursiva original e constituem a razão do gênero. A razão
subjacente dá o contorno da estrutura esquemática do discurso e influ-
encia e restringe as escolhas de conteúdo e estilo. O propósito comuni-
cativo é o critério que é privilegiado e que faz com que o escopo do gê-
nero se mantenha enfocado estreitamente em determinada ação retó-
rica compatível com o gênero. (SWALES, 1990, p. 58).

O autor acima considera ainda que o propósito comunicativo de-


termina a ação retórica e que só há compreensão do propósito comu-
nicativo quando se analisa o gênero. “O propósito seria a força que es-
tabelece o foco da ação retórica do gênero” (BIASI-RODRIGUES;
ARAÚJO; SOUSA, 2009, p. 26). O conceito, em sua concepção origi-
nal, é o critério privilegiado na definição de gênero, pois embasa o gê-
nero e determina não apenas a sua estrutura esquemática, mas as es-
colhas de conteúdo e estilo, que são entendidas, na visão de Bakhtin
(2003), como indissoluvelmente ligadas no todo do enunciado e são
igualmente determinadas pela especificidade de um dado campo da
comunicação. Os gêneros também têm suas especificidades, e é o que
passa a definir sua forma prototípica. Meurer, Bonini e Motta-Roth
(2005, p. 113) explicam que

Um texto será classificado como sendo do gênero se possuir os traços


especificados na definição de gênero. Por outro lado, pode-se usar o
critério de semelhança para a classificação no gênero, ou seja, a inclu-
são no gênero pode ser determinada pela semelhança com outros tex-
tos na grande família do gênero.

Por conseguinte, aqueles textos que possuem semelhanças dentro


de uma determinada categoria são protótipos. Outra característica que
merece destaque diz respeito à razão ou lógica subjacente do gênero.
“O gênero tem uma lógica própria porque assim serve a um propósito
que a comunidade reconhece” (MEURER; BONINI; MOTTA-ROTH,
2005, p. 114).
De sua parte, a terminologia elaborada pela comunidade discursiva
para seu próprio uso depende da situação em que ocorre e como ocorre

23
Aline Moreira da Fonseca Nascimento e Eleone Ferraz de Assis

tal gênero. Para que não reste nenhuma dúvida, é preciso que se per-
ceba o comportamento comunicativo dos interlocutores e se dê conta
da evolução e função dos gêneros, uma vez que cada gênero desempe-
nha determinada função dentro da interação social.
Desse modo, compreende-se que a concepção sociorretórica do gê-
nero textual leva em consideração o gênero, o propósito comunicativo
e a comunidade discursiva. São esses os elementos fundamentais para
a compreensão da abordagem cuja percepção do gênero se dá em uma
situação recorrente. O gênero é analisado, portanto, por meio de sua
estrutura retórica e prototipicidade, já que faz parte de uma dada co-
munidade discursiva.
Infere-se, assim, que a concepção sociorretórica do gênero derivou
de estudos dos gêneros textuais, propósito comunicativo e comuni-
dade discursiva. O gênero textual foi tomado como ponto de partida
de tal estudo e imbricado à classe de eventos comunicativos, aos pro-
pósitos comunicativos, à prototipicidade, à lógica subjacente ao gê-
nero e à terminologia elaborada pela comunidade discursiva para seu
próprio uso.
Os gêneros acadêmicos e profissionais são estudados por intermé-
dio da concepção sociorretórica por possuírem certa regularidade, um
propósito comunicativo e por fazerem parte de alguma comunidade
discursiva.
Importante o registro aqui de que os estudos sociorretóricos dos
gêneros apresentam uma concepção baseada nos princípios traçados
por Swales (1990), segundo os quais o contexto é importante para se
compreender o texto e verificar que este se dá com um propósito co-
municativo dentro de uma comunidade discursiva.
Ademais, o modelo criado por Swales (1990) permite a análise de
gêneros mais satisfatoriamente, buscando observar os traços mais evi-
dentes e o propósito que solidificam as práticas discursivas materiali-
zadas nos gêneros. Por certo, ao se apresentar a concepção sociorretó-
rica do gênero, evidencia-se o caminho percorrido, iniciando-se com o
conceito de gênero e em seguida com os conceitos de comunidade dis-
cursiva e o propósito comunicativo.

24
Alguns Apontamentos da Concepção Sociorretórica dos Gêneros Textuais

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo desta pesquisa foi apresentar alguns apontamentos so-


bre concepção sociorretórica do gênero. Para esse estudo, utilizou-se
como metodologia a pesquisa bibliográfica. Pôde-se inferir que o es-
tudo dos gêneros textuais a partir da concepção sociorretórica envolve
também a discussão acerca do propósito comunicativo e da comuni-
dade discursiva. Nesse sentido, a reflexão sobre o gênero textual está
imbricada a classe de eventos comunicativos, propósitos comunicati-
vos, prototipicidade, lógica subjacente ao gênero e a terminologia uti-
lizada por cada comunidade discursiva.
As referências basilares deste estudo foram Swales (1990), Bhatia
(1997) e Miller (1993). Estes autores possibilitaram a discussão da
concepção sociorretórica a partir de uma determinada comunidade
discursiva e reflexão da materialização dos gêneros textuais. Cabe res-
saltar também que um dos pontos cruciais foi a busca pela compreen-
são do importante papel do discurso e dos usos sociais da língua na
compreensão do conceito de gênero. Pode-se observar, a partir dessa
revisão de literatura, que a análise de gêneros textuais deve levar em
conta a intenção nos atos comunicativos dos indivíduos, haja vista que
os gêneros são textos com algum propósito comunicativo e estão imer-
sos em uma comunidade discursiva.
Os estudos sociorretóricos dos gêneros apresentaram uma concep-
ção baseada nos princípios traçados por Swales (1990), de que o con-
texto é importante para compreender o texto e que este se dá com um
propósito comunicativo dentro de uma comunidade discursiva. Swa-
les (1990) cria um espaço de pesquisa, por meio do modelo de CARS,
para observar o gênero estudado. Mediante o que foi pesquisado, per-
cebeu-se ainda que o modelo criado por Swales (1990) permiti a aná-
lise de gêneros, buscando observar os traços mais evidentes e o propó-
sito que solidificam as práticas discursivas. Este modelo, o CARS, cria
um espaço de pesquisa para que sejam observados os movimentos re-
tóricos de cada gênero.
Esta pesquisa, por ser de cunho bibliográfico, não apresenta uma
análise baseada no modelo de CARS, o intuito aqui delineado foi de
apresentar alguns apontamentos sobre a concepção sociorretórica de

25
Aline Moreira da Fonseca Nascimento e Eleone Ferraz de Assis

gênero, evidenciando o caminho percorrido, que se inicia com o con-


ceito de gênero e segue a comunidade discursiva e o propósito comu-
nicativo. Nesse sentido, espera-se que esta pesquisa seja um ponto de
partida para trabalhos que se orientem pela abordagem sociorretórica
do gênero.

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27
Explorando a Iconicidade e a
Multimodalidade no Estudo de
Línguas
Darcilia Simões
Rosane Reis de Oliveira

INTRODUÇÃO

Neste artigo, tentamos explicar e demonstrar a exploração da ico-


nicidade no ensino de línguas, lançando mão, inclusive, de recursos
multimodais. Nas preliminares, fizemos uma breve explanação sobre
as novas tecnologias e sua influência nas ações didáticas. Consequen-
temente, abordamos os recursos multimodais como ferramentas pro-
dutivas na prática didática, uma vez que o advento da internet os deixa
disponíveis para acesso rápido e fácil. Em continuidade, falamos su-
cintamente sobre a questão metodológica e a estimulação dos estu-
dantes como sendo elementos necessários à produtividade das aulas.
Na primeira parte, trouxemos algumas considerações sobre a con-
tribuição da semiótica no desenvolvimento de métodos e técnicas di-
dático-pedagógicos para o desenvolvimento das competências da lei-
tura. À guisa de rememoração, discorremos sobre o que é iconicidade,
aproveitando para falar de índices, ícones e símbolos, bem como
exemplificá-los nos textos verbais e não verbais, com vista a demons-
trar sua aplicação.
Na segunda parte, apresentamos uma breve explanação dos funda-
mentos da multimodalidade segundo Kress e Van Leeuwen.
Na terceira parte, procuramos apresentar as vantagens do trabalho
com a iconicidade e com a multimodalidade no ensino da leitura e da

29
Darcilia Simões e Rosane Reis de Oliveira

produção textual, uma vez que a identificação de índices, ícones e sím-


bolos nos textos-córpus construirá o arcabouço a partir do qual será
não só produzida a compreensão e a interpretação dos textos, como
também será viabilizada a produção de textos a partir dos insumos ex-
traídos das leituras.
Finalizando, tecemos algumas considerações para arrematar o que
foi tratado no artigo.

PRELIMINARES

A discussão sobre metodologias facilitadoras do ensino de língua é


uma constante na preocupação de todo docente. Os sucessivos levan-
tamentos de dificuldades manifestadas pelos estudantes induzem-nos
à busca de novos métodos e técnicas que possam, além de estimular o
interesse pelo estudo dos conteúdos, fazer com que estes se mostrem
mais transparentes para absorção pelos alunos.
As novas tecnologias têm trazido contribuições relevantes para o
enriquecimento das aulas em geral e das aulas de língua em especial,
pois oferecem múltiplos recursos que permitem a ilustração das aulas
com material verbal e não verbal — imagens, áudio e vídeo —, fazendo
com que as aulas ganhem maior dinamicidade e, portanto, se tornem
mais atraentes. Não que façamos apologia de aulas-comédia, tam-
pouco entendemos que só se aprenda brincando, no entanto aulas to-
talmente secas — sem apelo aos mil e um recursos tecnológicos dispo-
níveis os quais permitem ilustrações bem-humoradas — já não funci-
onam tão bem, pois os estudantes vivenciam intensamente os ambi-
entes tecnológicos e são capazes de eles mesmos buscarem exemplário
útil para as aulas.
Em decorrência desse cenário, os recursos multimodais — objetos
(que, em última análise, são textos) produzidos em variadas lingua-
gens e meios — ganham cada vez mais relevância. Charges, memes,
tirinhas, histórias em quadrinho (HQ), vídeos e áudios estão disponí-
veis ao internauta e podem funcionar como excelentes recursos didá-
ticos, desde que usados com parcimônia e adequação. Há um sem-nú-
mero de publicações importantes sobre multimodalidade que podem
auxiliar os docentes no conhecimento e na consequente exploração de

30
Explorando a Iconicidade e a Multimodalidade no Estudo de Línguas

recursos multimodais como os já mencionados. Gunther Kress e


Stephen Van Leeuwen (1996, 2001 e 2010) assinam valiosas publica-
ções sobre o tema multimodalidade.
Como os objetos multimodais reúnem elementos construídos por
signos de diferentes linguagens e seus respectivos códigos, emerge, en-
tão, a necessidade de trabalhar-se a iconicidade, sobre a qual falamos
a seguir.

1. A CONTRIBUIÇÃO DA SEMIÓTICA E A ICONICIDADE

Sentimos necessidade de repetir um trecho de nosso livro Para


uma teoria da iconicidade verbal (SIMÕES, 2019), embora em
outras palavras, em função da importância do registro.
A indeterminação da linguagem decorre de uma característica fun-
damental do signo: este é um sinal, um traço que está no lugar de uma
outra coisa, a qual pode ser um objeto concreto ou um conceito abs-
trato. Segundo Derrida, poderíamos dizer que o signo não é uma pre-
sença, ou seja, a coisa ou o conceito não está presente no signo; é um
rastro. Essa ilusão é necessária para que o signo funcione como tal;
afinal, o signo está no lugar de alguma outra coisa e, embora na
plena presença do signo, o conceito de algo é definitivamente adiado.
Mas a natureza da linguagem é tal que não se pode deixar de ter a ilu-
são de ver o signo como uma presença, isto é, de ver, no signo, a pre-
sença da “coisa” ou do “conceito”, uma escritura que não seja depen-
dente de um algo presente, atual.
E é nesse raciocínio que podemos ampliar a nossa abordagem na
sala de aula para aceitar e conceber a grande contribuição da ciência
semiótica para a área do ensino de línguas, uma vez que, nas novas
formas de comunicação, amplia-se a investigação linguística para
além do texto verbal. A semiótica nos oferece suporte teórico signifi-
cativo para a compreensão das funções e efeitos dos signos nos textos
verbais, não verbais e multimodais.
No entanto, o docente que pretende adentrar nos campos da se-
miótica precisará entender muitos conceitos dessa ciência para expli-
car com certa firmeza e segurança como se lê um texto com base na
iconicidade, por exemplo. Assim, precisará saber, por exemplo, que o

31
Darcilia Simões e Rosane Reis de Oliveira

signo é algo que representa algo que ali não está. Isso implica pensar
sobre o que de fato ele representa, como representa, por que assim re-
presenta?
Para responder tais indagações, é necessário conhecer as catego-
rias sígnicas e suas relações com o mundo das coisas e com os sentidos
humanos, antenas captadoras de signos, as quais mandam mensagens
para o cérebro, onde, então, serão interpretados. O aparecimento da
multimodalidade exige a ampliação do trabalho didático-pedagógico
de preparação para a leitura, já que o texto complexo, ou multimodal,
congrega signos de diversa natureza e cada um aciona um órgão sen-
sorial específico para o trabalho de compressão e interpretação.
A presença de elementos verbais e não verbais, às vezes ao lado de
recursos de áudio, vídeo, imagens em movimento, exige do intérprete
(leitor, interlocutor) competências mais sofisticadas voltadas para a
percepção de forma, tamanho, posição, cor, som, textura etc.
Semioticistas já se ocuparam com criar tabelas de significação das
cores, por exemplo. Com auxílio da geometria, trabalham-se as for-
mas. A acústica oferece elementos para estudo dos sons. A cinética se
ocupa do estudo do movimento. E assim seguem as ciências conexas
ou campos semióticos diversos com que se interage na produção de
leitura de textos multimodais.
Em sendo a Semiótica a ciência da significação, é indispensável
considerar as instruções semióticas na produção de materiais de en-
sino de qualquer natureza, pois, em última análise, estudar implica
leitura, e esta demanda compreensão das funções e dos valores sígni-
cos inscritos nos textos.
Iniciamos nossos estudos sobre iconicidade trabalhando com livros
sem legenda (SIMÕES, 20091) como recurso para o processo de alfa-
betização de crianças que não se letravam pelos métodos usuais (pala-
vração, sentenciação etc.). Naquela pesquisa descobrimos que o tra-
çado das imagens conduzia o olhar dos alfabetizandos que tinham por
tarefa produzir as legendas para os livros.

1Tese o Livro de Legenda e a redação, defendida em 1994, sob a orientação


de Maria Helena Duarte Marques, na Universidade Federal do Rio de Janeiro.

32
Explorando a Iconicidade e a Multimodalidade no Estudo de Línguas

Aprendiam a grafar as palavras à medida que necessitavam usá-las


em seus pequenos textos. Não havia mediação oral; as palavras eram
tratadas como um desenho diferente para o objeto em foco.
Como o que nos interessa aqui é a iconicidade, cumpre lembrar que
quanto mais objetivos os traçados das imagens dos livros, mais pala-
vras eram trazidas ao quadro, onde eram “desenhadas” para que os
alunos as copiassem. Qual não foi nosso espanto quando os alunos co-
meçaram a depreender as letras e seus sons ao fazer associações com
outras palavras que continham ora a mesma inicial, ora a mesma sí-
laba. Exemplos: Palavras com inicial ou sílaba semelhante de bola —
bolo, bala, belo, bule etc. Nesse ponto, passamos a observar a iconici-
dade na escrita e na pronúncia, pois as associações se davam nos dois
níveis.
Cremos que já estão sentindo necessidade da definição de iconici-
dade. Ei-la: “Trata-se de uma propriedade semiótica fundada na plas-
ticidade — propriedade da matéria de adquirir formas sensíveis por
efeito de uma força exterior” (SIMÕES, 2017, p. 49).
A partir do sucesso dessa pesquisa (85 por cento dos alunos obti-
veram o letramento), decidimos avançar nos estudos da iconicidade
dos quais já temos muitas publicações e dos quais já decorreram di-
versas dissertações de mestrado e teses de doutorado orientadas por
Darcilia Simões no Programa de Pós-Graduação em Letras da Univer-
sidade do Estado do Rio de Janeiro.
Continuando as observações teóricas, entendemos que observar a
iconicidade em elementos plásticos (imagens) parecer ser um pro-
cesso menos complicado, todavia veja-se o seguinte excerto:

Tanto a enunciação quanto a coenunciação refletem mundos particu-


lares mediados (no caso do texto linguístico) pelo código verbal. Para
nós, a plasticidade textual é referência de iconicidade e pode funcionar
como base para a condução do intérprete à mensagem básica inscrita
no texto. A despeito da absoluta arbitrariedade apregoada pelos estru-
turalistas, as bases funcionalistas vêm fortalecendo passo a passo a
existência de iconicidade nas gramáticas das línguas, demonstrando a
existência de uma correlação um a um entre forma e interpretação se-
mântico-pragmática, pautada numa motivação funcional imanente aos
aspectos estruturais observados. (SIMÕES, 2019, p. 91)

33
Darcilia Simões e Rosane Reis de Oliveira

O que queremos indicar é que a iconicidade está presente em textos


verbais e não verbais: nestes, a sua depreensão é facilitada pela ima-
gem ou som ou qualquer outro signo não verbal, enquanto naqueles
são necessárias algumas habilidades linguísticas e pragmáticas espe-
cíficas para a identificação de índices, ícones e símbolos (categorias
sígnicas apuráveis na iconicidade).
Serão índices os elementos textuais que funcionam como pistas
para a descoberta de seu significado. No não verbal é fácil lembrar do
velho exemplo “onde há fumaça há fogo” em que a fumaça aparece
como elemento indicial de que algo está em chamas. Então, afirmamos
que a fumaça é signo indicial; no verbal, vários são os mecanismos que
servem de índices em que vão se ancorar alguns possíveis sentidos. O
mecanismo da dêixis é, por exemplo, produtor de índices por excelên-
cia, mas é necessário desenvolver uma competência leitora para que
os alunos entendam a funcionalidade da dêixis e a reconheçam como
índice do momento da enunciação, por meio da apropriação de classes
gramaticais específicas e, portanto, indiciais – pronomes pessoais e
demonstrativos, advérbios e formas temporais. A dêixis funciona
como um elemento de coesão referencial e indicial para fora do texto.
Ao reconhecê-la, o leitor precisa buscar, no repertório cognitivo, os
possíveis sentidos que podem ser atribuídos ao elemento referenciado.
As retomadas textuais anafóricas também são índices, pois apon-
tam para um outro lugar no texto e, por esse motivo, ajudam na ma-
nutenção temática e na sequenciação. Essas retomadas servem para
promover a continuidade do texto, interligar as partes, dando sequên-
cia ao texto, para que não se perca a unidade que vai garantir a boa
compreensão.
Para explicar melhor o papel desses índices, trazemos um exemplo
num trecho da obra “Antes de nascer o mundo” de Mia Couto:

Eu vivia num ermo habitado apenas por cinco homens. Meu pai dera
um nome ao lugarejo. Simplesmente chamado assim: “Jesusalém”.
Aquela era a terra onde Jesus haveria de se descrucificar. E pronto, fi-
nal. Meu velho, Silvestre Vitalício, nos explicara que o mundo termi-
nara e nós éramos os últimos sobreviventes.

34
Explorando a Iconicidade e a Multimodalidade no Estudo de Línguas

O romance citado é narrado em primeira pessoa. O narrador-per-


sonagem, Mwanito, relata momentos da família, quando saíram da ci-
dade e foram morar em um lugar deserto. Nas primeiras páginas, de
onde se retirou o trecho em destaque, já podemos perceber a relação
do narrador com a memória. Mwanito faz referências à cidade onde
viveu. A fim de direcionar a leitura, o enunciador faz referências ao
espaço da narrativa e ao espaço de narração, ao momento da enuncia-
ção e ao momento em que a história aconteceu com elementos dêiticos
e anafóricos. Com o pronome demonstrativo “aquela”, por exemplo,
que se refere à “terra onde Jesus haveria de se descrucificar”, o enun-
ciador retoma os vocábulos ermo, lugarejo e “Jesusalém”. Com o uso
do pronome demonstrativo “aquela”, então, o narrador se refere à
terra Jesusalém numa clara coesão anafórica, mas também nos dá a
entender que ele não vive mais lá, pelo uso do “aquela” como índice de
afastamento (uma clara demonstração de dêixis anafórica). Conclu-
indo, o pronome “aquela” é índice de Jesusalém, mas também de afas-
tamento.
Agora, passamos a discorrer sobre o ícone. Segundo Simões (2019,
p. 92 ) “Em palavras simples, o ícone é uma representação plástica,
modelar (por similaridade), de uma ideia ou ideologia”. Assim sendo,
recorremos a Ítalo Calvino, quando trata de nossa capacidade imagi-
nativa:

Podemos distinguir dois tipos de processos imaginativos: o que parte


da palavra para chegar à imagem visiva e o que parte da imagem visiva
para chegar à expressão verbal. O primeiro processo é o que ocorre
normalmente na leitura: lemos por exemplo a cena de um romance ou
a reportagem de um acontecimento num jornal, e conforme a maior ou
menor eficácia do texto somos levados a ver a cena, pelo menos frag-
mentos e detalhes que emergem do indistinto. (CALVINO, 1995, p. 99).

O autor de Seis propostas para o próximo milênio ensina que o


texto cinematográfico também passou por um texto escrito que é
“visto” mentalmente (imaginado) pelo diretor. A corporeidade do
filme é reconstruída num set e será, posteriormente, fixada em foto-
gramas de um filme. Os filmes são, pois, o resultado de uma sucessão
de etapas imateriais e materiais, em que as imagens tomam forma;

35
Darcilia Simões e Rosane Reis de Oliveira

nesse processo, o “cinema mental” da imaginação a que se refere Cal-


vino desempenha funções análogas e tão importantes quanto as da
produção de um filme, em que a câmera registra as sequências a serem
exibidas.
Esse é um processo altamente icônico. A plasticidade é inicial-
mente imaginada e, em seguida, transformada em imagens concretas
projetáveis; o filme.
Nosso cinema mental é um produtor de ícones por excelência, por
isso é possível representar seres existentes e fictícios, uma vez que, na
tela mental, eles são construídos. É interessante ressaltar que essa
construção pode ser materializada em textos verbais ou não verbais.
Por exemplo, na literatura, a iconicidade se constrói com palavras.
Simões (2019, p. 92) explica

Do ponto de vista da análise verbal, a iconicidade pode ser observada


não só no plano da estruturação gramatical, mas também num plano
maior, mais abrangente, da trama textual. É observável: a seleção vo-
cabular como representativa de usos e costumes diversos; a colocação
dos termos nos enunciados como imagem das opções de enfoque ou
das posições discursivas; a eleição do gênero e do tipo textual como
indicador da relevância dos itens temáticos e lexicais contemplados no
texto; a disposição do material textual na folha branca (gráfico ou do
design textual) etc. Também o projeto do texto, sua arquitetura visual
ou sonora, é material icônico a ser observado.

Quanto aos símbolos, estes são signos cujo significado é convenci-


onalmente construído. São signos sociais que não podem ser alterados
ao bel prazer dos usuários sob pena de não compreensão por parte do
interlocutor. Dentre os signos convencionais, a língua é um dos mais
importantes, se não o mais importante. Os significados linguísticos
são convencionados e precisam ser assim utilizados para garantia da
interação.
Veja-se o que diz o excerto: “o símbolo é uma manifestação sígnica
que generaliza uma apreensão-interpretação, transformando o signo
em referência ecossistêmica e, algumas vezes, pansistêmica (capaci-
dade de sobrepor-se a sistemas diversos)” (SIMÕES, 2019, p. 92).
Observemos as imagens a seguir:

36
Explorando a Iconicidade e a Multimodalidade no Estudo de Línguas

Figura 1 – Seleção das autoras

O desenho do sol, sozinho, não é símbolo, é ícone. Quando ele apa-


rece associado a outros ícones, podemos interpretá-lo como símbolo.
Na capa do livro Vidas Secas, de Graciliano Ramos, o sol é símbolo de
seca, de aridez, de pouca vida ou nenhuma. Ele é o causador da falta
de vegetação, do solo agreste e da consequente migração dos nordes-
tinos. Na foto ao lado da capa do livro, o sol tem simbologia completa-
mente antitética à imagem da capa, pois, associado à imagem da
planta em estado de broto, dos raios claros e do céu em tonalidades de
azul, ele representa a vida, o crescimento, a vegetação abundante e
verde; ele é a fonte de energia para a realização da fotossíntese. Nas
palavras de Eco,

O homem explica a complexidade da experiência por atividades sim-


bólicas, organizando-a em estruturas de conteúdo a que correspondem
sistemas de expressão. O simbólico não só permite ‘nomear’ a experi-
ência, mas também organizá-la e, portanto, constituí-la como tal, tor-
nando-a pensável e comunicável. (Eco, 1991, p.201)

Assim sendo, os símbolos são os signos mais frequentes da vida co-


tidiana, uma vez que a comunicação verbal, quer seja oral, quer seja
escrita, é a ferramenta básica de interação.
As três categorias sígnicas — índices, ícones e símbolos — partici-
pam dos textos em geral. Tanto os verbais quanto os não verbais, ou
ainda os multimodais, constroem-se mesclando tais categorias, para
que a mensagem pretendida seja transmitida com a maior eficiência
possível.

37
Darcilia Simões e Rosane Reis de Oliveira

A iconicidade, portanto, se constrói a partir das estratégias com


que os signos são atualizados nos textos. A sua eficiência na condução
do intérprete — o interlocutor — é comprovada quando este atinge a
compreensão da mensagem no menor tempo possível.
No texto verbal, a iconicidade se constitui a partir de: a) a melhor
escolha lexical e seu posicionamento estratégico; b) a estruturação sin-
tagmática; a diagramação do texto na página; c) o emprego de fontes
(caixa alta, maiúscula e minúsculas, itálico, negrito, sublinhado; tama-
nho, tipo) etc.
No texto não verbal, construído por imagens, gráficos, tabelas etc.
a posição dos elementos deve ser também estratégica para poder fun-
cionar como elemento-guia — o icônico — para os olhos do leitor, con-
duzindo-o na direção da mensagem básica. Cores, tamanhos e posi-
ções também são traços relevantes no texto não verbal. Vejamos esse
conceito na prática de leitura da charge seguinte:

Figura 2 – De Golpes Digitais

38
Explorando a Iconicidade e a Multimodalidade no Estudo de Línguas

O título da charge já nos antecipa uma leitura possível, a de que


alguém está sofrendo uma ação criminal: um golpe. No desenho, a
imagem do aplicativo de conversa WhatsApp já demonstra o que o
personagem estava fazendo com o celular na mão. O desenho no balão
é o símbolo do aplicativo. Na segunda parte do desenho, o símbolo
aparece com um braço e uma mão, roubando o relógio do personagem,
o que indica o golpe. O golpe, portanto, foi realizado por meio digital,
no aplicativo em referência. Numa segunda leitura, podemos entender
uma metáfora bastante curiosa: o maior golpe que sofremos é o roubo
do tempo que despendemos com esse aplicativo. O que simboliza esse
“roubo”? A mãozinha do aplicativo afanando o relógio, símbolo do
tempo. Então, o desenho do aplicativo é símbolo e o roubo do relógio
(ícone do tempo) é índice da perda de tempo. A iconicidade da charge
se constituiu com as estratégias imagéticas por denotação, mas tam-
bém por conotação, o famoso sentido figurado.
Em um primeiro momento, pode parecer que falar de iconicidade
seja algo um tanto extravagante. Todavia, é importante lembrar que
lidamos com ela o tempo todo. Em situações como aguardar atendi-
mento no consultório médico, na agência bancária, no caixa de super-
mercado etc., demanda escolhas pautadas na iconicidade, por exem-
plo, no tamanho de filas, no número de pessoas na sala de espera do
consultório. Viajar num ônibus ou lancha exige escolha de embarcar
ou não devido à lotação correta ou excesso desta. Preços estampados
em produtos ou omitidos orientam nossas escolhas. Esses são dados
icônicos que norteiam nossas decisões. Portanto, elementos icônicos
atravessam nosso cotidiano e carecem de nossa atenção.
Nos processos de leitura não é diferente. É preciso treinar a atenção
para que esta seja direcionada para elementos que funcionam como
índices ou ícones (já que os demais são símbolos), a fim de elaborar
uma trilha mental para a leitura.
Ilustrando:

O Homem Nu

Ao acordar, disse para a mulher: — Escuta, minha filha: hoje é dia


de pagar a prestação da televisão, vem aí o sujeito com a conta,
na certa. Mas acontece que ontem eu não trouxe dinheiro da cidade,
estou a nenhum.

39
Darcilia Simões e Rosane Reis de Oliveira

— Explique isso ao homem — ponderou a mulher.


— Não gosto dessas coisas. Dá um ar de vigarice, gosto de cum-
prir rigorosamente as minhas obrigações. Escuta: quando ele vier a
gente fica quieto aqui dentro, não faz barulho, para ele pensar que
não tem ninguém. Deixa ele bater até cansar — amanhã eu pago.
(.......) Fernando Sabino [Grifamos]

Os grifos indicam os elementos que conduzem a leitura. Servem de


âncoras do conteúdo. Âncoras textuais são palavras ou expressões ati-
vadas nos textos, as quais atuam como elementos que garantem uma
estruturação temática e auxiliam na progressão das ideias do texto. É
da identificação das âncoras textuais que se pode inferir a alta ou baixa
iconicidade de um texto (SIMÕES, 2019, p. 117).
Outro exemplo:

Figura 3 – Tirinha Dona Anésia

Em se tratando de um texto complexo — constituído de mais de um


código: verbal e não verbal — cumpre observar que, nos quadros 2, 3
e 4, o elemento verbal não é bastante, a iconicidade se realiza no qua-
dro 4, onde aparecem os nove ventiladores, cujo núcleo informativo
estava ausente nos quadros 2 e 3.
Segundo a semiótica social, a língua faz parte de um contexto soci-
ocultural no qual a cultura é produto de um processo de construção
social. Assim sendo, nenhuma modalidade de linguagem pode ser es-
tudada de maneira isolada. A língua — falada ou escrita — não pode
ser entendida senão articulada a outros modos de representação que
participam da composição de um texto. Portanto, os textos, em geral,
são construtos multimodais, e a escrita é apenas uma de suas formas.
Disso decorre que o ato de ler não deve se centralizar apenas no que

40
Explorando a Iconicidade e a Multimodalidade no Estudo de Línguas

está escrito, já que a escrita se constitui como um elemento represen-


tacional que coexiste com a presença de imagens e de diferentes tipos
de informação.
Dionísio (2007) define o texto multimodal como um processo de
construção textual ancorado na mobilização de distintos modos de re-
presentação. Isso remete não apenas aos textos escritos, mas também
aos orais. Diante dessa acepção, a multimodalidade discursiva abarca
não só a linguagem verbal escrita, como também outros registros, tais
como a linguagem oral e a gestual. Na fala da referida autora, “palavras
e gestos, palavras e entonações, palavras e imagens, palavras e tipo-
grafia, palavras e sorrisos, palavras e animações etc.” percebe-se, cla-
ramente, que ela entende a multimodalidade discursiva como um
traço constitutivo de todos os gêneros textuais escritos e orais (p. 178)
Os arcabouços teóricos de Nascimento et al. (2012, p. 530) defen-
dem que nenhum texto é monomodal e/ ou monossemiótico. Pelo con-
trário, todo texto é multimodal e multissemiótico. Há textos que são
materializados unicamente através da escrita. Ainda assim, esses tex-
tos trazem consigo marcas e traços multimodais: cores e fontes dife-
renciadas em um mesmo texto, o tamanho da fonte, o itálico, o negrito,
o sublinhado etc.
Os autores de “Multiletramentos: iniciação à análise de imagens”
ainda acrescentam que

Em um mundo cada vez mais interconectado, passamos a interagir em


uma gama mais ampla de práticas textuais (por exemplo, vídeos podem
ser editados e postados na Internet, documentos podem ser enviados
em intervalos de segundos ou compartilhados simultaneamente). So-
mos também assediados por novos gêneros textuais (por exemplo,
blogs, anúncios pop-up3 e mensagens de incentivo em Powerpoint) e
dispomos de recursos tecnológicos que nos permitem optar mais facil-
mente4 entre modos de significar (por exemplo, postar uma foto de
uma cena ao invés de descrevê-la verbalmente). (2011, p. 532).

Para dar corpo ao que descrevemos, trazemos um breve exemplo


de uma das páginas do livro A grande fábrica de palavras, das autoras
francesas Agnès de Lestrade e Valeria Docampo.

41
Darcilia Simões e Rosane Reis de Oliveira

Figura 4 – A grande fábrica de palavras

O livro narra a história de dois adolescentes que moram numa ci-


dade onde se fabricam as palavras. Somente as pessoas ricas podem
comprar palavras para usar, já que são muito caras. Philéas, o garoto
que protagoniza a narrativa, é pobre, logo não pode comprar palavras.
Limita-se, como todos os outros pobres, a pegar palavras ao vento e
guardá-las para usar em ocasiões especiais. Assim, nesse trecho, ve-
mos que ele pegou três palavras em sua rede e queria dá-las para
Cybelle, por quem é apaixonado. Como não tem dinheiro para com-
prar “eu te amo”, oferece apenas as palavras que encontrou. Vejamos
como são apresentadas as palavras “Philéas”, “alguém muito especial”,
“está apaixonado”, “cereja, poeira e cadeira”. Todas essas palavras es-
tão grafadas com letras bem maiores que as demais. Philéas é o perso-
nagem principal da narrativa, logo vem com letras maiores. Como ele
vai dar as palavras para Cybelle, o termo “alguém muito especial” apa-
rece maior, para dar ao leitor a compreensão de que a menina tinha
mais importância que todo o dinheiro que ele poderia ter para com-
prar as palavras certas, afinal “está apaixonado” também adquire
maior importância na história. As únicas palavras que ele tinha tam-
bém aparecem com letras maiores, porque adquirem, na história, uma
importância de promessa de casamento, como se fossem a comida, o
lar e tudo o que possa pousar sobre eles.

42
Explorando a Iconicidade e a Multimodalidade no Estudo de Línguas

Fica aqui nossa indicação de leitura, porque o livro em questão é


uma obra exemplar de leitura multimodal, trazendo diversas possibi-
lidades de leituras em modos semióticos.
Em Reading images, Kress & Van Leeuwen (1996), temos que:
1. Um número variado de modos semióticos está sempre envolvido
em uma determinada produção textual ou leitura, pois todos os signos
são multimodais ou signos complexos, existindo num número de mo-
dos semióticos diferentes;
2. Cada modo tem sua representação específica, produzida cultu-
ralmente, além de seu potencial comunicacional;
3. É necessário um entendimento sobre como ler estes textos.
Assim sendo, Nascimento et all defendem a necessidade de prepa-
ração para o multiletramento, de modo a ser possível o enfrentamento
dos textos em geral com olhos na multimodalidade, isto é, em todos os
seus compósitos. Afinal, tudo significa.
Constata-se, então, que levar em conta a iconicidade dos compo-
nentes de um texto tem relevância no processo de aprendizagem da
leitura. Por isso, habilidades novas precisam ser desenvolvidas, e a ico-
nicidade é um caminho de aquisição/desenvolvimento das estratégias
de leitura.
No texto multimodal propriamente dito — que contém o verbal e o
não verbal ao mesmo tempo, como recursos de áudio, vídeo, imagens
em movimento — a iconicidade se constrói de forma mais complexa,
uma vez que ela implica a combinação de formas, cores, tamanhos,
sons, ritmos, andamento etc., tudo devidamente articulado para que
seja, de fato, comunicante.

2. BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A MULTIMODALIDADE.

Assim Gunther Kress (2011, p. 38) define multimodalidade:

‘Multimodalidade’ nomeia o campo em que o trabalho semiótico


ocorre, um domínio para investigação, uma descrição do espaço e dos
recursos que ganham significado de uma forma ou de outra (ver tam-
bém Jewitt, 2009). Na perspectiva de diferentes teorias e abordagens
– psicologia, estudos de mídia, pedagogia, estudos de museu, arqueo-
logia, sociologia de diferentes tipos – constituídos de forma diferente
questões conduzem a distintas ferramentas teóricas e metodológicas,

43
Darcilia Simões e Rosane Reis de Oliveira

elaboradas para as necessidades de cada caso. Conforme mencionado,


a abordagem teórica apresentada aqui é a de uma teoria do significado
e comunicação, semiótica social, de modo que as ferramentas desen-
volvidas são moldadas por essa teoria2. (Tradução nossa)

A multimodalidade geralmente envolve combinações de fala, ges-


tos, texto, processamento de imagem e não só. Contém sempre duas
ou mais modalidades de comunicação. Os textos multimodais são os
chamados textos complexos, porque trazem, em si, signos de mais de
uma natureza. São, assim, construções híbridas que merecem trata-
mento especial, embora não sejam estranhas ao estudante contempo-
râneo que convive diuturnamente com os aparatos de comunicação di-
gital.
A multimodalidade e a semiótica social, juntas, permitem questio-
nar (1) o significado e a construção de significado; (2) a agência dos
criadores de significado, a constituição da identidade em signos e cri-
ação de significado; (3) as restrições (sociais) que enfrentam para fazer
sentido; (4) o entorno da semiose social e do conhecimento; (5) o
modo como o "conhecimento" é produzido, moldado e constituído dis-
tintamente em diferentes modos e por quem. A multimodalidade in-
clui questões em torno dos potenciais — as possibilidades — dos re-
cursos que estão disponíveis em qualquer sociedade para a construção
de significado e, portanto, como o 'Conhecimento' aparece de forma
diferente em modos diferentes.
Reconhecer a parcialidade da linguagem implica que todos os mo-
dos em um conjunto multimodal sejam tratados como contribuintes
do significado desse conjunto; a linguagem é sempre um portador par-
cial do significado de um todo textual / semiótico. Esse conjunto pro-

2 Texto original: ‘Multimodality’ names the field in which semiotic work takes
place, a domain for enquiry, a description of the space and of the resources
that enter into meaning in some way or another (see also Jewitt, 2009). In the
perspectives of different theories and approaches – psychology, media studies,
pedagogy, museum studies, archeology, sociology of different kinds – diffe-
rently constituted questions lead to distinct theoretical and methodological
tools, elaborated for the needs of each case. As mentioned, the theoretical ap-
proach presented here is that of a theory of meaning and communication, so-
cial semiotics, so the tools developed are shaped by that theory.

44
Explorando a Iconicidade e a Multimodalidade no Estudo de Línguas

blematiza a noção de "linguagem" de duas maneiras: primeiro, no con-


texto da multimodalidade, a linguagem não pode mais ser tratada
como uma explicação completa do significado, mas vista como apenas
fornecedora de uma cota parcial na produção da semiose.
Uma análise multimodal consiste em considerar a relação entre os
diferentes códigos semióticos (visuais, escritos, sonoros etc.) para a
produção/compreensão do sentido de um texto.

A análise multimodal deve trabalhar com conceitos e métodos que não


são específicos à língua, ou a nenhum outro modo, mas que podem ser
aplicados relacionando-se os diferentes modos. Tais conceitos deverão
necessariamente centrar-se nas funções comunicativas que podem ser
realizadas por vários ou todos os modos semióticos. (VAN LEEUWEN,
2005, p. 15)

Os recursos visuais e sonoros que acompanham o linguístico na ati-


vidade de fala são retextualizados na escrita, como acontece, por
exemplo, nos textos escritos de peças teatrais e roteiros de filmes.
Ao concebermos os gêneros textuais como multimodais, não atre-
lamos os aspectos visuais meramente a fotografias, telas de pinturas,
desenhos ou caricaturas, mas também à própria disposição gráfica do
texto no papel ou na tela de computador: os parágrafos, as margens,
os itens, o itálico, o negrito, o título, a pontuação etc.
O estudo da multimodalidade implica, por conseguinte, uma refle-
xão sobre certas questões fundamentais como a relação imagem/texto
e como os significados são produzidos, distribuídos, recebidos, inter-
pretados e criados na interpretação por meio dos modos representaci-
onais e comunicacionais (JEWITT, 2009).
De acordo com Holanda (2011, p. 130-131)

Kress e Van Leeuwen (op. cit.) referenciados pelos conceitos da GSF de


Halliday (1994) adaptaram e ampliam as funções hallidayana: a pri-
meira ideacional (representa o que está em nossa volta, como também
o sistema de crenças e conhecimento) a segunda, a interpessoal, (apre-
senta as interações sociais entre os participantes do discurso) e a ter-
ceira, a textual (revela a composição do todo, a maneira como os ele-
mentos interativos e representacionais se relacionam e como eles se
integram para construir significados, e para caracterizar as funções que
os diferentes modos semióticos realizam, liga as partes do texto num

45
Darcilia Simões e Rosane Reis de Oliveira

todo coerente, constituindo e ligando este texto a contextos situacio-


nais), que descreve como a linguagem visual representa experiência, se
relaciona com o observador e estabelece e se organiza como estrutura
visual). Os teóricos argumentam ainda que tanto os recursos semióti-
cos visuais, como os verbais, servem aos propósitos comunicacionais e
representacionais.

A Gramática do Design Visual (GVD) de Kress e Van Leeuwen toma


por base a Linguística Sistêmico-Funcional de Halliday e parte do
pressuposto de que, da mesma forma que a linguagem verbal, a visual
é dotada de uma sintaxe própria, na qual elementos se organizam em
estruturas visuais, para se descreverem todos os significados veicula-
dos textualmente.
Kress & Van Leeuwen (2001, p. 1) apontam, mais recentemente,
que a dominância da monomodalidade começa a ser revertida. Não
apenas a comunicação de massa, as páginas de revistas e as histórias
em quadrinhos, por exemplo, mas também documentos produzidos
por corporações, universidades, departamentos do governo etc. têm
adquirido ilustrações coloridas e de layout e tipografia sofisticados;
não apenas o cinema e as performances exuberantes semioticamente
e vídeos de música popular, mas também a vanguarda das artes da alta
cultura começaram a usar uma crescente variedade de materiais, cru-
zando os limites entre as várias disciplinas de arte, design e perfor-
mance, na direção multimodal de obras de arte em geral, eventos mul-
timídia etc.
Kress e Leeuwen (2006), na teoria semiótica funcional das ima-
gens, utilizam uma organização metafuncional para realizar seus sig-
nificados, cujas funções são análogas às metafunções propostas por
Halliday (1985; 1994).
A metafunção representacional — análoga à metafunção ideacio-
nal na linguagem que ocorre na transitividade; em Kress e Leeuwen
(2006), essa metafunção aponta para as estruturas que constroem vi-
sualmente a natureza dos eventos, objetos e participantes envolvidos,
e as circunstâncias em que ocorrem.
A metafunção interativa — análoga à metafunção interpessoal de
Halliday — é responsável pela relação entre participantes; Kress e
Leeuwen (2000) contemplam recursos visuais que constroem as rela-
ções de quem vê e o que é visto, envolvem participantes representados

46
Explorando a Iconicidade e a Multimodalidade no Estudo de Línguas

(as pessoas, os lugares e as coisas representados em imagens) e parti-


cipantes interativos (as pessoas que se comunicam por meio de ima-
gens, produtores e espectadores de imagens).

Os participantes interativos são, portanto, pessoas reais que produzem


e entendem as imagens no contexto de instituições sociais que, em di-
ferentes graus e de diferentes formas, regulam o que pode ser ‘dito’ com
imagens, como deve ser dito e como deve ser interpretado. (KRESS e
LEEUWEN, 2006, p. 114, tradução nossa) 3

Nessa metafunção, a linguagem é percebida como instrumento de


interação com os outros, para estabelecer e manter relações com as
pessoas. Dessa forma, ao utilizar a linguagem, atuamos sobre o outro,
influenciando-o e sendo influenciados. Nessa metafunção, a articula-
ção e compreensão dos significados sociais nas imagens derivam da
articulação visual dos significados sociais na interação face a face, das
posições espaciais associadas a diferentes tipos de atores sociais em
interação (estejam eles sentados ou de pé, lado a lado ou de frente uns
aos outros, etc.)
De acordo com a GDV, as representações de interação podem ocor-
rer por meio dos seguintes mecanismos:

– olhar: quando os participantes representados olham para o


espectador, os vetores, formados pelas linhas dos olhos dos
participantes, conectam os participantes com o espectador. O olhar
pode ser de demanda (o participante olha diretamente para o
leitor) ou oferta (o participante olha para o leitor de maneira
indireta).
– enquadramento/distância entre os participantes interativos e os
participantes representados. As distâncias que as pessoas mantêm
dependem de suas relações sociais: proximidade para pessoas mais
íntimas ou distanciamento para estranhas.

3Texto original: “Interactive participants are therefore real people who pro-
duce and make sense of images in the context of social institutions which, to
different degrees and in different ways, regulate what may be ‘said’ with ima-
ges, how it should be said, and how it should be interpreted”.

47
Darcilia Simões e Rosane Reis de Oliveira

– perspectiva: demonstrada a partir da escolha do ângulo ou ponto


de vista a partir do qual os participantes representados são
retratados: ângulo frontal, oblíquo e vertical.
– modalidade: o termo modalidade vem da linguística e refere-se
ao valor de verdade ou credibilidade das declarações (realizadas
linguisticamente) sobre o mundo, ou seja, se as imagens e o
conteúdo são verdadeiros, efetivos, reais, ou são incoerentes ou
ficcionais. A modalidade é observada a partir de quatro dimensões:
naturalística, abstrata, tecnológica e sensorial.

A metafunção composicional — análoga à metafunção textual da


linguagem segundo Halliday — é responsável pela estrutura e formato
do texto. Kress e Leeuwen (2006) estabelecem uma relação entre os
elementos constituintes da imagem, fazendo com que a imagem pro-
duza sentido. Os autores da GDV (2006, p.176) se referem à composi-
ção assim: “existe um terceiro elemento: a composição do todo, a ma-
neira em que os elementos representacional e interativo são feitos para
se relacionar uns com os outros, a forma como eles são integrados em
um todo significativo”4, [tradução nossa]. Essa metafunção refere-se
aos significados obtidos por meio da “distribuição do valor da infor-
mação ou ênfase relativa entre os elementos da imagem”.
Segundo Oliveira (2020, p.10),

A composição relaciona os significados representacionais e interativos


da imagem entre si através de três sistemas inter-relacionados:

– valor da informação: a colocação de elementos (participantes e sin-


tagmas que os relacionam entre si e ao espectador) lhes dá os informa-
tivos específicos. Valores anexados às várias 'zonas' da imagem: es-
querda e direita, superior e inferior, centro e margem.
– saliência: os elementos (participantes, representacionais e interati-
vos sintagmas) são feitos para atrair a atenção do espectador para di-
ferentes graus, como percebido por fatores como colocação em pri-
meiro ou segundo plano, tamanho relativo, contrastes em valor tonal
(ou cor), diferenças em nitidez etc.

4 Texto original: “There is a third element: the composition of the whole, the
way in which the representational and interactive elements are made to relate
to each other, the way they are integrated into a meaningful whole.”

48
Explorando a Iconicidade e a Multimodalidade no Estudo de Línguas

– enquadramento: a presença ou ausência de dispositivos de enqua-


dramento (percebidos por elementos que criam linhas divisórias ou
por linhas de quadro reais) desconecta ou conecta elementos da ima-
gem, significando que eles juntos compõem ou não compõem algum
sentido.
A GDV aborda aspectos do texto quanto à interação, representação e
composição, e desse modo, relaciona esses elementos de forma inte-
grada visando a um todo significativo. De tal modo, fornece um arca-
bouço de instrumentos capazes de possibilitar a realização de leituras
menos superficiais.

Estabelecendo um diálogo entre multimodalidade e iconicidade,


teremos que reeducar o olhar sobre os textos de modo que nos seja
possível identificar, por exemplo, figura/fundo (conceito desenvolvido
pela Psicologia da Forma, também conhecida como Gestalt Theory), a
partir da qual se orienta a percepção do que se mostra como principal
numa comunicação e do que funciona apenas como moldura, cenário.
Percepção figura-fundo refere-se à tendência do sistema visual
para simplificar uma cena com um objeto principal que nós estamos
olhando (a figura) e tudo o que forma o fundo. O conceito de percep-
ção figura-fundo é, muitas vezes, ilustrado com a clássica ilusão de “fa-
ces ou vasos” , também conhecida como o vaso de Rubin.
A ilustração a seguir vem demonstrar que, de acordo com a abor-
dagem da Gestalt, o todo é mais (ou diferente) do que a soma de suas
partes. O termo Gestalt vem da palavra alemã que significa “forma”.

Figura 5– O vaso de Rubin5

5 O vaso de Rubin, a mais clássica das figuras ambíguas estudadas pela psico-
logia.

49
Darcilia Simões e Rosane Reis de Oliveira

Nessa figura, destaca-se, em branco, o desenho de um vaso. Entre-


tanto, tal vaso é emoldurado por duas faces simétricas que, num pri-
meiro momento, não são percebidas, pois atuam apenas como fundo
para a imagem do vaso. Num primeiro olhar, o contorno do vaso ori-
enta uma percepção geral, uma vez que todo vaso tem um contorno.
Todavia, se tal imagem for inserida num contexto em que se indague
quantos perfis aparecem nesta figura, possivelmente o vaso perderá o
destaque tornando-se fundo, enquanto as faces passarão à condição
de figura. Assim sendo, verifica-se que tudo depende do enfoque.
Essa teoria da percepção propõe que as pessoas captam sentido do
mundo à sua volta, vendo elementos separados e distintos e combi-
nando-os em um todo unificado. Por exemplo, se você olhar formas
desenhadas em um pedaço de papel, sua mente provavelmente irá
agrupar as formas em termos como semelhança ou proximidade. Isso
ocorre quando nos deparamos com um texto qualquer. Num primeiro
momento, aprecia-se o conjunto. No entanto, para organizar a com-
preensão da mensagem, faz-se necessário ordenar os componentes
textuais em principais (figura) e secundários (fundo). Para realizar
essa operação, a iconicidade dos componentes textuais é algo rele-
vante, pois será ela que os vai organizar em principais e secundários.
Ilustrando:

Na hora de transmitir uma ideia graficamente, um dos motivos (não o


único) pela escolha de um ícone e não por uma palavra é a velocidade
de leitura e interpretação. Uma exigência que, em condições extremas
de tempo e de distância, não tem como não ser aceita. Nesses casos, a
identificação do signo e seu significado tem de ser imediato e muito
mais rápido que a leitura de uma palavra ou frase.
(.............)
Mas esta exigência de velocidade na leitura e interpretação do signo
não se limita a estes sinais puramente funcionais. É também uma vir-
tude da iconização de mensagens com funções mais complexas. É o
caso daqueles cartazes nos quais se recorre a um ícone para aludir-ilus-
trar o conceito a ser transmitido.
O design de um cartaz que – por exemplo -, para anunciar a represen-
tação de uma ópera inclua uma imagem, deve descobrir o ícone exato,
aquele que evoque imediatamente à obra e provoque a sensação de sua
proximidade, eminência e valor cultural e, ademais, sugira a hierarquia
artística proposta. (Norberto Chaves)

50
Explorando a Iconicidade e a Multimodalidade no Estudo de Línguas

Na identificação dos ícones, cumpre observar o quanto determina-


dos signos funcionam na ancoragem do significado do texto em aná-
lise.
Vamos ao exemplo de Norberto Chaves.

Figura 6: Cartaz polonês para o filme Cabaret, dirigido por Bob Fosse (1972).

Chaves, ao mesmo tempo, como homenagem ao seu autor e ao cé-


lebre filme de Bob Fosse, escolheu o cartaz que contém uma síntese
perfeita de cabaré e nazismo, pintura de uma época. Observem-se os
elementos icônicos que são o letreiro KABARET e a representação da
suástica pelas pernas das cocotes.
Passando ao texto verbal, temos:

O Pardalzinho (Manuel Bandeira)

O pardalzinho nasceu
Livre. Quebraram-lhe a asa.
Sacha lhe deu uma casa,
Água, comida e carinhos.
Foram cuidados em vão:
A casa era uma prisão,

51
Darcilia Simões e Rosane Reis de Oliveira

O pardalzinho morreu.
O corpo Sacha enterrou
No jardim; a alma, essa voou
Para o céu dos passarinhos!

É magistral a estratégia poética de Bandeira nesse poema. Logo no


primeiro verso, o predicativo do sujeito — Livre — é deslocado para o
segundo verso, mostrando, assim, que, mal nasceu, o passarinho per-
deu a liberdade já que está no mesmo verso da ação de que resultou a
perda da liberdade: quebraram-lhe a asa.
Outro dado muito relevante é o verso “O pardalzinho morreu”.
Nele, a noção de morte acompanha o pardalzinho, porque dele não se
separa em outro verso como a liberdade no início do poema.
Também é interessante a iconicidade dos pronomes. Logo ao nas-
cer, o pardalzinho perde a identidade e é representado pelo pronome
lhe, sendo adjunto adnominal em “quebraram-lhe a asa” e objeto in-
direto em “Sacha lhe deu comida”. Ainda mais, como adjunto de asa,
o pardal ainda está no mesmo sintagma do que representaria a liber-
dade, mas tem parte de sua identidade roubada já que a asa estava
quebrada; como objeto indireto, é alvo da ação de Sacha, que lhe dá
uma casa, índice da falta de liberdade para voar. Sua identidade só é
reconstituída na morte — “O pardalzinho morreu” — quando recupera
o signo que o nomeia e, por ideologia, a liberdade, pois já não está mais
preso ao corpo.
Outros comentários podem ser feitos, porém, para o momento, cre-
mos serem estes bastantes.
Essa percepção é de grande importância quando são explorados
textos multimodais. A abundância de dados exige o refinamento do
olhar para que sejam distinguidos os elementos principais e aqueles
que apenas os emolduram.
Exemplificando:

Conto em Letras Garrafais (Marina Colasanti)

Todos os dias esvaziava uma garrafa, colocava dentro sua mensagem,


e a entregava ao mar.
Nunca recebeu resposta.
Mas tornou-se alcoólatra.

52
Explorando a Iconicidade e a Multimodalidade no Estudo de Línguas

A autora prepara duas boas armadilhas para o leitor. Uma suposta


iconicidade gerada pela proximidade das palavras garrafa e dentro
leva aquele a supor que se trata da velha história da mensagem dos
náufragos, em garrafas. No entanto, o fato de nunca receber resposta
e tornar-se alcoólatra muda o rumo da compreensão, pois a palavra
dentro da garrafa vazia não mais se refere a ao mero bilhete no vazio,
senão em beber sucessiva e sistematicamente para esvaziar a garrafa
até perder o controle sobre si. Nesse caso, a conjunção mas representa,
iconicamente, a quebra da expectativa.
Outra armadilha está no título que nos remete ao tipo de letra —
garrafais6 — que seria usada, criando uma expectativa do tamanho da
fonte do conto. Essa expectativa também é quebrada uma vez que as
letras não estão com o formato indicado no título, mas representam as
letras dos bilhetes de dentro das garrafas, ou seja, letras garrafais
como se fosse a substituição da locução “das garrafas”. Um excelente
jogo de palavras.
Assim sendo, os signos garrafais, garrafa e dentro são desorienta-
dores, enquanto a ausência de resposta e o tornar-se alcoólatra são
orientadores para a decifração da mensagem.
Vamos a outro exemplo interessante (figura 7).
Nessa peça publicitária da empresa Hortifruti da série Filmes, vê-
se o aproveitamento icônico da semelhança fônica com o título do
filme Edward mãos de tesoura, esta substituída pela palavra cenoura.
Contudo, a iconicidade dos brotos da cenoura recuperam a imagem da
tesoura, compondo, assim, a intertextualidade com a produção cine-
matográfica.

6 A expressão “letras garrafais” designa, em gíria jornalística, os caracteres ti-


pográficos a partir do corpo 72, usados em títulos de notícias. A imprensa sen-
sacionalista recorre a essas letras com frequência, para induzir no leitor uma
ideia de importância das notícias e das reportagens.

53
Darcilia Simões e Rosane Reis de Oliveira

Figura 7 – HortiFruti e os filmes

Figura 8 – HortiFruti e as músicas

A mesma empresa de hortigranjeiros lançou uma campanha pau-


tada em Músicas. A peça escolhida para exemplo da iconicidade na
multimodalidade é o aproveitamento da cadência contida na palavra
morango, a qual é associável à expressão te amo, contida na letra da

54
Explorando a Iconicidade e a Multimodalidade no Estudo de Línguas

música de Zeca Pagodinho. Morango e te amo são sequências sonoras


paroxítonas, além da identidade da vogal da sílaba final [o].
Cremos que os exemplos dados possam ilustrar a exploração da
iconicidade e da multimodalidade, uma vez que operam com signos de
mais de uma natureza:
a) design gráfico em “Kabaret”
b) estruturação sintática em “O pardalzinho”
c) seleção lexical em “Conto em letras garrafais”
d) semelhança na estrutura fonológica na repetição das vogais em
“Edward mãos de cenoura”
e) semelhança na acentuação tônica dos sintagmas morando e te
amo, em “Descobri que morango é demais”.

São exemplos fáceis de ser encontrados e contemplam gêneros va-


riados como o cartaz de propaganda, o poema, o miniconto, as peças
publicitárias etc.
Passamos, então, à finalização.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com a meta de arrematar o que foi desenvolvido no artigo, chama-


mos a atenção dos leitores para a relevância das categorias semióticas,
em especial os tipos sígnicos, a iconicidade e a multimodalidade.
Tais categorias povoam os espaços da comunicação contemporâ-
nea, uma vez que o texto verbal não mais ocupa o espaço privilegiado
da leitura e da escrita. Hoje, sentimos necessidade de articular as in-
formações verbais a outras correlatas não verbais. Além disso, passa-
mos a observar a constituição não verbal dos textos escritos no que
tange a sua diagramação na folha em branco. Quando a professora das
primeiras letras mandava: a) deixar um espaço de um dedo antes de
começar o parágrafo, b) centralizar o título do texto, c) mudar de linha
ao final do parágrafo etc., já estava se ocupando da iconicidade textual,
pois cada função das formas do texto é indicador de como deve ser lido
e compreendido.
Assim sendo, iconicidade e multimodalidade são duas categorias
que se entrelaçam na produção textual. A princípio, surgem como duas

55
Darcilia Simões e Rosane Reis de Oliveira

novas nomenclaturas que, por sua vez, trazem núcleos teóricos a des-
fraldar. Todavia, nos dois casos, muito da teoria já é subliminarmente
conhecido, o que nos falta é organizar o conhecimento para dele tirar
melhor proveito.
Retomando de Simões (2019, p.45)

Segundo Peirce, o mundo é indiscutivelmente um compósito de signos


de variada natureza. Tem-se, então, que tal configuração sígnica faria
do mundo um grande texto, e que cada porção de imagem (qualquer
imagem) permitiria uma decifração de base hermenêutica correspon-
dente à atividade restritamente definida como leitura (cf. iconicidade
textual imagética, NÖTH, 1995: 47).
(.........)
O ícone, signo de primeiridade, é aquele que, a princípio, esboça uma
imagem que subsidia a produção de significados. Em palavras simples,
o ícone é uma representação plástica, modelar (por similaridade), de
uma ideia ou ideologia.

Daí que a iconicidade é, grosso modo, a representação plástica de


uma ideia, ou de, pelo menos, uma pista da ideia.
Como o texto multimodal se constitui de signos de diversa natu-
reza, a iconicidade se distribui por entre tais signos, podendo, assim,
estar numa figura, numa posição, numa cor, numa forma etc.
Assim sendo, iconicidade e multimodalidade são, na atualidade,
dois conteúdos indispensáveis nas aulas de produção de leitura e com-
preensão de textos.

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verbal., s/d. Disponível em: <https://foroalfa.org/pt/artigos/ico-
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56
Explorando a Iconicidade e a Multimodalidade no Estudo de Línguas

COLASANTI, M. Conto em letras garrafais. In: COLASANTI, M. Con-


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Darcilia Simões e Rosane Reis de Oliveira

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SIMÕES, D. Semiótica & ensino: letramento pela imagem. Rio de
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SIMÕES, D. Para uma teoria da iconicidade verbal. Campinas:
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VAN LEEWEN, T. Introducing social semiotics. Oxon & New
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OUTRAS FONTES

Figura 1 – Seleção feita pelas autoras.


Figura 2 – https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/opi-
niao/charges/charge-golpes-digitais-1.2206719?hcb=1 Acesso em
06.março.2021
Figura 4 – In LESTRADE, A. & DOCAMPO, V. A grande fábrica de
palavras. Belo Horizonte: Aletria Editora, 2010. P. 15
Figura 3 – https://cervejasenerdices.files.wordpress.com/2014
/02/anesia-ventiladores-calor.png Acesso em: 27.Fev. 2021.
Figura 5 – http://psicoativo.com/wp-content/uploads/2016/09/
Vaso-de-Rubin.png . Acesso em: 02 março 2021.
Figura 6 – https://foroalfa.org/imagenes/articulos/2874/41360.jpg .
Acesso em: 02 março 2021.
Figura 7 – http://somosverdes.com.br/wp-content/uploads/2016/
02/hortiflix-1.jpg . Acesso em: 02 março 2021.
Figura 8 – http://3.bp.blogspot.com/__VYoLRVA95g/TIaqaz-
Pt8I/AAAAAAAAA5I/AT_Oq3QyFVc/s1600/photogen11.jpg Acesso
em: 02 março 2021.

58
O Enunciado Doutrinário sobre a
Simplificação da Linguagem no
Processo Penal: Uma Maneira de
Olhá-lo pela Ótica Foucaultiana1
Návia Regina Ribeiro da Costa
Eliane Marquez da Fonseca Fernandes

INTRODUÇÃO

Este estudo é um relato de experiência de leituras de Foucault para


aplicação em estudo sobre enunciados emergentes no domínio discur-
sivo judicial, mais especificamente no Tribunal do Júri. Ancora-se em
estudo bibliográfico, pois tanto o enunciado objeto de nossa análise
quanto nossa base teórica, tendo como principal aporte Foucault
(2000, 2003a, 2003b, 2008 e 2014), foram recuperados de material
publicado em diferentes suportes. Tal qualidade de estudos, de acordo
com Almeida (2007, p. 72), é o que se desenvolve “[...] com base em
material publicado em livros, revistas, jornais, redes eletrônicas, isto
é, material acessível ao público em geral. Fornece instrumento analí-
tico para qualquer outro tipo de pesquisa, mas também pode esgotar-
se em si mesmo”.

1 Este texto é parte da Tese de Doutorado, intitulada A construção discursiva


da realidade jurídica no Tribunal do Júri: um olhar com as lentes da linguís-
tica forense, defendida no Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguís-
tica da Universidade Federal de Goiás, sob orientação da Profa. Dra. Eliane
Marquez da Fonseca Fernandes.

59
Návia Regina Ribeiro da Costa e Eliane Marquez da Fonseca Fernandes

Nosso objetivo aqui é apresentar como a teoria foucaultiana con-


tribui para o desenvolvimento de pesquisa em Linguística, no campo
da Análise de Discurso de linha francesa (AD), campo sobre o qual tem
grande influência a obra de Foucault. Registramos que, dadas a com-
plexidade e extensão da obra foucaultiana, colocamo-nos aqui na con-
dição de quem mexe, como disse o próprio Foucault (2003a) sobre sua
teoria, numa “caixa de ferramentas”. Nesse sentido, numa tão grande
caixa e com tantas ferramentas disponíveis, pusemo-nos a verificar
quais seriam as ferramentas foucaultianas que utilizaríamos. Vejamos.
Para o estudo que apresentamos, dizemos que Foucault foi funda-
mental, partindo-nos de uma categoria principal de seus estudos, que
é o enunciado, conforme explicitaremos doravante. O objeto de análise
com base na teoria foucaultiana é um discurso materializado na dou-
trina majoritária do Direito Processual Penal sobre o uso de “lingua-
gem simplificada (clara)” que deve ser praticada no âmbito do Tribu-
nal do Júri, sendo preconizado que a linguagem deve se realizar nesses
termos, sob a justificativa de que o julgamento não é feito por inte-
grantes do poder judiciário, mas por um Conselho de Sentença, que se
compõe de jurados advindos de toda a sociedade e dos quais não se
espera qualquer conhecimento técnico sobre a matéria.
Com Foucault (2008, p. 54), compreendemos que a análise de dis-
curso se distingue da análise linguística por considerar a prática dis-
cursiva “como o lugar onde se forma ou se deforma, onde aparece e se
apaga uma pluralidade emaranhada – ao mesmo tempo superposta e
lacunar – de objetos”. Desse modo, por entendermos que uma das “pa-
lavras de ordem” que perpassa os estudos de Foucault é “relação”, re-
lacionamos o enunciado sobre a “linguagem simplificada (clara)” com
os enunciados emergentes na própria prática discursiva da instância
judicial referida, os quais se inscrevem em um processo de crime do-
loso contra a vida em trâmite nesse domínio, buscando analisar como
esses enunciados em relação constroem a realidade jurídica.
Assim, a categoria fundamental mobilizada das teorias de Foucault
é o enunciado. Além da noção de enunciado, recorremos às noções de
discurso, formação discursiva e prática discursiva – para analisarmos
como o discurso se relaciona com o saber, tendo como obra de base A

60
O Enunciado Doutrinário sobre a Simplificação da Linguagem no Processo Penal

arqueologia do saber (2008). Todavia, também nos valemos dos es-


tudos da fase genealógica, com o fim de mobilizarmos a noção de re-
lação de poder, resistência, dispositivo – para analisarmos como o dis-
curso se relaciona com o poder (FOUCAULT, 2014). Nosso propósito,
em suma, é analisarmos as relações do discurso com o saber e o poder,
buscando descrever os enunciados como acontecimentos, numa rela-
ção com as forças que possibilitaram sua existência.
Para delinearmos o pensamento, na seção seguinte, contextualiza-
mos a instância discursiva onde se situam os discursos que serão ana-
lisados e, para buscar o objeto e trazermos as problematizações possí-
veis, à medida que eu formos apresentando o campo discursivo, mo-
bilizaremos as categorias analíticas da teoria foucaultiana. Para tal
contextualização, perpassamos pelo entendimento do Direito Proces-
sual, especialmente focalizando o Direito Processual Penal (perante o
Tribunal do Júri).

A “LINGUAGEM SIMPLIFICADA [CLARA]” NO PROCESSO PENAL


(PERANTE O TRIBUNAL DO JÚRI): QUANDO UM ENUNCIADO
SE TORNA MONUMENTO

[...] a história, em sua forma tradicional, se dispunha a ‘memorizar’ os


monumentos do passado, transformá-los em documentos e fazer fala-
rem estes rastros que, por si mesmos, raramente são verbais, ou que
dizem em silêncio coisa diversa do que dizem; em nossos dias, a histó-
ria é o que transforma os documentos em monumentos e que desdobra,
onde se decifravam rastros deixados pelos homens, onde se tentava re-
conhecer em profundidade o que tinham sido, uma massa de elemen-
tos que devem ser isolados, agrupados, tornados pertinentes, inter-re-
lacionados, organizados em conjuntos (FOUCAULT, 2008, p. 8, grifo
do autor).

Como já exposto, nosso propósito é analisar enunciados da prática


discursiva jurídica específica do Processo Penal (perante o Tribunal do
Júri). Tem como ponto de partida o seguinte enunciado, inscrito na
doutrina majoritária do Direito Processual Penal, que pode ser repre-
sentada por Pacelli (2020, p. 887):

É que o julgamento dos crimes da competência do Tribunal do Júri é


atribuído a pessoas não integrantes do Poder Judiciário, escolhidas
aleatoriamente nas diferentes camadas sociais da comunidade, de

61
Návia Regina Ribeiro da Costa e Eliane Marquez da Fonseca Fernandes

quem, em regra, não se espera qualquer conhecimento técnico sobre a


matéria.
Por isso, e para que o julgamento se realize com a necessária (ou pos-
sível) imparcialidade, e com observância das normas e regras relativas
à contribuição das partes na formação da decisão final, prevê a lei que
a matéria submetida a julgamento pelo Conselho de Sentença seja en-
caminhada ‘do modo o mais simplificado [claro] possível’ (grifos nos-
sos).

Tal enunciado, recorrendo-nos à citação em epígrafe nesta seção,


“monumentaliza-se”. Isso significa dizer que o estudo analisará não os
pensamentos ou os sentidos que se escondem ou se expressam no dis-
curso, “mas os próprios discursos, enquanto práticas que obedecem a
regras” (FOUCAULT, 2008, p. 157). Esse tipo de análise é o que Fou-
cault (2008) denominou de arqueológica: nela, o discurso não é tra-
tado como documento, como representação e registro de algo, “como
signo de outra coisa, como elemento que deveria ser transparente [...]”
por esconder algo, mas na qualidade de monumento, pois se ocupa do
“[...] discurso em seu volume próprio”, buscando-se não um outro dis-
curso por trás do que foi dito, mas o que foi efetivamente dito (FOU-
CAULT, 2008, p. 157). Em outras palavras, o discurso como monu-
mento deve ser visto integralmente na sua superfície, ocupando, a par-
tir de seu surgimento, seu lugar próprio, e deve, por isso mesmo, ser
analisado em seu valor (SOUSA, 2013). No discurso como monu-
mento, tudo está dito, ainda que não dito, mas visível. Por tal motivo,
neste trabalho, optamos por nos referirmos a esse enunciado da “lin-
guagem simplificada [clara]” como “enunciado-monumento”.
Dessa primeira reflexão, olhando para o enunciado-monumento,
refletimos: ao enunciar que a justiça não espera qualquer conheci-
mento técnico do Conselho de Sentença sobre a matéria em julga-
mento e, por isso, “[...] prevê a lei que a matéria [...] seja encaminhada
‘do modo o mais simplificado [claro] possível’” (PACELLI, 2020, p.
887), o discurso doutrinário não enuncia a falta de competência do júri
para o julgamento, mas ela aparece como visibilidade distorcida pelo
discurso da simplificação necessária para tal. Daí a primeira proble-
matização surge: o que é essa simplificação? Como ela é realizada?
Basta relacionar as coisas (a realidade técnico-jurídica) e as palavras

62
O Enunciado Doutrinário sobre a Simplificação da Linguagem no Processo Penal

“simplificadas” e isso, por sua vez, já possibilita a compreensão neces-


sária para o julgamento de um acusado?
O contato com a obra de Foucault descortina uma possibilidade de
análise que vai exatamente ao encontro de inquietações quanto à ma-
neira como a linguagem jurídica deve ser usada para o alcance das co-
municações “eficazes”. O mundo jurídico considerada que o operador
do Direito de excelência deve ter a habilidade para a escritura de textos
“corretos” gramaticalmente, mas em especial de trazer à luz aquilo que
está “encoberto” nos textos. Nosso posicionamento não recusa a im-
portância de saber escrever de forma correta gramaticalmente e de sa-
ber interpretar textos, até porque falamos a partir da linguística, mas
entendemos a necessidade de esse operador do Direito saber compre-
ender não apenas o “que” se fala, mas o “como” e “por que” se fala o
que foi falado. A relevância está em o profissional do Direito saber tra-
balhar não somente a interpretação, mas os limites da interpretação,
tendo a possibilidade, ao modo de dizer foucaultiano, de perceber que
os não ditos estão nos próprios ditos e não escondidos atrás deles. Ou
seja, de considerar que, quando se toma o enunciado por explícito, “ao
mesmo tempo, dá[-se] conta do fato de que pôde haver interpretação”
(FOUCAULT, 2008, p. 136). Dito de outro modo, todo dizer, antes de
se materializar, já passou por um processo interpretativo para se ex-
pressar como se expressou.
Nesse sentido, encontramos na teoria foucaultiana o tipo de análise
que se deve fazer para firmar tal posicionamento, já que essa teoria
propõe questionar a quietude com a qual as coisas são aceitas e utili-
zadas sob variadas noções ligadas a um postulado de continuidade,
neste caso, de tradição da aplicação da hermenêutica nas interpreta-
ções dos textos jurídicos (FOUCAULT, 2008). Com Foucault (2008, p.
31), em vez de se perguntar o “que” foi dito no enunciado, as perguntas
relevantes são “por que não poderia ser outro [enunciado], como ex-
clui qualquer outro, como ocupa, no meio dos outros e relacionado a
eles, um lugar que nenhum outro poderia ocupar”?
Como mencionado, o enunciado-monumento se caracteriza como
nosso ponto de partida e, por entendermos que uma análise efetiva
não pode prescindir da prática, buscamos relacioná-lo com os enunci-
ados emergentes na prática discursiva de um processo de crime doloso

63
Návia Regina Ribeiro da Costa e Eliane Marquez da Fonseca Fernandes

contra a vida em julgamento perante o Tribunal do Júri. Desse modo,


a pesquisa visou a analisar o que possibilitou a emergência do enunci-
ado-monumento, quais outros enunciados em dispersão no mundo ju-
rídico o sustentam e como a prática discursiva dessa esfera judicial o
mobiliza, convoca-o. Ou seja, analisou como as materialidades linguís-
ticas que compõem os autos do processo refletem o emprego da pro-
posta doutrinária da prática da “linguagem simplificada (clara)”. Ou-
trossim, visou a discutir o que é essa “linguagem simplificada (clara)”,
buscando identificar as estratégias usadas nos discursos pelos intera-
gentes para obterem, de acordo com a intencionalidade discursiva de
cada qual, a aplicação da lei pelo Conselho de Sentença.
Como a categoria fundamental deste estudo é o enunciado, passa-
mos agora a discorrer um pouco sobre ela. Para Foucault (2008, p.
98), o enunciado

trata-se, antes, de uma função que se exerce verticalmente, em relação


às diversas unidades, e que permite dizer, a propósito de uma série de
signos, se elas estão aí presentes ou não. O enunciado não é, pois, uma
estrutura (isto é, um conjunto de relações entre elementos variáveis,
autorizando assim um número talvez infinito de modelos concretos); é
uma função de existência que pertence, exclusivamente, aos signos, e a
partir da qual se pode decidir, em seguida, pela análise ou pela intui-
ção, se eles "fazem sentido" ou não, segundo que regra se sucedem ou
se justapõem, de que são signos, e que espécie de ato se encontra rea-
lizado por sua formulação (oral ou escrita). Não há razão para espanto
por não se ter podido encontrar para o enunciado critérios estruturais
de unidade; é que ele não é em si mesmo uma unidade, mas sim uma
função que cruza um domínio de estruturas e de unidades possíveis e
que faz com que apareçam, com conteúdos concretos, no tempo e no
espaço (grifo do autor).

E continua o autor francês: “[...] um enunciado tem sempre mar-


gens povoadas de outros enunciados” (FOUCAULT, 2008, p. 110). Re-
flete que essas margens não se referem ao contexto, mas ao campo as-
sociado, como o que

faz de uma frase ou de uma série de signos um enunciado e que lhes


permite ter um contexto determinado, um conteúdo representativo es-
pecífico, forma uma trama complexa. [...] [O campo associado] é cons-
tituído, também, pelo conjunto das formulações a que o enunciado se
refere (implicitamente ou não), seja para repeti-las, seja para modificá-

64
O Enunciado Doutrinário sobre a Simplificação da Linguagem no Processo Penal

las ou adaptá-las, seja para se opor a elas, seja para falar de cada uma
delas; não há enunciado que, de uma forma ou de outra, não reatualize
outros enunciados [...]. É constituído, ainda, pelo conjunto das formu-
lações cuja possibilidade ulterior é propiciada pelo enunciado e que po-
dem vir depois dele como sua consequência, sua sequência natural, ou
sua réplica (FOUCAULT, 2008, p. 111).

E “um conjunto de enunciados, na medida em que se apoiem na


mesma formação discursiva [...]”, constitui, para Foucault (2008, p.
132), o discurso.
Em suma, a compreensão é de que, para Foucault (2008), o dis-
curso se compõe de enunciado, como aquilo que atribui aos signos mo-
dos particulares de existência por terem sido efetivamente produzidos.
O enunciado é uma função de existência dos signos e se refere ao que
realmente pôde ser dito, numa materialidade concreta, em algum
tempo e lugar. O enunciado é o efetivamente dito, que sempre se liga
ao que foi dito antes de ele emergir e ao que será dito depois dele.
Do que foi sucintamente exposto sobre o enunciado, três sínteses
podem ser destacadas: o enunciado se distingue das unidades da lín-
gua; 2) o enunciado tem um caráter relacional com outros, anteriores
e/ou posteriores a ele – Foucault (2008), usando de metáfora para se
referir a esse caráter, afirma que o enunciado é um “nó na rede discur-
siva”; e 3) o enunciado é constitutivo do discurso.
Valendo-nos da reflexão sobre campo associado, constituído das
formulações enunciativas anteriores e posteriores, citamos uma cam-
panha promovida pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB),
lançada em 11 de agosto de 2005, no Rio de Janeiro, na Escola de Di-
reito da Fundação Getúlio Vargas (FGV), sendo empreitada pelo juiz
Rodrigo Collaço (AMB, 2009), sob o entendimento de que o uso de
palavras que alcancem um contexto médio de compreensão, isto é, “de
forma simplificada”, tornaria o Direito acessível. O pressuposto é de
que prescindir de uma sintaxe complexa, constituída por um léxico ar-
caico, erudito, com uso frequente do latim, pejorativamente nominada
como juridiquês, já possibilitaria o acesso à justiça. Ou seja, tal con-
cepção toma a linguagem como transparente, como se o sentido fosse
possível de ser encontrado no vocabulário “atualizado”.
Este é um enunciado que valida o enunciado-monumento aqui ci-
tado, pois, embora ambos tenham sido produzidos em tempos, lugares

65
Návia Regina Ribeiro da Costa e Eliane Marquez da Fonseca Fernandes

diferentes e numa “defasagem enunciativa”, “pela impossibilidade de


se integrar em uma mesma cadeia sintática” (FOUCAULT, 2000, p.
101), este último repete o primeiro, modificando-o apenas quando am-
plia a aplicação da linguagem simplificada para o Direito como um
todo, relacionando-a ao acesso à justiça. Aqui a teoria foucaultiana nos
instiga a perguntar: o que aconteceu para que a questão da simplifica-
ção da linguagem jurídica fosse colocada a propósito do acesso à jus-
tiça?
A esta última discussão, coloco-nos em posição antagonista, na me-
dida em que não vemos a linguagem, na constituição dos discursos,
como algo transparente, como se a “atualização” vocabular pudesse
ipso facto facilitar a compreensão, como se os sentidos estivessem nas
palavras (ou por trás delas). Não se trata de o cidadão ter a capacidade
de extrair sentidos das palavras do texto, entendendo seus significados
e interpretando o que o texto quer dizer. A reflexão requer um raciocí-
nio mais amplo, que é o da análise da discursividade. Encontramos
também em Foucault (2008, p. 54) um olhar que nos serve como ân-
cora para, novamente, firmarmos esse posicionamento, quando o au-
tor aponta que

[...] o discurso não é uma estreita superfície de contato, ou de con-


fronto, entre uma realidade e uma língua, o intrincamento entre um
léxico e uma experiência; gostaria de mostrar, por meio de exemplos
precisos, que, analisando os próprios discursos, vemos se desfazerem
os laços aparentemente tão fortes entre as palavras e as coisas, e des-
tacar-se um conjunto de regras, próprias da prática discursiva. Essas
regras definem não a existência muda de uma realidade, não o uso ca-
nônico de um vocabulário, mas o regime dos objetos.

É possível dizermos, com base nisso, que a realidade não se reflete


por meio das palavras, como num espelho. Assim, as palavras podem
ser as mais conhecidas ou “atualizadas” possível que, a cada vez que
forem utilizadas em novos enunciados, no momento em que emergem
como o que efetivamente pôde ser dito, dirá uma coisa específica.
Nesse tocante, Foucault (2008, p. 135) trata da raridade do enunciado,
que aponta para o fato “de que nem tudo é sempre dito”. Assim, a
busca não deve ser do sentido do que está embaixo do dito, mas de ver

66
O Enunciado Doutrinário sobre a Simplificação da Linguagem no Processo Penal

que esse dito exclui todos os outros ditos. Não se trata de interpretar,
pois

Interpretar é uma maneira de reagir à pobreza enunciativa e de com-


pensá-la pela multiplicação do sentido; uma maneira de falar a partir
dela e apesar dela. Mas analisar uma formação discursiva é procurar a
lei de sua pobreza, é medi-la e determinar-lhe a forma específica. É,
pois, em um sentido, pesar o "valor" dos enunciados (FOUCAULT,
2008, p. 136, grifo do autor).

O sentido, assim, não está somente no nível da língua, mas do dis-


curso analisado como acontecimento, que não desconsidera a análise
interpretativa nem a análise da língua, mas avança no sentido de bus-
car analisar também o campo discursivo, compreendendo-se

[...] o enunciado na estreiteza e singularidade de sua situação, [tra-


tando] de determinar as condições de sua existência, de fixar seus li-
mites da forma mais justa, de estabelecer suas correlações com os ou-
tros enunciados a que pode estar ligado, de mostrar que outras formas
de enunciação exclui. Não se busca, sob o que está manifesto, a con-
versa semi-silenciosa de um outro discurso: deve-se mostrar por que
não poderia ser outro, como exclui qualquer outro, como ocupa, no
meio dos outros e relacionado a eles, um lugar que nenhum outro po-
deria ocupar. A questão pertinente à análise poderia ser assim formu-
lada: que singular existência é esta que vem à tona no que se diz e em
nenhuma outra parte? (FOUCAULT, 2008, p. 31).

Fundamentadas na teoria foucaultiana, também problematizamos


aqui um ponto de vista legitimado no Direito de que a linguagem é
meramente seu instrumento. Novamente nossa posição é antagonista,
na medida em que enxergamos que a linguagem assume centralidade
no Direito, não podendo ser tomada apenas como instrumento desse
domínio discursivo e de seus operadores, ainda que também o seja,
mas, ‘antes’, como constitutiva dele. Aqui é negada a relação passiva
entre a linguagem e o Direito, como se aquela fosse somente instru-
mento deste para se referir aos objetos jurídicos como algo já dado na
realidade, mas defendemos a relação ativa, entendendo que a lingua-
gem significa a realidade, constrói sentidos para ela, logo a constrói.
Entendemos que Foucault (2008, p. 55, grifo nosso) pode respaldar
esse ponto de vista, quando diz que não se pode tratar os discursos
“[...] como conjuntos de signos (elementos significantes que remetem

67
Návia Regina Ribeiro da Costa e Eliane Marquez da Fonseca Fernandes

a conteúdos ou a representações), mas como práticas que formam sis-


tematicamente os objetos de que falam” (FOUCAULT, 2008, p. 55,
grifo nosso). E os discursos se compõem da linguagem em uso nos
enunciados. Em outras palavras, o Direito é sistematicamente for-
mado nas práticas discursivas, logo se faz de discurso, enunciado, lin-
guagem.
É possível ainda valermo-nos de Foucault (2008, p. 85) para afir-
mar que o Direito é prática discursiva singular, que, obviamente, se
relaciona com o não discursivo, mas, ficando na dimensão do discurso
e analisando-se as regras de formação discursiva, o que se

descobre não é a própria vida em efervescência, a vida ainda não cap-


turada, mas sim uma espessura imensa de sistematicidades, um con-
junto cerrado de relações múltiplas. Além disso, essas relações, por
mais que se esforcem para não serem a própria trama do texto, não são,
por natureza, estranhas ao discurso. Pode-se mesmo qualificá-las de
"pré-discursivas", mas com a condição de que se admita que esse pré-
discursivo pertence, ainda, ao discursivo, isto é, que elas não especifi-
cam um pensamento, uma consciência ou um conjunto de representa-
ções que seriam, mais tarde, e de uma forma jamais inteiramente ne-
cessária, transcritas em um discurso, mas que caracterizam certos ní-
veis do discurso, definem regras que ele atualiza enquanto prática sin-
gular. Não procuramos, pois, passar do texto ao pensamento, da con-
versa ao silêncio, do exterior ao interior, da dispersão espacial ao puro
recolhimento do instante, da multiplicidade superficial à unidade pro-
funda. Permanecemos na dimensão do discurso (grifo do autor).

Com toda vênia, para usar uma expressão muito utilizada no


mundo jurídico, completamos: não se procura passar da lingua-
gem/do discurso ao Direito. Deve-se permanecer no próprio discurso,
que é constitutivo do Direito. Foucault (2008, p. 133) define prática
discursiva como

um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no


tempo e no espaço, que definiram, em uma dada época e para uma de-
terminada área social, econômica, geográfica ou linguística, as condi-
ções de exercício da função enunciativa.

Daí nossa segurança para expressarmos que o Direito é discurso,


construiu-se e se constrói no/pelo discurso, segundo regularidades de-
terminadas historicamente.

68
O Enunciado Doutrinário sobre a Simplificação da Linguagem no Processo Penal

Situando especificamente o espaço em que se analisaram as práti-


cas discursivas, que é o Processo Penal (perante o Tribunal do Júri),
de início lançamos foco sobre a natureza “relacional” (um dos termos
importantes para a teoria foucaultiana) do Direito e, por conseguinte,
do processo.
Em seu sentido objetivo (norma agendi), o Direito é compreendido
“como um complexo orgânico, de que derivam todas as normas e obri-
gações, para serem cumpridas pelos homens, compondo um conjunto
de deveres, aos quais não podem fugir, sem que sintam a força coerci-
tiva da força social organizada” (SILVA, 2002, p. 268). Já em sua acep-
ção subjetiva (facultas agendi), o Direito apresenta-se

[...] como uma faculdade ou uma prerrogativa outorgada à pessoa (su-


jeito ativo do Direito), em virtude da qual se atribui o que é seu, não se
permitindo que outrem venha a prejudicá-lo em seu interesse, porque
a lei, representando a coação social, protege-o em toda a sua amplitude
(SILVA, 2002, p. 268).

Ante tais entendimentos, o Direito, como sendo uma instituição


criada por homens para que outros homens tenham seus comporta-
mentos moldados em sociedade, tem o processo como uma via juris-
dicional para tutelar a proteção social civil, com o fim de se resguardar
o titular do direito subjetivo e de castigar aquele que lesar o direito
alheio. Assim, o processo mostra-se como o lugar de encontro e de re-
lação entre agentes discursivos para a solução das lides.
Para Campilongo (2012, p. 24), referindo-se ao campo processual
em geral, “[...] o processo é um mecanismo indispensável ao exercício
democrático de direitos, dado que visa proteger os cidadãos contra a
incerteza e a insegurança no direito e contra o arbítrio estatal”. Lopes
Jr. (1997, p. 55) corrobora tal ideia quando assinala a função do pro-
cesso no âmbito penal, expressando que o Processo Penal deve “servir
como instrumento de limitação da atividade estatal, estruturando-se
de modo a garantir a plena efetividade aos direitos individuais consti-
tucionalmente previstos, como presunção de inocência, contraditório,
defesa, etc.”. Também Nucci (2011, p. 80) reflete que os direitos e as
garantias fundamentais no Processo Penal servem como “autênticos
freios aos excessos do Estado contra o indivíduo, parte verdadeira-
mente mais fraca nesse embate”. Desse modo, o discurso de que o

69
Návia Regina Ribeiro da Costa e Eliane Marquez da Fonseca Fernandes

campo processual no Direito existe para o exercício da cidadania está


legitimado, fundamentado no paradigma do Estado Democrático de
Direito, que tem como orientação o respeito pelos direitos humanos e
pelas garantias fundamentais de direitos individuais e coletivos. Isso
significa dizer que o cidadão deve ter a garantia de acesso à justiça,
tanto para denunciar a lesão de seu direito quanto para responder à
acusação, mas há que se considerar que esse acesso é sempre regula-
mentado.
No que se refere especificamente à instância judicial do Tribunal
do Júri, que é à qual competem os processos penais de crimes dolosos
contra a vida, diz-se que ela, pela configuração assumida,

seria uma das mais democráticas instituições do Poder Judiciário, so-


bretudo pelo fato de submeter o homem ao julgamento de seus pares e
não ao da justiça togada. É dizer: aplicar-se-ia o Direito segundo a com-
preensão popular e não segundo a técnica dos tribunais (OLIVEIRA,
2014, p. 719).

No entanto, assim como o acesso à justiça é regulamentado por


normas que determinam os procedimentos de busca da tutela jurisdi-
cional – como, por exemplo, quem é o sujeito investido de autoridade
para denunciar e para defender; as formas típicas dos enunciados para
defender e denunciar; as fases por que devem passar os enunciados
etc. –, deve-se considerar que essa justiça popular tida como democrá-
tica, para chegar à aplicação do Direito, realiza-se também ante um
contexto sistêmico de regularidades que definem todo o procedimento
do julgamento, não estando, dessa forma, isenta das influências da
técnica dos tribunais. Tais regularidades advêm de um instituto com-
plexo, que é o Direito Processual Penal, e se materializam em enunci-
ados inscritos linguisticamente no Código, nas doutrinas, nos regi-
mentos internos dos tribunais. Elas determinam, por exemplo, que os
jurados não podem se comunicar entre si e nem com os representantes
das partes durante todo o julgamento; mas também definem por
quanto tempo cada representante das partes pode enunciar aos jura-
dos; o que pode cada um apresentar-lhes como prova do que enuncia
etc.
Em A arqueologia do saber, quando Foucault (2008) discute as
Formações Discursivas (FD), ele mostra que elas são as responsáveis

70
O Enunciado Doutrinário sobre a Simplificação da Linguagem no Processo Penal

por determinar as regularidades dos enunciados, na medida em que


esses obedecem a regras de um regime institucional complexo. Se-
gundo o autor francês,

No caso em que se puder descrever, entre um certo número de enunci-


ados, semelhante sistema de dispersão, e no caso em que entre os ob-
jetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se
puder definir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições e
funcionamentos, transformações), diremos, por convenção, que se
trata de uma formação discursiva (FOUCAULT, 2008, p. 43).

Nesse sentido, é possível afirmarmos que o Processo Penal (pe-


rante o Tribunal do Júri) é uma FD, uma vez que se podem descrever
essas regras de formação, “[...] que são condições de existência (mas
também de coexistência, de manutenção, de modificação e de desapa-
recimento) em uma dada repartição discursiva” (FOUCAULT, 2008,
p. 43), e os exemplos das regularidades apontados demonstram as
condições de existência do Processo Penal no Direito.
Nessa esteira, se o Processo Penal (perante o Tribunal do Júri) é
aquilo que dispõe uma série de determinações e procedimentos para
que as práticas judiciais se efetuem com o fim de se obter um objetivo,
e considerando-se que nesse complexo sistema há também o não dis-
cursivo, vemo-nos estar diante do que Foucault (2014, p. 45) define
como dispositivo:

O que eu tento descobrir sob esse nome [dispositivo] é, primeiramente,


um conjunto decididamente heterogêneo, que comporta discursos, ins-
tituições, arranjos arquitetônicos, decisões regulamentares, leis, medi-
das administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas,
morais, filantrópicas, em resumo: do dito, tanto quanto do não dito.
Eis os elementos do dispositivo. O dispositivo propriamente é a rede
que se pode estabelecer entre esses elementos. Em segundo lugar, o
que gostaria de descobrir no dispositivo é a natureza do laço que pode
existir entre esses elementos heterogêneos. Assim, tal discurso pode
aparecer como programa de uma instituição, ora pelo contrário como
um elemento que permite mascarar uma prática, que permanece, ela,
muda, ou funcionar como interpretação secundária dessa prática, dar-
lhe acesso a um plano novo de racionalidade. Em suma, entre esses
elementos, discursivos ou não, há como um jogo, mudanças de posição,
modificações de posições, que podem eles também ser muito diferen-
tes. Em terceiro lugar, por dispositivo entendo uma espécie – digamos
– de formação, que, em dado momento histórico, teve por função

71
Návia Regina Ribeiro da Costa e Eliane Marquez da Fonseca Fernandes

maior responder a uma urgência. O dispositivo tem, pois, uma função


estratégica dominante.

O autor define o dispositivo pela sua constituição de elementos dis-


cursivos e não discursivos e também pela sua gênese, que, segundo ele,
se destaca em dois momentos: o primeiro “é o da prevalência de um
objetivo estratégico”; em seguida, o dispositivo se constitui e perma-
nece como tal em razão de “um duplo processo: processo de sobrede-
terminação funcional” – em que, a depender dos efeitos que gera,
exige reajustes dos elementos heterogêneos – e “processo de perpétuo
preenchimento estratégico” – ou seja, criação constante de novas es-
tratégias que possam substituir as que não foram exitosas (FOU-
CAULT, 2014, p. 46). Foucault (2014, p. 56) chama estratégia de “ma-
nobra” e Castro (2016, p. 152), em seu Vocabulário de Foucault, dis-
corre que estratégia é o “[...] conjunto de meios utilizados para fazer
funcionar ou para manter um dispositivo de poder”.
Agamben (2005), em seu texto O que é um dispositivo?, aponta que
não há na vida do indivíduo um só instante que não seja controlado
por um dispositivo. Este autor dispõe que

Certamente o termo [dispositivo], no uso comum como no foucaulti-


ano, parece se referir à disposição de uma série de práticas e de meca-
nismos (ao mesmo tempo linguísticos e não linguísticos, jurídicos, téc-
nicos e militares) com o objetivo de fazer frente a uma urgência e de
obter um efeito (AGAMBEN, 2005, p. 11).

E complementa: “qualquer coisa que tenha de algum modo a capa-


cidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, con-
trolar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos
seres viventes” (AGAMBEN, 2005, p. 13) é um dispositivo.
Há sempre a dúvida sobre o que é o não discursivo referido por
Foucault (2014) no dispositivo. Na entrevista “O jogo de Michel Fou-
cault”, ele foi perguntado: “que outra coisa há [de não discursivo], em
um dispositivo, além das instituições?”. Ao que ele responde:

O que se chama geralmente de ‘instituição’ é todo o comportamento


mais ou menos obrigado, aprendido. Tudo o que em uma sociedade
funciona como sistema de obrigação sem ser um enunciado, em re-
sumo, todo o social não discursivo é a instituição (FOUCAULT, 2014,
p. 46).

72
O Enunciado Doutrinário sobre a Simplificação da Linguagem no Processo Penal

Assim, como exemplo de elementos não discursivos, pode ser ci-


tado tudo o que envolve as audiências solenes do Tribunal do Júri e
que não se expressa como enunciado, como a arquitetura do tribunal,
com as salas de audiências organizadas em um layout próprio, com os
lugares de cada função-sujeito no processo demarcados, com as vesti-
mentas talares que devem ser utilizadas durante as sessões do júri etc.
Então, para esta nossa discussão são importantes tanto a noção de
FD – como determinante das regularidades discursivas que moldarão
os enunciados – quanto a noção de dispositivo – na medida em que
percebemos, para além do que é dito, como deve ser dito e por quem
deve ser dito, o conjunto de elementos não discursivos institucional-
mente estabelecidos para determinar e moldar como a prática judicial
no Processo Penal (perante o Tribunal do Júri) deve acontecer e como
os sujeitos envolvidos no processo devem se comportar para que um
julgamento cumpra o objetivo para o qual foi social e historicamente
criado.
Em referência a esse fim, que é o de julgar os crimes dolosos contra
a vida, em que, de um lado está o que teve o direito lesado e, do outro,
o acusado da lesão, exsurge aqui uma relação de enfrentamento e, por
conseguinte, um sistema onde o poder opera. Desse modo, aparecem
forças em relação manifestas por meio de diferentes modalidades
enunciativas, por exemplo, pelos representantes das partes, que colo-
cam em embate as suas “verdades”. Tais enunciados produzidos de-
vem ser analisados, sob a orientação de Foucault (2008, p. 31-2), como
acontecimento discursivo, assim entendido:

um enunciado é sempre um acontecimento que nem a língua nem o


sentido podem esgotar inteiramente. Trata-se de um acontecimento
estranho, por certo: inicialmente porque está ligado, de um lado, a um
gesto de escrita ou à articulação de uma palavra, mas, por outro lado,
abre para si mesmo uma existência remanescente no campo de uma
memória, ou na materialidade dos manuscritos, dos livros e de qual-
quer forma de registro; em seguida, porque é único como todo aconte-
cimento, mas está aberto à repetição, à transformação, à reativação;
finalmente, porque está ligado não apenas a situações que o provocam,
e a consequências por ele ocasionadas, mas, ao mesmo tempo, e se-
gundo uma modalidade inteiramente diferente, a enunciados que o
precedem e o seguem (FOUCAULT, 2008, p. 31-2).

73
Návia Regina Ribeiro da Costa e Eliane Marquez da Fonseca Fernandes

Foucault (2003a, p. 253) expressa que analisar o discurso como


acontecimento é partir dele tal como ele é, é examinar “[...] as diferen-
tes maneiras pelas quais o discurso desempenha um papel no interior
de um sistema estratégico em que o poder está implicado e para o qual
o poder funciona”. Para o autor francês, o poder opera por meio do
discurso, não é nem a fonte nem a origem deste, “já que o próprio dis-
curso é um elemento em um dispositivo estratégico de relações de po-
der”, sendo que é através do discurso que o poder é vinculado e esta-
belecido (FOUCAULT, 2003a, p. 253-4).
Nesse contexto relacional entre as partes estabelecido pelo pro-
cesso – aqui vale dizer que o processo coloca o sujeito passivo (o acu-
sado) em uma condição jurídica de responder e, portanto, de resistir
às acusações, tendo a prerrogativa de não fazê-lo, mas devendo arcar
com o ônus disso –, estas valem-se da argumentação, que envolve as
intenções em modos de dizer para que façam efeito. Na segunda me-
tade do século XX, Chaïm Perelman, com apoio de Olbrechts-Tyteca,
aquele o principal expoente dos estudos da Argumentação Jurídica, ao
estabelecer a ligação entre a aplicação de normas e o raciocínio dialé-
tico nos processos comunicacionais no Direito, faz com que tal lastro
negue a existência da “verdade” nas interpretações jurídicas. Assim, as
premissas colocadas em diálogo não são evidentes, demonstrativas,
calcadas em dados objetivos, mas são resultado de um acordo estabe-
lecido entre quem argumenta e o auditório para o qual se dirige o ar-
gumento (COSTA, 2017). De tal modo, Perelman e Olbrechts-Tyteca
(1999) propõem, para a argumentação, uma “lógica do preferível”, que
visa, por meio de argumentações, à busca da adesão desse auditório,
que pode aceitar ou recusar a tese, com base no que lhe é razoável,
plausível. A persuasão, diferentemente da demonstração, trabalha
com a ideia da probabilidade e da verossimilhança. Resulta, desse ra-
ciocínio, uma frase já clichê no mundo jurídico: “no Direito não existe
verdade ou mentira; existe argumento forte ou fraco”, sendo que a ver-
dade jurídica deriva da aceitação do argumento forte. Disso decorre
que os litigantes assumem uma posição de disputa entre dois certos,
isto é, numa relação de forças na busca da produção cada qual de sua
verdade.

74
O Enunciado Doutrinário sobre a Simplificação da Linguagem no Processo Penal

Foucault (2003b, p. 232) pode corroborar a ideia de Perelman e


Olbrechts-Tyteca (1999) sobre a verdade, quando expressa que não
entende por verdade uma espécie de norma geral: “Entendo por ver-
dade o conjunto de procedimentos que permitem a cada instante e a
cada um pronunciar enunciados que serão considerados verdadeiros.
Não há absolutamente instância suprema”. Para o autor francês, a ver-
dade é produzida e

Essas produções de verdade não podem ser dissociadas do poder e dos


mecanismos de poder, ao mesmo tempo porque esses mecanismos de
poder se tornam possíveis, induzem essas produções de verdade, e por-
que essas produções de verdade têm, elas próprias, efeitos de poder
que nos unem, nos atam (FOUCAULT, 2003b, p. 229).

Foucault (2003b), ao dizer isso, está refletindo sobre a verdade em


relação a domínios regulados, onde os procedimentos de enunciação
de verdades são previamente conhecidos, como o domínio científico.
Todavia, ele faz referência também aos domínios afora da ciência, por
exemplo citando o sistema de informações, que produz efeitos de ver-
dade, a depender da maneira como algo é pronunciado, da pessoa que
pronuncia e do momento determinado. Com base nisso, fazemos uma
reflexão sobre o processo de construção de verdades nos tribunais, da
seguinte forma: uma parte da tese, que se centra na demonstração,
fundamentada em dados objetivos, como, por exemplo, em provas pe-
riciais apresentadas pela acusação, é regulada. Todavia, há a outra
parte, que se centra na persuasão, no argumento, que, assim como o
sistema de informações, pode se pôr a funcionar como verdade na ca-
beça dos jurados, apenas por ter sido a tese pronunciada de uma ma-
neira específica, num tom específico, com base em estratégias argu-
mentativas capazes de alcançar a adesão do auditório.
Nesse cenário de relações entre partes na busca cada qual de cons-
truir a sua verdade, tradicionalmente o Direito Processual assume a
ideia de contradição e de dialética. Tanto é assim que existe o princípio
do contraditório, que possibilita ao acusado o direito de se defender.
Sobre contradição e dialética, Foucault (2003a, p. 260) assevera: “Não
aceito essa palavra dialética. Não e não!”. Reconhece que, nos proble-
mas colocados na realidade, existem os antagonismos, as lutas, mas
não dialética, contradição, no sentido lógico do termo, como se, de um

75
Návia Regina Ribeiro da Costa e Eliane Marquez da Fonseca Fernandes

lado do processo antagonista, houvesse um aspecto negativo e, do ou-


tro, um aspecto positivo.
Para Foucault (2003a), o poder não se concentra nas grandes for-
ças institucionais do Estado, não se exerce a partir de um único lugar,
mas de lugares múltiplos, por meio, como já dito, das relações de po-
der. Sobre essas, o autor francês expressa que elas

[...] são relações de força, enfrentamentos, portanto, sempre reversí-


veis. Não há relações de poder que sejam sempre completamente triun-
fantes e cuja dominação seja incontornável. Com frequência se disse –
os críticos me dirigiam esta censura – que, para mim, ao colocar o po-
der e toda parte, excluo qualquer possibilidade de resistência. Mas é o
contrário! Quero dizer que as relações de poder suscitam necessaria-
mente, apelam a cada instante, abrem possiblidade a uma resistência
e resistência real que o poder daquele que domina tenta se manter com
tanto mais força, tanto mais astúcia quanto maior for a resistência. De
modo que é mais a luta perpétua e multiforme que procuro fazer apa-
recer do que a dominação morna e estável de um aparelho uniformi-
zante (FOUCAULT, 2003b, p. 232).

Foucault (2014) ainda reflete sobre a potencial diferença entre as


forças em relação, na medida em que as relações de poder são forças
desiguais e relativamente estabilizadas, uma podendo se sobrepor à
outra. Todavia, ele diz que “[...] para que haja um movimento de cima
para baixo, é preciso que haja, ao mesmo tempo, uma capilaridade de
baixo para cima” (FOUCAULT, 2014, p. 51), o que justifica seu posici-
onamento de que não existe “O poder”, que parte de um lugar especí-
fico, mas “um feixe aberto de relações de poder”.
Com base nisso e, ante o discurso de que o Processo Penal (perante
o Tribunal do Júri) se fundamenta no paradigma do Estado Democrá-
tico de Direito, vemo-nos provocadas a fazermos o seguinte questio-
namento: não se torna incoerente a ideia de dialética e de contraditó-
rio, como fundamento desse sistema judicial, se o processo é colocado
como um espaço da possibilidade de enfrentamento, cujo objeto é a
liberdade do acusado? Não se torna esse espaço um espaço de poderes
múltiplos, onde, a partir da relação de forças entre as partes, tal liber-
dade será mantida ou tolhida a depender do exercício mais forte da
resistência, por meio de discursos persuasivos?

76
O Enunciado Doutrinário sobre a Simplificação da Linguagem no Processo Penal

Para finalizar este relato, dado o limite deste gênero discursivo, re-
gistramos que as leituras de Foucault ensinam que o mais importante
é a problematização. Desse modo, sobre o discurso da “linguagem sim-
plificada (clara)” que se deve praticar no Processo Penal (perante o
Tribunal do Júri), muitas são as questões que entendemos poderem
ser formuladas para fazerem falar aquilo que se mostra como algo le-
gitimado, conforme vimos no enunciado-monumento aqui apresen-
tado, quais sejam:

– O que possibilitou a emergência do enunciado sobre a devida clareza


da linguagem no Processo Penal (perante o Tribunal do Júri) e quais
enunciados em dispersão no mundo jurídico o sustentam?
– Como o Processo Penal (perante o Tribunal do Júri) mobiliza o
enunciado sobre a devida clareza da linguagem para as práticas dis-
cursivas?
– O “modo o mais simplificado [claro] possível” de submeter a matéria
do julgamento ao Conselho de Sentença, sendo utilizados termos que
não exijam conhecimento técnico-jurídico, possibilita aos jurados
compreensão necessária para efetuarem votos imparciais?
– Que função estratégica cumpre o discurso sobre a devida clareza da
linguagem nos julgamentos? Presta-se a mascarar as práticas, sendo,
dessa forma, uma estratégia de preenchimento do dispositivo Pro-
cesso Penal (perante o Tribunal do Júri) ou se constitui, de fato, uma
estratégia de resistência aos excessos do poder estatal?
– As regularidades impostas pelos códigos, doutrinas e regimentos in-
ternos para o desenvolvimento do julgamento perante o Tribunal do
júri não dissimulam o discurso da ampla defesa, impossibilitando o
efetivo diálogo entre os interagentes na busca de uma solução o mais
acertada possível, configurando-se, assim, como estratégia de poder
para manutenção do dispositivo Processo Penal?

Em suma, se for importante resumir os questionamentos em uma


única pergunta, esta poderia ser:

– Em que condições de possibilidade surge o enunciado sobre a “lin-


guagem simplificada (clara)” que deve ser praticada no Processo Penal

77
Návia Regina Ribeiro da Costa e Eliane Marquez da Fonseca Fernandes

(perante o Tribunal do Júri), quais outros enunciados em dispersão no


mundo jurídico o sustentam e como a prática discursiva desta instân-
cia judicial mobiliza tal enunciado para a constituição da realidade ju-
rídica?

Assim, quando aprendemos a realizar questionamentos como os


que aqui foram colocados, já avançamos no entendimento das leituras
foucaultianas, pois é, a partir de problematizações como as que aqui
exemplificamos é se constroem debates sobre coisas que são aceitas
como verdades legítimas e que se tornam paradigmas sociais, de modo
que os principais interessados em mudanças sociais não os questio-
nem; ao contrário, simplesmente os aceitam e a eles se submetem.
Dito de outra forma, questionar é promover debates para mudança so-
cial e, sem dúvidas, a obra foucaultiana nos ensina a fazê-lo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este Relato de Experiência se constitui apenas uma amostra de


como podemos mexer na “caixa de ferramentas” foucaultiana e dela
extrair as que forem necessárias para utilizarmos na construção de
pesquisas. Assim, o que fizemos foi apresentar algumas das “ferra-
mentas” que utilizamos na análise do enunciado-monumento aqui ci-
tado.
Afirmamos, sem nenhuma dúvida, que estudar Foucault é extre-
mamente desafiador, já que nos tira do lugar comum de olhar a reali-
dade como construída numa continuidade, o que é exatamente o que
o autor busca combater. Ademais, a teoria foucaultiana se constitui
como ensinamento de como se problematizarem discursos, na pers-
pectiva do descontínuo, provocando debates, como uma ação de refle-
xão sistemática sobre paradigmas que constroem uma realidade de
mundo aceita numa quietude espantosa, como se ela estivesse pronta
e acabada. Como disse o próprio Foucault (2008, p. 24), é sempre ne-
cessário “pôr em questão, [...] sínteses acabadas”, é sempre necessário
lançar luz onde as coisas são aceitas sem ser examinadas, sob sombras
que obscurecem a visão dos homens, a fim de que aceitem o que está
posto como algo legítimo.

78
O Enunciado Doutrinário sobre a Simplificação da Linguagem no Processo Penal

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81
Para uma Didática da Análise
Linguística Enunciativa na
Educação Libertadora – De Freire
e Franchi à Agenda 2030
Sinval Martins de Sousa Filho
Madalena Teixeira

Em 2015, quando a Agenda 2030 para o desenvolvimento susten-


tável foi formulada pela ONU, acreditávamos que o tempo discorreria
em sua normalidade e que as ações da educação escolar apontadas na
Agenda poderiam ser efetivadas no mundo inteiro. Não existia em
nossos planos um período de pandemia, um período em que devería-
mos suspender todas as atividades do fazer humano e nos concentrar
em estar em casa, isolados fisicamente e nos higienizando o tempo
todo com água e sabão ou com álcool 0,70 (70%). Desafortunada-
mente, a pandemia da Covid-19 se disseminou pelo mundo, espa-
lhando medo, terror e morte. Infelizmente, globalmente, às 17h52min.
de 27 de maio de 2022, houve 525.467.084 casos confirmados de CO-
VID-19, incluindo 6.285.171 mortes, relatados à OMS1.
Em função do isolamento físico, a alternativa para continuar
a nos contatar socialmente se deu mediante a WEB – World Wide Web
ou, em português, Rede de Alcance Mundial. As redes virtuais, via in-
ternet, foram acionadas para nos comunicar e para manter nossas ati-

1 Dados coletados em: <https://covid19.who.int/>. Acesso em: 29 maio 2022.

83
Sinval Martins de Sousa Filho e Madalena Teixeira

vidades sociais, em especial o labor educacional. As escolas transferi-


ram-se para o modo remoto de existência. As aulas passaram a ser en-
contros síncronos e assíncronos por telas de computador, telefones,
tablets, televisões, etc.. Houve uma redefinição dos modos de fazer e
do que fazer numa sala de aula virtual, modalidade maioritariamente
utilizada, no período de 2020 a 2022. Os princípios educacionais pre-
cisaram ser revistos e (re)definidos para a instauração de interlocu-
ções em salas remotas. Perguntas e mais perguntas foram instauradas.
Dentre essas perguntas, as mais recorrentes eram o que e como ensi-
nar.
Para a disciplina de língua portuguesa essas perguntas têm sido fei-
tas há muito tempo e, geralmente, a cada novo ciclo de 5 a 10 anos,
temos novas propostas para renovação do processo de ensino-apren-
dizagem. Há vantagens e desvantagens nessas voltas em torno do
“novo”. A grande vantagem é a oportunidade de saber que as aulas de
português, a educação linguística, a educação literária, os (multi)letra-
mentos e as literacias são dinâmicas, estão por serem feitas no pro-
cesso da educação escolar com os sujeitos engajados em torno de for-
mações, que exigem transformações. A desvantagem das frequentes
mobilizações para a mudança é o modismo intelectual. De acordo com
Franchi (2006), este pode ser chamado de eterno futurismo, em que
os professores supostamente se engajam e fazem experimentos de no-
vas teorias com seus alunos de forma arrevesada e rasa, não tendo o
cuidado de saber “escolarizar” e se deveriam levar tais teorias para as
salas de aula.
Para não corrermos o perigo do modismo arrevesado e não deixar
de inovar nas aulas de português tomamos a Agenda 30 da ONU
(ONU, 2022) como um referencial para a educação desta década e
(re)visitamos a teoria robusta de Freire (1981; 1985; 1993) sobre Edu-
cação Libertadora e a teoria de Franchi (1991; 2002; 2006) sobre Aná-
lise Linguística Enunciativa. Ambas as teorias são aplicadas ao ensino
de português há mais de 40 anos, mas até o momento não foram co-
nectadas ou articuladas, pelo menos até onde conhecemos. Assim,
nesse texto, temos o objetivo de fazer uma relação entre os estudos de

84
Para uma Didática da Análise Linguística Enunciativa na Educação Libertadora

Paulo Freire e Carlos Franchi e de mostrar como esses estudos anteci-


pam em larga medida o que preconiza a Agenda 30 para um ensino
sustentável.
A partir de uma pesquisa bibliográfica qualitativa, que é “um apa-
nhado geral sobre os principais trabalhos já realizados, revestidos de
importância, por serem capazes de fornecer dados atuais e relevantes
relacionados com o tema” (MARCONI; LAKATOS, 2003, p. 158), des-
crevemos e analisamos os livros de Freire e de Franchi e o ODS 4, pro-
curando articular as teorias sobre educação libertadora e análise lin-
guística e verificando como essa articulação se relaciona às recomen-
dações da Agenda 30 da ONU para uma educação escolar pautada pelo
desenvolvimento sustentável.
As teorias que nos embasam assentam-se no dialogismo e educação
libertadora de Freire (1981; 1985; 1993) e no dialogismo e análise lin-
guística de Franchi (1991; 2002; 2006), as quais, acreditamos, podem
ser correlacionadas com algumas ideias de Bakhtin (2009; 2011).
Propomos acrescentar ao sintagma “análise linguística” a palavra
enunciativa para marcar as diferenças entre o eixo de descrição lin-
guística, usado por estudiosos vinculados à gramática estrutural, gra-
mática funcional, gramática gerativista, etc., e acentuar que a aborda-
gem se vincula à linguística enunciativa e é específica para aplicação
em sala de aula da educação básica, com foco no ensino fundamental.
De igual importância, as sínteses que fizemos das propostas de Freire
(1981; 1985; 1993) e Franchi (1991; 2002; 2006) visam apresentar as
possibilidades de aplicação conjunta das duas direções teórico-meto-
dológicas e como essa articulação se coaduna com alguns objetivos da
Agenda 30 da ONU.
O estudo feito em parceria entre os pesquisadores da Universidade
Federal de Goiás (Goiânia – BRA) e Universidade de Aveiro (Aveiro –
PT) pretende ainda alargar o alcance dos estudos brasileiros sobre en-
sino-aprendizagem de português para além das fronteiras de Brasil e
Portugal.

85
Sinval Martins de Sousa Filho e Madalena Teixeira

1. AS PROPOSTAS DE EDUCAÇÃO LIBERTADORA DE PAULO


FREIRE E DE CARLOS FRANCHI NOS CAMINHOS DA ANÁLISE
LINGUÍSTICA

Quando estava exilado no Chile, em 1968, Paulo Freire escreveu o


texto “Considerações em torno do ato de estudar” e nele apresentou
reflexões sobre a criatividade e o processo de ensino-aprendizagem.
No Brasil, esses escritos foram publicados no início do período de re-
democratização da nação, em 1979, no livro “Ação cultural para a li-
berdade e outros escritos”. Procurando evidenciar a relação entre cri-
atividade e ensino-aprendizagem, destacamos os seguintes trechos da
perspectiva freireana do ato de estudar:
Estudar é, realmente, um trabalho difícil. Exige de quem o faz uma
postura crítica, sistemática. Exige uma disciplina intelectual que não
se ganha a não ser praticando-a. Isto é, precisamente, o que a “educa-
ção bancária” não estimula. Pelo contrário, sua tônica reside funda-
mentalmente em matar nos educandos a curiosidade, o espírito inves-
tigador, a criatividade. Sua “disciplina” é a disciplina para a ingenui-
dade em face do texto, não para a indispensável criticidade. (FREIRE,
1981, p. 8). (grifos do autor).
Em contraposição à educação bancária, Freire (1981) propõe a edu-
cação problematizadora e libertadora. Nesta, em um diálogo amoroso,
os atores do processo de formação se livram do eixo mecanicista que
sustenta a educação bancária, indo ao encontro de uma sociedade
mais justa e sustentável e, então, conquistam o direito de expressivi-
dade em meio ao empoderamento advindo da compreensão crítica da
sociedade, ou seja, é na criatividade – e não na acomodação – que os
sujeitos se encontram e se libertam, lançam-se “ao futuro como desa-
fio à criatividade humana e não ao futuro como repetição do presente”
(FREIRE, 1981, p. 64).
Neste ponto, acreditamos ser interessante refletir sobre o facto de
Freire apresentar esta proposta em 1981, e verificarmos que a concre-
tização da Agenda 2030, definida pela ONU (2022), passa pelo esta-
belecimento de objetivos de desenvolvimento sustentável (ODS) que
se articulam com a proposta freireana. Com o objetivo 4, Educação de

86
Para uma Didática da Análise Linguística Enunciativa na Educação Libertadora

Qualidade, a Agenda defende a urgência de “Garantir o acesso à edu-


cação inclusiva, de qualidade e equitativa, e promover oportunidades
de aprendizagem ao longo da vida para todos” (ONU, 2022). Só uma
“compreensão crítica da sociedade” é que consciencializará “jovens e
adultos a procurarem habitações relevantes, inclusive competências
técnicas e profissionais, para emprego, trabalho decente e empreen-
dedorismo” (ONU, 2022). Ou seja, já no final do século XX Freire de-
fendia a necessidade de uma educação libertadora.
Aliás, esta proposição de educação libertadora é recorrente nas
obras de Freire (FREIRE, 1981; 1985; 1993). E, do nosso ponto de
vista, para além dos textos escritos e publicados, também existe na es-
crevivência2 de Carlos Franchi (1991; 2002; 2006) a proposta de uma
educação problematizadora e libertadora. O diálogo entre os dois edu-
cadores pode apontar-nos pontos convergentes nas propostas de ati-
vidades de leitura, escrita, escuta e fala – atividades de, sobre e com a
linguagem – elaboradas por eles a partir da década de 60.
A ideia da criatividade é o ponto mais saliente da convergência en-
tre as teorias de Freire (1981; 1985; 1993) e Franchi (1991; 2002;
2006). É a ideia de criatividade que permite aos dois teóricos apontar
a educação como agente da transformação social e individual, como
libertadora da opressão, do preconceito, da intolerância e das desi-
gualdades sociais tão acentuadas no Brasil. Quando Freire (1981;
1985; 1993) defende que, antes de qualquer coisa, o conhecimento pré-
vio dos sujeitos da educação deve ser sistematizado, ele distribui ao
educador e ao educando possibilidades de uma interlocução/interação
criada a partir de um diálogo amoroso e libertador. Similarmente,
quando Franchi (1991; 2002; 2006) sugere que as atividades epilin-
guísticas devem ser o eixo do trabalho com a criatividade do aluno, ele
considera que o trabalho com a subjetividade em sala de aula deve ser

2 Conceição Evaristo (2006) emprega o termo escrevivência para se referir à


escrita de experiências e condições de um corpo negro num contexto de luta
pela existência em condições desfavoráveis. Nesse contexto, a escrita possibi-
lita a inserção no espaço-tempo para transformações e libertações. É, como
disse a escritora, a escrita de nós, dos sentidos em construções.

87
Sinval Martins de Sousa Filho e Madalena Teixeira

a tônica para pôr fim às barreiras entre o educador, o educando, o co-


nhecimento e a sociedade em que estão inseridos.
Com relação às concepções de Franchi sobre língua(gem), ele con-
sidera que a linguagem “é um trabalho que ‘dá forma’ ao conteúdo de
nossas experiências” (FRANCHI, 2002, p. 65) e esse resultado pode
ser visto na “atividade linguística [que] supõe ela mesma [um] retorno
sobre si mesma, uma progressiva atividade epilinguística: como ‘ativi-
dade metalinguística inconsciente’ (CULIOLI, 1968) [...] na medida
em que reflete sobre o processo mesmo de organização e estruturação
verbal” (FRANCHI, 2002, p. 66). Nessa reflexão, “a linguagem esti-
mula uma criatividade ‘vertical’” (FRANCHI, 2002, p. 66), isto é, a lín-
gua(gem) não é um dado ou resultado. Ao anunciar essas concepções,
Franchi propõe que a escola pode (re)encontrar “o espaço aberto da
liberdade criadora” nas salas de aula a partir de atividades de Análise
Linguística (FRANCHI, 1991 p. 35).
Nessas concepções, faz-se notar a ideia da criatividade, apontada e
discutida por Freire (1981; 1985; 1993) e Franchi (1991; 2002; 2006),
a transversalidade/transdisciplinaridade do trabalho com a lingua-
gem, demonstrada nas atividades com temas geradores (FREIRE,
1993) e na análise linguística (FRANCHI, 2002; 2006).
Ambos os estudiosos defendem a linguagem como atividade. Essa
atividade é situada historicamente. Entender o alcance dessa ideia im-
plica perceber que, dependendo do que o educador (professor) con-
cebe como linguagem, incide no seu cotidiano uma prática bancária
ou libertadora. Se a linguagem é sinônimo de espelho, as aulas vão re-
fletir uma assimetria entre os sujeitos e entre estes o mundo e a lin-
guagem. Se entendida como código, como instrumento, a linguagem
será trabalhada como imanente, autônoma. Assim, essas duas ideias
estão mais relacionadas ao fazer da educação bancária. A terceira con-
cepção mais usada, a da linguagem como interação, vai ao encontro do
que propõem Freire (1981; 1985; 1993) e Franchi (1991; 2002; 2006).
Nesse sentido, a linguagem atividade/interação situa a língua(gem)
como lugar de construção das relações sociais, de formação de subje-
tividades, sendo que os sujeitos são vistos como atores dialógicos na
produção de interações e sentidos.

88
Para uma Didática da Análise Linguística Enunciativa na Educação Libertadora

2. ANÁLISE LINGUÍSTICA ENUNCIATIVA E A EDUCAÇÃO


LIBERTADORA

As pesquisas sobre A Prática de Análise Linguística realizadas por


professores do Estado de Goiás (Silva, 2014; Dias, 2015; Sousa Filho e
Araújo, 2015; Furtado Baú, 2015; Sousa Filho (2017); Araújo, Sousa
Filho e Lima, 2019; Araújo, Saraiva e Sousa Filho, 2021) mostram a
recorrência de uma incompreensão do que seja essa prática e, como
consequência desta, uma confusão entre o que é análise linguística,
procedimento teórico-descritivo de gramáticas, e análise linguística,
prática pedagógica proposta por Franchi (2006) para o ensino-apren-
dizagem de língua portuguesa na escola. De acordo com Araújo, Sousa
Filho; Lima (2018, p. 288), a análise linguística, “embora instituída
como eixo de ensino, não foi abordada [nas escolas] na mesma pro-
porção que os eixos de leitura e escrita, ainda vigorando o estudo do
componente linguístico à luz da norma e/ou da descrição estrutural,
sem estabelecer uma relação com o plano textual enunciativo” (ARA-
ÚJO, SOUSA FILHO; LIMA, 2018, p. 288).
Visando minimizar essa confusão entre as duas práticas, propo-
mos, a partir desse texto, a nomear de Análise Linguística Enunciativa
(ALE) a prática pedagógica desenvolvida por Franchi, na qual existe
uma preocupação didática, isto é, no como ensinar; e não na descrição
da gramática per se (1991; 2002; 2006). Essa ação também permite
localizar a ALE nos estudos da linguística contemporânea, especial-
mente daquela que se dedica ao estudo dos enunciados, ou seja, à Aná-
lise Dialógica do Discurso (ADD). De forma geral, a concepção de lín-
gua(gem) veiculada pela linguística da enunciação se assenta na ideia
de que a linguagem é constituída por um conjunto de práticas sociais,
por interações entre interlocutores histórica, cultura e socialmente lo-
calizados. Essa noção é similar às ideias sobre linguagem defendidas
pela ADD.
No Brasil, o sintagma “análise linguística” é usado pelo menos por
três abordagens para se referir a campos de estudos. Pela gramática
descritiva, significa toda descrição feita de uma língua, ou seja, refere-
se à documentação, descrição e análise da língua X ou Y, particular-
mente da gramática ou sistema linguístico dessa língua, a partir das

89
Sinval Martins de Sousa Filho e Madalena Teixeira

divisões em domínios da fonologia, morfologia, sintaxe e semântica.


Pelos adeptos da Teoria de Operações Enunciativas (TOPE), decor-
rente dos estudos de Culioli (1968), ela é vista como inerente ao uso
da linguagem, chegando ao ponto de, consoante o estudo da análise
linguística, ser possível dizer por que e como há língua(gem). E medi-
ante o eixo pedagógico Análise Linguística, proposto por Franchi
(1991; 2002; 2006) e Geraldi (1985, 1997), esta é compreendida como
reflexões sistematizadas sobre elaborações didáticas do dizer, sobre
quando se pensa e se fala acerca da linguagem em si mesma. Na escola,
a análise linguística se desenvolve em (ou desenvolve) situações didá-
ticas que possibilitem a reflexão não apenas sobre os diferentes recur-
sos expressivos utilizados pelos interlocutores, mas também sobre a
forma pela qual a seleção de tais recursos reflete as condições de pro-
dução do discurso e as restrições impostas pelo gênero e pelo suporte.
Ainda, refere-se a situações didáticas que tomem como objeto de re-
flexão os procedimentos de planejamento, de elaboração, de refacção
e reescrita dos textos.
Didaticamente, a Análise Linguística Enunciativa divide-se em ati-
vidades linguísticas, epilinguísticas e metalinguísticas, atividades que
se dão imbricadamente nos momentos de interações. De acordo com
Franchi (2006), as atividades linguísticas são aquelas em que os sen-
tidos são colocados em ação numa conversa, na elaboração de um
texto, na compreensão de expressões, são usadas para estabelecer in-
terações diversas, ou seja, constituem o uso da língua(gem) pelos in-
terlocutores. As atividades metalinguísticas são usadas para falar so-
bre a língua, nomeando e teorizando os enunciados utilizados na inte-
ração, explicitando-os por um ponto de vista “científico”. Já as ativi-
dades epilinguísticas supõem um retorno sobre a própria atividade
linguística, na medida em que refletem mesmo sobre o processo
mesmo de uso da língua(gem).
Assim, a análise linguística não se aplica ao ensino de análises de
fenômenos gramaticais por eles mesmos, mas ao ensino da produção
e da compreensão de enunciados de uma determinada língua. Nas au-
las de análise linguística, evidenciam-se como funcionam os enuncia-
dos X e/ou Y para atingir “tais e tais” objetivos. De acordo com Franchi

90
Para uma Didática da Análise Linguística Enunciativa na Educação Libertadora

(2006) e Geraldi (2016), a análise linguística visa à articulação da re-


flexão da linguagem às práticas de leitura e produção textual, levando
em conta os usos linguísticos e os discursos produzidos, na busca pela
compreensão dos efeitos de sentido que são usados para convencer,
persuadir, encantar, etc.. Assim, tem-se na análise linguística uma tese
que defende a linguagem como indeterminada e, consequentemente,
que trabalha com a ideia de que as línguas, assim como a linguagem,
atualizam-se como trabalho ou atividade que inserem o sujeito falante,
ouvinte, leitor, escrevente/escritor/autor, professor, aluno no centro
do processo de atribuição de significados aos textos orais e escritos.
Compreendemos que essa ideia de Análise Linguística Enun-
ciativa (ALE) liga-se fortemente às ideias freireanas de uma educação
libertadora. Tanto a ALE quanto a Educação Libertadora são pensadas
como base para intervenções didáticas que considerem os atores do
fazer pedagógico, educando e educador, como sujeitos com direitos de
expressividade e criativos. E é essa criatividade que está em jogo e
pode proporcionar um futuro empoderado para os sujeitos da educa-
ção escolar.

3. A SIGNIFICAÇÃO CONSCIENTIZADORA DA INVESTIGAÇÃO


DOS TEMAS GERADORES: INDÍCIOS DE AL EM PAULO FREIRE

A Teoria do Conhecimento formulada por Freire (1993) ou método


Paulo Freire, como ficou conhecida, tem alicerces no respeito ao estu-
dante, na “conquista da autonomia e [n]a dialogicidade”, sendo que
Freire “utilizou essa trilogia como base para seus princípios metodo-
lógicos” (FEITOSA, 2003, p. 148). Conforme Feitosa (2003), os temas
geradores são os eixos da metodologia dialógica de Freire. A partir da
extração de problematizações da prática de vida dos educandos, os te-
mas geradores são criados e poderão ser de natureza variada. Uma das
problemáticas que envolve a vida dos alunos de hoje prende-se, por
exemplo, com a necessidade de desenvolvimento da literacia de infor-
mação e literacia para os média, uma vez que a velocidade de criação
de conteúdos on-line e o fácil acesso à informação potenciam a criação
de ódios que se tornam virais (MEC, 2022).

91
Sinval Martins de Sousa Filho e Madalena Teixeira

A par dessa forma de aparecimento dos temas aponta, entre outras


possibilidades, para o conceito de gêneros discursivos, que são extraí-
dos de cada esfera ou campo da atividade da vida humana (BAKHTIN,
2009; 2011), ou seja, surge do diálogo entre o homem e o mundo e são
acionados pela linguagem, que os coloca em situação de refratores ou
reflexionadores da realidade objetivada.
Ainda de acordo com Feitosa (2003), sobre os temas geradores, é
possível considerar que eles estão, de certa maneira, ligados à inter-
disciplinaridade (diríamos também à transdisciplinaridade) e se apre-
sentam fortemente na metodologia freireana, sendo que esta, atual-
mente, parece ter-se tornado uma moda e é aplicada em inúmeras
áreas do conhecimento (Schroeder, 2022). Assim, no tema gerador
“está subjacente a noção holística de promover a integração do conhe-
cimento e a transformação social” (FEITOSA, 2003 p. 153), indo ao
encontro do pensamento de Herzog, Ai e Ashton (2022) que defendem
que o trabalho interdisciplinar requer a integração de várias discipli-
nas. “Do tema gerador geral sairá o recorte para cada uma das áreas
do conhecimento ou para as palavras geradoras” (FEITOSA, 2003 p.
153).
O material didático, construído por toda a classe na escola, surge
da articulação do vivido com o rigor científico e volta ao grande ar-
quivo constituído por homens e mulheres, saí da prática-teoria ou da
teoria-prática, isto é, emerge da práxis (SOUSA FILHO; LIMA, 2020).
Ao considerar que os grandes arquivos são os humanos, Freire (1993,
p. 58) enfatiza a prática-teoria ou teoria-prática, pois
fora da busca, fora da práxis, os homens não podem ser. Educador
e educandos se arquivam na medida em que, nessa distorcida visão de
educação, não há criatividade, não há transformação, não há saber. Só
existe saber na invenção, na reinvenção, na busca inquieta, impaci-
ente, permanente, que os homens fazem no mundo, com o mundo e
com os outros. (FREIRE, 1993, p. 58).
Nesse recorte, fica evidente a reprovação da educação bancária, a
qual enche o educando de conteúdos impostos, prontos e acabados. Ao
negar esse tipo de educação, Freire (1993) elege a metodologia dos te-
mas geradores como meio de ação para instaurar, mediante a proble-

92
Para uma Didática da Análise Linguística Enunciativa na Educação Libertadora

matização ou resolução de problemas, o poder de captação e de com-


preensão do mundo, este dinâmico e não estático, inconcluso e não
acabado, em transformação. Com efeito, os nossos esforços têm de es-
tar centrados nas pessoas e na dignidade humana para que haja uma
nova visão para a humanidade (ONU, 2022), pois somente assim é
possível agir para transformar o quadro de uma educação bancária,
passiva, desviante do desenvolvimento do pensamento crítico. Im-
porta, então, desenvolver um sistema educativo, em que todos os ci-
dadãos tenham voz, sejam envolvidos, reconhecidos e participem ati-
vamente na sociedade que os enforma para que possam ser atores na
construção de um quotidiano sem estereótipos e sem discriminação
(ONU, 2022).
Esse movimento de preocupação contínua (processo) com a educa-
ção continua a ancorar que a manifestação da relação pensamento-lin-
guagem e os temas geradores são promotores para a tomada de cons-
ciência e de empoderamento dos indivíduos, uma vez que a educação
implica, necessariamente, uma metodologia que não pode contra-
dizer a dialogicidade da educação libertadora. Daí que seja igualmente
dialógica. Daí que, conscientizadora também, proporcione ao mesmo
tempo a apreensão dos ‘temas geradores’ e a tomada de consciência
dos indivíduos em torno dos mesmos” (FREIRE, 1993, p. 87).
O próprio Freire (1993, p. 65) é quem orienta o educador como de-
senvolver uma aula a partir do uso dos temas geradores:

Numa visão libertadora, não mais “bancária” da educação, o seu con-


teúdo programático já não involucra finalidades a serem impostas ao
povo, mas, pelo contrário, porque parte e nasce dele, em diálogo com
os educadores, reflete seus anseios e esperanças. Daí a investigação da
temática como ponto de partida do processo educativo, como ponto de
partida de sua dialogicidade.

Assim, a temática a ser trabalhada surge como a primeira tarefa do


professor. Vale lembrar que Freire (1993) não separa o momento de
preparação e o de ação. A preparação-ação se dá nos primeiros encon-
tros com a turma ou classe escolar. Os temas geradores ou temáticas
significativas partem da realidade e para ela retornam num “diálogo
às claras entre todos” (FREIRE, 1993, p. 66), ou seja, a procura dos

93
Sinval Martins de Sousa Filho e Madalena Teixeira

temas é uma busca categorizada e de realização num encontro dialó-


gico consensual entre os membros da turma ou da sala de aula e deve
ter como propósito a resolução de uma problemática contextualizada
no quotidiano dos alunos. Pois se importa que estes sejam cidadãos
ativos e participativos, é fundamental que se habituem, desde cedo, a
procurar soluções para ultrapassar obstáculos com os quais deparem
no(s) seu(s) dia a dia.
Na sequência da descoberta do tema, conforme explica Freire
(1993), a turma em atitude dialogal e procedimental define o que falar,
escutar, onde, quando e como estudar do tema gerador, ou seja, como
instaurar situações-problemas a serem coletivamente desenvolvidas.
Feitos os acordos ou combinados didáticos, a turma analisa as falas
que se opõem e os discursos que são diferentes da prática, com vistas
a superar conflitos e contradições existentes. Nessas oposições discur-
sivas, destacam-se as gírias, os dialetos, as línguas, os jeitos de falar.
No nosso ponto de vista, há muito dos princípios da análise linguís-
tica enunciativa nas propostas de como escutar, falar, onde e quando
falar/escrever e com que intenções, para quem, etc., justamente por-
que a proposta de Freire se pauta no enunciado (BAKHTIN, 2009;
2011), isto é, na língua viva, em sua significação, mediante os efeitos
de sentido colocados em diálogo (oposição/contraditório ou equilí-
brio) por interatuações conjuntas e horizontais. Conforme Geraldi
(2005), Paulo Freire trata da linguagem como categoria de pensa-
mento com funcionamento próprio, o qual explica outros fenômenos
sociais e pedagógicos. Ainda segundo Geraldi (2005), Freire considera
que ao se estudar linguagem temos que ter em mente que ela nos per-
mite testar os achados e que a língua(gem) se dispõe à revisões, isto é,
Freire (1993) argumenta que para uma aula exitosa a partir dos temas
geradores podemos falar com a linguagem, sobre a linguagem e da lin-
guagem. É nosso entendimento, sem dúvida, que quanto maior for o
domínio da língua, maior é a possibilidade de resolver problemas,
maior é possibilidade de interação com o outro. Ou seja, a enunciação
assume um papel fulcral no desenvolvimento de um indivíduo en-
quanto cidadão que se insere neste mundo global.

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Para uma Didática da Análise Linguística Enunciativa na Educação Libertadora

Assim, para exemplificar como mobilizar a metodologia dos temas


significativos no trabalho com a língua(gem), apresentamos o seguinte
excerto da obra a Importância do ato de ler:

A palavra tijolo, por exemplo, se inseriria numa representação pictó-


ria, a de um grupo de pedreiros, por exemplo, construindo uma casa.
Mas, antes da devolução, em forma escrita, da palavra oral dos grupos
populares, a eles, para o processo de sua apreensão e não de sua me-
morização mecânica, costumávamos desafiar os alfabetizandos com
um conjunto de situações codificadas de cuja decodificação ou "leitura"
resultava a percepção crítica do que é cultura, pela compreensão da
prática ou do trabalho humano, transformador do mundo. No fundo,
esse conjunto de representações de situações concretas possibilitava
aos grupos populares uma "leitura" da "leitura" anterior do mundo, an-
tes da leitura da palavra. (FREIRE, 1985, p. 23)

A longa citação nos mostra como e por que usar a metodologia frei-
reana. Para além dessa demonstração, podemos ver claramente a no-
ção de que a leitura da leitura nos remete às atividades linguísticas,
epilinguísticas e metalinguísticas, sobretudo quando sabemos que a
ideia defendida por Freire (1985; 1993) é de um trabalho criativo e
emancipatório com a língua(gem) para a instauração de uma educação
libertadora, à qual nós também acrescentamos uma educação de qua-
lidade. Para uma atuação cidadã, o ser humano, efetivamente, precisa
de sentir a sua realização pessoal, de sentir que vive numa sociedade
justa, sem receios e sem violência3.

4. TRABALHO COM A LÍNGUA(GEM) [ANÁLISE LINGUÍSTICA


ENUNCIATIVA] FORMULADOS POR CARLOS FRANCHI

A coletânea “Mas o que é mesmo gramática” (Franchi, 2006) apre-


senta 3 capítulos, a saber: 1) Mas o que é mesmo “gramática”; 2) Gra-
mática e criatividade; e 3) O uso de relações semânticas na análise
gramatical. O capítulo 2, escrito por Carlos Franchi na década de 1970,
demonstra o que, como e por que trabalhar com a língua(gem) a partir

3Conselho Empresarial para o Desenvolvimento Sustentável. Disponível em:


<https://www.ods.pt/ods/#17objetivos>. Acesso em: 29 maio 2022.

95
Sinval Martins de Sousa Filho e Madalena Teixeira

da criatividade ou dos caminhos abertos da linguagem. Estes eviden-


ciam as regras da linguagem, as quais podem guiar o trabalho linguís-
tico centrado no uso da língua(gem) e fazer com que o professor deixe
de repetir nomenclaturas da gramática tradicional e/ou os exercícios
mecanicistas dos livros didáticos de língua portuguesa (FRANCHI,
2006). A proposta de Franchi (2006) é exemplificada por aulas dadas
pelo Padre José de Mattos na década de 1940 (1946 – 1949). O lin-
guista brasileiro escolhe as aulas recebidas pelo professor Mattos, com
vistas a demonstrar que o trabalho com a linguagem pode ser feito de
modo intuitivo, com base nos usos dos recursos linguísticos utilizados
na realidade, explorando a criatividade linguística ou os caminhos
abertos da linguagem cambiante. E, segundo Travaglia (2017), todos
nós, quando chegamos à fase da aprendizagem formal, temos conhe-
cimentos linguístico-gramaticais que são intuitivos, isto é, sabemos
que uma criança ao dizer Eu quero banana, ela está a referir-se a ela
própria e está a expressar uma vontade em tempo presente; todavia
não sabe que está a utilizar um pronome pessoal, na primeira pessoa
do singular, uma forma verbal do verbo querer no presente do indica-
tivo, também na primeira pessoa do singular, e um nome comum con-
tável.
Como afirma Franchi (2006), o objetivo de transcrever as aulas do
Padre Mattos se dá porque a metodologia adotada pelo Padre-profes-
sor representa para o linguista uma prática fundamental para sua for-
mação docente: “minha intenção é a de refletir teoricamente sobre
uma prática real que [...] possui no curso de meu aprendizado da gra-
mática e da produção de textos um papel decisivo” (FRANCHI, 2006,
p. 80).
Concordamos com o autor, uma vez que a nossa própria prática de
ensino nos tem mostrado que (alguns) problemas observados na pro-
dução de textos se devem à falta de conhecimentos do uso gramatical
(Teixeira, 2014). Além disso, documentos norteadores da prática le-
tiva (MEC, 2015, p. 6) também traduzem a conexão entre os dois do-
mínios do português – “Mobilizar os conhecimentos gramaticais para
aperfeiçoar as capacidades de interpretar e produzir enunciados (...)
escritos.”. Mas não adianta adotar uma metodologia de ensino cen-
trada no professor e naquilo que ele vai ensinar. Importa, isso sim, que

96
Para uma Didática da Análise Linguística Enunciativa na Educação Libertadora

a metodologia de ensino seja centrada nos alunos, nas suas vivências


e nas suas experiências, de modo a que estes: i) desenvolvam “a sua
consciência linguística, consolidando gradualmente a capacidade de
reflexão e de domínio das regras que estruturam a língua e que regem
o seu uso” (MEC, 2018, p. 3); ii) tenham um conhecimento sistemati-
zado “quanto aos processos básicos da estrutura e do funcionamento
da língua (MEC, 2018, p. 3), de modo a que consigam escrever, tendo
por base “diferentes objetivos comunicativos, com organização ade-
quada, diversidade e propriedade vocabular...” (MEC, 2018, p. 3)
Mas veja-se, agora, de acordo com Franchi (2006), em que consis-
tia a metodologia do Padre Mattos para o trabalho com o texto em sala
de aula. Esta era dividida em atividades linguísticas, metalinguísticas
e epilinguísticas, como podemos verificar nos excertos a seguir:

Tinha organizado procedimentos muito especiais, e muito seus, de tra-


balho em classe e nas salas de estudo:
– propunha um lema, bem ao gosto clerical das citações latinas – "nulla
dies sine linea": "nenhum dia sem escrever pelo menos uma linha" –
que era cumprido religiosamente;
– exercitava-nos, continuamente, em um trabalho de reconstrução
consciente dos textos: estávamos, sempre, alterando tópicos e perspec-
tivas, substituindo uma construção por outra, experimentando-as e
compondo-as com outras, reforçando o vocabulário mais próprio às
pompas e circunstâncias, simulando várias situações com diferentes
interlocutores, etc.;
– fazia que o estudo gramatical, preso ao estudo do latim e de seus ca-
sos, pretéritos e supinos, preposições e conjunções (tratava-se de um
seminário), saísse desse esquema analítico para um permanente pro-
cesso de comparação dos recursos expressivos entre si. (FRANCHI,
2006, p. 81 e 82).

Vislumbra-se, nestes exemplos, um trabalho de tipo laboratorial


que tem por base o tratamento da língua como atividade constitutiva
dos sujeitos. Ou seja, os alunos “agarravam” na língua e iam a mani-
pulando, ora experimentando, ora substituindo, de acordo com os
contextos de uso, simulações, planejados, isto é, o uso da língua, do
texto, do discurso, adequado à situação comunicativa. Esta atuação as-
semelha-se à “filosofia” do laboratório de conhecimento de língua
(Duarte, 2008), no qual os alunos experimentam, observam e anali-
sam regularidades e irregularidades do(s) uso(s) da língua.

97
Sinval Martins de Sousa Filho e Madalena Teixeira

Após se formar como linguista e de acumular muito tempo de ex-


periência docente, Franchi (2006) reflete sobre este tipo de ações,
aprova-as e as recomenda no processo de ensino-aprendizagem de lín-
guas. Em especial, o linguista escolhe como ponto alto da prática alta-
mente recomendada aquele que diz respeito à liberdade e à criativi-
dade:

Levava, na prática, seus alunos a uma intensa e rica ação sobre seu pró-
prio texto e a um exercício gramatical bem mais amplo do que a teoria
gramatical que possuía. Penso, também, nos que têm escrito tão torto
por linhas direitas e retas. Com tudo o que se fala de liberdade e criati-
vidade, de abolição dos modelos e normas, da concepção moderna de
linguagem e gramática e de linguística, ou se propõem os mesmos exer-
cícios escolares ou nada se propõe, deixando os alunos à espera de que
aprendam na vida. O melhor, pois, é exemplificar como procedia nosso
Padre Matos. (FRANCHI, 2006, p. 82).

De modo resumido, podemos afirmar que, ao trabalhar com Aná-


lise Linguística Enunciativa, Franchi (1991; 2006) considera que a dis-
ciplina Língua Portuguesa deve ser pautada “no uso e na prática da
linguagem ela mesma, e não falando dela,” para (re)encontrar “o es-
paço aberto da liberdade criadora” nas salas de aula (FRANCHI, 1991,
p. 35). O centro desse trabalho desloca-se do “baú de guardados”/gra-
mática (FRANCHI, 1991, p. 52) para o estudo da língua(gem) nos tex-
tos e a partir dos textos, mediante a consideração de que linguagem,
mundo e homem são vivos e dinâmicos. Assim, a proposta de Franchi
(2006) é trabalhar com as línguas e não com as categorias de metalin-
guagem feitas para descrever as gramáticas dessas línguas. Para esse
trabalho, muitas das estratégias apresentadas por Franchi são ativida-
des conhecidas no processo de ensino-aprendizagem: atividades de
leitura e de produção de textos. A inovação seria o trabalho processual
e sistemático com a reescrita e com a reflexão sobre os recursos lin-
guísticos empregados nos textos, trabalhados a partir de uma visão
discursiva, sendo enfatizados, nesses trabalhos, os textos dos alunos,
os sujeitos do processo de ensino-aprendizagem de língua portuguesa.
Assim, as atividades da disciplina língua portuguesa na escola devem
ser de: i) produção e compreensão de textos, ii) desenvolvimento da

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Para uma Didática da Análise Linguística Enunciativa na Educação Libertadora

interação social na oralidade (e nas escritas (multi)modais), iii) conhe-


cimento; e iv) representação da realidade e eliminação de preconceitos
e discriminações sociais na linguagem.

CONSIDERAÇÕES

No percurso reflexivo apresentado, procuramos demonstrar as for-


ças dos pensamentos de Paulo Freire e Carlos Franchi, articulando
ideias dos referidos educadores para o ensino de língua(gem). Acen-
tuamos a similaridade entre os dois estudiosos a partir das concepções
de linguagem, de homem e de mundo assumidas por eles nas obras de
Freire (1981; 1985; 1993) e de Franchi (1991; 2002; 2006). Destaca-
mos que essas concepções são centradas na historicidade do mundo,
do homem e da linguagem.
A linguagem para Franchi e Freire é uma atividade que permite ao
sujeito expressar suas experiências e, assim como o homem e o
mundo, é indeterminada semanticamente, sendo, por isso, categorias
interdependentes, uma vez que sujeito e linguagem estão situados em
determinados contextos histórico-sociais. Esses contextos também
participam de modo decisivo nos processos de interações humanas via
linguagem.
As atividades didáticas no processo de ensino-aprendizagem de
línguas partem da realidade do educando e voltam (re)significadas
para essa realidade, sempre em transformação. Os temas geradores,
atividade linguística, atividade epilinguística e atividade metalinguís-
tica são todos disparadores de reflexões que se desenvolvem a partir
da leitura da leitura, da escrita da escrita, da fala da fala e da escuta da
escuta, num processo continuado de resolução de problemas instau-
rados na atividade inconclusa de simbolização, representação, ação,
identificação, etc., da língua(gem).
Concluindo, cremos que Freire e Franchi consideram que a educa-
ção bancária ou o trabalho mecanicista com nomenclaturas gramati-
cais “cria homens espectadores e não criadores do mundo” (FREIRE,
1993, p. 89) num trabalho de “arquivamento”, de assujeitamento
dessa liberdade a certos parâmetros teóricos e formais” (FRANCHI,

99
Sinval Martins de Sousa Filho e Madalena Teixeira

2006, p. 35). Por conhecerem bem a educação bancária e por sonha-


rem com a educação libertadora, possível e exequível, é que os pensa-
dores se lançaram às pesquisas e atividades docentes em torno da lei-
tura, da escrita, da fala e da escuta e nos deixaram o legado de suas
obras monumentais. E, nesse legado, a maior defesa é pela criativi-
dade, pela liberdade e pela autonomia de todos os cidadãos que pos-
sam ser alcançados pela educação.
Assim, ao associar a Educação Libertadora com a Análise Linguís-
tica Enunciativa, acreditamos que essa articulação atende também aos
princípios da Agenda 30 da ONU para o Desenvolvimento Sustentável,
sobretudo porque também nesse documento está a ideia de que o edu-
cando é um ser social que constrói sua identidade cultural nas intera-
ções quotidianas. Dessa forma, tanto para Freire quanto para Franchi,
o objetivo 4 ODS da Agenda 20/30 da ONU incentiva o educador a se
valer dos conhecimentos desses alunos em seus métodos de ensino,
isto é, a trazer para as salas de aulas as realidades dos educandos e, a
partir delas, construírem juntos uma educação libertadora.

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104
Memórias de Leitura em
Abordagem Discursiva no
Contexto Acadêmico:
Possibilidades de Resistência na
Escrita de Si
Sarah Suzane Bertolli
Cristina Batista de Araújo
Alexandre Ferreira da Costa

ENTRE FIOS DE LEITURA, ESCRITA E NÓS DE RESISTÊNCIA:


ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

“Para os navegantes com desejo de vento, a memória é um ponto de


partida” (Eduardo Galeano)1.

A leitura e a formação do leitor constituem, historicamente, palco


de debates e embates. Diante da ordem do discurso da educação bra-
sileira, investigaremos tal temática a partir da análise de uma prática
de ensino mobilizada no contexto acadêmico e que envolve a elabora-
ção de memoriais de leitura e formação docente. Consideraremos a
conjuntura social e política do país que se alinha com vistas à (des)hu-
manização (CANDIDO, 2004; ECO, 2020) e ao reordenamento con-
temporâneo do discurso educacional, que é fortemente marcado pelo
acontecimento do golpe à democracia ocorrido em 2016 no Brasil, pela

1 GALEANO, Eduardo. O livro dos abraços. Porto Alegre: L & PM, 1991.

105
Sarah Suzane Bertolli, Cristina Batista de Araújo e Alexandre Ferreira da Costa

implantação da Base Nacional Comum Curricular (2018) e pelo apa-


gamento da memória vocabular e conceitual do letramento na Política
Nacional de Alfabetização (2019), bem como pela censura de livros li-
terários voltados à escola básica.
Tendo em vista o cenário sociopolítico brasileiro, a prática de en-
sino mobilizada para este estudo elegeu o memorial como gênero aca-
dêmico de escrita de si que reconfigura e ressignifica, em sua maleabi-
lidade e propósito interativo, as práticas de resistência. A proposta foi
realizada no primeiro semestre acadêmico de 2021, com estudantes de
uma disciplina do curso de Letras – Língua Portuguesa, da Universi-
dade Federal de Goiás2.
Objetivou-se analisar as ressonâncias literárias, teóricas e metodo-
lógicas tecidas nos memoriais dos acadêmicos, que enunciassem regu-
laridades e raridades discursivas de práticas de ensino da leitura. Tal
perspectiva possibilitou, ainda, analisar a censura a pedagogias ditas
como revolucionárias e/ou perigosas ou cujo alinhamento ideológico
é indesejado, brutalizado. É esse olhar exotópico na construção da re-
lação eu-outro que conduz para constituição do que seria o ‘olhar
alheio’ na banalização de opressão humana e regulações impostas aos
livros e às pedagogias (BAKHTIN, 2011; ANDRUETTO, 2017; GE-
RALDI, 2013).
Livros, gestos, ambientes e leitores são historicamente censurados
e, muitas das vezes, as motivações de tal tolhimento são da ordem au-
toritária do que seria ou não lícito para conhecimento de mentes jo-
vens. As justificativas para censura geralmente são acompanhadas do
apagamento da memória social, histórica e cultural de um povo, como
por exemplo o apagamento da Ditadura Militar no Brasil (1964-1985).
Fato é que o gênero memorial, em que a escrita de si é materializada,
torna-se um espaço de resistência em que práticas são enunciadas e
remontam, a seu modo, fragmentos da história brasileira, das políticas
de leitura, das concepções pedagógicas e da constituição do leitor.

2Os professores regentes de tal disciplina foram o prof.. Alexandre Ferreira da Costa,
a profa.. Cristina Batista de Araújo e a profa. Sarah Bertolli, em cujo projeto de pes-
quisa a ação teve ancoragem. O projeto tinha aprovação no Comitê de Ética da UFG,
CAAE: 47081315.0.0000.5083/ 47081315.0.0000.5083.

106
Memórias de Leitura em Abordagem Discursiva no Contexto Acadêmico

O estudo realizado, a partir de projeto integrador de escrita com


professores em formação, contribuiu especificamente com a reflexão
sobre os processos envoltos nas práticas de leitura e na formação do
leitor; no tolhimento ao direito formativo do sujeito-leitor, nas práti-
cas de resistência que se tecem na narrativa de si pelo resgate da me-
mória e nas práticas impostas normativamente e/mas ressignificadas
no chão da escola, a partir a concepção de exotopia (BAKHTIN, 2011).
A atitude dialógica do analista do discurso para compreender a
exotopia implicam “[...] sempre um movimento duplo: o de tentar en-
xergar com os olhos do outro e o de retornar à sua exterioridade para
fazer intervir seu próprio olhar: sua posição singular e única num dado
contexto e os valores que ali afirma” (AMORIM, 2012, p. 102). A partir
desse movimento, consideramos a prática de rememoração e a escrita
de si como portadoras desse intercâmbio de posições do sujeito-pre-
sente que olha para o sujeito-passado, do professor que olha para o
estudante que foi, do eu que olha para outros que atravessaram sua
história de vida, leitura e formação escolar etc.

PARA NÃO ESQUECER: MEMÓRIA DE TEMPOS AUTORITÁRIOS


E LUTAS POR LIBERDADE

A urgência do ensino da leitura e da literatura no contexto mais


autoritário de práticas escolares vai ao encontro do que Adorno (2011)
considera como propósito central da escola e da educação de um país
de um modo geral, a saber, “Que Auschwitz não se repita!”. Eco (2020)
descreve a presença do fascismo no decorrer da história mundial, ca-
racterizada como fascismo eterno ou Ur-fascismo, delineada em tons
de distopia, com trajes civis, militares e pedagógicos vigentes no aceno
laudatório a governos e lideranças autoritárias e no tolhimento, por
exemplo, ao direito da leitura literária. Em perspectiva memorialís-
tica, Eco retoma a infância como sujeito-leitor que se defrontou com a
realidade do fascismo, com as ‘palavras proibidas’ da época e, a partir
da leitura crítica e social, compreende a importância da liberdade. A
memória histórica do que o mundo vivenciou nas guerras e nos regi-
mes ultranacionalistas não pode ser ignorada, – ainda que alguns ten-
tem minimizar e ressignificar seus sentidos ou mesmo tentem negar

107
Sarah Suzane Bertolli, Cristina Batista de Araújo e Alexandre Ferreira da Costa

sua ocorrência -, pois muitos destes discursos ordenam e mantêm o


alinhamento da barbárie.
Ao elencar os contornos sombrios desse tipo de fascismo que per-
siste, Eco pratica uma escrita de si repleta de sentidos e sentimentos
cujo excedente alcança o leitor-menino que se fascina ao descobrir a
diversidade de partidos políticos e o papel libertário da palavra, inse-
rida no campo jornalístico sem amarras. Esse leitor é quem compre-
ende a importância das práticas de resistência em tempos de barbárie
e, diante do fim da ditadura, escreve: “[...] liberdade de palavra, de im-
prensa, de associação política. Estas palavras ‘liberdade’, ‘ditadura’ –
Deus meu! – era a primeira vez em toda a minha vida que eu as lia. Em
virtude dessas novas palavras renasci como homem livre ocidental”
(ECO, 2020, p. 60).
A densidade de tal momento emerge em palavras tecidas pelo sen-
timento de libertação que também é recorrente em Soares (2014,
2020), expressa na preocupação com as práticas de letramento em
nosso país, dos autores censurados no passado e na contemporanei-
dade. É como se todas essas vozes, somadas a tantas outras, convocas-
sem para que não nos esqueçamos que tempos de barbárie desumani-
zam, matam e torturam, que lutemos pela liberdade, que sejamos ca-
pazes de reconhecer os trajes civis do fascismo eterno.

PRÁTICA DE ESCRITA MEMORIAL COMO ECO DE


RESISTÊNCIA: UMA EXPERIÊNCIA NO CONTEXTO ACADÊMICO

É a partir da premissa de Adorno (2011) e Eco (2020) que conside-


ramos a memória histórica como prática de resistência à barbárie, e o
gênero memorial, enquanto narrativa de si, um documento capaz de
contar a história das práticas pedagógicas no efeito discursivo provo-
cado nos sujeitos. A interpretação dos textos produzidos por estudan-
tes na disciplina de Estágio em Língua Portuguesa da UFG parte dessa
premissa e busca a análise da exotopia e autoria na composição de tais
narrativas memorialísticas. As práticas acadêmicas descritas neste es-
tudo são atividades centrais da etapa final no curso de graduação 3 e,

3Este trabalho se enquadra como faceta do projeto: “Reconstituição dos pro-


cessos da formação docente e do trabalho escolar na etapa de implementação

108
Memórias de Leitura em Abordagem Discursiva no Contexto Acadêmico

em grande medida, caracterizam-se pela produção, recepção e circu-


lação de gêneros discursivos específicos.
Nesse propósito, doze narrativas de participantes desta pesquisa
são analisadas; todos professores já atuantes e/ou em formação no
momento de construção/escrita e compartilhamento do memorial. A
análise partirá da tese bakhtiniana quanto à diferença essencial entre
o meu tempo e o tempo do outro, já que “em relação a mim mesmo,
vivencio o tempo em termos extraestéticos” (BAKHTIN, 2011, p. 110),
haja vista que “o dado imediato das significações semânticas, fora das
quais não posso criar nada ativamente como meu, inviabiliza o acaba-
mento axiológico positivo da temporalidade” (BAKHTIN, 2011, p.
110). Assim, o eu presente (professor e professor em formação) ao
olhar o eu passado (o estudante que foi) busca rememorar (transpor-
tar-se) e retornar ao ponto com os valores de agora, com ideias cons-
truídas na trajetória de vida – tal qual faz Eco ao aludir à memória de
infância, analisando-a sob seu ponto de vista de autor, professor, pes-
quisador etc.
Os estudos filosóficos e discursivos do Círculo de Bakhtin contri-
buem para essa trilha de análise, já que se identificam com uma her-
menêutica nos estudos que dá primazia aos gestos interpretativos, por
progressiva atribuição dos sentidos, contrapondo-se a uma ciência que
vislumbra o humano por meio de fórmula matemática (FARACO,
2009). Nessa abordagem de sujeito e humanização é que as concep-
ções dialógicas serão tecidas na análise.
No jogo de posições que acontece no ato de ‘contar a própria histó-
ria’, poderíamos pensar que o autor e o herói/personagem da narrativa
memorial são a mesma figura, mas, na problematização do Círculo, as
posições são deslocadas, não fundidas. Em O autor e o herói na ativi-
dade estética, Bakhtin (2011) discute como nem mesmo no relato au-
tobiográfico poderíamos pensar que há uma mera discussão sobre ‘a
verdade de si mesmo’. Afinal, o escritor se posiciona axiologicamente
diante da própria vida, rememorando fatos, episódios, sentimentos,
espaços e sujeitos que fizeram parte do seu eu passado ou fazem parte

da escola integral de tempo integral da nova ordem de discurso da educação


brasileira”, do Grupo de Estudos Transdisciplinares à Formação de Professo-
res – Portos (CNPq/ UFG).

109
Sarah Suzane Bertolli, Cristina Batista de Araújo e Alexandre Ferreira da Costa

do seu presente. É assim que ele cria um excedente de visão, a partir


do qual pode recordar e pinçar os elementos de sua história que esco-
lhe compartilhar ou aqueles acontecimentos que, pela natureza sensí-
vel ou sofrida, clamam no interior a ponto de explodir (BAKHTIN,
2011; FARACO, 2009).
A reflexão de Andruetto (2012, p. 30), ao problematizar as frontei-
ras forjadas do olhar alheio-olhar próprio, nos parece dialógica, in-
clusive traduzindo um prisma da exotopia, visto que a abordagem de
sujeito dessa escritora argentina é revestida da hermenêutica dos es-
tudos do discurso: “Olhar, então, nas vidas alheias para nos vermos,
ou, o que é o mesmo, contar as vidas alheias para dar conta de nosso
modo de ser e olhar”. Aqui o movimento duplo constitutivo da exoto-
pia, descrito por Amorim (2012) e com rememoração nas posições do
autor e do herói em Bakhtin (2011), aparece também revestido pela
tônica das relações eu-outro na/para a formação humana.
No escopo teórico-metodológico que colhemos, da análise do dis-
curso com abordagem dialógica, compreende-se a memória como “[...]
um enfoque construído do ponto de vista do acabamento axiológico;
em certo sentido ela é inviável, mas por outro lado só ela é capaz de
julgar a vida finda e toda presente, independente do objetivo e do sen-
tido” (BAKHTIN, 2011, p. 98). Assim, a escrita da memória, com toda
a sua fluidez transgressiva, tem sido importante tanto para fins medi-
tativos, terapêuticos ou pedagógicos, quanto para questões de ordem
mais técnica.

MEMÓRIAS TECIDAS EM PRÁTICAS ACADÊMICAS E


FORMATIVAS

Quanto às fronteiras da lembrança e da memória, consideramos


que “a memória sobre o outro e sua vida difere radicalmente da con-
templação e da lembrança de minha própria vida: a memória vê a vida
e seu conteúdo de modo diferente, e só ela é esteticamente produtiva”
(BAKHTIN, 2011, p. 98). Perante uma abordagem estética de manifes-
tação artístico-literária é que podemos enquadrar os textos do gênero
memorial.

110
Memórias de Leitura em Abordagem Discursiva no Contexto Acadêmico

A sugestão de escrita da vida dos discentes, com enfoque no pro-


cesso de escolarização e de leitura, objetiva a análise de práticas de
ensino-aprendizagem vivenciadas por eles, considerando a finalidade
apriorística de uma disciplina de estágio curricular, que envolve a prá-
tica pedagógica para a formação de futuros professores. Assim, a epí-
grafe de Galeano a respeito da memória, anunciada neste trabalho,
pode ser compreendida, já que partindo da memória escolar se busca
autorreflexão e compartilhamento de práticas exitosas e não-exitosas
com olhares intercambiados de posições-sujeito como professores e
estudantes.
A produção textual é tecida dialogicamente, envolta na realidade
semiótica e no contexto da dinâmica histórica da interação humana,
também em circunstâncias escolares e acadêmicas, num duplo movi-
mento: “[...] como réplica ao já dito e sob o condicionamento da réplica
ainda não dita, mas já solicitada e prevista, já que Bakhtin entende o
universo da cultura como um grande e infinito diálogo” (FARACO,
2009, p. 42). Na prática dos memoriais essa réplica interlocutiva ocu-
pou diferentes espaços de leitura/escuta ao longo das aulas do semes-
tre letivo e por intermédio de contribuições, via comentários, de leito-
res/colegas de turma no espaço do Google Classroom, com aba para
postagem, escrita e edição do texto, leitura e revisão/comentários.
Poucos estudantes realizaram a sugestão de tecer comentários a res-
peito dos textos dos colegas com uso da ferramenta de sala de aula
digital. Neste artigo, debruçamo-nos no escopo de pensar a escritura
literário-acadêmico do memorial. Em pesquisas vindouras, estima-
mos descrever um pouco mais a respeito da interação dessa etapa de
recepção e circulação do projeto de escrita memorial.
No propósito de apresentar a formação de leitura dos participantes
do estudo, colhemos excertos dos memoriais que representam aconte-
cimentos, no âmbito da escola e/ou de outros campos sociais em que
a leitura é captada em centralidade:

111
Sarah Suzane Bertolli, Cristina Batista de Araújo e Alexandre Ferreira da Costa

Tabela – Concepções e práticas de leitura rememoradas em narrativas de si


Me- “Remontar a infância para dar sentido cronológico ou sentido
mo- simbólico para a criança que vai aprender a ler e escrever
rial 1 É de se perguntar várias vezes o que de fato é aprender a ler e es-
crever. Sabe-se que ler não é alfabetização formal é de fato alfabe-
tizar com a condição de saber que ler não é só ler letras e sim ler
mundo. Criança pensa o mundo e o pensa sem regras ou pelo me-
nos nas regras como as conhecemos e admitimos posteriormente.”

Me- “Consegui entrar no ritmo da turma, porém precisava manter o


mo- ritmo que era bem puxado, embora eu gostasse de ler, não tinha
rial 2 uma base literária que precisava, então comecei a ler muito, de-
pois da aula eu descia a pé para a Biblioteca Municipal Cora Cora-
lina e ficava lá até às cinco da tarde. Frequentava também a biblio-
teca da escola que não tinha muitas opções de livro e o bibliotecá-
rio tinha um pouco de medo dos alunos estragarem os livros (cô-
mico e trágico), mas ajudava bastante.”

Me- “Acontece que, desde os meus 12 anos, adquiri paixão pela leitura.
mo- A partir daí, me tornei um menino muito curioso e cheio de dúvi-
rial 3 das a respeito da nossa condição de existência. Aprendi não só a
ler livros, mas também a ler o mundo, a partir das atividades da
minha professora de português, na qual denominava-se Mala de
Leitura.”

Me- “E assim foi comigo na área de linguagens: tendo evidente facili-


mo- dade com línguas e alcançando visibilidade nas produções de texto
rial 4 a partir dos conhecimentos gramaticais, que pareciam ser absorvi-
dos instintivamente quando estudados, passei a entender que meu
lugar de destaque se revelava na área da linguística e, catartica-
mente, na figura de professor.”

Me- “Se já é chato estudar na escola, em casa é mais chato ainda. En-
mo- tão, algo que eu fazia era prestar muita atenção nas aulas e fazer
rial 5 anotações, caso fosse necessário, assim, ao chegar em
casa eu conseguia fazer os deveres de casa com mais facilidade.
Além disso, por prestar muita atenção nas aulas, eu sempre sabia
em quais páginas dos livros iriam cair os conteúdos
das provas que eu fazia, o que tornava os estudos muito mais fá-
ceis, já que minha mãe não tinha conhecimento suficiente para me
instruir.”

Me- “Ela foi responsável pela fase da alfabetização, consigo lembrar até
mo- os detalhes de seu método, era o de “assimilação” e sempre usava
rial 6 como apoio um alfabeto móvel que ficava fixo acima do quadro

112
Memórias de Leitura em Abordagem Discursiva no Contexto Acadêmico

negro, alfabeto o qual eu colori as imagens. Me sentia orgulhosa


todas as vezes que via aquele material. As famosas cartilhas não
eram tão satisfatórias, causavam uma espécie de desespero, pare-
cia ser coisa de outro mundo, era muito penoso! Me lembro que
ela pegava uma borracha enorme e um apontador e ia passando de
mesa em mesa apontando os lápis que tinha as pontas grossas e
apagava todas aquelas atividades que estavam mal feitas”.

Me- “Éramos muito pobres neste tempo, só tinha um caderno, daque-


mo- les do governo que tinha um menino com chapeuzinho de papel e
rial 7 uma espada de madeira, gritando ‘independência ou morte’. Neste
ano não consegui aprender a ler. Cantávamos e brincávamos, re-
petíamos o que a professora escrevia no quadro, sem saber ler.
Que dificuldade! O recreio era uma tragédia, todo dia caía e esfo-
lava o joelho, sem contar a sujeira com que voltava para sala, mo-
tivo para minha mãe ter visitado a escola várias vezes. A maioria
dos alunos usava sapatos de amarrar, eu e meus irmãos usávamos
botinas”.

Me- “Lembro que a professora nos chamava em separado para uma


mo- atividade que era nosso processo de leitura. Era um quadro no
rial 8 chão com desenhos. Sei que era por etapas, e que cada colega meu
estava em uma. Lembro também que tínhamos cadernos que fica-
vam na sala e que o meu era descuidado. E a professora fazia uns
ditados neles. Mas disso tudo a parte que eu mais gostava era o re-
creio que eu passava a maior parte em cima de uma árvore.”

Me- “As lembranças que tenho dessa escola são poucas. Sei que o
mo- nome da professora era Késia, que ali havia uma horta, que se
rial 9 usava ainda as impressões em estêncil. Lembro-me, principal-
mente, de que fui apresentado ao alfabeto e aprendi a ler no de-
correr de um ano. Nessa escola, escrevi minhas primeiras linhas,
começando pelo meu próprio nome. A alfabetização cumpriu, por-
tanto, sua promessa de me familiarizar com as letras. Consigo me
ver desenhando grafemas nas marcações de um caderno de cali-
grafia. Fazíamos as maiúsculas e as minúsculas cursivas, uma ao
lado da outra, em pares, como uma letra-mãe e sua letra-criança.
As maiúsculas contidas entre três linhas. As minúsculas espremi-
das entre duas. Preenchíamos páginas e páginas dessas letras cui-
dadosamente desenhadas, completando o alfabeto com objetivos
de aprender as formas e saber embelezá-las. Desenhando as le-
tras-mães e suas letras-crianças, em pares. Não havia uma letra-
pai.”

113
Sarah Suzane Bertolli, Cristina Batista de Araújo e Alexandre Ferreira da Costa

Me- “Nesse grande dia eu havia ficado do lado de fora, pois não supor-
mo- tava o cheiro do ambiente e olhando a parede, li lentamente “A-C-
rial COU-G-GUI I-DE-AL”. Fiquei surpresa com o que acabara de
10 descobrir e mais que de repente perguntei a amiga da minha mãe:
“Por que lá tá escrito Açougue Ideal se aqui é o açougue da Zetti?”
Minha mãe quase chorou, me deu um abraço forte e com todo
mundo que conversava por onde passava dizia que a filha já sabia
ler.”

Me- “Entre os mitos, lemos e aprendemos sobre a história do lobiso-


mo- mem: um homem novo na cidade, sem qualquer parente conhe-
rial cido, o oitavo filho que nas sextas-feiras de lua se transformava
11 em uma criatura metade homem, metade lobo.
Ouvi a história atentamente e tive a sensação de conhecer aquilo.
Ao chegar em casa, minha ficha caiu. Meu pai conta que é o oitavo
filho, ninguém conhece os parentes dele, assim que ele chegou
aqui em Goiânia, ele conheceu minha mãe e eles foram morar jun-
tos e para fechar com chave de ouro, ele saía quase toda sexta-
feira e só voltava domingo ou segunda-feira. Minha mente explo-
diu. Meu pai era o lobisomem! Por um bom tempo, fiquei cabreira
que só. Levou um tempo para eu concluir que ele não era o lobiso-
mem. Ou será que é?”

Me- “Durante grande parte da minha infância, meus pais liam livros
mo- para dormirmos. Mesmo lendo esses livros, eles gostavam mesmo
rial era de criar histórias ao vivo. Minha mãe gostava de contar seus
12 relatos de infância, de quando ela morava no Ceará e enfrentava
raposas e cobras furiosas. Meu pai, por sua vez, preferia inventar
suas próprias histórias mirabolantes, onde nós éramos sempre su-
per-heróis.”
Fonte: elaboração própria da tabela, a partir de excertos colhidos dos memo-
riais dos participantes da pesquisa.

Apesar do espaço comum de (des)incentivo e/ou aprendizado da


leitura ser, geralmente, a escola, ao longo dos memoriais, observamos
a descrição de acontecimentos de leitura literária em outras situações
da vida, como no Memorial 12, que descreve práticas de leitura/escuta
de narrativas no contexto familiar, tanto de livros, quando de histórias
de vida. Andruetto (2012) defende que as vivências mobilizadas pelas
trajetórias alheias à escola também contribuem para o imaginário do
leitor/ouvinte, que pode comparar, prever e interpretar tais relatos di-
ante de outras histórias ouvidas ou lidas.

114
Memórias de Leitura em Abordagem Discursiva no Contexto Acadêmico

A perspectiva formativa de leitura do mundo de Freire (1999), na


defesa de que se reconhecer como sujeito crítico e analisar as diferen-
tes vivências que atravessamos precede a leitura da palavra (ou os co-
nhecimentos relativos ao sistema de escrita alfabética), é reconhecida
na tessitura dos Memoriais 1 e 3, que exploram como essa leitura, tan-
tas vezes ignorada no espaço escolar, pode ter primazia na infância por
intermédio da curiosidade e do afeto.
Reconhecemos, a partir da interpretação dos memoriais, que as
narrativas rememoradas – da posição professor em formação que olha
para a criança que aprende as letras, os livros e o mundo – descrevem
projetos (como a Mala de Leitura mencionada no Memorial 3), méto-
dos de alfabetização (como notamos o uso das cartilhas e da repetição
nos memoriais 6, 7 e 9) e a presença de outros espaços formativos para
o leitor, tais como a biblioteca (Memorial 2), a casa (Memorial 12) e o
contexto cotidiano do bairro (Memorial 10). Observamos, ainda, o
elencar de predileções por professores ou familiares que participaram
desse projeto e, ainda, a curiosidade movida por livros e história – com
processo analítico comparativo para a vida privada – no Memorial 11
(ao enxergar o pai como lobisomem).
A conotação literária está presente em diversos momentos nos ex-
certos de amostra, para esta etapa de pesquisa, dos memoriais anali-
sados neste trabalho, em muitos memoriais a tessitura estilística evoca
outras vozes – de forma mais ou menos perceptível, visto que tal efeito
para a recepção leitora irá depender das leituras e vivências do leitor.
Na costura de tais discursos literários, observamos uma premissa alu-
dida por Ponzio (2010, p. 68): “o escritor não tem um estilo único. Ele
coloca em cena os estilos e discursos, configura-os, objetiva-os, sem se
identificar com nenhum deles. Os sujeitos que o escritor fez falar têm
um estilo próprio e uma situação própria”. É possível notar, em tal ex-
certo filosófico uma ressonância de duas concepções presentes nos es-
tudos bakhtinianos: a autoria e a exotopia, justamente na distinção
entre autoria-empírica (figura do escritor, da pessoa) e da autoria-cri-
adora; e do movimento de constituição desse autor e do herói.
Algumas lembranças mobilizam excedentes para o personagem
constituído na narrativa que oscila em movimentos de olhar e voltar

115
Sarah Suzane Bertolli, Cristina Batista de Araújo e Alexandre Ferreira da Costa

ao lugar (do presente) para propiciar análise das situações vivencia-


das. Tal experiência é notada no Memorial 4, que, a partir da pergunta
do título “Quantas certezas para lidar com uma dúvida?” constrói uma
tessitura questionadora do próprio processo de aprendizado, desacre-
ditado em algumas situações da vida.

MEMORIAL 4

Por muito tempo me culpei e me perguntei “o que há de errado co-


migo?” quando me indignava com a discrepância entre o desempenho
dos meus irmãos e o meu – sendo que me lembro do nível de exaustão
que chegava ao término de uma semana de provas. Agora, estando in-
telecto e socialmente mais amadurecida, consigo compreender que
aquela diferença não se dava pelo meu nível de inteligência, mas pelas
divergências do processo de formação correspondentes a cada indiví-
duo em sua singularidade.

No vivenciamento das fronteiras externas do ser humano, perante


o movimento exotópico eu-outro, é possível observar como a consti-
tuição acadêmica do autor-personagem é apresentada como arca-
bouço de análise possível no vislumbre de sua trajetória, aqui aludida
na memória partilhada. Quanto à singularidade, desenlace do excerto
acima, retomam-se as acepções bakhtinianas: “[...] Ora a singulari-
dade da experiência pessoal é diminuída, sob influência da experiência
dos outros, ora a singularidade da experiência dos outros é diminuída
sob a influência em proveito da experiência pessoal” (BAKHTIN, 2011,
p. 70).
É importante observar quantos outros são capazes de habitar al-
guma experiência pessoal, inclusive outros espelhados, de hoje e de
ontem, sujeitos que desdobram o olhar e são capazes de assumir posi-
ções axiológicas que, por vezes, destoam de outros que nem reconhe-
cidos são mais. Eis uma possibilidade interpretativa para compreen-
der a emergência do excerto narrativo colhido do Memorial 4.
Medviédev (2019[1928]) expõe a premissa de um pensamento de
todo o Círculo: nossas relações humanas sempre são atravessadas e
constituídas pelo outro. Não há como interagir com a realidade fora
dessas mediações, dessa teia de vozes, réplicas e sujeitos. Portanto,
“todas as nossas relações com nossas condições de existência – como

116
Memórias de Leitura em Abordagem Discursiva no Contexto Acadêmico

nosso ambiente natural e contextos sociais – só ocorrem semiotica-


mente mediadas. Vivemos, de fato, num mundo de linguagens, signos
e significações” (FARACO, 2009, p. 49). É de se esperar, assim, que as
histórias construídas nos memoriais apresentassem essa dimensão
das relações humanas, inclusive em uma anunciação explícita.
Diante da percepção da impossibilidade de compartilhar toda a tra-
jetória, e da dificuldade de expressar um acúmulo de lembranças, tais
recortes são especificados e a própria questão da finitude da escrita
entra no jogo de vozes do autor e do herói:

MEMORIAL 10

“Infelizmente, hoje preciso dar um “ponto” nesse trabalho, nesse texto


de textos que não está nem perto do ponto final, pois a cada linha relida
lembro-me de mais uma que poderia ser escrita. Lembro-me de tantas
coisas importantes que só agora percebo que foram esquecidas na nar-
rativa. Hoje eu posso sem dúvida dizer que sinto vontade de reler mi-
nha história, não com o sentimento nostálgico de perda ou pretensioso
de ganhos, mas pelo simples fato de ter a oportunidade de relembrar
essas experiências que estavam adormecidas em meu consciente e ava-
liar o que realmente é importante para mim, o que realmente quero
viver para poder escrever e eternizar esse mar de acontecimentos em
linhas e entrelinhas, ou talvez até em uma dessas canções, dessas que
a gente ouve pelas ondas do rádio”

Essa releitura da própria história, conforme destacado no excerto


acima, ressoa a partir do título que evoca a abordagem musical colhida
no Memorial 10. Convém observar, tendo em vista a premissa de in-
terpretar os memoriais como textos literários que, por sua natureza, já
contrapõe ou espelham as figuras do autor e do herói, que

O autor não encontra de imediato para a personagem uma visão não


aleatória, sua resposta não se torna imediatamente produtiva e de prin-
cípio, e do tratamento axiológico único desenvolve-se o todo da perso-
nagem: esta exibirá trejeitos, máscaras aleatórias, gestos falsos e atos
inesperados em função das respostas volitivo-emocionais e dos capri-
chos da alma do autor, através do caos de tais respostas, ela terá que
inteirar-se amplamente da sua verdadeira diretriz axiológica, até que
uma feição finalmente se constitua em um todo estável e necessário
(BAKHTIN, 2011, p. 4).

117
Sarah Suzane Bertolli, Cristina Batista de Araújo e Alexandre Ferreira da Costa

Parece-nos, ao ler o Memorial 10, que enfim, no desenlace, a per-


sonagem que vivencia oscilações embaladas pelo fio condutor do seu
nascimento atrás do balcão do bar enquanto tocava música no rádio,
encontra um todo mais estável no excedente de posicionar-se como ser
que trilhou esses caminhos e foi capaz de recordar.
Quanto à maleabilidade do gênero discursivo memorial, o que se
mostra é um projeto flexível, até mesmo quanto à elaboração compo-
sicional dos textos. Afinal, “[...] quanto melhor dominamos os gêneros
tanto mais livremente os empregamos, tanto mais plena e nitidamente
descobrimos neles a nossa individualidade (onde isso é possível e ne-
cessário)” (BAKHTIN, 2011, p. 285). No contato que tivemos com os
discentes cursistas, no primeiro semestre de 2021, notamos entusi-
asmo de muitos diante da possibilidade de escapar de certas amarras
textual-acadêmicas, visto que, mesmo no curso de Letras, raras as ve-
zes tiveram a oportunidade de uma escrita mais literária e narrativa.
Em contrapartida, alguns estudantes não viam sentido algum em par-
ticipar da criação do memorial, prática que alguns postergaram o má-
ximo possível e outros nem realizaram.
Acreditamos que a própria sugestão de criar algo que destoa, em
certa medida, dos textos acadêmicos requeridos nas disciplinas, inte-
ressou alguns estudantes a ponto de buscarem, para a criação do texto,
um tom criativo, com uso de linguagens até mesmo mais inventivas.
O Memorial 5, por exemplo, apresenta, a partir do anúncio do título
(Guia para Sobrevivência Escolar) a forma de guia para narrar cir-
cunstâncias escolares. A estruturação em tópicos com conselhos enxu-
tos, desdobrados em vivências memoriais, aludem ao formato de ou-
tros guias, normas, regimentos – o que revela como há mescla e inven-
tividade na gênese de um gênero memorial, tendo em vista a impossi-
bilidade, fundante a partir da própria definição de gênero do discurso
(BAKHTIN, 2011) de se ‘encaixotar’ ou determinar a composição, es-
tilo ou conteúdo de um gênero como algo padronizado. Ao romper
com uma usual tessitura de ‘como deve ou precisa ser um memorial’
nota-se um não-dito quanto a essa criticidade ou contestação ao con-
texto escolar, o que se embate com o tom normativo adotado (de guia)
para uma ‘sobrevivência escolar’. Assim, é possível interpretar certa
ironia nessa escolha.

118
Memórias de Leitura em Abordagem Discursiva no Contexto Acadêmico

O processo de escrita/leitura de si emerge de maneira realçada no


Memorial 11, em que a organização literária em ‘eras históricas’ cons-
titui modos de olhar para os acontecimentos da vida, em um movi-
mento exotópico de descrever as circunstâncias vividas por esse eu que
é o outro (eu passado) e, depois, interpretar tais situações. A lingua-
gem inventiva culmina em uma última era, contemporânea, próxima
desse eu-outro que agora é um professor em formação. Perante o des-
locamento de olhares, do eu-passado e do eu-presente, as práticas de
ensino e de aprendizagem constituem uma última percepção parti-
lhada:

MEMORIAL 11

Tudo que achei que sabia era mentira. Era (des)construção.

Confirma-se aqui, mais uma vez, a influência discursiva dos reper-


tórios de leitura (com visão mais sumária das manifestações artísticas
em tal leitura de mundo), no movimento de réplica, da prenhez de res-
posta própria dos enunciados. Afinal, “cada enunciado deve ser visto
antes de tudo como uma resposta aos enunciados precedentes de um
determinado campo [..]: ela os rejeita, confirma, completa, baseia-se
neles, subentende-os como conhecidos, de certo modo os leva em
conta (BAKHTIN, 2011, p. 297). A compreensão de que a experiência
vivenciada pode também fazer parte da trajetória do outro pode ali-
cerçar a força motriz para a mudança de ações estanques, praticadas
pela escola, que longe de se configurarem oportunas para a formação
de sujeitos mais críticos, serve a interesses políticos, por promoverem
mais repetição que análise, mais acomodação que transformação de si
e do mundo.
Eis que é possível constatar, da análise dos memoriais, como se
busca uma investigação não de si mesmo, mas de um outro. Há espe-
lhamento a ponto de causar certa estranheza e empatia (BAKHTIN,
2011). Em virtude da abordagem estética desse rememorar é que con-
firmamos a importância de se contar histórias e aludir à historicidade
dos sujeitos como uma prática de resistência que envolve leitura e es-
crita.

119
Sarah Suzane Bertolli, Cristina Batista de Araújo e Alexandre Ferreira da Costa

No momento de prática com memoriais, a plenitude dos enuncia-


dos na teia discursiva fica cada vez mais evidente pelas interpelações,
reflexões e sistema de empatia interativa criada no processo de leitu-
ras e escutas. As confluências dos campos sociais de atividade hu-
mana, inclusive a reflexão a respeito de questões políticas e econômi-
cas foram um ponto convergente em vários memoriais. Reforça-se o
papel conjugado que os espaços, sujeitos e normativas escolares pre-
cisam ter considerando a realidade heterogênea do país, de modo a
mitigar tais mazelas e oportunizar a progressão acadêmica e, conse-
quentemente, social (GERALDI, 2013; ECO, 2020).
O plano político atravessa fundamentalmente os memoriais,
ao descortinar realidades escolares que poderiam mudar a vida das
pessoas se os recursos públicos fossem fortalecidos. O Memorial 9 re-
lata um episódio agrupado no subtítulo “Sobre as crianças famintas”
que problematiza a merenda escolar (e a ausência dela) na sua impor-
tância para o desenvolvimento humano e de aprendizado das crianças.

MEMORIAL 9

“Foi por esses tempos que a escola, por escassez de recursos financei-
ros, decidiu não distribuir mais a merenda. Passamos semanas sem ter
em mãos os utensílios de plástico azul. Passei semanas sem meu feijão-
tropeiro. Como nem todos os alunos tinham condições de trazer lanche
de casa, a fome se instalou na escola como uma fera. Incentivou uma
inquietude crescente nas crianças e adolescentes. Tornamo-nos mais
inquietos, não conseguíamos prestar atenção nos estudos, não podía-
mos aprender.
Revoltamo-nos do nosso jeito. Tornou-se comum a prática de comer
papel empapado em cola-branca. Alguns alunos exercitavam a imagi-
nação, desenhando uma refeição inteira no papel antes de o enfiar na
boca. Incluí-me prontamente na nova dieta proposta pelos alunos re-
beldes.”

Constata-se, assim, mais uma vez, por intermédio das narrativas


memorialísticas de professores em formação, como não se pode ou
deve segregar os estudos do letramento da realidade complexa social
e das questões políticas, visto que a precariedade ou ausência de pro-
jetos políticos compatíveis com o contexto social em que vivem as pes-
soas afeta o desempenho social. Como se pensar em meritocracia de

120
Memórias de Leitura em Abordagem Discursiva no Contexto Acadêmico

competências e habilidades em uma realidade como essa de crianças


que comem papel com cola para tentar enganar a fome? A partir dos
memoriais, nos clamores, narratividades, alusões e remissões históri-
cas, notamos como é possível ampliar os modos de olhar para o papel
de sujeitos políticos, também a importância de discursos normativos
que enveredam ações que, de fato, se importem com os direitos dos
seres humanos. Portanto, o gênero memorial também é uma prática
de resistência.
Assim, a leitura como prática da liberdade – tal como seu processo
educacional mais amplo – tecida na premissa fundamental dos direi-
tos para todos/as/es discutida e vivenciada por Paulo Freire, envolve
“[...] ensinar de um jeito que respeite e proteja as almas de nossos alu-
nos [como] essencial para criar as condições necessárias para que o
aprendizado possa acontecer do modo mais profundo e mais íntimo”
(HOOKS, 2017, p. 25). A conscientização crítica, nessa perspectiva,
atravessa os caminhos de escuta, de escrita de si, de leitura de livros,
de ocupação de espaços escolares e não-escolares, da compreensão da
importância da literatura e de outras ciências do espírito.

UM OLHAR PARA A ESCRITA DE SI COMO PROCESSO


PEDAGÓGICO DE LETRAMENTO: CONSIDERAÇÕES COM
EFEITO DE FIM

Analisa-se, a partir da proposta de escrita de memoriais, que tal


prática pode ser um importante meio de incentivar reflexões a respeito
de estratégias mobilizadas pela escola para o ensino-aprendizagem de
estudantes. A partir do movimento de rememoração, os discentes
compreendem como algumas ações pedagógicas são perpetuadas no
tempo por motivos culturais e políticos e não necessariamente porque
são exitosas do ponto de vista da formação integral dos sujeitos.
Assim, observa-se como “a historicidade dos enunciados é captada
no próprio movimento linguístico de sua constituição. É na percepção
das relações com o discurso do outro que se compreende a História
que perpassa o discurso” (FIORIN, 2016, p. 59). Tal reconstrução da
história da leitura, da escrita e do próprio processo de escolarização
dos discentes, não tendo uma margem individual e unívoca, mas

121
Sarah Suzane Bertolli, Cristina Batista de Araújo e Alexandre Ferreira da Costa

sendo uma história social e partilhada, contribui para a formação de


futuros professores capazes de analisar criticamente suas próprias
práticas a partir de excedentes de visão.
Em tal seara, notamos como a investigação de práticas escolares
não visa a mera descrição das trajetórias e dos acontecimentos, tendo
em vista que “as lutas de representações têm tanta importância como
as lutas econômicas para compreender os mecanismos pelos quais um
grupo impõe, ou tenta impor, a sua concepção do mundo social, os va-
lores que são os seus, e o seu domínio” (CHARTIER, 1988, p. 17). As-
sim, parte-se da escrita de si e da partilha (leitura/ escuta) de memo-
riais para a problemática das questões sociais e políticas integradas em
tais histórias. Observa-se como aspectos sociais, com ênfase nas lutas
pela própria sobrevivência, podem emergir de textos dos discentes,
bem como ser a questão central de algumas narrativas, assim como
reflexão de como a educação foi um modo de libertação e vislumbre de
mudança de vida.
O olhar exotópico na movimentação dialógica de autor e herói
emerge dos memoriais. Nessas posições, “o autor criador é entendido
fundamentalmente como uma posição estético-formal cuja caracterís-
tica básica está em materializar certa relação axiológica com o herói e
seu mundo” (FARACO, 2009, p. 89). Assume-se, assim, na autoria-
criadora posições tanto de reflexão quanto de refração, recortada a
partir dos horizontes do autor empírico, mas não apenas dele, visto os
outros sujeitos, processos semióticos e horizontes apreciativos possí-
veis (MEDVIÉDEV, 2019; BAKHTIN, 2011). Assim, “a interação passa
a ser assumida de modo claro como uma realidade fundamentalmente
social e semiótica” (FARACO, 2009, p. 73), e os memoriais como es-
paços de interação, portadores de conotações literárias cuja ‘arte em
palavras’ não pertence ao domínio de certa classe ou discurso elitista,
mas aos sujeitos constituídos na e pela interação.

122
Memórias de Leitura em Abordagem Discursiva no Contexto Acadêmico

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124
Postulações e Fake News: Os
Efeitos de “Verdade” nos
Discursos Midiáticos
Damião Francisco Boucher
Thiago Soares Barbosa

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Em tempos hodiernos, temos presenciado um aumento significa-


tivo do retorno ao debate sobre à liberdade de expressão, bem como a
(re)produção da (des)informação e dos discursos de ódio. Essa ampli-
ação de informações variadas e de perspectivas variáveis sobre um
mesmo acontecimento, deve-se à capacidade outorgada pelos novos
meios de difusão da notícia, proporcionados por uma sociedade em
rede (CASTELLS, 1999, p. 83), sobretudo às redes sociais de mensa-
gens instantâneas (como o Messenger, WhatsApp, Telegram, etc.) as
quais permitem que cada usuário seja um difusor em potencial. Por
sua vez, essa livre comunicação das ideias e das opiniões, catalisada
pela Internet tem, segundo algumas redes de dizeres, ameaçado a es-
tabilidade do imaginário em torno da verdade enquanto um aconteci-
mento discursivo e comprometido sua monopolização histórica pelo
campo midiático.
Nesse contexto, propomos fazer um percurso descritivo-interpre-
tativo acerca dessas redes de dizeres sobre a (des)informação, catego-
rizada popularmente pelo sintagma de origem inglesa “fake news”
(notícias falsas). Nesse percurso, verificamos como estas redes se
constituem através da mídia e se estabelecem como força mantene-
dora de um imaginário que concebe os sentidos de verdade como já

125
Damião Francisco Boucher e Thiago Soares Barbosa

estabilizados e emanentes de um espaço social exclusivo, a saber, o


campo midiático. Para tal análise, utilizamos o arcabouço teórico-me-
todológico da Análise do Discurso com o objetivo de examinar como
os discursos sobre as “fake news” fazem funcionar seus efeitos e, por
conseguinte, projetar a verdade como sendo uma propriedade parti-
cular do campo intelectual, um produto exclusivamente institucional.
Sobre o objeto de análise, buscamos construir um corpus variado,
constituído por trechos de matérias de sites de grande circulação como
o Blog do Google Brasil (2022), intitulado “PL 2630 pode aumentar
desinformação online e prejudicar usuários” e de outros sites de notí-
cias como, G1 (2022) e Uol (2022), a fim de compreender como é cons-
tituída a composição da rede de sentidos sobre as fake news.
Dessa forma, o artigo é dividido em três partes: Considerações teó-
ricas: a verdade como constructo social, Análise: o retorno ao dis-
curso de reafirmação e Considerações finais: fake news, um subpro-
duto da vontade de verdade. Em Considerações teóricas: a verdade
como constructo social, fazemos um percurso teórico sobre algumas
das várias perspectivas nocionais que permeiam os sentidos de ver-
dade, como o valor de verdade e a vontade de verdade, relacionando-
o com as noções, princípios e procedimentos que regem a AD de linha
francesa. Desse confrontamento de concepções sobre a verdade a par-
tir das perspectivas filosófica, jornalística e linguística, buscamos
compreender como a verdade é percebida por esses três campos e
como os sujeitos fazem funcionar seus efeitos. Já em Análise: o re-
torno ao discurso de reafirmação, mobilizamos as noções propostas
para descrever e interpretar nosso objeto de análise de forma a com-
preender: a) o funcionamento discursivo dos efeitos de verdade; b) as
posições-sujeitos, as constituições interdiscursivas e seus efeitos ao se
entrecruzarem no campo da formulação, bem como os processos de
antecipações na busca da potencialização de suas argumentações e; c)
os sentidos silenciados no retorno aos discursos de reafirmação. Por
fim, nas considerações: fake news, um subproduto da vontade de ver-
dade, avaliamos nosso percurso analítico ponderando sobre as possí-
veis e prováveis contribuições desse artigo para o entendimento dos
discursos de reafirmação e da verdade idealizada pela mídia como um

126
Postulações e Fake News: Os Efeitos de “Verdade” nos Discursos Midiáticos

bem comercializável que ao projetar suas representações afeta sujeitos


e sentidos.

CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS: A VERDADE COMO CONSTRUCTO


SOCIAL

Ao considerar as discussões sobre a verdade dentro da perspectiva


das proposições aristotélicas na obra “Da interpretação” (2013, p. 43-
47), sobre a vontade de verdade, minuciosamente trabalhada por
Friedrich Nietzsche nas obras A Gaia Ciência (2001, p. 50-51) e Para a
Genealogia da Moral (1998, p. 139) e, sobretudo, a retomada dessa úl-
tima noção por Foucault em sua obra “A ordem do discurso” (2014, p.
19), reconhecemos que o questionamento acerca das verdades estabe-
lecidas na religião, na ciência, na moralidade e, especificamente, na
crença da própria verdade como a essência da realidade verte no de-
sejo e no poder (NIETZSCHE, 2001, p. 50).
A vontade de verdade, como afirma Foucault (2014, 9-19), ao atra-
vessar o contínuo da história, configura-se em um sistema institucio-
nalizado o qual delimita o direito de poder-dizer e funciona como um
procedimento de exclusão. Desse panorama sobre a verdade como in-
terdição do dizer, notamos que esta se encontra geralmente atrelada
às lutas ou aos sistemas de dominação (FOUCAULT, 2014, p. 10);
como um domínio do saber cujas relações de força são postas em ma-
nutenção, (des)acomodando cada sujeito em dada posição discursiva,
mas também se materializando nos discursos como um efeito pode-
roso de resistência.
Tal dizer antes interrompido, interditado (FOUCAULT, 2014, p. 9)
ou como quer Orlandi (2007, p. 73), silenciado constitutivamente, fora
do “âmbito tradicional”, ao tentar quebrar as leis e as regras pré-esta-
belecidas de sua constituição historicamente institucionalizada, apa-
rentemente “perverte a lógica da realidade”, sai de um “conheça-te a ti
mesmo” socrático e deslocando sentidos frequentemente passa a ser
denominada como “opinião”, “a narrativa equivocada”, “a notícia
falsa”, “a não-verdade”, “a informação distorcida”, “a desinformação”,
“o discurso de ódio”, ou ainda, popularmente cognominada como

127
Damião Francisco Boucher e Thiago Soares Barbosa

“fake news” pelas pequenas e grandes instituições de difusão da notí-


cia.
Essas dimensões aparentemente diferentes de uma mesma mate-
rialidade discursiva, a saber, a notícia, têm os seus efeitos de confiabi-
lidade e de credibilidade catalisados a depender da posição discursiva
tomada por cada enunciador na produção de seus enunciados. Tal po-
sição reflete e refrata o jogo simbólico e político das relações de força
e de poder em nossa sociedade (ALTHUSSER, 1992, p. 41-51). Assim,
devido a essas mesmas posições divergentes, se antes a notícia ou fato
era tomado como uma correspondência fiel entre a representação (dis-
cursiva) e o objeto no mundo, agora passa a ser questionada, repen-
sada pela própria substância que a representa (as posições sociais).
Mas essa distinção aparentemente óbvia entre opinião, notícia e fake
news, bem como o conceito de verdade nos primórdios do jornalismo
brasileiro nem sempre foi possível. Recuando ainda mais nas memó-
rias discursivas sobre a verdade, podemos observar que Tomás de
Aquino acreditava que “a verdade de uma coisa é a característica pró-
pria de seu ser, que lhe foi dada como propriedade constante”
(AQUINO, 1999, p. 26).
Dessa perspectiva na qual a materialidade se torna constante ao
longo da história, Aquino propõe que a verdade seria imutável. Fa-
zendo um breve salto temporal para o Brasil colonizado, Mendes
(2008, p. 2) afirma que “nos anos da imprensa colonial, informação e
opinião não eram vistas como conteúdos distintos por natureza; am-
bos faziam parte do conjunto de textos oferecidos pelos jornais” e, por-
tanto, fato e opinião se homogeneizavam para produzir “verdades”,
sob a égide da ciência como metáfora da “informação científica”. Mais
tarde, precisamente em 1950 com os ideais Estadunidenses, incorpo-
ram no conceito de informação “os ideais da objetividade e da neutra-
lidade/imparcialidade” (MENDES, 2008, p. 3). Colocando essas duas
perspectivas sobre a concepção da verdade em momentos históricos
distintos, podemos verificar que a própria concepção de verdade den-
tro do aspecto da informação não é constante, mas passa por formula-
ções subjetivas dentro da totalidade das relações de produção hu-
mana.

128
Postulações e Fake News: Os Efeitos de “Verdade” nos Discursos Midiáticos

Diante dessa perspectiva, acabamos por chegar na mesma conclu-


são de Marx (2008, p. 47) ao afirmar que: “Não é a consciência dos
homens que determina o seu ser; ao contrário, é o seu ser social que
determina sua consciência”. Por essa razão, ponderando sobre as con-
cepções marxistas acerca da consciência humana e a verdade como um
produto subjetivo das forças produtivas materiais de nossa sociedade,
temos a verdade como uma materialidade a qual se constitui pelo pro-
cesso dialógico.
Ainda, se considerarmos a verdade, assim como Soares (2022) con-
cebe o carisma ao fazer um percurso analítico sobre o poder persua-
sivo de Saul Goodman (personagem de Better Call Saul, 2015: spin-
off de Breaking Bad, 2008), podemos também constatar que, assim
como o carisma (e como todas as formas de persuasão humana), a ver-
dade “não é uma essência, mas, antes, é interacional, o que faz ‘dela’
semanticamente um traço envolvido nas práticas de certos sujeitos,
como podemos observar” (SOARES, 2022, p. 396, aspas nossas).
Dessa perspectiva a qual nos coloca tanto a verdade quanto a não-
verdade como uma contínua construção e (re)produção social, com-
preendemos melhor como os efeitos de verdade se difundem em nossa
sociedade. Para Foucault, tal vontade, inerente ao homem, configura-
se em um “terceiro sistema de exclusão” (FOUCAULT, 2014, p. 13) por
se apresentar historicamente sustentada “por todo um sistema de ins-
tituições que as impõem e reconduzem” (FOUCAULT, 2014, p. 13).
Foucault afirma ainda que a vontade de verdade apoiada por uma dis-
tribuição institucional “tende a exercer sobre os outros discursos [...]
uma espécie de pressão e como que um poder de coerção”. (FOU-
CAULT, 2014, p. 16-17).
Desse trecho, concordamos com Foucault (2014, p. 19-20) sobre a
força discursiva, bem como o poder de coerção que dadas instituições
possuem. Situadas em um campo cuja “áurea” da objetividade, da neu-
tralidade e da imparcialidade (MENDES, 2008, p. 3) cinge o papel de
porta-voz da verdade, a “grande mídia” trabalha na dinâmica de pro-
dução desse valor factual, mais precisamente, do efeito de verdade.
Desse ponto, à Luz dos questionamentos provenientes das novas
interpretações de Althusser sobre Marx, de Lacan sobre Freud e
Pêcheux sobre a obra CLG (Curso de Linguística Geral) de Saussure

129
Damião Francisco Boucher e Thiago Soares Barbosa

(SOARES, 2018a, p. 115), entendemos que, “a verdade” é regida tam-


bém por condições específicas de produção e determinadas por aspec-
tos históricos, sociais e ideológicos. Por essa razão, é acertado afirmar
que são essas formações sociais antagônicas as responsáveis por faze-
rem com que a verdade penda para o lado na qual se encontra o poder.
Este cujos discursos historicamente legitimados, autorizados e po-
tencializados, permitem ao sujeito institucionalizado o retorno ao “sa-
ber-dizer” e ao “poder-dizer” (CHARAUDEAU, 2016, p. 13-18). De ou-
tro modo, a apropriação sobre o discurso da verdade precisa recursi-
vamente retomar a sentidos pré-existentes para funcionar e manter
sua posição de domínio. Posição na qual instituições como a mídia
exercem considerável influência na determinação do que é verdadeiro,
falso e contraditório. Sobre esses sentidos pré-existentes ou denomi-
nado por Henry (1997, p. 33) como pré-construídos, Courtine nos as-
segura que este “marca a existência de um descompasso entre o inter-
discurso como lugar de construção do pré-construído e o intradiscurso
como o lugar da enunciação de um sujeito” (COURTINE, 2014, p. 74).
Desse recorte epistemológico o qual nos apresenta o pré-constru-
ído como materialidade essencial do campo da constituição dos “já-
ditos” midiáticos, (interdiscurso) e o campo da formulação (intradis-
curso), podemos compreender que tal dinâmica de retorno aos pré-
construídos mobiliza as memórias das quais seus efeitos têm o poder
de projetar a verdade como sendo aquela que sempre esteve sistema-
ticamente ancorada nessas instituições midiáticas.
Por conseguinte, ao atualizar esses efeitos que as posicionam como
detentora da verdade como sua “posição de direito”, os suportes midi-
áticos (jornais, revistas, sites jornalísticos, etc.) fazem retornar os sen-
tidos pré-existentes das memórias sobre o discurso da verdade (FOU-
CAULT, 2014, p. 18) e sobre quem detém a verdade.
Com isso, essa vontade de poder, bem como seus efeitos trabalham
continuamente na manutenção de representações (ACHARD, 2015, p.
16-17) em que as Formações imaginárias (doravante, FIms) determi-
nam as posições de mando e de obediência e, sobretudo, numa tenta-
tiva de simplificação, as posições de quem “diz a verdade” e de quem
“pensa dizer”. Para Pêcheux dada posição discursiva funciona como

130
Postulações e Fake News: Os Efeitos de “Verdade” nos Discursos Midiáticos

aquilo que é dito pelos sujeitos e que se constitui em uma relação de


força, a partir do lugar do qual eles falam (PECHÊUX, 2015, p. 16).
Este lugar, na qual os indivíduos são histórica e simbolicamente
interpelados em sujeitos (ALTHUSSER, 1992, p. 108-111) pela ideolo-
gia, é também o espaço na qual o pensamento dominante se materia-
liza e detém de forma relativa o valor e o efeito de verdade os quais o
sujeito almeja manter indefinidamente. Cabe ainda ressaltar que so-
bre essas duas noções, Charaudeau ressalta que tanto o valor de ver-
dade quanto o efeito de verdade são julgamentos epistêmicos, pois “o
homem tem necessidade de basear sua relação com o mundo num ‘crer
ser verdade’. É uma questão de verdade, mas também é uma questão
de crença” (CHARAUDEAU, 2013, p. 48-49, aspas e itálico do autor).
Nota-se que essas duas noções estão intrinsecamente ligadas no ima-
ginário de cada grupo social marcadas por uma contradição, por ser
exterior ao homem, mas, a um só tempo, indissociável do seu sistema
de crenças.
Essa indissociabilidade nos permite compreender que a grande mí-
dia, de mão desses efeitos, se posiciona histórica e socialmente naquilo
que Foucault designa como “suporte” e “distribuição institucional”,
pois o seu campo midiático detém o valor e o efeito de verdade estabi-
lizados por dada Formação Imaginária. Segundo Pêcheux (1997, p.
83), as FIms “designam o lugar que A e B se atribuem cada um a si e
ao outro, a imagem que eles se fazem de seu próprio lugar e do lugar
do outro”.
Pelo percurso que fizemos até aqui, adiantamo-nos e nos atreve-
mos a afirmar que a verdade, ou melhor, o efeito de verdade se apre-
senta historicamente como uma construção social delimitada também
por conjuntos de saberes e, especificamente, de dizeres os quais
Pêcheux considera em suas reflexões e reformulações teóricas como
Formações Discursivas (doravante FDs). Elas são aparentemente im-
perceptíveis por refletirem valores e regras, determinando “o que pode
e deve ser dito, a partir de uma dada posição, numa dada conjuntura”
(PÊCHEUX, 2011, p. 73).
Dessa noção emprestada de Foucault (2017, p. 47) e criteriosa-
mente reformulada por Pêcheux (PÊCHEUX, 2011), torna-se possível
perceber como funcionam os deslocamentos de sentido daquilo que

131
Damião Francisco Boucher e Thiago Soares Barbosa

concebemos como verdade, porquanto as posições tomadas por cada


sujeito ao longo da história para falar sobre a verdade ou para (res)sig-
nificá-la passa por Formações Ideológicas (doravante FIds)
(PÊCHEUX e FUCHS 1997, p. 167) as quais se materializam em cada
FD. Assim, as FIds são delimitadas por conjuntos de crenças, saberes
e atitudes os quais provêm dessas construções coletivas.
Diante dessas concepções brevemente discutidas e do inicial “en-
saio arqueológico” que propomos ao discutir a noção de verdade, en-
trecruzando os campos filosófico, jornalístico e linguístico e os con-
frontando com os princípios e procedimentos da AD, passamos às aná-
lises.

ANÁLISE: O RETORNO AO DISCURSO DE REAFIRMAÇÃO

Para uma melhor organização didática do nosso percurso analítico,


selecionamos trechos da matéria do Blog do Google Brasil (2022) com
o título “PL 2630 pode aumentar desinformação online e prejudicar
usuários” e de sites de notícias como G1 (2022) e Uol (2022).
Em primeira instância, partiremos dos enunciados para analisar
sua construção sintático-semântica, buscando fazer um cotejamento
entre aquilo que se diz (o intradiscurso) e aquilo que faz reverberar
sentidos pré-existentes do campo constitutivo das memórias (interdis-
curso). A partir da identificação e descrição de alguns pré-construídos
e de seus efeitos, mobilizaremos as noções de FDs, FIds e FIms
(PÊCHEUX, 1997, 2011) para descrever e interpretar nosso objeto de
análise de forma a depreender o funcionamento discursivo dos efeitos
de verdade, as posições-sujeitos, as constituições interdiscursivas re-
presentadas pelas memórias e seus efeitos no campo da formulação.
Inicialmente, é preciso fazer um percurso sobre as condições de
emergência do primeiro trecho a ser analisado. No dia 3 de julho de
2020 o senador Alessandro Vieira (CIDADANIA/SE) apresentou o
Projeto de Lei 2630/20. Postado no site oficial da Câmara dos Depu-
tados (BRASIL, 2020a), às 21h25min, a Agência de Notícias da Câ-
mara descreve que o PL 2630/20 “institui a Lei Brasileira de Liber-
dade, Responsabilidade e Transparência na Internet. O texto cria me-
didas de combate à disseminação de conteúdo falso nas redes sociais”.

132
Postulações e Fake News: Os Efeitos de “Verdade” nos Discursos Midiáticos

Essa descrição sobre o PL 2630/20 gerou nas redes sociais uma


posição de resistência, pois trechos dessa lei, de acordo com muitas
empresas de grande porte (como a Google, o Facebook, entre outras)
que usam “robôs de busca” (algoritmos) ficariam prejudicadas (BRA-
SIL, 2020b). Segundo essas empresas, tais redes como Facebook,
Twitter, bem como outros serviços de mensagens privadas (WhatsApp
e Telegram), se a lei fosse aprovada, seriam impactadas de maneira
considerável, sobretudo na forma que essas redes se interagem com
seus usuários.
Nesse contexto, no dia 2 de abril de 2022, o Blog do Google Brasil,
na seção “novidades da empresa”, através de seu presidente, Fábio Co-
elho, difunde um texto discursivizando sua preocupação com o au-
mento da desinformação:

PL 2630 pode aumentar desinformação online e prejudicar usuários

O jornalismo é essencial para fornecer informações de qualidade às


pessoas. Promover um futuro sustentável para o ecossistema de notí-
cias deve ser um objetivo de todos e uma responsabilidade comparti-
lhada. Por isso, o Google já paga para licenciar conteúdo jornalístico
e valoriza o trabalho realizado pelos profissionais de imprensa.
Agora, é importante que haja um debate mais amplo, profundo e base-
ado em fatos sobre as melhores maneiras de atingir este objetivo (CO-
ELHO, 2022).

Logo no enunciado-título, o sujeito-instituição1 deixa explícito sua


posição contrária ao PL 2630/20 ao afirmar que este “pode aumentar
desinformação online e prejudicar usuários”. Desse trecho, no âmbito
sintático-semântico, observamos um agente e um alvo, no qual o
agente é o Projeto de Lei PL 2630/20 cujas consequências, se for apro-
vado é impactar negativamente a vida dos usuários com “desinforma-
ção online”. Os efeitos gerados nesse enunciado noticiam de maneira
contundente a possibilidade (não a certeza) dos impactos do PL
2630/20 ao utilizar o verbo “poder”, gerando um efeito de “hesitação
de ideia” e de “descomprometimento” com aquilo que é enunciado,

1Sintagma utilizado para designar o enunciador do texto, uma vez que Fábio
Coelho enuncia da posição de presidente do Blog do Google Brasil,
representando os interesses dessa empresa

133
Damião Francisco Boucher e Thiago Soares Barbosa

uma vez que ele não afirma “que vai aumentar”, mas “que pode au-
mentar”.
Já o sintagma “aumentar”, emite-nos um efeito de caos, apontando
para uma “já convivência” com a “desinformação” que na possibili-
dade da aprovação do Projeto, essas “desinformações” podem aumen-
tar ainda mais. Desse ponto, vemos os efeitos do discurso da verdade
(FOUCAULT, 2014, p. 10) trabalhando na enunciação do Blog do Go-
ogle Brasil. De um lado, temos uma empresa a qual se apresenta como
a defensora contra o “aumento da desinformação” ao mesmo tempo
em que, constativamente, encontra-se no lugar empírico da maior pla-
taforma de armazenamento de informação cuja principal receita pro-
vém do aumento considerável dos anúncios do Google AdWords, mui-
tas vezes questionáveis, porquanto ao dar “oportunidades a milhares
de pequenas empresas” (LOBO, 2010, p. 40), subentendemos que, de-
vido ao aumento do fluxo e da demanda subitamente crescente, suas
regras e normas são insuficientes para delimitar e estabelecer a quali-
dade dos produtos oferecidos e da veracidade das informações anun-
ciadas por dada empresa.
Por esse motivo, o enunciador-instituição, representante de uma
plataforma de busca e de difusão de serviços e de produtos, apaga esse
lugar e, através de projeções, coloca-se na posição de uma instituição
situada em um campo historicamente atravessado pelo saber e pelo
poder-dizer “a verdade”, a saber, o âmbito jornalístico (FOUCAULT,
2014, p. 16-17). Nota-se pelos sintagmas “o jornalismo é essencial”,
“notícias”, “conteúdo jornalístico”, “profissionais de impressa” etc.
que efeitos de verdade entram em funcionamento e “revestem” o corpo
textual do enunciador dando ossatura e musculatura à argumentação
de que a Google está preocupada com o futuro da verdade. Tanto que
o discurso de sustentabilidade é conjurado e, a partir dessa evocação,
pré-construídos (HENRY, 1997, p. 33) de domínio da comunicação são
intersecionados à FD (PÊCHEUX, 2011, p. 73) do campo ambiental
para enfatizar essa relação natural entre “bio” e “aletheia2”.

2 Em grego, “o não-oculto”, "o “não-dissimulado”, isto é o evidente, o


verdadeiro.

134
Postulações e Fake News: Os Efeitos de “Verdade” nos Discursos Midiáticos

Fica estabelecida, desse ponto, a conexão entre esses dois sentidos


de campos distintos, mas que juntos produzem um efeito de relação
indissociável ao projetar a metáfora na qual “a verdade sustenta a
vida”. Em um efeito consecutivo dessa projeção discursiva, podemos
afirmar que o aumento da desinformação compromete a existência do
“ecossistema de notícias”.
Desse modo, o combate à desinformação que nesse contexto funci-
ona como “aquilo que agride o ambiente midiático” se explicita nas
expressões “futuro sustentável” e “ecossistema de notícias”. Assim,
nesse entrecruzamento “de diversos lugares sociais” (SOARES, 2018a,
p. 119) que constituem a FD do sujeito-enunciador, o jogo simbólico
de equívocos projeta a Google como sendo “ativista do ambiente vir-
tual da proteção à verdade” sob a forma de “conteúdo jornalístico”.
Cria-se desse efeito um processamento parafrástico trabalhando em
um enunciado em silêncio (ORLANDI, 2007, p. 102) com efeitos se-
mânticos de “ativista ambiental de proteção à vida”.
Nesse embate em que a informação como uma imensa rede (CAS-
TELLS, 1999, p. 83) se vê ameaçada pelo “aumento da desinforma-
ção”, temos no campo interdiscursivo (COURTINE, 2014, p. 75) o re-
torno das memórias das propagandas enganosas. Todavia, não em
condições de emergência em que a proliferação dessas propagandas
demorava atingir seu público-alvo como em rádio e TV, e sim em uma
era da “Cauda longa da publicidade” (LOBO, 2010, p. 40).
Era na qual a informação difundida pode impactar consideravel-
mente um anunciante e, por outro lado, causar prejuízos considerá-
veis, uma vez que a difusão em larga escala abrange um maior número
de usuários-clientes. Ao tocar o campo comercial e diante dessas cons-
tatações, chamamos a atenção para o funcionamento do silêncio cons-
titutivo trabalhando na região do campo de sentidos empresariais e
deslocando os sentidos no sintagma “usuários”. Como vimos acima, o
sujeito-instituição configura seu enunciado de modo a silenciar cons-
titutivamente (ORLANDI, 2007, p. 73) outros sentidos possíveis, a sa-
ber, “serviços”, “finanças” ou mesmo “rentabilidade”.
O trabalho desse silêncio constitutivo nos conduz a compreender a
polissemia no sintagma “usuários” e considerar outros sentidos possí-
veis. A princípio, é preciso sopesar os mencionados processamentos

135
Damião Francisco Boucher e Thiago Soares Barbosa

parafrásticos de uma perspectiva interdiscursiva (COURTINE, 2014,


p. 75), lugar de constituição desses pré-construídos e que denunciam
condições de produção na qual enunciados como “prejudicar serviços
(da Google)”, “prejudicar finanças (da Google)” ou ainda “prejudicar
rentabilidade (da Google)” poderiam ser coerentemente aceitos. Ora,
se “fazer parecer é um dos mais essenciais usos das mídias por sempre
usurpar a realidade de seu papel no seio social” (SOARES, 2018b, 180)
e criar outras representações possíveis, não podemos esquecer que o
Blog da Google Brasil se situa na posição de suporte midiático (FOU-
CAULT, 2014, p. 16-17). E estando determinado pela FD das mídias,
devemos considerar que ao reproduzir enunciados como “Por isso, o
Google já paga para licenciar conteúdo jornalístico e valoriza o tra-
balho realizado pelos profissionais de imprensa”, o sujeito-instituição
deixa “trilhas significativas”, “migalhas de pão3”, ou melhor, impres-
sões semânticas de sua posição discursiva e daquilo que de fato o pre-
ocupa: a possível perda do poder de filtrar, de regular ou de manter
um aparato algorítmico (como robôs, motores de buscas, etc.) autos-
suficiente para auxiliar a determinação do que é verdade ou “desinfor-
mação” ou ainda para apresentar ou interditar (FOUCAULT, 2014, p.
9) aquilo que considera informação falsa.
Levando em consideração a possível perda de poder derivada da
admissível aprovação do PL 2630/20, os sentidos engendrados em
“prejudicar usuários” nos fazem convergir a uma conclusão lógica na
qual o poder é sustentado pela receita e esta provém do aumento do
consumo de informação, bens e serviços disponíveis na rede para os
usuários (CASTELLS, 1999,). Se há uma probabilidade de restrição do
número de conteúdos promovidos pela rede, como celebra o artigo 10,
parágrafo IV desse Projeto de Lei, “interromper imediatamente a pro-
moção paga ou a promoção gratuita artificial do conteúdo, seja por
mecanismo de recomendação ou outros mecanismos de ampliação de
alcance do conteúdo na plataforma” (BRASIL, 2020c, p. 6-7), tam-
bém poderá haver uma redução drástica de anunciantes (comerciais
ou políticos), da difusão de anúncios, impactando consequentemente

3Essa expressão faz alusão à história criada pelos irmão Jacob e Wilhelm
Grimm na qual Joãozinho e Maria jogam migalhas de pão pelo caminho para
que pudessem encontrar a trilha de volta para casa.

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Postulações e Fake News: Os Efeitos de “Verdade” nos Discursos Midiáticos

a receita de forma negativa. Logo, podemos observar no enunciado


“prejudicar usuários”, os efeitos do silenciamento constitutivo (OR-
LANDI, 2007, p. 73) os quais exaltam “a importância do usuário”,
põem em relevo “a preocupação com a verdade” e apagam os interes-
ses mercantilistas sob o direito de (des)precificar, ou melhor, valorar
conteúdos nas redes.
Em suma, observamos que o Blog da Google Brasil discursiviza a
relação de força existente entre empresa midiática e usuários da rede,
ambos produtores de conteúdos noticiáveis, porém enfatiza sua legiti-
midade, sua autoridade e sua potência (CHARAUDEAU, 2016, p. 13-
18) em definir “conteúdos jornalísticos”.
Dessa perspectiva, buscamos na análise subsequente de trechos re-
tirados do site G1, de 28 de março de 2022, a ramificação dos discursos
de desinformação e de reafirmação, detalhando o funcionamento de
seus efeitos nessas redes de dizeres.

Fato ou Fake: Como os criadores de fake news tentam enganar você?

Especialistas citam quais são os principais truques utilizados nas


mensagens falsas. Frases exageradas, falta de informações específicas
e manipulação de imagens estão entre ferramentas usadas pelos cria-
dores de mentiras (VELASCO, ROCHA E DOMINGOS, 2022).

Inicialmente, a matéria do G1 traz o enunciado-título Fato ou Fake:


Como os criadores de fake news tentam enganar você?, fazendo uma
pergunta com efeitos performativos cujo objetivo não é questionar,
mas: a) delimitar um distanciamento entre o verdadeiro (fato) e o falso
(fake); b) afirmar que há sujeitos especializados em produzir notícias
falsas para enganar o “outro” e; c) estabelecer uma posição de prestígio
em que esse enunciador não “se engana” e não deixa seu leitor “ser
enganado”. Esta projeção discursiva provoca efeitos de proteção e de
aproximação cumprindo o seu papel no aumento do potencial argu-
mentativo. Também podemos pressupor no sintagma “você” os efeitos
de intimidade e de informalidade. Não é um “tentam enganar o se-
nhor” ou ainda mais distante utilizando a terceira pessoa do singular,
“tentam enganar o leitor”, mas é um “você”, pronome pessoal do caso
reto na segunda pessoa do singular. Um pronome de tratamento utili-
zado quando há uma familiaridade entre os interlocutores.

137
Damião Francisco Boucher e Thiago Soares Barbosa

Esta projeção de um “saber reconhecer” o fato ou a desinformação


pode ser percebida pelo sintagma “tentar enganar”. Nota-se que esse
enunciado funciona no campo semântico do “fracasso”, “da falha” e do
“malsucedido”, pois a referida locução verbal é também um sintagma
associativo o qual “marca a existência de um descompasso entre o in-
terdiscurso como lugar de construção “desse” pré-construído e o in-
tradiscurso como o lugar da enunciação de um sujeito” (COURTINE,
2014, p. 74, aspas nossa). “Tentam enganar”, como o “ponto de en-
contro entre uma atualidade e uma memória” (PÊCHEUX, 2015, p. 16)
geralmente emerge de regularidades discursivas registradas no es-
paço/tempo e denunciam uma relação de força assimétrica em que X
não consegue manipular Y, porquanto este último se encontra na po-
sição de um “poder-saber”. A título de exemplificação, podemos ver
essa relação de força, bem como seus efeitos em dois enunciados a se-
guir, em que o pré-construído “tentar enganar” produz seus efeitos ad-
versativos:

a) Homem é preso após informar nome falso para tentar enganar


policiais em Igarassu4
b) “Golpista usa grupos do TNOnline e tenta enganar leitores”5

Ao analisar os dois enunciados acima, notamos que em “a”, temos


uma relação entre “homem infrator” e “policiais”. No acontecimento
discursivizado pela Rádio Jornal, subseção jornalística da Uol Notícias
em Pernambuco, o homem “tenta enganar” os policiais informando
nome falso, no entanto sua ação fracassa. Temos nesse enunciado um
efeito adversativo funcionando em silêncio (ORLANDI, 2007, p 102).
Já em “b”, com o mesmo processo parafrástico do efeito metafórico
(SOARES, 2018a, 117) de “tenta enganar, mas não consegue”, há uma

4 Rádio Jornal Pernambuco é um segmento do Uol online. Disponível em:


https://radiojornal.ne10.uol.com.br/noticia/2020/06/13/homem-e-preso-
apos-informar-nome-falso-para-tentar-enganar-policiais-em-igarassu-
190080/index.html. Acesso em 20/04/2022.
5 TNOline é um Grupo destinado a notícias de Apucarana e região e faz parte

do segmento do Uol online. Disponível em


https://tnonline.uol.com.br/noticias/apucarana/golpista-usa-grupos-do-
tnonline-e-tenta-enganar-leitores-631194?d=1. Acesso em 20/04/2022.

138
Postulações e Fake News: Os Efeitos de “Verdade” nos Discursos Midiáticos

relação de manipulação estabelecida entre “golpista” e “leitores”.


Nesse caso, TNOnline dá várias orientações para frustrar a tentativa
de golpe, como orientar o grupo com alerta aos usuários de que a
equipe não pede informações pessoais nem envia links suspeitos. Ob-
servamos ainda a projeção do enunciador TNOnline para a posição de
empresa “defensora de seus leitores” e que os deixa bem-informados.
Ainda sobre a projeção dessa relação de força, verificamos, nos
efeitos que as memórias discursivas fazem emergir, uma regularidade
na qual os sujeitos geralmente são indefesos e que precisam da própria
instituição midiática ou de “especialistas” para descrever, auxiliar ou
ensinar como escapar das notícias falsas.
Retomando o recorte “Especialistas citam quais são os principais
truques utilizados nas mensagens falsas”, conseguimos observar a re-
gularidade supracitada. Pela noção de antecipação é possível compre-
ender, não só a posição da qual os sujeitos enunciador e enunciatário
ocupam nas FIms, mas também a imagem que eles fazem de si e do
outro através de suas discursivizações (PÊCHEUX, 1997, p. 83).
A priori, devemos perguntar quem é o site G1 para que fale com
seus leitores dessa maneira. O que obtemos dessa pergunta aponta
para uma FIm na qual há uma relação assimétrica cuja instituição jor-
nalística se encontra historicamente legitimada, autorizada e potenci-
alizada a ter ou a convidar “especialistas” à sua disposição para “citar
truques nas mensagens falsas”.
Após o que foi proposto, devemos questionar quem são os leitores
para que o site G1 fale assim. Dessa indagação, conseguimos depreen-
der que a imagem que G1 faz de seus seguidores é a projeção de sujei-
tos minimamente incapazes de discernir o que são mensagens verda-
deira ou falsas. Por fim, também podemos corroborar que os serviços
prestados pelo site são partes de uma cadeia discursiva mais ampla a
qual engloba a vontade de verdade do campo jornalístico (FOU-
CAULT, 2014, p. 13) produzindo variados efeitos de verdade, tomando
a desinformação e, logo, a dependência da verdade como um subpro-
duto midiático comercializável.

139
Damião Francisco Boucher e Thiago Soares Barbosa

CONSIDERAÇÕES FINAIS: FAKE NEWS, UM SUBPRODUTO DA


VONTADE DE VERDADE

Através desse percurso analítico podemos observar cada site de no-


tícias com sua seção de identificação de notícias falsas. No Google no-
tícias, temos a inserção do “selo de verificação de fatos” em seu conte-
údo publicado, no G1, encontramos a seção “Fato ou Fake”, no Uol,
podemos encontrar a seção de verificação com o título “UOL confere”
e já no Estadão, temos o “Estadão verifica”, “checagem de fatos e des-
monte de boatos”. Todas essas à disposição de um público que produz
e que a um só tempo consome a (des)informação.
Ao analisar as redes de dizeres sobre as fake news, encontramos
em campos sociais distintos a mesma preocupação sobre a apropria-
ção da verdade. No campo jurídico, por exemplo, ao nos deparar com
a manchete “Barroso diz ser preciso restabelecer o 'poder da verdade'
no Brasil6, pressupomos um engajamento das instituições em que a
vontade de verdade se vê ameaçada. Verificamos também o reconhe-
cimento da força que a monopolização e a manutenção da verdade tra-
zem a essas instituições.
Ora, se concordamos com Foucault (, 2014, p. 16-17) que os efeitos
de verdade exercem “um poder de coerção”, se corroboramos com
Charaudeau (2016, p. 13-18) que essa força está vinculada à legitima-
ção, autorização e à potencialização promovidas por um saber e um
“poder-fazer” e; por fim, se admitimos a natureza heterogênea das for-
mações sociais (AUTHIER-REVUZ, 2004, p. 246-247) e como elas são
determinadas pela relação de força (ALTHUSSER, 1992; PECHÊUX,
2015) aquilo que pode e deve ser dito (PÊCHEUX, 2011, p. 73), conse-
guimos por “um milésimo de instante” captar os efeitos quase imper-
ceptíveis dos dizeres de Barroso e traduzir em um processamento pa-
rafrástico que projeta o anseio e a aflição das grandes instituições pela

6 Notícia disponível em: https://noticias.uol.com.br/ultimas-


noticias/agencia-estado/2022/04/10/barroso-diz-ser-preciso-restabelecer-
o-poder-da-verdade-no-brasil.htm?cmpid=copiaecola.
Acesso em 21/04/2022.

140
Postulações e Fake News: Os Efeitos de “Verdade” nos Discursos Midiáticos

busca de “restabelecer o poder da verdade”: “Em um lugar em que to-


dos falam a verdade, sentimos a falta dela”.
Logo, reafirmamos a ideia não tão óbvia sobre a vontade de ver-
dade, a qual arriscamos confirmar ainda em nossas considerações teó-
ricas. De fato, a verdade faz parte de uma intrincada construção social.
Ela é constituída e mantida por memórias e por representações
(ACHARD, 2015, p. 16-17) que atravessam a (des)continuidade histó-
rica (SOARES, 2019, p. 42). Interligados do campo interdiscursivo ao
eixo intradiscursivo com enunciados que associam o já-dito com o di-
zível (ou pré-construídos), os efeitos de verdade fazem funcionar a
atualização semântica estabilizando e, às vezes, deslocando os senti-
dos que se encontram submissos às FDs as quais permeiam e traba-
lham na manutenção dessa complexa rede de dizeres sobre a verdade
e a desinformação.
Diante ao exposto, acreditamos que a continuidade dos estudos so-
bre os efeitos de verdade e sobre como estes afetam sujeitos, sentidos
e, por conseguinte, a percepção de nossa realidade, pode contribuir
proficuamente para os campos da antropologia relativista, da psicolo-
gia, da filosofia e, sobretudo, para os estudos linguísticos, uma vez que
põem em questionamento os dizeres sobre o fenômeno das fake news,
dos discursos de ódio e da desinformação gratuita como forma mer-
cantil.
Por fim, os estudos sobre as fake news também se mostram muito
profícuos, porquanto no movimento descritivo-interpretativo de
nosso percurso, acreditamos ter apontado diversos caminhos que
ainda podem ser percorridos para uma (in)conclusão mais ampla so-
bre os efeitos de verdade e como estes funcionam projetando repre-
sentações em que a verdade assume a forma de uma propriedade par-
ticular do campo intelectual, um produto exclusivamente institucio-
nal.

141
Damião Francisco Boucher e Thiago Soares Barbosa

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cam-projeto-contra-noticias-falsas-aprovado-no-senado/. Acesso
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144
Postulações e Fake News: Os Efeitos de “Verdade” nos Discursos Midiáticos

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145
“Li Tudo”: Discursos sobre a
Leitura e o Orgulho de Ser Leitor1
Luzmara Curcino
Gustavo Rosa
Simone G. Varella

A leitura é, em geral, uma prática abordada com frequência, ainda


que de forma rápida e alusiva. No entanto, embora bastante se fale
dela, se diz muito pouco se considerarmos a variedade do que é dito 2.
Isso advém da reiteração tanto do que é dito quanto do modo como
geralmente ela é referida. Esse modo de funcionamento discursivo não
é exclusivo do tema da leitura, mas, uma vez que nos dedicamos à aná-
lise do que em geral se diz sobre essa prática, é inevitável constatar a
força do consenso quando vem à tona esse assunto. Entre esses con-
sensos quanto ao que enunciar e ao modo como fazê-lo adequada-
mente, estão aqueles relativos ao que devemos expressar, em termos
de emoções, na condição de leitores. É sobre uma dessas emoções que

1 Este trabalho deriva da pesquisa de Iniciação Científica (Bolsa IC-UFS-


Car/CNPq: 7078), realizada entre 2020 e 2021, e intitulada “No meu tempo,
se lia mais: orgulho e nostalgia em discursos sobre a leitura”, desenvolvida
junto ao LIRE – Laboratório de Estudos da Leitura, da Universidade Federal
de São Carlos. Ele se vincula ao projeto “Leitores orgulhosos, leitores enver-
gonhados: as emoções em discursos sobre a leitura”, coordenado pela docente
Luzmara Curcino (com apoio FAPESP 2020-03615-0), no qual se visa a ana-
lisar a forma como são expressas certas emoções ao se abordar o tema da lei-
tura, em textos de diferentes origens, períodos e com distintas finalidades e
públicos, para mais bem descrever o funcionamento dos discursos sobre a lei-
tura.
2 Essa constatação é apresentada por Curcino (2018a) e reiterada em Manfrim

& Curcino (2020).

147
Luzmara Curcino, Gustavo Rosa e Simone G. Varella

frequenta os discursos sobre a leitura que nos deteremos neste texto,


a saber, aquela do “orgulho” de ser leitor.
Nosso interesse pela análise discursiva das formas de expressão do
“orgulho” de ser leitor partiu da constatação de Curcino (2020a;
2022), segundo a qual a alusão a emoções responde a certos protoco-
los discursivos: não é qualquer emoção que se enuncia quando se fala
da leitura ou de si como leitor, e não é de qualquer modo que se o faz.
Para a autora, as emoções mais frequentemente evocadas em relação
à leitura são a ‘nostalgia’, o ‘orgulho’ e a ‘vergonha’. Partindo dessas
constatações, analisamos aqui alguns enunciados3 sobre a leitura, nos
quais se pode depreender maneiras dessa expressão do “orgulho” de
ser leitor que compõem os discursos sobre essa prática, o enunciável
social e historicamente legitimado sobre esse tema.
O exemplo aqui analisado foi destacado de um conjunto de outros
enunciados obtidos em entrevistas realizadas com personalidades co-
nhecidas nacionalmente e que foram produzidas e publicadas na mí-
dia tradicional brasileira4. Nestas entrevistas, entre outros temas mais
centrais, tais personalidades eram instadas a falar de si e o fizeram re-
correndo, entre outros aspectos de seu perfil e em corroboração com
um certo ethos5 por elas visado, à alusão a seus hábitos e gostos de

3 Sobre o conceito de “enunciado”, cf. Michel Foucault (1999) e precisamente,


tal como o emprega Curcino (2015), na análise de discursos sobre a leitura.
4 Para a seleção dos enunciados da pesquisa da qual derivou este artigo, cir-

cunscrevemos a coleta ao período de julho de 2015 a julho de 2020, e nos li-


mitamos a duas fontes: o jornal Folha de São Paulo e a revista Veja, respecti-
vamente em suas colunas de entrevista, intituladas ‘Entrevista da segunda’ e
‘Páginas Amarelas’. Percorremos aproximadamente 520 entrevistas, em nú-
meros relativamente proporcionais em um veículo e em outro. A ferramenta
de busca de que nos valemos foi aquela fornecida pelos acervos on-line do jor-
nal “Folha de SP ” e da revista “Veja ”, acessíveis em https://acervo.fo-
lha.com.br/index.do e https://veja.abril.com.br/acervo/. Após aberto o ar-
quivo de cada entrevista, procedíamos à consulta pelas palavras-chave “lei-
tura”, “livro”, “leitor”, “biblioteca”. Desse processo de busca, analisamos na
pesquisa um conjunto de enunciados de 22 entrevistas. Neste texto, trouxe-
mos como amostra a análise de enunciados provenientes de duas dessas en-
trevistas.
5 Em sua definição tradicional, o ethos diz respeito à imagem que o locutor

visa a criar de si ao enunciar, ao falar ao outro. Na Antiguidade, equivalia à


imagem que o locutor deveria produzir, com base em técnicas oratórias, para

148
“Li Tudo”: Discursos sobre a Leitura e o Orgulho de Ser Leitor

leitura. Essas entrevistas com políticos, empresários, artistas e cien-


tistas ou especialistas tornam-se ocasião privilegiada para se aludir à
leitura, mesmo que en passant, mesmo que de maneira muito gratuita
e sem relação com os temas principais condutores da entrevista.
Assim como observado por Borges & Curcino (2017), por Curcino
& Silva (2019) e por Curcino (2018b, 2019, 2020c) em análises de ou-
tros textos da mídia que também versaram sobre o perfil leitor de per-
sonalidades, em geral, em entrevistas com políticos com grandes
chances de vitória, e em períodos eleitorais, tende-se a questioná-los
sobre suas metas, seus adversários, sobre alguma polêmica biográfica;
já em relação a empresários, estes são consultados sobre as razões de
seu bom desempenho comercial e suas opiniões no campo da econo-
mia e da política; quanto a artistas midiáticos, estes são questionados
sobre seu sucesso, seus papeis em novelas, teatro ou cinema, sobre
suas atividades de lazer, e, no caso de mulheres, sobre dicas de beleza.
Por sua vez, cientistas, acadêmicos, intelectuais, editores e escritores
são também levados a falar sobre suas profissões, sobre as razões de
seu sucesso, sobre seus projetos futuros. A formação cultural, e parti-
cularmente o tema da leitura, dos livros, das bibliotecas, das práticas
convencionais ou excêntricas de leitura, são temas secundários, subsi-
diários, que, em geral, são abordados nessas entrevistas para melhor
promover a imagem de sucesso dos entrevistados, de qualquer ramo
profissional.
Como constam nos dados da pesquisa, e especialmente nestes que
aqui analisamos, embora rarefeitas e breves, essas menções à leitura
nessas entrevistas são muito regulares, tanto em relação ao que é

ser bem-sucedido em seu discurso, convencendo seu interlocutor e produ-


zindo sua adesão. Para os estudos discursivos da atualidade, o conceito guarda
essa base comum, considerando, no entanto, o desempenho oratório como
algo que não se limitaria apenas ao desempenho oratório técnico de um indi-
víduo e ao sucesso de sua empreitada. Para uma abordagem discursiva, é fun-
damental incluir a dimensão social, cultural e histórica que faz com que todo
indivíduo, antes mesmo de tomar a palavra, tenha seu dizer investido de sig-
nificado em função dos posicionamentos institucionais e ideológicos que
ocupa ou que se imagina serem por ele ocupados, em função dos gêneros dis-
cursivos que dão corpo ao que enuncia, e que assim outorgam uma certa ima-
gem de seu enunciador em consonância com “representações sociais valoriza-
das ou desvalorizadas”. Cf. Maingueneau (2013).

149
Luzmara Curcino, Gustavo Rosa e Simone G. Varella

enunciado quanto ao modo como se enuncia. Ambas não prescindem


das emoções. Na análise, deparamo-nos com formas legitimadas de se
apresentar leitor e, por meio delas, buscamos evidenciar maneiras or-
gulhosas de expressão dessa condição leitora. Para isso, fundamen-
tamo-nos em princípios da Análise de Discurso, em especial, segundo
a “ordem dos discursos”, do filósofo Michel Foucault (1999), da Histó-
ria Cultural da leitura, conforme estudos de Roger Chartier (1998,
2019) e dos estudos recentes sobre a história das ‘emoções’, tais como
desenvolvidos por Jean-Jacques Courtine (2016). Sobre os estudos
dos discursos sobre a leitura no Brasil, apoiamo-nos especialmente em
Márcia Abreu (2001a, 2001b, 2006) e nas reflexões desenvolvidas pe-
los pesquisadores do LIRE, a que recorremos e citamos ao longo de
todo o texto.

ORGULHO DE SER LEITOR: RAZÕES E FORMAS DE EXPRESSÃO


DESSA EMOÇÃO EM “ENTREVISTAS”

O tema da leitura, por ser tratado em geral de forma exclusiva-


mente eufórica e positiva em nossa sociedade, tende a ser evocado pri-
oritariamente como meio de reafirmação de uma posição sujeito orgu-
lhosa de ser leitor. Esse orgulho se manifesta sob diferentes formas
enunciativas de autopromoção leitora, que visam, por sua vez, cons-
truir uma imagem de si como indivíduo culto 6 e também – como é o
caso de algumas entrevistas selecionadas que analisamos – como in-
divíduo capaz de liderar e conduzir a população de forma qualificada,
em função, entre outros atributos, de suas práticas leitoras.
Esse “orgulho” cultural é marcado pela origem social, de classe e de
gênero dos entrevistados, seja na maior frequência de sua enunciação
nas entrevistas, seja no modo de enunciar esse “orgulho” por aqueles
que podemos categorizar como “herdeiros”, categoria definida por
Bourdieu e Passeron (2014), e empregada por Chartier (2019), no que
diz respeito especificamente à leitura e aos leitores. O orgulho em re-
lação à leitura, em sua evocação naturalizada pelos “herdeiros”, tal
como observado pelos autores, advém do contato precoce, frequente e

6Cf. Curcino (2018a, 2018b, 2020b), Manfrim & Curcino (2020) e Borges &
Curcino (2017) sobre essas formas diretas e indiretas de autopromoção leitora.

150
“Li Tudo”: Discursos sobre a Leitura e o Orgulho de Ser Leitor

familiar com objetos, hábitos e espaços do universo dessa prática, con-


cebidos em nossa sociedade como meios de diferenciação, como for-
mas de distinção sociocultural.
As várias formas de exprimirmos emoções são também formas de
argumentar e participam da construção do ethos do enunciador. Como
uma emoção social, culturalmente delimitada, o ‘orgulho’ se encontra
bastante presente no que em geral se enuncia sobre a leitura. Por ve-
zes, ele é acompanhado de uma certa expressão de ‘nostalgia’, que
tanto remonta, de maneira idealizada e saudosista, ao que se viveu no
passado, quanto àquilo que sequer foi vivido por aquele que enuncia,
mas que se refere a um passado idealizado.
Quando o assunto é leitura, essa expressão nostálgica relativa ao
que sequer se vivenciou individualmente, em alguns casos, responde à
força dos discursos idealizados e consensuais sobre essa prática, que
funcionam como uma memória do não-vivido, que, por sua vez, tal
como observa Curcino (2020a), está mais suscetível à idealização do
passado e à estigmatização do presente, à valorização do que outros
fizeram em relação ao que o próprio enunciador acredita ser e fazer ou
aquilo que seus contemporâneos são ou fazem, no presente. Tanto a
expressão do ‘orgulho’ quanto da ‘nostalgia’ são também, por vezes,
ocasião para a expressão da ‘vergonha’, seja do presente, seja de outros
sujeitos, cujas práticas estes orgulhosos e/ou nostálgicos tendem a
condenar, estigmatizar, tratar como a de não-leitores7.
Entrevistas costumam ser ocasião particular para expressão do ‘or-
gulho’ e da ‘nostalgia’. Nas ocasiões em que nelas se enuncia algo sobre
a leitura, somos confrontados com a reiteração de certas representa-
ções do que é ser leitor, que impõem o silenciamento de certas práti-
cas, o monitoramento do que se deve e se pode dizer sobre a leitura,
em especial em função das posições institucionais ocupadas por esses
sujeitos entrevistados, que os habilitam ou não a falar da leitura, que
os compelem a falar de um jeito e não de outro, que os incitam à ex-
pressão do orgulho ou da nostalgia em relação a essa prática.
Tanto o entrevistador quanto o entrevistado, no ato de enunciar, e
tendo em vista seus objetivos e públicos visados, buscam constituir ou

7 Sobre a ‘vergonha’ em relação à leitura, cf. Curcino (2022); Postalli & Curcino

(2022).

151
Luzmara Curcino, Gustavo Rosa e Simone G. Varella

reforçar um dado ethos a seu respeito enquanto falam. Ao enunciar, os


sujeitos intentam marcar, no que dizem e no modo como o fazem,
aquilo que se é ou que se quer parecer ser. Tal como afirma Maingue-
neau (2013, p.70), essas escolhas do dizer carregam “traços de caráter
que o orador deve mostrar ao auditório (pouco importando sua since-
ridade) para causar boa impressão [...]. O orador enuncia uma infor-
mação e, ao mesmo tempo, ele diz: Eu sou isto e não aquilo”.
É por essas características da ‘entrevista’, que este é um dos gêne-
ros discursivos mais propícios para a identificação de formas de ex-
pressão mais afetivas, como o ‘orgulho’ ou a ‘nostalgia’, por ser um gê-
nero mais marcado pela subjetividade, por ser também ocasião de re-
memoração do passado, da história de vida dos entrevistados. Assim,
entre os gêneros que normalmente compõem a esfera de comunicação
midiática, o gênero ‘entrevista’ é aquele que incita mais diretamente o
sujeito a falar de si mesmo. Ao falar de si mesmo, os entrevistados, de
diferentes origens, profissões podem eventualmente tratar do tema da
leitura, de seus hábitos leitores, como sendo esta uma característica
que ajuda a compor, a explicar e a qualificar a imagem do entrevistado.
Portanto, a partir do que se enuncia (ou do que se deixa de enun-
ciar), é possível depreender alguns discursos consensuais, entre eles
aqueles relativos à leitura, que retornam e que são atualizados sob a
forma de diferentes enunciados. Nas entrevistas levantadas na pes-
quisa, e em que emerge alguma referência à leitura, vimos que as de-
clarações dos entrevistados e também dos entrevistadores se filiam a
discursos consensuais sobre essa prática que autorizam o que é legí-
timo dizer a respeito dela.

ENTREVISTADO E ENTREVISTADORES: REPRESENTAÇÕES


DE UM LEITOR ORGULHOSO

Sentidos, afetos e emoções que parecem ser tão subjetivos e pró-


prios dos indivíduos, de sua esfera pessoal, são resultantes de nossa
vida em sociedade, segundo a perspectiva histórico-discursiva que as-
sumimos. Como seres sociais e submetidos aos valores, crenças e gos-

152
“Li Tudo”: Discursos sobre a Leitura e o Orgulho de Ser Leitor

tos de nossas comunidades de origem e pertencimento, sentimos e ex-


pressamos esse sentir de acordo com as formas compartilhadas forne-
cidas socioculturalmente para sua expressão e enunciação.
Falar da leitura, e ainda mais de si mesmo como leitor ou leitora,
seleciona alguns sentimentos e emoções, não qualquer um nem de
qualquer modo, e impõe maneiras de demonstrá-los. Mesmo lendo,
nem todos são reconhecidos como leitores. Aqueles que podem se afir-
mar leitores, e serem legitimamente reconhecidos como tais, são os
que, além de corresponderem a certas expectativas culturais quanto a
seus gestos, ocasiões, modos e objetos de leitura, são também aqueles
que dominam as emoções adequadas de serem expressas em relação a
essa prática, de modo a afirmarem seu pertencimento à cultura le-
trada, e, com ela, atestarem sua inteligência, poder e, assim, justifica-
rem suas posições sociais distintas em relação à maioria.
Ao realizar a pesquisa em busca de figuras públicas nacionais, cé-
lebres em suas áreas, cujas entrevistas foram produzidas e publicadas
por importantes instituições midiáticas nacionais, e que, ainda que de
forma alusiva e breve, proferiram algo sobre si como leitores, sobre
seus hábitos e privilégios de leitura, o que identificamos foi a regulari-
dade na enunciação de certas práticas e a sua relação com suas origens
socioeconômicas. Essa regularidade também compreende formas
compartilhadas de simbolizar seu ‘orgulho’ de ler, de ser leitor.
Tendo em vista o maior número de entrevistas cujas personalida-
des são do âmbito da política, selecionamos como exemplo de análise
a entrevista realizada e publicada pela “Folha de São Paulo”, em 19 de
março de 2018, com Geraldo Alckmin. Trata-se de uma personalidade
política bastante conhecida no Brasil, tendo iniciado sua carreira, no
final da década de 70, como vereador e prefeito de Pindamonhangaba,
depois deputado estadual e federal por São Paulo, antes de ser gover-
nador de São Paulo por 3 mandatos, dois deles consecutivos, e candi-
dato à presidência da República em dois pleitos, o último deles em
2018, mesmo ano em que foi realizada essa entrevista. Como não há
coincidências na política, a entrevista que concedeu compunha uma
peça de pré-campanha, em março daquele ano, quando ele ainda ocu-
pava o cargo de governador do Estado.

153
Luzmara Curcino, Gustavo Rosa e Simone G. Varella

A alusão à leitura, nesta entrevista, é bastante breve, assim como


gratuita8. Ela se dá sob duas formas, a da fotografia e sua legenda: “O
governador Geraldo Alckmin lê, no carro, a edição de domingo da Fo-
lha”9; e no corpo da entrevista, com um pouco mais de detalhe, como
parte da rememoração de suas origens culturais familiares.
A imagem que compõe esta entrevista é uma fotografia em close de
rosto de Geraldo Alckmin, realizada no interior de um carro em deslo-
camento, do banco traseiro, de modo a focalizar o candidato sentado
no banco dianteiro do passageiro do carro, com o corpo voltado para
quem o fotografa, segurando um jornal aberto, sorrindo. A cena regis-
trada pela objetiva da câmera simula a interrupção, por parte do can-
didato, da leitura do jornal, de modo a posar para a foto que comporia
posteriormente a entrevista então em curso realizada pelo jornalista e
pelo fotógrafo que se encontrariam no banco traseiro do carro. É uma
foto posada e que não visa a parecer outra coisa. Como tal, ela é menos
potente simbolicamente do que uma foto não posada, fortuita, que re-
gistra, à revelia de quem é fotografado, os seus gestos, atitudes e prá-
ticas. Na fotografia posada, como observou Curcino (2006) em relação
a seu uso em gêneros midiáticos informativos, o efeito de objetividade
que em geral se espera de textos jornalísticos em relação ao que infor-
mam é menos eficazmente produzido do que em relação a uma foto-
grafia não posada, produzida sem o conhecimento do fotografado ou
sem sua autorização prévia e expressa e para a qual tenha podido se
preparar.
Apesar disso, não é prioritariamente o efeito de objetividade, por
parte da instituição midiática, o que parece ter sido visado com essa

8 Tal como demonstrado por Curcino (2018a, 2018b, 2019), essas caracterís-
ticas são recorrentes em textos da mídia que abordam a política nacional e que
representam as personalidades deste campo como sendo ou não leitores.
9 BILENKY, T. ‘Não vou brigar com PT, vou olhar para o futuro’, diz

Alckmin: Governador de SP, presidenciável tucano diz que deixará


pesadelos do passado de lado na campanha. In: Jornal Folha de São
Paulo, seção Entrevista da Segunda, Eleições 2018, 19 de março de 2018. Dis-
ponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/03/nao-vou-brigar-
com-pt-vou-olhar-para-o-futuro-diz-alckmin.shtml. Acesso em: 20 nov.
2020.

154
“Li Tudo”: Discursos sobre a Leitura e o Orgulho de Ser Leitor

fotografia e sua legenda explicativa. Entrevistado, entrevistador e ins-


tituição midiática querem dar a esta circunstância não o peso de uma
notícia, mas a leveza de uma entrevista. O primeiro faz dela ocasião de
campanha, os segundos garantem as condições necessárias para que
esse objetivo seja alcançado ao realizar uma entrevista sem perguntas
constrangedoras, difíceis, embaraçosas. Ao contrário, prima-se na en-
trevista pelo tom conversacional, pela simulação do diálogo espontâ-
neo, civilizado e afável.
Ao retratar o fotografado em um momento de sua rotina como go-
vernador, enfatiza-se o fato de se tratar de um domingo e de ele estar
em trânsito em compromisso de trabalho, ainda assim primando por
representá-lo de forma descontraída, lendo o jornal Folha de São
Paulo em sua edição de domingo, quando então teria interrompido
brevemente sua leitura, em um gesto de atenção e gentileza com quem
se encontra sentado no banco de trás do veículo com esse objetivo de
fotografá-lo. A cena é propícia para representá-lo como alguém aces-
sível e simpático e, ao mesmo tempo, dedicado ao trabalho e pragmá-
tico, que otimiza seu tempo em trânsito para conceder a entrevista.
Esta representação imagética conjuga, assim, a representação do can-
didato como alguém que trabalha bastante, que lê para se informar,
que aproveita todo o tempo disponível para isso e o faz de modo ade-
quado, cotidiano e à vontade, tanto em relação a seu trabalho quanto
à sua leitura.
Ao se fotografar lendo jornal, fotógrafo e candidato compartilham
uma representação comum acerca da leitura. Não estamos diante de
qualquer cena escolhida ao acaso para ilustrar esta entrevista. Asses-
soria de marketing e profissionais do jornal planejam em detalhe –
como ocorre aliás em relação a outros políticos de grande visibilidade
no país – circunstâncias mais propícias para o registro de fotos como
esta, capazes de contar uma história e constituir um ethos específico
do fotografado. Isso porque a escolha de uma fotografia proveniente
de um conjunto de outras obtidas na mesma circunstância e a cons-
trução de uma legenda orienta o olhar leitor em direção àquilo que os
enunciadores do texto esperam ser visto na fotografia.
Se o gênero entrevista é o mais subjetivo entre os demais gêneros
jornalísticos, a fotografia é um elemento essencial da linguagem desse

155
Luzmara Curcino, Gustavo Rosa e Simone G. Varella

gênero. A ela se pode atribuir o ‘ar’ de registro do cotidiano, intimista


e relativamente espontâneo.
Não é também qualquer tipo de evocação da leitura que está sendo
aqui reproduzida. Trata-se de um homem público lendo jornal, o que,
além de remeter a um ato de leitura costumeiro, habitual, que se faz
com regularidade, e a uma prática necessária e condizente com sua
atuação profissional, também invoca uma memória, ou seja, ativa sua
intericonicidade10 relacionada a uma história de longa-duração acerca
dos leitores prototípicos de jornal. Tal como observa Abreu (2001b),
uma das representações clássicas de leitura, de grande circulação no
século XIX europeu, é aquela em que se retrata homens lendo jornais,
informando-se, diferentemente do que ocorre com as mulheres, em
geral representadas lendo livros, que, por seu formato, correspondem
a romances, ou seja, à leitura de entretenimento e evasão.
Além dessa referência imagética a uma prática de leitura do entre-
vistado, logo adiante11 na entrevista, pode-se observar a exploração
mais sistemática de aspectos como o da informalidade, descontração,
intimidade, observáveis pelas várias informações de cunho biográfico
e pessoal, não relacionadas direta e exclusivamente à política e a seu

10 Este conceito, elaborado por Jean-Jacques Courtine (2011), diz respeito ao


funcionamento discursivo das imagens. Este funcionamento pressupõe que a
interpretação de toda e qualquer imagem não prescinde de outras imagens
anteriores, exteriores e interiores. Sua interpretação resulta sempre dessa sua
inscrição em uma memória visual, em uma memória simultaneamente cole-
tiva e individual, composta de imagens vistas, mas também imaginadas, inse-
ridas em uma cultura imagética. Essa cultura responde pela inscrição de uma
imagem em uma série de outras, que são retomadas e que, ao serem retoma-
das, podem (re)definir o sentido de cada uma delas e o modo de sua interpre-
tação. Essa memória discursiva das imagens “supõe considerar as relações en-
tre imagens” e como essas relações “produzem os sentidos” (COURTINE,
2011, p. 160).
11 BILENKY, T. Alckmin anda por SP e cobra placas com a marca do

governo em obras. Governador pede avisos anunciando inaugura-


ções do Rodoanel e de metrô no Morumbi. In: Jornal Folha de São
Paulo, seção Entrevista da Segunda, Eleições 2018, 19 de março de 2018. Dis-
ponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/03/alckmin-anda-
por-sp-e-cobra-placas-com-a-marca-do-governo-em-obras.shtml. Acesso
em: 20 nov. 2021.

156
“Li Tudo”: Discursos sobre a Leitura e o Orgulho de Ser Leitor

exercício profissional, mas antes marcada pela história de vida do en-


trevistado e por alusões a práticas de sua rotina caseira e familiar. Se-
gundo o texto da Folha, Alckmin, no carro, a caminho de um compro-
misso político, durante a entrevista, indica ao entrevistador a rua onde
mora e afirma que, depois que deixar o governo, voltará a morar na
mesma casa onde reside há 20 anos. Esse é o mote para incluir em seu
relato o tema da leitura:

Uma vez eu ouvi da [ex-prefeita, hoje no PSOL, Luiza] Erundina, per-


guntaram, se ela ganhasse na loteria, o que faria? A Erundina falou: eu
trocaria meu apartamento por um maior. Quando eu ponho um livro,
tenho que tirar outro, contou, rindo. Também gosto de livro. Meu pai
foi seminarista, uma pessoa de formação intelectual, sabia muita teo-
logia, filosofia, sociologia, latim, grego. Depois se especializou em ve-
terinária, biologia, lembra.

Geraldo Alckmin introduz o tema da leitura como um dado biográ-


fico que considera relevante fornecer nessa sua entrevista. Isso por-
que, após criar a ocasião para falar que “gosta de livro”, mesmo tendo
sido interrompido por uma ligação de um seu assessor sobre questões
de gestão diretamente ligadas à política, tal como relata a entrevista,
ele retorna ao mesmo tema da leitura.

O governador conta que está lendo “Homo Sapiens” e “Homo Deus”,


best-sellers de Yuval Noal Harari citados em inúmeros discursos pelo
presidente Michel Temer. É interessante, mas não é a leitura de que
mais gosto. Não leio muito política, gosto mais de teologia, conta. Ele
cita santo Agostinho e são Tomás de Aquino. Na literatura, vai de Mon-
teiro Lobato (li tudo), Eça de Queiroz e Jorge Amado. É que a vida é
corrida, mal leio jornal. Abre o exemplar de domingo de O Estado de
São Paulo, passa pela coluna de José Roberto Mendonça de Barros, um
de seus conselheiros na economia. “Brilhante”. Abre a Folha. Lê no
“Painel” que tucanos apelidaram um aplicativo do partido de “Talck-
min”. Tem coisa que a gente fica sabendo só pelo jornal, diverte-se.

Nas escolhas lexicais que emprega, mescla palavras incomuns,


pouco frequentes, que indiciam um vocabulário pouco convencional,
formal até, ao empregar termos como “aleivosia”, ao fazer referência
às acusações acerca de recebimentos de caixa dois e possíveis apoios
não legais para a campanha tucana ao governo em 2010. Ainda que se
esforce para construir uma imagem simpática e popular, ele não abre

157
Luzmara Curcino, Gustavo Rosa e Simone G. Varella

mão de usos linguísticos que o distinguem social e culturalmente.


Mesmo dando um tom bastante informal para a entrevista, ele zela por
seu ethos de homem culto, para o que é fundamental se referir a prá-
ticas intelectuais e culturais de prestígio, como a leitura, e convocar as
formas idealizadas de exercê-la.
Essa idealização da leitura e da condição leitora e os efeitos que sua
evocação visam gerar em contextos como este da entrevista respon-
dem à força dos discursos dominantes sobre a leitura de modo que ‘ser
leitor’ adquire uma aura simbólica que agrega valor a todo aquele que,
em nossa sociedade, pode assim se descrever. O que se esquece a esse
respeito é que ‘ser leitor’ não faz necessariamente de ninguém uma
pessoa melhor, pessoalmente, moralmente ou profissionalmente (em
muitos casos), embora em geral se tenha naturalizado essa represen-
tação12.
Geraldo Alckmin sabe do valor simbólico da leitura, assim como o
seu entrevistador. Tal como seu colega de partido e ex-presidente da
república, Fernando Henrique Cardoso, que, em diversas ocasiões,
fez-se representar como leitor13, Alckmin se apresenta como quem
gosta de livros, como quem está lendo um livro no momento, como
quem lê jornais com regularidade e não apenas um, ainda que apenas
alguns dos textos por falta de tempo, como quem conhece as obras e é
capaz de avaliá-las, como quem conhece os autores de artigos dos jor-
nais e é também capaz de avaliá-los, e que o faz como quem sabe como
é preciso se referir à leitura.
Ele se representa como um leitor tanto intensivo quanto extensivo,
conforme definido pelo historiador alemão Rolf Engelsing, que, ao es-
tudar mudanças históricos nos modos de ler na Alemanha, no século
XVIII, do romantismo alemão, e logo após este período, afirma que, se
antes os leitores em questão se caracterizavam por uma prática mais

12 Tal como afirma Britto (1999), um indivíduo não se torna melhor ou pior
apenas porque é leitor. No entanto, embora essa relação moral não se estabe-
leça de fato em função de alguém ser ou não leitor, a crença de que isso se dá
provém de discursos historicamente constituídos, de longa data, sobre a lei-
tura, e que são reiterados justamente porque promovem de forma seletiva o
benefício de alguns poucos em nossa sociedade.
13 Cf. análise de Curcino (2018, 2019).

158
“Li Tudo”: Discursos sobre a Leitura e o Orgulho de Ser Leitor

intensiva, de leitura de obras densas, cuja leitura se dava repetidas ve-


zes, exclusivamente, e da totalidade da obra, a partir da segunda me-
tade do século XVIII, na Alemanha, graças à expansão dos livros im-
pressos, houve uma alteração dos hábitos dos leitores, que, a partir de
então, priorizam a leitura mais rápida, de vários textos simultanea-
mente, aos quais não retornam de modo a poderem ler outros títulos.
A leitura intensiva era uma prática empregada para estimular a me-
mória e, de certa forma, era uma forma sacralizante de se ler, tendo
em vista que boa parte das obras em circulação até então eram de cu-
nho religioso ou eram lidas em voz alta, repetidas vezes, para a fixação
da palavra. A leitura extensiva se caracterizava como de realização
mais breve, rápida e relativamente superficial, e isso com o intuito
principal de se ler um número maior e mais variado de títulos, quando
essa oferta de obras se amplia em número e variedade 14.
Ao fazer referência à leitura de um livro que está lendo e ao enfati-
zar sua preferência e hábito de ler com frequência um gênero especí-
fico, que caracterizaria seu gosto literário, podemos relacionar essa de-
claração com uma autorrepresentação aproximada do perfil de um lei-
tor intensivo. O mesmo se pode dizer de sua declaração em relação à
obra de Monteiro Lobato, de quem ele afirma ter lido tudo. Ao fazer
referência a vários títulos de livros e a vários autores, alguns de gêne-
ros literários distintos, mas também ao se mostrar lendo mais de um
jornal, o entrevistado se aproxima da imagem de um leitor extensivo.
Assim, no modo como ele fala de si e como ele é representado na en-
trevista ele articula essas duas formas de ler, desde então consagradas.
O então governador não apenas se vale de uma representação de si
como leitor como forma de constituir e de validar seu ethos de homem
culto, bem formado e informado, mas também o faz de forma orgu-
lhosa. Não sem razão, ele evoca sua condição leitora como um hábito
que teria herdado do pai.

Também gosto de livro. Meu pai foi seminarista, uma pessoa de forma-
ção intelectual, sabia muita teologia, filosofia, sociologia, latim, grego.

14A menção a esses conceitos de Engelsing se encontra em Chartier (1998,


2007).

159
Luzmara Curcino, Gustavo Rosa e Simone G. Varella

Sua afeição pela leitura e seu hábito de ler são ainda reiterados
mesmo quando ele confessa o pouco tempo que dispõe para ler o
quanto gostaria de ler.

“É que a vida é corrida, mal leio jornal.” Abre o exemplar de domingo


de O Estado de S. Paulo, passa pela coluna de José Mendonça de Bar-
ros, um de seus conselheiros na economia. “Brilhante”.

Embora afirme ler menos do que gostaria, ao dizer que “mal lê jor-
nal”, ele mobiliza novamente o pressuposto de que, para o cargo que
exerce, não basta ser um homem culto e leitor de livros. É preciso, so-
bretudo, ser um homem bem-informado, logo, um leitor de jornal. Ele
ainda mobiliza uma outra representação compatível com o ethos do
bom leitor ao demonstrar que conhece os autores dos textos, em espe-
cial aqueles dos jornais que folheia, e é capaz de avaliá-los, de emitir
sobre eles um julgamento, uma qualificação de forma assertiva.
O entrevistado, em função de sua condição de “herdeiro”, apre-
senta-se orgulhosamente como leitor, reiterando as várias qualidades
que, segundo os discursos dominantes, são características daqueles
que são verdadeiros leitores, variando de acordo com a origem de
quem os profere. Essa expressão do orgulho ora é representada como
uma conquista merecida por uns, ora como algo naturalizado, norma-
lizado por outros. O então governador, ao evocar o traço da habituali-
dade do exercício dessa prática, ao afirmar as obras de alguns autores
que leu ostensivamente e na totalidade, ao listar a variedade de títulos
e fontes de textos que lê, ao se mostrar capaz de selecionar e de quali-
ficar o que lê, ao falar disso com naturalidade, demonstra sua condição
de “herdeiro”, para quem o acesso ao universo dos livros se deu desde
cedo e frequentemente.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES:

Pudemos observar que as formas orgulhosas de evocação da leitura


e de autorrepresentação de si como leitor têm em comum a menção ao
livro impresso, a gêneros de prestígio e a títulos e autores consagrados.
Também reiteram a frequência regular da leitura, a precocidade com

160
“Li Tudo”: Discursos sobre a Leitura e o Orgulho de Ser Leitor

que iniciaram sua vida como leitores, o mal-estar de não poder se de-
dicar ainda mais a essa prática.
A leitura é para muitos uma credencial indispensável. Ela transfere
seu prestígio àqueles que se dizem seus praticantes. Entrevistador e
entrevistado compartilham dos mesmos valores e discursos quando o
assunto é leitura, e sabem que o leitor a que se dirigem na entrevista
publicada neste jornal também compartilha.
Recorrer aos consensos sobre a leitura, a discursos amplamente co-
nhecidos e a representações idealizadas de leitores também reconhe-
cidas coletivamente tanto fornece uma zona segura de enunciados sem
potencial polêmico, de ampla aceitação, quanto constrói um ethos que,
indiretamente, compõe o perfil de figura adequada aos cargos que
exerce e pleiteia. Não sem razão, nesse exemplo analisado, estivemos
diante de uma representação do ‘orgulho’ de ser leitor, e da mobiliza-
ção discursiva desse ‘orgulho’ como forma de distinção.

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164
Pierre Bourdieu e o Homo
Academicus como Fenômeno de
Enunciação Sociocultural1
Juan Alberto Castro Chacón

“Los maestros de coro y de escuela de este reino han de enseñar a los


muchachos, a los niños, niñas, mozos y doncellas. Deben tomarles la
lección en sus casas y deben enseñarles a leer y escribir para que sean
cristianos y tengan ojo y ánima para ir al cielo”. (GUAMAN POMA DE
AYALA, 2012)

1. NOTAS INTRODUTÓRIAS:

Na epígrafe anterior, Felipe Guaman Poma de Ayala, cronista ame-


ríndio do que viria a ser o Peru, registrou suas experiências em gravu-
ras (desenhos artesanais) e escritas sobre o processo de formação cul-
tural entre incas e espanhóis, no séc. XVI. Nesse fragmento, Ayala des-
tacou a primeira – por não dizer a principal – imposição dos coloniza-
dores/conquistadores/invasores, a partir da instrução acadêmica,
como princípio de civilidade e de religiosidade (MIGNOLO, 2003:
QUIJANO, 2014). Esse labor inicial de colonização dos castelhanos es-
tabelece um paralelo histórico com as estruturas formativas da Coroa
portuguesa em solo sul-americano, em que, como exemplo pontual, o
cronista lusitano Pero Gândavo considerava grave a carência fonêmica

1 Este artigo originalmente faz parte da nossa tese de doutorado intitulada Plu-

rissaberes e experiências: letramentos e (de)colonialidade do ser, saber e po-


der a partir do estado da Bahia, defendida em 2020.

165
Juan Alberto Castro Chacón

na língua dos índios da Terra de Santa Cruz (OLIVIERI; VILLA, 2012).


Neste último contexto, podemos afirmar que as organizações sociocul-
turais dos ameríndios do leste sul-americano se submetiam a compa-
rações de inferioridade, em relação com os lusitanos, pela falta foné-
tica do /f/, /l/ e /r/: a sua falta de fé, falta de lei e falta de rei, o que
demonstrava que a instrução acadêmica comparada era a pedra angu-
lar da intelligentsia ibérica da conquista (LOPES; FARIA FILHO;
VEJA, 2015).
Assim, o sistema enunciativo2 dos conquistadores fomentou e re-
organizou bases socioculturais, de acordo com suas funções de inter-
locução impositiva sobre os povos ameríndios, uma vez que, como dis-
cute Benveniste (2006), o ponto de confluência de um enunciado se
centraliza na sua visão particular e exclusiva. Tanto castelhanos,
quanto lusitanos, valendo-se da Companhia de Jesus, instruíram os
valores e os conhecimentos ultramarinos para ratificá-la como insti-
tuição do saber unívoco. Dessa forma, a academia, com a sua instrução
na fase primária da colônia europeia na América3, foi a estrutura fun-
damental da organização intelectual do sistema mundial dos conheci-
mentos, agrupando-os como ciência por e para ela. Desse modo, pode-
se dizer que é só a partir da chegada dos colonizadores na América
(LANDER, 2005) que o espaço acadêmico passou a ser o represen-
tante máximo da sua enunciação. Isto porque a catequização jesuítica
fazia um jogo duplo de distinção nos ameríndios: provê-los de ensina-
mentos que os convertiam em cristãos e distinguir os domesticados
(com alma) dos selvagens (gentis, sem alma).
Ainda, a restruturação secular da cátedra como instituição aprimo-
rou sua prática a partir do seu ponto de origem – o velho mundo –
ratificando a sua importância e destinando-a à sua institucionalidade
mundial (BOURDIEU, 2008, p. 11). Consequentemente, na atuali-

2 Enunciação como ato do discurso, o enunciado real, nas concepções de Bakh-

tin (2011).
3 Oficialmente, a América hispânica desenvolveu a cátedra e o ensino já no séc.

XVI, no ano de 1538, na República Dominicana. No Brasil, a implantação da


universidade foi tardia, em 1909, embora o ensino superior tenha aparecido
em 1808.

166
Pierre Bourdieu e o Homo Academicus como Fenômeno de Enunciação Sociocultural

dade, fazendo um exercício elíptico de mais de quatro séculos, a ciên-


cia se desenvolve e produz exclusivamente no espaço acadêmico, além
de construir seu espírito e seu sentido. Porém, ciência, espaço acadê-
mico e a cátedra estariam firmemente relacionados por hierarquias ou
pela representação que se estruturam em torno delas ou no enunciado
exclusivo que se conflui nelas?
Nesse aspecto, o sociólogo francês Pierre Bourdieu (2004; 2008;
2010; 2011; 2015) recolhe uma considerável reflexão sobre a conexão
dessas três partes fundamentais da academia contemporânea, e
mesmo que elas ofereçam mudanças nas suas estruturas, elas desen-
volvem formas de reproduzir não somente suas práticas, mas seus ele-
mentos ideológicos.
Assim, neste trabalho refletimos sobre a academia e seu maior re-
presentante, no sentido que Bourdieu lhe dá à nomenclatura Homo
academicus (2008), para discutir a forma com que se trata a este úl-
timo como fenômeno de enunciação de enunciação sociocultural.
Nesta obra, o sociólogo francês Pierre Bourdieu questiona o lugar da
academia – e os fatores que a estruturam, como as três partes citadas
– como corpus e voz da ciência (BOURDIEU, 2004). Ou seja, existe
um privilégio irrefutável que, partindo da experiência acadêmica fran-
cesa, consegue se distinguir perante suas distribuições institucionais.
Dessa forma, Bourdieu classifica o prestígio institucional pela voz das
próprias academias (no caso o prestígio do Collège de France), que es-
tão além das práticas disciplinares (no caso a alta representatividade
das ciências sociais, em detrimento das letras modernas e geografia,
por exemplo) (BOURDIEU, 2008, p. 106).
Logo, seguindo a discussão de Bourdieu que toma a academia como
espaço de conflitos, neste trabalho problematizamos, brevemente, três
pontos importantes que se inscrevem na narrativa do Homo academi-
cus:
a. Como se constrói a enunciação da distinção e do prestígio da aca-
demia.
b. A ideia de capital sociocultural inserida nessa enunciação.
c. O acadêmico (catedrático) como fenômeno enunciativo.

167
Juan Alberto Castro Chacón

Por conseguinte, metodologicamente procedemos com releituras


reflexivas e discussões feitas por Bourdieu na sua obra Homo acade-
micus (2008) – como citado anteriormente – na versão espanhola da
obra4, sendo todas as traduções da nossa responsabilidade. Nesse sen-
tido, como reforço epistemológico para a nossa reflexão, além de nos
apoiarmos de outras obras do sociólogo francês como complemento à
obra supracitada, também dialogamos inicialmente com os conceitos
advindos da enunciação problematizada por Bakhtin e Benveniste.

2. COMO SE CONSTRÓI A ENUNCIAÇÃO DA DISTINÇÃO E O


PRESTÍGIO DA ACADEMIA.

O Homo academicus (2008) é, pelo comentário feito na contracapa


do livro, “o livro mais pessoal de Pierre Bourdieu”, já que, como cate-
drático, interpretou seu ambiente universitário, inclusive na premissa
de ser quase uma autobiografia. Por essa perspectiva, o sociólogo fran-
cês conseguiu um ângulo de observação privilegiado, conquanto inse-
rido no mundo acadêmico, e como testemunha de diferenciações pro-
duzidas pela distinção e o prestígio acadêmico, como menciona a se-
guir:

Ao tomar por objeto um mundo social em que um indivíduo se encon-


tra inserido, obriga-se a tropeçar, sob uma forma que se poderia cha-
mar de dramatizada, com certa quantidade de problemas epistemoló-
gicos fundamentais, ligados todos eles à questão da diferença entre o
conhecimento prático e o conhecimento erudito, e especialmente à di-
ficuldade particular da ruptura com a experiência nativa, originária, e
da restituição do conhecimento obtido consequente de dita ruptura
(BOURDIEU, 2008, p. 11).

Essa primeira reflexão do sociólogo permite chegar a um dos prin-


cípios fundamentais dos conhecimentos, quando expostos na posição
epistemológica de recepção e distribuição da ciência, influenciado pela
fragmentação do prático e do erudito. Nesse sentido, é preciso analisar
o que fundamenta essa fragmentação e se, como resultado, parte-se à
distinção e ao prestígio da parte que a enuncia com tais características

4 Esta versão é anterior à versão do português e a primeira edição do espanhol.

168
Pierre Bourdieu e o Homo Academicus como Fenômeno de Enunciação Sociocultural

e, por conseguinte, observamos em que consiste a enunciação da aca-


demia.
Em primeiro lugar, devemos refletir sobre a enunciação que, num
olhar geral é produzido no ato de produzir a linguagem e interagir com
outrem. No entanto, a ideia de enunciar aprofunda o sentido fônico ou
concreto de um enunciado, de algo dito, para transformá-lo em subje-
tividade ou, em todo caso, previsto de ideologia (BAKHTIN, 1995).
Isto significa que a enunciação é ponto de encontros discursivos, não
necessariamente um conglomerado de frases indefinidas estruturais,
como menciona Bakhtin:

A indefinição terminológica e a confusão em um ponto metodológico


central no pensamento linguístico são o resultado do desconhecimento
da real unidade da comunicação discursiva – o enunciado. Porque o
discurso só pode existir de fato na forma de enunciações concretas de
determinados falantes, sujeitos do discurso. O discurso sempre está
fundido em forma de enunciado pertencente a um determinado sujeito
de discurso, e fora dessa forma não pode existir (2011, p. 274).

Também, o linguista Émile Benveniste (1988) acusa a generalidade


da linguagem como mero instrumento de comunicação e menciona
que:

Na realidade, a comparação da linguagem com um instrumento, e é


preciso realmente que seja um instrumento material para que a com-
paração seja pelo menos inteligível, deve encher-nos de desconfiança,
como toda noção simplista a respeito da linguagem. Falar de instru-
mento, é pôr em oposição o homem e a natureza. A picareta, a flecha,
a roda, não estão na natureza. São fabricações. A linguagem está na
natureza do homem, que não fabricou. Inclinamo-nos sempre para a
imaginação ingênua de um período original, em que um homem com-
pleto descobriria um semelhante igualmente completo e, entre eles,
pouco a pouco, se elaboraria a linguagem. Isso é pura ficção. Não atin-
gimos nunca o homem separado da linguagem e não o vemos nunca
inventando-a. Não atingimos jamais o homem reduzido a si mesmo e
procurando conceber a existência do outro. É um homem falando o que
encontramos no mundo, um homem falando com outro homem, e a
linguagem ensina a própria definição do homem (BENVENISTE, 1988,
p. 285).

Por esse viés, entendemos que um enunciado, como parte repre-


sentativa da linguagem e como descrito por Benveniste indissociável

169
Juan Alberto Castro Chacón

do homem, é o seu lugar de realização, já que não somente se tenta


fazer ouvir, mas se decodificar ou entender. Logo, o homem como su-
jeito inseparável da linguagem faz uso dela dentro das suas caracterís-
ticas próprias, como figura individual do enunciado, como ato linguís-
tico complexo ou enunciação, ao que Benveniste agrega que:

Enquanto realização individual, a enunciação pode se definir, em rela-


ção à língua, como um processo de apropriação. O locutor se apropria
do aparelho formal da língua e enuncia sua posição de locutor por meio
de índices específicos, de um lado, e por meio de procedimentos aces-
sórios, de outro [...]. Mas imediatamente, desde que ele se declara lo-
cutor e assume a língua, ele implanta o outro diante de si, qualquer que
seja o grau de presença que ele atribua a este outro. Toda enunciação
é, explícita ou implicitamente, uma alocução, ela postula um alocutário
(BENVENISTE, 2006, p. 84).

Nesse sentido, Bourdieu, como autor do livro Homo academicus


destaca também o indivíduo Bourdieu, em ambas as situações como
sujeito da enunciação que se encontra no corpus enunciado da obra,
enquanto chama a atenção para a ruptura epistemológica que se faz
com os conhecimentos práticos e eruditos, como campos de poder
(BOURDIEU, 2011). Porém, quem faz essa ruptura/distinção e qual
seria o motivo para que esse procedimento seja realizado? O linguista
francês Émile Benveniste estabelece todo locutor a partir de si, e con-
sidera que:

O ato individual de apropriação da língua introduz aquele que fala em


sua fala. Este é um dado constitutivo da enunciação. A presença do lo-
cutor em sua enunciação faz com que cada instância de discurso cons-
titua um centro de referência interno (BENVENISTE, 2006, p. 84)

É, pois, que estas características enunciativas elaboram a presença


e a apropriação do locutor na sua enunciação – ou também chamado
locus de enunciação – e o colocam intrínseca e constantemente nela.
Paradoxalmente, em Homo academicus, Bourdieu se coloca em duas
posições (BOURDIEU, 2015), tanto como crítico da voz/espaço acadê-
mico, quanto parte estruturante dela. É o que observamos na segunda
parte do livro, em que se refere aos conflitos das faculdades, ao fazer
uma releitura do filósofo Kant, quando escreve que:

170
Pierre Bourdieu e o Homo Academicus como Fenômeno de Enunciação Sociocultural

Em tanto “capacitados”, cuja posição no espaço social repousa princi-


palmente na possessão do capital cultural, espécie dominada de capi-
tal, os professores universitários ficam muito mais do lado do polo do-
minado do campo de poder e se opõem, certamente, a esse respeito os
patrões da indústria e do comércio. Porém, enquanto possuidores de
uma forma institucionalizada de capital cultural, na que mantêm uma
carreira burocrática e remunerações regulares, opõem-se a escritores e
artistas: ocupando uma posição temporalmente dominante no campo
da produção cultural, distinguem-se por tal, em diversos níveis, se-
gundo as faculdades, dos ocupantes dos setores menos institucionali-
zados e mais heréticos desse campo (e especialmente dos escritores e
dos artistas, aqueles chamados de “livres” ou free lance por oposição
àqueles que fazem parte da universidade) (BOURDIEU, 2008, p. 54).

Nesse aspecto, o sociólogo francês se coloca, também, como parte


axiomática da academia já que faz parte dela, embora as suas exempli-
ficações mostrem que o locus de enunciação acadêmico tenha um re-
sultado muito mais como corpo unânime coletivo – isto é, aparece
como uma instituição viva, um indivíduo coletivo – do que partes fra-
gmentadas acadêmicas. Assim, a academia como instituição – provida
de corpus, de voz e de enunciação – exterioriza-se para sua distinção,
uma segmentação do resto da sua parte cultural, a sentido semelhante
de uma classe dominante.

Qualquer grupo tende a se dotar dos meios que lhe permitam perpe-
tuar-se para além da finitude dos agentes individuais em que ele se en-
carna (eis uma das intuições fundamentais de Durkheim). Para isso,
ele instala um verdadeiro aparato de mecanismos, tais como a delega-
ção, a representação e a simbolização que conferem ubiquidade e eter-
nidade (BOURDIEU, 2015, p. 71).

No entanto, a experiência da enunciação do Homo academicus – e,


com ela sua distinção e prestígio – se constrói não somente no produto
interior da academia, mas na exterioridade das partes que se ligam,
sendo o raciocínio ou a epistemologia forças estruturantes desde fora,
visto o quesito herança cultural.

171
Juan Alberto Castro Chacón

3. A IDEIA DE CAPITAL CULTURAL INSERIDA NESSA


ENUNCIAÇÃO.

Ao seguirmos a discussão, é importante considerar que o capital


cultural se confere como distinção e prestígio, sendo um dos maiores
recursos adotados para um locus de enunciação, seja de forma socio-
cultural individual, sociocultural coletiva ou institucional. Um exem-
plo corriqueiro seria a ideia de um indivíduo pai de família ratificar
seu espaço – de superioridade – porque seu filho pertence a X univer-
sidade ou Y faculdade, e não é só o prestígio de vê-lo com título uni-
versitário, mas como pai de um universitário. Ou institucional, con-
forme narra Bourdieu no Homo academicus, dentro do prestígio pela
instituição em que o catedrático exerce funções. Ou, mais ainda, na
forma sociocultural coletiva, em que o espaço de prestígio e distinção
se produz pela territorialidade acadêmica, como estudar letras, artes
ou humanidades na França.
Esta exemplificação do cotidiano resulta um pouco enxuta se não
considerarmos que há relações estruturantes/estruturadas de poder
(simbólico) nos espaços socioculturais e, por conseguinte, nos institu-
cionais. E, à medida em que aparecem, tomam formas e enunciados
que retiram o anteriormente colocado, fazendo dessa estrutura um
campo de poder (BOURDIEU, 2011).
Dessa forma, o campo de poder reproduz o sentido simbólico das
relações estruturadas/estruturantes em função das ideologias com
que se alimentam, periodicamente, sendo uma determinação espaço-
temporal dessas relações. Nisso, afirma Bourdieu:

As ideologias, por oposição ao mito, produto coletivo e coletivamente


apropriado, servem a interesses particulares que tendem a apresentar
como interesses universais, comuns ao conjunto do grupo. A cultura
dominante contribui para a integração real da classe dominante (asse-
gurando uma comunicação imediata entre todos os seus membros e
distinguindo-os das outras classes); para a integração fictícia da socie-
dade no seu conjunto, portanto, à desmobilização (falsa consciência)
das classes dominadas; para a legitimação da ordem estabelecida por
meio do estabelecimento de distinções (hierarquias) e para a legitima-
ção dessas distinções (BOURDIEU, 2010, p. 10)

172
Pierre Bourdieu e o Homo Academicus como Fenômeno de Enunciação Sociocultural

Bourdieu, por um lado, atribui à ideologia o nexo entre o campo do


poder e a sua universalidade, ou seja, o campo manifesta sua posição
particular e a transmite como historicamente universal, enunciando
uma integração que não existe entre as classes. Nesse caso, a ideia de
distinção e prestígio se mantem implícita, mas viva pela universali-
dade e, no caso do espaço acadêmico, pelo poder que este transmite.
Consequentemente, é a tensão do espaço-tempo acadêmico quem re-
produz e distribui seu locus de enunciação enquanto posição de dis-
tinção.

O campo das letras e de ciências sociais humanas se organiza ao redor


de uma oposição principal entre dos espécies de poder. O poder pro-
priamente universitário está fundado principalmente no domínio dos
instrumentos de reprodução do corpo docente, júri de agregados, co-
mité de consultoria das universidades (que designa os catedráticos) 5,
isto é, na possessão de um capital adquirido na universidade, particu-
larmente na École Normal, e que é retido principalmente pelos docen-
tes da universidade – da Sorbonne – especialmente em disciplinas ca-
nonizadas, frequentemente eles mesmo filhos de docentes, professores
de ensino médio ou superior e, sobretudo, catedráticos, e vale quase
exclusivamente dentro dos limites da universidade (francesa) (BOUR-
DIEU, 2008, p. 107).

Para o sociólogo francês, o sistema acadêmico, como campo de po-


der, consegue reproduzir seu campo, em virtude da sua distinção mar-
cada necessariamente pelo capital cultural. No entanto, o capital cul-
tural não é uma forma simbólica distintiva sem estrutura, e como bem
reconhece Bourdieu, o simbólico não se trata individualmente, senão
como referência coletiva. Porque não existe cultura, mas culturas en-
grenadas em campo de forças, e por mais que se apresentem como in-
tegradoras.

A cultura que une (intermediário de comunicação) é também a cultura


que separa (instrumento de distinção) e que legitima as distinções
compelindo todas as culturas (designadas como subculturas) a defini-
rem-se pela sua distância em relação à cultura dominante (BOUR-
DIEU, 2010, p. 11).

5 No contexto francês.

173
Juan Alberto Castro Chacón

O problema – e neste contexto devemos ser específicos – pode não


estar no capital cultural e sim na maneira como ele se reproduz pelo
locus de enunciação da academia, na sua própria estrutura enuncia-
tiva, que a provem de peso epistemológico e a oficializa como ciência,
aproveitando o espaço-tempo acadêmico. E é nesse sentido que o es-
paço-tempo acadêmico é a reprodução do locus de enunciação reali-
zado pela história do lugar da reprodução do capital cultural, cuja ação
produz efeito de sentido. Logo, a distinção e o prestígio não são emba-
samentos metafísicos ou emocionais, dado o capital cultural uma he-
rança carregada de complexidades.
No caso, a obra da distinção e do prestígio não é casual, visto que a
herança agrega um ponto inicial, mas não o final e, mesmo que deixe
marcas de ausência6, sempre estará presente na enunciação. Isto por-
que há variadas formas de reproduzir o capital cultural – a herança
cultural distribui o capital – e vários momentos em que sai à luz, em-
bora na intermitência da elegância e classe, compostos claramente dis-
tintivos e prestigiosos.
Ainda, o anteriormente dito se esclarece – ou sai à tona – pela in-
tensidade da reprodução do capital cultural, estrutura que agrega e
acumula outras condições de reprodução que se cultuam, e que, em-
bora não tenham um peso significativo na reprodução do capital cul-
tural, transformam-se em possessão e consumo, como aponta Bour-
dieu:

A avidez de acumular que se encontra na origem de qualquer grande


acúmulo de cultura se exibe de forma demasiado manifesta, seja na
perversão do amante de jazz ou cinema que, avançando até o limite, ou
seja, até o absurdo, o que está implicado na definição legítima da con-
templação culta, substitui o consumo da obra pelo consumo dos sabe-
res acessórios – créditos, composição da orquestra, data de gravação,
etc. – seja na obstinação de aquisição existente em todos os coleciona-
dores de saberes inesgotáveis sobre assuntos, socialmente, insignifi-
cantes (BOURDIEU, 2015, p. 309).

Não obstante, nessa taxativa, Pierre Bourdieu deixa transparecer


um sobre paradoxo sobre a importância dos assuntos, nos que alguns

6 A burocracia
pode ser um desses meios porque a herança cultural se ausenta,
aparentemente.

174
Pierre Bourdieu e o Homo Academicus como Fenômeno de Enunciação Sociocultural

se categorizam por insignificantes. Nesse sentido, pode ser o resultado


da própria perspectiva do acadêmico ao categorizar um assunto – en-
quanto tema, saber ou conhecimento – em que existam condições para
sua hierarquização. Logo, o sistema hierárquico acadêmico não so-
mente aponta para a sua enunciação, mas para o estado em que se
mostra, estabelecendo um conhecimento como essencial e outro como
insignificante ou acessório.
Por esse motivo, observamos a incidência do Homo academicus a
partir das suas participações enunciativas, sejam elas de interesse re-
produtivo ou de posições especificamente científicas.

4. O ACADÊMICO COMO FENÔMENO ENUNCIATIVO.

Pelas reflexões anteriores, é mister que especifiquemos que a no-


menclatura acadêmico será em referência ao Homo academicus que
designa Bourdieu na sua obra homônima. E desse ponto partimos para
a problematização dele como fenômeno da enunciação no contexto so-
ciocultural.
Primeiro, o sinônimo entre sujeito letrado e o sujeito intelectual é
próximo. A escrita, exclusivamente para seu eficiente desenvolvi-
mento gradativo, manifesta-se desde a escola, até sua especialização
nos níveis superiores de formação acadêmica, e é a que comanda todas
as atividades disciplinares. Logo, a escrita sustenta a base da episte-
mologia concentrada na academia em forma de disciplinas e, no mo-
vimento que a estrutura, adere-se mais à sua regência. O que demons-
tra a epígrafe supracitada, em relação à temporalidade da colonização
e doutrinação dos ibéricos, a escrita reproduz a herança cultural in-
substituível que distingue e prestigia o nível de intelectualidade dos
indivíduos e das sociedades. Dessa forma, a enunciação da academia
se insere entre a escrita e o capital cultural reproduzido e estruturado.
Segundo, mediante a sua relação – não necessariamente dialética
– com a escrita, a academia é o meio de enunciá-la, posto que o saber
oficial reproduz seus ensinamentos via espaços geopolíticos determi-
nados na escola/institutos/universidades, ou academia. Nesse con-
texto, consideramos esta última o espaço geopolítico da reprodução da
escrita, como meio de distinção pela oficialização de tipos específicos

175
Juan Alberto Castro Chacón

de conhecimentos, sobretudo, com uma influente carga teórica auto-


denominada científica/erudita (BOURDIEU, 2011, p. 106). Porém, a
academia, como espaço geopolítico, encontra-se incompleta sem um
referencial enunciativo para sua representação, reprodução e sua rea-
lização. Por esse motivo, como fonte de informação reprodutora e pro-
vido de neutralidade/imparcialidade científica – cientificidade que se
torna também locus da enunciação da Academia – o professor, educa-
dor, mestre ou docente7 demonstra o seu protagonismo acadêmico
como figura primordial da academia.
Não obstante, devemos refletir estas formas conceituais, a partir
dos seus processos estruturantes/estruturados provenientes da sua
voz reprodutora espaço-temporal. Consideramos que os conceitos re-
fletem uma situação histórica capaz de dar sentido aos signos, proces-
sos simbólicos que mantêm diálogos com seus contextos sociocultu-
rais. Por conseguinte, o seu locus de enunciação estrutura-se no ins-
trumento científico chamado professor/educador/mestre/docente, o
Homo academicus de Pierre Bourdieu.
Para chegar a esse raciocínio, o sociólogo francês agrega que o
Homo academicus é “classificador entre os classificadores, nas suas
próprias classificações”8 (p. 289), e, nesta pauta consideramos que,
como metáfora de espécie epistemológica, o Homo academicus, per-
mite que verifiquemos o que o estrutura, tanto histórica, quanto inte-
lectualmente falando. Dessa maneira, o Homo academicus, segundo
Bourdieu, como docto (detentor/reprodutor da Ideia), e à doxa (a
Ideia em si), sua principal estrutura epistemológica, considera a si
mesmo um estágio superior (cátedra universitária), e a sua doxa de-
terminada pelo conglomerado da sua formação, títulos, propriedades,
etc (p. 292).
Sendo assim, o locus da enunciação do Homo academicus não só
radica na sua voz científica, mas também na sua posição geopolítica da
que derivam seu status e seu poder/saber enunciativo. A razão exis-

7Em suas discussões, Pierre Bourdieu distingue estes nomes, em função da


própria distinção e prestígio que se lhes atribui no meio acadêmico.
8Tradução nossa. Todas as traduções neste trabalho estão sob nossa respon-

sabilidade.

176
Pierre Bourdieu e o Homo Academicus como Fenômeno de Enunciação Sociocultural

tencial desta espécie epistemológica seria a de complementar e com-


pletar a academia, que não se restringe à sua imagem, senão também
a de reproduzir e distinguir o seu locus de enunciação.
Igualmente, ao discutir sobre o papel da academia pela universi-
dade, o sociólogo francês acrescenta que “Analisar cientificamente o
mundo universitário é tomar como objeto uma instituição que é reco-
nhecida socialmente como uma instituição baseada em operar uma
objetivação que aspira à objetividade e à universalidade” (BOUR-
DIEU, 2008, p. 291). Assim, a academia ratificaria o saber no sentido
universal, transcontinental, único, em que a escrita é o instrumento de
enunciação da universalidade. Consequentemente, como locus especí-
fico para sua distribuição universal, sendo a universidade, para a aca-
demia, o ponto mais alto da reprodução da cultura do conhecimento,
e o Homo academicus a representação enunciativa desta superestru-
tura.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em linhas complementares:
a) O Homo academicus torna-se o instrumento físico, mental e on-
tológico do saber universal, perante sua estrutura, considerando seu
espaço e seu tempo, como antes fora o jesuíta e religiosos de outras
companhias, hoje pertence a essa nova espécie de intelectual, se-
guindo a metáfora de Bourdieu.
b) Isto significa, também, que o locus de enunciação do Homo aca-
demicus não se restringe a uma concretude epistemológica, mas às re-
alizações que reproduzem fenômenos enunciativos. De fato porque
não existe uma hegemonia na realização do Homo academicus, mas
estruturas plurais ou que se adequam aos seus sistemas socioculturais
e seus campos de poder.
c) Nesse sentido, não pode existir um axioma para explicar a exis-
tência da academia, na forma do Homo academicus, nem na relação
espaço-temporal do locus de enunciação, porque enquanto fenômenos
enunciativos socioculturais, expõem realidades e realizações diversas.

177
Juan Alberto Castro Chacón

d) No entanto, e como discute Pierre Bourdieu ao longo da sua tra-


jetória, os processos de reprodução que a academia estrutura como ca-
pitais culturais generalizam o sentido da ciência como distinção e pri-
vilégio, já que a função do “conhecer/saber” não é objetivo básico, se-
não o establishment de quem o possui e o controla. Acreditamos que
a resposta está na mesma pergunta que Bourdieu aponta na fase final
do Homo academicus, ao dizer “Qual benefício científico está na ten-
tativa de saber o que implica o fato de pertencer ao campo universitá-
rio, lugar de competições permanentes face à verdade do mundo social
e do mundo universitário mesmo, e ocupar nele uma posição determi-
nada? (Idem, p. 292).

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LANDER, Edgardo. A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciên-


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MIGNOLO, Walter. Histórias locais, projetos globais-Colonialidade,
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en América Latina. Lima: Editora de la Universidad Ricardo
Palma, 2014.

179
O Nascimento de Vênus, Muito
Além de Botticelli: O Corpo Trans
de uma Afrodite na Publicidade
da Shell Rimula

Guilherme Rodrigues Valadão


Luana Alves Luterman
Guilherme Figueira-Borges

INTRODUÇÃO

A pintura de Botticelli intitulada O nascimento de Vênus – deusa


do amor e da beleza, segundo a mitologia romana – tornou-se, no sé-
culo XXI, o nascimento de uma Afrodite, taxionomia atribuída à
mesma deusa na mitologia grega. Essa ressignificação da deusa ro-
mana causou bastante burburinho.
Em 2019, a marca de lubrificantes automotivos Shell Lubrificantes
lançou a campanha publicitária De Causo em Causo, desenvolvida
pela agência de publicidade Wunderman Thompson Brasil, voltada
para o produto Shell Rimula, um lubrificante automotivo para cami-
nhões.
Na campanha publicitária, são apresentadas as histórias de quatro
motoristas de caminhão e, entre elas, o segundo “causo” é nossa tônica
de pesquisa. Publicado nas redes sociais da marca no dia 05 de junho
de 2019 e veiculada em rede nacional na programação da TV aberta

181
Guilherme Rodrigues Valadão, Luana Alves Luterman e Guilherme Figueira-Borges

durante o mês de junho, mês em que é celebrado o Orgulho LGBT-


QIA+, O Causo da Afrodite exibe a narrativa da caminhoneira trans
que possui o nome da deusa grega do amor e da beleza.
Nosso corpus de pesquisa é o filme O Causo da Afrodite, parte da
campanha publicitária De Causo em Causo e seus efeitos de sentido à
luz dos pressupostos teóricos da Análise do Discurso de linha francesa,
corrente teórica que irrompeu por volta de 1969, com os estudos de
Michel Pêcheux. Como cita Fernandes (2009), apresenta elementos da
história que são peculiares quando colocados para a análise, impli-
cando um retorno à teoria.
Partindo dessa premissa, em um primeiro momento descrevere-
mos o vídeo da campanha O causo da Afrodite para interpretarmos e
analisarmos a construção/constituição do sujeito Afrodite, além de
sua inscrição social. Depois, esquadrinharemos o corpo do indivíduo
Afrodite, apresentado na campanha da Shell Lubrificantes. Por fim,
apresentaremos a repercussão da presença de um corpo transgênero
e, por sua vez, transgressor no mercado publicitário, além dos resulta-
dos em relação à procura pelo produto Shell Rimula.

O NASCIMENTO DA VÊNUS: A (DES)CONSTRUÇÃO DO SUJEITO


ATÉ AFRODITE

O vídeo da campanha O Causo da Afrodite inicia-se com a focali-


zação da carteira de motorista de Heraldo Almeida Araújo, segurada
por uma mão com esmalte vermelho nas unhas. A voz de um interlo-
cutor que não aparece no vídeo pergunta o seguinte: “Nome?” e ouvi-
mos então a resposta “Afrodite”; a voz continua: “Profissão?” e Afro-
dite responde “Caminhoneira”. Nesse momento, o plano imagético é
ampliado e conhecemos o corpo de Afrodite, uma mulher trans, cami-
nhoneira, com um sorriso tímido no rosto. Esse é o primeiro contato
que temos com a personagem central da campanha publicitária.

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O Nascimento de Vênus, Muito Além de Botticelli

Figura 01: CNH de Afrodite, ainda com seu nome de batismo.

Fonte: O Causo da Afrodite, 2019. Disponível em:


<https://youtu.be/uCLwdjiEgD4>. Acesso em: 10 abril 2022.

Ao longo do vídeo, Afrodite narra sua história. Apesar de, na foto e


no nome apresentados na Carteira Nacional de Habilitação vermos um
homem cisgênero – aquele que, como postula Vergueiro (2016), tem
sua experiência interna e individual de identidade de gênero corres-
pondida com o sexo que lhe foi atribuído no nascimento – que já foi
eletricista, empresário e caminhoneiro, hoje, se apresenta como Afro-
dite, uma mulher transexual, que atua como caminhoneira. Afrodite
narra que, ainda como empresário do ramo têxtil, o Heraldo, que já se
reconhecia como uma mulher internamente, mas não se identificava
socialmente dessa forma por medo do preconceito intrínseco na soci-
edade, produzia escondido suas peças de roupa íntima do universo fe-
minino, “calcinhas” e “bustiê”, como ela mesma chama.
No filme, Afrodite diz ter se sentido realizada com o nascimento de
sua filha, pois se identificava com o universo dela, o feminino, mas não
entendia o que acontecia consigo. Revela que, apenas três anos antes
da campanha, 2016, teve coragem para se assumir uma mulher trans.
Desde então, Afrodite não mais utilizou roupa masculina.
Observar essas colocações feitas pela própria Afrodite é essencial
para compreendermos sua trajetória como sujeito, atravessado pelos

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Guilherme Rodrigues Valadão, Luana Alves Luterman e Guilherme Figueira-Borges

discursos, que, segundo Foucault (2010, p. 132), são “um conjunto de


enunciados, na medida em que se apoiem na mesma formação discur-
siva”, ou seja, um conjunto limitado a um certo número de enunciados
que podem ser descritos sob “semelhante sistema de dispersão”, po-
dendo ainda ser possível definir uma regularidade entre os objetos, os
tipos de enunciação, os conceitos e as escolhas temáticas (FOU-
CAULT, 2010 p. 43).
Na fala e no comportamento de Afrodite durante o filme da cam-
panha é possível identificarmos que houve receio ao se revelar como
uma mulher trans, devido a discursos falocêntricos e patriarcais que
circulam de modo dominante socialmente. O fato de revelar-se uma
mulher trans deslizava discursivamente do que é aceito como uma
normalidade cisgênera, que adestra corpos para uma utilidade e doci-
lidade filiadas à instituição familiar conservadora a qual a própria
Afrodite, ainda enquanto Heraldo, fez parte durante muito tempo,
quando foi casada e teve uma filha em seu relacionamento com uma
mulher.
É importante destacarmos que, quando nossa tônica é o sujeito, em
Análise do Discurso, não nos remetemos ao indivíduo ou ao ser, em
sua essência, mas, segundo Foucault (2009), ao sujeito derivado de
uma rede discursiva, composta por saberes permeados por relações de
poder.
Afrodite, então, se constitui como sujeito a partir de observações
cotidianas sobre como se constitui uma mulher. Essa feminilidade
emerge no vídeo quando em um frame, um enquadramento de curta
duração dentro de um vídeo, é mostrado um salto alto logo no mo-
mento em que ela diz que Afrodite “nunca mais colocou uma roupa
masculina”.

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O Nascimento de Vênus, Muito Além de Botticelli

Figura 02: Saltos de Afrodite

Fonte: O Causo da Afrodite, 2019. Disponível em:


<https://youtu.be/uCLwdjiEgD4>. Acesso em: 10 abril 2022.

Quando Afrodite vincula a imagem feminina a objetos, acessórios


e roupas que considera parte do cotidiano feminino, como os saltos
altos, percebemos a noção foucaultiana de sujeito que diz que o sujeito
se constitui de maneira ativa, não sendo algo que o sujeito inventa,
mas algo que lhe é proposto, sugerido e/ou imposto por sua cultura,
seu contexto social (FOUCAULT, 2004, p. 276). Afrodite se sente ver-
dadeiramente mulher, pensando nesse pressuposto, quando percebe
sua imagem atrelada a elementos culturalmente colocados como per-
tencentes ao meio feminino.
Afrodite mostra a força que sente a partir de sua constituição en-
quanto sujeito do gênero feminino em outro momento, em que, em
meio a um sorriso, diz que “há três anos, Heraldo morreu”.
Nesse momento, Afrodite sorri, não pela morte do Heraldo, mas
pela possibilidade de ser visibilizada não apenas como sujeito discur-
sivo que ela já sabia que existia, mas como um novo ser que, iconogra-
ficamente, representava fidedignamente o sujeito discursivo que a
constituía como premissa de gênero.

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Guilherme Rodrigues Valadão, Luana Alves Luterman e Guilherme Figueira-Borges

Figura 03: “Heraldo morreu”

Fonte: O Causo da Afrodite, 2019. Disponível em:


<https://youtu.be/uCLwdjiEgD4>. Acesso em: 10 abril 2022.

Conforme apresenta Fernandes (2009, p. 24),

o sujeito, mais especificamente o sujeito discursivo, deve ser conside-


rado sempre como um ser social, apreendido em um espaço coletivo;
portanto, trata-se de um sujeito não fundamentado em uma individu-
alidade, em um “eu” individualizado, e sim um sujeito que tem existên-
cia em um espaço social e ideológico, em um dado momento da história
e não em outro. A voz desse sujeito revela o lugar social; logo expressa
um conjunto de outras vozes integrantes de dada realidade histórica e
social; de sua voz ecoam as vozes constitutivas e/ou integrantes desse
lugar sócio-histórico.

Entendendo sujeito discursivo como esse ser social apresentado


por Fernandes (2009, p. 24), que existe fundamentado em um espaço
social e ideológico, Afrodite reivindica seu lugar social feminino e des-
constrói a imagem do homem que o clivou devido à sexualidade cisgê-
nero masculina durante todos os primeiros anos de sua vida. Assim,
constrói o sujeito feminino que realmente a representa identitaria-
mente e, também, o sujeito Afrodite, que, segundo ela, estava interdi-
tada: “Eu não sou um caminhoneiro que virou caminhoneira. Eu sou
uma caminhoneira que estava presa no corpo de um homem.”

186
O Nascimento de Vênus, Muito Além de Botticelli

A aniquilação do sujeito Heraldo é, para Afrodite, seu efeito de li-


bertação como sujeito, que, atravessado pela ideologia e pelo incons-
ciente, é descentrado. Afrodite não enuncia o apagamento do Heraldo
como um enunciado inédito, e sim como a regularidade discursiva de
outros sujeitos trans que consideram a morte de sua sexualidade im-
bricada à dominância sócio-histórica cisgênero inclusive no seu nome
de batismo como o processo para a libertação de sua nova constituição
subjetiva. Pêcheux (1995, p. 173) denomina esquecimento nº 1 a exte-
rioridade linguística no processo de elaboração da formação discur-
siva a que o sujeito está inscrito. No esquecimento nº1, segundo
Pêcheux (1995), o sujeito se coloca como origem do que diz, partindo
de si a essência enunciativa. Afrodite apaga, inconscientemente, tudo
que escapa da formação discursiva a qual seu enunciado se inscreve.
Mas, além dele, é possível identificarmos indícios do que o autor de-
nomina como esquecimento nº 2, no qual o sujeito seleciona determi-
nados enunciados em detrimento de outros, tendo a ilusão de que todo
interlocutor captará suas mensagens da mesma forma, de modo que
ele controla e torna unilateral o efeito de sentido pretendido, em de-
trimento da pluralidade de sentidos e da opacidade linguística.
Esses esquecimentos propostos por Pêcheux são essenciais para
que o sujeito continue enunciando, como é o caso do sujeito Afrodite
que enuncia sua posição como sujeito do gênero feminino e, assim, re-
afirma sua existência com base naquilo que acredita ser parte desse
universo.
Outro conceito que é possível mobilizarmos para a análise da cons-
tituição do sujeito Afrodite é o de memória discursiva, que, segundo
Gregolin et al. (2001, p. 21), “diz respeito às formas significantes que
levam uma sociedade a interpretar-se e a compreender-se através
dessa interpretação” e difere-se da noção de memória da psicologia,
que fala sobre o acúmulo de informações adquiridas ao longo do
tempo.
Afrodite reafirma sua feminilidade embasada no que ela compre-
ende como ser mulher e constrói-se mobilizando esses conceitos como
pilares para ser quem é, apelando para o domínio da memória dos su-
jeitos, enunciados “em relação aos quais se estabelecem laços de filia-

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Guilherme Rodrigues Valadão, Luana Alves Luterman e Guilherme Figueira-Borges

ção, gênese, transformação, continuidade e descontinuidade histó-


rica” (FOUCAULT, 2010, p. 60). Assim, irrompe Afrodite, dos concei-
tos que considera serem próprios do universo feminino, pautando-se
nos discursos deslizantes, resistentes ao patriarcalismo e ao falocen-
trismo, que permitem a construção desse sujeito. Estes conceitos, que
Afrodite considera parte do universo feminino, não devem ser anali-
sados de maneira isolada, mas, conforme aponta Gregolin (1995, p.
13), precisam ser analisados a partir da língua e da história de maneira
simultânea, o que nos propusemos a fazer no tópico seguinte.

O CORPO TRANSGRESSOR DA AFRODITE E SUAS SIMBOLOGIAS

O Causo da Afrodite foi o segundo vídeo lançado pela marca Shell


Lubrificantes para a campanha De Causo em Causo, que promovia o
lubrificante para caminhões Shell Rimula. Analisar esse recorte da
campanha é fundamental para entendermos como a presença de um
corpo transgênero em uma propaganda de um produto com campa-
nhas publicitárias voltadas predominantemente para o público mas-
culino pode mobilizar diversos debates, devido ao desvio da hetero-
normatividade.
Para essa análise, evocaremos os construtos teóricos da Análise do
Discurso de linha francesa, que buscam compreender o discurso: se-
gundo Fernandes (2009), não deve ser considerado como a “palavra
corrente no cotidiano", fazendo referência a discursos políticos ou tex-
tos mais rebuscados. O autor destaca que,

para compreendermos discurso como um objeto do qual se ocupa uma


disciplina específica, objeto de investigação científica, devemos romper
com essas acepções advindas do senso comum, que integram nosso co-
tidiano, e procurar compreendê-lo respaldados em acepções teóricas
relacionadas a métodos de análise. (FERNANDES, 2009, p. 11-12.
Grifo do autor.)

Ainda de acordo com Fernandes (2009), o discurso não é a própria


língua ou um texto, ou a fala, mas necessita de elementos linguísticos
como esses para ter existência material. Por esse motivo, é possível
afirmar que o discurso é impregnado de valores ideológicos e pode ser

188
O Nascimento de Vênus, Muito Além de Botticelli

encontrado no campo social quando observamos sujeitos em oposição


acerca de um mesmo tema.

As posições em contraste revelam lugares socioideológicos assumidos


pelos sujeitos envolvidos, e a linguagem é a forma material de expres-
são desses lugares. Vemos, portanto, que o discurso não é a lín-
gua(gem) em si, mas precisa dela para ter existência material e/ou real.
(FERNANDES, 2009, p. 12)

Ao observar essas posições em contraste, citadas por Fernandes


(2019, p. 12), a Análise do Discurso de linha francesa busca entender
como se dá a construção dos sentidos, que são múltiplos e vão além do
sentido dicionarizado (FERNANDES, 2009, p. 13), não cristalizando
um sentido, mas produzindo pluralidades perante os posicionamentos
discursivos dos sujeitos. O discurso, então, deve ser entendido como a
linguagem colocada em prática e seu movimento social no qual obser-
vamos o homem falando. (ORLANDI, 1999, p. 15).
Como já citamos, o corpo de Afrodite, de uma mulher trans, parece
não fazer parte do universo da campanha produzida pela Shell Lubri-
ficantes, uma vez que ao retomarmos o conceito de domínio da me-
mória, proposto por Foucault, não encontramos precedentes para a
presença de corpos transexuais nesse tipo de publicidade, o que nos
remete a Milanez (2013, p. 253):

A memória, nesse sentido, ajuda a dar lugar às formas de enunciação e


posição dos sujeitos durante o jogo olhar/olhado que o quadro pro-
move por meio de um feixe de relações que não podem ser estabeleci-
das a priori: o funcionamento da intericonicidade não se reduz à jus-
taposição ou seriação de fluxo de imagens internas e externas, mas se
dá a ver na escavação dos fósseis que constituem o lugar histórico dos
sujeitos para a constituição de seu discurso e na observação das repe-
tições, que se processam no choque entre as materialidades discursivas
e os sentidos que elas provocam. (Grifo do autor)

Nesse caso, mesmo não buscando esse a priori, colocamos em lu-


gar de questionamento a presença de um corpo que podemos chamar
de transgressor, aquele que, segundo Vergara (2015, p. 105-106), des-
constrói o que Foucault denomina como corpos dóceis, sendo, talvez,
não o primeiro corpo trans caminhoneiro, mas o primeiro deles colo-
cado em destaque num procedimento de espetacularização midiática

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Guilherme Rodrigues Valadão, Luana Alves Luterman e Guilherme Figueira-Borges

numa campanha publicitária para esse público, predominantemente


masculino, cisgênero e heterossexual. Ao retornar à História, a ordem
da memória não admite esse acontecimento, essa regularidade enun-
ciativa desviante da heteronormatividade numa sociedade patriarcal.
Esse acontecimento, na contemporaneidade, pode remeter ao con-
ceito de intericonicidade, preconizado por Jean-Jacques Courtine,
que, em entrevista a Nilton Milanez, afirma se tratar das

relações das imagens exteriores ao sujeito como quando uma imagem


pode ser inscrita em uma série de imagens, uma genealogia como o
enunciado em uma rede de formulação, segundo Foucault. Mas isso
supõe também levar em consideração todos os catálogos de memória
da imagem do indivíduo. Eu tenho a tendência de dar a essa noção de
intericonicidade no momento uma extensão maior do que dei nos cur-
sos dos quais você participou, quando me servia mais de colocar as
imagens umas com as outras, da mesma maneira que o discurso é atra-
vessado pelo interdiscurso. Acrescentaria ainda uma dimensão suple-
mentar, indo de um lado mais antropológico para situar o indivíduo, o
sujeito, não só como produtor, mas também como intérprete, e de certa
maneira como suporte das imagens dessa cultura. (MILANEZ, 2006,
p. 169)

A estranheza causada por um corpo como o de Afrodite em uma


campanha publicitária se dá pela não recorrência da imagem de cor-
pos como o dela na condição profissional de caminhoneiro, o que
Courtine (2011) denomina corpo anormal, aquele que é “no fundo um
monstro cotidiano, um monstro banalizado” e que continuará sendo
considerado, por muito tempo, aquilo que Foucault denomina como
um monstro pálido (COURTINE, 2011, p. 260). Afrodite é, então, esse
corpo anormal, esse monstro cotidiano e banalizado, uma vez que seu
corpo não faz parte do domínio da memória ao qual nos remetemos
quando pensamos no universo caminhoneiro, o que proporciona um
esquecimento ou apagamento da sua imagem em relação a esse meio
ao qual está inserido.
Ainda segundo Courtine (2013), “o corpo humano era, e permanece
para nós, coberto de signos, mesmo se a natureza destes, o olhar que
os decifra, a posição de que os interpreta e a intenção de quem os ex-
prime se modificaram historicamente”. Mesmo com a pauta LGBT-
QIA+ em debate na contemporaneidade, um corpo como o de Afrodite

190
O Nascimento de Vênus, Muito Além de Botticelli

é constantemente julgado quando colocado em evidência em uma


campanha publicitária, o que, segundo Courtine (2013), nos é levado
a crer que não acontece por “simples metáfora ou complacência com
um modo qualquer”, mas pela “constância que levou a constituir esta
longa tradição de decifração das aparências”. Assim, o corpo de Afro-
dite parece não ter as aparências as quais vinculamos aos corpos cons-
tantemente presentes no meio ao qual ela está inserida.
O corpo anormal de Afrodite, quando colocado em destaque, passa
por uma tentativa de ser docilizado e adestrado e, segundo Foucault
(1987), isso acontece porque “está preso no interior de poderes muito
apertados, que lhe impõem limitações, proibições ou obrigações”; in-
dependentemente de na contemporaneidade haver com constância a
pauta LGBTQIA+, esse corpo não está inscrito nos padrões esperados
para um corpo feminino, exatamente por ser trans e não ser natural-
mente feminino. O preconceito de gênero irrompe pela predisposição
regular discursiva dada pelo binarismo sexual, pela polarização entre
o feminino e o masculino e pela organização, fomento e redistribuição
desses papéis sociais femininos e masculinos.
O reforço feito pela campanha publicitária em destacar o corpo fe-
minino de Afrodite pode, ainda, ser observado no título, O Causo da
Afrodite, que opta pelo uso da contração da preposição “de” com o ar-
tigo definido feminino “a”, o que, além de reforçar o gênero feminino
do corpo trans na campanha publicitária, destaca que aludimos, espe-
cificamente, àquela Afrodite e não uma outra, o que não aconteceria
caso a escolha fosse pelo uso apenas da preposição “de”, desacompa-
nhada do artigo. Apesar do esforço para destacar a feminilidade de
Afrodite, a marca peca por, ainda no título, permitir a presença da pa-
lavra causo que pode remeter ao sentido pejorativo evocado pelo cai-
pira, uma inferioridade intrínseca ao modo como opera sua caracteri-
zação corporal, o que seria um oximoro se remetermos à Afrodite,
deusa vinculada à mitologia greco-romana, uma vez que, para Oliveira
(2006, p. 21), o gênero causo tende à ludicidade possibilitando polis-
semia para provocar riso ou medo.
Outro feito da campanha a fim de destacar o corpo de Afrodite com
subscrição no universo feminino é a cor vermelha em todas as cenas
em que a nova mulher é apresentada.

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Guilherme Rodrigues Valadão, Luana Alves Luterman e Guilherme Figueira-Borges

As cores, segundo Bueno (2012, p. 61), “possuem uma linguagem


própria por meio de significados e sensações percebidas” e exercem
“uma ação tríplice: a de impressionar, a de expressar e a de construir”
(FARINA; PEREZ; BASTOS, 2011, p. 13, Grifos dos autores).
Nas palavras de Bueno (2012, p. 69), a cor vermelha pode, entre
outros, ser afetivamente associada ao esplendor, à paixão, ao poderio,
à glória e à coragem e materialmente aos lábios e à mulher, por isso é
destacada em vários momentos, como vimos na Figura 01, nas unhas
de Afrodite; na Figura 02, na bolsa; e na Figura 03, no batom nos lá-
bios de Afrodite. Além disso, o vestido que Afrodite usa durante todo
o vídeo da campanha também é todo vermelho, como podemos obser-
var.

Figura 04: O vestido de Afrodite

Fonte: O Causo da Afrodite, 2019. Disponível em:


<https://youtu.be/uCLwdjiEgD4>. Acesso em: 10 abril 2022.

O Causo da Afrodite é uma campanha publicitária e como gênero


discursivo, termo postulado por Bakhtin e que tem por definição as
formas-padrão relativamente estáveis de um enunciado, determina-
das sociohistoricamente (BAKHTIN, 2003), tem, por sua vez, a finali-
dade de atrair um determinado público ao consumo de um determi-
nado produto. A Shell Lubrificantes, ao visibilizar um corpo trans na
mídia televisiva, atrela-se às políticas de inclusão social e ao sistema

192
O Nascimento de Vênus, Muito Além de Botticelli

neoliberal, que favorece, por meio das terceirizações e do Estado mí-


nimo, a responsabilidade social transferida do poder estatal ao comér-
cio, este que também se alia à promoção de nichos sociais como a co-
munidade LGBTQIA+ com o objetivo de possibilitar mais vendas e,
por conseguinte, mais lucro.
Atrair esse novo público, que não é o maior público consumidor do
produto em questão, é uma estratégia da marca que parece ter surtido
efeito, uma vez que o aumento no número de vendas teve um aumento
significativo, segundo a própria Shell Lubrificantes (O Causo de Afro-
dite – Video Case, 2020), e uma grande repercussão na mídia, culmi-
nando na produção de um segundo vídeo com os resultados da cam-
panha, os quais analisaremos a seguir.

BURBURINHO NO OLIMPO: A REPERCUSSÃO DO NASCIMENTO


DE UMA DEUSA

O Causo da Afrodite foi descrito no site da Shell Lubrificantes da


seguinte forma: “Em um vídeo pequeno, uma caminhoneira conta sua
história, em que conheceu algo novo nas estradas, mas não foi uma
cidade ou um lugar diferente, e sim ela mesma”.
No dia 06 de junho de 2019, um dia após o lançamento da campa-
nha, Fernando Tomeu, diretor de criação da Wunderman Thompson
Brasil, empresa responsável pela publicidade da Shell Lubrificantes,
em entrevista a Renato Rogenski, da plataforma de conteúdo para pro-
fissionais de marketing e comunicação no Brasil, Meio & Mensagem,
afirmou que a intenção da Shell era investir em histórias de pessoas
reais para engajar o público. Segundo o próprio diretor,

O que a marca quer mostrar é que ela enxerga o caminhoneiro respei-


tando todas as suas individualidades. A Shell sabe que, por trás dos
volantes, há pessoas diferentes, com histórias diferentes. Contar uma
história como essa é demonstrar respeito à diversidade e prezar pela
inclusão de todos. (TOMEU, 2019 apud ROGENSKI, 2019).

Ainda nas palavras de Tomeu, ao realizar a pesquisa, a agência


Wunderman Thompson Brasil percebeu que o universo caminhoneiro
é muito heterogêneo e possui histórias surpreendentes, mas que sem-
pre foi tratado de forma homogênea.

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Guilherme Rodrigues Valadão, Luana Alves Luterman e Guilherme Figueira-Borges

Sobre a história da caminhoneira Afrodite, a Shell, por meio de sua


gerente de marketing, Carla Salgueiro, diz tê-la conhecido por meio de
pesquisa social em grupos de caminhoneiros e afirma que

A nova campanha de Shell Rimula representa uma ligação mais pró-


xima com o seu público. O produto não só cuida do motor e do cami-
nhão, como também entende que os caminhoneiros têm outras neces-
sidades específicas e enfrentam fantásticas jornadas pessoais. Dessa
forma, nosso objetivo também é mostrar uma ótica mais humana, tra-
zendo um lado inusitado e desconhecido dos profissionais que vivem
nas boleias. (SALGUEIRO, 2019 apud ROGENSKI, 2019.)

Essa fala da gerente de marketing responsável pela Shell permite-


nos perceber que o foco da campanha se desloca do produto e focaliza
o usuário do produto como protagonista da marca do produto com a
finalidade de atrair um possível novo público ao consumo do produto
em questão.
Depois de toda a repercussão, foi necessário que a Wunderman
Thompson Brasil, em parceria com a Shell Lubrificantes, produzisse
um Video Case, uma espécie de minidocumentário feito para redes so-
ciais, oferecendo algum tipo de desfecho ou prestação de contas sobre
os resultados da campanha envolvendo Afrodite.
Lançado nos canais da marca e da agência de publicidade no dia 13
de janeiro de 2020, pouco mais de sete meses após o lançamento da
campanha, o vídeo começa com recortes de reportagens de telejornais
falando sobre os números da homofobia no Brasil e questiona sobre a
dificuldade de uma caminhoneira trans ser inserida e aceita numa pro-
fissão majoritariamente masculina, cisgênera e heteronormativa, rea-
firmando que a Shell Lubrificantes se preocupa com a jornada empí-
rica de seus clientes; em especial, se preocupa com a jornada de Afro-
dite e por isso decidiu contar sua história.
Segundo o Video Case (WUNDERMAN THOMPSON BRASIL,
2020), O Causo de Afrodite foi, surpreendentemente, acolhido positi-
vamente por caminhoneiros de todo o Brasil. A circulação dos discur-
sos de inclusão e as políticas públicas de apoio às minorias, regulares
como dissidentes na contemporaneidade, clivaram os caminhoneiros,
que, pela ordem da memória, homogeneizavam enunciados atravessa-
dos pelos discursos falocêntricos, cisgênero e patriarcais. O Video

194
O Nascimento de Vênus, Muito Além de Botticelli

Case apresentou recortes de comentários de outros caminhoneiros nas


redes sociais da marca, como o comentário apresentado na Figura 05,
em que o caminhoneiro Helverton Rodrigues diz querer dar um abraço
e um aperto de mão, caso encontre Afrodite “na estrada da vida”.

Figura 05: Comentário do caminhoneiro Helverton Rodrigues

Fonte: O Causo da Afrodite – Video Case, 2020. Disponível em:


<https://youtu.be/3o3eC-8IM5o> Acesso em 14 abril 2022.

Ainda segundo o vídeo apresentado pela marca, a campanha teve a


anuência também de sujeitos que não eram do universo caminhoneiro,
bem como dos maiores grupos LGBTQIA+ de todo o Brasil, algo que
possibilitou visibilidade a um corpo trans dentro de um universo o
qual a Afrodite parece não pertencer devido à trama discursiva predo-
minantemente permeada de saberes falocêntricos.
A campanha extrapolou o meio publicitário e se tornou destaque
no meio jornalístico também, devido à importância do debate sobre o
destaque dado ao corpo de Afrodite.

Figura 06: Destaque da campanha no meio jornalístico

Fonte: O Causo da Afrodite – Video Case, 2020. Disponível em:


<https://youtu.be/3o3eC-8IM5o> Acesso em 14 abril 2022.

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Guilherme Rodrigues Valadão, Luana Alves Luterman e Guilherme Figueira-Borges

O Causo de Afrodite, segundo a Shell Lubrificante, fez com que o


interesse pelo produto Shell Rimula tivesse, ainda no ano de 2019, um
aumento significativo.

Figura 07: Aumento do interesse pelo produto Shell Rimula

Fonte: O Causo da Afrodite – Video Case, 2020. Disponível em:


<https://youtu.be/3o3eC-8IM5o> Acesso em 14 abril 2022.

Esse aumento significativo de consumidores pode ser explicado,


também, pela identificação do público com a marca que, ao protago-
nizar uma mulher trans, atrai não apenas mulheres trans, que passam
a se sentir seguras para consumir o produto, mas mulheres e homens
cisgêneros que se sentem mobilizadas a utilizar uma marca que valo-
riza o público feminino em um universo cuja rede discursiva é de do-
mínio predominantemente masculino.
Por fim, Afrodite tornou-se inspiração para a criação de uma cole-
ção lançada em um dos maiores eventos de moda do país, tendo ela
própria desfilado no evento e foi homenageada pela Assembleia Legis-
lativa de seu estado, Mato Grosso, no dia do Orgulho LGBTQIA+ da-
quele ano, um marco para uma caminhoneira trans que, descoberta
em uma rede social, contou sua história em um “pequeno vídeo”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Propusemo-nos, com essa pesquisa, investigar a construção/cons-


tituição do sujeito Afrodite, que é discursivo e não de carne e osso,
além de esquadrinhar o corpo do, agora sim, indivíduo construído a
partir dos enunciados selecionados no interior da(s) formação/forma-
ções discursiva(s) que compõem esse sujeito, por meio da ordem da
memória.

196
O Nascimento de Vênus, Muito Além de Botticelli

O sujeito Afrodite é clivado pelas condições discursivas de visibili-


dade inscritas no universo feminino, metonímia do domínio da me-
mória dos sujeitos. O corpo do indivíduo Afrodite apresenta elementos
que o fazem feminino, segundo imagens intericônicas que estão ade-
ridas a um repertório iconográfico reminiscente como acontecimento
de longa data, sobre o que é ser mulher; o apagamento de uma refe-
rência de um corpo trans no meio publicitário voltado para o mercado
automotivo de caminhões, predominantemente masculino, cisgênero
e heterossexual, causa estranheza
Afrodite, como pudemos constatar pela repercussão da campanha
O Causo da Afrodite, foi representado como resistente ao saber-poder
heteronormativo para o processo de inserção e normalização da pre-
sença de corpos trans no meio publicitário. A mulher trans é uma pre-
cursora das demais mulheres trans que se viram representadas pela
presença não apenas do indivíduo Afrodite nas telas, com sua compo-
sição indumentária e com acessórios singulares, mas do sujeito Afro-
dite, que permite que muitas se reconheçam e, discursivamente, pos-
sam se constituir como sujeitos e cidadãs passíveis de respeito e, por
conseguinte, normalização desse biopoder, quem sabe um dia, apa-
gando toda condição preconceituosa das mulheres trans.

REFERÊNCIAS

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criação verbal. São
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199
O Xadrez como Prática de si:
Sobre o Ensino de uma Vida em
Exercício
João Kogawa
Kevyn R. Nascimento
Jonathan A. Feitosa

INTRODUÇÃO

[...] nossa língua não estará exposta à refutação, mas nossa inteligência
estará (PLATÃO, Teeteto, 154d).

Por anos, acostumamo-nos a um ideário que estabelece uma rela-


ção de causalidade entre o enxadrismo e a área de exatas. Quase sem-
pre, em filmes mais especificamente, o enxadrista é um ser alienado
do mundo dedicado apenas ao cálculo, demonstra pouca habilidade
relacional e tem dificuldade de se integrar na sociedade. Claro que, via
de regra, os grandes jogadores têm essas características e esse esporte
é mais fortemente atrelado à área de exatas que de humanas. Não pre-
tendemos desconstruir essa quase verdade com este texto, mas tentar
demonstrar, a partir da experiência, que o enxadrismo suscita uma re-
flexão teórica sobre o sujeito do conhecimento – aquele que detém a
verdade da álgebra, do cálculo. Mais do que isso, essa impressão mais
ou menos consolidada do jogador de xadrez como “ser calculante”, faz
com que sua posição – mesmo a do não profissional – se identifique
com o exercício formativo do próprio sujeito enquanto ser que toma
decisões condicionado pelo tempo. Nesse sentido, partimos das se-
guintes perguntas: Há sincretismo entre jogo e formação humana?
João Kogawa, Kevyn R. Nascimento e Jonathan A. Feitosa

Que lições o ensino de xadrez pode nos trazer? Como o xadrez pode
ser entendido como uma prática de si? Que elementos constitutivos do
xadrez abrem um espaço para o sujeito autorreflexivo?
Tomamos como base nossa experiência de ensino no projeto de ex-
tensão intitulado Xadrez no espaço acadêmico: lazer, integração e
conexão social. Trata-se de uma análise discursiva de práticas atrela-
das ao ensino do xadrez. Nossa hipótese é que ensinar xadrez implica,
indiretamente, uma meta-reflexão sobre nós mesmos. A exposição dos
conceitos do jogo, o que fazer, o que não fazer e o controle do tempo
para a tomada de decisões por meio do relógio criam condições para
uma constituição ética do sujeito na medida em que cada etapa de uma
partida exige posicionamento e essa posição visível no tabuleiro nada
mais é do que a expressão de um cálculo mental que, antes de ser pura
e simplesmente um cálculo, espelha o percurso formativo do sujeito.
Com essa impressão inicial, ensinar xadrez é, acima de tudo,
oportunizar ao sujeito o conhecimento e o aperfeiçoamento de si
mesmo. Como diria Foucault: “É para conhecer-se a si mesmo que é
preciso dobrar-se sobre si; é para conhecer-se a si mesmo que é preciso
estabelecer a alma em uma fixidez imóvel que a desvincula de todos os
acontecimentos anteriores” (FOUCAULT, 2019, p. 63).
Assim, mais do que um jogo e longe de qualquer ambição profissi-
onalizante, nosso projeto de extensão, à luz da teoria do discurso fou-
caultiana, pode ser entendido como espaço aberto para o exercício de
uma técnica de si. A disputa de cada partida reafirma um aparato es-
piritual cuidadosamente elaborado após horas de estudo, treino e
aperfeiçoamento na álgebra pura que constitui o enxadrismo. Não se
trata de um jogo de tabuleiro, mas do império do cálculo na ascese
espiritual da inteligência humana.

202
O Xadrez como Prática de si: Sobre o Ensino de uma Vida em Exercício

O XADREZ NO ESPAÇO ACADÊMICO: BREVE


CONTEXTUALIZAÇÃO

[...] quanta vergonha dos outros homens (...) eu sentiria se, infame, fu-
gisse às pelejas cruentas (HOMERO, Ilíada, VI, 441-443).

Em 2019 iniciamos, na Escola de Filosofia e Ciências Humanas de


Guarulhos, o projeto de extensão Xadrez no espaço acadêmico1. O ob-
jetivo do projeto é promover a prática do xadrez como forma de con-
tribuir com a formação cultural e intelectual dos participantes. Como
se trata de um jogo, muito do que se ensina passa despercebido pelo
caráter lúdico da prática enxadrística.
Nesse sentido, quase sempre passa despercebido o quanto jogar xa-
drez implica um modo de existência no mundo. Isso não estava dado
de forma tão clara no início do projeto, mas as tribulações e dificulda-
des pelas quais passamos – cogitamos, inclusive, o encerramento das
atividades no ano de 2020 por conta da pandemia – nos fizeram per-
ceber por que jogávamos. Não era só pelo jogo em si, mas justamente
pelo caráter formativo mais amplo que ele permite ao abrir espaço
para autorreflexão como efeito colateral do exercício intelectual.
Até março de 2020, as atividades eram basicamente encontros na
Sala Rotativa 8, onde nos encontrávamos para disputar partidas. Co-
meçamos com apenas um tabuleiro, um conjunto de trinta e duas pe-
ças (dezesseis brancas e dezesseis pretas) e um relógio analógico. Tam-
bém não eram tantas pessoas (em torno de dez participantes encon-
travam-se ali todas as quartas-feiras no período das 18h às 19h). Não
havia ainda, de modo sistemático – embora um dos monitores, o Iza-
que, insistisse bastante nessa ideia –, o ensino.

1 Divulgamos as atividades em nossas páginas do Instagram


(https://www.instagram.com/xadreznaeflch/) e do Facebook
(https://www.facebook.com/xadreznaeflch). Às terças-feiras, por meio da
Terça Tática, disponibilizamos um exercício com resolução para treinamento.
Além disso, fazemos uma série de postagens denominadas Curiosidades En-
xadrísticas, onde resgatamos temas que costumam fazer parte de uma par-
tida. Além de todas as apresentações, jogamos torneios em dois horários, am-
bos às sextas-feiras. Tudo isso acontece de forma remota, sempre tencionando
a melhora dos jogadores, tanto iniciantes quanto mais experientes, com estilos
mais agressivos.

203
João Kogawa, Kevyn R. Nascimento e Jonathan A. Feitosa

Ainda em 2020, dois fatos abalaram o projeto. O primeiro foi a sa-


ída do Izaque por conta de sua mudança de universidade. Além de em-
penhado, esse aluno é um exímio jogador. O segundo foi a pandemia.
As atividades presenciais foram suspensas e a Sala Rotativa 8 não po-
deria mais ser utilizada, bem como não seriam mais possíveis nossos
encontros. Isso nos colocou diante de uma encruzilhada: continuar ou
não o projeto. Fazendo coro à epígrafe deste tópico do artigo, decidi-
mos continuar. Sem saber muito bem como, mas continuamos.
Com a pandemia, tivemos de explorar novas possibilidades e um
dos alunos, que antes apenas participava como jogador, tornou-se o
novo monitor. O Kevyn Rodrigues propôs que migrássemos para as
plataformas digitais. Com efeito, após algumas avaliações de prós e
contras, fizemos as coisas andarem pelo lichess.org, um site dedicado
ao estudo e prática do xadrez e também um espaço para a criação de
comunidades de jogadores. A Sala Rotativa 8 passou a ser, então, a
equipe Xadrez na EFLCH do Lichess2. Com centenas de exercícios e
milhares de jogadores para desafiar no mundo todo, a plataforma e
seu aplicativo fizeram aquilo que era eminentemente prático tornar-
se também didático.
Isso se deu justamente pelo aumento no número de interessados
que, podendo participar de suas casas, passaram a nos procurar. Pas-
samos de um grupo de dez pessoas para setenta e duas em 2021. Das
inscrições feitas ao longo deste ano, cerca de quarenta e uma foram
submetidas por jogadores iniciantes, ou seja, 54,8% dos participantes
precisariam de aulas de xadrez básico. Além do fator pandemia, outro
acontecimento importante que acreditamos ter contribuído para esse
aumento no interesse pelo projeto foi a produção da minissérie O
gambito da rainha, dirigida por Scott Frank, em 2020. Assim como
houve uma alta na venda dos jogos de xadrez pelo mundo 3, esse efeito
se fez sentir também no Brasil.

2 Disponível em: (https://lichess.org/team/xadrez-na-eflch).


3 Conferir, por exemplo, a seguinte matéria intitulada “Série o Gambito da ra-
inha fez venda de jogos de xadrez explodirem nos Estados Unidos”, disponível
em: https://bit.ly/30hLIUe. Data do acesso: 12/11/2021.

204
O Xadrez como Prática de si: Sobre o Ensino de uma Vida em Exercício

O fato é que, de novembro de 2020 em diante, o grupo cresceu ex-


ponencialmente. Passamos de um para dois monitores 4 e estes, por
sua vez, passaram a ocupar a posição não apenas de jogadores, mas
também de professores. O empirismo de uma prática tornou-se prá-
tica de ensino e, então, ensino da teoria. Este último ponto de parada
é que constitui, para nós, o espaço maior da formação enxadrística e o
ganho educacional do projeto.

A FORMAÇÃO ENXADRÍSTICA COMO TÉCNICA DE SI

Conduz a alma intensamente para o alto e a impulsiona para a discus-


são dos números puros, jamais permitindo que alguém proponha que
se discorra acerca de números vinculados a corpos visíveis ou tangíveis
(PLATÃO, A república, VII, 525d).

Ao descrever as técnicas de auto constituição da subjetividade na


filosofia platônica, Foucault destaca a relação fundamental entre su-
jeito, teoria e prática. Não se trata ali de um truísmo do tipo “temos
que trabalhar teoria e prática”, mas de uma verdadeira teorização so-
bre como o conhecimento apoiado na atividade intelectual leva à for-
mação ética do sujeito. Trata-se de desenvolver “[...] um saber carac-
terizado como tékhne, know-how, isto é, que implica conhecimentos,
mas conhecimentos que tomam corpo numa prática e que implicam,
para seu aprendizado, não apenas um conhecimento teórico, mas todo
um exercício (toda uma áskesis ou toda uma meleté) (FOUCAULT,
2020, p. 23).
Essa ascese é um misto de autoconhecimento e prática regulada
que confere ao sujeito sua própria vivência espiritual enquanto ser-
para-si: “[...] quando se coloca a questão das relações sujeito/conheci-
mento do mundo (...), encontra-se a necessidade de flexionar o saber
sobre o mundo de maneira tal que ele tome, para o sujeito, na experi-
ência do sujeito, para a salvação do sujeito, uma certa forma e um certo
valor espirituais (FOUCAULT, 2019, p. 283). Nesse contexto sociocul-
tural da Grécia Antiga, a educação desempenha um papel central na
vida do homem. Jaeger define essa paideía nos seguintes termos: “A

4 Os dois são coautores deste artigo.

205
João Kogawa, Kevyn R. Nascimento e Jonathan A. Feitosa

ideia de educação representava para ele o sentido de todo esforço hu-


mano. Era a justificação última da comunidade e individualidade hu-
manas. O conhecimento próprio, a inteligência clara do grego encon-
travam-se no topo do seu desenvolvimento” (JAEGER, 2020, p. 5).
A série O gambito da rainha oferece-nos um exemplo concreto
disso. Encontramos ali justamente uma conexão entre a realidade des-
favorável do sofrimento (a orfandade de Elizabeth Harmon, estrelada
por Anya Taylor-Joy), a experiência limite (na minissérie, o vício em
tranquilizantes) e a ressignificação disso no conhecimento (a desco-
berta do xadrez pela menina, ainda criança, no porão do orfanato). Es-
ses três elementos dotam a personagem do poder de abstração ine-
rente ao enxadrismo, ilustrado nas cenas em que ela pratica mental-
mente e o tabuleiro e as peças aparecem como espectros nos tetos dos
quartos em que ela dorme.
O xadrez é uma álgebra mental. O tabuleiro, as peças e o relógio
são contingências. Tudo se passa na paisagem mental do jogador e
cada posição é o resultado de um percurso intelectual. Cada lance ex-
pressa um perfil – o jogador é mais conservador, mais moderado, mais
agressivo? –, um cálculo – foi o melhor lance naquele contexto? – e
uma avaliação – jogou bem ou mal? Nesse sentido, a decepção com
uma jogada mal calculada é um quase atentado contra a própria ex-
pectativa, contra a própria convicção e inteligência. O enxadrista não
se autoavalia pelo que fez, mas por como pensou e o como ele pensou
remete a um estado latente de renúncias feitas e horas de estudo e te-
orizações. Quanto mais naturalmente a álgebra enxadrística se instala
no espírito do jogador, mais facilmente ele atualizará essa “língua”,
esse sistema de valores puros que lhe permitem atualizar, antecipar e
memorizar. Não sem razão, Saussure usa o xadrez para expor sua teo-
ria da língua: “[...] de todas as comparações que se poderiam imaginar,
a mais demonstrativa é a que se estabeleceria entre o jogo da língua e
uma partida de xadrez. (...) Uma partida de xadrez é como uma reali-
zação artificial daquilo que a língua nos apresenta sob forma natural”
(SAUSSURE, 2012, p. 130).
Há aí, com efeito, uma das facetas mais complexas do caráter for-
mativo do xadrez, a saber, o exercício da abstração solitária. Com
efeito, diferente da maioria dos esportes, no xadrez, não dá para contar

206
O Xadrez como Prática de si: Sobre o Ensino de uma Vida em Exercício

com o “sprint final” da exaustão motivada do corpo. A batalha do xa-


drez começa e termina na mente. Por essa razão, apesar de muitas ve-
zes ser visto como “antipopular”, “esporte de elite”, ou ainda, “coisa de
nerd”, trata-se de um dos poucos esportes em que a grande maioria
das condições físicas humanas ficam em suspenso. O gambito da rai-
nha permite-nos ainda visualizar esse ponto muito claramente: não
importa se se trata de um homem ou de uma mulher ou se a formação
do jogador se deu nos melhores centros enxadrísticos ou no porão de
um orfanato; o xadrez exige uma disposição intelectual para falar uma
nova língua adaptada a construir para o sujeito uma disposição de es-
pírito que ele não encontra fora dessa álgebra pura.
O percurso para esse estado de espírito é longo e árduo. Uma des-
crição de Foucault (2019, p. 200) sobre o cuidado de si na Grécia An-
tiga ilustra bem esse princípio: “Construir o vazio em torno de si, não
se deixar levar nem distrair por todos os ruídos nem por todas as pes-
soas que nos cercam. Construir o vazio em torno de si, pensar na meta,
ou antes, na relação entre si mesmo e a meta”. E esse preparo para a
vida só pode se dar no longo prazo, sem imediatismos.
Uma das primeiras dificuldades identificadas por nós nas aulas de
xadrez é justamente o imediatismo. Muitos jogadores desistem por
acharem que em duas ou três semanas se tornarão grandes mestres;
outros, por não alcançarem, de pronto, vitórias. Sob esse prisma, além
de ensinar os movimentos das peças, as notações, entre outros exercí-
cios, temos de enfrentar a cultura da impaciência e da busca por fór-
mulas e caminhos prontos. Não faltam enunciados como “as vitórias
só virão depois de muitas partidas perdidas, esforço, treino e algum
isolamento consigo mesmo”. Embora haja uma crescente busca pelo
xadrez, a queda no interesse também costuma ser célere depois que o
iniciante se depara com as dificuldades que a solidão intelectual im-
põe. Há muita dificuldade em ensinar isso porque não é algo que sim-
plesmente se ensina. A euforia e animação iniciais para aprender a jo-
gar como grandes mestres muitas vezes deixam de levar em conside-
ração a dedicação, a determinação e, principalmente, a paciência que
esses grandes enxadristas tiveram.

207
João Kogawa, Kevyn R. Nascimento e Jonathan A. Feitosa

Nosso projeto lida o tempo todo com essas e outras dificuldades,


mas ao mesmo tempo eleva a motivação dos novos jogadores ao mos-
trar que vale a pena ingressar no esporte também pelos benefícios ine-
rentes à prática enxadrística, como o desenvolvimento de habilidades
cognitivas ou até mesmo como uma forma de enfrentar os problemas
e desafios que a vida apresenta fazendo uso de um “[...] raciocínio só-
brio, procurando os fundamentos de cada escolha e abstenção, e ba-
nindo essas crenças através das quais os maiores distúrbios tomam
posse da alma” (EPICURO, Carta a Meneceu).

DESCRIÇÃO E INTERPRETAÇÃO DOS SABERES ENSINADOS

Existe uma faculdade que denominamos engenhosidade, que é a capa-


cidade de execução das coisas conduzindo-as à meta que estabelece-
mos, e atingindo-a. Se a meta for nobre, a engenhosidade revelar-se-á
uma faculdade louvável [...] (ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, VI,
1144a1).

Do ponto de vista concreto e imediato, o xadrez é um jogo com-


posto por um tabuleiro padrão de sessenta e quatro casas, dezesseis
peças brancas, dezesseis peças pretas e um relógio. Como tínhamos
muitos iniciantes, começamos por apresentar as peças e seus respec-
tivos valores. Em seguida, passamos à disposição do tabuleiro, à mo-
vimentação de todas as seis peças, suas nomenclaturas e respectivos
níveis. Subdividimos as peças em três níveis: (i) médias, (ii) maiores e
(iii) menores. Os peões são as peças menores; cavalos, bispos e torres,
as médias; e a rainha a maior. O rei é a peça mais importante do jogo,
portanto, resta inclassificável nos termos aplicados às peças anterio-
res. Deixar o rei em situação de imobilidade resulta na derrota imedi-
ata.
Dos elementos acima, que representam o básico do básico, depre-
endemos sentidos fundamentais do xadrez. Diferentemente de jogos
menos complexos, como o jogo de damas, ele tem uma hierarquia. Isso
impõe um olhar sob a ótica do que Saussure (2012) teorizou como te-
oria do valor. Uma peça não é apenas um ser em si, mas também rela-
cional e delimitada por outras. Diferentemente do jogo de damas, por
exemplo, em que as peças seguem um padrão único de movimento, no

208
O Xadrez como Prática de si: Sobre o Ensino de uma Vida em Exercício

xadrez, há grande variação e, em certo sentido, estabelece-se aí um


protótipo de forma de governo.
O xadrez é uma forma de governo monárquica. Há um naturalismo
inerente às peças cuja função é proteger o rei. À frente, vão os peões.
Alinhados e ao lado do rei, bispos, cavalos, torres e a mais poderosa
das peças, a rainha. Apesar de ser o objeto e o objetivo do jogo, o rei é
a peça mais limitada. Só anda uma casa por vez e não pode ser promo-
vido a nada mais que ser ele próprio. Nisso, paradoxalmente, aquela
que é considerada a peça menos importante, o peão, guarda um para-
doxo: é limitada, mas pode ser promovida pelo mérito. A palavra mé-
rito aqui tem um sentido bem específico: uma das façanhas mais difí-
ceis no xadrez é promover um peão. Ele tem de andar casa por casa –
exceto no primeiro movimento – até chegar ao lado extremo do tabu-
leiro, onde fica a artilharia pesada do oponente.
No filme Rainha de Katwe, dirigido por Mira Nair, uma das cenas
explora, por meio de uma analogia, essa condição do peão enquanto
potencialidade. O filme conta a história da enxadrista ugandense Phi-
ona Mutesi – estrelada por Madina Nawanga. O percurso da jogadora
pode ser lido como um paralelo entre a ascensão pessoal e a promoção
do peão no próprio jogo. A lição que a analogia apresenta é que é tão
difícil promover um peão quanto uma ugandense pobre ter alguma
notoriedade internacional. Em uma das cenas icônicas do filme,
quando Phiona entra para o clube de xadrez do seu bairro, uma das
garotas que lhe apresenta as peças compara um peão à rainha e diz:
“In Chess, the small one can become the big one”. Isto é, o peão que
cruzar o tabuleiro (“o pequeno”, “o impotente”) poderá ser promovido
a rainha (“a grande”, “a potente”).
Deriva dessas considerações um primeiro elemento formativo do
xadrez: ele nos dá senso de ordem. Isso não significa que o jogador de
xadrez deve defender um regime monárquico apoiado no jusnatura-
lismo, mas que toda tomada de decisão deve levar em conta os limites
e as possibilidades de cada elemento em um determinado estado de
coisas. O sentido do “quem é quem” é fundamental no planejamento
estratégico do jogo e isso não é algo restrito apenas às sessenta e qua-
tro casas do tabuleiro.

209
João Kogawa, Kevyn R. Nascimento e Jonathan A. Feitosa

Esse efeito de ordem é esquadrinhado, matematizado e compõe


uma sintaxe. Nisso contribui a própria posição do tabuleiro – embora
um quadrado, em si, não tenha um lado específico para que julguemos
se está ou não de ponta-cabeça, há uma posição correta para o tabu-
leiro –, dividido sintagmática e paradigmaticamente. No eixo do sin-
tagma – horizontal –, o tabuleiro tem letras que vão – para as peças
brancas – de A a H; para as pretas, as letras são as mesmas, mas a
ordem é inversa: da esquerda para a direita, vai-se de H a A. No eixo
do paradigma – vertical –, estão os números. De baixo para cima, para
as brancas, vai-se de 1 a 8; para as pretas, vai-se de 8 a 1. Cada peça,
na notação algébrica, é representada por uma letra – exceto os peões
que, por convenção, não são notificados. Em português, temos: Torre
(T), Cavalo (C), Bispo (B), Dama (D) e Rei (R). Ver figura abaixo5:

Figura 1 – Disposição inicial de uma partida de xadrez.

Cada casa do tabuleiro é esquadrinhada por uma combinação de


letra e número – a articulação entre sintagma e paradigma, como no
funcionamento da língua descrito por Saussure. Por exemplo, a casa
onde se situa a primeira torre branca – da esquerda para a direita –, é
A1. Isso abre espaço para o estudo à luz de uma memória e um arquivo.
Retomando Foucault (2004, p. 147), para quem o arquivo define “[...]

5 Essa figura deriva de uma organização de exercício nossa no aplicativo do


lichess.org

210
O Xadrez como Prática de si: Sobre o Ensino de uma Vida em Exercício

uma prática que faz surgir uma multiplicidade de enunciados como


tantos acontecimentos regulares, como tantas coisas oferecidas ao tra-
tamento e à manipulação”, o registro das partidas compõe a sintaxe de
uma memória composta não por palavras, mas por coordenadas. É
possível estudar as partidas disputadas pelos grandes mestres e saber
como funcionavam suas estratégias de tomada de decisão. Em uma de
nossas aulas, fizemos uma pausa nos treinos práticos e passamos por
uma inserção de repertório. A inserção de repertório consiste na mo-
bilização de um arquivo de lances mais ou menos canônicos a serem
reproduzidos. Para esse dia, demonstramos a Abertura Italiana e suas
variantes Giuoco Piano e Giouco Pianíssimo:

Eis um exemplo de notação algébrica que compõe


F o arquivo enxa-
i
drístico mundial de uma partida disputada em 2014
g no XIII Torneio
Aberto Internacional de Xadrez Festa da Uva 2014
u entre o maior jo-
r
gador da atualidade, o norueguês Magnus Carlsen,
a e um dos maiores
jogadores brasileiros, Krikor Mekhitarian: 3
-
G
1. e4 e5 2. Cf3 Cc6 3. Bc4 Bc5 4.c3 Cf6 5. d3 d6
i 6. O-O a6 7. Bb3 h6
8. Cbd2 O-O 9. Te1 Ba7 10. Cf1 Be6 11. Cg3 Te8 u 12. Bxe6 Txe6 13.
Be3 Bxe3 14. Txe3 d5 15. Db3 Tb8 16. h3 Dd7 o17. Tae1 dxe4 18. dxe4
Ca5 19. Dc2 Td8 20. b3 g6 21. T3e2 Cc6 22. c Cf1 Ch5 23. Ce3 Cf4
24. Td2 Td6 25. Ted1 De6 26. b4 Rg7 27. oa4 Txd2 28.Cxd2 h5
29.Cf3 Td6 30.h4 Dd7 31.Txd6 Dxd6 32.g3 P Ce6 33.Cc4 Dd8
i
a
211 n
í
s
s
i
João Kogawa, Kevyn R. Nascimento e Jonathan A. Feitosa

34.Ccxe5 Cxe5 35.Cxe5 c5 36.b5 axb5 37.axb5 Cc7 38.b6 Ce6


39.Cc4 Dd7 40.De2 Db5 41.Rg2 Dc6 42.Dd3 Db5 43.Dd5 Db3
44.Cd6 Dxb6 45.Cxb7 Db2 46.Cxc5 1-06

A notação algébrica não é apenas uma “equação”. É uma narrativa.


Por meio dela, retomamos a história do jogo e, com alguma criativi-
dade na abstração, até imaginamos a reação dos personagens que tra-
varam a disputa. Como uma narrativa, uma partida é distribuída em
três momentos: abertura, meio de jogo (clímax) e final. É fundamental
começar bem e, nesse sentido, o primeiro tópico ensinado por nós é
justamente um repertório de aberturas e seus conceitos. A abertura é
uma combinação de movimentos que desenvolve ou prepara o desen-
volvimento das peças para que elas possam ocupar posições. Quanto
melhor executada, melhores serão as condições de desenvolvimento
das peças, ou seja, os primeiros passos, ainda em momento não crítico
da partida, são determinantes para as fases do jogo em que as coisas
se decidem. Alguns princípios básicos definem o conteúdo das abertu-
ras: o controle do centro, o desenvolvimento das peças, a proteção do
rei e a conexão das torres. É importante seguir esse script e respeitar
os tempos no xadrez; não só o tempo físico – o do relógio –, mas tam-
bém o tempo teórico de movimentação das peças no jogo – não se ini-
cia uma partida, por exemplo, fazendo, como primeiro movimento,
a47. Deriva daí um segundo aspecto formativo: além de ordem e hie-
rarquia, o xadrez materializa a proporção entre tempo e tomada de de-
cisão. O enxadrista sabe que não tem “todo o tempo do mundo”. As
decisões, sejam quais forem, precisam ser tomadas “no calor da bata-
lha”. Não basta ser uma boa decisão, ela precisa ser tomada a tempo
de evitar ou promover um dano. Além disso, fora o xeque-mate, o es-
gotamento do tempo é uma outra forma de ser derrotado além da de-
sistência.
O xeque-mate é o último movimento de uma partida. Por ele, o rei
não pode mais se movimentar. Ensinar como encurralar o rei consiste
em demonstrar que o rei é a única peça que não pode ser capturada.

6 A partida comentada encontra-se disponível no canal do GM Krikor:


https://bit.ly/3kxWE7C Acesso em 13/11/2021.
7 Essa notação significa andar duas casas adiante com o peão situado em a2.

212
O Xadrez como Prática de si: Sobre o Ensino de uma Vida em Exercício

Ele pode ser encurralado, ficar sem saída, ou, na linguagem do jogo,
entrar em xeque-mate. Há aí uma experiência limite a ser descrita.
Não ter saída é, de certa forma, a parte angustiante do jogo. Por vezes,
é curioso que os iniciantes – eivados da boa e necessária ingenuidade
do iniciante – não se dão conta de que estão sem saída.
A inconsciência da má condição é trabalhada o tempo todo no xa-
drez: “você percebeu que está num beco sem saída”? O enxadrista lida
com isso o tempo todo e, se não somos grandes mestres como Krikor
e Carlsen, é parte formativa relevante do ensino do xadrez esse espírito
de leitura de conjuntura. Entender que o estado da partida é bom ou
ruim exige um largo exercício de técnica e habilidade que contribui
para um efeito de subjetivação: “Eu sei que as brancas estão melhores
que as pretas porque eu já me vi nessa posição; eu reconheço a face da
derrocada”.
Esse exercício também não se encerra nas quatro linhas do tabu-
leiro. Isso é parte formativa de um “si mesmo”; implica reconhecer li-
mitações e também experimentar entusiasmo e indignação em relação
a si próprio: “Como não pensei nisso antes”?; “Como não vi isso”? E,
efetivamente, reconhecer-se em uma posição sem saída é uma experi-
ência essencial do xadrez, pois torna consciente, para o próprio su-
jeito, sua própria impotência. Esse sentido de impotência diante de
um cenário legislado, em que se reconhece, pelo valor das peças, que
nada mais há a fazer, mas que se fez o melhor possível, abre a possibi-
lidade para um sentido de consciência de si que ecoa na fala de Sócra-
tes: “[...] onde quer que seja que um homem tenha assumido uma po-
sição que crê ser a melhor, ou onde haja sido colocado por seu coman-
dante, nela tem ele, pelo que me parece, que permanecer e enfrentar o
perigo [...] (PLATÃO, Apologia de Sócrates, 28d).
A posição, na economia enxadrística8, descreve dois estados e, por-
tanto, carrega duas significações possíveis: (i) semantiza a casa espe-
cífica para a qual uma peça foi deslocada; (ii) significa o estado atual
de uma partida após a última jogada. Esse estado atual não implica

8 O termo também é utilizado no mercado financeiro para indicar um estado


atual de investimentos. Quando se compra ações na bolsa de valores, por
exemplo, assume-se uma “posição”. O investidor permanece nessa posição até
vender as ações, quando “zera a posição”.

213
João Kogawa, Kevyn R. Nascimento e Jonathan A. Feitosa

apenas a posição específica da última peça movida, mas a relação de


apoio – ou não, o que pode indicar uma fragilidade das brancas ou das
pretas – entre as peças. Uma das primeiras dificuldades dos jogadores
no início do aprendizado é tentar não deixar as peças “soltas” no tabu-
leiro, ou seja, sem outra peça apoiando. Eis uma demonstração visual
de uma peça apoiada:

Figura 4 – Peça apoiada.

No xadrez, a peça isolada indica perda de vantagem posicional. As-


sim, os lances iniciais, dentre os quais destaca-se a abertura e a defesa,
são estratégicos para o desenvolvimento das peças e todas devem ser
movidas como um exército. Uma brecha entre as peças é ocasião para
golpes táticos como duplos, garfos, descobertos e uma série de outros
golpes que acontecem em quase todas as partidas. Por essa razão, o
significado mais amplo da posição força-nos a visualizar o tabuleiro
de forma macro.
O xadrez, nesse sentido, é um espaço aberto para a autoconstrução
do sujeito como engenhoso, articulista, reflexivo. O silêncio é uma das
particularidades desse esporte. Não é como o futebol, por exemplo, em
que extravasar as emoções é a tônica. É o oposto: guardar a moderação
a cada movimento é a condição para que os lances sejam bem execu-
tados e a quietude dos expectadores das partidas reforça esse sentido.
É um caminho – nos termos de Aristóteles inscritos na epígrafe deste
tópico – rumo à meta que só se atinge mediante prática constante do

214
O Xadrez como Prática de si: Sobre o Ensino de uma Vida em Exercício

cálculo mental. Um outro filme do campo enxadrístico – Lances ino-


centes, dirigido por Steven Zaillian – mostra um garoto de sete anos
(Josh, estrelado por Max Pomeranc) sendo ensinado por seu mestre
(Bruce, estrelado por Ben Kingsley) a jogar sem as peças, apenas com
o tabuleiro. Toda a partida é feita mentalmente. Como não ver aí um
exemplo do que Foucault (2019; 2020) denomina técnica de si?

CONCLUSÃO

Fiz-me por mim, tão somente [...] (HOMERO, Odisseia, XXII, 347).

O enxadrismo pode ser entendido como uma prática de si atrelada


à autorreflexão, ao estudo constante e ao virtuosismo. A condição para
o seu exercício é a inserção do sujeito em um regime de ações e prepa-
ros que se inscrevem na própria experiência subjetiva com o conheci-
mento. Não é algo que começa e encerra na externalidade da vida men-
tal, mas lhe é primordialmente inerente. Nesse sentido, depreende-
mos um sincretismo entre o jogar e a própria formação humana na
medida, pois, a disposição para o jogar implica uma decisão prévia de
uma formação que implica: (i) renúncia – as horas de estudo e treino
que fortalecem a mentalidade do enxadrista; (ii) disciplina – não é
possível tornar-se jogador de xadrez por um dia e, de repente, aban-
donar a carreira; quem abandonou, nunca começou; não entendeu a
natureza formativa e o prazer do cálculo intelectual; (iii) abstração –
como Saussure já notara, o conjunto de peças e tabuleiro não é o xa-
drez, mas apenas sua atualização, ou seja, o exercício mesmo do xadrez
é uma sintaxe mental, uma narrativa algébrica.
Como Foucault observou na orientação formativa platônica, es-
toica e epicurista, há determinados estados de espírito que são forma-
dos à luz de uma prática. Mesmo não sendo um exame de consciência
tal como Sêneca recomendou a Lucílio, o passar e repassar lances, es-
tratégias e táticas não deixa de ser o preparo para um modo de vida.
Esse “passar um tempo consigo mesmo” exigido pelo xadrez é, sem
dúvida, uma das maiores lições que o xadrez nos lega. Sob essa pers-
pectiva, nossa experiência com o ensino dessa modalidade tem trazido
profundas reflexões e autorreflexões sob a égide de uma prática que,

215
João Kogawa, Kevyn R. Nascimento e Jonathan A. Feitosa

se não nos torna profissionais desse esporte, nos tornam melhores en-
quanto seres humanos inseridos no mundo e comprometidos com nós
mesmos.

REFERÊNCIAS

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução de Edson Bini. 4.ed.


São Paulo: Edipro, 2014.
EPICURO. Carta a Meneceu. In: _____. Carta a Meneceu sobre a
felicidade e outras cartas. Tradução de Ana Death. Jandira/SP:
Principis, 2021.
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Tradução brasileira
de Luiz Felipe Baeta Nevez. 7.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004.
FOUCAULT, Michel. A hermenêutica do sujeito: curso dado no
Collège de France (1981 – 1982). Tradução de Márcio Alves da Fon-
seca & Sama Tannus Muchail. 3.ed./5ª tiragem São Paulo: WMF
Martins Fontes, 2019.
FOUCAULT, Michel. A coragem da verdade: curso no Collège de
France (1983 – 1984). Tradução de Eduardo Brandão. 1ª. ed./4ª
tiragem. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2020.
HOMERO. Ilíada. Tradução de Carlos Alberto Nunes. 25.ed. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2015.
HOMERO. Odisseia. Tradução de Carlos Alberto Nunes. 25.ed. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 2015.
JAEGER, Werner. Paideia: a formação do homem grego. Tradução
de Artur M. Parreira. 6.ed./3ª. tiragem. São Paulo: WMF Martins
Fontes, 2020.
PLATÃO. Teeteto (ou Do conhecimento). In: _____. Diálogos I.
Tradução de Edson Bini. Bauru/SP: EDIPRO, 2007. pp. 41-156.
PLATÃO. Apologia de Sócrates. In: _____. Diálogos III. 2.ed. Tra-
dução de Edson Bini. Bauru/SP: EDIPRO, 2015. pp. 139-170.
SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de linguística geral. Tradução
de Antônio Chelini, José Paulo Paes & Izidoro Blikstein. 28. ed. São
Paulo: Cultrix, 2012.

216
Discurso, Pós-Verdade e
Liberdade
Cesar Eduardo Duarte Elizi

“Então o pessoal da mídia, da grande mídia, falando que eu chamei de


gripezinha essa qüestão (sic) do covid. Não existe um vídeo ou um áu-
dio meu falando dessa forma.”
Jair Bolsonaro, 6 de março de 2021
“No meu caso particular, pelo meu histórico de atleta, caso fosse con-
taminado pelo vírus, não precisaria me preocupar, nada sentiria, ou
seria quando muito, acometido de uma gripezinha ou resfriadinho.”
Jair Bolsonaro, 24 de março de 20201

INTRODUÇÃO
Das falas oficiais aos memes cotidianos, compartilhados instantâ-
nea e exponencialmente, temos observado algo novo no funciona-
mento do discurso. A Pós-verdade, um ambiente cultural em que ca-
racterísticas específicas deste nosso tempo influenciam a relação que
os sujeitos estabelecem com a maneira de produzir e consumir textos,
tanto escritos quanto orais, parece redesenhar alguns contornos do
que entendemos como discurso. A nós interessa proceder a uma atua-
lização do conceito de discurso, bem como a uma breve análise das
consequências já observadas e sentidas de sua nova configuração vis-
à-vis o fenômeno da Pós-verdade.

1 Canal UOL Youtube disponível em: https://www.you-


tube.com/watch?v=BDkTylOoV18 Acessado em 22 de março de 2021.

217
Cesar Eduardo Duarte Elizi

UM BREVE HISTÓRICO DO TERMO PÓS-VERDADE

O dicionário Oxford informa que a primeira ocorrência do termo


ocorreu em 1992, em um ensaio de Steve Tesich, onde o autor, apoiado
em uma comparação dos casos de Watergate, Irãs-Contra e a Guerra
do Golfo, descreve a situação vivida pelas pessoas como um “mundo
da pós-verdade” (Flood, 2016). Desde então, o termo tem sido utili-
zado em debates sobre a administração Bush após os ataques de 11 de
setembro (Alterman, 2004), mas foi em 2016 que o relativamente sú-
bito aumento da frequência relativa do termo atraiu a atenção dos le-
xicologistas do dicionário Oxford e Post-truth foi então escolhida
como palavra do ano.
Desde a eleição de Donald Trump em 2016 até o processo de sepa-
ração do Reino unido da União Europeia, é possível perceber um fe-
nômeno afetando nosso ambiente cultural e político. O discurso tem
acontecido basicamente através de um forte apelo às emoções, princi-
palmente devido ao fenômeno das mídias sociais, que permitem o
compartilhamento instantâneo e exponencial de conteúdo. Este ‘forte
apelo às emoções’ significa que o processamento da mensagem ocorre
mais modulado pelo afetivo que pelo cognitivo.
A escala e a velocidade com que a disseminação de afirmações
ocorre é sem precedentes. Contudo, não é esta característica que difere
o ambiente da pós-verdade da imprecisão e do falseamento dos fatos.
Sem dúvida, já se mentiu/enganou, oficialmente ou não, no passado.
No romance 1984, icônica crítica aos regimes ditatoriais, para citar-
mos apenas um exemplo, Orwell descreve como o papel do Ministério
da Verdade era exatamente manipular todo o conteúdo disponível
para a população.
O ambiente da pós-verdade é novo no modo como o discurso está
sendo estruturado. Diferentemente de quando se contestava informa-
ções no passado, fatos e fontes confiáveis e argumentos de especialis-
tas são percebidos como tendo importância menor em termos do apelo
emocional gerado, mesmo em meio a abundantes e conclusivas provas
em contrário. Vale lembrar aqui a fórmula “O argumento da autori-
dade não funciona comigo”, utilizada frequentemente nos debates pú-
blicos, como no exemplo abaixo:

218
Discurso, Pós-Verdade e Liberdade

Reprodução de post da internet

(FRANCISCO, 2021).

Poucos discordariam do fato que um “currículo extenso” na área de


ciência política significa que estamos diante de alguém que conhece o
assunto comunismo em profundidade maior que o cidadão médio. Isto
importa aqui menos que o espaço virtual onde o usuário pode pensar
e sentir que seu posicionamento é apenas mais um, lado a lado com
tantos outros, incluindo o do especialista.
Pensamos ser a ubiquidade da internet e seus subprodutos que
possibilitam esta nova relação com a qualidade do argumento. Tiburi
(2017, p114) acredita que: “As redes sociais são valorizadas como
meios de produção de exposição da verdade, mas essa exposição já é
a sua própria produção”. A autora acredita que é a possibilidade da
medialidade, como o curtir e o compartilhar, e não o conteúdo, que
importa, acrescentando que “não se tem mais que responder por
nada”.
Vejamos um outro exemplo:

219
Cesar Eduardo Duarte Elizi

Reprodução de post da internet

(BIZARRE, 2020)

220
Discurso, Pós-Verdade e Liberdade

Este post é típico do ambiente da Pós-verdade no sentido que foi


compartilhado instantaneamente e devido ao apelo emocional gerado
pelos diversos efeitos discursivos, desde características do texto até a
manipulação da imagem. Mas note que o elemento de irresponsabili-
dade, diagnosticado por Tiburi, reside no fato de que posts como este
podem e são compartilhados massivamente sem a checagem do con-
teúdo expresso.
Este grau de irresponsabilidade pelo que se diz e, mais importante,
pelo que se faz ao dizê-lo, é uma das faces da indiferença crescente
diante da avalanche informacional a que somos submetidos. Dunker
defende que

“do ponto de vista de relações intersubjetivas, do discurso e da lógica


do reconhecimento, a principal característica da pós-verdade é que ela
requer uma recusa do outro ou ao menos uma cultura da indife-
rença”(2017 p28, ênfase nossa).

A indiferença ocorre quando a decisão de compartilhar conteúdo


prescinde de confirmação ou checagem, pois decorre de uma recusa
do outro, de uma renúncia ao outro.
Mas quais as consequências para o discurso de uma recusa do ou-
tro? Continua a ser possível pensar o discurso em tempos de Pós-ver-
dade se recusarmos a alteridade? O que resta do dialogismo em um
discurso pautado pela recusa, pela renúncia do outro? Estas questões
irão nortear nossa discussão.

UM NOVO TIPO DE DISCURSO

Partimos do conceito de práxis humana, da mais rotineira à mais


elaborada, mergulhada em valores humanos, e entendendo que nosso
dizer, imbricado que está com esta práxis, existe apenas igualmente
mergulhado nos valores da mesma. Mais ainda, é ao compreender que
há uma vinculação entre nossas práticas sociais, permeadas por comu-
nicação verbal e/ou não-verbal, e as esferas de atividade humana, que
podemos estar certos de que ao refletirmos sobre a produção/circula-
ção dos textos envolvidos nestas práticas sociais, devemos também re-

221
Cesar Eduardo Duarte Elizi

fletir sobre a própria organização, e até mesmo sobre as próprias ati-


vidades constituintes destas práticas, pois o dizer é também um fazer
(AUSTIN, 2000).
Entendemos qual é “a real unidade da comunicação humana: o
enunciado” (BAKHTIN, 2016 p28) devido ao fato de ser esta uma uni-
dade de análise que reúne o mundo da teoria e o mundo da vida, man-
tendo a unicidade do Ser e do Evento, que é a encruzilhada onde viver
é agir e “agir em relação a tudo que não é eu, em relação ao outro”
(FARACO, 2009 p.21).
Tal agir, de constituição naturalmente responsiva, envolve também
a própria compreensão do significado, entendido aqui como ema-
nando não da palavra, mas do sujeito que a disse, com sua entonação
expressiva, inserindo-a definitivamente na cadeia de comunicação
discursiva.
De maior interesse para nós é a afirmação de Bakhtin de que em
cada enunciado, o sujeito experiencia já uma intenção, um desejo:

Em cada enunciado -da réplica monovocal do cotidiano às grandes e


complexas obras de ciência ou de literatura– abrangemos, interpreta-
mos, sentimos a intenção discursiva ou a vontade de produzir
sentido por parte do falante, que determina a totalidade do enun-
ciado, ou seja, o seu volume e as suas fronteiras (BAKHTIN, 2016 p.37,
ênfase nossa).

Em nosso entendimento, trata-se então de um desejar especifica-


mente comunicativo: o desejar constituir um novo elo na cadeia de co-
municação discursiva, elo que une dois desejos na responsividade na-
tural do enunciado. Insistiremos neste ponto com a finalidade de
torná-lo mais claro e por sua centralidade na discussão que se segue.
De fato, para Bakhtin, todo enunciado é já uma réplica, espera uma
réplica e é internamente dialogizado, aspeado ou não (BAKHTIN,
1959-1961, apud FARACO 2009 p59-60). Contudo, chama atenção
aqui a importância sublinhada na intenção, na vontade do falante.
Bakhtin nos diz que é este desejar que “determina a totalidade do
enunciado”.
Entendemos então que este desejar é na verdade dois. Outra coisa
não pode ser, pois o desejo do falante de fazer sentido só é possível

222
Discurso, Pós-Verdade e Liberdade

diante de um outro, um outro sujeito que deseje (re)conhecer na pala-


vra, na frase, no aceno de cabeça, o sentido pretendido, desejado. Sem
este elemento, sem estes dois desejos, não há comunicação por não
haver significado. Sem o duplo desejo, o signo não opera, não há sen-
tido, há apenas a palavra, a frase, o aceno. Não há significado porque
não há nada que tenha sido significado. A recusa do duplo desejo de
significar, a renúncia a este desejar impede a significação.
Vale fazer aqui uma distinção importante. Não estamos diante de
um negativo. Não se trata de uma ausência de desejar que não possi-
bilita, que não permite que o signo opere. Temos aqui uma positivi-
dade: a recusa/renúncia do duplo desejar ativamente impede que o
sentido seja estabelecido, impossibilitando que algo seja significado
pois não se trata de uma ausência de desejo de comunicação, de um
não desejo de comunicar. Trata-se de um desejo de não comunicar, de
não estabelecer sentido.

OPERANDO O DISCURSO NA PÓS-VERDADE

Se há um desejo, não de estabelecer significado, mas de não esta-


belecer um novo elo na cadeia de comunicação humana, estaríamos
diante de uma ação humana que não objetiva chegar a um entendi-
mento mútuo, de não atingir um consenso, que baseia a racionalidade
presente no discurso. Um autor relevante para nos aprofundarmos
neste elemento é Habermas, em especial seu conceito de racionalidade
comunicativa:

“A racionalidade pode ser entendida como uma disposição dos sujeitos


capazes de linguagem e ação. Manifesta-se em formas de comporta-
mento, para as quais existem, em cada caso, boas razões (HABERMAS
1987a, p.43 apud BRAGA et al. 2010)

O conceito de discurso de Habermas parte da premissa que o en-


tendimento mútuo remete a um acordo racionalmente motivado, en-
tendido a partir de pretensões de validade. Para Habermas, estas pre-
tensões de validade são: verdade, retitude e veracidade, cada uma em
conexão com um dos três componentes do Mundo da Vida: objetivo,

223
Cesar Eduardo Duarte Elizi

social e subjetivo. Fundamental aqui é que estas pretensões possam


ser submetidas à crítica:

“Só a verdade das proposições, a retitude das normas morais e a inte-


ligibilidade, ou a correta formação de manifestações simbólicas, são
por seus próprios sentidos, pretensões universais de validade que po-
dem ser submetidas à análise em discursos” (ibid. p.69)

Se por um lado há o desejo de não estabelecer uma compreensão


mútua sobre algo, e por outro, inexiste a crítica/checagem das preten-
sões de validade, não estamos mais diante dos conceitos tradicionais
de discurso e enunciado que conhecíamos a partir da leitura de Bakh-
tin. Vejamos outro exemplo:
Esta mensagem foi disparada via WhatsApp no início do agrava-
mento da pandemia de coronavírus em 2020:

"Esse amigo meu faleceu segunda-feira, ele era borracheiro. E o pneu


de caminhão estourou, com ele fazendo o serviço. E ele foi socorrido
para o hospital. Agora o que nos intriga, veja aí o atestado de óbito, a
conspiração triste para derrubar o governo Bolsonaro, ou seja, a maio-
ria das pessoas que estão morrendo no estado estão colocando no laudo
que é coronavírus. E eu tava lá, eu vi, o acidente foi um pneu que es-
tourou no cara" (ADORNO, 2020)

São vários elementos que convergem para a instalação do ambiente


de pós-verdade. Temos aqui a resposta emocional não apenas à morte
do motorista, mas também à alegada manipulação da causa da morte
e ao desejo de não acreditar em algo que tolhe a liberdade individual.
Há a repetição exponencial do enunciado tornada possível pelo apli-
cativo. Vemos também o falso equilíbrio, que favorece o compartilha-
mento de notícias falsas em detrimento de conteúdo checado por fon-
tes confiáveis. Há também uma desconsideração da qualidade da
fonte, como se uma mensagem de WhatsApp merecesse o mesmo tipo
de consideração que um post no site da revista Veja ou da Folha de São
Paulo, ou do portal de notícias UOL, deste exemplo. E por último, te-
mos o efeito de filtro, com as mídias colhendo dados sobre a reação
dos usuários no sentido de disponibilizar mais conteúdos de fontes
e/ou assuntos ‘curtidos’, bem como de outros usuários com os quais o
sujeito tem um maior alinhamento ideológico.

224
Discurso, Pós-Verdade e Liberdade

Aqui a Pós-verdade opera no sentido de fazer com que o agir, enun-


ciando ou compartilhando o já enunciado, seja em si mesmo mais im-
portante do que o conteúdo expresso no enunciado. A midialidade é o
objetivo final dos sujeitos que compartilham o enunciado irrefletida-
mente, mas certamente não dos que o produziram.

A QUESTÃO EPISTÊMICA

É esperado que no contexto de discussões a respeito do conteúdo


das proposições e da relação do sujeito com a validade deste conteúdo,
que o tema da natureza do conhecimento seja suscitado ao mesmo
tempo que considerações morais. Um pensador que investiga a res-
ponsabilidade do sujeito por seus defeitos epistêmicos é Cassam. Para
o autor, um defeito epistêmico é

“Um traço de personalidade, uma atitude ou um modo de pensar con-


denável ou repreensível que sistematicamente obstrui a aquisição, re-
tenção ou compartilhamento de conhecimento” (CASSAM, 2019.
23/202).

Cassam descreve em detalhe tanto as diferenças entre traço de per-


sonalidade, atitude e modo de pensar, quanto uma lista extensa de de-
feitos epistêmicos, mas um destes defeitos nos interessa mais especi-
ficamente: a mente fechada2.
Para Cassam, mente fechada é uma característica dos sujeitos que
sentem a necessidade de respostas claras ao invés de ambíguas,
mesmo para questões complexas. Além disso, está associada às se-
guintes características:

– Relutância em considerar informação nova uma vez que um con-


ceito já tenha sido formado
– Negação ou reinterpretação de informação que é inconsistente
com seu conceito formado
– Consideração limitada de perspectivas diferentes da sua
– Nível elevado de autoconfiança

2 Do inglês close-mindedness.

225
Cesar Eduardo Duarte Elizi

– Intolerância com relação a pessoas que pensam diferente


– Estilo autoritário de tomada de decisão e liderança

Tais características obviamente obstruem a aquisição, retenção e


compartilhamento de conhecimento, o que “requer que ambos os la-
dos da troca sejam virtuosos no mínimo até certo ponto” (Ibid.
8/202). Mas não há ‘ambos os lados’ quando se nega/recusa a alteri-
dade, conforme vimos a partir de Dunker. Também não há a troca,
pois o desejo já não é o de estabelecer um novo elo na cadeia de comu-
nicação.

O DISCURSO NA PÓS-VERDADE

“Temos um vírus. Não negamos. Temos. Estamos preocupados. Hoje


meus irmãos decidiram, estão votando aqui se a minha mãe (Olinda
Bolsonaro) vai ser vacinada ou não, com 93 anos. Eu já dei lá, eu votei
lá sim. Com 93 anos, deixar ela ser vacinada mesmo com uma vacina
aí, (que) não está comprovada cientificamente”. (BOLSONARO, 2021)

Vemos neste comentário como o discurso na Pós-verdade possui


características distintas dos conceitos Bakhtinianos. Entre elas, pode-
mos citar:

– A tomada de posição axiológica ocorre mais guiada pelas emo-


ções que por considerações de validade da proposição
– A repetição dos argumentos não checados, através, por exemplo,
do compartilhamento instantâneo e exponencial, produzindo efei-
tos perlocucionários (AUSTIN, 2000) que obstruem a aquisição de
conhecimento
– As redes sociais, e seu abuso, ampliam os espaços de interação
desconectados de contextos normativos
– A recusa/renúncia da alteridade e do estabelecimento de uma re-
lação dialógica

De todas estas características, a última é talvez a mais primordial,


até certo ponto produzindo as demais. No princípio estaria o enunci-
ado, ponto de partida da concepção de discurso Bakhtiniana, mas al-
terado pelo fato de que este enunciado agora:

226
Discurso, Pós-Verdade e Liberdade

– denota renúncia à alteridade


– denota renúncia ao desejo de estabelecer novo elo na cadeia dis-
cursiva
– denota renúncia à orientação para o consenso
– denota renúncia à responsabilidade pelo que se diz e pelo que se
faz ao dizê-lo
– denota renúncia à checagem do conteúdo da proposição
– pressupõe um sujeito de mente fechada, que anseia por respostas
simples, ainda que falsas
– é repetido instantânea e indefinidamente com o auxílio da virtu-
alidade e de suas redes de usuários

Acreditamos que estas características são reunidas concisa-


mente na expressão (R)enunciado. Os parênteses mostram que há
elementos operando sobre o conceito fundamental de enunciado,
ao mesmo tempo compondo o tema de renúncia ao acrescentar
um ‘r’, mas também com o ‘re’ simbolizando a repetição e compar-
tilhamento exacerbados.
O ambiente cultural em que considerações sobre a relação de
uma proposição com a realidade objetiva importam menos que
elementos que disparam respostas emocionais tem sido chamado
de Pós-Verdade e seus efeitos são sentidos erodindo a democracia
em várias partes do planeta. O funcionamento do discurso está na
base do problema e pensarmos em termos do que é que estamos
fazendo ao renunciarmos ao outro, ao diálogo e à razão comunica-
tiva, talvez tenha mais a oferecer neste momento.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A questão mais pertinente talvez seja sobre as consequências do fa-


zer discursivo no ambiente da Pós-verdade. Žižek foi um dos primeiros
a analisar o discurso a respeito dos ataques de 11 de setembro e a
“guerra ao terror’: “nos sentimos livres por não termos a linguagem
própria para articular nossa não-liberdade3” (ŽIŽEK, 2002). Para o

3 Tradução minha

227
Cesar Eduardo Duarte Elizi

autor, corremos o risco de estarmos discutindo a questão errada ao


contrapor fundamentalismo versus democracia:

“E não é o mesmo hoje com a escolha 'democracia ou fundamentalis-


mo'? Não é que, nos termos desta escolha, simplesmente não é possível
escolher 'fundamentalismo'? O que é problemático na forma como a
ideologia dominante impõe esta escolha para nós não é o 'fundamen-
talismo', mas sim a própria democracia: como se a única alternativa ao
'fundamentalismo' fosse o sistema político da democracia parlamentar
liberal.” (Ibid.)

Devemos admitir o risco de que o sistema democrático já esteja em


crise devido ao fato que os cidadãos/eleitores podem ser manipulados
através das novas tecnologias, como no disparo de notícias falsas sobre
a então candidata à presidência dos Estados Unidos Hilary Clinton. E
tal risco já é bastante concreto:

“Um algoritmo pode revelar que você já possui um viés contra imigran-
tes, enquanto seu vizinho não gosta de Trump, que é a razão de você
ver uma manchete e seu vizinho ver outra completamente diferente.
Nos últimos anos, algumas das pessoas mais inteligentes do mundo
tem hackeado a mente humana trabalhando para fazer com que você
clique em anúncios e lhe vender coisas. Agora estes métodos estão
sendo usados para lhe vender políticos e ideologias também” (HA-
RARI, 20184).

Ainda que não desacredite na democracia, a advertência de Harari


demonstra um certo pessimismo, compartilhado por Safatle em seu
artigo “É racional parar de argumentar”, onde o autor questiona jus-
tamente a premissa de que a razão se realiza necessariamente através
da consolidação de um horizonte de diálogo:

Sendo sociedades antagônicas, devemos neutralizar os combates e


construir uma forma de convivência entre as diferenças. Mas o que fa-
zer quando temos aqueles que defendem a tortura, que exaltam dita-
duras militares ou que naturalizam a espoliação social das mulheres?
(...) Mas é realmente possível acreditar que podemos resolver tais dife-
renças através do diálogo? (SAFATLE, 2017 p. 127).

4 Tradução minha

228
Discurso, Pós-Verdade e Liberdade

O dilema está justamente em pensar o discurso não mais orientado


ao entendimento mútuo por não mais termos confiança na liberdade
de escolha de nossas democracias, pensar o discurso não mais guiado
por uma racionalidade comunicativa. O dilema está em pensar o dis-
curso não mais baseado em termos do que é enunciado, mas do que é
(R)enunciado.

REFERÊNCIAS

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229
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ŽIŽEK, S. Welcome to the desert of the real. Verso, 2002.

230
Expandindo Olhares sobre
Emoções e Identidades na
Aprendizagem de Línguas a
Partir dos Discursos de uma
Aprendiz
Mariana Rosa Mastrella de Andrade
Hélvio Frank

INTRODUÇÃO

São inúmeros e abundantes os estudos que, ao constatarem a com-


plexidade constitutiva de sala de aula de língua estrangeira (LE) (in-
glês) indissociavelmente afetada por configurações psicológica, bioló-
gica, cognitiva, social, histórica, política e afetiva (PAVLENKO, 2014;
MASTRELLA-DE-ANDRADE, 2011; OLIVEIRA, 2010), têm susten-
tado a necessidade de que as emoções 1 sejam consideradas, para que
a situação de aprendizagem seja tratada de forma integral e se alcance
uma compreensão mais ampla do processo (BARCELOS, 2013; CAS-
TRO, 2007; CAVALCANTI, 2011; PAVLENKO, 2014). Essa condição
alimentada por saber e poder (FOUCAULT, 1979, 1980, 2010, 2014)

1 Independentemente da amplitude de construtos existentes – afetividade,


afeto, emoções etc. – conforme as filiações teóricas perseguidas, mas, ao
mesmo tempo, cientes de que as terminologias acabam por diferenciar as ca-
racterizações e concepções autorais sobre o termo adotado, nosso texto será
conduzido exclusivamente pela terminologia emoções, sem deixar de mencio-
nar a referência empregada pelo autor no original quando em alusões ou cita-
ções textuais diretas.

231
Mariana Rosa Mastrella de Andrade e Hélvio Frank

automaticamente nos convoca à reflexão sobre o vínculo existente en-


tre discursos e emoções, de modo a incidir em nossas relações dentro
e fora de sala de aula.
Lutz e Abu-Lughod (2008), baseadas nas contribuições de Fou-
cault (2010), nos alertam para a importância de se analisarem as emo-
ções dentro de enquadres discursivos e contextuais, isto é, de se exa-
minarem os discursos emotivos e os discursos sobre as emoções inse-
ridos dentro do contexto que emergem. Para as autoras, as emoções,
dentro de uma vertente que chamam de “contextualismo”, útil para
nós aqui neste artigo, podem ser validadas conforme as condições cul-
turais e contextuais em que se inserem. Com base em tais perspectivas,
neste texto caracterizamos aspectos discursivos das emoções a partir
da problematização de um contexto de aprendizagem de LE (inglês),
com vistas à ampliação de análise dos fatores emocionais dentro desse
espectro. Para tanto, nas próximas seções, discutimos os caminhos das
emoções já perseguidos em Linguística Aplicada e, a partir de um re-
corte de pesquisa, interpretamos como, pelo viés discursivo, as emo-
ções podem incorporar aspectos identitários e pautados em relações
de poder.

O CAMINHO DAS EMOÇÕES NA APRENDIZAGEM DE


LÍNGUAS: DO BIOLÓGICO AO SOCIAL

O caminho das emoções sempre foi sinuoso. A dificuldade em per-


corrê-lo inicia-se com a variedade de olhares sobre o mesmo construto
e, consequentemente, com a definição e delimitação de termos 2. De
um lado, autores como Brown (1994) entendem o afeto correspon-
dendo-se à emoção ou sentimento, e o domínio afetivo, ao lado emo-
cional do comportamento humano. Para Damásio (1994), cujo traba-
lho é citado em Arnold e Brown (1999), as emoções se caracterizam
como mudanças no estado do corpo em resposta a uma situação posi-
tiva ou negativa, e os sentimentos são as percepções dessas mudanças.

2Wallon (1968), por exemplo, distingue emoções de afetividade. Para o autor,


a afetividade teria maior abrangência por se aproximar das relações sociais e
da interação entre indivíduos, enquanto as emoções se constituiriam como
processos mais biológicos.

232
Expandindo Olhares sobre Emoções e Identidades na Aprendizagem de Línguas

Já, segundo Scovel (1991), o domínio afetivo refere-se à emoção, sen-


timento, humor ou atitude que condiciona comportamentos, e tam-
bém lida com as reações e motivações dos aprendizes, interferindo na
aprendizagem. Como é possível notar, os conceitos até aqui esboçados
parecem conceber as emoções sob uma perspectiva bastante estanque,
isto é, relacionadas a questões internas e pessoais dos aprendizes.
A Abordagem Comunicativa tem uma contribuição relevante para
o reconhecimento das emoções na aprendizagem de línguas ao pôr em
relevo o uso linguístico e a comunicação entre falantes. Igualmente, a
irrupção de estudos nas áreas de Educação, Linguagem e Psicologia,
geralmente amparados na teoria sociocultural, favoreceu o debate em
torno da complexidade dos processos que envolvem as emoções na
construção de conhecimentos sociais, bem como de sua potenciali-
dade social (BARCELOS, 2013; CAMARGO E BULGACOV, 2006;
FRIJDA et al., 2000; HOGAN, 2011) e biossocial (BUCK, 2014).
Arnold e Brown (1999) afirmam que a afetividade deve ser tratada
a partir de duas perspectivas: uma relacional e outra individual. A pri-
meira enfoca o aprendiz enquanto ser relacional, participante de um
contexto sociocultural e que, inevitavelmente, interage com outros.
Dentro dessa perspectiva, estão aspectos como empatia, ambiente de
sala de aula e processos transculturais que o contato com outras lín-
guas promove. A segunda, por sua vez, prescreve que os aprendizes
possuem também características individuais distintas e próprias de
sua personalidade. Ou seja, cada indivíduo que se relaciona social-
mente carrega em si um lado emocional intrínseco a ele. Na chamada
perspectiva individual, estão incluídos fatores como inibição, extro-
versão, introversão, autoestima, motivação e ansiedade, os quais se
constituiriam individualizados por não estarem ligados a aspectos so-
ciais ou relacionais. Ocorreriam, então, em função de aspectos de per-
sonalidade e seriam definidos como algo interno ao indivíduo.
Contudo, entendemos que as emoções não podem ser tratadas de
forma dicotomizada. Não se pode compreender o aprendiz de LE na
contemporaneidade desvinculando aspectos intra e interpessoais
constitutivos do contexto. Para se alcançar uma visão mais ampla de
análise das emoções sob a perspectiva do contextualismo (LUTZ;

233
Mariana Rosa Mastrella de Andrade e Hélvio Frank

ABU-LUGHOD, 2008), trazemos à discussão a teoria social da identi-


dade (NORTON, 2000), que entende o indivíduo e o contexto social
como indissociáveis. Segundo Norton (2000), as construções identi-
tárias, que se constituem social, cultural, histórica, política e discursi-
vamente, devem ser entendidas em meio às relações de poder. Nesse
sentido, as emoções são vistas de modo indissociável das questões
identitárias, as quais são construídas socialmente em relações desi-
guais de poder.

O CAMINHO DAS EMOÇÕES NA APRENDIZAGEM DE LÍNGUAS:


DA INTERAÇÃO AO DISCURSO

Emoções e discurso permeiam as pesquisas antropológicas de Lutz


(1986) e de Abu-Lughod (2008), em que são analisadas questões de
poder presentes na prática discursiva situada envolvendo relações so-
ciais. Lutz (1990) observa que toda fala sobre controle emocional seria
uma fala sobre o poder. No caso específico das emoções, Lutz e Abu-
Lughod (2008) compreendem que os discursos emocionais na vida
pública exercem controle e dominação. Por meio das emoções se des-
velariam mecanismos de resistência e práticas discursivas que confi-
guram a lógica das ações intersubjetivas, refletindo, assim, relações de
poder em sociedade. Essa perspectiva política de se pensar a emoção
imbuída no discurso ganhou destaque nos trabalhos das autoras para
se pensar as emoções dentro de uma fala que produz aquilo sobre o
que se fala de maneira contextualizada.
Como produto intersubjetivo, as emoções se associam a aspectos
decorrentes das relações sociais que envolvem a aprendizagem de uma
LE em circunstâncias muito particulares. À luz desse contexto, quando
se alinham emoções, identidades (MOITA LOPES, 2002; NORTON,
2000) e discursos, outras relações sociais emergem e se mostram di-
nâmicas, uma vez que dizem respeito a um espaço de prática social,
político e de construção de identidades em linguagem (PENNYCOOK,
2001; REVUZ, 2006). Na relação estabelecida entre professor e alu-
nos, existem, por exemplo, posicionamentos, ideologias, entre outros
fenômenos a englobar o aspecto discursivo e a afetar o emocional. Para
Pennycook (2001, p. 147),

234
Expandindo Olhares sobre Emoções e Identidades na Aprendizagem de Línguas

identidades socioculturais e ideologias não são construtos estáticos,


deterministas, que professores e alunos de inglês como língua estran-
geira trazem para a sala de aula e levam embora inalterados ao final da
aula ou do curso (...). Também não são simplesmente ditadas pelo fato
de [os sujeitos] serem membros de um grupo social, cultural ou lin-
guístico (...). Antes, na prática educacional como em outras facetas da
vida social, identidades e crenças são co-construídas, negociadas e
transformadas em uma base contínua por meio da língua(gem).

Como podemos observar, os discursos em e sobre a sala de aula de


LE (inglês) não se constituem de forma neutra. Por intermédio das
práticas sociais envolvendo uso de linguagem, identidades são cons-
truídas individual e coletivamente em meio às relações de poder, hie-
rarquias se mostram estabelecidas e significadas, negociadas ou não,
e, consequentemente, sistemas de valores se tornam representados.
Também, nesses contextos de aprendizagem, pessoas já vêm com his-
tórias de vida, de relação com a língua e a cultura, carregada de mati-
zes afetivos e valorativos, todos constitutivos de suas identidades. Nas
palavras de Revuz (2006, p. 228-229),

[s]e é verdade que aprender uma língua estrangeira é avançar, mesmo


que modestamente, em relação aos discursos sociais e familiares que
nos perseguem, nos constroem e nos coagem, e é afrontar um espaço
silencioso no qual é preciso se inventar para dizer eu, então, aprender
uma outra língua é fazer a experiência de seu próprio estranhamento
no mesmo momento em que nos familiarizamos com o estranho da lín-
gua e da comunidade que a faz viver.

É importante, assim, salientar que a construção e negociação de


identidades ocorrem, como afirmam Norton e Toohey (2011), Norton
(2000) e Woodward (2000), em relações desiguais de poder. Nesse
sentido, o poder é entendido não como algo que se possui e se detém,
mas como algo que se exerce (FOUCAULT, 1980), e que é também
constitutivo de identidades. O enfoque sobre a construção de identi-
dades na aprendizagem de LE se justifica, assim, como importante por
possibilitar compreensão sobre as relações hierárquicas sociais que se
estabelecem na sala de aula. Por isso, a relevância de ser conhecido e
problematizado o engajamento discursivo que posiciona sujeitos e in-

235
Mariana Rosa Mastrella de Andrade e Hélvio Frank

terações que constroem e (re)negociam identidades, as quais se cons-


tituem como conflitantes. Pennycook (2001, p. 149) ressalta que “se
levarmos a sério a ideia de que o engajamento no discurso é parte da
contínua construção da identidade, então o contexto da educação de
segunda língua levanta questões significativas sobre a construção e a
negociação de identidade”.
De acordo com Heller (1987), é por meio da língua que a pessoa
negocia sua compreensão de si mesma (self) em diferentes lugares e
momentos no tempo. É também por meio da língua que a pessoa ga-
nha acesso – ou esse lhe é negado – a redes sociais de poder que, por
sua vez, concedem a esses aprendizes oportunidades de falar. Nesse
sentido, as práticas de uso da língua não são simples expressões ou
representações de algo exterior ou anterior; antes, se considerarmos a
dimensão performativa da linguagem, elas participam da própria
construção dos objetos de que falam.
Diante do exposto, entendemos que a natureza específica da prá-
tica social de aprendizagem de LE (inglês) em sala de aula, contendo
relações hierárquicas, identitárias e de poder (PENNYCOOK, 2001;
PESSOA; PINTO, 2013), acena para condições discursivas (FOU-
CAULT, 2014) que estabelecem uma conexão abundante para o signi-
ficado das emoções. O que estamos propondo é que, sob o caráter dis-
cursivo, como veremos a seguir, as emoções de aprendizes de LE (in-
glês) em sala de aula, tanto ao ‘falarem sobre’ quanto ao ‘viverem’ o
processo, se mostram incrustadas por relações de poder e refletidas
em identidades (MASTRELLA-DE-ANDRADE, 2011; 2013).

CONTEXTUALIZAÇÃO PARA ANÁLISE

Para as discussões qualitativas que aqui propomos, foi selecionado


o material empírico gerado em um contexto de pesquisa em Linguís-
tica Aplicada, o qual explicitamos a seguir.

O contexto

As discussões travadas neste artigo decorrem de uma pesquisa re-


alizada pela autora no ano de 2002, com uma aprendiz de LE (inglês)

236
Expandindo Olhares sobre Emoções e Identidades na Aprendizagem de Línguas

da região centro-oeste do Brasil, cujo material empírico, à época, tinha


por foco investigar práticas de identidade em contextos de aprendiza-
gem de línguas (MASTRELLA; DALACORTE, 2008) e que, para este
artigo, se destina exclusivamente às questões emocionais produzidas
discursivamente por Ivana3. A participante, de 45 anos, cursava o ter-
ceiro semestre de inglês em uma escola particular de idiomas e foi en-
trevistada sobre suas experiências de aprendizagem em dois momen-
tos – no início e ao final do semestre de estudos. Ivana também era
aluna do último semestre do curso de Pedagogia e trabalhava como
professora de alunos do segundo ano do ensino fundamental. Ela ha-
via iniciado a aprendizagem de inglês porque, segundo ela, acreditava
que o conhecimento dessa língua lhe era necessário 4.
Sem desconsiderar as relações de poder imanentes da condição de
geração da entrevista, na condição de entrevistada por uma professora
pesquisadora, a aluna foi convidada a narrar sobre sua aprendizagem
de LE (inglês), evidenciando: i) suas estratégias e investimentos para
usar a língua dentro e fora de sala de aula, ii) sua relação com profes-
sores e colegas e iii) suas emoções em relação à língua e ao processo
de aprendê-la. A entrevista, em geral, mostra histórias de aprendiza-
gem, nas quais, “narrando sobre si próprio, [o aprendiz] constrói a si
mesmo, interpreta e atribui significados à vida social” (Oliveira, 2010,
p. 101). Essa é uma visão sociocultural de narrativas, segundo a qual
as histórias que produzimos de nós mesmos “nos constituem como se-
res viventes em nossa sociedade” (ROMERO, 2010, p. 13). Tendo dis-
corrido sobre o contexto, passamos a seguir à interpretação do mate-
rial empírico.

3 O nome da participante é fictício, escolhido por ela mesma, a fim de que ti-
vesse sua identidade resguardada. A participante assinou termo de consenti-
mento livre e esclarecido para pesquisa.
4 Nas palavras de Ivana, o conhecimento de inglês “fazia falta na vida”. Como

se verá a seguir, trechos das entrevistas serão reproduzidos entre aspas ao


longo da seção de análise dos dados.

237
Mariana Rosa Mastrella de Andrade e Hélvio Frank

INTERPRETAÇÃO E PROBLEMATIZAÇÃO À LUZ DO CONTEXTO


DE IVANA

Os registros de Ivana d/enunciam condições em que suas emoções


são colocadas à prova dentro de um contingente social de identidades
resilientes à aprendizagem de LE (inglês). Sendo assim, para além de
destacarmos a influência das emoções sobre a aprendizagem de uma
LE, buscaremos compreender como as emoções de Ivana são discur-
sivamente mobilizadas ‘para falar de’ e ‘ao falar de’ sua aprendizagem
de inglês em sala de aula, com vistas à reflexão sobre a indissociabili-
dade entre aspectos emocionais, identitários e de poder à luz desse
contexto. No primeiro excerto da entrevista, Ivana mostra o quanto o
domínio emocional pode estar envolvido no processo de aprendiza-
gem:

[1] Para mim, frequentar as aulas de inglês é um desafio. Um grande


desafio. É que eu não me sinto nunca confortável nem à vontade na
aula. Pelo contrário. Estou sempre nervosa, geralmente nervosa. Te-
nho muito medo de errar e penso que estou sempre errando. Tenho
uma sensação de estar sempre em desvantagem, porque já estou mais
velha, e isso não me ajuda. Então eu não fico à vontade não. Me sinto
muito nervosa, ansiosa. Mas para escrever eu sou boa. Aí eu tenho mais
segurança. (Ivana)

Ivana, no trecho citado, faz menção a como se sente nervosa e an-


siosa em sala de aula de inglês. Para MacIntyre e Gardner (1991) e Ma-
cIntyre (1995), a aprendizagem de LE seria a disciplina ou área de es-
tudo que mais provoca ansiedade nos aprendizes. Segundo Guiora
(1984), a aprendizagem de LE é um processo psicologicamente pertur-
bador, por ameaçar de forma direta a visão de mundo e a autoestima
do indivíduo. Nesse sentido, é possível entender como Ivana nas aulas
de inglês afirma estar “sempre nervosa” e “nunca confortável” 5.
Além disso, Ivana destaca que estar velha é um fator de desvanta-
gem na aprendizagem de LE. Sobre o fator idade, Oliveira (2010) ava-
lia que as relações de poder existentes nas tramas de aprendizagem em

5As partes entre aspas são citações retiradas das próprias falas aqui citadas
das participantes dos estudos.

238
Expandindo Olhares sobre Emoções e Identidades na Aprendizagem de Línguas

sala de aula, especialmente vivenciadas por grupos minoritários, ser-


vem para demarcar lugares e modos de agir de seus membros para
com a língua/gem. Em Oliveira (2010), as participantes idosas se sen-
tiam limitadas à aprendizagem de inglês pela própria condição da
idade avançada e sempre comparavam a si próprias com os outros alu-
nos com menos idades. Toda aquela complexidade acabava por imbri-
car-se às dimensões emocionais das aprendizes de terceira idade que,
balizadas pelos discursos situados e de senso comum “de que só cri-
ança e pessoas mais novas aprendem LE”, construíam, na maioria de-
las, identidades estigmatizadas de aprendizes de LE.
Quanto aos sentimentos de Ivana, à primeira vista, eles poderiam
parecer algo apenas individual, um problema pessoal, de autoestima
ou de sua própria personalidade. Entretanto, o relato a seguir sugere
contraposição a essa ideia:

[2] Meus colegas são legais, eu ligo para eles quando preciso saber al-
guma coisa, sempre me atendem. Com eles não tem problema não. As-
sim, só que eu preocupo, um pouco, sabe? Eu preocupo. É. Eu acho que
eles acham que eu não sei nada, que eu não estou com nada porque
quando chega na hora de falar eu travo. Eu não falo nada direito
mesmo não, isso é verdade. Mas eu tenho que falar mesmo assim, não
é? Se não, como é que faz? Aí, quando eu recebo a prova escrita, eu
mostro a nota boa para todo mundo, porque aí eu quero que eles vejam
que eu sei, sabe, que não é que eu não sei nada, sabe, que o problema
está em ter que falar, a questão não é não saber, entende? Saber eu sei.
Eu não sei falar. (Ivana)

No trecho citado, o verbo “saber” foi usado sete vezes no sentido de


ter conhecimento ou domínio de algo, no caso, domínio da LE – a lín-
gua inglesa. A esse respeito, em Mastrella e Dalacorte (2008, p. 172)
encontramos que a “valorização do saber na sala de aula faz parte de
sua constituição enquanto lugar de relações assimétricas de poder e de
acesso, em que quem domina um determinado saber possui o direito
à palavra”. Para Bourdieu (1994, p. 161), o direito à palavra advém do
uso de linguagem autorizada ou de autoridade, pois “não falamos a
qualquer um; qualquer um não toma a palavra”. Isso significa que, na
sala de aula de LE, há expectativas sobre quais usos da língua podem

239
Mariana Rosa Mastrella de Andrade e Hélvio Frank

ser aceitos, ainda que ali seja um lugar de aprendizagem, isto é, de su-
jeitos em processo de aprender e de avançar no conhecimento dese-
jado.
Nas palavras de Ivana, ela parece lutar para falar num ambiente no
qual as pessoas acham que ela não está “com nada”,6 porque “não fala
nada direito”. Com isso, o exercício do poder – por parte de seus cole-
gas que supostamente saberiam falar a LE – promove-lhe a negação
de sua identidade de falante do idioma. É assim que Ivana tem sua
identidade negativamente marcada: na luta por saber, num espaço
onde se objetiva o domínio do conhecimento da língua, quem “não
sabe” tem seu acesso limitado. Relacionado a isso está a afirmação dela
de que “eles [os colegas]7 acham que eu não sei nada, que eu não estou
com nada, porque quando chega na hora de falar eu travo”.
De acordo com Foucault (1980), saber e poder se articulam intima-
mente, sendo como faces de uma folha de papel: um não se exerce sem
o outro, embora não sejam a mesma coisa. Assim, para compreender
o poder, segundo o autor, é preciso compreender os pontos particula-
res por meio dos quais ele passa, olhar para as micropráticas do poder
nas instituições em que ele circula, buscar relacioná-lo com as estru-
turas de conhecimento que o sustentam, as quais estão presentes nos
discursos que formam os objetos e os sujeitos das disciplinas. Nesse
cenário, torna-se relevante considerar o saber que Ivana menciona
para que se obtenha o poder, não só de falar, mas especialmente de ser
ouvida na sala de aula, para não ser avaliada como alguém “que não
está com nada”.
Diante disso, temos aqui a necessidade de que os relatos de Ivana
sobre a forma como se sente, seu nervosismo, ansiedade e o que se
poderia chamar de sua baixa autoestima sejam mais profundamente
rediscutidos. Apesar de esses fatores afetivos 8 estarem teoricamente

6 Matemos entre aspas as partes que se referem especificamente às falas de


Ivana, participante desta pesquisa.
7 Inserção feita pelos autores do artigo.
8 O termo ‘fatores afetivos’ é usado por autores como Brown (1994), Arnold

(1999) e Scarcella e Oxford (1992), conforme já relatamos no referencial teó-


rico deste trabalho. Entretanto, aqui fazemos uso do termo somente para dis-
cutir a partir da perspectiva desses autores que buscamos revisitar critica-
mente. Seguindo nessa linha crítica, o próprio termo ‘fatores afetivos’ tem sido

240
Expandindo Olhares sobre Emoções e Identidades na Aprendizagem de Línguas

incluídos como aspectos individuais dos aprendizes, conforme já indi-


caram Arnold (1999) e Scarcella e Oxford (1992), os trechos anteriores
sugerem a necessidade de que as emoções sejam consideradas, dentro
da condição enunciativa de sala de aula de LE, a partir da integração
entre os domínios individual e social, observadas as condições discur-
sivas produzidas por intermédio de tais práticas (FOUCAULT, 1980).
Isso se deve ao fato de os sentimentos de apreensão e baixa autoestima
serem também socialmente determinados, forjados nas relações entre
os sujeitos e nos discursos de exigência sobre como devem ser os usos
da língua nos contextos de aprendizagem.
Considerando, assim, as relações da sala de aula, no trecho a seguir
Ivana fala sobre uma de suas professoras:

[3] Ela [a professora de língua inglesa] era muito rápida, queria que o
trabalho fluísse rápido, tinha muitas atividades para fazer. Numa aula
só a gente fazia um monte de coisa. Ela não era de aceitar os alunos
falarem devagar muito não. Tinha uma coisa que ela fazia que mostrava
assim que era para ser rápido, sabe. Ela estalava os dedos, fazendo si-
nais assim ‘vamos, vamos’. Quando era a hora de cada um falar, ela
estalava os dedos assim na direção do aluno. Aí, aquilo me dava uma
confusão mental de ter que formular a resposta do jeito rápido que ela
queria. Eu sei que tem que ser rápido mesmo, se não fica chato, né. Mas
aí eu ficava nervosa demais. Isso me marcou muito. Mas ela era boa,
sabia bem a língua assim, né. Era boa, falava bem. O problema era mais
eu mesmo. (Ivana)

De acordo com Moita Lopes (2002), a escola e, portanto, a sala de


aula, é lugar legitimado de construção de conhecimentos e significados
nem sempre contestados. No trecho narrado por Ivana, os rituais de
controle da professora, em posição hierárquica de exercício de poder,
podem ser também percebidos através da forma como a docente age
em sala de aula. Conforme relata, a aula tinha um ritmo próprio, uma
maneira própria em que as falas e a participação dos alunos deveriam
acontecer: a professora “era muito rápida, queria que o trabalho flu-
ísse rápido, tinha muitas atividades para fazer. Numa aula só (...) fazia
um monte de coisa. Ela não era de aceitar os alunos falarem devagar
muito não”.

repensado, dando lugar a análises mais amplas sobre emoções (Pavlenko,


2014).

241
Mariana Rosa Mastrella de Andrade e Hélvio Frank

Como as práticas discursivas no contexto escolar desempenham


um papel de grande importância no desenvolvimento da conscientiza-
ção dos aprendizes sobre suas identidades e sobre as dos outros (Moita
Lopes, 2002), no relato de Ivana é possível perceber como o ritmo im-
posto pela professora acaba também impondo verdades a respeito dos
próprios aprendizes. De acordo com a aluna, “quando era a hora de
cada um falar, ela [a professora] estalava os dedos assim na direção do
aluno. Aí, aquilo dava uma confusão mental de ter que formular a res-
posta do jeito rápido que ela queria”. Diante da figura de autoridade
no ambiente de ensino-aprendizagem, Ivana justifica – e não questi-
ona – a ação da professora ao dizer que “Eu sei que tem que ser rápido
mesmo, se não fica chato, né”, de maneira a reforçar e legitimar o po-
der exercido pela professora em sala de aula. Ao mesmo tempo, ao não
se encaixar no que seria considerado o modo apropriado de participar
das aulas, Ivana é inscrita como sujeito não adequado, o que lhe con-
fere uma identidade em posição de desajuste e desencaixe perante a
cultura da sala de aula. Assim, nesses embates de identidade, percebe-
mos que a maneira como ela relata se sentir durante as aulas – “ner-
vosa demais” – não pode ser dissociada de como as relações constroem
sua identidade naquele contexto.
Outra questão que a aprendiz também relaciona com seus senti-
mentos de nervosismo diz respeito à relação imposta à sua identidade
de falante de língua materna português:

[4] Minha professora vivia me dizendo: ‘Ivana, forget Portuguese’. Es-


quece o português, né. E o tempo todo ela falava aquilo para mim. Es-
quece o português. Pois como que eu vou esquecer o português se eu
não sei outra língua? Como? Não tinha jeito. É claro que você pensa em
português na hora que você vai falar. Não pensa? Claro que pensa. E
ela mandava eu esquecer o português. Eu ficava confusa demais, super
nervosa. Aí eu me perdia. Isso me marcou muito. (Ivana)

De acordo com Revuz (2006), somos seres em língua, ou seja, a


língua é fundante e estruturante de nossa identidade. Esse fato torna
o processo de aprendizagem de LE (inglês) em sala de aula ainda mais
complexo e permeado de identificações, já que buscamos, por meio
das línguas com as quais estamos envolvidos, relações conosco mes-

242
Expandindo Olhares sobre Emoções e Identidades na Aprendizagem de Línguas

mos, com os outros e com o saber. Podemos, então, entender a ansie-


dade de Ivana em relação ao pedido da professora para que esquecesse
o português. Esquecer sua língua materna seria a impossibilidade de
Ivana se fazer sujeito naquele contexto e dele participar: “Pois como
que eu vou esquecer o português se eu não sei outra língua?”. Nova-
mente, é possível entender que as vontades de verdade sobre como
deve ser o processo de aprender línguas também são constitutivas das
construções identitárias: à medida que Ivana se vê obrigada e ao
mesmo tempo impossibilitada de esquecer sua língua materna, en-
caixa-se numa identidade de desajuste no embate entre o real e o ideal
da aprendizagem. Com isso, a aluna afirma que “ficava confusa de-
mais, super nervosa”, o que conduz à compreensão de que os senti-
mentos de nervosismo e ansiedade não são simplesmente questões in-
dividuais, mas são também social e discursivamente construídos nas
relações dos contextos de ensino-aprendizagem e nas verdades dita-
das sobre como esse processo deve ser.
Tomando então o discurso dogmatizante de que seria necessário
esquecer o português e vendo em si mesma a impossibilidade de atin-
gir tal estado, Ivana não consegue participar das aulas, como ela
mesma afirma:

[5] Minha motivação? Eu sempre tive muita motivação, senão não teria
procurado um curso e insistido. Eu realmente tenho motivação, pro-
curo aprender, busco outras fontes, computador etc. Agora, na hora de
me comunicar na sala de aula, é mais difícil. Eu fico me perguntando...
por que eu não vou lá e não solto a língua, não é? Mas eu travo. Então
na hora de falar com os colegas, que são quem interage comigo no in-
glês, eu não falo. Tenho medo. Como é que eu vou falar? Eu ligo tudo
ao português, eu não coloco as palavras sempre na hora na ordem
certa, e tudo mais. Então como é que eu vou falar? (Ivana)

O questionamento de Ivana em “como é que vou falar?” pode ofe-


recer, no próprio trecho citado, indícios de respostas. De que maneira
ela poderia fazer uso da palavra na sala de aula com os outros falantes
daquele contexto? Sendo aluna, não seria esperado que ela então pro-
duzisse falas, participasse das interações, mostrando assim sua apren-
dizagem em processo? Entretanto, sua pergunta insistente é “como é
que eu vou falar?”. Apesar de ter o desejo de aprender e a motivação
para buscar a aprendizagem, como Ivana poderia falar? Ou seja, como

243
Mariana Rosa Mastrella de Andrade e Hélvio Frank

poderia fazer uso da própria língua para desenvolver suas habilidades


linguístico-comunicativas, as quais, segundo Savignon (1991), seriam
essenciais para a aprendizagem de uma nova língua? Sobre isso é in-
teressante retomar o que Norton (2000) apresenta como sendo um
paradoxo na aprendizagem: para aprender é preciso participar de prá-
ticas comunicativas na nova língua; entretanto, para participar delas,
é preciso já ter um domínio considerado adequado da LE. Em Mas-
trella (2007, p. 291) também encontramos que esse é um paradoxo
imobilizador, emudecedor,

do qual aparentemente não se vê saída, a não ser que se questionem as


firmes bases que o sustentam – as assimetrias de poder que consti-
tuem, com “naturalidade”, quem pode e quem não pode falar, o caráter
do erro no processo de aprendizagem, as “verdades” sobre quem está
apto a aprender uma língua estrangeira e também qual é o lugar legiti-
mado de ensino, quais instituições são e não são capazes de fazê-lo com
eficácia.

Dessa maneira, é necessário considerar, como já vem sendo discu-


tido ao longo deste trabalho, que questões emocionais não seriam ape-
nas fatores individuais, como em geral encontramos na literatura de
Linguística Aplicada e de Aquisição de Segunda Língua. Antes, como
mostra o material empírico que informa este artigo, muitas vezes as
emoções estão atreladas a questões identitárias, que, por sua vez, têm
a ver com ‘quem os sujeitos se tornam quando usam a LE num espaço
social e discursivo’. Ao estarem atreladas a questões de identidade, as
emoções estão também dinamicamente imbricadas em questões polí-
ticas, ou seja, a relações desiguais de poder que determinam quem
pode ou não falar e quem tem ou não autoridade para ser ouvido.
Em analogia à percepção de Lutz (1990) sobre a comunidade Ifaluk
por ela pesquisada, equivale dizer que quando Ivana fala de suas emo-
ções, ela não fala de algo que está internamente em sua cabeça, mas
fala daquilo que se passa no mundo e nas suas relações com os outros
a sua volta. É exatamente este o potencial que os aspectos emocionais,
ao serem analisados, precisam invocar: a articulação entre o universo
interpessoal e o universo moral. Aquele que faz um julgamento emo-
cional de um evento deveria, pois, negociar essa declaração com as ou-
tras pessoas ao redor, a fim de discursivamente se re/construir.

244
Expandindo Olhares sobre Emoções e Identidades na Aprendizagem de Línguas

Contudo, as emoções são por vezes silenciosas, nem sempre perce-


bidas ou aparentes nos processos de ensino-aprendizagem de LE (in-
glês). Muitas vezes, quando não silenciosas, isto é, quando vindas à
tona, fatores como ansiedade, nervosismo ou baixa autoestima, por
exemplo, insistem em ser silenciados ou atribuídos como algo da per-
sonalidade individual dos aprendizes ou de suas histórias pessoais.
Entretanto, nas circunstâncias que envolvem Ivana, os sentimentos de
tensão e nervosismo e as sensações de inadequação para a aprendiza-
gem estão embebidos de relações de poder que se estabelecem dentro
e fora do contexto da sala de aula, em que são determinadas certas
condições, como um domínio prévio da língua, para se fazer uso da
palavra na nova língua.
Consideramos importante ressaltar, a partir da análise dos dados,
que o que muitas vezes é concebido como problemas e inadequações
pessoais são condições determinadas também por estruturas sociais.
As emoções, que então poderiam ser concebidas como algo individual
e interno ao aprendiz, passam a ser vistas a partir das histórias e rela-
tos de vários aprendizes, à luz das teorias sobre identidades, como
condições compartilhadas e, portanto, sociais, sendo assim também
relacionais, discursivas, políticas, culturais, históricas.
Segundo Norton (2000), é preciso entender as histórias e experi-
ências de vida dos alunos para criar condições de interação que os aju-
dem a requerer o direito à fala. Assim, entendemos que os próprios
alunos podem desenvolver compreensões sobre as posições que ocu-
pam nos contextos em que podem fazer uso da língua, compreendendo
o estado discursivo de suas emoções, a fim de requererem seu direito
à fala e usá-lo para seu próprio benefício e interesse. Relacionada a
esses aspectos está outra implicação que aqui enfatizamos: a necessi-
dade de as questões emocionais no ensino-aprendizagem de LE se tor-
narem cada vez mais presentes nos currículos de formação de profes-
sores e aprendizes de línguas.

245
Mariana Rosa Mastrella de Andrade e Hélvio Frank

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho buscou discutir de que maneira aspectos emocionais,


de uma perspectiva discursiva, se inscrevem nos jogos de poder, saber
e de ser de uma aprendiz de LE (inglês). Entendemos que os fatores
afetivos não são simples questões individuais, sendo importante con-
siderar sua relação com aspectos identitários e de relações de poder,
no sentido de contribuir para uma compreensão revisitada sobre a ma-
neira como alguns autores tradicionalmente compreendem emoções e
aprendizagem de LE (inglês) em sala de aula. Para tanto, é preciso con-
ceber a sala de aula de línguas como um lugar social em que os discur-
sos circulam como formas de poder institucionalizadas que, por sua
vez, agem de modo a regular os sujeitos ao consenso das condições
sociais estabelecidas. Assim, torna-se imprescindível observar que as
emoções não são simplesmente fatores internos ou individuais que ca-
tegorizam os aprendizes conforme eles se sentem, mas, sobretudo,
constroem significados para as questões discursivas e identitárias.
Não sugerimos que os relatos de Ivana, analisados neste trabalho,
sejam generalizados como condição presente na experiência de todo e
qualquer aprendiz. Entretanto, se considerarmos que as particularida-
des do processo de ensinar e aprender línguas não estão dissociadas
dos discursos que constroem a normalidade e o padrão do que vem a
ser um bom aprendiz (Norton e Toohey, 2001), temos então que tais
depoimentos devem ganhar espaço para reflexão. Fazer isso, a nosso
ver, significa, dentre outras coisas, promover o engajamento no diá-
logo colaborativo, que valoriza e problematiza as experiências vivenci-
adas, sem essencializá-las, ou seja, buscando localizá-las enquanto
construídas e, portanto, passíveis de transformações. Se a sala de
aula de LE (inglês) é um mundo no qual podemos nos reinventar por
meio das ideias, das práxis e do discurso, é preciso que ampliemos
nossa percepção sobre as emoções, buscando incluí-las em nossa
agenda de problematização. Afinal, o mundo assume a cor que nossas
emoções lhe dão. Sendo assim, acreditamos, como Hooks (1994, p.
207), que “com todas as suas limitações, a sala de aula continua sendo

246
Expandindo Olhares sobre Emoções e Identidades na Aprendizagem de Línguas

um lugar de possibilidades”, dentro do qual é preciso “abertura de es-


pírito e de coração que permita encarar a realidade, imaginando, cole-
tivamente, caminhos para nos mover além das fronteiras”.

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250
Livros Didáticos e Tecnologias
Digitais na Educação Linguística:
Algumas Problemáticas e Outras
Possibilidades
Cristiane Rosa Lopes
Carla Conti de Feitas

INTRODUÇÃO

Um grande desafio da educação na contemporaneidade é promo-


ver práticas que interrompam a reprodução de narrativas do sistema
colonial, que são responsáveis pela manutenção de saberes hegemôni-
cos e corroboram a invisibilidade e a marginalização de grupos subal-
ternizados. Na área da educação linguística destaca-se a necessidade
de desvincular a lógica colonial das concepções de língua, das práticas
pedagógicas, dos materiais didáticos etc. Esse é um exercício que re-
quer uma mudança de perspectiva, para que letramentos pluralizados,
conhecimentos produzidos em contextos não-hegemônicos e diferen-
tes maneiras de coexistência sejam considerados. Queiroz (2020, p.
23) pontua que, no Brasil, os processos de construção do saber são
bastante influenciados pela herança colonial, que determina “inclusive
quem pode e quem não deve controlar a produção, circulação e inter-
pretação do conhecimento”.
Assim como Silvestre (2018, p. 257), entendemos que a educação
linguística deve ser um processo de construção de repertórios linguís-
ticos, que seja

251
Cristiane Rosa Lopes e Carla Conti de Feitas

capaz de provocar movimentos de mudança que abram espaços para


outros modos de ser e estar no mundo. Nesse sentido, o viés crítico
nesse processo é muito mais do que uma opção epistemológica, é uma
postura, ou seja, um modus vivendi, comprometido eticamente com a
desestabilização de desigualdades. (SILVESTRE, 2018, p. 257, grifo da
autora)

Desse modo, para o desenvolvimento de uma educação linguística


crítica, as/os professoras/es e demais envolvidos precisam estar aten-
tas/os para as características e para as formas de uso de materiais di-
dáticos e de tecnologias digitais nas aulas, pois eles fazem parte não só
de práticas de produção de conhecimentos, mas também da plurali-
dade de relações, valores, linguagens, culturas, identidades, dentre ou-
tras, que ocorrem dentro do contexto educacional. E, no caso das tec-
nologias digitais, também em várias outras práticas sociais cotidianas
das pessoas no mundo contemporâneo.
Tendo em vista a promoção de uma educação linguística, que con-
sidere as pluralidades que nos constituem e nos cercam, e com as quais
interagimos cotidianamente, pesquisadoras/es do Programa de Pós-
Graduação em Língua, Literatura e Interculturalidade (POS-
LLI/UEG), participantes do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre For-
mação de Professoras/es de Línguas (GEFOPLE/CNPq/UEG), de di-
ferentes linhas de pesquisa, têm desenvolvido estudos que ampliam
nosso entendimento acerca do uso de materiais didáticos e de tecno-
logias digitais nas salas de aula de línguas.
A partir de percepções advindas da realização de alguns desses es-
tudos, nossos objetivos, neste capítulo, são: (i) discutir algumas pro-
blemáticas na educação linguística, relativas a materiais didáticos e
tecnologias digitas; (ii) refletir sobre novas possibilidades de educação
linguística proporcionadas pelo uso de tecnologias digitais.

ALGUMAS PROBLEMÁTICAS

Antes do período de ensino remoto, a principal problemática em


relação aos materiais didáticos usados na educação linguística era a
centralidade e, em alguns contextos, a exclusividade do uso de livros

252
Livros Didáticos e Tecnologias Digitais na Educação Linguística

didáticos, cujas características muitas vezes não coadunam os princí-


pios de uma educação voltada para a formação de uma sociedade com
mais justiça social. Ressaltamos que

[é] papel da educação em geral e da educação linguística em especial,


assumir posições que levem ao empoderamento do(a) aprendiz para o
uso consciente e crítico da língua não apenas para retratar uma reali-
dade, mas principalmente para questionar e problematizar essa reali-
dade, promovendo ações de mudança. (PEREIRA, 2018, p. 53)

Nessa direção, é essencial que os materiais didáticos usados na


educação linguística rompam com “valores implantados por ideolo-
gias que privilegiam a homogeneidade cultural e que perpetuam prá-
ticas racistas e sexistas, violentando os direitos civis das minorias”
(SCHEYERL, 2019, p. 14). No entanto, pesquisas desenvolvidas recen-
temente por participantes do GEFOPLE apontam que livros didáticos
de línguas, adotados em instituições educacionais em Goiás, têm ca-
racterísticas que necessitam ser problematizadas.
Lopes e Santos (2020), por exemplo, problematizam característi-
cas de duas séries de livros didáticos de língua inglesa: a Touchstone
(MC CARTHY; MC CARTEN; SANDIFORD, 2005), da editora Cam-
bridge, utilizada em alguns cursos de licenciatura em Letras de uma
universidade pública; e a Enjoy it! Kids (SIQUEIRA et al, 2016), da
editora Standfor, adotada por uma escola particular de educação bá-
sica. Sobre os livros da série Touchstone (MC CARTHY; MC CARTEN;
SANDIFORD, 2005), as pesquisadoras pontuam que eles têm as mes-
mas características de outros livros didáticos de língua estrangeira
que, devido à forma como concebem a representação do mundo, são
denominados por autores brasileiros como sendo uma “Disneylândia
Pedagógica” (SIQUEIRA, 2012), um “reino encantado”, sem pobreza
ou desigualdades sociais (ANJOS, 2019), um “mundo uniforme”, sem
problemas e sem conflitos (TILIO, 2010), uma “ilha da fantasia”, uma
sociedade artificialmente feliz (LEFFA, 2005).
Por isso, o uso desse tipo de livro didático em cursos de licenciatura
em Letras, ou seja, em cursos de formação de professoras/es de lín-
guas, reforça e dá continuidade a práticas advindas de ideologias colo-
nialistas e hegemônicas, que foram implementadas na área de ensino
de línguas e formação docente.

253
Cristiane Rosa Lopes e Carla Conti de Feitas

(...) é um tipo de material que além de trazer uma representação de um


mundo sem diversidades e conflitos, reforça a autoridade da figura do
falante nativo, favorece uma visão monolíngue de ensino, como tam-
bém uma concepção apolítica de língua/linguagem. Além disso, a neu-
tralidade temática nesse material, que propõe apenas conteúdos trivi-
ais para aulas, não atende às demandas das relações sociais cada vez
mais complexas na contemporaneidade. (LOPES e SANTOS, 2020, p.
152)

A série Enjoy it! Kids (SIQUEIRA et al, 2016), por sua vez, traz
muitas representações imagéticas que contribuem para a manutenção
de uma visão binária, hierárquica e sexista de gênero, reforçando es-
tereótipos do que é “naturalmente” feminino ou masculino. As pesqui-
sadoras identificaram que o principal papel social destinado à mulher
nas imagens dos livros é o de cuidadora de crianças, prática que vin-
cula o sexo feminino ao serviço doméstico e à maternidade, contribu-
indo para a naturalização dessas práticas como pertencentes exclusi-
vamente ao universo feminino. Considerando que a sala de aula, como
qualquer contexto, é um lugar de disputas sociais, no qual as identida-
des são construídas através dos discursos produzidos, é fundamental
que os materiais didáticos não reforcem a produção de hierarquias,
estereótipos e desigualdades de gênero.

(...) já que as hierarquias de gênero e sexual são duas das várias dimen-
sões que constituem – de forma interseccional com as hierarquias de
classe, de raça, de divisão internacional do trabalho, político-militares,
espiritual, epistêmica e linguística –, a matriz de poder colonial (QUI-
JANO, 2000) que caracteriza o atual sistema-mundo. No que diz res-
peito à hierarquia de gênero, privilegiam-se os homens em detrimento
das mulheres e o patriarcado europeu em detrimento de outros tipos
de relação entre os sexos e, no que concerne à hierarquia sexual, privi-
legia-se a heterossexualidade relativamente a outras sexualidades
(GROSFOGUEL, 2010). (PESSOA, 2019, p. 47)

Vasconcelos e Lopes (2021) problematizam a seleção de autoras/es


dos textos escritos da série de livros didáticos de língua portuguesa
para o ensino médio, denominada Português: Trilhas e Tramas
(SETTE et al., 2016). Esta série, aprovada pelo Programa Nacional do
Livro Didático (PNLD) em 2018, estava sendo adotada em 2020 por
sete escolas estaduais da região noroeste de Goiás. A partir da análise

254
Livros Didáticos e Tecnologias Digitais na Educação Linguística

sobre quem são as/os autoras/es dos textos escritos, ou seja, quem são
as/os construtoras/es dos saberes disponibilizados nesse formato na
série de livros didáticos, as pesquisadoras identificaram indícios de
que o material analisado reflete aspectos de uma educação de viés co-
lonial, que pressupõe uma postura “hierarquizada entre os sujeitos
(predeterminando aqueles que sabem e os que não sabem)” (QUEI-
ROZ, 2020, p. 94). Em primeiro lugar, por conter uma grande predo-
minância de textos, cujos autores são homens brancos da região su-
deste do Brasil. Além disso, há uma invisibilidade das mulheres negras
e indígenas e de outros grupos subalternizados como produtores de
conhecimentos, ou seja, como autoras/es dos textos selecionados para
compor os livros didáticos analisados.
No período de ensino remoto (2020-2021) em decorrência da pan-
demia do Covid-19, “contrariando o nosso direito de escolha, a leitura
do e no mundo digital invadiu as nossas casas e salas de aula, se tor-
nando uma condição para realização das atividades escolares e univer-
sitárias” (FREITAS e AVELAR, 2021, p. 92). Com essa mudança re-
pentina de aulas presenciais para virtuais, foi necessária uma amplia-
ção do uso de tecnologias digitais, principalmente de sala de aula vir-
tual (Google Classroom), de ferramentas de videoconferência (Zoom
e Google Meet) e de aplicativos (WhatsApp), entre outros recursos,
impactando a tradicional utilização dos livros didáticos nas salas de
aula de línguas.
A pesquisa de Faria (2022), desenvolvida a partir de uma experi-
ência de formação continuada para educação linguística crítica, traz
discussões sobre as percepções de seis professoras/es de línguas de di-
ferentes escolas públicas de educação básica de Goiás, relativas a mu-
danças no uso de materiais didáticos e outros recursos pedagógicos,
dentre eles as tecnologias digitais, durante o período de ensino re-
moto. De acordo com os relatos das/os professoras/es, antes da pan-
demia, o que era mais usado em suas aulas era o livro didático.
Com o início do ensino remoto, ocorreram três situações diferen-
tes: (i) nas escolas em que não houve o recebimento dos livros didáti-
cos do PNLD (2020) ou a distribuição deles para as/os alunos, houve
a disponibilização de fotocópias de partes dos livros para as/os alunos
ou o envio digitalizado através do aplicativo WhatsApp. Apesar de o

255
Cristiane Rosa Lopes e Carla Conti de Feitas

livro didático continuar a ser usado, passou a ser com uma frequência
menor, pois materiais enviados pela Secretaria de Estado de Educação
de Goiás e de atividades disponibilizadas no Portal NetEscola1 foram
os mais utilizados; (ii) nos contextos em que as/os alunas/os não ti-
nham acesso à internet, o livro didático, quando já não era, passou a
ser o material mais utilizado. As/os alunas/os recebiam planos de ati-
vidades quinzenais, que traziam orientações sobre quais atividades do
livro deveriam ser feitas; (iii) já nos contextos em que as/os alunas/os
tinham acesso à internet, o livro didático continuou a ser usado, com
a diferença de a mediação da/o professor/a para o desenvolvimento
das atividades do livro também ocorrer através da plataforma Google
Meet.
Nas percepções das/os professoras/es, participantes na pesquisa
de Faria (2022), sobre as formas como ocorreram suas práticas de
educação linguística no período de ensino remoto, não percebemos in-
dícios de que houve uma ampliação de perspectivas em relação a novas
possibilidades de uso da linguagem nos contextos em que ambientes
digitais foram usados. Também não identificamos indícios de que es-
sas experiências tivessem oportunizado reflexões críticas, que extra-
polassem “a visão dos ambientes virtuais como recurso, evitando que
eles sirvam como mero suporte para as formas tradicionais de ensino-
aprendizagem” (FREITAS e AVELAR, 2021, p. 105). Pelo contrário,
algumas práticas descritas, como, por exemplo, o uso do aplicativo
WhatsApp para envio de atividades digitalizadas do livro didático, in-
dicam a utilização dessa tecnologia como um meio para a continuidade
do tradicional uso de livro didático nas aulas de línguas.
Problemáticas, como as discutidas aqui, reforçam a necessidade de
(re)pensarmos a formação de professoras/es de línguas, de forma a
promover análises críticas de materiais didáticos e de experiências de
multiletramentos, que considerem as culturas de referência das/os
alunas/os e os gêneros, mídias e linguagens que elas/es usam (ROJO
e MOURA, 2012), ampliando, assim, o repertório de possibilidades de
educação linguística.

1 https://portalnetescola.educacao.go.gov.br/

256
Livros Didáticos e Tecnologias Digitais na Educação Linguística

OUTRAS POSSIBILIDADES

Conforme já mencionado, outras possibilidades para o uso de tec-


nologias digitais na educação linguística têm sido estudadas por pes-
quisadoras/es do GEFOPLE, visando, por exemplo, investigar em que
sentido práticas de multiletramentos propostas e realizadas com e por
professores de línguas em formação “apontaram para praxiologias ca-
pazes de romper com paradigmas tradicionais de compreensão da lin-
guagem, em espaços virtuais, e de abrir as possibilidades de leitura do
e no mundo atual” (FREITAS e AVELAR, 2021, p. 94).
É importante ressaltar que o mundo atual “nos obriga a atuar de
maneira diferente na nossa sala de aula” (MENEZES DE SOUZA, 2011,
p. 279), pois temos que considerar as multiplicidades e complexidades
que o permeiam. Uma das características do mundo de hoje são as in-
terações digitais, realizadas por meio de celulares, computadores e ta-
blets. O uso de tais tecnologias demanda de seus interagentes o desen-
volvimento de novas práticas de linguagem, já que requer diferentes
habilidades de leitura e escrita, decorrentes, por exemplo, da possibi-
lidade de combinação “de diferentes modalidades comunicativas que
vão além da escrita tradicional, como por exemplo, os gestos, imagens
estáticas ou em movimento, sons, gráficos, dentre outros” (AVELAR e
FREITAS, 2020, p. 61). Sendo assim, é essencial que os cursos de for-
mação de professoras/es de línguas promovam reflexões sobre as no-
vas possibilidades de uso de linguagem, advindas das práticas digitais
da cibercultura.
Todavia, percebemos que os cursos de licenciatura em Letras ainda
não têm currículos, que sejam capazes de dar condições para que as/os
professoras/es de línguas em formação desenvolvam um conheci-
mento crítico acerca das potencialidades do uso de tecnologias digitais
na educação linguística. Nessa direção, as pesquisas desenvolvidas por
Tavares (2019) e por Avelar (2020) oportunizaram espaços para que
professoras/es de línguas em formação pudessem experienciar o uso
de diferentes ambientes virtuais, e não apenas ler e discutir teoriza-
ções e experiências de outras pessoas sobre o assunto.
Numa investigação sobre práticas de multiletramentos na forma-
ção inicial e continuada de professoras/es de língua inglesa, Tavares

257
Cristiane Rosa Lopes e Carla Conti de Feitas

(2019) propôs o trabalho com o Padlet, que é um aplicativo que per-


mite a criação de murais virtuais para construção, compartilhamento
e/ou organização de tarefas, cronogramas e vários outros conteúdos
em formato multimídia (texto escrito, imagens, áudios, vídeos, hiper-
links etc.). Podendo ser, dessa forma, um ambiente educacional digital
que, de maneira dinâmica, flexível e interativa, proporciona práticas
de multiletramentos na educação linguística e na formação docente.
Nessa proposta de Tavares (2019), realizada a partir de experiên-
cias vivenciadas em oficinas temáticas de língua estrangeira, as/os
participantes do estudo utilizaram o Padlet para postagens interacio-
nais e colaborativas de textos escritos, imagéticos e audiovisuais, para
reações (como, por exemplo, curtir/descurtir) e para participação em
enquetes. As atividades propostas tiveram o intuito de gerar reflexões
sobre o aplicativo, que extrapolassem seu uso como recurso tecnoló-
gico. O uso do aplicativo teve como principal propósito servir como
um ambiente de construção e de ampliação de sentidos, condizente
com duas premissas essenciais dos multiletramentos, que são: a plu-
ralidade cultural trazida pelas/os autoras/es e leitoras/es e a diversi-
dade de linguagens, semioses e mídias envolvidas na produção dos sig-
nificados (ROJO e MOURA, 2012).
De forma similar, os jogos digitais (games) também atendem essas
premissas dos multiletramentos, pois “implicam uma diversidade de
habilidades e modos de construção de significados que incluem o vi-
sual, o sonoro, o espacial e o gestual, além do próprio texto escrito”
(ZACCHI, 2017b, p. 66), como também promovem agência, que é fo-
mentada pela interatividade e pelas diversas escolhas que as/os joga-
doras/es podem fazer.
Partindo da constatação das potencialidades dos jogos digitais para
a educação linguística, Avelar (2019) propôs uma ação extensionista
para professoras/es de língua inglesa, que promoveu espaços para ex-
periências com os games. De acordo com a pesquisadora, os jogos,
além de “se integrarem às atividades cotidianas da sociedade contem-
porânea, mobilizam novas manifestações de linguagem construídas a
partir da diversidade cultural e de recursos semióticos provenientes
da cibercultura” (AVELAR, 2021, p. 24). As interações e reflexões crí-

258
Livros Didáticos e Tecnologias Digitais na Educação Linguística

ticas advindas dessas experiências das/os professoras/es com os jo-


gos, propiciaram novos entendimentos sobre práticas digitais, novas
formas de linguagem e novas formas de construir sentidos.
Além disso, os jogos digitais experienciados pelas/os professo-
ras/es participantes do estudo instigaram a discussão de questões de
gênero, meio-ambiente, preconceito, desigualdade sociais, dentre ou-
tros, contribuindo para uma educação crítica, mesmo quando não era
essa a proposta do jogo. A possibilidade de reflexão crítica com os jo-
gos digitais vai “além do ato de posicionar-se a respeito de uma deter-
minada questão e abarca novas possibilidades de ser, pensar e agir”
(ZACCHI, 2017a, p. 238).
As novas mídias, dentre elas os jogos digitais,

fornecem aos usuários uma gama muito mais ampla de ações que não
estavam necessariamente no seu desenho original. Embora se possa
dizer o mesmo das mídias tradicionais, as novas mídias de comunica-
ção apresentam um maior grau de agência, dinamicidade, colaboração
e compartilhamento. Dessa forma, processos de construção de conhe-
cimentos, sentidos e identidades requerem um maior grau de negocia-
ção. (ZACCHI, 2017a, p. 239)

As experiências com os jogos digitais nessa ação de formação do-


cente possibilitaram não apenas uma expansão de perspectiva em re-
lação ao uso dessa tecnologia, que passou a ser compreendida com
uma prática de multiletramento, mas também uma expansão do exer-
cício interpretativo, situado contextualmente, que é demandado
das/os jogadores.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Mesmo com o retorno do ensino presencial, é importante analisar-


mos as transformações em relação ao uso de livros didáticos e de tec-
nologias digitais, ocasionadas pelas experiências vivenciadas na edu-
cação linguística em ambientes virtuais. São transformações que con-
tribuíram para a promoção de uma educação linguística, que favorece
a construção de uma sociedade com mais espaços para outras formas

259
Cristiane Rosa Lopes e Carla Conti de Feitas

de ser e agir no mundo? São transformações que geraram novas per-


cepções sobre as possibilidades de educação linguística com o uso de
tecnologias digitais?
Estudos, como os desenvolvidos por pesquisadoras/es do GEFO-
PLE, têm nos ajudado a expandir nosso entendimento sobre essas
questões, indicando: (i) aspectos que necessitam ser problematizados
nos livros didáticos, para que eles estejam mais coerentes com uma
proposta de educação linguística, que almeje contribuir para uma so-
ciedade com mais justiça social; (ii) possibilidades de interações com
a cibercultura, que não estão limitadas ao uso da tecnologia digital
apenas como ferramenta, mas principalmente como meio de produção
de novas práticas de linguagem e de novos sentidos na educação lin-
guística.

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263
Histórias da Formação Docente:
Reflexões sobre Colonialidade
Linguística
Julma Dalva Vilarinho Pereira Borelli
Lígia Christie Coelho Silva
Patrícia Alves Santos Oliveira

SETTING THE SCENE

Em que ambientes professoras(es) podem contar suas histórias?


Onde podem encontrar um grupo que deseje ouvir com cuidado o que
têm a dizer e esteja disposto a responder com empatia ao compartilhar
suas tantas outras histórias? Bem, as histórias compartilhadas e dis-
cutidas neste texto foram contadas em um grupo formado por profes-
soras(es) que se reúnem para compartilhar suas práxis, para discutir
suas experiências diárias e exercitar um olhar crítico às questões que
perpassam a docência de língua inglesa no estado de Mato Grosso, na
região Centro-Oeste do Brasil.
O grupo a que nos referimos é chamado GEPLIMT 1, um grupo de
estudos formado por duas professoras universitárias e cerca de vinte
professoras(es) de inglês de diferentes escolas da rede pública de en-
sino. O grupo foi criado em dezembro de 2019 e, desde então, temos
nos encontrado mensalmente para discutir questões abordadas em
materiais que selecionamos para ler ou assistir previamente. O princi-
pal objetivo desse grupo é promover espaços mais horizontalizados de
fala e escuta cuidadosa (SILVESTRE, 2017), espaços em que diferentes

1 GEPLIMT - Grupo de Estudos de Professoras(es) de Língua Inglesa do Es-


tado de Mato Grosso.

265
Julma D. Vilarinho Pereira Borelli, Lígia C. Coelho Silva e Patrícia A. Santos Oliveira

conhecimentos são valorizados como parte de nosso processo de for-


mação docente.
As histórias que retomamos neste capítulo foram contadas em um
de nossos encontros mensais, quando algumas professoras relataram
episódios que remetem a colonialidades que experienciaram durante
seu curso de graduação. A discussão focalizou o desafio de aprender
inglês para se tornar docente, enfrentando a colonialidade linguística
que ainda está presente na universidade e é mantida por docentes e
discentes em diferentes espaços educacionais. Esses relatos nos reme-
tem às palavras de Kilomba (2019, p. 51) quando afirma que “[n]esse
sentido, a academia não é um espaço neutro nem tampouco simples-
mente um espaço de conhecimento e sabedoria, de ciência e erudição,
é também um espaço de v-i-o-l-ê-n-c-i-a”. Ao buscarmos interpretar
tais episódios com base no pensamento decolonial, esperamos que
possamos também encontrar formas de reconstruir nossas práxis em
outros termos.
Conforme argumentam Borelli, Mastrella-de-Andrade e Brossi
(2021), a problematização da formação docente envolve quem nós so-
mos: nossas identidades, subjetividades e língua(s). Com base em
Weedon (1997), as autoras argumentam que a formação docente está
sempre fundamentada em intersubjetividades e em quem nos torna-
mos nesse confronto entre a maneira que a sociedade nos vê e a forma
como nos vemos. Então, a formação docente não pode ser interpretada
somente como um processo cognitivo. Se estamos falando do envolvi-
mento de nossas subjetividades, não podemos ignorar que a formação
docente diz respeito também aos nossos corpos e às nossas emoções
(ARAGÃO, 2017; MASTRELLA-DE-ANDRADE, 2011).

1. A IMPORTÂNCIA DE QUEM CONTA AS HISTÓRIAS

Discutir histórias partindo de quem e com quem as conta é, em si,


uma ação que transgride uma tradição de histórias gerais e universais
que deveriam “servir” para todas as pessoas. Conforme argumenta
Mignolo (2012), o conhecimento absoluto, universal, é aquele que
omite suas próprias raízes geopolíticas. Esse mesmo autor se refere a

266
Histórias da Formação Docente: Reflexões sobre Colonialidade Linguística

esse conhecimento como “uma das ficções que adquiriram status on-
tológico com todas as suas consequências epistemológicas, políticas e
éticas” (MIGNOLO, 2012, p. xiv). Tais consequências reverberam até
os dias de hoje em que nossa sociedade insiste em estruturar-se sobre
a base dessa matriz colonial de poder (QUIJANO, 2010), reprodu-
zindo colonialidades nas mais diferentes esferas de nossas vidas.
Contrapondo-se a esse conhecimento universal, Mignolo (2012, p.
xiv) discute a geo-corpo-política do conhecimento que se constrói a
partir de “localizações geo-históricas, imperiais/coloniais que respon-
dem à classificação patriarcal e racial de corpos e regiões”. Trata-se de
visibilizar e localizar os corpos que mobilizam e constroem conheci-
mento. A esse respeito, Mignolo nos convoca a exercitar um pensa-
mento de fronteira, já que a linha que separa modernidade/coloniali-
dade é também aquela que as mantêm unidas. Expandindo o signifi-
cado, o autor argumenta que:

[o] engajamento com o pensamento de fronteira é equivalente ao en-


gajamento com a decolonialidade. Por quê? Porque o principal impulso
do pensamento decolonial não está direcionado a “melhorar” as disci-
plinas, mas direcionado a “usar” as próprias disciplinas, objetivando e
construindo um mundo sem modernidade/colonialidade. O pensa-
mento de fronteira é acional. Que tipo de conhecimento os pensadores
decoloniais desejam? Nós queremos conhecimento que contribua para
eliminar colonialidades e melhorar as condições de vida no planeta.
(MIGNOLO, 2012, p. xviii).

Essa estrutura moderno/colonial de conhecimento, conforme ar-


gumenta Grosfoguel (2013), fundou a epistemologia das universida-
des ocidentais. O autor segue questionando o privilégio garantido aos
homens de cinco países – Itália, França, Inglaterra, Alemanha e Esta-
dos Unidos da América – cujos conhecimentos produzidos constituem
o cânone do pensamento ocidental nas Ciências Sociais e nas Huma-
nidades.
Reconhecer essa inseparabilidade de corpo e conhecimento, bem
como o privilégio garantido a alguns corpos e localidades, nos ajuda a
compreender como a universalidade constitui, de fato, o privilégio de
conhecimentos hegemônicos mantidos por uma matriz de poder colo-
nial. Pensar essa dinâmica inclui ainda, como ressalta Grosfoguel
(2013, p. 74) saber que “o outro lado desse privilégio epistêmico é a

267
Julma D. Vilarinho Pereira Borelli, Lígia C. Coelho Silva e Patrícia A. Santos Oliveira

inferioridade epistêmica” que justifica a invalidação e o apagamento


de tantos saberes que têm por base outras cosmologias. Sendo assim,
reitera o autor, “[as] estruturas de conhecimento que fundam a uni-
versidade ocidentalizada são simultaneamente epistemicamente ra-
cistas e sexistas” (p. 75).
Temos interpretado que fazer essas reflexões e tomar conheci-
mento das lógicas que ainda estão presentes nas universidades cons-
titui um passo importante para que possamos buscar formas de con-
frontá-las em nossas práxis. Nos envolver com a formação a partir
desse reconhecimento, nos inspira a buscar outras histórias que nos
ajudem e nos desafiem a repensar o que queremos promover na for-
mação, de que lado estamos e que conhecimentos (in)visibilizamos
nesse processo. Pensar essa história e as outras que trazemos neste
capítulo é um importante movimento para que possamos almejar ou-
tros caminhos, que nos possibilitem escrever novas histórias. Mas
quais são os repertórios linguísticos que mobilizamos para construir
nossas histórias? De que forma esses repertórios também estruturam
essas histórias?

2. OS REPERTÓRIOS LINGUÍSTICOS DE NOSSAS HISTÓRIAS

Certamente nossas histórias poderiam ser diferentes se estivésse-


mos falando da formação docente de forma mais ampla, ou mesmo se
estivéssemos falando de histórias de formação docente em outros cur-
sos ou em outras localidades do Brasil. No entanto, essas nossas his-
tórias são localizadas na região Centro-Oeste, foram contadas por pro-
fessoras da rede pública de ensino, mulheres, que mobilizaram sabe-
res e histórias de sua formação em uma universidade pública da re-
gião, onde fizeram o curso de Letras – Língua Inglesa.
Além de ser a área de formação que compartilhamos, enfatizamos
a formação para a docência em língua inglesa por dois fatores princi-
pais: a) o papel hegemônico exercido por essa língua em nosso país, e
no mundo; b) a realidade de muitas(os) professoras(es) licencian-
das(os) que chegam ao curso com o desafio de aprender a língua in-
glesa ao mesmo tempo em que se formam professoras(es) dessa lín-
gua. Isso faz com que a discussão dessas histórias sejam perpassadas

268
Histórias da Formação Docente: Reflexões sobre Colonialidade Linguística

por diversas questões, dentre as quais destacamos aquelas que dizem


respeito à língua e à colonialidade linguística.
Quando tratamos de colonialidade linguística, estamos nos refe-
rindo a um dos eixos da matriz de poder que “desde o mal chamado
‘descobrimento da América’” (GARCÊS, 2007, p. 220) colocou a Eu-
ropa no centro do sistema-mundo. Conforme argumenta o autor:

É mediante este mecanismo que uma particularidade se torna univer-


salidade, anulando, deslocando e segregando as outras particularida-
des. O poder econômico e político que a Europa consegue acumular, a
partir do século XVI, lhe permite impor seu habitus como norma, ideia
e projeto universal para todos os povos do mundo (p. 220, tradução
nossa).

Tal projeto, argumenta o autor, se desenvolve no plano econômico,


político, religioso, epistêmico, linguístico e em muitos outros. É im-
portante ressaltar que o período a que nos referimos como a moderni-
dade, e que vai aproximadamente do século XVI ao XIX, tem como
base um processo classificatório do que é “ontologicamente aceitável
ou rejeitável” (GARCÊS, 2007, p. 220) e tais critérios nos definiria
como mais ou menos humanos, validando exploração e atrocidades
que são reproduzidas até hoje em nossa sociedade.
Nesta seção focalizamos a colonialidade linguística como parte das
reflexões que desenvolvemos, no entanto, reconhecemos que as colo-
nialidades não operam separadamente nessa lógica colonial de poder.
Conforme argumentam Collins e Bilge (2021), esse projeto de explo-
ração intersecciona classe, gênero, raça, idade, sexualidade e a questão
linguística perpassa e constitui todo esse processo:

Estamos, pois, frente a uma colonialidade linguística que mostra duas


faces: por um lado, a modernidade subalternizou determinadas línguas
em favor de outras, mas, por outro lado, também colonizou a palavra
dos falantes dessas línguas. Quer dizer, não apenas certas línguas fo-
ram subalternizadas, mas também a própria palavra e o dizer dos fa-
lantes colonizados. A palavra de um falante de quéchua, por exemplo,
ainda que se expresse em castelhano, sempre será menos valorizada do
que a palavra de um falante de espanhol, sobretudo se é urbano,
branco, mestiço, homem, qualificado etc. [...]” (GARCÊS, 2007, p.
227).

269
Julma D. Vilarinho Pereira Borelli, Lígia C. Coelho Silva e Patrícia A. Santos Oliveira

Nessa lógica, línguas europeias como o inglês, o alemão e o francês


gozam de privilégio e são tidas como as línguas do conhecimento e li-
teraturas mundiais. Contudo, conforme argumenta Grosfoguel (2013,
p. 74), “o outro lado do privilégio epistêmico é a inferioridade epistê-
mica”, ou seja, o privilégio de algumas vozes, implica o silenciamento
de outras:

Dessa maneira se consolidou um modelo classificatório da palavra e de


sua verdade, do saber e do dizer, do conhecer e sua expressão. Língua
e conhecimento, então, foram marcados, até hoje, por duas caracterís-
ticas incontornáveis das tramas de poder: um conhecimento e umas
línguas eurocêntricos, e um conhecimento e umas línguas dispostos em
uma matriz colonial de valoração” (GARCÊS, 2007, p. 221).

É importante fazermos essa retomada para reconhecermos como


se estabeleceu a estrutura que hoje buscamos confrontar e as dificul-
dades que temos com várias questões linguísticas. Acerca das relações
que estabelecemos com/por meio da língua, Rezende (2015, p. 64) de-
senvolve o conceito de linguofobia “que é a resistência e insegurança
com relação à Língua Portuguesa, na escola, ao português brasileiro
nas interações cotidianas assimétricas e, maximamente, ao estudo de
línguas estrangeiras, sobretudo, à língua inglesa” (REZENDE, 2015, p.
64). Essas reflexões vão nos mostrando que há, sim, particularidades
em nossa forma de lidar com a língua inglesa, no entanto, esse descon-
forto de nunca nos sentirmos falantes de uma língua que é legitima-
mente nossa acontece também em nossa língua materna que, no caso
do Brasil, não deixa de ser a língua do colonizador.
Em uma entrevista, essa mesma estudiosa faz a seguinte afirma-
ção:

O nosso encontro histórico, conflituoso, violento se dá com a chegada


do português. E é uma norma. Já chega normatizado, chega normati-
zando a sua cabeça, porque a normatização linguística é uma normati-
zação de subjetividade. Não é só o que você fala ou escreve; é o que você
pensa, é o que você sente, é como você vê o mundo. O ensino da norma
padrão é: “você vai ver o mundo desse jeito, porque esse é o jeito cor-
reto de ver o mundo”; “você vai pensar assim, porque assim é a forma
correta de pensar”; e “você vai sentir isso, porque esse é o sentimento
correto. O resto é pecado. (REZENDE et al. 2020, p. 23)

270
Histórias da Formação Docente: Reflexões sobre Colonialidade Linguística

Como linguistas, professoras(es) de línguas, precisamos entender


que não é somente sobre a língua. Não é possível separar língua de
quem somos no sentido mais íntimo que possamos interpretar esse
“ser”. Conforme nos diz Anzaldúa (2009, p. 312): “[a]ssim, se você
quer mesmo me ferir, fale mal da minha língua. A identidade étnica e
a identidade linguística são unha e carne – eu sou minha língua”. Nos-
sas histórias parecem, em muitos momentos, reiterar essa inseparabi-
lidade e com elas esperamos problematizar práxis que, ao serem con-
frontadas, tornem possíveis a escrita de outras histórias.

3. ALGUNS EPISÓDIOS DESSAS HISTÓRIAS

Contando um pouco mais sobre o contexto em que nossas histórias


foram compartilhadas, no dia desse encontro nossa primeira atividade
foi assistir a uma fala da profa. Dra. Tânia Rezende, intitulada “Políti-
cas e Práticas de Interculturalidade no ensino de Língua Estrangeira”
(REZENDE, 2020). A professora inicia a sua fala retomando um acon-
tecimento de sala de aula que foi marcante em sua trajetória de estu-
dante e, em seguida, desenvolve suas problematizações sobre ensino
de línguas:

O corpo marcado pela diferença e pela ferida (colonial) quando essa


diferença dói, ela faz sangrar uma ferida. Esse corpo ele enuncia signi-
ficado, ele significa o mundo desse lugar. É desse lugar que ele significa
e esse significado vai ser construído, ele vai ser enunciado na língua
portuguesa, na aula de língua portuguesa, na de língua inglesa, de lín-
gua espanhola, seja na aula de qualquer língua porque a língua nesse
território colonizado, ainda de mentalidade escravagista, a língua é
uma questão, porque falar, diz Fanon, estou citando Fanon, “falar a
língua é assumir um mundo, é suportar o peso de uma civilização”.
Corrigir uma língua não é corrigir uma pronúncia ou uma estrutura,
mas é corrigir o mundo que está sendo significado nessa língua. Falar
uma língua é assumir um mundo, falar mais uma língua é assumir a
travessia entre os mundos. Falar uma língua é um acontecimento in-
tercultural, é plural, são mundos que se encontram.

Acreditamos que tenha sido esse “contar histórias de sala de aula”


que tenha inspirado o grupo a também retomar alguns acontecimen-
tos que foram significativos em sua formação. As histórias que foram
retomadas, no entanto, diziam respeito às suas trajetórias de aprender

271
Julma D. Vilarinho Pereira Borelli, Lígia C. Coelho Silva e Patrícia A. Santos Oliveira

a língua inglesa para se tornarem professoras e muitas delas vão foca-


lizar o desafio dessa “travessia entre os mundos”.
Alinhada a essa perspectiva de que a normatização linguística é
uma normatização de mundo, uma participante expressa o seguinte:

Essa questão de que a língua não é só o ato de você falar, quando você
se propõe a falar uma determinada língua é como se você estivesse se
despindo diante daquele público porque ali vai aparecer toda a sua tra-
jetória, o seu contexto mesmo socioeconômico, sociocultural, tem to-
dos esses atravessamentos aí (PATRÍCIA).

A argumentação de Patrícia, ao reconhecer os atravessamentos que


nos constituem, parece ecoar o que autoras como Collins e Bilge
(2021) atribuem à definição mais comum de interseccionalidade:

A interseccionalidade investiga como as relações interseccionais de po-


der influenciam as relações sociais em sociedades marcadas pela diver-
sidade, bem como as experiências individuais na vida cotidiana. Como
ferramenta analítica, a interseccionalidade considera que as categorias
de raça, classe, gênero, orientação sexual, nacionalidade, capacidade,
etnia e faixa etária – entre outras – são inter-relacionadas e moldam-
se mutuamente. A interseccionalidade é uma forma de entender e ex-
plicar a complexidade do mundo, das pessoas e das experiências hu-
manas.

Como argumenta Rezende (2020) os enunciados trazem consigo


corpos e os mundos em que tais corpos constroem seus significados.
Por isso, Patrícia é precisa ao dizer que não é somente a língua, pois
tal análise é perpassada por categorias de raça, classe, gênero entre
outras que, historicamente, têm sido a base para construção e manu-
tenção de desigualdades. A esse respeito, retomamos as palavras de
Anzaldúa (2009, p. 312): “[a]ssim, se você quer mesmo me ferir, fale
mal da minha língua. A identidade étnica e a identidade linguística são
unha e carne – eu sou minha língua”.
No desenvolvimento de nossas histórias, vemos como, de fato, as
considerações sobre a nossa língua ferem e silenciam:

A R. [fazendo referência a uma amiga] é maravilhosa naquilo que ela


faz, mas tem as mesmas inseguranças que eu tinha, que se sentia infe-
rior em relação aos outros colegas do [nome do curso de línguas], por
exemplo, porque achava que o inglês dela não era bom o suficiente. [...]

272
Histórias da Formação Docente: Reflexões sobre Colonialidade Linguística

Não é só a questão da língua, mas é toda uma trajetória que


a gente tem de vida de pensar que você não é suficiente, de
pensar que você não é capaz o suficiente” (PATRÍCIA, ênfase
adicionada).

Enfatizamos aqui a argumentação de que a insegurança linguística


é fruto de uma trajetória que faz com que as pessoas não se sintam
capazes, que convenciona também a inferioridade daquelas pessoas.
Anzaldúa (2009) refletindo sobre sua experiência como falante de lín-
guas em situação de fronteira, faz a seguinte afirmação: “[n]a infância,
nos disseram que nossa língua está errada. Ataques repetidos à nossa
língua nativa diminuem nosso sentido de self” (ANZALDÚA, 2009, p.
311). Interpretando esses acontecimentos como manutenção de colo-
nialidade linguística, sabemos que: “[n]o paradigma moderno/colo-
nial, as línguas e as práticas linguísticas das populações colonizadas
são incapazes de expressar aquelas ideias que os colonizadores imagi-
nam como integrantes do ser plenamente humano (VERONELLI,
2019, p. 151). Então, os ataques à nossa língua não apenas nos dimi-
nuem como pessoas, mas nos relegam a uma categoria de menos hu-
manos.
Então, vale lembrar que, para nós, a língua que chega é a do colo-
nizador e, como enfatiza Rezende (2020 et al.), fruto de um encontro
conflituoso e violento. Não é somente a língua inglesa que nos oprime,
ela tem, certamente, suas questões particulares, mas a nossa relação
com a língua portuguesa na escola é também conflituosa. Chegar à es-
cola para aprender uma língua com base na qual nossos repertórios
sempre foram construídos, chegar lá para perceber que não falamos a
língua que se espera, chegar lá para encontrar uma normatização de
subjetividade e mundo, talvez inicie o nosso processo de reconheci-
mento de nós mesmas(os) como falantes ilegítimos. É importante des-
tacar que essa condição é constantemente reiterada por falas como
“não sabem nem português”.
Tratando ainda de seu contexto de fronteira entre Texas e México,
Anzaldúa (2009, p. 311) acrescenta que:

Chicanas que cresceram falando o espanhol chicano internalizaram a


crença de que nós falamos um espanhol pobre, ilegítimo, uma língua
bastarda. Nós usamos nossas diferenças linguísticas umas contra as

273
Julma D. Vilarinho Pereira Borelli, Lígia C. Coelho Silva e Patrícia A. Santos Oliveira

outras porque internalizamos o modo como nossa língua tem sido


usada contra nós pela cultura dominante.

Essa é uma questão a que temos que nos atentar, pois a imersão em
um estrutura de colonialidades faz com que seja muito mais “normal”
reproduzir essas práticas do que confrontá-las. Segundo Grosfoguel
(2010, p. 459): “[...] o êxito do sistema-mundo colonial/moderno re-
side em levar os sujeitos socialmente situados no lado oprimido da di-
ferença colonial a pensar epistemicamente como aqueles que se en-
contram em posições dominantes”. Nessa lógica, não precisamos do
colonizador para exercer a imposição linguística, pois nós mesmas(os)
nos encarregamos de fazê-la:

E esses medos que a gente vai criando, eles não são da noite para o dia,
eles vão sendo construídos durante as experiências que a gente vai vi-
vendo e aí eu falando da minha experiência na universidade, por exem-
plo, tem falas que eu ouvi na universidade que até hoje elas têm eco
dentro de mim. Eu uma vez que [...] a gente estava na casa de uma co-
lega, numa festinha, e aí estava no karaokê, e quem me conhece sabe
que eu sou a louca do karaokê, eu faço aqui em casa direto, e aí eu me
atrevi a cantar uma música em inglês naquela época lá no karaokê e aí
a colega ficou tirando sarro de mim falando que eu estava cantando na
língua dos anjos. Eu lembro disso até hoje, porque, assim, é como se
não fosse compreensível o meu inglês, entendeu? [a profa. enche os
olhos de lágrimas]. Essas coisas... eu me emociono, né? Tô grávida! [ri-
sos]. Essas coisas, elas marcam a gente (PATRÍCIA).

Esse relato de Patrícia nos remete à afirmação de Hooks (1994, p.


168) que, em seu texto Language, nos diz o seguinte: “[...] não é a lín-
gua inglesa que me fere, mas o que os opressores fazem com ela, como
eles a moldam para se tornar um território que limita e define, como
eles a tornam uma arma que pode envergonhar, humilhar e colonizar”.
A humilhação sofrida por Patrícia foi causada por uma colega que,
possivelmente, avaliava seu conhecimento linguístico como superior e
lançou mão disso para oprimir, silenciar, ou seja, para reproduzir prá-
ticas a que ela mesma poderia estar sujeita como falante não nativa da
língua.
Essa mesma professora compartilha outro episódio em que pode-
mos observar como os sentidos extrapolam as questões linguísticas:

274
Histórias da Formação Docente: Reflexões sobre Colonialidade Linguística

Outro dia na aula também o professor estava dando aula de inglês e eu


não entendia nada do que estava dizendo e eu perguntei para uma co-
lega: “Nossa, o que ele está dizendo, eu não consigo entender”. Aí a co-
lega falou assim: “Ai, você tem preguiça de pensar”! Aquilo foi tão mar-
cante pra mim! (PATRÍCIA)

Essa passagem parece evidenciar o quanto não há separação entre


língua e corpo. Não compreender um determinado repertório faz com
que Patrícia seja lida como alguém que tem preguiça de pensar, ou
seja, como alguém que negligencia a faculdade que nos distingue como
humanos. Conforme argumenta Veronelli (2019) ao discutir coloniali-
dade linguística, a modernidade colonial se funda a partir da distinção
entre humano e não-humano.
Acompanhando os relatos de Patrícia, outra professora aqui iden-
tificada como Maria Antônia reitera o que a colega conta e, mais uma
vez, entrelaça essas vivências às interseccionalidades que elas reve-
lam:

Ouvindo aí as conversas, é muita informação e é muito importante


mesmo pensar nessas coisas porque acho que cada uma de nós já teve
essa experiência, né Julma? Eu, então, na faculdade, né? [...] nós que
viemos da classe trabalhadora, neeeegra, mulher, pobre, a gente sabe
as grandes barreiras que ainda precisam ser quebradas dentro da uni-
versidade. A universidade pública era vista como espaço para quem ti-
nha poder, quem tinha dinheiro, mais conhecimento, né? Até porque
quem conseguia vaga nas universidades federais era quem se destacava
bem nos vestibulares, né? E para nós que viemos da classe trabalha-
dora, pobre, normalmente a gente não teve um bom preparo no ensino
fundamental e médio por várias questões (MARIA ANTÔNIA).

Maria Antônia problematiza não apenas as colonialidades que


mantêm desigualdades com base em construtos como raça, classe, gê-
nero, como temos discutido, mas amplia suas reflexões para manuten-
ção histórica dessa estrutura pelas universidades ocidentalizadas em
que, como ressalta Grosfoguel (2013, p. 75):

os conhecimentos produzidos por outras epistemologias, cosmologias,


e visões de mundo que surgem de outras regiões do mundo com dife-
rentes dimensões de tempo/espaço e caracterizados por diferentes ge-
opolíticas e corpo-políticas de conhecimento são considerados “inferi-
ores” em relação ao conhecimento “superior” produzido pelos poucos

275
Julma D. Vilarinho Pereira Borelli, Lígia C. Coelho Silva e Patrícia A. Santos Oliveira

homens ocidentais dos cinco países que compõem o cânone do pensa-


mento nas Humanidades e Ciências Sociais.

Essa inferiorização dos diversos conhecimentos que chegam à uni-


versidade precisa ser problematizada porque ela não apenas impõe um
único tipo de saber, mas reforça o que é válido naquele espaço ao
mesmo tempo em que define quem é adequado a ele. Patrícia se refere
a esse processo de exclusão como uma violência:

É muita coisa que a gente escuta durante a graduação, muita mesmo,


eu acho que é muito bom esse grupo porque você [se referindo à pri-
meira autora do capítulo, que atua na universidade] aí nesse curso e
para você ter essa sensibilidade assim de ver o quanto a gente que vem
da classe trabalhadora, que a gente é pobre mesmo e não tem essas
experiências, o quanto esse curso pode ser violento. Eu falo isso sem
medo de errar. O Curso de Letras-Inglês é muito violento, com muitos
estudantes, não é à toa que tem um índice grande de desistência.

A violência da invisibilização de corpos e saberes é também discu-


tida por Santos (2010, p. 31) que afirma que “[o] pensamento moderno
ocidental é um pensamento abissal”. Segundo esse pensamento, a re-
alidade divide-se em dois lados de uma linha que separa abissalmente
o visível do invisibilizado, o válido do invalidado. Segundo o autor, um
importante traço desse pensamento é a impossibilidade de coexistên-
cia dos dois lados da linha. Nessa separação radical, a existência de um
lado é garantida pelo apagamento do outro e essa

[i]nexistência significa não existir sob qualquer forma de ser relevante


ou compreensível. Tudo aquilo que é produzido como inexistente é ex-
cluído de forma radical porque permanece exterior ao universo que a
própria concepção aceite de inclusão considera como sendo o Outro
(SANTOS, 2010, p. 32).

Isso nos ajuda a pensar na violência, denunciada por Kilomba


(2019) e reiterada por Patrícia, exercida pela falta de representação
que alguns corpos encontram em espaços acadêmicos e que é constru-
ída pela intersecção de raça, classe, gênero, língua e saberes que são
privilegiados nesses contextos.
Fazer essa reflexão em um grupo de estudos em que uma das par-
ticipantes é professora na universidade é, sem dúvida, uma forma de
possibilitar o confronto do que estamos promovendo em nossos cursos

276
Histórias da Formação Docente: Reflexões sobre Colonialidade Linguística

de formação de professoras(es). Ao mesmo tempo, esse compartilha-


mento entre docentes da escola é uma forma de reconhecermos que
diferentes espaços educacionais podem reproduzir tais violências.
Atuando nas escolas, essas mesmas docentes têm o desafio de olhar
criticamente para o tipo de educação que buscam propiciar e refletir
sobre as colonialidades que são mantidas nesse espaço.
Expandindo essas reflexões para o contexto escolar, as professoras
abordam um pouco do que sentem em seus ambientes de trabalho:

Enquanto eu estava trabalhando na escola de idiomas, levou muito


tempo para eu me sentir à vontade porque no intervalo da escola eles
tinham o hábito de conversar em inglês. E na faculdade eu me sentia à
vontade para falar. E os próprios colegas acabam que, se você não fala
com propriedade, com segurança, eles começam a te olhar assim “poxa
fulano não fala… fulano tem medo'' (LÍGIA).

Isso que a Lígia está dizendo, e aí ela fala da cobrança, eu tenho uma
frustração muito grande e esses dias eu até comentei assim que eu
chego até a sentir arrependimento de ter feito Letras-Inglês porque eu
sinto vergonha, por exemplo, de falar que eu sou professora da Rede
Estadual, professora concursada que ainda tem mais esse peso, e não
me sentir uma pessoa fluente em inglês. Às vezes as pessoas perguntam
assim: “ah mas como fala tal coisa em inglês?” e eu não sei e eu fico
morrendo de vergonha porque parece assim que eu sou uma fraude, é
a síndrome da impostora (PATRÍCIA).

Nas histórias de Lígia e Patrícia encontramos as controvérsias que


são geradas pela linguofobia discutida por Rezende (2015), ou seja,
por aquele sentimento de insegurança e resistência para mobilizar
aqueles repertórios linguísticos que nunca parecemos ser boas/bons o
suficiente para fazê-lo. Esse sentimento gera o silenciamento e o pró-
prio questionamento que, mais uma vez, se refere àquele corpo: “eu
sou uma fraude”.
Por fim, Lígia discute as cobranças que nós mesmas podemos re-
produzir umas com as outras:

A gente é cobrado o tempo inteiro para ter esse conhecimento, para ter
esse sotaque, o vocabulário e por mais que você esteja falando para
pessoas que são estudiosas e conhecem toda essa teoria, mas elas vão
esperar isso de você. E se a gente tiver que participar deste grupo fa-
zendo toda fala em inglês, a gente vai ficar constrangido (LÍGIA).

277
Julma D. Vilarinho Pereira Borelli, Lígia C. Coelho Silva e Patrícia A. Santos Oliveira

É importante Lígia nos desestabilizar afirmando que nós também


podemos reproduzir essas opressões, ainda que o grupo tenha por
princípio a busca pela desierarquização das relações. Como professo-
ras que têm buscado desenvolver cada vez mais essa consciência crí-
tica sobre a práxis, temos nos engajado a construir projetos que con-
frontem colonialidades; no entanto, nos reconhecemos imersas nessa
estrutura e isso torna o confronto um desafio. Ser um desafio não nos
desanima, pelo contrário, nos impele a buscar maneiras de começar
todo esse processo olhando/sentindo/pensando nós mesmas e reco-
nhecendo que o caminho é longo, mas escolhemos estar nele.

CENAS QUE PODEM NOS LEVAR A OUTRAS HISTÓRIAS

Neste capítulo, discutimos algumas histórias da formação docente


contadas por professoras de inglês, em um grupo de estudos que pre-
tende se constituir como um espaço de fala e escuta cuidadosa (SIL-
VESTRE, 2017) e de construção de saberes. Um importante objetivo
dessa discussão é compartilhar reflexões que possibilitem a consciên-
cia crítica sobre os valores que podem ser reproduzidos e reforçados
em nossos processos de formação docente e em nossas práxis em dife-
rentes contextos educacionais, sejam universidades ou escolas, ao
mesmo tempo que nos permitam reconhecer e confrontar a estrutura
de colonialidades em que estamos imersas/os.
A constituição do grupo de estudos (GEPLIMT) tem significado
para nós uma alternativa menos hierarquizada de formação:

Eu acredito que esse encontro é bastante rico para nós enquanto pro-
fissionais da educação e enquanto pessoa. A gente saber do que o outro
está passando, o outro passou, vai nos ajudar a refletir melhor sobre
quem somos, para onde vamos (MARIA ANTÔNIA).

Acerca dos repertórios que mobilizamos nesses encontros, temos


usado português e inglês e nos fortalecido nesse processo de nos cons-
tituir linguisticamente de acordo com o que for, em certo momento,
mais confortável, já que somos todas bilíngues.
Como podemos imaginar, muitas histórias são contadas e ouvidas
em um grupo de estudos de professoras(es) e as que trouxemos aqui

278
Histórias da Formação Docente: Reflexões sobre Colonialidade Linguística

são apenas algumas delas. Talvez nem todas as histórias sejam difíceis,
nem todas tenham episódios que nos ajudem a confrontar o que faze-
mos. Pode ser também que muitas histórias tenham esses episódios,
mas que não sejam reconhecidos porque se tornam parte de tantas in-
justiças que são naturalizadas em nossa sociedade. Não é nossa pre-
tensão dizer que as diferentes experiências de formação docente se-
jam, necessariamente, da forma que essas histórias nos contam, no
entanto, enquanto tais histórias forem vividas, precisaremos pensar
sobre elas. Pensar, aqui, no sentido de confrontá-las e de atuarmos em
prol da promoção de outras histórias e de formações que sejam vividas
em outras bases.
Como temos argumentado, pensar essas outras formas parte, mui-
tas vezes, do reconhecimento e da problematização do que está esta-
belecido. A esse respeito, a primeira autora deste texto – mulher,
branca, professora da universidade – compartilha a sua surpresa em
reconhecer, em um momento em que todas/os estavam bastante emo-
cionadas/os e envolvidas/os nas histórias, que naquele dia participa-
ram do encontro oito docentes – um professor, três professoras bran-
cas e quatro professoras negras e dentre as últimas estão Lígia, Patrí-
cia (autoras deste texto) e Maria Antônia.
As histórias que problematizamos aqui não são apenas histórias de
mulheres na formação docente, são também, como afirmou Maria An-
tônia, histórias de mulheres de origem pobre, trabalhadoras, negras e
que chegaram à universidade. Diante disso questionamos: de que
forma queremos estar nessas histórias? A favor de que projeto de so-
ciedade atuamos? Aqui no GEPLIMT temos assumido a responsabili-
dade de atuar por outras histórias e para que possamos ressignificar
as palavras de Anzaldúa (2009, p. 312) da forma que fizer mais sentido
para cada uma de nós: “[e]u não vou mais sentir vergonha de existir.
Eu vou ter minha voz: indígena, espanhola, branca. Eu vou ter minha
língua de serpente – minha voz de mulher, minha voz sexual, minha
voz de poeta. Eu vou superar a tradição de silêncio”.

279
Julma D. Vilarinho Pereira Borelli, Lígia C. Coelho Silva e Patrícia A. Santos Oliveira

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cação linguística: conversa com Tânia Rezende. Gláuks – Re-
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Julma D. Vilarinho Pereira Borelli, Lígia C. Coelho Silva e Patrícia A. Santos Oliveira

SILVESTRE, Viviane P. V. Colaboração e crítica na formação de


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282
Reconhecimento Lexical em
Língua Inglesa de Alunos de uma
Escola Pública Goiana
Stênio Magalhães Silva
Eduardo Batista da Silva

A aprendizagem de uma língua estrangeira é um direito garantido


nos âmbitos federal e estadual, a saber: Lei de Diretrizes e Bases da
Educação (LDB), Lei n. 9.394/96 (BRASIL, 1996) e Documento Cur-
ricular para Goiás (DC-GO) (GOIÁS, 2019). Apesar disso, o rendi-
mento dos brasileiros tem sido insatisfatório, conforme demonstrado
pelo nível de proficiência. Sabe-se que, no Brasil, apenas 5% da popu-
lação sabe falar inglês, e desses, apenas 1% apresenta algum grau de
fluência (BRITISH COUNCIL, 2015).
A partir de uma visão quantitativa, o domínio do vocabulário fun-
damental na língua inglesa é crucial para as habilidades comunicati-
vas, como a atividade de leitura, por exemplo.
O presente trabalho diferencia-se de outros trabalhos que lidam
com vocabulário por três motivos principais: por se tratar de uma es-
cola pública com alunos falantes de língua portuguesa; por observar
os índices de reconhecimentos em diferentes turmas, dos anos finais
do Ensino Fundamental ao Ensino Médio e por empreender uma aná-
lise do conteúdo presente em um documento oficial no que se refere
ao léxico em língua inglesa.
O presente trabalho baseia-se nos estudos que envolvem a Lexico-
logia e a Linguística de Córpus (BERBER SARDINHA, 2004, 2012;
BIDERMAN, 1998a, 1998b; NATION, 2022).

283
Stênio Magalhães Silva e Eduardo Batista da Silva

Nosso objetivo principal é problematizar o ensino de vocabulário


em uma perspectiva quantitativa. Os objetivos específicos são os se-
guintes: 1) avaliar o nível de reconhecimento lexical de alunos de uma
escola pública da cidade de Caldas Novas-GO; 2) observar diferenças
entre as turmas analisadas; 3) destacar o vocabulário que apresenta
dificuldade aos alunos. Aplicamos um teste de nível vocabular, The
Updated Vocabulary Levels Test (WEBB; SASAO; BALLANCE, 2017),
que averigua o conhecimento das palavras mais frequentes da língua
inglesa e 4) analisar as expectativas do Documento Curricular para
Goiás (GOIÁS, 2019) quanto ao tratamento a ser dispensado ao léxico
da língua inglesa.
Optamos por incluir uma discussão pautada no referido docu-
mento porque pretendemos realizar uma comparação entre as exigên-
cias do documento e o nível lexical do alunado, não como uma relação
de causa-consequência, mas, sim, em uma perspectiva analítica
quanto à preocupação com questões lexicais.
Aplicamos um teste de nível vocabular, The Updated Vocabulary
Levels Test (WEBB; SASAO; BALLANCE, 2017), em formato múltipla
escolha. Participaram da pesquisa 466 alunos, divididos em 7 turmas,
do 6º ao 9º anos do Ensino Fundamental e 9 turmas do 1º ao 3º anos
do Ensino Médio.
Frente ao exposto, nosso público-alvo é composto por professores
em pré-serviço e professores em serviço.

2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Nessa seção, apresentaremos teorias que embasarão as reflexões.

2.1 Lexicologia

A Lexicologia como área da Linguística “fundamenta-se no estudo


científico do conjunto de palavras de uma determinada língua sob di-
versos aspectos” (GUERRA; ANDRADE, 2012, p. 230-231), com foco
na palavra e em sua constituição dentro de uma língua. É na palavra
que se encontra o sentido e o conhecimento acumulado de uma cul-
tura. Trata-se de uma ciência que aborda o léxico, o conjunto lexical

284
Reconhecimento Lexical em Língua Inglesa de Alunos de uma Escola Pública Goiana

de uma língua, procurando estabelecer a origem, a forma e o signifi-


cado das palavras, por exemplo.
A palavra é importante porque é por meio dela que nos é possível
estruturar frases, orações, períodos e até o próprio pensamento hu-
mano. Guerra e Andrade (2012, p. 231) atribuem à palavra a caracte-
rística de ser um elemento fundante na língua, tão grande é a sua im-
portância. Desde que o homem proferiu o seu primeiro dizer, refe-
rindo-se a algum objeto concreto, e isso foi absorvido em seu cérebro
como um signo linguístico, a humanidade passou a fazer relações en-
tre o mundo exterior e o mundo interior. “O valor de um signo resulta
da presença simultânea dos outros signos dentro do sistema e aos
quais ele se contrapõe, formando uma rede semântica” (BIDERMAN,
1998b, p. 112). Existe entre as palavras uma mútua dependência, pois
uma se ancora na outra para distinguir-se em relação ao seu signifi-
cado. Analisar o léxico é, antes de tudo, conhecer a estrutura social e
cultural de uma língua, dado que o léxico de uma língua é uma forma
de analisar o mundo ao redor (BIDERMAN, 1998a, p. 92), refletindo
uma cosmovisão intrínseca àquela cultura.

O léxico é o lugar da estocagem da significação e dos conteúdos signi-


ficantes da linguagem humana. [...] o léxico está associado ao conheci-
mento e o processo de nomeação em qualquer língua resulta de uma
operação perceptiva e cognitiva. Assim sendo, no aparato lingüístico
da memória humana, o léxico é o lugar do conhecimento sob o rótulo
sintético de palavras – os signos lingüísticos. Eis por que precisamos
começar a trabalhar com esta imensa galáxia de signos que devemos
conhecer melhor. (BIDERMAN, 1998a. p. 177).

O estudo voltado para o léxico de língua inglesa pode problemati-


zar a ocorrência de certos vocábulos, proporcionando uma conscienti-
zação acerca da compreensão e produção linguísticas.
Segundo Biderman, “por enorme que seja o léxico de uma língua, é
reduzido o repertório desse acervo efetivamente utilizado pelos falan-
tes do idioma. Até mesmo na língua escrita, que é a variante da língua
que se serve de um vocabulário mais rico e mais variado” (BIDER-
MAN, 1998a, p. 177). Dentro desse repertório reduzido, encontram-se
aquelas de alta frequência, relevantes para as necessidades de comu-
nicação. A autora acrescenta que,

285
Stênio Magalhães Silva e Eduardo Batista da Silva

dada a enorme extensão do léxico, uma seleção lexical criteriosa e ba-


seada em princípios lexicoestatísticos constituía a melhor alternativa
para estabelecer os index verborum das palavras mais frequentes e
usuais dentre as centenas de milhares que constituem o léxico de uma
língua de civilização moderna. (BIDERMAN, 1998a, p. 177-178).

Como recorte dessa pesquisa, faz-se necessário avaliar e destacar a


importância do vocabulário como aquisição no aprendizado de uma
segunda língua para alunos de escola pública. “Um importante pro-
blema relacionado ao léxico é o do aprendizado [...] do vocabulário de
uma segunda língua. Infelizmente, a aquisição do vocabulário tem
sido negligenciada pela pesquisa linguística” (BIDERMAN, 1996, p.
28). Define-se como vocabulário o acervo de palavras de uma língua
que um sujeito utiliza para se comunicar, ou seja, quanto maior o vo-
cabulário de um indivíduo, de mais palavras ele se serve em seus dis-
cursos. Surge daí um problema: a quantidade de palavras existentes
em uma língua é demasiadamente maior do que a quantidade de pa-
lavras que o indivíduo pode armazenar em sua memória e ativamente
utilizá-las. Logo, conclui-se que o indivíduo se servirá das palavras
que, dentro de um determinado contexto, lhe serão mais úteis, e que
esse juízo de valor se deve à frequência dessas palavras, visto que “é na
experiência cotidiana, em meio a realidade sociocultural, que o indiví-
duo armazena na memória novas palavras em seu acervo lexical indi-
vidual. Num processo contínuo que perpassa a vida do indivíduo.”
(GUERRA; ANDRADE, 2012, p. 234).

2.2 Linguística de Córpus

A Linguística de Córpus é uma área da Linguística que analisa con-


juntos de dados linguísticos textuais a fim de encontrar (ir)regulari-
dade neles contida, servindo como base de análise. Segundo Berber
Sardinha (2000, p. 325), a Linguística de Córpus ocupa-se da coleta e
exploração de corpora, ou conjuntos de dados linguísticos textuais que
foram coletados criteriosamente com o propósito de servirem para a
pesquisa de uma língua ou variedade linguística.
Explorando textos escritos e orais em uma determinada língua, a
Linguística de Córpus permite a descrição da ocorrência de palavras e

286
Reconhecimento Lexical em Língua Inglesa de Alunos de uma Escola Pública Goiana

sua frequência em textos diversos, sendo largamente empregada na


elaboração de dicionários e gramáticas. A principal vantagem desse
tipo de estudo é apoiar-se em exemplos de uso. Nesse sentido, as in-
formações colhidas apresentam informações confiáveis e condizentes
com a realidade, pois partem do agente produtor dos discursos, ou
seja, do agente real. “Não há nenhum corpus que contenha toda a in-
formação que eu quero explorar, mas mesmo assim todo corpus me
ensinou coisas sobre a linguagem que eu não teria descoberto de ne-
nhum outro modo.” (FILLMORE apud BERBER SARDINHA, 2000,
p. 363).
É importante salientar a importância do uso de computadores
nessa área, pois, sem eles, seria impossível analisar bancos de dados
com milhões de textos preservando a precisão. Segundo Biber: “O ob-
jetivo das investigações baseadas em corpus não é simplesmente rela-
tar descobertas quantitativas, mas explorar a importância dessas des-
cobertas para aprender sobre os padrões de uso da linguagem. ” (BI-
BER, CONRAD, REPPEN, 2014, p. 5)1 A Linguística de Córpus não é
uma espécie de “contabilidade linguística”, pois ela não se preocupa
somente em atestar fatos linguísticos, como a recorrência de vocábu-
los ou a preferência por próclise dos falantes de língua portuguesa do
Brasil, por exemplo, mas em explicar porque a linguagem é utilizada
desse modo, exibindo esses padrões e fenômenos percebidos através
das análises de corpus.
Somente nos últimos anos é a LC vem recebendo a devida atenção
da comunidade de pesquisa. Durante muitos anos, “o foco da teoria
linguística estava mudando do estudo de dados empíricos para o es-
tudo dos processos mentais que juntos são freqüentemente chamados
de faculdades da linguagem.” (SINCLAIR, 2004, p. 10). Assim, rece-
bendo a atenção dos pesquisadores, a relação entre as teorias da lin-
guagem e o ensino de línguas vem sendo pesquisado pela Linguística
Aplicada, nessa articulação entre teoria e prática.
O mote da discussão reside na divergência de interpretação da
combinação entre dados e teorias, exigindo uma categorização. A idéia

1 The goal of corpus-based investigations is not simply to report quantitative


findings, but to explore the importance of these findings for learning about
the patterns of language use.

287
Stênio Magalhães Silva e Eduardo Batista da Silva

de que dados e teoria se tornam, de alguma forma codependentes é a


base da Linguística de Córpus. Assim, "nada além de dados oriundos
de Corpus pode ser usado como fonte de conhecimento sobre a natu-
reza da linguagem". (McENERY; HARDIE, 2012, p. 148, tradução
nossa)2
O valor da Linguística de Córpus reside no fato de ser empírica e
mostrar o que de fato ocorre na língua, sem influências subjetivas, não
refletindo o que o pesquisador já sabe sobre a língua, mas mostrando
a ele o uso em ocorrência natural. “Um corpus é uma coisa notável,
não tanto por ser uma coleção de texto da língua, mas por causa das
propriedades que adquire se for bem projetado e cuidadosamente
construído.” (SINCLAIR, 2005, p. 1, tradução nossa). 3
Aliada ao ensino, a Linguística de Corpus pode contribuir para um
trabalho focado nos elementos linguísticos mais recorrentes da língua,
o que, por si só, já possui um grande valor. Isso porque ela não se
aplica somente às palavras, mas, também, a expressões e frases, tanto
na escrita quanto na fala. Dessa maneira, o professor pode focar seu
ensino naquilo que realmente é mais importante, além de poder, atra-
vés da Linguística de Corpus, auferir com maior precisão em que nível
de desenvolvimento linguístico seu aluno se encontra. Isso é possível,
pois, com um córpus bem definido, tem-se “[…] descrições aprimora-
das de variedades e recursos de idiomas que podem informar aspectos
do idioma a ser ensinado” (COBB; BOULTON, 2015, p. 478, tradução
nossa).4
A principal vantagem do uso da Linguística de Corpus nesse traba-
lho reside na criação de um córpus para uma análise posterior do nível
vocabular dos alunos de uma escola pública. Mas não somente isso,
pois, uma vez que é sabido o nível de conhecimento vocabular dos alu-
nos, a Linguística de Córpus pode fortemente auxiliar o professor a
focar no que os alunos realmente mais precisam naquele momento,

2 nothing but corpus data can be used as a source of knowledge about the
nature of language.
3 A corpus is a remarkable thing, not so much because it is a collection of

language text, but because of the properties that it acquires if it is well-desig-


ned and carefully-constructed.
4 improved descriptions of language varieties and features which can inform

aspects of the language to be taught.

288
Reconhecimento Lexical em Língua Inglesa de Alunos de uma Escola Pública Goiana

pois “A frequência da forma e do significado é o preditor mais confiá-


vel do que pode ser mais utilmente ensinado em diferentes pontos do
processo de aprendizagem” (COBB; BOULTON, 2015, p. 479, tradução
nossa).5
Desse modo, a Linguística de Corpus não é utilizada aqui como
uma teoria propriamente, apesar de reconhecermos seu valor e sua
potencialidade; mas sim como uma abordagem, utilizada nessa pes-
quisa para auxiliar na coleta, tabulação e análise dos dados linguísti-
cos, servindo aos propósitos dos estudos aqui empreendidos.

3 MATERIAL E MÉTODO

Apresentamos nessa seção o teste e o DC-GO. Para a seção de mé-


todo, elencamos o passo a passo da pesquisa. Participaram da pes-
quisa 466 alunos divididos em sete turmas, do 6º aos 9º anos do En-
sino Fundamental e nove turmas do 1º aos 3º anos do Ensino Médio,
tanto do turno matutino quanto do turno vespertino.

3.1 Material

Foram utilizados como materiais da pesquisa um teste (ver 3.1.1) e


um documento oficial de ensino (ver 3.1.2), o DC-GO.

3.1.1 O teste

A fim de medir o nível de conhecimento lexical na prática foi utili-


zado um teste de vocabulário em uma escola pública de Goiás que
fosse capaz de mensurar a quantidade de palavras dominadas. O teste
consiste em uma série de dicas e alternativas que os alunos devem ser
capazes de compreender e marcar a alternativa que apresenta o sinô-
nimo ou a resposta esperada. Uma versão maior do teste pode ser con-
sultada no Anexo 1. Segue abaixo um exemplo de como o teste funci-
ona:

5frequency of form and meaning is the most reliable predictor of what can
be most usefully taught at diferente points in the learning process.

289
Stênio Magalhães Silva e Eduardo Batista da Silva

Figura 1 – Primeiras 3 palavras do teste para a faixa K1

Fonte: Webb, Sasao e Ballance (2017).

O teste é dividido em níveis de dificuldade graduais que testam as


5.000 palavras mais frequentes da língua inglesa. O teste foi feito
tendo como base a lista de palavras BNC/COCA 6. Nessa pesquisa, de-
cidimos utilizar o teste somente até o nível das duas mil palavras, por
julgarmos ser um recorte suficiente para os fins aqui almejados.
O propósito do teste é mensurar o conhecimento vocabular na área
escrita da língua, não servindo como base de análise para habilidades
como a produção oral ou compreensão auditiva, por exemplo. É salu-
tar compreender que o teste não avalia o conhecimento vocabular ne-
cessário para desenvolver a fala, bem como não avalia a capacidade de
leitura em língua inglesa, visto que o conhecimento de vocabulário
compõe apenas uma parte da habilidade de leitura. O teste mede, por-
tanto, o conhecimento vocabular descontextualizado de palavras em
sua forma escrita da língua. Dessa maneira, o exame serve como um
indicativo de reconhecimento de itens lexicais, não de fluência.
Apesar de, em cada nível, o teste possuir apenas trinta questões a
serem marcadas, cada questão corresponde, no final, a 34 famílias de
palavras. Para elaborar as questões, foram utilizadas listas de frequên-
cia baseadas no British National Corpus.
Para compor os enunciados dos níveis K1 e K2, que servem como
dicas da palavra a ser marcada, foram utilizadas somente palavras que

6 As listas de frequências BNC/COCA Word foram criadas por Paul Nation e


colegas em 2012. As listas BNC/COCA derivam de uma harmonização das lis-
tas BNC originais com um novo conjunto de listas dos EUA com base em Mark
Davies (Brigham Young University) com cerca de 450 milhões de palavras do
Corpus of Comptemporary American English (2012).

290
Reconhecimento Lexical em Língua Inglesa de Alunos de uma Escola Pública Goiana

integram as quinhentas mais frequentes da língua. As pistas funcio-


nam da seguinte forma: 1) indicam uma parte do discurso em que a
palavra é usada, 2) limitam o significado da palavra que pode ter um
homógrafo ou um sentido muito diferente e 3) sugerem levemente o
significado, apresentando um exemplo de uso. Dessa forma, a pessoa
que realiza o teste é capaz de compreender qual palavra se relaciona
com a pista sem a necessidade de um contexto maior.
Para descobrir se o resultado obtido no exame corresponde a algum
nível satisfatório de uso da língua, basta observar se o nível dominado
corresponde a 98% das palavras que compõem diferentes textos. Por
exemplo:

Quadro 01 – Repertório vocabular necessário para compreender 98% dos se-


guintes tipos de texto:
Tipo Quantitativo
Romances (lite- 9.000 famílias de palavras mais frequentes
ratura)
Jornais e revistas 8.000 famílias de palavras mais frequentes
Filmes infantis 6.000 famílias de palavras mais frequentes
Inglês falado 7,000 famílias de palavras mais frequentes
Fonte: Adaptado de Nation (2022).

Observa-se que em gêneros textuais mais complexos, em que o ní-


vel da linguagem é mais elevado, exige-se um nível vocabular superior
do que aquele necessário para compreensão de textos mais simples.
Para compreender 98% da maioria dos filmes infantis em inglês, é ne-
cessário reconhecer as 6.000 palavras mais frequentes da língua in-
glesa, já para a compreensão de textos literários, é necessário ter do-
mínio das 9.000 palavras mais frequentes da língua.
Do mesmo modo, para descobrir que ações os aprendizes devem
tomar para aumentar seu vocabulário, é necessário saber em que nível
de conhecimento vocabular baseado na frequência das palavras eles já
têm um domínio satisfatório para poder progredir com os estudos.

As 1.000 famílias de palavras mais frequentes com substantivos pró-


prios e interjeições contam 86,52% dos filmes, 85,11% dos programas
de televisão, 83,25% dos textos escritos para crianças, 91.06% dos lei-
tores classificados, 87.54% do inglês acadêmico falado [...] porque as

291
Stênio Magalhães Silva e Eduardo Batista da Silva

1.000 famílias de palavras mais frequentes representam de longe a


maior proporção do vocabulário em inglês, medir o nível de frequência
apenas nesse nível tem um grande valor. (WEBB; SASAO; BALLANCE,
2017, p. 54, tradução nossa).7

De modo geral, as informações reveladas pelo teste dependem for-


temente da certeza com a qual as questões são respondidas, pois, se o
respondente pular questões, marcar aleatoriamente ou fizer o teste en-
quanto realiza outra atividade, o resultado será afetado.

3.1.2 O documento

O Documento Curricular para Goiás, lançado em agosto de 2019,


busca concretizar as metas estabelecidas pela Base Nacional Comum
Curricular, saindo na frente de outros estados na elaboração de um
currículo embasado nos novos parâmetros. Sobre língua inglesa, o Do-
cumento aborda desde as séries iniciais até o último ano do Ensino
Médio, trazendo eixos temáticos e práticas de análise linguística a se-
rem trabalhados pelos professores. A Figura 2 apresenta o conteúdo
proposto para o 7º ano.
No contexto goiano, o DC-GO busca ser uma base para a prática
pedagógica de professores de língua inglesa, propiciando aos estudan-
tes a construção de repertórios linguísticos para poderem apropriar-
se da língua inglesa num contexto de interação social e, por meio dela,
agir no mundo. Para além disso, o documento também objetiva tradu-
zir as necessidades e expectativas dos profissionais da educação para
garantir os conhecimentos essenciais aos estudantes goianos. Assim,
a língua inglesa deve ser usada em vários ramos da vida social, tais
como comércio, tecnologia, pesquisa, turismo, cinema, música, dentre
outros.

7 The most frequent 1000 word families together with proper nouns and in-
terjections accounts for 86.52% of movies […], 85.11% of television programs
[…], 83.25% of text written for children […], 91.06 of graded readers […],
87.54% of academic spoken English [...] because the most frequent 1000
word families account for by far the largest proportion of English vocabu-
lary, measuring this word frequency level on its own has great value.

292
Reconhecimento Lexical em Língua Inglesa de Alunos de uma Escola Pública Goiana

Frente ao exposto, apesar do relevante papel desempenhado pelo


léxico na aula de língua inglesa, o DC-GO propõe um afastamento do
texto escrito e do ensino do léxico, como se pode ler nesse trecho: “[...]
o foco da sala de aula deixa de ser a estrutura, ou o léxico da língua, e
passa a ser a prática de recursos linguísticos que possam permitir a
construção de repertórios linguísticos sobre diferentes temas de rele-
vância social” (GOIÁS, 2019, p. 278).

Figura 2 – Conteúdo de língua inglesa do DC-GO para o 7º ano

Fonte: Goiás (2019, p. 302).

Podemos inferir, portanto, que o DC-GO, no que tange às questões


voltadas a uma abordagem lexicológica da língua inglesa, objetiva pro-
mover práticas sociais de interação que privilegiem a oralidade em de-
trimento à escrita, uma vez que se propõe a promover a construção de
repertórios a partir das experiências trazidas pelos alunos.

3.2 Método

Estruturamos os procedimentos metodológicos em quatro partes:


planejamento, execução, correção e análise dos dados.

293
Stênio Magalhães Silva e Eduardo Batista da Silva

Quanto do planejamento surgiram algumas questões que precisa-


vam ser definidas, como: até que nível de palavras o teste deve ser apli-
cado? Quantos alunos devem participar do teste para formar um cor-
pus robusto? Quando o teste deve ser aplicado na escola? Qual o tempo
para a realização do teste? Que instruções os alunos devem receber
para marcar as questões?
A fase de execução contemplou a aplicação do teste. Escolhemos os
dois primeiros níveis K1 e K2. O tempo para a realização do teste foi
de 50 minutos, que é o tempo de duração de uma aula normal no es-
tado de Goiás. É interessante destacar que o tempo de realização do
teste é muito importante. Embora a recomendação seja de que o aluno
tenha tempo livre para a realização do teste completo, tais critérios
atrapalhariam a rotina escolar, impossibilitando a realização do teste.
Inclui-se aí outra razão pela escolha das 2.000 palavras mais frequen-
tes apenas: os 50 minutos da aula cedida pela escola. Levando-se em
conta que o teste aplicado contemplava apenas os dois primeiros ní-
veis de palavras, uma aula seria mais do que suficiente para marcar
todas as questões.
O aluno deve, portanto, ler o enunciado, compreender sua mensa-
gem e marcar a palavra a qual a dica se refere.
Todos os discentes que realizaram o teste foram avisados do cará-
ter da pesquisa e informados sobre como o teste funcionaria. A identi-
dade de todos foi preservada, pois foi pedido apenas para identifica-
rem no corpo do teste a série e a turma em que estavam inseridos. Im-
portante ressaltar a participação fundamental da direção, coordena-
ção e principalmente dos professores de língua inglesa dessa escola
que disponibilizaram o tempo de sua aula para a aplicação do teste,
auxiliando, inclusive, durante a execução da pesquisa.
A aplicação ocorreu durante o ano de 2018 no mês de junho, após
as provas bimestrais do 2° bimestre na referida escola-campo, a fim
de não atrapalhar o andamento do calendário letivo da instituição.
A fase de correção durou aproximadamente 30 dias e contou com
dois professores em formação do curso de Letras da UEG/Câmpus
Morrinhos.

294
Reconhecimento Lexical em Língua Inglesa de Alunos de uma Escola Pública Goiana

4 RESULTADOS E ANÁLISE DOS DADOS

Para fins didáticos, os dados da aplicação do teste estão disponíveis


em gráficos no Apêndice 1. Participaram da pesquisa 466 alunos do
turno matutino e vespertino. As turmas do ensino fundamental II que
participaram da pesquisa são as seguintes: 6° A, 7° A, 7° B, 7° C, 8° A,
8° B, 9° A. As turmas do ensino médio que participaram da pesquisa
são as seguintes: 1° A, 1° B, 1° C, 1° D, 1° E, 2° A, 2° B, 3° A e 3° B.
Após a correção e tabulação dos dados, pudemos visualizar o nível
de reconhecimento dos alunos da referida escola na cidade de Caldas
Novas, no ano de 2018. Dada a alta frequência das palavras presentes
nos níveis K1 e K2 em textos diversos em língua inglesa, o ideal exigido
para um nível satisfatório de proficiência na língua é de 98% de pala-
vras dominadas nesses níveis iniciais. Desse modo, “se um aluno fizer
15 pontos de um total de 30 no nível de 1.000 palavras, isso significa
que 50%, ou 500 palavras de um total de 1.000 palavras, são conheci-
das naquele nível.” (NATION, 2003, p. 26). A evolução fica mais clara
na Figura 2:

Figura 3 –Desempenho médio por série

Fonte: Dados da presente pesquisa.

295
Stênio Magalhães Silva e Eduardo Batista da Silva

Analisando as médias de cada sala individualmente veremos que


nenhuma atingiu um resultado minimamente satisfatório. Referimo-
nos, é claro, à média geral das salas, pois eventualmente um ou outro
aluno pode se sair melhor do que a sala, embora a melhor nota indivi-
dual na faixa K1 no 3° A do Ensino Médio seja 93,3%. Tomemos por
exemplo o 3° A, que teve o melhor desempenho na faixa K1 de pala-
vras, 40% de acertos. Isso significa que, das 1.000 palavras mais fre-
quentes, eles reconhecem apenas 400, um número abaixo dos 98% re-
comendados para partir para o segundo nível de palavras. “O maior
valor do teste de vocabulário é que ele indica em que nível de frequên-
cia das palavras os estudantes devem focar seu aprendizado.” (WEBB;
SASAO; BALLANCE, 2017, p. 1, tradução nossa). 8
Se, por outro lado, analisarmos os menores resultados obtidos na
faixa K1, 21,6%, do 8°A, veremos que não é o suficiente para compre-
ender 20% da maioria dos textos. Levando-se em consideração os sete
anos entre o 6° ano do fundamental II e o 3° ano do ensino médio e a
evolução entre essas séries, 16,1%, podemos dizer que, em 7 anos, os
alunos aprenderam, em média, 161 novas palavras. Isso significa dizer
que os alunos aprenderam, em média, 23 palavras por ano.
Quando se trata do segundo nível de palavras, K2, percebemos não
haver uma regularidade acentuada porquanto do 6° ano do Funda-
mental II ao 3° ano do Ensino Médio houve uma evolução de apenas
4,6% no nível K2, de 17,4% a 22,0% no referido nível de palavras. Vale
ressaltar o decréscimo no segundo nível de palavras, entre o 6° e o 8°
anos do Fundamental II. As palavras mais marcadas são brother,
photograph e father, que tiveram um índice geral de acerto superior a
60%. Concomitantemente, não há um nível alto de reconhecimento de
palavras mais incomuns, presentes no nível K2, como, por exemplo:
wrap, rotten e proud, que tiveram um índice geral de reconhecimento
inferior a 10%.
Para interpretar a Tabela abaixo recorrendo a Nation (2003, p.11-
12), essas 2.000 palavras de alta frequência podem corresponder de

8 The greatest value of the VLT is that it indicates at which word frequency
level students should focus their learning.

296
Reconhecimento Lexical em Língua Inglesa de Alunos de uma Escola Pública Goiana

80% a 95% das palavras que ocorrem em um determinado texto, per-


cebemos que é possível falar e escrever a maioria do que precisamos
no dia a dia usando apenas essas palavras.

Tabela 1 – Reconhecimento médio em porcentagem

TURMA 1.000 palavras 2.000 palavras


6°A 23,9 17,4
7°A 30,1 19,7
7°B 21,7 10,5
7°C 25,5 18,0
8°A 21,6 14,6
8°B 27,6 14,7
9°A 26,4 21,1
1°A 27,7 14,0
1°B 32,6 15,5
1°C 38,7 20,2
1°D 34,2 19,9
1°E 37,9 24,6
2°A 33,2 18,6
2°B 37,6 22,8
3°A 40,0 20,1
3°B 35,9 23,8

Fonte: Dados da presente pesquisa.

Além disso, percebe-se que, durante o período escolar, a evolução


é muito pequena, levando-se em consideração o tempo, o investi-
mento e o material humano empregados na tarefa de desenvolver nos
alunos habilidades linguísticas. Há várias maneiras de se aprender vo-
cabulário em contextos formais e informais de ensino. Frente ao papel
formador da escola, nossa preocupação reside no trabalho desenvol-
vido pelo professor no que se refere às questões lexicais e que pode ser
enriquecido pelo aprimoramento extrassala. Acreditamos que a busca
pelo enriquecimento lexical por parte do aluno também seja um ele-
mento diferencial nesse processo.
Assim sendo, compreendemos como insuficientes, para um bom
desempenho na língua, os resultados alcançados pelos alunos no que

297
Stênio Magalhães Silva e Eduardo Batista da Silva

se refere ao nível de reconhecimento vocabular em língua inglesa em


todas as séries, sendo necessário desenvolver um trabalho que busque
focar no aprendizado de palavras e no desenvolvimento do léxico em
sala de aula. Percebe-se através dessa presente pesquisa que o nível de
reconhecimento lexical dos alunos não atingiu um nível satisfatório
nas faixas K1 e K2. Ao longo das séries, apesar de ter havido progresso,
faz-se necessário destacar que o nível identificado revela um reconhe-
cimento ainda insatisfatório. Do ponto de vista do ensino, isso implica
dizer que os métodos de ensino ou não são focados no vocabulário ou
são ineficazes. Por conseguinte, cabe analisar as expectativas estabe-
lecidas pelo novo Documento Curricular no que tange à abordagem
lexical na forma de textos escritos, que é a modalidade da língua mais
utilizada pelos professores de língua inglesa nas salas de aula.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nosso trabalho discorreu sobre a importância dos estudos em Le-


xicologia no aprendizado da língua inglesa, com as ferramentas da
Linguística de Córpus. Utilizamos um teste capaz de indicar o nível de
reconhecimento lexical dos alunos de uma escola pública de Caldas
Novas. Os resultados indicam que os alunos não possuem um repertó-
rio vocabular rico, no que se refere às palavras mais frequentes da lín-
gua. Averiguamos também que, ao longo dos anos letivos, os alunos
não têm experienciado um aumento do seu vocabulário, segundo da-
dos da pesquisa. Em média, os alunos aprendem 161 novas palavras,
do 6° ano do ensino fundamental II ao 3° ano do ensino médio, o que
equivale a 23 palavras por ano, aproximadamente.
Desse modo, podemos afirmar que os alunos dessa escola não con-
seguirão cumprir minimamente as metas estabelecidas pelo Docu-
mento Curricular para Goiás para as aulas de língua inglesa, no nível
vocabular, pois, as aulas deverão ser pautadas pelo conhecimento que
os estudantes trazem de fora. Os resultados apresentados aqui podem
ser confirmados na percepção de grande parte da população que já
teve aulas de inglês, mas declara saber nada ou quase nada quando
perguntada sobre suas habilidades na língua.

298
Reconhecimento Lexical em Língua Inglesa de Alunos de uma Escola Pública Goiana

Para melhorar o cenário do ensino de língua inglesa no Brasil, é


mister que a Lexicologia ganhe espaço na escolha das metodologias
que abordam o aprendizado de vocabulário, pois é crucial para o de-
senvolvimento das competências linguísticas em língua estrangeira.
Entendemos que um ensino focado também no desenvolvimento do
léxico tenha o potencial de garantir os direitos assegurados aos alunos
pela LDB e alcançar as expectativas estabelecidas pelo DC-GO. Faz-se
necessário um trabalho direcionado para a apresentação e prática do
vocabulário mais frequente de modo a ampliar o repertório lexical dos
alunos.
A Lexicologia nesse trabalho auxiliou as reflexões acerca do voca-
bulário e seu papel formador no processo de aprendizagem e aquisição
de língua estrangeira. Entretanto, seria impossível empregá-la aqui
sem recorrer à Linguística de Corpus, que, como ferramenta crucial na
pesquisa, contribuiu para a construção do teste e balisou as reflexões
lexicológicas aqui estabelecidas. Do mesmo modo, nessa pesquisa, a
Linguística de Corpus auxiliou na coleta, tabulação e análise dos da-
dos, mas sozinha, não seria capaz de promover reflexões acerca das
expectativas do novo Documento Curricular para Goiás no que tange
à questão do vocabulário e o seu reconhecimento na modalidade es-
crita da língua.
Os resultados indicam que, na faixa K1, os alunos testados demons-
tram um reconhecimento que variou entre 23,9% e 40%. Quanto à
faixa K2, os resultados variaram entre 14,6% e 22%. Os índices indi-
cam que, em quase todas as turmas, menos da metade do vocabulário
fundamental foi reconhecido pelos estudantes. Faz-se necessário um
trabalho direcionado para a apresentação e prática do vocabulário
mais frequente de modo a ampliar o repertório lexical dos alunos.
Assim, compreendemos como crucial para essa pesquisa a inter-
relação entre Lexicologia e Linguística de Corpus, pois, do ponto de
vista da Lexicologia, coube estudar e analisar a palavra, o vocábulo e
sua importância no ensino de língua inglesa nas escolas públicas; e do
ponto de vista da Linguística de Corpus, coube analisar um conjunto
de dados linguísticos textuais colhidos em campo para análise. Por-
tanto, nessa pesquisa, ambas desempenharam papel fundamental

299
Stênio Magalhães Silva e Eduardo Batista da Silva

para os fins almejados; aquela para refletir sobre a importância do en-


sino voltado ao léxico, e esta para realizar e analisar os resultados do
teste de vocabulário aplicado.

REFERÊNCIAS

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mática. D.E.L.T.A., São Paulo, v. 16, n. 2, 2000, p. 323-367.
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V.; GÓIS, M. L. S. (org.). Ciências da linguagem: o fazer científico?
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de freqüências do Português. Alfa, São Paulo, v. 42, p. 161-181,
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tuguesa, São Paulo, v. 2, p. 81-118, 1998b.
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trizes e bases da educação nacional. Brasília, DF: Presidência da
República, [2021]. Disponível em: http://www.pla-
nalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm. Acesso em: 04 jul. 2022.
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leira. São Paulo: British Council, 2015.
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300
Reconhecimento Lexical em Língua Inglesa de Alunos de uma Escola Pública Goiana

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MCENERY, T.; HARDIE, A. Corpus Linguistics: method, theory and
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NATION, P. Como estruturar o aprendizado de vocabulário. São
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veloping linguistic corpora: a guide to good practice. Oxford:
Oxbow. 2005
WEBB, S.; SASAO, Y.; BALLANCE, O.; The updated Vocabulary Levels
Test. International journal of Applied Linguistics, [S.l.], v. 01, n.
168, p. 34-70, 2017.

301
Stênio Magalhães Silva e Eduardo Batista da Silva

ANEXO 1 – Teste aplicado

302
Reconhecimento Lexical em Língua Inglesa de Alunos de uma Escola Pública Goiana

303
Stênio Magalhães Silva e Eduardo Batista da Silva

304
Reconhecimento Lexical em Língua Inglesa de Alunos de uma Escola Pública Goiana

APÊNDICE 1 – Gráficos da pesquisa

6A
1,000 words 2,000 words

100,0%

50,0%

0,0%
A1 A3 A5 A7 A9 A11 A13 A15 A17 A19 A21 A23 A25 A27 A29

7A
1,000 words 2,000 words

100,0%

50,0%

0,0%
A1 A3 A5 A7 A9 A11 A13 A15 A17 A19 A21 A23 A25

7B
100,0%

50,0%

0,0%
A1 A3 A5 A7 A9 A11 A13 A15 A17 A19 A21 A23 A25 A27

1,000 words 2,000 words

305
Stênio Magalhães Silva e Eduardo Batista da Silva

7C
1,000 words 2,000 words

100,0%

50,0%

0,0%
A1
A3
A5
A7
A9
A11
A13
A15
A17
A19
A21
A23
A25
A27
8A
100,0%

50,0%

0,0%
A9
A1
A3
A5
A7

A31
A11
A13
A15
A17
A19
A21
A23
A25
A27

1,000 words 2,000 words A29

8B
1,000 words 2,000 words

100,0%

50,0%

0,0%
A1

A3

A5

A7

A9

A17

A21

A25
A11

A13

A15

A19

A23

306
Reconhecimento Lexical em Língua Inglesa de Alunos de uma Escola Pública Goiana

9A
100,0%

50,0%

0,0%

A16

A19

A22
A10
A11
A12
A13
A14
A15

A17
A18

A20
A21
A1
A2
A3
A4
A5
A6
A7
A8
A9
1,000 words 2,000 words

1A
100,0%

50,0%

0,0%
A15

A22

A25

A32
A5

A10
A11
A12
A13
A14
A16
A17
A18
A19
A20
A21
A23
A24
A26
A27
A28
A29
A30
A31
A1
A2
A3
A4
A6
A7
A8
A9

1,000 words 2,000 words

307
Stênio Magalhães Silva e Eduardo Batista da Silva

1B
100,0%

50,0%

0,0%

A11
A13
A15
A17
A19
A21
A23
A25
A27
A7
A1
A3
A5

A9
1,000 words 2,000 words

100,0% 1C 1,000 words 2,000 words

50,0%

0,0%
A17
A11
A13
A15

A19
A21
A23
A25
A27
A29
A1
A3
A5
A7
A9

308
Reconhecimento Lexical em Língua Inglesa de Alunos de uma Escola Pública Goiana

1D
100,0%

50,0%

0,0%
A1

A3

A5

A7

A9

A11

A25
A13

A15

A17

A19

A21

A23

A27
1,000 words 2,000 words

1E
100,0%

50,0%

0,0%
A17
A11
A13
A15

A19
A21
A23
A25
A27
A29
A3
A1

A5
A7
A9

1,000 words 2,000 words

2A
100,0%

50,0%

0,0%
A9
A1

A3

A5

A7

A11

A13

A15

A17

A19

A21

A23

A25

A27

1,000 words 2,000 words

309
0,0%
0,0%
0,0%

50,0%
50,0%
50,0%

100,0%
100,0%
100,0%
A1 A1 A1
A2 A2
A3 A3 A3
A4 A4
A5 A5
A6 A5 A6
A7 A7
A8 A7
A9 A8
A10 A9
A11 A9 A10
A12 A11
A13 A11 A12
A14 A13

1,000 words
1,000 words
1,000 words
A15 A14

3B
2B

A16

310
3A
A13 A15
A17 A16
A18 A15 A17
A19
A20 A18
A21 A17 A19
A22 A20
A23 A21

2,000 words
2,000 words
2,000 words

A24 A19 A22


A25 A23
A26 A21 A24
A27 A25
Stênio Magalhães Silva e Eduardo Batista da Silva

A28 A23 A26


A29 A27
A30 A28
A31 A25
A32 A29
A33 A30
A34 A27 A31
A35 A32
Reconhecimento Lexical em Língua Inglesa de Alunos de uma Escola Pública Goiana

311
Sobre os Autores e Autoras

Sobre os Autores e Autoras

ALEXANDRE FERREIRA DA COSTA


Pós-doutor em Linguística pela Universidade de Brasília (2015), Dou-
tor em Linguística Aplicada pela Universidade Estadual de Campinas
(2007), Mestre em Linguística pela UnB (1999) e Graduado em Letras
pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1994). Docente do
Programa de Pós-graduação em Letras e Linguística da Universidade
Federal de Goiás. Atualmente, suas pesquisas e orientações concen-
tram-se no reordenamento discursivo da educação no Brasil e na im-
plementação da educação integral no ensino, seus aspectos discursi-
vos, transversais e interdisciplinares. É líder do Grupo de Estudos
Transdisciplinares e Aplicados à Formação de Educadores (GRUPO
PORTOS – UFG/CNPq). E-mail: [email protected]

ALINE MOREIRA DA FONSECA NASCIMENTO


Doutoranda pela Universidade Federal de Catalão, mestra pelo Pro-
grama de Pós-Graduação em Língua, Literatura e Interculturalidade
da Universidade Estadual de Goiás (2020), especialista em Língua
Portuguesa e Linguística pela UEG (2007), graduada em Letras: Por-
tuguês/Inglês pela Universidade Estadual de Goiás (2004) e Pedago-
gia pelo Centro Universitário Internacional (2020). Atualmente é pro-
fessora da Rede Municipal de Jussara. E-mail: moreiraedu-
[email protected]

CARLA CONTI DE FREITAS


Doutorado em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento
(2013), mestrado em Letras e Linguística (2003), graduação em Letras
(1995). Docente na Universidade Estadual de Goiás. Docente no Pro-
grama de Pós-graduação em Língua Literatura e Interculturalidade
(POSLLI/UEG) e no Programa de Pós-graduação em Educação

313
Sobre os Autores e Autoras

(PPGE/UEG). Atua nas áreas de linguagem e comunicação no ambi-


ente digital, formação de professores, multiletramentos e intercultu-
ralidade . Coordenadora do grupo de pesquisa GEFOPLE/CNpQ. E-
mail: [email protected]

CESAR EDUARDO DUARTE ELIZI


Possui licenciatura em letras, mestrado e doutorado em Línguística
Aplicada na área de ensino de língua estrangeira. É professor na Pre-
feitura de Paulínia, na FACAMP (Faculdades de Campinas) e avalia-
dor oral para os exames de Cambridge ESOL. Seus textos publicados
versam sobre ensino de língua inglesa, sexualidade e política. E-mail:
[email protected]

CRISTIANE ROSA LOPES


Doutora em Letras e Linguística pela Universidade Federal de Goiás
(UFG), conclusão em 2008; mestre em Letras e Linguística pela UFG
(conclusão em 2002), especialista em História e Cultura Afro-Brasi-
leira e Africana pela UFG (conclusão em 2018), graduada em Letras:
Português/Inglês pela UFG (conclusão em 1995). Atua como profes-
sora na Pós-Graduação em Língua, Literatura e Interculturalidade
(POSLLI) da Universidade Estadual de Goiás (UEG) – Câmpus Cora
Coralina e na graduação em Letras da UEG – Unidade Universitária
de Campos Belos. Tem experiência na área de Linguística Aplicada,
com interesse principalmente nos seguintes temas: educação crítica
e/ou decolonial de professoras/es de línguas, educação linguística crí-
tica e multiletramentos. Coordena o Grupo de Estudos e Pesquisas so-
bre Formação de Professores de Línguas – GEFOPLE (UEG), participa
da Rede Cerrado de Formação Crítica de Professoras/es de Línguas
(UFG) e do Projeto Nacional de Letramentos: Linguagem, Cultura,
Educação e Tecnologia (USP). E-mail: [email protected]

314
Sobre os Autores e Autoras

CRISTINA BATISTA DE ARAÚJO


Doutora em Letras e Linguística (2013), Mestra em Linguística (2007)
e Graduada em Letras (2000) pela Universidade Federal de Goiás.
Professora Associada do Departamento de Língua Portuguesa do CE-
PAE/UFG. Grupo de pesquisa Trama – Círculo Goiano de Análise do
Discurso. Email: [email protected]

DAMIÃO FRANCISCO BOUCHER


Graduação em Letras português/inglês pela Universidade Federal do
Tocantins – UFT (2012); especialização em Análise do Discurso Polí-
tico e Jurídico (2017); especialização em Psicologia Junguiana, ambas
pela Faculdade Unyleya do Rio de Janeiro e mestre em Letras pela
Universidade Federal do Tocantins (UFT). É Integrante do Núcleo de
Estudos da Linguagem (NEL-UFT). E-mail: boucher-
[email protected]

DARCILIA MARINDIR PINTO SIMÕES


Professora Titular de Língua Portuguesa do ILE-UERJ– DEPTO LIPO
– (Aposentada). Membro da Assoc. Intern. de Linguística do Portu-
guês – AILP. Parecerista ad hoc do CNPq, da Capes, da UFPE etc.
Profª colaboradora no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu
POSLLI – UEG – Câmpus Cora Coralina. Pós-doutora em Linguística
(UFC, 2009) e em Comunicação & Semiótica (PUC-SP, 2007); Dou-
tora em Letras Vernáculas (UFRJ, 1994), Mestre em Letras (UFF,
1985). Líder do Grupo de Pesquisa Semiótica, Leitura e Produção de
Textos (SELEPROT). Criou a UDT LABSEM (UERJ-FAPERJ) e a Edi-
tora DIALOGARTS. Coordenou Minter Língua Portuguesa UERJ-
UEMA (2010-2012). Coordenou os Protocolos de Cooperação Interna-
cional com a U. Beira Interior – Portugal e a U. Torino – Itália. Coor-
denou o GT de Linguística Aplicada (ANPOLL – 2012-2014). Autora
de: Considerações sobre a fala e a escrita, Parábola, (PNBE-MEC ?
2014). Autora de Para uma teoria da iconicidade verbal. Pontes, 2019.
E-mail: [email protected]

315
Sobre os Autores e Autoras

EDUARDO BATISTA DA SILVA


Doutor em Estudos Linguísticos pela Universidade Estadual Paulista
(UNESP). Bolsista CNPq na modalidade Pós-Doutorado Júnior (2019-
2020) no Programa de Estudos Pós-Graduados em Linguística Apli-
cada e Estudos da Linguagem da Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo (PUC-SP), sob a supervisão do Prof. Dr. Tony Berber Sardi-
nha. Atualmente, é professor de Língua Inglesa na Licenciatura em
Letras da Universidade Estadual de Goiás (UEG/Câmpus Sudeste –
Sede: Morrinhos). Professor permanente do Programa de Pós-Gradu-
ação Stricto Sensu em Língua, Literatura e Intercultura-lidade (POS-
LLI) da UEG. Atua principalmente nos seguintes temas: Linguística
de Córpus, Ensino de Língua Inglesa e Lexicologia. Pesquisador do
Grupo de Estudos de Linguística de Córpus (PUC-SP) e Pedagogia do
Léxico e da Tradução a partir de Corpora (UNESP/Câmpus São José
do Rio Preto), ambos cadastrados no diretório do CNPq; Coordenador
e professor do Curso de Pós-Graduação Lato Sensu em Linguagens e
Práticas de Ensino na UEG/Câmpus Sudeste –
Sede: Morrinhos. Coordenador do Programa CAPES/Fulbright Assis-
tente de Ensino de Língua Inglesa para Projetos Institucionais na
UEG. Membro da American Association for Applied Linguistics
(AAAL). E-mail: [email protected]

ELIANE MARQUEZ DA FONSECA FERNANDES


Pós-Doutorado em Educação pela UnB (2011), Doutorado em Letras e
Linguística pela Universidade Federal de Goiás (2007) e atualmente
trabalha como professora voluntária na Faculdade de Letras da Uni-
versidade Federal de Goiás. Atua no PPG em Letras e Linguística da
FL da Universidade Federal de Goiás. Desenvolve pesquisa na área de
Linguística, com ênfase em Texto, Análise do Discurso e Ensino. Es-
tuda os seguintes temas: leitura e escrita, gêneros do discurso, análise
do discurso e ensino/aprendizagem da Língua Portuguesa. É líder da
Rede Goiana de Pesquisa: texto, discurso e ensino inscrita na FAPEG-
GO e também do Grupo de Pesquisa CNPq CRIARCONTEXTO: estu-
dos do texto e do discurso que se insere na Rede de Pesquisa em Lín-
gua Portuguesa ao Redor do Mundo. E-mail: elianemar-
[email protected]

316
Sobre os Autores e Autoras

ELEONE FERRAZ DE ASSIS


Pós-doutorado em Estudos Linguísticos pela Universidade Federal de
Goiás (2016), doutorado em Língua Portuguesa pela Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (2014), mestrado em Letras pela Pontifícia
Universidade Católica de Goiás (2008) e graduação em Letras: Portu-
guês/Inglês pela Universidade Estadual de Goiás (2002). Atualmente
é Professor Adjunto da Universidade Estadual de Goiás onde atua no
Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Língua, Literatura e In-
terculturalidade e na graduação em Administração, Ciências Contá-
beis e Direito. É pesquisador do Grupo de Pesquisa Diretório CNPQ –
Seleprot – da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Tem experi-
ência na área de Letras, com ênfase em Língua Portuguesa. E-mail:
[email protected]

GUILHERME FIGUEIRA-BORGES
Doutor (2014) em Estudos Linguísticos pelo Programa de Pós-gradu-
ação em Estudos Linguísticos, Universidade Federal de Uberlândia –
UFU. Atualmente, é Docente de Ensino Superior Doutor (DES IV) da
Universidade Estadual de Goiás (UEG) no Câmpus Inhumas, atuando
no Curso de Letras e no Programa de Pós-graduação em Língua, Lite-
ratura e Interculturalidade (POSLLI/UEG). Está credenciado, tam-
bém, no Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem
(PPGEL/UFG Catalão). É coordenador do grupo de pesquisa: Grupo
de Estudos do Discurso e de Nietzsche (GEDIN/UEG/CNPq). E-mail:
[email protected]

GUILHERME RODRIGUES VALADÃO


Mestrando em Língua, Literatura e Interculturalidade (POS-
LLI/UEG); Especialista em Língua(gem), Cultura e Ensino (UEG,
2019); Graduado em Letras – Português, Inglês e suas Respectivas Li-
teraturas (UEG, 2012). Professor de Língua Portuguesa no
CTPP/UNIUBE – Polo Inhumas e de Língua Inglesa na American Po-
wer English School. Membro do GEDIN.(POSLLI/CNPq). E-mail: gui-
[email protected]

317
Sobre os Autores e Autoras

GUSTAVO COBRA TEIXEIRA MOREIRA DA ROSA


Graduando em Letras (Português e Espanhol) pela Universidade Fe-
deral de São Carlos. É membro do Laboratório de Estudos da Leitura
(LIRE-UFSCar/CNPq). Desenvolveu com bolsa de Iniciação Científica
(2020-2021/CNPq – Id7078 UFSCar) a pesquisa intitulada “No meu
tempo se lia mais”: Nostalgia e os discursos sobre a leitura”, orien-
tada pelas Professoras Luzmara Curcino e Simone Garavello Varella.
E-mail: [email protected]

HÉLVIO FRANK
Professor efetivo da Universidade Estadual de Goiás – Câmpus Cora
Coralina – UnU Itapuranga, credenciado nos programas de pós-gra-
duação stricto sensu: PPG-IELT (Anápolis) e POSLLI (Goiás) da insti-
tuição. Graduado em Letras (Português/Inglês) pela UEG (2004) e em
Pedagogia pela FAESPE (2014), especialista lato sensu em Língua Por-
tuguesa pela UNIVERSO (2006) e em Estudos Linguísticos e Ensino
de Português pela UEG (2008), mestre em Linguística Aplicada pela
UnB (2010), doutor em Linguística pela UFG (2013) e pós-doutor pela
UnB (2014). É editor-chefe da Building The Way – Revista Digital do
Curso de Letras da UEG, membro do GT de Formação de Educadores
na Linguística Aplicada da ANPOLL, líder do grupo de pesquisa
"DIV@S – Discursos de Diversidade em Âmbito Social" (UEG/CNPq),
participante do grupo Transição (UFG) e integrante de outros três re-
gularmente cadastrados no Diretório: Projeto Nacional de Letramen-
tos: Linguagem, Cultura, Educação e Tecnologia (USP), Rede Cerrado
de Formação Crítica de Professores/as de línguas (UFG) e Perspecti-
vas linguísticas contemporâneas sobre identidade, subjetividade e co-
nhecimento (UFG). Interessa-se por pesquisas na área de Linguística
Aplicada, com ênfase nas perspectivas crítica e decolonial de educação
linguística, mais especificamente endereçadas à análise pragmático-
discursiva articulada aos temas corpo, gênero e/ou raça. E-mail: hel-
[email protected]

318
Sobre os Autores e Autoras

JOÃO KOGAWA
Doutorado (2012) e mestrado (2007) em Linguística e Língua Portu-
guesa pela UNESP – FCLAr e Graduação (2005) em Letras pelo Cen-
tro Universitário da Fundação Educacional Guaxupé. É professor do
curso de Letras e do Programa de Pós-graduação em Letras da Univer-
sidade Federal de São Paulo. Atua na área de Linguística com ênfase
em Análise do Discurso. É coordenador do GP/CNPq/Unifesp Semio-
logia & Discurso, do Podiscurso – o podcast da Análise do Discurso e
do projeto de extensão Xadrez no espaço acadêmico. E-mail: ko-
[email protected]

JONATHAN DE ANDRADE FEITOSA


Discente do curso de História da Universidade Federal de São Paulo e
monitor do Projeto de extensão Xadrez na EFLCH. E-mail: jona-
[email protected]

JUAN ALBERTO CASTRO CHACÓN


Doutor em Estudos Linguísticos Programa de Pós-graduação em Le-
tras e Linguística, Faculdade de Letras/UFG (2020). Mestre em Estu-
dos Literários pelo Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguís-
tica, Faculdade de Letras/UFG (2015). Graduado em Letras Portu-
guês/Espanhol pela PUCGO (2006). Professor substituto de espa-
nhol, Faculdade de Letras/UFG (2022). Áreas de atuação: Sociolin-
guística, Língua e Literatura Estrangeira Contemporânea (espanhol),
Tradução Social. E-mail: [email protected]

JULMA DALVA VILARINHO PEREIRA BORELLI


Licenciada em Letras com habilitação em Português e Inglês (2002)
pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Desenvolveu seus estudos
de mestrado (2006) e doutorado (2018) em Letras e Linguística na
mesma instituição. É docente no curso de Letras – Língua e Literatu-
ras de Língua Inglesa da Universidade Federal de Rondonópolis
(UFR). Sua linha de pesquisa concentra-se em Linguística Aplicada
Crítica e Decolonialidade, atuando principalmente nas áreas de En-
sino de Línguas e Formação Docente. É membro do Grupo de Pesquisa

319
Sobre os Autores e Autoras

do CNPq Rede Cerrado de Formação Crítica de Professoras/es de Lín-


guas e do Grupo de Estudos de Professoras/es de Língua Inglesa do
Estado de Mato Grosso (GEPLIMT). E-mail: [email protected]

KEVYN RODRIGUES NASCIMENTO


Discente do curso de Letras e monitor do projeto de extensão Xadrez
na EFLCH. É membro do GP/CNPQ/ Semiologia & Discurso, editor
do Podiscurso – o podcast da Análise do Discurso e pesquisador de
iniciação científica. E-mail: [email protected]

LÍGIA CHRISTIE COÊLHO SILVA


Licenciada em Letras com habilitação em Língua e Literaturas de Lín-
gua Inglesa (2013) pela Universidade Federal de Mato Grosso – Cam-
pus de Rondonópolis. É mestranda em Educação pela Universidade
Federal de Rondonópolis (UFR). É docente na Educação Básica da
rede estadual de Mato Grosso e atualmente exerce a função de forma-
dora de Língua Inglesa na Diretoria Regional de Educação de Rondo-
nópolis, MT. Sua linha de pesquisa concentra-se em Política, formação
e práticas educativas, atuando principalmente no estudo de políticas
públicas e formação de professores de inglês. É membro do Grupo de
Pesquisa Políticas de Currículo e Alteridade e do Grupo de Estudo de
Professoras/es de Língua Inglesa do Estado de Mato Grosso (GE-
PLIMT). E-mail: [email protected]

LUANA ALVES LUTERMAN


Pós-doutora em Linguística pela UFSCar (2019), Pós-Doutora (2016),
Doutora (2014) e Mestre (2009) pelo PPG em Letras e Linguística
da FL/UFG. Especialista em Formação de Professores de Língua
Portuguesa pela UCG (2005). Graduada em Letras pela UCG
(2004). Professora do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu
em Língua, Literatura e Interculturalidade (POSLLI/UEG). Profes-
sora efetiva da UEG, atuando na UnU Inhumas e no Câmpus Cora Co-
ralina. Pesquisa o ensino de língua portuguesa, leitura e produção de
textos (inclusive em 3D), identidade de gênero, corpo e discurso. Áreas
de atuação: Análise do Discurso sob investigação por meio de diversi-

320
Sobre os Autores e Autoras

ficados corpora de pesquisa, Ensino e Aprendizagem de Línguas, For-


mação de Professores, Gênero e Sexualidade. É coordenadora do
Grupo de Pesquisa Grupo Estúdio e integrante dos Grupos de Pesquisa
GEDIN e LABOR. E-mail: [email protected]

LUZMARA CURCINO
Doutora (2006) e Mestre (2003) em Linguística e Língua Portuguesa
pela Universidade Estadual Paulista (UNESP/FCLAr), Licenciada em
Letras (2001) pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Reali-
zou pós-doutoramento no Instituto de Estudos da Linguagem na UNI-
CAMP (2016) e no Centro de História Cultural das Sociedades Con-
temporâneas da Université Versailles Saint-Quentin-en-Yvelines
(2017-2018). É professora no Departamento de Letras e no Programa
de Pós-Graduação em Linguística da Universidade Federal de São Car-
los – UFSCar. Dedica-se, em suas pesquisas, à análise dos discursos
sobre a leitura, atualmente com foco na enunciação das emoções do
‘orgulho’, da ‘vergonha’ e da ‘nostalgia’ relativas a essa prática. É coor-
denadora do Laboratório de Estudos da Leitura (LIRE-UFS-
Car/CNPq) e membro do Laboratório de Estudos do Discurso (LA-
BOR-UFSCar/CNPq). E-mail: [email protected]

MADALENA TEIXEIRA
Doutorado em Linguística pela Universidade de São Paulo/USP
(2012); Doutorado em Linguística e Linguística Aplicada pela Univer-
sidade de Lisboa (2007). Mestrado em Ciências da Educação – Super-
visão Pedagógica em Ensino de Português – Universidade do Minho,
Instituto de Educação: Braga, PT (2004); Graduada em Linguística e
Linguística Aplicada pela Universidade de Lisboa (2000); Graduada
em Letras pela Universidade de Coimbra (1994). Professora do Depar-
tamento de Educação e Psicologia – Universidade de Aveiro. Linguís-
tica, Gramática, Escrita, Ensino da língua, Ensino de professores.
Grupo de Investigação: Linguística: Linguagem, Cultura e Sociedade.
E-mail: [email protected]

MARIANA ROSA MASTRELLA-DE-ANDRADE

321
Sobre os Autores e Autoras

Professora Associada de Língua Inglesa do Departamento de Línguas


Estrangeiras e Tradução do Instituto de Letras da Universidade de
Brasília (UnB). É graduada em Comunicação Social, com Mestrado e
Doutorado em Letras e Linguística, tendo desenvolvido pesquisas em
ensino de línguas e linguística aplicada. Sua experiência anterior
abrange o ensino fundamental II em escola privada e coordenação de
cursos de idiomas. Coordena o GEPLIDF (Grupo de Estudos de Pro-
fessoras/es de Línguas do Distrito Federal) desde 2013 e desenvolve
pesquisas nas áreas: formação crítica de professoras(es) de línguas; a
relação escola-universidade para a formação docente; identidades e
emoções na educação linguística crítica. E-mail: marianamas-
[email protected]

NÁVIA REGINA RIBEIRO DA COSTA


Doutora em Letras e Linguística pelo Programa de Pós-Graduação em
Letras e Linguística da Universidade Federal de Goiás (UFG) (2022),
com estudos concentrados em Linguística Forense/Análise de Dis-
curso Forense. Mestra em Educação, Linguagem e Tecnologias pelo
Programa de Pós-Graduação da Universidade Estadual de Goiás
(UEG), com estudos concentrados na textualidade de textos jurídicos
(2014). Especialista em Formação de Professores pela Pontifícia Uni-
versidade Católica de Goiás (PUC Goiás), com área de concentração
em Letras-Português (2005). Licenciada em Língua Portuguesa pela
Universidade Estadual de Goiás (UEG) (2007). Bacharel em Adminis-
tração de Empresas pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás
(PUC Goiás) (2003). Atua como professora na PUC Goiás, nas disci-
plinas de Linguagem e Comunicação Jurídica, no curso de Direito; de
Língua Portuguesa, nos diferentes cursos de graduação; de Metodolo-
gia do Ensino Superior e Metodologia do Trabalho Científico na Pós-
Graduação em Direito; e em TCC e disciplinas da área de Linguística
no curso de Letras. Coordenadora do Núcleo de Ensino, Pesquisa e
Extensão em Linguagem, Comunicação, Estética e Arte da Escola de
Formação de Professores e Humanidades da PUC-Goiás (EFPH-PUC
Goiás). Coordenadora de banca de elaboração e revisora das avalia-
ções de formação geral da PUC Goiás. Membra do Núcleo de Apoio
Pedagógico da Escola de Formação de Professores e Humanidades da

322
Sobre os Autores e Autoras

PUC Goiás (EFPH-PUC Goiás). Pesquisadora no grupo de pesquisa


Crítica, Tradução e Transcriação, na linha Crítica Literária, Tradução
e Transcriação, da PUC Goiás, com foco análise crítica de enunciados
na perspectiva foucaultiana. Revisora e normalizadora de textos. Con-
sultora linguística. E-mail: [email protected]

ROSANE REIS DE OLIVEIRA


Pós-doutorado em Morfologia Construcional (UFRJ); Doutora e Mes-
tra em Língua Portuguesa pela UERJ, com ênfase em Semiótica e Pro-
dução Textual; Cursou Especialização no Liceu Literário Português.
Foi professora Substituta de Língua Portuguesa da UERJ. Membro do
Grupo de Pesquisa Semiótica, Leitura e Produção de Textos (SELE-
PROT/Uerj); Membro da ALFAL (Associação de Linguística e Filolo-
gia da América Latina) e da AILP (Associação Internacional de Lin-
guística do Português). Criadora da Central de Correções do Sistema
Elite de Ensino, onde operou como coordenadora e professora de Re-
dação por 5 anos (2008 / 2012), liderando equipe de corretores de Re-
dação. Autora de livro didático em Redação pelas editoras Ferreira e
Maria Anézia. Coautora do livro Língua Portuguesa para o CESPE/Jus
Podivm. Foi membro da banca CESGRANRIO de correção de provas
de concurso e ENADE. Atualmente ministra aulas on-line no Vamos
para o Quadro e no Promilitares; produz material didático para as edi-
toras JusPodivm e Kernel. E-mail: [email protected]

SARAH SUZANE BERTOLLI


Doutora em Letras e Linguística (2022), Mestra em Letras e Linguís-
tica (2017) e Licenciada em Língua Portuguesa (2007) pela Universi-
dade Federal de Goiás. Editora e revisora de textos no Instituto Fede-
ral Goiano. Autora de livros didáticos e literários para a educação bá-
sica. Grupo de pesquisa Portos (UFG). E-mail: sarah.goncalves@ifgoi-
ano.edu.br

SIMONE GARAVELLO VARELLA


Doutora (2018) e Mestre (2014) em Linguística pelo Programa de Pós-
Graduação em Linguística (PPGL) da Universidade Federal de São
Carlos, graduada em Letras – Português e Espanhol (2011) pela

323
Sobre os Autores e Autoras

mesma universidade. Realizou estágio de doutoramento na Université


de Versailles Saint-Quentin-en-Yvelines sob a supervisão de Jean-
Yves Mollier. Atua como professora de francês. Suas pesquisas versam
sobre os discursos de promoção da leitura no Brasil, suas continuida-
des e descontinuidades no decurso do tempo. É membro do Laborató-
rio de Estudos sobre a Leitura (LIRE-UFSCar/ CNPq), desde 2010, e
membro do Laboratório de Estudos do Discurso (LABOR-UFS-
Car/CNPq), desde 2012. E-mail: [email protected]

SINVAL MARTINS DE SOUSA FILHO


Doutorado em Letras e Linguística – UFG/Unicamp (2007); Mestrado
em Letras e Linguística – UFG (2000); Graduação em Letras: Portu-
guês – FL/UFG (1996). Professor Associado da Faculdade de Letras e
do Programa de Pós-graduação em Letras e Linguística – FL/UFG; Et-
nolinguística; Aquisição da Linguagem; Análise Linguística Enuncia-
tiva; Literatura Indígena. Grupo de Educação Indígena
CNPq/UFG/UFJ. E-mail: [email protected]

STÊNIO MAGALHÃES SILVA


Licenciado em Letras – Português e Inglês – pela Universidade Esta-
dual de Goiás, Câmpus Sul (2019). Concluiu o curso de mestrado no
Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Língua, Literatura e In-
terculturalidade na Universidade Estadual de Goiás (2022).Atua como
professor de línguas na cidade de Caldas-Novas desde 2017. E-mail:
[email protected]

PATRÍCIA ALVES SANTOS OLIVEIRA


Licenciada em Letras com habilitação em Língua e Literaturas de Lín-
gua Inglesa (2010) pela Universidade Federal de Mato Grosso – Cam-
pus de Rondonópolis. É mestre em Educação pela Universidade Fede-
ral de Mato Grosso campus de Rondonópolis. É docente na Educação
Básica da rede estadual de Mato Grosso e atualmente leciona na Edu-
cação de Jovens e Adultos na EEDIEB Professor Alfredo Marien. Sua
linha de pesquisa concentra-se em Gênero, sexualidade, religião e edu-
cação. Autora do livro “Infância, Gênero, religião e Educação: entre as

324
Sobre os Autores e Autoras

memórias da menina e as concepções da mulher educadora”, e de con-


tos em diferentes coletâneas. É membro do Grupo de Estudo de Pro-
fessoras/es de Língua Inglesa do Estado de Mato Grosso (GEPLIMT).
E-mail: [email protected]

THIAGO BARBOSA SOARES


Professor adjunto do curso de Letras e do Programa de Pós-Graduação
em Letras da Universidade Federal do Tocantins (UFT). Possui gradu-
ação em Letras, português/inglês, pela Universidade do Vale do Sapu-
caí (2009), em Psicologia pela Universidade Paulista (2014) e em Fi-
losofia pela Universidade de Franca (2014), especialização em Estudos
Literários pela Faculdade Comunitária de Campinas (2013), mestrado
em Linguística pela Universidade Federal de São Carlos (2015) e dou-
torado em Linguística pela Universidade Federal de São Carlos (2018).
É colíder do Núcleo de Estudos da Linguagem (NEL-UFT) e membro
pesquisador do Grupo de Estudos em Análise do discurso e História
das ideias linguísticas (VOX-UFSCar). É ainda editor-chefe da revista
Porto das Letras (ISSN-2448-0819). E-mail: thiago.soa-
[email protected]

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