Ideia de Uma Historia Universal - Kant0001
Ideia de Uma Historia Universal - Kant0001
Ideia de Uma Historia Universal - Kant0001
Organização
RICARDO R. TERRA
Tradução
RODRIGO NAVES
RlCARDO R. TERRA
Iª edição
1986 (Brasiliense)
21!.edição
fevereiro de 2004
Tradução
RODR1GO NAVES
R/CARDO R. TERRA
Acompanhamento editorial
Luzia Aparecida dos Santos
Revisões gráficas
Maria Cecilia de Moura Madarás
Maria Luiza Favrel
Dinarte Zorzdnelli da Silva
Produção gráfica
Geraldo Alves
Apresentação - Ricardo Ribeiro Terra VII
Paginação/Fotolitos
Studio 3 Desenvolvimento Editorial
03-7034 CDD-193
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brir aí um curso regular - dessa forma, o que se mostra
confuso e irregular nos sujeitos individuais poderá ser
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mesmo modo que as inconstantes variações atmosféri- fio condutor para tal história e deixar ao encargo da natu-
cas, que não podem ser determinadas de maneira parti- reza gerar o homem que esteja em condição de escrevê-
cular com antecedência, no seu todo não deixam, toda- Ia segundo este fio condutor. Assim ela gerou um Kepler,
via, de manter o crescimento das plantas, o fluxo dos rios que, de uma maneira inesperada, submeteu as excêntricas
e outras formações naturais num curso uniforme e inin- órbitas dos planetas a leis determinadas; e um Newton,
terrupto. Os homens, enquanto indivíduos, e mesmo po- que explicou essas leis por uma causa natural universal.
vos inteiros mal se dão conta de que, enquanto perseguem
propósitos particulares, cada qual buscando seu próprio
proveito e freqüentem ente uns contra os outros, seguem Primeira proposição
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inadvertidamente, como a um fio condutor, o propósito
da natureza, que lhes é desconhecido, e trabalham para Todas as disposições naturais de uma criatura estão des-
sua realização, e, mesmo que conhecessem tal propósito, tinadas a um dia se desenvolver completamente e conforme
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1.,'1.1.
pouco lhes importaria. um fim. Em todos os animais isto é confirmado tanto
Como em geral os homens em seus esforços não pela observação externa quanto pela interna ou anatõ-
procedem apenas instintivamente, como os animais, nem mica. Um órgão que não deva ser usado, uma ordenação
tampouco como razoáveis cidadãos do mundo, segundo que não atinja o seu fim são contradições à doutrina te-
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um plano preestabelecido, uma história planificada (como leológica da natureza. Pois, se prescindirmos desse prin-
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é, de alguma forma, a das abelhas e dos castores) parece cípio, não teremos uma natureza regulada por leis, e sim
ser impossível. É difícil disfarçar um certo dissabor quan- um jogo sem finalidade da natureza e uma indetermina-
do se observa a conduta humana posta no grande cenário ção desconsoladora toma o lugar do fio condutor da razão.
mundial, e muitas vezes o que isoladamente aparenta sa-
bedoria ao final mostra-se, no seu conjunto, entretecido
de tolice, capricho pueril e freqüentemente também de Segunda proposição
maldade infantil e vandalismo: com o que não se sabe ao
cabo que conceito se deva formar dessa nossa espécie tão No homem (única criatura racional sobre a Terra) aque-
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orgulhosa de suas prerrogativas. Como o filósofo não pode las disposições naturais que estão voltadas para o uso de sua
pressupor nos homens e seus jogos, tomados em seu razão devem desenvolver-se completamente apenas na espécie e
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conjunto, nenhum propósito racional próprio, ele não tem não no indivíduo. Numa criatura, a razão é a faculdade de
outra saída senão tentar descobrir, neste curso absurdo ampliar as regras e os propósitos do uso de todas as suas
das coisas humanas, um propósito da natureza que possi- forças muito além do instinto natural, e não conhece ne-
bilite todavia uma história segundo um determinado pla- nhum limite para seus projetos. Ela, todavia, não atua so-
no da natureza para criaturas que procedem sem um pla- zinha de maneira instintiva mas, ao contrário, necessita de
no próprio. Queremos ver se conseguimos encontrar um tentativas, exercícios e ensinamentos para progredir, aos
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poucos, de um grau de inteligência (Einsicht) a outro.
Para isso um homem precisa ter uma vida desmesurada-
mente longa a fim de aprender a fazer uso pleno de to-
to inato; ele deveria, antes, tirar tudo de si mesmo. A ob-
tenção dos m~ios de subsistência, de suas vestimentas, a
conquista da segurança externa e da defesa (razão pela
das as suas disposições naturais; ou, se a natureza con- qual a natureza não lhe deu os chifres do touro, nem as
~ cedeu-lhe somente um curto tempo de vida (como efeti-
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meio de que a natureza se serve para realizar o desen- lidade - em si nada agradáveis -, das quais surge a opo-
~~ volvimento de todas as suas disposições é o antagonismo de- sição que cada um deve necessariamente encontrar às
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las na sociedade, na medida em que ele se torna ao fim a cau- suas pretensões egoístas, todos os talentos permanece-
~ sa de uma ordem regulada por leis desta sociedade. Eu enten- riam eternamente escondidos, em germe, numa vida pas-
do aqui por antagonismo a insaciável sociabilidade dos toril arcádica, em perfeita concórdia, contentamento e
~ homens, ou seja, sua tendência a entrar em sociedade que amor recíproco: os homens, de tão boa índole quanto as
está ligada a uma oposição geral que ameaça constante- ovelhas que apascentam, mal proporcionariam à sua exis-
mente dissolver essa sociedade. Esta disposição é eviden- tência um valor mais alto do que o de seus animais; eles
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te na natureza humana. O homem tem uma inclinação não preencheriam o vazio da criação em vista de seu fim
I~ para associar-se porque se sente mais como homem num como natureza racional. Agradeçamos, pois, à natureza a
tal estado, pelo desenvolvimento de suas disposições na- intratabilidade, a vaidade que produz a inveja competi-
~ turais. Mas ele também tem uma forte tendência a sepa- tiva, pelo sempre insatisfeito desejo de ter e também de
rar-se (isolar-se), porque encontra em si ao mesmo tempo dominar! Sem eles todas as excelentes disposições natu-
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~~ uma qualidade insociável que o leva a querer conduzir rais da humanidade permaneceriam sem desenvolvimen-
tudo simplesmente em seu proveito, esperando oposição to num sono eterno. O homem quer a concórdia, mas a
de todos os lados, do mesmo modo que sabe que está natureza sabe mais o que é melhor para a espécie: ela
inclinado a, de sua parte, fazer oposição aos outros. Esta quer a discórdia. Ele quer viver cômoda e prazerosamen-
oposição é a que, despertando todas as forças do homem, te, mas a natureza quer que ele abandone a indolência e
1.1 o leva a superar sua tendência à preguiça e, movido pela o contentamento ocioso e lance-se ao trabalho e à fadi-
Ij~ ga, de modo a conseguir os meios que ao fim o livrem
busca de projeção (Ehrsucht), pela ânsia de dominação
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(Herrschsucht) ou pela cobiça (Habsucht), a proporcionar- inteligentemente dos últimos. Os impulsos naturais que
se uma posição entre companheiros que ele não atura conduzem a isto, as fontes da insociabilidade e da oposi-
IIII mas dos quais não pode prescindir. Dão-se então os pri- ção geral, de que advêm tantos males, mas que também
meiros verdadeiros passos que levarão da rudeza à cultu- impelem a uma tensão renovada das forças e a um maior
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desenvolvimento das disposições naturais, revelam tam- berdade selvagem. Apenas sob um tal cerco, como o é a
bém a disposição de um criador sábio, e não a mão de união civil, as mesmas inclinações produzem o melhor
um espírito maligno que se tenha intrometido na magní- efeito: assim éomo as árvores num bosque, procurando
fica obra do Criador ou a estragado por inveja. roubar umas às outras o ar e o sol, impelem-se a buscá-los
acima de si, e desse modo obtêm um crescimento belo e
aprumado, as que, ao contrário, isoladas e em liberdade,
Quinta proposição lançam os galhos a seu bel-prazer, crescem mutiladas,
sinuosas e encurvadas. Toda cultura e toda arte que or-
namentam a humanidade, a mais bela ordem social são
o maior problema para a espécie humana, a cuja solu-
ção a natureza a obriga, é alcançar uma sociedade civil que frutos da insociabilidade, que por si mesma é obrigada a
administre universalmente o direito. Como somente em so- se disciplinar e, assim, por meio de um artifício imposto,
ciedade e a rigor naquela que permite a máxima liberda- a desenvolver completamente os germes da natureza.
de e, conseqüentemente, um antagonismo geral de seus
membros e, portanto, a mais precisa determinação e res-
guardo dos limites desta liberdade - de modo a poder Sexta proposição
coexistir com a liberdade dos outros; como somente nela
o mais alto propósito da natureza, ou seja, o desenvolvi- Este problema é, ao mesmo tempo, o mais difícil e o que
mento de todas as suas disposições, pode ser alcançado será resolvido por último pela espécie humana. A dificuldade
pela humanidade, a natureza quer que a humanidade que a simples idéia dessa tarefa coloca diante dos olhos
proporcione a si mesma este propósito, como todos os é que o homem é um animal que, quando vive entre outros
outros fins de sua destinação: assim uma sociedade na de sua espécie, tem necessidade de um senhor. Pois ele cer-
tamente abusa de sua liberdade relativamente a seus se-
qual a liberdade sob leis exteriores encontra-se ligada no
mais alto grau a um poder irresistível, ou seja, uma cons- melhantes; e, se ele, como criatura racional, deseja uma
tituição civil perfeitamente justa deve ser a mais elevada
lei que limite a liberdade de todos, sua inclinação animal
tarefa da natureza para a espécie humana, porque a na- egoísta o conduz a excetuar-se onde possa. Ele tem ne-
tureza somente pode alcançar seus outros propósitos re- cessidade de um senhor que quebre sua vontade particu-
lativamente à nossa espécie por meio da solução e cum- lar e o obrigue a obedecer à vontade universalmente vá-
primento daquela tarefa. É a necessidade que força o ho- lida, de modo que todos possam ser livres. Mas de onde
mem, normalmente tão afeito à liberdade sem vínculos, tirar esse senhor? De nenhum outro lugar senão da es-
a entrar neste estado de coerção; e, em verdade, a maior pécie humana. Mas este é também um animal que tem
de todas as necessidades, ou seja, aquela que os homens necessidade de um senhor. Seja qual for o começo, não
ocasionam uns aos outros e cujas inclinações fazem com se vê como o homem pode se dar, para estabelecer a jus-
IIIII que eles não possam viver juntos por muito tempo em li- tiça pública, um chefe que também seja justo - ele pode
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~ procurá-Io numa única pessoa ou num grupo de pessoas república (gemeines Wesen)? A mesma insociabilidade que
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escolhidas para isso. Pois todos eles abusarão sempre de obrigou os homens a esta tarefa é novamente a causa de
sua liberdade, se não tiverem acima de si alguém que que cada republica, em suas relações externas - ou seja,
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exerça o poder segundo as leis. O supremo chefe deve ser como um Estado em relação a outros Estados -, esteja
justo por si mesmo e todavia ser um homem. Esta tarefa é, numa liberdade irrestrita, e conseqüentemente deva es-
~ por isso, a mais difícil de todas; sua solução perfeita é perar do outro os mesmos males que oprimiam os indiví-
I~, impossível: de uma madeira tão retorcida, da qual o ho- duos e os obrigavam a entrar num estado civil conforme
~j mem é feito, não se poder fazer nada reto. Apenas a leis. A natureza se serviu novamente da incompatibilida-
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aproximação a esta idéia nos é ordenada pela natureza *. de entre os homens, mesmo entre as grandes sociedades e
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Ilt Que ela seja aquela que será realizada por último decorre corpos políticos desta espécie de criatura, como um meio
disto: que ela exige conceitos exatos da natureza de uma para encontrar, no seu inevitável antagonismo, um esta-
constituição possível, grande experiência adquirida atra- do de tranqüilidade e segurança; ou seja, por meio de
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vés dos acontecimentos do mundo e, acima de tudo, uma guerras, por meio de seus excessivos e incessantes prepa-
~ boa vontade predisposta a aceitar essa constituição - estes rativos, por meio da miséria, advinda deles, que todo Es-
três pontos, todavia, muito dificilmente podem ser encon- tado finalmente deve padecer no seu interior, mesmo em
trados juntos e, quando isto acontece, ocorre somente tempo de paz, a natureza impele a tentativas inicialmen-
~ muito tarde, após muitas tentativas frustradas. te imperfeitas, mas finalmente, após tçmta devastação e
~~ transtornos, e mesmo depois do esgotamento total de
I~~ suas forças internas, conduz os Estados àquilo que a ra-
I~I Sétima proposição zão poderia ter-lhes dito sem tão tristes experiências, a
~Ii saber: sair do Estado sem leis dos selvagens para entrar
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o problema do estabelecimento de uma constituição civil numa federação de nações em que todo Estado, mesmo
perfeita depende do problema da relação externa legal entre o menor deles, pudesse esperar sua segurança e direito
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Estados, e não pode ser resolvido sem que este último o seja. não da própria força ou do próprio juízo legal, mas so-
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Para que serve trabalhar para uma constituição civil con- mente desta grande confederação de nações (Foedus Am-
forme leis entre indivíduos, ou seja, na ordenação de uma phictyonum) de um poder unificado e da decisão segun-
I~I do leis de uma vontade unificada. Tão fantástica (schwiir-
* O papel do homem é muito artificial. Não sabemos o que ocor- merisch) quanto esta idéia possa parecer, e embora, en-
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re com os habitantes de outros planetas e qual a sua natureza; mas, se quanto tal, se preste ao riso no Abbé de Saint-Pierre ou
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cumprirmos bem esta missão da natureza, podemos nos orgulhar de em Rousseau (talvez porque eles acreditassem na reali-
pretender afirmar uma posição não inferior à dos nossos vizinhos no zação demasiado próxima dela), é a saída inevitável da
t edifício do mundo. Talvez entre eles cada indivíduo possa alcançar ple-
namente sua destinação em vida. Entre nós não ocorre assim - somen- miséria em que os homens se colocam mutuamente e que
te a espécie pode esperar isso. deve obrigar os Estados à mesma decisão (ainda que só a
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14 RlCARDO R. TERRA (ORG.) IDÉIA DE UMA HISTÓRIA UNIVERSAL 15
admitam com dificuldade) que coagiu tão a contra-gos- mente selvagem aquelas disposições originais; ou se se
to o homem selvagem, a saber: abdicar de sua liberdade quer, ao contrário, que de todas as ações e reações do ho-
brutal e buscar tranqüilidade e segurança numa constitui- mem não advenha, no conjunto, nada em parte alguma,
ção conforme as leis. Todas as guerras são, assim, tentati- ao menos nada de sábio, que tudo ficará como era, e não
vas (não segundo os propósitos dos homens, mas segun- se poderá predizer disto se a discórdia, tão natural em
do os da natureza) de estabelecer novas relações entre os nossa espécie, prepara-nos ao fim um inferno de males,
Estados e, por meio da destruição ou ao menos pelo des- mesmo num Estado tão civilizado, e talvez destrua nova-
membramento dos velhos*, formar novos corpos que mente este mesmo Estado e todos os progressos cultu-
porém, novamente, ou em si mesmos ou na relação com rais realizados até aqui por meio de uma devastação bár-
os outros, não podem manter-se, e por isso precisam en- bara (um destino no qual não se pode evitar o governo
frentar novas revoluções semelhantes; até que final- do cego acaso, o qual de fato se identifica com a liberda-
mente, em parte por meio da melhor ordenação possí- de sem lei, se não se a submete ao fio condutor da natu-
vel da constituição civil, internamente, em parte por meio reza secretamente ligado à sabedoria!) - tudo leva apro-
de um acordo e de uma legislação comuns, exteriormen- ximadamente à seguinte questão: será mesmo racional
te, seja alcançado um Estado que, semelhante a uma Re- aceitar a finalidade das disposições naturais em suas par-
pública (gemeines Wesen) civil, possa manter-se a si mes- tes e, no entanto, a ausência de finalidade no todo? O que
mo como um autômato. o Estado sem finalidade dos selvagens fez - ou seja, en-
Se se deve esperar de um concurso epicurista de travou todas as disposições naturais em nossa espécie,
causas eficientes que os Estados, como as partículas da mas finalmente, por meio dos males, onde ele a colocou,
matéria, experimentem por meio de choques ocasionais obrigou-a a sair desse Estado e entrar na constituição ci-
todos os tipos de configuração, que por meio de outras vil, na qual todos aqueles germes podem ser desenvol-
colisões serão novamente destruídos, até que por fim se vidos -, faz também a liberdade bárbara dos Estados já
alcance acidentalmente uma configuração que se possa constituídos, a saber: que por meio do emprego de todas
manter em sua forma (um feliz acaso que dificilmente as forças das repúblicas (gemeines Wesen) em se armar
acontecerá!); ou se se deve a:eitar antes que a natureza umas contra as outras, que por meio das devastações oca-
siga aqui um curso regular para conduzir a nossa espé- sionadas pelas guerras, mas ainda maIS por meio da ne-
cie aos poucos de um grau inferior de animalidade até o cessidade permanente de estar de prontidão, na verdade
grau supremo de humanidade, por meio de uma arte que impede-se o pleno desenvolvimento das disposições na-
lhe é própria, embora extorquida do homem, e desenvol- turais em seu progresso, mas, por outro lado, também os
ver de maneira bem regular nessa ordenação aparente- males que surgem daí obrigam nossa espécie a encontrar
uma lei de equilíbrio para a oposição em si mesma sau-
* Seguimos aqui a versão da edição da Koniglich Preussischen dável' nascida da sua liberdade, entre Estados vizinhos, e
Akademie der Wissenschaften, e não a edição de Wilhelm Weischedcl, um poder unificador que dê peso a esta lei, de modo a
onde se lê "aller", em vez de "alter". (N. do T.) introduzir um Estado cosmopolita de segurança pública
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entre os Estados - que não elimine todo perigo, para que Oitava proposição
as forças da humanidade não adormeçam, mas que tam-
bém não careça de um princípio de igualdade de suas ações Pode-se considerar a história da espécie humana, em seu
e reações mútuas, a fim de que não se destruam uns aos conjunto, como a realização de um plano oculto da natureza
outros. Antes que este último passo aconteça (ou seja, a para estabelecer uma constituição política (Staatsverfassung)
união dos Estados), quase somente na metade do seu de- perfeita interiormente e, quanto a este fim, também exterior-
senvolvimento, a natureza humana padece do pior dos mente perfeita, como o único estado no qual a natureza pode
males, sob a aparência enganosa do bem-estar exterior; e desenvolver plenamente, na humanidade, todas as suas dis-
Rousseau não estava tão errado ao preferir o Estado dos posições. Esta proposição é uma conseqüência da anterior.
selvagens, se se deixar de lado este último degrau que Vê-se que a filosofia também pode ter seu quiliasmo, mas
nossa espécie ainda tem que galgar. Mediante a arte e a para o advento deste a sua idéia, ainda que somente de
ciência, somos cultivados em alto grau. Somos civilizados muito longe, pode tornar-se mesmo favorável. Ele não
até a saturação por toda espécie de boas maneiras e de- é nada menos que fantástico (schwarmerisch). O problema
coro sociais. Mas ainda falta muito para nos considerar- está em saber se a experiência revela algo de um tal curso
mos moralizados. Se, com efeito, a idéia de moralidade do propósito da natureza. Digo que muito pouco, pois
pertence à cultura, o uso, no entanto, desta idéia, que não este ciclo parece exigir tanto tempo para cumprir-se que,
vai além de uma aparência de moralidade (Sittenahnliche) deste ponto de vista, a pequena parte que a humanidade
no amor à honra e no decoro exterior, constitui apenas a percorreu permite determinar somente de maneira mui-
civilização. Mas enquanto os Estados empregarem todas to incerta a forma de sua trajetória e a relação das partes
as suas forças em propósitos expansionistas ambiciosos com o todo, e o mesmo ocorre se quisermos determinar,
e violentos, impedindo assim continuamente o lento es- a partir das observações do céu feitas até aqui, o curso
forço de formação interior do modo de pensar de seus do nosso sol junto com todo o cortejo de seus satélites
cidadãos, privando-os mesmo de qualquer apoio neste
no grande sistema de estrelas fixas - entretanto o prin-
propósito, nada disso pode ser esperado, porque para cípio geral da constituição sistemática da estrutura do
isto requer-se um longo trabalho interior de cada repúbli-
mundo e o pouco que se observou bastam para concluir
ca (gemeines Wesen) para a formação de seus cidadãos.
com segurança a respeito da realidade de um tal ciclo.
Mas todo bem que não esteja enxertado numa intenção Ademais, a natureza humana não se mostra indiferente
moralmente boa não passa de pura aparência e cintilan-
ante a mais longínqua época que nossa espécie deve al-
te miséria. O gênero humano permanecerá neste Estado
até que, por seu esforço, do modo como foi dito por mim, cançar, desde que ela possa ser esperada com segurança.
saia do estado caótico em que se encontram as relações Principalmente no nosso caso não deve ocorrer a indi-
entre os Estados. ferença, já que parece que podemos, por meio de nossa
própria disposição racional, acelerar o advento de uma era
tão feliz para os nossos descendentes. Graças a isso, o
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mais leve sinal de sua aproximação torna -se muito impor- mesmo assiIT.leles acharão vantajoso não impedir os es-
tante para nós. Atualmente os Estados se encontram nu- forços particulares, ainda que débeis e vagarosos, de seus
ma relação tão artificial entre si que nenhum deles pode povos, ao menos neste aspecto. Por fim, a guerra torna-se
negligenciar a cultura interna sem perder em poder e in- aos poucos não somente ~ãosofisticada e de desenlace tão
fluência diante dos outros; assim os propósitos ambicio- incerto para ambas as partes, mas também, por suas con-
sos asseguram bem, se não o progresso, ao menos a ma- seqüências nefastas - que o Estado experimenta como
nutenção dessa finalidade da natureza. Mais ainda: a li- uma dívida sempre crescente (uma nova invenção), cuja
berdade civil hoje não pode mais ser desrespeitada sem amortização torna-se imprevisível-, transforma-se numa
que se sintam prejudicados todos os ofícios, principal- empresa muito delicada, de onde a influência tão notável
mente o comércio, e sem que por meio disso também se que os abalos em um Estado produzem em todos os ou-
sinta a diminuição das forças do Estado nas relações ex- tros Estados em nossa parte do mundo tão ligada pela
ternas. Mas aos poucos esta liberdade se estende. Se se indústria: assim, pressionados por seu próprio risco, em-
impede o cidadão de procurar seu bem-estar por todas as bora sem consideração legal, eles se oferecem como árbi-
formas que lhe agradem, desde que possam coexistir com tros e desse modo preparam com antecedência um futuro
a liberdade dos outros, tolhe-se assim a vitalidade da ati- grande corpo político (Staatskorper), do qual o passado não
vidade geral e com isso, de novo, as forças do todo. Por deu nenhum exemplo. Embora este corpo político (Staats-
isso as restrições relativas à pessoa em sua conduta são korper) por enquanto seja somente um esboço grosseiro,
paulatinamente retiradas e a liberdade universal de re- começa a despertar em todos os seus membros como que
ligião é concedida; e assim surge aos poucos, em meio a um sentimento: a importância da manutenção do todo; e
ilusões e quimeras inadvertidas, o Iluminismo (Aufklarung) isto traz a esperança de que, depois de várias revoluções
como um grande bem que o gênero humano deve tirar e transformações, finalmente poderá ser realizado um
mesmo dos propósitos de grandeza egoísta de seus che- dia aquilo que a natureza tem como propósito supremo,
fes, ainda quando só tenham em mente suas próprias van- um Estado cosmopolita universal, como o seio no qual
tagens. Mas este Iluminismo, e com ele também um certo podem se desenvolver todas as disposições originais da
interesse do coração que o homem esclarecido (aufgeklart) espécie humana.
não pode deixar de ter em relação ao bem, que ele con-
cebe perfeitamente, precisa aos poucos ascender até os
tronos e ter influência mesmo sobre os princípios de go- Nona proposição
verno. Ainda que, por exemplo, aos atuais governantes
do mundo não sobre até hoje nenhum dinheiro para os Uma tentativa filosófica de elaborar a história universal
estabelecimentos públicos de ensino e em geral para tudo do mundo segundo um plano da natureza que vise à perfeita
o que tange ao aperfeiçoamento do mundo, porque tudo já união civil na espécie humana deve ser considerada possível e
está comprometido de antemão com as futuras guerras, mesmo favorável a este propósito da natureza. É um projeto
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20 RICARDO R. TERRA (ORG.) IDÉIA DE UMA HISTÓRIA UNIVERSAL 21
estranho e aparentemente absurdo querer redigir uma mos um curso regular de aperfeiçoamento da constituição
história (Geschichte) segundo uma idéia de como deveria política (Staatsverfassung) em nossa parte do mundo (que
ser o curso do mundo, se ele fosse adequado a certos fins provavelmente um dia dará leis a todas as outras). Consi-
racionais - tal propósito parece somente poder resultar deremos em todas as partes apenas a constituição civil e
num romance. Se, entretanto, se pode aceitar que a na- suas leis e a relação entre os Estados, e veremos que am-
tureza, mesmo no jogo da liberdade humana, não pro- bos, pelo bem que contêm, serviram por um certo tempo
cede sem um plano nem um propósito final, então esta para elevar e glorificar os povos (e com eles também as
idéia poderia bem tornar-se útil; e mesmo se somos mío- artes e as ciências), mas, por meio dos vícios que lhes es-
pes demais para penetrar o mecanismo secreto de sua dis- tão ligados, tornam a destruí -los, porém de tal modo que
posição, esta idéia poderá nos servir como um fio con- sempre permaneceu um germe do Iluminismo que, de-
dutor para expor, ao menos em linhas gerais, como um senvolvendo-se mais a cada revolução, preparou um grau
sistema, aquilo que de outro modo seria um agregado sem mais elevado de aperfeiçoamento. Descobre-se assim,
plano das ações humanas. Pois, se partirmos da história creio, um fio condutor que pode servir não apenas para o
grega, como aquela em que se conservam todas as outras esclarecimento do tão confuso jogo das coisas humanas
histórias que lhe são anteriores ou contemporâneas, ou ou para a arte de predição política das futuras mudanças
ao menos a que garante a sua autenticidade*; se perse- estatais (Staatsveranderungen) (um uso que já era feito de
guirmos sua influência sobre a formação e degeneração outro modo da história dos homens, mesmo quando se
(Missbildung) do corpo político (Staatskorper) do povo ro- a considerava como o efeito desconexo de uma liberda-
mano, que absorveu o Estado grego, e a influência dos
de sem regras!), mas que abre também (o que, com razão
romanos sobre os bárbaros, que por sua vez os destruíram,
[Grund], não se pode esperar sem pressupor um plano da
até os nossos dias; e se acrescentarmos episodicamente a
natureza) uma perspectiva consoladora para o futuro, na
história política de outros povos tal como seu conheci-
mento chegou pouco a pouco até nós justamente por qual a espécie humana será representada num porvir dis-
meio destas nações esclarecidas (aufgeklart) - descobrire- tante em que ela se elevará finalmente por seu trabalho a
um estado no qual todos os germes que a natureza nela
colocou poderão desenvolver-se plenamente e sua desti-
,. Somente um público instruído, que persistiu de seu começo até nação aqui na Terra ser preenchida. Uma tal justificação
nós ininterruptamente, pode garantir a autenticidade da história anti-
da natureza - ou melhor, da Providência - não é um mo-
ga. Fora dele, tudo é terra incógnita, e a história dos povos que viveram
fora dele só pode começar no momento em que aí entraram. Isto tivo de pouca importância para escolher um ponto de vis-
aconteceu com o povo judeu à época de Ptolomeu, por meio da tradu- ta particular para a consideração do mundo. De que serve
ção grega da Bíblia, sem a qual se daria pouco crédito aos relatos iso- enaltecer a magnificência e a sabedoria da criação num
lados sobre ele. A partir daí (se este começo tiver sido devidamente es-
tabelecido) pode-se remontar às suas narrativas. E assim com todos os
reino da natureza privado de razão, de que serve reco-
outros povos. A primeira página de Tucídides (diz Hume) é o único mendar a sua observação, se a parte da vasta cena da su-
começo de toda verdadeira história. prema sabedoria que contém o fim de todas as demais-
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