Procedimentos Inter Midiaticos em Clara

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Scripta Uniandrade, v. 16, n.

3 (2018)
Revista da Pós-Graduação em Letras – UNIANDRADE
Curitiba, Paraná, Brasil

PROCEDIMENTOS (INTER)MIDIÁTICOS EM CLARA AND MR. TIFFANY1

Dra. MIRIAM VIEIRA


Universidade Federal de São João del Rei (UFSJ)
São João del Rei, Minas Gerais, Brasil
[email protected]

RESUMO: Ambientado na efervescente Nova York de fin de siècle, o romance do


tipo Künstlerroman Clara and Mr. Tiffany (2011), da autora Susan Vreeland, trata
da vida e obra da designer estadunidense Clara Driscoll. O universo do Estúdio
Tiffany é narrado em primeira pessoa pela protagonista que desenvolve peças
decorativas em vidro no estilo Art Nouveau. Com objetivo de distinguir uma
passagem ecfrástica que trata um sítio arquitetônico como se fosse uma pintura,
ou uma fotografia, de outra que tira proveito da tridimensionalidade de uma peça
de design ou mesmo de toda a potencialidade de uma obra arquitetônica, este
ensaio visa a análise de passagens ecfrásticas que verbalizam diferentes mídias
presentes na narrativa de Clara and Mr. Tiffany, tais como vitrais e peças
decorativas, assim como paisagens urbanas e edificações arquitetônicas. Para tal,
além das características intrínsecas às mídias em questão, vou me valer da noção
de écfrase arquitetônica como fenômeno midiático.

Palavras-chave: Arquitetura. Écfrase. Intermidialidade. Literatura.

Artigo recebido em: 23 ago. 2018.


Aceito em: 19 set. 2018.

1 O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento

Científico e Tecnológico – Brasil (nº do processo: 168942/2017-8). É uma compilação da primeira


parte do quarto capítulo da minha tese de doutorado intitulada Dimensões da écfrase: a presença da
pintura e da arquitetura em romances de artista (2016).

VIEIRA, Miriam. Procedimentos (inter)midiáticos em Clara and Mr. Tiffany. Scripta Uniandrade, v. 16,
n. 3 (2018), p. 58-77.
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Data de edição: 11 nov. 2018.
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(INTER)MEDIAL PROCEDURES IN CLARA AND MR. TIFFANY

ABSTRACT: Set in the fin de siècle hectic New York, the Künstlerroman Clara and
Mr. Tiffany (2011), by Susan Vreeland, unveils, in first person, how the American
designer Clara Driscoll conceived and designed the iconic Art Nouveau oeuvre by
Tiffany Studios. Aiming at distinguishing an ekphrastic passage that unfolds an
architectural site as if it were a painting or a photograph, another one that takes
full advantage of the tridimensionality of a design piece, or even the full potential
of an architectural work, this paper presents the analysis of ekphrastic passages
that verbalize different media, such as stained-glass windows and decorative
pieces, as well as urban landscapes and architectural edifications. To achieve this
purpose, besides the intrinsic features of the involved media, I will rely on the
notion of architectural ekphrasis as a medial phenomenon.

Keywords: Architecture. Ekphrasis. Intermediality. Literature.

Em 2007, os curadores Margi K. Hofer, Nina Gray e Martin Eidelberg


organizaram uma exibição com aproximadamente 60 objetos: abajures,
luminárias, janelas, esmaltados e cerâmicas elaborados por Clara Driscoll e as
demais mulheres, a maioria delas imigrantes, que trabalhavam nos Tiffany
Studios, de Louis Comfort Tiffany, em Nova York. As peças, com motivos
orgânicos, naturais e florais, eram produzidas em vitrais, mosaicos, vidro soprado
e esmaltados. Cartas escritas por Clara Driscoll a seus familiares em Ohio,
encontradas no início do século XXI, possibilitaram a coletânea. Louis Tiffany foi o
pioneiro e maior expoente do movimento Art Nouveau nos Estados Unidos, por
revolucionar o design de interiores no final do século XIX e início do século XX
naquele país. Esse material coletado – objetos em vidro, cartas e fotografias da
época – deu origem ao catálogo da exibição, intitulado A New Light on Tiffany:
Clara Driscoll and the Tiffany Girls.
A exibição das peças e o livro A New Light on Tiffany inspiraram a autora
norte-americana Susan Vreeland a escrever o Künstlerroman intitulado Clara and
Mr. Tiffany (2011). A ação da trama se dá durante o movimento conhecido como
Art Nouveau,2 momento histórico de grandes transições, principalmente no que diz

2Um panorama geral do movimento Art Nouveau é apresentado no artigo “O lugar da natureza no
movimento Art Nouveau” (VIEIRA, 2012).

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respeito ao modo de construir e, mais ainda, de se pensar a arquitetura, os


interiores e o design.
Clara and Mr. Tiffany é recheado de écfrases marcadas não exatamente por
uma picturalidade, mas por uma visualidade patente. O universo dos estúdios de
Louis Comfort Tiffany é narrado em primeira pessoa pela protagonista Clara
Driscoll, chefe da unidade de mulheres da empresa, em uma efervescente Nova
York de fin de siècle. Além do uso de écfrases nas interpretações do processo de
criação da personagem central, a autora recorre a outras referências
intramidiáticas, tais como os vários fragmentos de canções populares da época e
poemas de Emily Dickinson, Walt Whitman, William Shakespeare e William
Wordsworth, citados ao longo do romance.
Por meio de écfrases de peças feitas em vitral, de interiores ao gosto Art
Nouveau e de paisagens urbanas, o leitor é guiado em um grande passeio visual
pela Manhattan de fin de siècle. Para elaborar peças decorativas produzidas pelo
Tiffany Studios, a designer Clara Driscoll busca inspiração na natureza abundante
dos arredores de Nova York e nas grandes e dramáticas mudanças na silhueta da
efervescente metrópole. Desse modo, a arquitetura, ao fazer parte do processo
criativo da protagonista, extrapola o mero pano de fundo.
Muito já foi escrito sobre a relação arquitetura e literatura sob diferentes
escopos teóricos. A arquitetura pode ser reapresentada pela literatura de
diferentes maneiras e por meio de diferentes recursos. Uma delas se dá através da
écfrase – grosso modo, a descrição literária de objetos de arte – premissa que, a
princípio, exclui a arquitetura, por esta não se configurar como uma mídia
representativa. Exatamente com a intenção de incluir mídias não miméticas,
Claus Cluver propôs a definição de écfrase como “representação verbal de
configurações reais ou fictícias compostas numa mídia visual não-cinética” 3
(CLÜVER, 2016, p.462). Além de abarcar tanto as fontes de inspiração existentes
quanto as imaginárias, sua definição abrange as artes tradicionais, as pinturas
não representativas, a escultura e a arquitetura. Saindo dos domínios do discurso
interartes, a proposta de Clüver abre as portas para o estudo da écfrase em
diferentes mídias, possibilitando a análise da écfrase de edificações e de espaços
urbanos. A proposta de Clüver sugere a retomada da importância do papel da
oratória na Antiguidade, quando a écfrase era entendida como um exercício
retórico que envolvia tanto descrição quanto narração, com o objetivo de induzir
sentimentos e pensamentos vívidos por meio da enargeia, ou enargia, recurso que
coloca o objeto narrado à frente do olho do leitor com uma vivacidade que torna o
ouvinte espectador. Philippe Hamon, por sua vez, argumenta que “a presença da

3 No original: “[...] verbal representation of real or fictive configurations composed in a non-kinetic


visual medium”. Clüver reformula sua conhecida definição da écfrase como “a representação verbal
de um texto ou textos reais ou fictícios compostos em sistemas sígnicos não verbais” (CLÜVER,
2008, p. 18), para a discutir a possibilidade da mídia cinema ser, ou não, incluída nos estudos sobre
écfrase.

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arquitetura na literatura parece estar duplamente confinada e circunscrita por


gêneros epidíticos. Mais especificamente, está vinculada à prática da écfrase”
(HAMON, 1999, p. 24, tradução nossa). Com objetivo de distinguir uma
representação verbal de uma edificação, ou de um sítio arquitetônico, da
representação verbal de uma pintura, este ensaio visa a análise de passagens
ecfrásticas que verbalizam vitrais, peças decorativas, paisagem urbana e
edificações arquitetônicas. Para as écfrases inspiradas pela arquitetura, vou me
valer do modelo interpretativo (VIEIRA, 2017) delineado para o estudo de quatro
tipos de écfrases arquitetônicas: contemplativa, performativa, simbólica e técnica.
As leis em voga nos Estados Unidos durante a virada do século XIX-XX
proibiam empresas como os Tiffany Studios de manter contrato com mulheres
casadas. Assim sendo, a trama do romance trata da trajetória de Clara desde o
momento que decide retomar o trabalho após enviuvar-se prematuramente até a
aposentadoria. Em uma nova fase de vida, é promovida como chefe do
departamento feminino dos Tiffany Studios e envolve-se afetivamente com Edwin
Waldo, um entusiasmado ativista político. Com receio de novamente abrir mão de
sua carreira, a protagonista posterga a resposta ao seu pedido de casamento.
Quando finalmente decide aceitar, o noivo desaparece misteriosamente, o que a
fragiliza. Mas a designer não se deixa abater e direciona toda a sua energia para o
trabalho. Essa dedicação a leva a ganhar reconhecimento internacional com a
peça Dragonfly (Libélula, 1899), na Exposição Universal de Paris, em 1900. Em
1902, o departamento masculino exige o fechamento do departamento feminino,
pois, segundo eles, além de ele lhes tirar trabalho, o produto final só serve para
gerar prestígio a Mr. Tiffany, não dando lucros à empresa. Mas Clara incentiva a
luta pelos direitos da mulher no trabalho junto a sua equipe. Em 1908, aos 47
anos, a protagonista casa-se com o ator inglês Bernard Booth, seu amigo e
confidente, e aposenta-se.
A protagonista mantém uma relação muito próxima com o patrão, Louis
Comfort Tiffany, com quem tem longos e animados diálogos sobre a concepção e
elaboração das peças de design. Nesses diálogos, a autora usa a voz de Mr. Tiffany
para evocar os preceitos e a fundamentação teórica do movimento Art Nouveau.
São muitos os momentos de inspiração e de processo criativo de Clara ao longo de
todo o romance. Dentro da temática do movimento de vanguarda – a estilização de
formas da natureza e o conflito gerado pelo aceleramento do crescimento das
grandes cidades –, Vreeland explora o léxico pertinente aos novos materiais em
voga – o ferro e o vidro –, assim como as relações de transparência – luz e brilho. O
processo de execução de vitral consiste, grosso modo, em envolver as bordas das
peças de vidro em fita de cobre. Essas fitas de cobre serão estanhadas e soldadas
entre si. Cada peça de vidro passa por um processo de pigmentação para adquirir
cores diferentes. As passagens dedicadas a cada uma das peças – vitrais,
mosaicos, abajures e luminárias, entre outros – são longas e se estendem por
vários capítulos, como a écfrase tradicional do vitral bidimensional Aurora, Young

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Woman at a Fountain (A jovem Aurora e a fonte, 1894) e a écfrase de um vitral


tridimensional, o abajur Butterfly (Borboleta, 1899).
No trecho que antecede a écfrase da confecção do vitral bidimensional
Aurora, Young Woman at a Fountain (FIGURA 1), a jovem viúva, Clara, é pedida em
casamento por Edwin. Porém ela só se sente pronta para um novo casamento
mais de um ano após a proposta. Apesar de estar aberta para o amor, não está
disposta a novamente abrir mão da carreira. A designer concentra toda sua
energia na elaboração da peça, na esperança de fazer um trabalho tão primoroso e
extraordinário que leve Mr. Tiffany a rever a política da empresa em relação a
mulheres casadas. Clara relata o processo de transposição do desenho da donzela
pintado em papel, de autoria de Will Lowe, para o vitral:

Na pintura, uma donzela ruiva, com um vestido dourado, com riscas em mel e oliva
claro, estava de pé ao lado de uma cuba oval em pedra, de cuja borda a água se
derramava para dentro de um poço. Uma perna bem talhada até a coxa, assim
como seu quadril, cintura e a parte de baixo de um braço levemente levantado,
estão todos sutilmente visíveis através do tecido diáfano. Escorei vários painéis
contra o parapeito da janela para ver a luz através deles, adorando o que eu
poderia sugerir por meio deles. Mr. Tiffany ficaria deslumbrado se os espectadores
pudessem ver a pele dela através das múltiplas camadas do vidro. Para o fino
tecido que se cai em dobras dos ombros até o chão, eu poderia usar cortinas de
vidro transparente na frente de uma segunda camada de ouro cintilante e sombras
cor de âmbar, e cortar a camada posterior de modo a revelar a forma do corpo
dentro da gaze flutuante... A sensualidade era a genialidade da pintura original, e
eu queria que Mr. Tiffany a reconhecesse em minha interpretação também. Eu
queria ver os olhos dele brilharem de admiração por seu esplendor e por mim... Os
braços da mulher estariam levantados para amarrar ou desamarrar sua túnica?
Um homem havia encomendado o vitral. Desamarrar, decidi. Assim seria mais
erótico. Por mim, o título seria Donzela trêmula se preparando para sua noite de
núpcias (VREELAND, 2011, p. 94-95, tradução e grifos nossos).

O trecho inicia com a palavra “pintura”, mas a medida que a materialidade


do vidro, cuja tonalidade muda de acordo com a incidência da luz, ganha destaque
no relato, a “pintura original” ganha status de “vitral” em sua marcação final. No
entanto, além dos aspectos técnicos envolvidos no procedimento, a protagonista-
narradora deixa transparecer sua ansiedade em relação à iminente noite de
núpcias. No texto, o processo criativo se mistura com os sentimentos, e a
passagem leva o leitor a entender melhor o que se passa dentro da mente e do
coração de Clara.

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Figura 1 – Will H. Lowe, Aurora, Young Woman at a Fountain, c. 1894.


Vitral, 142 cm × 89 cm. Coleção The Charles Hosmer Morse Museum of American Art,
Winter Park, Flórida.
Fonte: <http://goo.gl/BEAsbb>. Acesso em: 14 nov. 2014.

Devido às características comuns dos suportes bidimensionais, a écfrase da


mídia vitral procede de maneira análoga à écfrase de uma pintura.
O segundo exemplo trata da inspiração para o abajur Butterfly (Borboleta,
1899) (FIGURA 2). Clara faz um passeio de bicicleta nos arredores de Nova York
com Alistair, um amigo colecionador de borboletas. Ao perceber que as flores
amarelas que cobrem um arbusto são na verdade borboletas, a protagonista,
extasiada em meio à natureza silvestre, espanta-se com o pedido do amigo para
coletar as borboletas com uma rede e prendê-las em um jarro, para mais tarde
preservá-las.
Ao chegar em casa, Clara começa a desenvolver a ideia do abajur, pensando
em diferentes maneiras de trabalhar com o vidro e o ferro fundido. Em um insight
de criação, Clara mistura a descrição dos procedimentos necessários para a
construção da cúpula com a vontade de agradar ao patrão, o que gera uma
sensação de compensação perante os sentimentos mal resolvidos causados pelo
abandono do noivo:

Naquela noite, deitada na cama, uma ideia cruzou as névoas da minha


consciência. Ao aterrissar, agarrei-a com a mesma segurança que o Sr. Borboleta
[Alistair] Booth capturou a [borboleta do tipo] Vanessa Atalanta. Era o segredo que
o Sr. Tiffany e eu concordamos em guardar até o momento certo.
Os abajures da Tiffany Glass and Decorating Company eram peças únicas
de vidro soprado ou moldado, mas a cúpula que cobria a fonte batismal para a

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capela na Feira de Chicago fora feita de centenas de pedaços de vidro opaco


armados com caixilhos de chumbo.
Uma pequena cúpula construída dessa maneira, mas utilizando vidro
transparente e opalescente e colocada sobre uma fonte de luz, iria transmitir uma
luz suave. Um abajur poderia ser um vitral tridimensional. Uma centena de
borboletas amarelas, recortadas e colocadas como em um voo jubiloso sobre uma
cúpula azul anil iria revolucionar a fabricação de luminárias Tiffany.
Mal podia esperar até o amanhecer. O momento certo para o emergir da
nossa ideia secreta havia chegado. Não. Ainda não. Eu precisava aperfeiçoar o
conceito primeiro para que ele [Mr. Tiffany] pudesse imaginar o que eu tinha em
mente. Quando o confrontei, antes de sair com Edwin, Sr. Tiffany não me julgava
indispensável, pois eu somente executava os desenhos dele ou de alguma outra
pessoa. Qualquer bom seletor poderia fazê-lo. Eu precisava contribuir com algo
único e que me expressasse, que revelasse aquilo que me motivava, de modo a me
tornar inestimável. Isso significava projetar, desde o início, algo que ele amasse
tanto quanto amava sua própria obra.
Eu precisava de uma cúpula, de madeira ou gesso, como apoio para os
pedaços de vidro. Depois de lutar fechada em meu estúdio no dia seguinte, moldei
uma cúpula rasa e grosseira, mais larga que alta, esticando uma peça de
musselina sobre um pedaço de arame (VREELAND, 2011, p. 147, tradução nossa).

A ideia é bem recebida pelo patrão. Clara expõe “como seria adorável
embrulhar um vitral de borboletas amarelas em torno de um sol – [isto é], de uma
fonte de luz” (VREELAND, 2011, p. 150, tradução nossa). Mr. Tiffany estuda as
borboletas coletadas, gosta do esboço inicial do projeto e julga-o viável. Já o
responsável financeiro da empresa, Mr. Mitchell, apesar de concordar com a
originalidade, receia os possíveis problemas construtivos. Mr. Tiffany se empolga
com a ideia da reprodução em grande escala. Animadamente, sonha com “uma
linha inteiramente nova! Acessível para aqueles que não podem comprar um vitral.
Um novo mercado” (VREELAND, 2011, p. 150, tradução nossa). Essa afirmação da
personagem é um dos princípios básicos que desencadearam o desenvolvimento
do design de produto na virada do século XIX para o XX, o que reforça a
contextualização histórica do romance.
Em outro dia, no estúdio, Clara mostra a Mr. Tiffany o esboço da base do
abajur e explica como ela havia “desenhado um anel de suporte, que seria de
bronze, circundando a urna abaixo da aba mais larga, que ligaria um delicado trio
de pés, colocado mais abaixo, a uma armação que ficaria acima para prender o
quebra-luz no lugar” (VREELAND, 2011, p. 153, tradução nossa). Mr. Tiffany
aprova a “direção das abas seguindo a direção do voo das borboletas” e aconselha
a tentativa de moldar “uma leve curva inversa [no local] onde o anel é fixado”
(VREELAND, 2011, p. 153, tradução nossa). Em relação às prímulas, Mr. Tiffany

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ensina a Clara a maneira como a natureza é expressa no movimento Art Nouveau.


Ele diz que as borboletas devem ser desenhadas, “caso ela assim deseje, mas sem
copiar a natureza. Não somos botânicos. Somos artistas. Sugira a natureza, mas
siga as convenções. Estilize. Simplifique-a até chegar às formas do contorno para
transmitir a estrutura. Afinal, trata-se de um artifício” (VREELAND, 2011, p. 153,
tradução nossa). Ou seja, apesar de a natureza servir como inspiração, o resultado
é intencionalmente recriado de modo não mimético.

Figura 2 – Clara Driscoll, abajur Butterfly, 1899.


Vitral, esmaltado e suporte em ferro. Fotografia de Colin Cooke em EIDELBERG, Martin et
al. The Lamps of Louis Comfort Tiffany. Fonte: <http://goo.gl/OwFmBb>. Acesso em: 22
jan. 2013.

Apesar de o abajur Butterfly ser um objeto tridimensional, vários dos


parâmetros já consolidados para o estudo de marcadores textuais de
picturalidade, como os estabelecidos por Hans Lund (1992), Liliane Louvel (2006,
2012) e Valerie Robillard (1998), estão presentes nos trechos ecfrásticos que
tratam da concepção, elaboração e construção da peça. Entre esses parâmetros
destacam-se o léxico que revela a especificidade da mídia (nesse caso um vitral
tridimensional), as funções de linguagem, os indicadores dêiticos, acrescidos dos
marcadores de tridimensionalidade.
Em relação ao léxico, os seguintes termos são usados para diferenciar os
tipos de vidro: “soprado”, “moldado”, “opaco”, “transparente” e “opalescente”; e
para falar do material que serviria de apoio a esses pedaços de vidro para formar a
cúpula: “caixilhos de chumbo”, “madeira”, “gesso”, musselina”, “arame” e “bronze”.
A dicotomia transparência-opacidade é usada para reforçar o brilho e a

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intensidade da incidência de luz através dos termos “opaco”, “transparente” e


“suave”. A cúpula é chamada de “quebra-luz”.
As especificidades do abajur em vitral colorido e o mosaico com suporte em
bronze, são reveladas pelas expressões: “pedaço de vidro armado com caixilho em
chumbo [...] borboletas amarelas [...] cúpula azul-anil”, “vidros com diferentes
tonalidades de amarelo”, “vários pedaços de vidro opalescente amarelo e âmbar”; e
a técnica a ser utilizada na peça, de modo a reforçar a escolha dos materiais
“vidro”, “caixilhos de chumbo”, “madeira ou gesso”, “peça de musselina sobre um
pedaço de arame” e “suporte [em] bronze”.
O uso dos modais would e could (do condicional) sugere a função de
especulação sobre as possibilidades no ato de criação da peça (no original): “A
small dome [...] would transmit a soft light. A lampshade could be a three-
dimensional [...] window. A hundred yellow butterflies [...] over a sky-blue dome
would revolutionize Tiffany lamp making, a delicate trio of legs below to a cage of
ribs above that would secure the shade in place” (VREELAND, 2011, p. 147). Já os
indicadores dêiticos são utilizados de modo que as descrições das peças não
interrompam a leitura, e sim exerçam papel de fio condutor na construção da
narrativa visualmente saturada presente ao longo de toda a trama.
A tridimensionalidade evidenciada pela afirmação “um abajur poderia ser
um vitral tridimensional” e as expressões “a cúpula que cobriu a fonte batismal”,
“uma pequena cúpula [...] sobre uma fonte de luz”, “centenas de borboletas
amarelas [...] que em um voo jubiloso sobre uma cúpula azula anil” e “uma cúpula
rasa e grosseira, mais larga do que alta” são usadas para indicar a localização da
cúpula de vidro em relação à fonte de luz e à estrutura em bronze que envolve o
mosaico que armazena o óleo. Já a combinação das sentenças “um anel de
suporte [...] de bronze, circundando a urna por baixo [...] que conectaria [os] pés
abaixo de uma caixa nervurada que ficaria acima para prender o quebra-luz [em
seu devido] lugar” e “curva ligeiramente inversa [no local] onde o anel é fixado” é
usada para indicar a especificidade da estrutura em bronze, semelhante a uma
escultura. Portanto, entremeando o processo de superação da dor causada pelo
desaparecimento do noivo, essa combinação de trechos ecfrásticos que relatam o
processo criativo de Clara, que deixam vir à tona aspectos psicológicos da
personagem, permitem ao leitor visualizar o abajur Butterfly mais como uma
escultura do que como uma pintura.
Outro tipo de passagem recorrente no romance é o das evocações dos
marcos da cidade, tais como o Parque da Praça Madison, a Ponte do Brooklyn
(FIGURA 5), a mansão de Mr Tiffany em Manhattan (FIGURA 6), e o primeiro
arranha-céu nova-iorquino, o Edifício Fuller (FIGURA 7).
Em um dos vários momentos flâneuse da protagonista, em que vagueia
pelos parques de Manhattan a lamentar a solidão após o desaparecimento do

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noivo, ela cita um fragmento do poema “Solitário qual nuvem vaguei”, também
conhecido como “Narcisos”, de William Wordsworth:

Primavera, e o parque Gramercy estava nesse domingo vestido de narcisos


amarelos, cálices com arestas franzidas em discos de seis pontas. Eles me
lembravam de um poema de Wordsworth sobre narcisos silvestres. Como era o
início? Ah, sim. “Solitário qual nuvem vaguei.” E continuava “da riqueza que tal
cena me trazia.” Bom para ele. Somente um poeta ou uma mulher apaixonada
poderiam medir uma fortuna com flores. Eu não era nem um nem outro
(VREELAND, 2011, p. 40, tradução nossa e WORDSWORTH, 2007, p. 84-87).

Porém, apesar de melancólica, Clara se distrai com uma alegre melodia a


ressoar por todo o parque:

Vagueando também, e em ânimo semelhante, vim para o Madison Square Park. Um


tocador de realejo havia estacionado com seu macaco debaixo de uma radiante
árvore de magnólia com enormes flores cremosas, em cada pétala uma taça de luz
do sol. Ele estava cercado de babás, crianças e seus carrinhos cobertos com véus
brancos parecendo bolos de casamento. Todos no parque estavam com alguém. Até
o tocador de realejo tinha um amigo peludo. Solidão se apoderou de mim apesar da
alegre melodia (VREELAND, 2011, p. 40, tradução nossa).

As figuras do tocador de realejo e o macaco de estimação, das babás e as


crianças, bem como a descrição do modo como a luz do sol é refletida nas flores de
uma frondosa árvore e a inusitada comparação dos véus que encobrem os
carrinhos dos bebês a bolos de noiva me trazem à mente aquelas pinturas
impressionistas repletas de pessoas comuns, em seus momentos de flanêrie,
passeando ou descansando em parques e jardins urbanos, tais como as telas
Tarde de domingo na ilha de Grande Jatte, 1884, de Georges-Pierre Seurat
(FIGURA 3), ou O Parque Monceau, 1878, de Claude Monet (FIGURA 4).

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Figura 3 - Georges-Pierre Seurat, Tarde de domingo na ilha de Grande Jatte, 1884.


Pintura a óleo, 208 cm × 310 cm. Art Institute of Chicago, Coleção Helen Birch Bartlett.
Fonte: <http://www.ibiblio.org/wm/paint/auth/seurat/grande-jatte/>.
Acesso em: 22 jan. 2013.

Figura 4 - Claude Monet, O Parque Monceau, 1878.


Pintura a óleo, 72,7 cm × 54,3 cm. The Metropolitan Museum of Art.
Fonte: <http://www.metmuseum.org/Collections/search-the-collections/110001555/>.
Acesso em: 22 jan. 2013.

Ao descrever o Parque da Praça Madison “como se” fosse uma pintura


impressionista, a protagonista recorre à descrição para contrastar o peso de sua
solidão à leveza passada pelo imaginário da época. Sem fornecer dicas por meio do
título ou citação, a passagem não descreve um quadro específico e por isso exige
do leitor a capacidade de decodificação da linguagem das artes no texto. Esse
recurso ilustra o que Louvel chama de descrição pictural (LOUVEL, 2012, p.193).
Para Robillard, esse tipo de descrição provoca, de maneira “associativa”, o diálogo
entre as artes por meio de ferramentas literárias e temáticas (ROBILLARD, 1998,

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p.60-62). O trecho destaca-se pelo modo como a mídia-alvo – literatura em forma


de romance – evoca ou imita, mas não reproduz genuinamente os elementos ou as
estruturas de sua mídia-fonte – a pintura, e, portanto, ilustra o que Irina
Rajewsky categoriza como “caráter ‘como se” (RAJEWSKY, 2012, p. 27-29). Apesar
da qualidade pictural, devido à sutileza tanto dos marcadores textuais quanto do
nível de saturação pictural, os elementos apresentados são insuficientes para a
configuração do trecho como uma écfrase do parque que integra a paisagem
urbana de Nova York.
Em algumas passagens, a protagonista somente lista os lugares visitados ao
transitar pela metrópole; em outras, ela descreve sua percepção, como neste
trecho sobre a Ponte do Brooklyn:

Na outra direção, bem acima do East River, uma pista de rolamento havia sido
lançada sobre os topos de mastros, suspensa por cabos de aço entre duas torres
imponentes com arcos góticos duplos, seis vezes mais altas que a linha do
horizonte, composta por edifícios de cinco andares. A grandiosidade da Brooklyn
Bridge falava de coragem e audácia, genialidade e esforço humano em grande
escala. Seu efeito era inspirador, declarando que o esforço constante irá trazer
realizações brilhantes. O vento levou embora minha autopiedade mal-humorada
por não poder ir à feira, quando reconheci como eram gloriosos a cidade e o tempo
em que vivia (VREELAND, 2011, p. 72, tradução nossa).

James Heffernan usa exatamente o exemplo do poema (ecfrástico) “À Ponte


do Brooklyn”, de Hart Crane, para argumentar que, devido à ausência de
qualidade representativa, representações de obras arquitetônicas não podem ser
consideradas como écfrase (HEFFERNAN, 1991, p. 4, tradução nossa). Entretanto,
conforme já mencionado, Clüver (1997) inclui a arquitetura para ilustrar
aplicações para o termo. De acordo com sua noção, a representação verbal – a fala
da protagonista do romance – de um texto real composto em sistema sígnico não
verbal – a Ponte do Brooklyn – revela-se como écfrase. O trecho é capaz de fazer
presente uma paisagem urbana ausente por meio da combinação dos elementos
construtivos específicos daquela ponte – “pista de rolamento”, “topos de mastros”,
“cabos de aço”, “duas torres [...] seis vezes mais altas”, “arcos góticos duplos” –
aliados aos marcadores que direcionam o olhar – “outra direção”, “acima”, “sobre”,
“suspensa”, “entre”– seguidos de expressões que reforçam o carácter simbólico de
um dos mais conhecidos cartões postais de Nova York (FIGURA 5). Em uma típica
“écfrase arquitetônica simbólica, ou seja, aquelas atribuídas a um conhecimento
cultural” (VIEIRA, 2017, p. 255), apesar da protagonista-narradora enfatizar mais
o orgulho nacionalista do que a paisagem urbana nessa passagem, o leitor
contemporâneo, mesmo aquele que não possua conhecimento do discurso técnico
ou não tenha interesse por arquitetura, consegue visualizar o monumento
histórico por meio do olhar de Clara. Portanto, apesar de o elemento focalizador se
encontrar fora da cena, a verbalização configura-se como uma écfrase de um
monumento arquitetônico.

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Figura 5 – Fotografia da Ponte do Brooklyn.


Fotografias de época disponibilizada na página na internet da autora Susan Vreeland.
Fonte: <http://goo.gl/ijdj6a>. Acesso em: 2 out. 2014.

As personagens do romance acompanham as grandes e dramáticas


mudanças na silhueta de Manhattan, dentre elas a evolução da construção,
próxima ao Madison Square Park, do primeiro arranha-céu nova-iorquino, o
Edifício Fuller, conhecido como Flatiron (FIGURA 7), devido à semelhança com um
ferro de passar roupas. Eis o trecho:

No parque da Praça Madison, eu me posicionei defronte à árvore de magnólia, para


que as garotas na minha frente pudessem ver o Edifício Flatiron atrás de mim como
uma mera fachada sem estabilidade. Esse edifício começou como uma ideia antes
de tomar forma em ferro e pedra. [...] Uma ideia que reúne beleza, utilidade e
estabilidade. Alguns disseram que não poderia ser construído. Outros, que iria ser
derrubado por um vento forte. Ele apenas parece frágil de uma perspectiva, o que
engana (VREELAND, 2011, p. 313, tradução nossa).

Com o intuito de estimular suas funcionárias a superarem a pressão do


sindicato masculino, que tentava extinguir o departamento feminino, a
protagonista-narradora leva sua equipe até o Madison Square Park. Enquanto o
leitor constrói a cena em sua mente, as funcionárias são guiadas por Clara, que
atua como um produtor teatral e posiciona as colegas como que em um cenário a
fim de verem o edifício somente como uma grande fachada sem estabilidade. Ao
fazer uma analogia entre a fragilidade enganosa do edifício e a do lugar das
mulheres no mercado de trabalho, a autora brinca com a noção de perspectiva na
literatura e na arquitetura. Nessa passagem ecfrástica, em vez de serem guiadas
em um passeio ao redor, ou no interior, da edificação, as personagens imitam a
posição estática contemplativa de um observador defronte a um quadro em um
museu ou uma galeria. O elemento focalizador localiza-se do lado de fora da

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paisagem urbana em questão, a contemplar a edificação. Ou seja, a écfrase


arquitetônica contemplativa (VIEIRA, 2017, p.252) é aquela análoga a uma écfrase
de um artefato bidimensional.
Entretanto, de acordo com o arquiteto Steen Eiler Rasmussen, “não é
suficiente ver arquitetura; devemos vivenciá-la [...], residir nos aposentos, sentir
como nos circundam, observar como nos levam naturalmente de um para outro”
(RASMUSSEN, 1998, p. 32). A arquitetura deve ser explorada fisicamente através
dos sentidos, ou seja, “devemos estar conscientes dos efeitos [causados por
diferentes texturas], descobrir por que certas cores foram usadas e não outras, [...]
e sentir a grande diferença que a acústica faz em nossa concepção de espaço”
(RASMUSSEN, 1998, p. 32). Portanto, uma edificação, ou um sítio arquitetônico,
irá atingir seu fim quando, ao ser vivenciado em sua plenitude, torna-se palco
para a performance das atividades do dia a dia. Mieke Bal, por sua vez, argumenta
que, além de ser “um emprego de visibilidade dentro do discurso linguístico”, a
écfrase é “o gênero discursivo no qual palavras e imagens disputam mais poder
performativo” (BAL, 2006, p. 124-125, tradução nossa). Assim sendo, para
compreender como a tridimensionalidade é verbalizada não somente pelo léxico
arquitetônico e pelas relações entre tempo e espaço, é preciso considerar também
o apelo aos sentidos, principalmente o sensório-motor, que auxilia o narrador a
guiar o leitor dentro e ao redor da edificação. Porém, para investigar como essa
característica performativa da arquitetura se dá no texto literário é preciso,
conforme sugerido por Clüver, retomar as origens do termo écfrase na
antiguidade.
O conceito difundido para a écfrase era imbuído de teorias filosóficas e
retóricas acerca de percepção, imaginação, memória e mimese. Ruth Webb explica
que a écfrase “não buscava representar, mas sim provocar um efeito na mente da
audiência de modo a imitar o ato de ver” (WEBB, 2009, p. 38, tradução nossa) por
meio de enargia, que é aquele efeito déjà vu que sentimos ao identificar uma
imagem visual por meio de uma descrição verbal. Em vez de representar somente
um objeto específico, a écfrase, de modo consistente, favorecia a capacidade
performativa do locutor, graças a sua própria experiência e imaginação. Para
atingir a mente da audiência, esse locutor ativava a visualização de uma cena
através do lampejo de uma outra cena correspondente. A ferramenta
epistemológica conhecida como Periegesis, ou periegese, era utilizada em écfrases
de “lugares feitos pelo homem” como desencadeadora da enargia. Nas écfrases
sobre locais – edificações ou lugares geográficos – o orador fazia uso da periegese
para desencadear o efeito da enargia na audiência. De acordo com Webb, a
periegese é uma “forma elaborada de contar” em que o locutor guia o receptor “em
torno da cena” ou “através do espaço” (WEBB, 2009, p.54, tradução nossa). Em
suma, ao intensificar a experiência arquitetônica de percorrer o entorno, o interior
e o exterior de uma edificação, a periegese facilita o desencadeamento de enargia
em écfrases performativas (VIEIRA, 2017, p.254), isso é, aquelas que tiram
proveito de toda a potencialidade da mídia arquitetura.

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Tal efeito pode ser ilustrado pela passagem em que Clara Driscoll é
convidada a conhecer o estúdio pessoal de seu patrão, Mr. Tiffany, localizada em
Manhattan, que é historicamente considerada um dos marcos culturais do
movimento Art Nouveau nos Estados Unidos. Para uma maior compreensão deste
“movimento estético [como um exemplo de] síntese de todas as artes” (VREELAND,
2011, p. 156, tradução nossa), várias personagens do romance são convidadas a
conhecer o estúdio pessoal do patrão de Clara. A protagonista estranha a ausência
de forro, e o dono da casa explica que o pé direito tem mais de 13 metros de
altura. A designer descreve o que vê:

Daquela escuridão uma variedade estonteante de globos soprados e pesadas


lamparinas em vidro, moldados em formas do Oriente Médio, estavam penduradas
em correntes ornadas de diferentes comprimentos. Não eram correntes comuns.
Claro que não. Entre os elos alongados, essas tinham elefantes, sinos, pavões e
figuras femininas, tudo em ferro fundido. As lamparinas jogavam luz colorida sobre
tapetes persas, peles de tigre sobre canapés, e divãs em ricos tons escuros de
veludo para criar uma atmosfera luxuosa, mas pesada. No centro da sala, uma
enorme chaminé afilada elevava-se em direção à escuridão. Na base alargada,
quatro aberturas parecendo cavernas, cada qual voltada para uma direção,
pareciam ter sido esculpidas em granito. Elas irradiavam uma luz oscilante, um
calor sutil, nuvens de fumaça e uma fragrância aromática (VREELAND, 2011, p.
160-161, tradução nossa).

A relação entre luz e escuridão delimita e enquadra a passagem impregnada


de elementos arquitetônicos feitos em materiais duros – granito, vidro e ferro
fundido – de inspiração oriental, em contraponto àqueles que deixam vestígios
táteis – a trama do tapete persa, o veludo e a pele de animal. O trecho apresenta
um apelo aos sentidos da visão (escuridão, lamparinas com luzes coloridas e
oscilantes), do tato (diferentes texturas), do olfato (fumaça e fragrância aromática)
e ainda ativa o sistema sensório-motor do leitor. Guiado pela narradora, o leitor
vagueia pelo ambiente ao redor do mobiliário requintado, observando detalhes a
partir de diferentes ângulos. De modo a auxiliar a visualização de um ambiente
tão peculiar, os verbos usados para narrar uma experiência da protagonista no
passado – hung, had, soared, gave off –, aliados às expressões de comparação
cave-like e “looked as though they were sculpted” (ver original em nota), evocam o
caráter como se, de modo enfatizar o contraste entre o elemento central do
ambiente, uma lareira tosca, e o luxo dos ornamentos ao seu redor. A noção de
espaço é estabelecida pela relação entre altura e profundidade dos ornamentos
rebuscados. Esse recurso, em que a persona literária guia o leitor em um passeio
por um sítio arquitetônico, pode ser caracterizado como periegese.

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Figura 6 – Fotografia de lareira no estúdio pessoal na mansão de Mr. Tiffany.


Publicada em “The Most Artistic House in New York City: A series of Views of the Home of
Mr. Louis C. Tiffany”, Ladies Home Journal, Nov. 1900. Fonte: <http://goo.gl/0wvORc>.
Acesso em: 22 jan. 2013.

A écfrase ilustra um típico e atravancado interior burguês, cheio de rastros


e vestígios, de modo a contextualizar os interiores característicos da época, como
os descritos por Walter Benjamin (1989), onde não é possível incluir mais nada. A
relação entre luz e escuridão delimita e enquadra a passagem impregnada de
elementos arquitetônicos feitos em materiais duros – granito, vidro e ferro fundido
– de inspiração oriental, em contraponto àqueles que deixam vestígios táteis – a
trama do tapete persa, o veludo e a pele de animal. O trecho apresenta também
um apelo aos sentidos do tato (diferentes texturas), da visão (escuridão,
lamparinas com luzes coloridas e oscilantes), do olfato (fumaça e fragrância
aromática) e ainda ativa o sistema sensório-motor. Guiado pela narradora, o leitor
vagueia pelo ambiente ao redor do mobiliário requintado, observando detalhes a
partir de diferentes ângulos. A noção de espaço é estabelecida pela relação entre
altura e profundidade dos ornamentos rebuscados. Com auxílio do recurso
periegese, a persona literária evoca o ambiente como se fosse uma obra de arte, ou
uma instalação, em que o leitor é levado não somente a transitar por entre o
mobiliário enquanto percebe relações de altura e profundidade provocadas pelos
adornos singulares, mas também a ter sensações provocadas pelos sentidos da
visão, do tato e do olfato. Portanto, parece-me viável considerar essa passagem
também exemplo de écfrase arquitetônica performativa, pois a enargia é
desencadeada pela percepção sensorial do caráter tridimensional do ambiente
arquitetônico.
A protagonista narradora retorna ao Flatiron em um outro momento do
romance e lá explica a seus amigos George, Dudley e Hank que o edifício se ergue
“no lote triangular cortado pelo caminho diagonal que [liga] a Broadway à Quinta
Avenida”. Pedalando “no tráfego ruidoso”, cada vez mais “ela se espanta com a

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ousadia dos arquitetos” (VREELAND, 2011, p. 296, tradução nossa). Assim como
na écfrase do estúdio localizado no interior da residência de Mr. Tiffany, Clara
explora, a partir de diferentes pontos de vista, as características externas do
edifício:

Descendo pelo Madison Square Park, vi o edifício rompendo o céu acima das
árvores. De certo ângulo, somente uma de suas longas laterais era visível, fazendo
com que ele parecesse ser uma construção totalmente plana, uma mera fachada
sem nenhuma profundidade, como se fosse um grande pedaço de papelão em pé,
pintado com janelas. Era desconcertante, mas também emocionante. Andando para
o oeste, podia ver um pedaço do outro lado, o que fazia o edifício parecer mais
estável. Atravessei a rua e encontrei Dudley, Hank e George [...] esperando por mim
no local combinado (VREELAND, 2011, p. 388, tradução nossa).

Apesar de menos pictóricas ou fotográficas que as anteriores, as


comparações inusitadas – como a do edifício que “rompe o céu”, ainda que pareça
“um grande pedaço de papelão em balanço pintado com janelas” ou a “proa de um
navio [que adentra] a cidade”, e a grama do parque “como um tapete verde” –
remetem ao caráter como se sugerido por Rajewsky (2012). De forma
contemplativa, a personagem brinca com o que está inserido dentro de seu campo
visual, enquadrado como se fosse uma foto ou um cartão-postal do edifício.
A coragem dos arquitetos impressiona as personagens do romance. Com 87
metros de altura, distribuídos em 22 andares, o edifício é, para Dudley,
“desafiador e ousado”. Hank o compara à “proa de um navio adentrando a cidade”.
Para George fica a sensação de vertigem (VREELAND, 2011, p. 296, tradução
nossa). Clara guia os amigos até o exato local do parque de onde o edifício parece
extremamente estreito e explica que aquela “é uma nova maneira de se construir.
As paredes exteriores são presas às vigas de aço por dentro, em vez de o interior
da construção ser ligado às paredes exteriores de pedra” (VREELAND, 2011, p.
297, tradução nossa). O novo tipo de construção provoca estranhamento ao
permitir diferentes perspectivas, de acordo com o ponto de vista do observador.
Os amigos decidem subir de elevador até o vigésimo-segundo andar do
edifício. O sentido da audição é evocado por Clara ao sugerir que seus ouvidos
estalam como em um trem atravessando um túnel. Lá do alto, depois de
identificar o prédio onde ficam os Tiffany Studios, os amigos traçam uma linha
imaginária “retangular como um tapete verde”, que vai da Quarta Avenida até o
pequenino Parque Gramercy; logo atrás está Irving Place (VREELAND, 2011, p.
298, tradução nossa). Novamente por meio de écfrase arquitetônica performativa,
as personagens observam a cidade de um ponto de vista completamente novo,
proporcionado pelo deslocamento físico até o topo do Edifício Flatiron, o trecho
promove uma experiência espacial incorporada, que extrapola a écfrase tradicional
de objetos bidimensionais.

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Figura 7 – Fotografia do Edifício Flatiron.


Fonte: <http://goo.gl/7iN0g7>. Acesso em: 22 jan. 2013.

Nos trechos que tratam do Edifício Flatiron, não há indícios óbvios de


picturalidade. Porém, a visualidade com qualidade enargeica está de acordo com a
proposta de Clüver. Como o leitor é levado a observar, e experimentar fisicamente,
o edifício a partir de diferentes ângulos – do outro lado da avenida, da Praça
Madison, do entorno, e ainda de seu topo –, essa écfrase extrapola portanto a de
uma escultura. É preciso que a experiência espacial incorporada seja evidenciada
pelo texto verbal, assim como no momento em que as personagens sobem até o
andar mais alto do edifício e de lá observam a cidade a partir de um ponto de vista
completamente novo. A tridimensionalidade do Edifício Flatiron é aqui
incorporada. Também diferentemente da écfrase do estúdio de Mr. Tiffany,
narrada somente pelo lado de dentro da residência, a narradora age, a partir de
diferentes perspectivas, como um agente focalizador em movimento, ao conseguir
tirar proveito do recurso periegese para explorar o exterior, o interior e ainda o
entorno de uma edificação estática. Guiado pela narradora, o leitor pode ver e
também vivenciar a construção arquitetônica.
Em suma, com auxílio do recurso enargia, o leitor consegue ter um contato
com o texto quando a imagem de uma edificação ausente se faz presente defronte
de seus olhos, ou seja, a écfrase de uma obra arquitetônica do tipo contemplativa
acontece de maneira análoga à écfrase de artefatos bidimensionais. As écfrases
que demandam um certo conhecimento cultural se encaixam também na tipologia
écfrase arquitetônica simbólica. Já com auxílio da periegese, além de possibilitar a
visibilidade, a experiência incorporada das personagens guia o leitor por um lugar
onde ele não está por meio de écfrases arquitetônicas do tipo performativa. As

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écfrases aqui analisadas demostram o quanto o olhar da narradora é o de uma


artista, sensível aos aspectos picturais, visuais, e plásticos provocados pelas
grandes e dramáticas mudanças na arquitetura da Nova York de fin de siècle.

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and Practice. Surrey: Ashgate, 2009.

MIRIAM VIEIRA é professora adjunta de Literaturas em Língua Inglesa no


Departamento de Letras, Artes e Cultura da Universidade Federal de São João del
Rei. Doutora em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pelo Programa de
Pós-Graduação em Estudos Literários da Faculdade de Letras da Universidade
Federal de Minas Gerais. Mestre em Estudos Literários e especialista em Ensino
de inglês como língua estrangeira pela FALE, UFMG. Bacharel em arquitetura.
Áreas de interesse: Literatura, pintura e arquitetura; Estudos sobre
Intermidialidade, écfrase, adaptação cinematográfica.

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