Locke - Tirania
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Locke - Tirania
DA TIRANIA
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leis fundamentais de seu reino. Tacitamente, em virtude de sua
qualidade de rei, comprometendo-se a proteger o bem do povo e
as leis de seu reinado; e expressamente, pelo juramento que pro-
nunciou quando foi coroado; assim, todo rei justo, em num reino
estabelecido, compromete-se a observar o pacto feito com seu
povo quando ele fez as leis, proporcionando ao seu governo uma
organização que se harmonize com ele, seguindo o modelo do
pacto que Deus fez com Noé após o dilúvio. Daí em diante, seja
tempo de semeadura ou de colheita, frio ou quente, verão ou in-
verno, dia ou noite, ele não terminará enquanto a terra existir.
Por isso, um rei que governa um reino estabelecido deixa de ser
um rei e degenera em um tirano no momento em que ele põe de
lado as leis estabelecidas e passa a governar de acordo com suas
próprias leis”. E um pouco depois, “Por isso todos os reis que
não são tiranos, ou perjuros, ficarão felizes em se restringir aos
limites de suas leis. E aqueles que os convencem do contrário
são víboras, pestes, e estão tanto contra eles quanto contra toda a
comunidade civil”. Assim este monarca ilustrado, que compre-
endia bem as noções das coisas, estabelece que a diferença entre
um rei e um tirano consiste apenas em que o primeiro faz das leis
o limite de seu poder, e do bem público o objetivo de seu gover-
no; o outro subordina tudo a sua vontade e ambição pessoais.
201. É um erro acreditar que este defeito é exclusivo apenas
das monarquias; outras formas de governo também podem estar
propensas a possuí-lo. Cada vez que um poder, colocado nas
mãos de alguém que deve governar o povo e preservar suas pro-
priedades, é aplicado para outros objetivos e é utilizado para em-
pobrecer, perseguir ou subjugar o povo às ordens irregulares e
arbitrárias daqueles que o detêm, imediatamente se transforma
em uma tirania, seja este abuso cometido por um ou mais ho-
mens. Por exemplo, podemos ler a história dos trinta tiranos de
Atenas ou aquela de um tirano único em Siracusa; e a intolerável
dominação dos decênviros em Roma não foi nada melhor.
202. Onde termina a lei começa a tirania, desde que a lei seja
transgredida em prejuízo de alguém. Toda pessoa investida de
uma autoridade que excede o poder a ele conferido pela lei, e faz
uso da força que tem sob seu comando para atingir o súdito com
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aquilo que a lei não permite, deixa de ser um magistrado; e,
como age sem autoridade, qualquer um tem o direito de lhe re-
sistir, como a qualquer homem que pela força invada o direito de
outro. Isto é admitido nos magistrados subalternos. Aquele que
tem autoridade para me dominar na rua pode encontrar uma re-
sistência, como aquela que demonstro a um gatuno ou a um la-
drão, se tentar invadir minha casa para executar um mandato
judicial, não importa se eu sei que ele é portador deste mandato e
que tem competência para proceder legalmente a minha prisão.
E por que este princípio não se aplica ao magistrado de escalão
mais elevado, assim como àquele que ocupa o escalão mais bai-
xo? Eu gostaria de saber. É razoável que o irmão mais velho, que
recebe a maior parte da herança do pai, deveria ter o direito de se
apropriar das partes de seus irmãos mais moços? Ou aquele ho-
mem rico, que possuía uma região inteira, por este fato teria o
direito de se apoderar, quando quisesse, do casebre e do jardim
de seu vizinho pobre? A posse legítima de um poder e de uma
riqueza consideráveis, que ultrapassam excessivamente a
maior parte daquilo que os filhos de Adão puderam recolher,
está longe de ser uma desculpa, e muito menos uma razão, para
a rapina e a opressão, pois devem ser assim qualificados todos
os danos causados ao outro sem autoridade; ao contrário, é uma
provocação. Exceder os limites da autoridade não é um direito
maior em um agente superior que em um agente subalterno,
não mais justificável em um rei do que em um policial; mas é
muito pior se seu autor está encarregado de uma missão de con-
fiança, e se a vantagem da educação que recebeu, de suas fun-
ções e dos conselheiros que o auxiliam, o favorece em relação a
seus irmãos e permite supô-lo melhor informado dos critérios do
bem e do mal.
203. Pode-se resistir às ordens de um príncipe? A resistên-
cia é legítima todas as vezes que um indivíduo se percebe lesado
ou imagina que não lhe foi feito justiça? Isto vai perturbar e
transtornar todos os regimes políticos e, em vez de governo e or -
dem, não se terá senão anarquia e confusão.
204. A isso eu respondo: Não se deve opor a força senão à
força injusta e ilegal; quem quer que resista em qualquer outra
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circunstância atrai para si uma condenação justa, tanto de Deus
quanto dos homens; e em conseqüência só virão perigos e tu-
multos, como freqüentemente é sugerido. Porque
205. Primeiro: Como em alguns países a pessoa do príncipe
pela lei é sagrada, seja o que for que ele ordene ou faça, sua pes-
soa ainda permanece livre de qualquer questionamento ou vio-
lência, e escapa ao uso da força ou a qualquer censura ou
condenação judicial. Mas pode-se fazer oposição aos atos ilegais
de qualquer agente inferior ou outro indivíduo por ele nomeado,
a menos que ele realmente se coloque em estado de guerra con-
tra seu povo, dissolva o governo e deixe o povo entregue àquela
defesa que pertence a todos no estado de natureza. Quem pode-
ria prever como podem terminar situações desse tipo? Um reino
vizinho mostrou ao mundo um exemplo estranho. Em todos os
outros casos a inviolabilidade da pessoa a exime de todas as in-
conveniências, o que o situa ao abrigo de toda violência e de
todo mal, enquanto o governo subsistir, e nesse sentido não po-
deria haver uma constituição mais sábia. O mal que ele pode fa-
zer pessoalmente não se arrisca a se renovar com freqüência e
não estende muito seus efeitos, porque sua força individual não
lhe dá os meios para subverter as leis, nem para oprimir o con-
junto do povo, supondo-se um príncipe tão fraco e de uma natu-
reza tão ruim para querer agir deste modo. O inconveniente de
determinadas más ações que podem às vezes ocorrer quando um
príncipe impetuoso sobe ao trono são bem recompensadas pela
paz do público e tranqüilidade do governo na pessoa do magis-
trado supremo, colocado fora do alcance do perigo; é mais segu-
ro para o conjunto que um pequeno número de homens corra às
vezes o risco de sofrer, do que expor desnecessariamente o chefe
da república.
206. Segundo: Este privilégio pertence somente à pessoa
exclusiva do rei e não impede questionar, se opor e resistir àque-
les que usam a força injusta, embora eles pretendam dele um co-
missionamento que a lei não autoriza. Isto está evidente no caso
daquele que tem um mandato do rei para prender um homem,
um comissionamento pleno do rei, e no entanto ele não pode in-
vadir a casa de um homem para fazê-lo, nem executar a ordem
do rei em determinados dias ou em determinados locais, embora
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este comissionamento não contenha exceções em si, mas são li-
mitações da lei, que, se alguém transgredir, o comissionamento
do rei não o justifica. Como a autoridade do rei lhe é outorgada
pela lei, ele não pode conferir a ninguém o poder de agir contra a
lei ou justificar seu ato por seu comissionamento. O comissiona-
mento ou a ordem de qualquer magistrado onde ele não tem au-
toridade são tão nulos e insignificantes quanto aqueles de um
homem qualquer. A diferença entre um e outro é que o magistra-
do tem alguma autoridade dentro de limites e fins determinados,
enquanto o homem comum não tem nenhuma. Não é o comissio-
namento, mas a autoridade, que dá o direito de agir, e contra as
leis não pode haver autoridade; mas apesar de tal resistência, a
pessoa e a autoridade do rei ainda estão ambas asseguradas, e as-
sim não há riscos nem para o governante nem para o governo.
207. Terceiro: Supondo-se um governo em que a pessoa do
magistrado supremo não é sagrada, esta doutrina que autoriza a
resistência cada vez que ele exerce ilegalmente seu poder tem
por efeito criar situações inúteis que o exporiam a riscos ou colo-
cariam o governo em má situação. Quando a parte prejudicada
pode ser aliviada e seus danos reparados pelo apelo à lei, não
pode haver pretexto para a força, que só deve ser utilizada quan-
do um homem é interceptado em seu apelo à lei. Nada justifica a
força hostil, exceto quando é negado a alguém o recurso legal.
Apenas esta força coloca quem a usa em estado de guerra e torna
legal a resistência a ele. Um homem com uma espada em suas
mãos exige minha carteira na estrada, quando talvez eu não pos-
sua nem doze cêntimos em meu bolso; legalmente, eu posso ma-
tar este homem. A outro eu entreguei cem libras para guardar
apenas enquanto eu desmonto, e ele se recusa a me devolver o
dinheiro quando eu torno a montar, e tira a sua espada para de-
fender a posse pela força: tento retomá-lo. Este homem me cau-
sa um prejuízo cem vezes, talvez mil vezes maior que o outro
talvez tencionasse me fazer (a quem eu matei antes que realmen-
te me tivesse feito alguma coisa); entretanto, eu podia legalmen-
te matar o primeiro, enquanto legalmente eu não podia nem
sequer ferir o segundo. A razão é clara. O primeiro utilizou a for-
ça e minha vida ficou ameaçada; eu podia não ter tempo de utili-
zar as vias legais para protegê-la; e se viesse a perdê-la, seria
muito tarde para qualquer recurso. A lei não poderia ressuscitar
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minha carcaça sem vida. A perda seria irreparável, e para evi-
tá-la a lei da natureza me dá o direito de destruir o indivíduo que
se colocou em estado de guerra contra mim e ameaçou minha
destruição. Mas no outro caso, minha vida não estando em peri -
go, eu posso ter o benefício de apelar para a lei e ter dessa forma
a reparação para minhas cem libras.
208. Quarto: Se os atos ilegais cometidos pelo magistrado
foram confirmados (pelo poder que ele detém), e se o mesmo
poder obstrui a reparação que a lei obriga, o direito de resistir
não perturbará o governo de maneira intempestiva, nem sem ra-
zão grave, mesmo diante de atos de tirania assim manifestos. Se
a questão não interessa senão a alguns particulares, ainda que
eles tenham o direito de se defender e de recuperar pela força
aquilo que lhes foi tomado ilegalmente pela força, o direito de
agir dessa forma não corre o risco de facilmente engajá-los em
um conflito em que certamente eles perecerão; sendo impossí-
vel para um ou poucos homens oprimidos perturbarem o gover-
no se o conjunto do povo não se encontra interessado, assim
como um louco furioso ou um descontente exaltado derrubarem
um estado firmemente estabelecido, pois o povo também está
pouco inclinado a seguir um ou outro.
209. Mas se estes atos ilegais estendem seus efeitos à maio-
ria do povo; ou se a má ação e a opressão só atingem uma mino-
ria, mas em condições tais que todo mundo parece ameaçado
pelo precedente assim criado e por suas conseqüências, e se to-
dos estão convencidos em suas consciências, que suas leis estão
em perigo, e com elas seus bens, liberdades e vidas, e talvez até
sua religião, eu não sei como eles poderiam ser impedidos de re-
sistir à força ilegal usada contra eles. Admito que esta é uma in -
conveniência que espera todos o governos, sejam quais forem,
quando os governantes deixam as coisas chegarem a um ponto
em que a grande massa de seu povo os trata como suspeitos; é a
situação mais perigosa em que eles podem se colocar, e eles são
os que merecem menos piedade, pois isso é muito fácil de ser
evitado. É impossível para um governante, se ele realmente pre-
tende o bem do seu povo e ao mesmo tempo sua preservação e a
de suas leis, não conseguir que eles enxerguem e sintam isso,
como para um pai de família não deixar seus filhos perceberem
que ele os ama e cuida deles.
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