François HARTOG

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François HARTOG.

O espelho de Heródoto

Prefácio
Na abertura do livro, Heródoto propõe escrever a obra Histórias para impedir
que os atos dos homens e suas grandes obras sejam apagadas da memória pelo tempo.
Nessa abertura Heródoto assemelha-se aos aedos, com os mesmos objetivos de
preservar a memória da morte e do esquecimento. Também como os aedos, Heródoto se
preocupa com o kléos, procura manter viva as ações dos homens e os “monumentos”
que servem de testemunha delas. Heródoto também possui características próprias,
enquanto os aedos narram façanhas de grandes heróis inalcançáveis, Heródoto se
propõe a narrar um tempo dos homens, sobre homens comuns inseridos numa realidade
alcançável, repleto de façanhas coletivas. Cada indivíduo merece ser celebrado por sua
participação, independentemente do tamanho de seus atos.

Introdução
Para falar das Histórias de Heródoto é necessário falar sobre a história das
interpretações da obra.
Heródoto produziu sua obra com o intuito de impedir que as façanhas dos gregos
e dos bárbaros caíssem em esquecimento. O próprio autor declara sua intenção de
manter viva a memória dos feitos dos homens, em outras palavras, ele põe em prática
uma das principais funções dos historiadores.
A obra é dividida em 9 livros e os 4 primeiros são dedicados às narrativas sobre
os não gregos (lídios, persas, babilônios, massagetas, egípcios, citas, líbios etc), e os
últimos 5 livros voltam-se para as próprias Guerras Médicas.
Ainda que sua obra tenha sido amplamente difundida em Atenas, era atribuída à
Heródoto a imagem de um mentiroso, chegando a ser considerado o “pai da mentira”. A
obra possui tanto fatos quanto fábulas, tornando difícil diferenciá-las. Voltaire propõe
uma solução: aquilo que Heródoto ouviu é fábula, apenas o que ele viu com os próprios
olhos é verdadeiro (traço fundamental na cultural grego – são os olhos que dão
veracidade às narrativas)
Tucídides condenava aqueles que não escreviam história do próprio tempo
presente, criticando Heródoto mais que todos. Considerava não ser possível fazer uma
história verdadeira no passado, daquilo que não foi vivido.

Parte 2
Introdução
“Retórica da alteridade”: O processo de alteridade se dá pela ligação entre quem
escreve e quem lê, entre narrador e destinatário. O “outro” é construído através da
junção daquilo que o narrador pensa e vê juntamente com a forma ele quer que o
destinatário veja. Nas Histórias tudo acontece e passa pelas 4 operações: “eu vi, eu
ouvi, eu digo, eu escrevo”.
Capítulo I
O outro surge através da diferença, mas a diferença torna-se interessante apenas
quando o outro e a referência entram num mesmo sistema.
A e B não são apenas diferentes, são opostos, inversos um ao outro. O outro é
explicado e construído a partir de comparações, pelo que é diferente ou inverso ao
padrão do narrador. A inversão é uma forma de transcrever a alteridade, é mais fácil
aprender sobre o outro quando ele faz as mesmas coisas, só que ao contrário.
Acompanhando a inversão, temos a dualidade que se mostra presente em diversos textos
e intrínseca na própria cultura grega. Hartog utiliza a guerra e o casamento para
exemplificar essa dualidade, especificamente a relação entre os citas/gregos e as
amazonas. Em Heródoto, porém, a inversão não é simples ou crua, não existem apenas
extremos opostos, por exemplo, as amazonas desempenham o papel de homem e
esposo, pois caçam, montam cavalos e guerreiam, mas não há uma contrapartida na qual
os homens desempenhariam o papel de esposas, pois eles não fazem o trabalho
doméstico nem outras funções típicas das mulheres gregas.
Heródoto se utiliza frequentemente da comparação para construir sua imagem
dos “outros”, através de aproximação e transferência. Ao explicar certo costume de um
povo, o autor utiliza uma prática grega comum para ilustrar e aproximar à realidade dos
seus ouvintes.
Thôma: pode ser descrito, em parte, pelo que há de belo, maravilhoso,
extraordinário, singular e raro na á de belo, maravilhoso e raro no “outro”. É uma
categoria de narrativa etnográfica. Também se liga ao que é grande e numeroso. O
thôma também está ligado ao olho do viajante, o “ver com os próprios olhos” é uma
garantia e atestado.
Não havia entre os gregos o costume, ou interesse, de aprender a língua de
outras nações ou de traduzir textos estrangeiros. Heródoto escrevia em grego para
gregos, e não parece ter aprendido a língua de nenhum dos povos onde viveu ou visitou,
se utilizava de intérpretes quando precisava.
A tradução também compõe a retórica da alteridade. Heródoto com mais
frequência atribuía à elementos desconhecidos um nome grego para depois falar o
bárbaro, e em poucos casos utilizava o bárbaro para depois encontrar o equivalente no
grego. Vários dos deuses cultuados pelos estrangeiros tem nomes em grego, atribuídos à
uma divindade existente (Afrodite/Urania/Milita/Mitra). “A tradução conduziu-nos até a
nomeação, e a nomeação revelou-se um modo de classificação” (p.277)
A descrição é uma característica importante e recorrente na obra de Heródoto. A
descrição baseia-se no “ver e fazer ver”, mas ao se tornar parte da espacialização de um
saber, ela também se torna “saber e fazer saber”. Ao descrever animais, Heródoto fala
de cada parte dos seres desconhecidos pelos gregos criando comparativos com animais
conhecidos ou explicando detalhadamente cada parte do animal, para que seja possível
para o leitor forma uma imagem nítida em sua mente.
As descrições detalhadas evidenciam que o narrador viu o que é descrito com
seus próprios olhos, dando assim veracidade ao testemunho. Em Heródoto ver e dizer
não estão em esferas separadas, eles não se distinguem, mas comunicam-se plenamente.
Por vezes a descrição não se dá através da inversão ou da clara comparação, mas
ao descrever certos costumes de forma que os próprios gregos (seu público) entenderão
sem necessidade de explicações minuciosas. Por exemplo, Heródoto fala dos escravos
citas que nascem citas, são servos do rei e não são comprados. Sem precisar de maiores
explicações, o leitor grego entende a diferença, já que na sua cultura, os escravos são
uma mercadoria a ser comprada. Forma-se assim a diferença entre eles e nós.
Indeterminação temporal: Heródoto narra sempre no presente atual, ainda que o
objeto narrado tenha acontecido naquele momento, mesmo que ele não tenha visto com
seus próprios olhos, não há simultaneidade entre narrativa e história.
Para produzir o efeito de alteridade, práticas abomináveis para o leitor podem ser
descritas de forma técnica e neutra, talvez com certo distanciamento. Seria essa uma
forma de atribuir seriedade e veracidade à narrativa?
Uma forma de descrição: “A descrição é como um quadro com sua legenda, pois
faz-se acompanhar da maneira como convém que seja ‘lida’” p.287.
Outra forma de descrição: não usa comparação, analogia ou negação, mas
baseia-se na inversão. Seria um quadro sem legenda ou com a legenda espalhada dentro
do próprio quadro. Essa forma de descrição atribui um peso maior à alteridade.
Heródoto trabalha sua retórica da alteridade de forma dual, mesmo quando há
três partes inclusas. Por exemplo, ao lutar com os gregos, os persas guerreiam de forma
não-grega, mas para descrever a guerras dos citas, Heródoto descreve as práticas dos
persas como as gregas, para assim mostrar a diferença na cita. Outro exemplo, ao falar
das amazonas, Heródoto descreve os citas de forma similar aos gregos, tanto homens
quanto mulheres, seus costumes aproximam-se dos gregos para que assim seja
evidenciada a diferença contrastante das amazonas, mas em outros momentos, os citas
são um povo com profundas diferenças dos gregos.

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