A Ayahuasca e o Tratamento Da Dependencia
A Ayahuasca e o Tratamento Da Dependencia
A Ayahuasca e o Tratamento Da Dependencia
A AYAHUASCA E O TRATAMENTO
DA DEPENDÊNCIA*
Marcelo S. Mercante
Introdução
Contudo, tais práticas possuem um efeito terapêutico, ainda que este seja
atribuído ao ritual.
Curiosamente, um dos centros pesquisados possui título de Utilidade
Pública conferido pela Câmara Municipal local, e outro está ligado às Se-
cretarias de Saúde e da Justiça de seu estado. Takiwasi é uma das poucas
comunidades terapêuticas no Peru que possuem um reconhecimento legal,
expedido pela Dirección Regional de Salud de San Martin (Saldaña &
Guirrimán 2008).
Ao longo do trabalho de campo foram feitas 50 entrevistas, sendo 25 com
“pacientes” e 25 com “cuidadores”.6 No contexto desta pesquisa, conceitos
como “terapia” e “terapeuta”, podem ser ampliados. Na Caminho de Luz,
nenhum dos “cuidadores” passou por um treinamento formal. Em Takiwasi,
os “curanderos” ou “maestros” responsáveis por dirigir não apenas os rituais
com ayahuasca, mas as outras sessões que envolvem o uso de plantas (ver
descrição abaixo) podem ser psicólogos ou não, pois curandeiros, indígenas ou
vegetalistas em formação profissional também ocupam esta função. No Céu da
Nova Vida e no Céu Sagrado os responsáveis por administrar a ayahuasca não
possuem formação na área de saúde. Como coloca Calabrese (1997:244):
o termo “terapia” [pode ser utilizado] de forma ampla para referir a um tipo
onipresente de atividade humana, cujas diversas manifestações dão suporte ao
que chamamos de saúde mental. A construção de um significado terapêutico
não é derivada somente a partir da intervenção consciente de um curandeiro
especialista. Ela pode ser “construída” dentro de um modelo cultural ou surgir
espontaneamente na pessoa.
Creio ser importante deixar claro o que quero dizer com “religiosidade” e
“espiritualidade”. Utilizo o termo ritual como um sinônimo de “cerimônia”,
como um evento ordenado que busca criar um espaço para um contato com
um universo transcendente identificado por meus informantes como “espi-
ritual”. Segundo Magnani (1999:51):
Takiwasi
ela. São também tocadas músicas de CDs, que são escolhidas em função da
“mensagem” que trazem, ou seja, a capacidade de evocar temas conside-
rados importantes, como família, liberdade, orações a Deus pedindo força,
proteção, perdão, o perigo das drogas e da bebida etc.
A diferença básica entre os dois tipos de sessões é que a de Escala é
para a “elevação espiritual”, ao contrário das Sessões de Acerto, nas quais
as dificuldades do convívio em grupo são colocadas abertamente para que
o dirigente aconselhe as partes envolvidas nas várias contendas.
Em uma das Sessões de Acerto, depois de algumas chamadas e músi-
cas, o Mestre abriu um espaço para que todos pudessem falar. Um interno
veio à frente e, aos prantos, pediu: “Mestre, eu quero uma chance de ser
uma boa pessoa, limpinha, do fundo do meu coração”. Esta pessoa estava
em fase final de recuperação. Não estava mais vivendo entre os internos, e
havia passado a dormir em uma rede ao lado da casa do Mestre, enquanto
esperava condições para construir sua casa na comunidade. Mais tarde,
ele me disse que havia sido o motorista do Mestre (pois já fora motorista de
caminhão), mas que havia recaído, e que agora estava se recuperando. Ele
também me disse que sua esposa estava chamando-o para ir de volta para
casa. Ele me pareceu temeroso de dar esse passo fora da comunidade.
Durante esta sessão, o Conselheiro Antônio disse algumas frases que
servem para motivar e direcionar o tratamento dos internos: “Deus é tudo
na nossa vida, é tudo que temos para buscar. Temos que nos ajoelhar pe-
rante Deus”. A luta contra a dependência é um posicionamento motivador
e acontece o tempo todo: “Para seguirmos nesta caminhada, temos que lu-
tar”; “Cada um tem que procurar nascer de novo”; ou ainda, “Você só tem
uma meta: vencer. Ou você vence ou você será vencido. O Vegetal é um
instrumento poderoso, para você lutar. Você tem que se dar a oportunidade
de adquirir o conhecimento”.
O Conselheiro Antônio procurou também enfatizar que o trabalho de
recuperação é de cada um ali presente, e não apenas do Vegetal: “O Ve-
getal faz uma parte do trabalho, a parte mais difícil, limpa, no mais íntimo
do ser. Mas cada pessoa tem que buscar dentro de si, procurar limpar, sem
mágoa, ódio, rancor, pois essas são forças que não evoluem”. Trabalha-se
muito a questão da disciplina: “Aqui é um lugar para obedecer. Aqui vamos
lutar juntos e vamos conseguir. A obediência é o caminho para todos nós.
A obediência começa na prática, dentro do Salão do Vegetal”.
Tanto as reuniões quanto as sessões são espaços para testemunhos:
de cura, de doença, de força, de fraqueza. São confissões, arrependimentos
públicos, desabafos. As reuniões são momentos nos quais as diretrizes de
comportamento e conduta são ditadas, não por um manual com regras,
540 A AYAHUASCA E O TRATAMENTO DA DEPENDÊNCIA
mas por depoimentos de pessoas que passaram (ou mesmo ainda passam)
por problemas iguais aos que a maioria dos internos ali está passando. São
palavras de ex-dependentes (ou de pessoas que também estão em trata-
mento), com larga experiência no assunto, e que exatamente por isso têm
sua opinião respeitada.
A reunião é uma preparação para a gente amanhecer o dia bem, com paz, har-
monia. A pessoa que falta à reunião vai enfraquecendo na sua caminhada. Uma
preparação para todos aprenderem a se comportar no dia a dia, aprenderem
a se concentrar quando bebem o Vegetal. A União do Vegetal é de concentra-
ção mental, a pessoa tem que se aquietar, se acalmar, para receber o que tá
precisando Aqui é o caminho de Deus que mostra a realidade para a pessoa.
É a pessoa zelar, se dedicando ao máximo e obedecendo às ordens da direção.
Nós estamos aqui para caminhar no caminho certo de Deus. Aqui, nesse local,
a pessoa vem se preparando para passar pelas dificuldades na vida. Esse Ve-
getal vai mexer no nosso sentimento (Conselheiro Pedro — Reunião dia 01 de
dezembro de 2009).
Conselheiro Gustavo, “Muitas vezes a pessoa chega aqui e ela não é doente
[por causa] da química, mas espiritualmente”.
pessoas não retornam nem ao Pronto-Socorro nem vão à Igreja. Vários dos
fardados do Céu Sagrado já passaram pelo Pronto-Socorro.
Uma vez na Igreja, passam a participar dos trabalhos do calendário
ritual do Santo Daime. Na verdade, os trabalhos do Céu Sagrado, mesmo
sem serem necessariamente voltados para o atendimento dos dependentes,
acabam por ter uma grande ênfase na cura deste problema, ênfase esta
que aparece com bastante frequência nos discursos de Luciano e Fernando
dentro da Igreja.
O Céu da Nova Vida está localizado em São José dos Pinhais, na grande
Curitiba, Paraná. É dirigido pelo Padrinho André Volpi Neto, 42 anos (em
2010), curitibano, formado em administração de empresas, e que possui há
17 anos uma empresa de propaganda de plásticos. André é um ex-paciente
do Céu Sagrado. Começou a utilizar drogas aos 18 anos de idade. Foi de-
pendente de cocaína por 13 anos, tendo tentado diversas formas de terapia,
inclusive religiosas. Seu pai soube do trabalho realizado no Céu Sagrado
(importante frisar que André nunca havia ouvido falar da ayahuasca antes).
No dia 26 de junho de 1999 participou de um ritual de cura no Céu Sagra-
do e, desde então, interrompeu o uso de drogas. No ano seguinte recebeu,
durante um ritual no Céu Sagrado, a “inspiração” de iniciar o atendimento
aos dependentes em Curitiba. Finalmente, em 2001, deu início ao Centro
Espiritual Céu da Nova Vida.
Até maio de 2010 o atendimento aos dependentes era realizado sema-
nalmente em um ritual de cura especialmente montado para este fim (ver
Schneider 2010). Contudo, André percebeu que este sistema era falho, pois
fazer um dependente esperar por até uma semana para participar de um
ritual era bastante difícil. Assim, depois de conversar com os dirigentes do
Céu Sagrado, passou a adotar um sistema de atendimento similar ao deste
centro, ou seja, diário, passando então a ser feito na Igreja do Céu da Nova
Vida por dois ex-pacientes, fardados, Felipe e Marcos, contratados pela
Igreja para cumprir tal função.
O salão da Igreja é amplo, medindo 25 x 25 m. O teto é branco, e nele
há uma grande estrela de seis pontas em baixo relevo, ao centro. Esta estrela,
durante os trabalhos, tem as luzes ao seu redor acesas. As paredes do salão
também são brancas, assim como o piso.
A decoração consiste em um quadro com o busto de Mestre Irineu, à
entrada, junto com outro quadro onde há um beija-flor. Na parede à direita
A AYAHUASCA E O TRATAMENTO DA DEPENDÊNCIA 543
Algumas considerações
nós tomamos como ‘dado’ que o usuário inexperiente de drogas, ainda que
ele queira ficar “chapado” [“high”, no original em inglês], não espera uma
experiência tão radical que coloque em jogo o senso comum sobre uma série
de pressupostos. Em qualquer sociedade em que a cultura contenha noções
de sanidade e insanidade, a pessoa que percebe seu estado subjetivo alterado
pode pensar que ficou louco.
Terapia de substituição
Outra questão que surgiu ao longo desta pesquisa foi se o uso da ayahuasca
não seria simplesmente um processo de substituição de uma droga por ou-
tra. O uso da ayahuasca (assim como o AA — ver Antze 1991, e o peiote —
ver Halpern et al. 2005; Garrity 2000) está voltado para um processo de
reconstrução da vida do dependente.
Um exemplo claro de terapia de substituição pode ser encontrado no
uso (legal) de metadona para tratar heroinômanos (ver Bourgois 2000). Aqui
não há tal preocupação — a de reconstrução da vida do dependente — mas
apenas o desejo de se manter o dependente em um estado socialmente
produtivo. Burgois (2000) coloca que o uso de metadona é uma ferramenta
de controle deste dependente. Tal suposição — que a ayahuasca seria uma
terapia de substituição — estaria pautada exatamente na tendência de nos-
sa sociedade de coibir os estados não ordinários de conscientização (ver
Mercante 2010, 2012).
Marras (2008) coloca, por exemplo, que os efeitos das substâncias psi-
coativas não estariam na “substância em si”, nem na “sociedade”, mas na
agência de uma sobre a outra, na rede entre ambas, e que nossa sociedade
veria nas experiências com psicoativos um “excesso de subjetivação” (:175),
excesso este que colocaria em risco a manutenção da vida em sociedade,
tida como a contraparte objetiva da existência:
É como se a vida social, que se realiza como uma espécie de outro eu internali-
zado no indivíduo (o eu social), estivesse ameaçada de se desfazer pela ação da
vida excessivamente subjetiva do mesmo indivíduo, que então precisa manter
o equilíbrio, que é o social, a estabilidade. Manter a consciência é manter a
estabilidade e é manter a sociedade — eis a ordem (Marras 2008:175).
nesse mês em que fiquei observando, no período inicial, entre 10 e 15 dias, existe
uma forma de substituição da droga. Parece que quando ele [o dependente]
chega, ele vai atrás, a todo instante, do Conselheiro que serve o Vegetal, como
se aquilo fosse uma espécie de “onda”, de ele estar substituindo aquela sensação
de relaxamento que a droga dá pra ele pela “borracheira” que o Vegetal dá pra
ele, e este seria um uso inadequado do Vegetal. Mas a gente vê que isso é no
início, quando ele não tem ainda conhecimento dos ensinamentos da própria
União do Vegetal, da religião. Mas isso ajuda a desintoxicar de forma natural,
trabalhando na ansiedade que o uso de drogas dá, devido à abstinência.
quando eu tive essa adicção à metadona, aos psicotrópicos, que são drogas
“legais”, quando estive em um tratamento dado pelo Estado, me pareceu que
era apenas para que eles [as outras pessoas] pudessem dormir mais tranquilos.
Com o consumo de heroína, eu roubava, fazia coisas más para a sociedade, e
dar metadona para os toxicômanos é dizer mais ou menos “que se droguem,
mas não nos molestem mais”. Só serve para que a sociedade tenha uma “boa
consciência” de que está ajudando.
Conclusão
Notas
* Agradeço à Fapesp pela bolsa que permitiu a pesquisa que resultou neste artigo
e ao prof. José Guilherme Magnani pela orientação durante o pós-doutorado. Agradeço
ainda a Eduardo Schemberg e Bia Labate pela leitura atenta e os comentários.
1
Este projeto de pesquisa foi desenvolvido ao longo de três anos de pós-doutoramen-
to no Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo, com bolsa da Fapesp,
entre os anos de 2009 e 2012, sob o título “O Uso Terapêutico e Ritualístico da Ayahuasca
no Tratamento de Dependência Química e Alcoolismo”. O objetivo principal foi saber
como trabalhavam estes centros e o papel das experiências com ayahuasca no processo
de recuperação. Importante notar que “recuperação”, neste texto, assume a perspectiva
que os centros de tratamento pesquisados dão, ou seja, está recuperado um paciente que
não faz uso de nenhuma substância psicoativa – exceto, é claro, a ayahuasca.
2
Ver por exemplo a definição do American College of Physicians (1985:405):
“dependência química se refere à necessidade física ou psíquica de uma substância
química e envolve o alcoolismo e a dependência de drogas”. Para uma revisão bas-
tante ampla do termo dependency, ver Alexander (2008).
3
Este artigo, contudo, está centrado na questão da dependência química.
4
Ver Labate e Araújo (2002) para mais detalhes sobre cada uma destas religiões.
De forma sucinta, em 1930 o seringueiro Raimundo Irineu Serra, negro oriundo do
Maranhão, após uma visão da Virgem da Conceição inicia a formação de um grupo do
qual surgirá o Santo Daime; em 1945 é fundada a Barquinha (ver Mercante 2012), com
Daniel Pereira de Mattos. Tanto Barquinha quanto Santo Daime tiveram seu começo
em Rio Branco, Acre. Em 1960 surge a União do Vegetal, com José Gabriel da Costa,
em Porto Velho. As três religiões estão baseadas em um sincretismo bastante próprio
do cristianismo, são religiões de origem afro-brasileira e práticas indígenas.
5
O GMT foi um Grupo Multidisciplinar de Trabalho instituído pelo Conad (Conselho
Nacional de Políticas sobre Drogas) em 2004, formado por profissionais de diversas áreas
(médicos, psicólogos, antropólogos) e representantes das igrejas ayahuasqueiras, para
552 A AYAHUASCA E O TRATAMENTO DA DEPENDÊNCIA
6
“Pacientes” e “cuidadores” são termos éticos. Devido ao caráter multilocal da
pesquisa, sinto-me impossibilitado de utilizar um termo êmico. Em Takiwasi há os “te-
rapeutas” e os “pacientes”. No Caminho de Luz temos os “monitores” e o “Mestre”, de
um lado, e os “internos”, de outro. No Céu Sagrado há apenas os dependentes, assim
como no Céu da Nova Vida. Da mesma forma, muitos “cuidadores” já foram pacientes
e as entrevistas com eles revelaram esta condição, mais até do que a de “cuidador”.
7
Nos Estados Unidos, já em 1791, Benjamim Rush (An enquiry into the effects
of spiritous liquors upon the human body and their influences upon the happines of
society) dizia que a embriaguez crônica era tanto uma doença quanto um transtorno
da vontade. Em 1891, Carl Von Bruhl-Cramer colocou que a embriaguez resultava
de “uma doença do sistema nervoso, que produzia um desejo irresistível pelo álcool”
(Berridge 1994:17), e chamou tal doença de “dipsomania”.
8
Chwelos et al. 1959; Jensen 1962; Ross MacLean et al. 1961; Smith 1958.
9
Ver Halpern (2007) para uma boa revisão da literatura sobre a posterior proi-
bição do uso do LSD neste tipo de tratamento.
10
Ver também Dobkin de Rios et al. (2002), Fernandez (2003), Halpern (1996,
2007), Winkelman (2001) para uma revisão geral. Labate et al. (2010) trata de uma revi-
são bibliográfica do uso da ayahuasca como instrumento terapêutico. O livro Psychelic
medicine (Wilkelman & Roberts 2007), com dois volumes, cobre de forma ampla o uso
de psicoativos no tratamento de diversos problemas, incluindo dependência.
11
Curiosamente, uma mistura de sementes de aniz, nabo, sal e mel em água morna
era utilizada há mil anos atrás pelos persas para induzir vômito e diminuir a toxidade
do ópio (Heggenhougen 1984). Heggenhougen também indica que em um mosteiro
budista na Tailândia a mesma técnica é utilizada hoje em dia. Gomes (2011) fez um
relato sobre o trabalho da Unidade de Resgate Flor das Águas Padrinho Sebastião,
liderada por Walter De Lucca, onde se utilizava ayahuasca para auxiliar moradores de
rua. No processo terapêutico adotado, também se faziam purgas com Yawar Panga, uma
vez que Walter havia passado por Takiwasi. Mas o interessante é que os dependentes
auxiliados por De Lucca também pediam, com frequência, para fazer purgas.
12
Esta prática foi modificada. Atualmente, o paciente bebe o chá apenas uma
vez por dia, nas reuniões, e somente se assim o desejar.
13
Mistura de pasta base de cocaína com bicarbonato de sódio, sendo esta a
forma mais barata de uso da cocaína que existe no mercado. O crack se encontra na
forma de “pedras”, que são fumadas pelos usuários.
14
Pasta base de cocaína. No Acre, o uso mais intenso é da “mela”, e não do crack.
A AYAHUASCA E O TRATAMENTO DA DEPENDÊNCIA 553
15
Heath (1987), citando Bales (1946), diz que havia menos problemas no uso de
álcool entre judeus, nos Estados Unidos – que possuem um estilo de vida no qual a
coesão do grupo é muito importante, havendo um aprendizado caseiro de consumo
de bebidas em um contexto ritual – do que entre descendentes de irlandeses (estes
sim, com significativo índice de problemas no consumo de álcool), aliado a um alto
índice de frustração econômica.
Referências bibliográficas
Resumo Abstract