PeR - 1958-08 - O Escapulário e Seus Privilégios

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PERGUNTE E RESPONDEREMOS 008 – agosto 1958

O ESCAPULÁRIO e seus Privilégios


“Como se explicam as promessas anexas ao ESCAPULÁRIO do Carmo? A Justiça Divina poderia,
simplesmente em atenção a essa insígnia, permitir que um pecador endurecido não seja condenado?”

Dividiremos a resposta em três etapas: 1) origem do ESCAPULÁRIO como tal; 2)


privilégios anexos ao ESCAPULÁRIO do Carmo; 3) valor histórico e significado religioso
dos mesmos.

1. Origem do ESCAPULÁRIO

O ESCAPULÁRIO (do latim scapulo, espádua) é uma longa peça de pano que das espáduas
desce sobre o peito e as costas de quem a traja, recobrindo a respectiva túnica.
Inicialmente servia de avental durante o trabalho manual. Muito usado entre os monges,
tornou-se uma das insígnias características das ordens monásticas e religiosas em geral.

Na Idade Média as Ordens Religiosas propriamente ditas foram criando em torno de si o


que se chama «as Ordens Terceiras» (ou as famílias de «Oblatos» e «Oblatas»), compostas
de pessoas seculares desejosas de viver em contato assíduo com os mosteiros e conventos
(a «Ordem Segunda» era o ramo feminino, enclausurado, de uma Ordem masculina dita
«Primeira»). Os Terciários e Oblatos receberam, como distintivo de seu estado,
o ESCAPULÁRIO. Aos poucos, este foi sendo adotado até pelas Confrarias, associações
remotamente vinculadas a determinada Ordem. Então, para facilitar o uso da insígnia, os
superiores religiosos resolveram admitir, ao lado do ESCAPULÁRIO grande,
o ESCAPULÁRIO pequeno, que consta de dois retângulos de pano de lã ligados entre si por
duas fitas, de sorte a poder ser trazidos pelos irmãos dia e noite sobre o peito e as costas.
É esta a forma hoje em dia mais comumente adotada pelos fiéis que vivem no mundo.

Distinguem-se atualmente vários tipos de ESCAPULÁRIOs segundo as diversas Ordens


Religiosas e as modalidades da piedade cristã; o mais famoso é o ESCAPULÁRIO marrom
ou negro da Ordem do Carmo, ao lado do qual se podem citar: o ESCAPULÁRIO branco, da
SS, Trindade, propagado a partir de 1200; o ESCAPULÁRIO negro, das Sete Dores de Maria,
devido aos Servitas, a partir de 1255; o ESCAPULÁRIO azul, da Imaculada Conceição,
concedido em 1691 e 1710 aos Teatinos; o ESCAPULÁRIO vermelho, dedicado à Paixão do
Senhor, difundido pelos Lazaristas e aprovado em 1847.

O uso do ESCAPULÁRIO não visa apenas ornamentar o respectivo portador. Ao contrário,


tem valor religioso digno de nota: significando a filiação a uma Ordem ou Confraria,
implica, em quem o traz, o desejo sincero de praticar os conselhos evangélicos (cf. Mt
19,21), na medida em que são aplicáveis à vida no século. Além disto, significa participação
nos bens espirituais de que goza a respectiva família religiosa; costuma ser bento e
entregue aos fiéis segundo determinado ritual, tornando-se assim um sacramental, ou
seja, objeto que comunica a graça em quem o usa com fé e caridade. Vê-se, por conseguinte,
que, embora sejam múltiplos os tipos de ESCAPULÁRIO, têm todos a mesma finalidade:
significar e, ao mesmo tempo, fomentar o serviço aprimorado de Deus, que é a grande
devoção de todos os cristãos.

2. Os privilégios anexos ao ESCAPULÁRIO do Carmo

Dentre os favores espirituais outorgados ao uso do ESCAPULÁRIO, sobressaem os que se


prendem ao da Ordem do Carmo. Quais são precisamente?
Enunciam-se dois: a) o privilégio de uma boa morte; b) a pronta libertação do purgatório.
a) A graça da boa morte teria sido prometida pela SS. Virgem numa aparição a S. Simão
Stock, sexto Superior Geral dos Carmelitas (1242-1265), em Cambridge, aos 16 de julho
de 1251. Trazendo em mão o hábito da Ordem, teria dito a excelsa Senhora: «Eis o
privilégio que dou a ti e a todos os filhos do Carmelo: todo aquele que morrer, revestido
por este hábito, será salvo».
b) O privilégio «sabatino» afirma que a Virgem SS. liberta do purgatório os irmãos filiados
à Ordem do Carmelo no primeiro sábado após a morte de cada um. Este favor, dizem, foi
revelado pela própria Mãe de Deus ao Papa João XXII, provavelmente na véspera de sua
eleição. O mesmo Pontífice terá anunciado aos fiéis tal graça e várias outras concedidas à
Ordem do Carmo mediante a bula «Sacratissimo uti culmine» de 3 de março de 1317.

3. Valor histórico e significado religioso de tais privilégios

a) Os documentos sobre os quais se baseia a afirmação dos dois privilégios têm


despertado a atenção dos estudiosos, levando-os a perguntar se são fontes históricas de
todo fidedignas.
Examinemos o que consta.

O primeiro documento que refere a aparição da Bem-aventurada Virgem a S. Simão Stock


data do ano de 1430 aproximadamente; é chamado «Viridarium» do Prior Geral Carmelita
João Grossi (cf. Daniel a S. Virg. Maria, Speculum Carmelitarum I. Antverpia 1680,131).
Entre o ano em que se terá dado a visão (1251) e a data acima, a história não apresenta
documento algum que relate o caso.

No ano de 1642 apareceu pela primeira vez em público, por iniciativa do Pe. Provincial
João Chéron O. C., uma carta circular de Simão Stock aos religiosos de sua Ordem, carta em
que o Prior Geral referia a aparição e as palavras de Maria. Este documento teria sido
ditado pelo Santo a seu secretário, Pe. Swanyngton. Denegam fé a esse instrumento os
historiadores modernos, inclusive os Carmelitas (cf. Annales Ord. Carm. 1927 e 1929).

Quanto ao privilégio «sabatino», desde o séc. XVII contesta-se a autenticidade da bula de


João XXII que o anuncia ao mundo cristão. Entre a data que este documento traz (1317) e
o ano de 1461 não há menção da bula na tradição. O primeiro autor que a deu a conhecer
foi o Carmelita Balduíno Laersius (+1483). Hoje em dia não há quem afirme a
autenticidade de tal documento. O próprio Pe. Zimmermann na sua coleção de
documentos referentes à Ordem do Carmo (Monumenta histórica Carmelitana I 356-363)
renunciou a defendê-la. — No texto mesmo da bula paira dúvida sobre uma das passagens
principais: lê-se no original latino que a Virgem SS. libertará do purgatório subito (em
breve, sem demora) ou, conforme outros códigos, sabbato, no sábado seguinte à morte, as
almas dos seus fiéis.

Ademais notam os historiadores que até o séc. XV os membros da Ordem do Carmo não
atribuíam maior importância ao uso do ESCAPULÁRIO do que os filhos de outras Ordens.

Eis o que, do ponto de vista historiográfico, se poderia dizer sobre as promessas anexas
ao ESCAPULÁRIO do Carmo.

b) Pergunta-se agora: que resulta disso tudo para a piedade dos fiéis?

Deve-se reconhecer que uma série de Papas, a partir do séc. XVI, tem favorecido o uso
do ESCAPULÁRIO do Carmo, enriquecendo-o com novas indulgências e permitindo sejam
anunciadas aos fiéis as duas promessas acima. Ao fazer isso, porém, nenhum Pontífice
intencionou dar definição dogmática sobre o assunto; os Papas apenas quiseram fazer da
piedosa crença vigente um estímulo para a piedade dos fiéis. As promessas anexas
ao ESCAPULÁRIO do Carmo, por conseguinte, ficam pertencendo ao setor das revelações
particulares, que cada cristão é livre de admitir ou não, seguindo os critérios que lhe
pareçam mais fidedignos.

Observe-se, porém, que o privilegio da boa morte (a primeira das duas promessas) jamais
poderá ser entendido em sentido mecânico, como se o uso mesmo do ESCAPULÁRIO,
independentemente do teor de vida moral do cristão, fosse suficiente para garantir a
salvação eterna. Não; o portador do ESCAPULÁRIO deverá cultivar as virtudes cristãs para
que a dita insígnia lhe possa valer como penhor de especial tutela de Maria SS. na hora da
morte. Foi o que o Papa Leão XIII quis inculcar, quando, ao aprovar o Ofício de S. Simão
Stock para os católicos ingleses, mandou inserir no texto respectivo uma palavrinha que
não se achava no original apresentado a S. Santidade: «Todo aquele que
morrer piedosamente trajando esse hábito, não sofrerá as chamas do inferno».
Consequentemente comenta J.-B. Terrien:

«Certamente os antigos consideravam o ESCAPULÁRIO como penhor de predestinação,


mas não chegavam, como penso, ao ponto de dizer que não restem dúvidas justificadas a
respeito da salvação de um pecador que na hora da morte rejeite o amparo da religião,
embora tenha trazido até o último suspiro a veste sagrada de Maria» (La Mère de Dieu et
Ia Mère des hommes IV 304).

As boas disposições espirituais são também exigidas por um comentário do privilégio,


comentário atribuído a S. Simão Stock:

«Conservando, meus irmãos, esta palavra em vossos corações, esforçai-vos por assegurar
vossa eleição mediante boas obras e por jamais desfalecer; vigiai em ação de graças por
tão grande benefício; orai incessantemente a fim de que a promessa a mim comunicada se
cumpra para a glória da SS. Trindade,e da Virgem sempre bendita» (cf. Bento XIV, De festis
B. V. c. VI § § 7-8).

No tocante ao segundo privilégio, devem-se observar os termos precisos segundo os quais


a Santa Sé se tem referido a ele. Um decreto do S. Oficio datado de 15 de fevereiro de 1615
(sob o Papa Paulo V) e renovado pela S. Congregação das Indulgências a 1o de dezembro
de 1885 assinala a atitude definitiva do magistério da Igreja sobre o assunto: sem proferir
palavra acerca da autenticidade da controvertida bula de João XXII, admite que a Virgem
Maria recobrirá com a sua proteção materna, principalmente no sábado (fórmula devida
à ambiguidade do texto acima referido: súbito,. sabbato...?), dia consagrado ao seu culto,
as almas daqueles que na terra tiverem sido seus fiéis servos.

Aos 4 de julho de 1908, a S. Congregação aprovou uma Súmula de indulgências e


privilégios concedidos à Confraria do ESCAPULÁRIO do Carmo, em que se lê verbalmente
o seguinte:

«O privilégio comumente chamado sabatino, de João XXII, aprovado e confirmado por


Clemente VII, Ex clementis, aos 12 de aposto de 1530, por Pio V, Superna dispositione, aos
18 do fevereiro de 1566, por Gregório XIII, Ut Laudes, aos 18 de setembro de 1577, e por
outros, assim como pelo decreto da S. Inquisição Romana sob Paulo V, aos 20 de janeiro
de 1613, declara: ‘É permitido aos Padres Carmelitas pregar que os fiéis podem admitir a
piedosa crença no auxilio concedido após a morte aos Religiosos e confrades da
Associação de Nossa Senhora do Monte Carmelo’. Com efeito, é permitido crer que a SS.
Virgem socorra às almas dos Religiosos e confrades falecidos em estado de graça, contanto
que tenham trazido durante a vida o ESCAPULÁRIO, tenham guardado a castidade do seu
estado e recitado o Oficio Parvo da Virgem ou, se não sabem ler, tenham observado os
jejuns da Igreja e praticado a abstinência de carne às quartas e sábados, a menos que a
festa de Natal caia num desses dias. As orações contínuas de Maria, seus piedosos
sufrágios, seus méritos e sua especial proteção lhes são assegurados após a morte,
principalmente no sábado, que è o dia consagrado pela Igreja à SS. Virgem».

Neste documento chama a nossa atenção, de um lado, o fato de não serem mencionadas
nem a aparição da SS. Virgem nem a bula de João XXII «Sacratissimo uti culmine»; de outro
lado, verifica-se que, independentemente desses tópicos, a Santa Sé aprecia a fidelidade
ao ESCAPULÁRIO do Carmo, mencionando especial proteção de Maria para os
verdadeiros devotos do mesmo (o que certamente exclui o porte meramente mecânico de
tal insígnia); o documento, porém, não fala de libertação do purgatório no primeiro sábado
após a morte, preferindo a fórmula mais geral; «especial proteção». — Como quer que seja,
a idéia de sábado no purgatório teria que ser entendida em sentido largo ou translato,
visto que a sucessão de dias da semana só pode ser critério na terra, onde o tempo é
medido pelo movimento dos corpos; no purgatório há apenas almas separadas de seus
corpos.

As considerações e conclusões acima talvez causem surpresa em um ou outro dos nossos


leitores. Foram contudo ditadas pela objetividade dos documentos e fatos. Não acarretam,
de modo algum, detrimento para a piedade. Muito ao contrário; esta tanto mais forte e
frutuosa é quanto mais alicerçada sobre a verdade e o «sentire cum Ecclesia», sobre as
normas e declarações da Esposa de Cristo. A cada cristão fica a liberdade de se santificar
dando fé às promessas anexas ao ESCAPULÁRIO do Carmo. A finalidade destas linhas era
apenas a de remover qualquer concepção teologicamente errônea a respeito da
tradicional devoção.

Bibliografia
A. Michel, Scapulaire, em «Dictionnaire de Théologie Catholique* XIV 1, Paris 1939, 1254 9).
K. Bihilmeyer, Skapulier, em Lexikon für Theologie und Kirche IX 617.
N. Paulus, Geschichte des Ablasses im Mittelalter II. 1923.
Berlinger-Steinen, Les indulgences. Paris 1925.

Dom Estêvão Bettencourt (OSB)

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