África e Religiões Afro-Brasileiras: Dinâmicas e Perspectivas

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S U M Á R IO 1

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PARECER E REVISÃO POR PARES

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Revisão André Luiz Caes
Daniel Precioso
Léo Carrer Nogueira
Organizador André Luiz Caes
Daniel Precioso
Léo Carrer Nogueira

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

A258

África e religiões afro-brasileiras: dinâmicas e perspectivas


(séculos XVIII-XXI) / Organizadores André Luiz Caes, Daniel
Precioso, Léo Carrer Nogueira. – São Paulo: Peripécia, 2022.

Livro em PDF

ISBN 978-65-5939-485-2
DOI 10.31560/pimentacultural/2022.94852

1. África. 2. Africanos - História - Brasil. 3. Religiões afro-


brasileiras. I. Caes, André Luiz. II. Precioso, Daniel. III. Nogueira,
Léo Carrer. IV. Título.

CDD: 981.00496

Índice para catálogo sistemático:


I. África : Africanos - História - Brasil
Janaina Ramos – Bibliotecária – CRB-8/9166

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SUMÁRIO

Apresentação.................................................................................... 9

Capítulo 1

A religião no Kôngo na época


de Ñsîmba Vita (Kimpa Vita).......................................................... 16
Patrício Batsîkama

Capítulo 2

Ndûmbe:
a iniciação de uma sacerdotisa
angolana (Ambaca, c.1740)............................................................. 48
Daniel Precioso

Capítulo 3

Uma história pública de Nhá Chica:


a santa mestiça e as africanidades subterrâneas
nas representações do catolicismo afro-atlântico no Sul
de Minas Oitocentista....................................................................... 70
Leonara Lacerda Delfino
Maria Cristina de Azevedo
Claudia de Jesus Maia

Capítulo 4

O abate religioso nas casas


de candomblé em Boa Vista/RR e Pelotas/RS:
legislação e racismo religioso (2017-2020)..................................... 109
Raíssa Nathana Freitas Batista
Monalisa Pavonne Oliveira
Capítulo 5

Laureados, contemplados,
notificados ou intimados?
Poderes públicos e centros
de umbanda a partir do diário oficial
do município de Goiânia, Goiás (1960-1990).................................. 138
Clarissa Adjuto Ulhoa

Capítulo 6

Relações de gênero
nas religiões brasileiras:
estudo comparativo dos campos
afro-brasileiro e pentecostal........................................................... 174
Fernanda Gabriela Gonçalves da Silva
Léo Carrer Nogueira

Capítulo 7

Mediunidade e magia na Umbanda:


a perspectiva de autores umbandistas........................................... 201
André Luiz Caes

Sobre os organizadores............................................................... 234

Sobre os autores e as autoras..................................................... 235

Índice remissivo............................................................................ 237


APRESENTAÇÃO

África e Brasil estão intrinsecamente ligados desde fins do século


XVI, quando o tráfico transatlântico de escravizados foi impulsionado.
Durante os quase três séculos que se seguiram de escravidão foram
traficados cerca de 4,5 milhões de africanos para o Brasil. As procedên-
cias africanas dos atingidos por essa trágica diáspora forçada eram as
mais diversas, ainda que, em uma visão de conjunto, sobressaiam os
centro-africanos. Angolas, congos, benguelas, dentre outros, ao contrá-
rio do que outrora sugeriram pioneiros dos estudos das religiões afro-
-brasileiras (CARNEIRO, 1981[1937]), ajudaram a formar não apenas a
língua e o folclore brasileiros, mas também nosso modo de vivenciar a
religião. Quem negaria o papel decisivo desempenhado pelas religiosi-
dades banto na formação das macumbas cariocas? Quem recusaria a
ocorrência de uma africanização de objetos de culto – como rosários e
bentinhos – do chamado catolicismo popular brasileiro?

Não sem atraso, nas duas últimas décadas vimos surgir um


crescente interesse pelas relações históricas havidas entre Brasil e Áfri-
ca.1 Desde então historiadores brasileiros têm se voltado para a outra
margem do Atlântico, abandonando o tradicional recorte nacional por
uma abordagem atlântica e, portanto, transnacional (ALENCASTRO,
2000; SILVA, 2003). Os frutos desta nova abordagem já estão sendo
colhidos em instigantes pesquisas que descortinam diversos fluxos e
influxos ocorridos entre Brasil e África. Teses crioulistas – antes hege-
mônicas – de dispersão étnica e impossibilidade de reprodução cultu-
ral na diáspora têm sido revistas (HALL, 2017), dando lugar a trabalhos

1 O interesse acadêmico pelo continente africano intensificou-se após a promulgação da lei


10.639/03, uma antiga demanda do movimento negro brasileiro. A lei tornou obrigatório o
ensino de História da África e das Culturas Afro-Brasileiras nas escolas de ensino básico,
o que levou à criação de núcleos de estudos e disciplinas específicas sobre África nas
universidades brasileiras.

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que demonstram, senão a reconstrução, ao menos a ressignificação
cultural das Áfricas nas Américas. É consenso hoje que as religiosida-
des africanas formavam um “idioma comum” entre os escravizados,
não obstante as profundas diferenças étnico-linguísticas existentes
entre eles (SWEET, 2007).

Este processo de africanização religiosa ocorrido em solo bra-


sileiro adentrou o século XIX, dando origem a novas religiões, agora
afro-brasileiras, com a estruturação dos candomblés, tambores de
mina, macumbas, umbandas etc. Desde 1820, quando encontramos
os primeiros registros da palavra Candomblé nas matas e arredores da
cidade baiana de Salvador (PARÉS, 2007), o processo de organização
ritualística dos terreiros tem marcado a história das religiosidades bra-
sileiras. Processo este marcado por continuidades e rupturas com as
práticas esparsas e fragmentadas dos calundus coloniais.

Chegamos ao século XX com um campo religioso afro-brasileiro


bem estruturado. Na Bahia reinava os Candomblés em suas mais dife-
rentes nações, jejes, nagôs e angolas, principalmente; no Maranhão o
Tambor de Mina e os Terecôs; no Pará e Amazonas os encantados das
Juremas e Pajelanças; em Pernambuco o Xangô; no Rio Grande do
Sul os Batuques; por fim no Rio de Janeiro se formavam as Macumbas
e Umbandas, última prática religiosa afro-brasileira a tomar forma em
nosso país. Hoje todas estas religiões se encontram espalhadas pelos
vários estados brasileiros, do sul ao norte, passando pelo centro-oeste.

O presente livro contribui com esse amplo escopo temático, que


abrange religiões africanas e afro-brasileiras do século XVIII até hoje.
Abrindo a coletânea, em “A religião no Kôngo na época de Ñsîmba
Vita (Kimpa Vita)”, o historiador angolano Patrício Batsîkama analisa a
dinâmica religiosa do antigo Reino do Kôngo, na África Central. Valen-
do-se da linguística e da tradição oral, Batsîkama aponta cinco termos
genéricos que traduziam categorias de religião entre os antigos Kôngo.
Todos eles apontam para um sistema religioso que visava estabelecer

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o equilíbrio entre os seres humanos e espirituais. Estes conceitos tam-
bém sinalizam um código legal (ou ferramenta social) para guiar a ação
individual e para profissões religiosas específicas – desempenhadas
por pessoas especiais, predestinadas para tais funções por nascimen-
to e/ou origem social. Esta última acepção é fundamental para a com-
preensão da emergência e do protagonismo da sacerdotisa Kimpa
Vita, julgada “feiticeira” e queimada viva por padres católicos em 1706.
A sacerdotisa teve um papel fundamental no kimpasi ocorrido em sua
época. Como elucida Batsîkama, kimpasi era uma reunião secreta das
elites religiosas (mas também políticas, econômicas e sociais) congo-
lesas para reposição da ordem social. Como salienta o autor, os kôngo
escravizados trouxeram consigo para o Brasil escravista fragmentos de
kimpasi, os quais podem ser observados em candomblés e umbandas
brasileiros e, até mesmo, no catolicismo afro-brasileiro por intermédio
do culto aos santos africanos.

No capítulo seguinte, “Ndûmbe: a iniciação de uma sacerdotisa


angolana (Ambaca, c. 1740)”, Daniel Precioso descreve e interpreta
um ritual de iniciação de uma sacerdotisa angolana que atuava no
antigo presídio português de Ambaca pelos idos da década de 1740.
Acometida por uma doença, a liberta crioula Catarina Juliana procurou
uma sacerdotisa dos sertões angolanos para realizar a sua cura e, ao
fazê-lo, passou por rituais que a iniciaram como médium de espíritos e
sacerdotisa de entidades ambundas (etnia angolana a qual ela perten-
cia). O autor explica que a doença serviu como chamamento religioso,
consistindo a sua cura na acomodação do espírito causador da mo-
léstia em seu corpo – assim, ao mesmo tempo em que foi curada, Ca-
tarina Juliana se iniciou na religião angolana. Da doença-chamamento
à cura-iniciação, a personagem histórica se incorporou em um terreiro
angolano, sendo este um modelo bantu recorrente de integração de
novos membros às sociedades de culto da África Central. O autor sa-
lienta, ainda, que a doença enquanto chamado à religião permanece
– não obstante ressignificada e morfologicamente alterada – nas atuais
religiões afro-brasileiras.

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Em “Uma história pública de Nhá Chica: a santa mestiça e as
africanidades subterrâneas nas representações do catolicismo afro-
-atlântico no Sul de Minas Oitocentista”, Leonara Lacerda Delfino, Ma-
ria Cristina de Azevedo e Claudia de Jesus Maia analisam o processo
de embranquecimento de Nhá Chica, filha de escrava, beata, rezadeira
e benzedeira que viveu em Baependi (sul de Minas) no século XIX e
foi beatificada em 2013 pelo papa Bento XVI. Silenciando traços cla-
ramente centro-africanos presentes nas práticas religiosas da “santa
mestiça”, os hagiógrafos de Nhá Chica procuraram escamotear sua
africanidade, atribuindo seus milagres a intercessões de Nossa Senho-
ra. O processo de apagamento do passado africano da santa de Bae-
pendi se valeu, ainda, da defesa da sua suposta orfandade e disciplina
monástica, argumentos que se prestam à construção de uma imagem
de distanciamento da ancestralidade africana. Construída a posteriori,
como apontam as autoras, esta visão não vigorava na Baependi do
século XIX, sendo provável que a aceitação de uma beata negra no
sul de Minas Oitocentista tenha sido possível – haja vista os flagrantes
traços africanos de suas práticas religiosas – em virtude de um bem
sucedido processo de mobilidade social. Não obstante esse discurso
hagiográfico, há um processo (em andamento) de re-africanização de
Nhá Chica em terreiros de umbanda brasileiros, o que, segundo as au-
toras, abre possibilidades para uma história pública da santa, construí-
da a contrapelo e capaz de fazer emergir africanidades subterrâneas.

Em “O abate religioso nas casas de candomblé em Boa Vista/


RR e Pelotas/RS: legislação e racismo religioso (2017-2020)”, Raíssa
Batista e Monalisa Oliveira analisam o abate religioso em casas de
candomblé do norte e do sul brasileiros. Partindo de uma discussão
sobre os significados do sacrifício animal nas religiões afro-brasileiras,
as autoras concluem que as tentativas de criminalizar o abate religio-
so de animais nos terreiros nacionais – perpetradas desde 2001 por
deputados evangélicos em projetos de lei, mas impugnadas em 2017
pelo Supremo Tribunal Federal – refletem o racismo religioso vigente

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no Brasil. Lastreadas em depoimentos de líderes de terreiros, coleta-
dos durante entrevistas realizadas em 2020, as autoras concluem que
os animais imolados nos terreiros de candomblé servem não apenas
como oferendas às divindades, mas também como repasto para a
comunidade de santo, não havendo, assim, motivos – para além do
racismo religioso – para criminalizar o abate religioso de animais, que,
aliás, tudo indica, submete o animal a menor violência no confinamento
e morte em relação aos estabelecimentos frigoríficos.

No capítulo seguinte, intitulado “Laureados, contemplados, noti-


ficados ou intimados? Poderes públicos e centros de umbanda a partir
do diário oficial do município de Goiânia, Goiás (1960-1990)”, a auto-
ra Clarissa Adjuto Ulhôa se debruça sobre os arquivos municipais da
cidade de Goiânia para traçar um histórico da relação entre o poder
público e terreiros de Umbanda nesta cidade nas décadas de 1960 a
1990. A relação destes terreiros se dava de formas diversas, desde inti-
mações de pagamentos de taxas por parte de alguns, até a concessão
de benesses fiscais e títulos de reconhecimento. Todos estes proces-
sos são analisados à luz do contexto de consolidação da Federação
de Umbanda e Candomblé do Estado de Goiás (FUEGO), que à época
buscou dar apoio e respaldo aos terreiros, ao mesmo tempo em que
buscava fiscalizar e implantar sua visão ritualística da religião.

A relação entre as religiões afro-brasileiras e o feminismo é


debatida por Fernanda Gabriela Gonçalves da Silva e Léo Carrer No-
gueira no capítulo “Relações de gênero nas religiões brasileiras: es-
tudo comparativo dos campos afro-brasileiro e pentecostal”. A partir
dos conceitos da história de gênero, os autores procuram demonstrar
como as religiões afro-brasileiras se inserem em uma dinâmica que
valoriza o papel da mulher em cargos de liderança dentro dos terrei-
ros, desde o início da formação dos Candomblés até a constituição
mais recente das Umbandas. Ao se comparar com as religiões pen-
tecostais, podemos perceber como as religiões afro-brasileiras são

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mais abertas em relação aos papeis de gênero, enquanto naquelas
as mulheres continuam exercendo seus papeis no seio religioso ape-
nas a partir de suas relações com o marido.

André Luiz Caes, em “Mediunidade e magia na Umbanda: a pers-


pectiva de autores umbandistas”, procura utilizar os escritos de três dos
principais autores ligados à Umbanda para formular uma explicação
acessível sobre o significado da mediunidade e da magia como ele-
mentos fundamentais da religião Umbanda. Esses autores – W.W. da
Matta e Silva, Francisco Rivas Neto e Rubens Saraceni – produziram, em
diferentes períodos da história da Umbanda na sociedade brasileira, en-
sinamentos sobre os mais diversos elementos que compõem a religio-
sidade na Umbanda, chegando mesmo a estabelecer o que seria uma
Teologia da Umbanda. Mesmo havendo uma diversidade muito grande
nas formas e rituais de manifestação da Umbanda pelo Brasil, mediu-
nidade e magia são elementos fundamentais, que estão presentes em
todas as Umbandas, sendo as reflexões deste texto um bom início para
o entendimento dessas características da Umbanda.

Convidamos os leitores a mergulharem conosco na história


das religiões africanas e afro-brasileiras através do conjunto de pes-
quisas que integram esta coletânea, as quais constituem uma inte-
ressante amostragem do que vem sendo produzido atualmente neste
campo de estudos.

André Luiz Caes


Daniel Precioso
Léo Carrer Nogueira

Morrinhos-GO, julho de 2022

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REFERÊNCIAS
ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes: formação do Brasil no
Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
CARNEIRO, Édison. Negros Bantos: notas de etnografia religiosa e de
folclore. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981 [1937].
HALL, Gwedolyn Midlo. Escravidão e etnias africanas nas Américas:
restaurando os elos. Petrópolis: Vozes, 2017.
PARÉS, Luís N. A formação do Candomblé: história e ritual da nação jeje na
Bahia. Campinas (SP): Ed. UNICAMP, 2007.
SILVA, Alberto da Costa e. Um rio chamado Atlântico. A África no Brasil e o
Brasil na África. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
SWEET, James. Recriar África. Cultura, parentesco e religião no mundo afro-
português (1441-1770). Lisboa: Edições 70, 2007.

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A religião no Kôngo
1
Patrício Batsîkama

na época de Ñsîmba
Vita (Kimpa Vita)

DOI: 10.31560/pimentacultural/2022.94852.1
INTRODUÇÃO

Interessa, neste capítulo, informar o que era a dinâmica religiosa


na época da profetisa Dona Beatriz Ñsîmba Vita – mais conhecida por
Kimpa Vita –, assim como o que era o kimpasi.

Ao olharmos para aquilo que os Kôngo compreendiam como


religião, constatamos que existiam cinco termos genéricos que tradu-
ziam categorias de religião entre eles:

1. Kiñtûmba: (a) tûmba, introduzir no; iniciar nos mistérios; (b) fazer
ordenação, coroar, abençoar; (c) elevar-se no ar (fumo, térmitas
com asas) (LAMAN, 1936, p. 993-994), levitar. O especialista era
chamado de Ñtûmba Mvêmba.

2. Kitômi: (a) toma: ser bom, agradável, perfeito, útil, simpático,


exacto; (b) estar em perfeita saúde; (c) estar nas alturas, ser pro-
fundo, grande imensidão (LAMAN, 1936, p. 981). O especialista
chamava-se ñgânga kitomi.

3. Dibûndu: (a) bûnda: unir, reunir, juntar, encapsular (o cadáver)


num pano; (b) iniciar alguém na magia (sobrenatural); (c) fazer
algo de graça, sem esperar retribuição; (d) bûnduka: cair por ter-
ra, estar estendido na terra, sobressair da terra (LAMAN, 1936,
p. 74-75, 76-77). O especialista é chamado de ñgânga Ñzâmbi.

4. Buñkîsi: (a) sikîsa: santificar, fortificar, tornar sólido; (b) sîka (de
sa): decidir, decretar, fazer voto, secar, evaporizar-se; (c) sasa:
ser abundante ou rico, ultrapassar, aquitar-se de Ñgânga ñkîsi é
o especialista.

5. Lômbo lwa sîmbi: (a) lomba: pedir, solicitar pediosamente; (b)


rezar, cultuar, homenagear ou reverenciar o Espírito; (c) observar
tabus, cumprir com as interdições; (d) comunicar com Espírito,

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conhecer os mistérios (LAMAN, 1936, p. 404-405). O especia-
lista foi ñgâng’a ñgômbo2. Em kikôngo, o termo ki-lômbo é o
nome de uma criança que tem o espírito de ñsîmbi e simboliza a
abundância (LAMAN, 1936, p. 405).

Pelas etimologias aqui referenciadas, a religião é – para os Kôn-


go – um sistema que instituiu o equilíbrio no homem enquanto indivíduo
no seu relacionamento com os seus semelhantes na manutenção da
ordem. Por outro lado, ela programa o bem-estar como exercício indi-
vidual (antes de ser coletivo) com interdições e reverências ao Espírito
primitivo. Ora, esse último pode ser lei, enquanto ferramenta social, re-
partindo-se em: (a) relação individual da consciência (onde habita este
Espírito primitivo) que articula virtudes e desejos; (b) um sistema cultural
assente nos símbolos de integração identitária e nos valores da perten-
ça; (c) uma plataforma dialógica entre a realidade e a sua significação
metafísica; (d) construção abstrata do mundo primitivo (que teleguia o
comportamento individual) como interpretação dos pressupostos estru-
turantes da organização socioeconômica, sociopolítica etc.

A terceira e quarta categorias fazem da religião uma profissão


específica com pessoas especiais (pela nascença, origem social) que
devem ser treinadas na manutenção da ordem social pela sua capa-
cidade sobrenatural de domiciliar o Espírito primitivo e conhecer a na-
tureza da energia de cada elemento orgânico, mineral, botânico, etc.

Segundo Bernardo da Gallo, Ñsîmba Vita foi iniciada na “arte fei-


ticeira”, ñgânga mayînda. Ela curou, diz o padre, muita gente das suas
enfermidades. A medicina (boa saúde) confunde-se com a religião
nesse aspecto, o qual acompanhou o messianismo. Contudo, o sacer-
dócio é uma estrutura bem padronizada e diferenciada e compõe-se
de: (a) administradores de cultos públicos; (b) ministros do sagrado;
(c) emissários do Além. Esses últimos tinham as habilidades com as
quais nasceram e eram iniciados a aperfeiçoá-las para sua profissão.
2 O termo ñgômbo é composto por: (a) ñ, a forma comprimida de mu; (b) lômbo que deriva
de lomba. O mu+lô pode resultar em ndo ou ngô.

S U M Á R IO 18
Dibûndu designa a igreja no sentido de coração, mbûndu3. Na
medicina kôngo o coração é ñkûmba dya mênga em duas perspecti-
vas: bombeia o sangue de todo corpo e purifica o sangue recebido.
A ideia de purificar o sangue é religiosamente aproveitada pelo facto
de acreditar-se que o Espírito primitivo reside no sangue e, sobretudo,
olhar o coração como símbolo da piedade. Desta feita, dibûndu pas-
sou a designar a Igreja enquanto infra-estrutura (templo) com cultos e
funções sacerdotais.

Buñkîsi pressupõe “boa saúde” física e espiritual segundo as


leis dos homens, leis da natureza e preceitos dos ancestrais. As leis
dos homens orientam os assuntos públicos, ao passo que as leis da
natureza constituem padrões primários da existência4. Observar os
cultos e rituais como proporciona o conceito de buñkîsi – santidade,
fortificação – alimenta a alma do indivíduo e torna-o moralmente está-
vel. Isto é, um complemento do bom cidadão tal como o diria Platão
no que se segue:
Ontem fui até Pireu com Gláucon5, filho de Ariston, a fim de diri-
gir as minhas preces à deusa (Atena), e, ao mesmo tempo, com
desejo de ver de que maneira celebravam a festa… Depois de
termos feito preces e contemplado a cerimônia, íamos regressar
à cidade (PLATÃO, 1972, p. 1).

É assim que Platão começa a sua clássica República. Um bom


cidadão traz com ele o background de ser um indivíduo moralmente
estável6. Ora, é da religião que se constrói tal indivíduo. Quer dizer que
a cultura é base da cidadania.

3 A fé pressupõe o sentimento. Isto é, o coração. Daí, a fé/fé associa-se ao coração: mbûndu.


4 Dobrar o braço ou o joelho obedece a um padrão primário. Quem fizer o contrário, quebrará
seu braço ou joelho. Essa é a lei da natureza como percebiam os Kôngo.
5 Gláucon era o irmão mais velho de Platão.
6 A adoração e as festividades à Atena constituem dois símbolos da religião como base da
cidadania: (i) indivíduo moral ou virtuoso (Aristóteles); (ii) respeito pelas normas. Isto é, a
cidadania tem a cultura como base para melhor funcionamento da república na perspectiva
do indivíduo.

S U M Á R IO 19
A conversão dos kôngo, em 1491, seguiu uma vertente imagina-
ção/símbolo cultural na construção da realidade. Eles acreditam em três
canais para perceber o “fazer preces” (lômbo lwa sîmbi) e o «indivíduo
virtuoso» (buñkîsi): (a) sonho/revelação; (b) alucinação/psicose (esqui-
zofrenia, paranoia); (c) metalinguagem do possuído. Os católicos que
pregavam na época de Ñsîmba Vita Dona Beatriz eram culturalmente
afiliados à cosmogonia grega, onde Zeus simboliza o céu, Poseidon o
mar e Hades o «mundo baixo»7. Em relação a lômbo lwa sîmbi, a reli-
gião enquanto culto/oração na práxis da submissão ao Espírito primitivo
(Ñzâmbi’a Mpûngu) e Espírito criador (Mbûmba Kalûnga) reestabelece
– religare, Cícero – a ligação de ascendência do indivíduo. Continua a ser
uma questão cultural, e não universalmente uniforme.

CONFLITO CULTURAL E O QUE O


CLERO NÃO DIZ “ABERTAMENTE”

A religião local kôngo coabitava com o catolicismo. Nos cen-


tros urbanos predominava o catolicismo, principalmente em Kôngo
dya Lêmba (sul de Kinsâsa) e em Kimbângu que, naquela altura, era
chamada de Kôngo, isto é, a nova capital. Nas aldeias periféricas e lon-
gínquas persistia a religião local: cidade versus aldeia (MELA, 1999, p.
84-90.). Havia assim dois discursos sociais: (a) «cidade que comanda»
utilizava as linguagens socioculturais de pressão aos governados; (b)
aldeia que deveria obedecer resistia pela afirmação identitária cujas lin-
guagens mantinham uma oposição social ampla no pós-1665, a guer-
ra civil e a desordem generalizada favoreceram os da cidade a terem
armas e os aldeões também não desistiram (D’ATTRI, 1986, p. 206-
211). A cultura por si só é um espaço de ambivalências (IMBAMBA,

7 O livro de Van Gheel (1928) foi traduzido por Van Wing e Penders. O original é da autoria de
Bonaventura da Sardegna escrito em 1652 (alguns autores mencionam o Junho de 1651)
e intitula-se Vocabularium Latinum, Hispanicum et Congense.

S U M Á R IO 20
2003, p. 39-55). Nginamawu Petelo observou que o padre Bernardo da
Gallo tinha um vocabulário imparcial:
O seu vocabulário favorito retoma da maneira preferencial os
seguintes termos negativos: rozzi (grosseiros), ignorante (igno-
rantes), sciocchezza (estupidez); falsità (falsidade), ceità (ce-
gueira), tenebre (tenebro), menzogne (mentira), superstizione
(supersitição), fattuchiere (bruxo), diabólico (diabólico), idolatri
(idólatra), demónio (demónio), eretico (herético), pazziei (loucu-
ra), sogni (sonho), chimere (químera). Esse vocabulário opõe
superstição à fé, demónio à Deus, tenebros pagãos à luz cristã
(PETELO, 1993, p. 616-617).

Havia, porém, a religião enquanto ordem estrutural e a política


enquanto ordem funcional. A complementaridade de «religião-política
= estrutura funcional» organiza a sociedade numa cumplicidade ins-
titucional e os actores intercambiam-se, numa teatralização complexa
do Poder/ordem. Por isso, era necessário incorporar líderes do kimpa-
si no programa sociopolítico, isto é, a grande distância que separava
a religião da política nos propósitos práticos. Tanto os capuchinhos,
como Dona Beatriz e seus seguidores almejavam reconstruir a ordem,
com metodologias diferentes. Ñsîmba Vita aceitou o diálogo, ao passo
que a ortodoxia católica o negou. Um conflito, a priori, cultural.

Apesar de tudo, há aqui confusões de ordem religiosa que os


padres não conseguem explicar nem a si mesmos. Confunde-se in-
vocação, oração, libação, sacrifício, oferenda, etc. Essa questão foi
conjectural. Vamos tentar mostrá-lo, tentando pensar como os padres,
de forma breve e objetiva.

O sentido simbólico de dibûndu resume-se no valor de libação


concomitantemente de sacrifício/tortura corporal. Qualquer sacrifício
implica que o coração seja puro, permitindo que o Espírito da Nature-
za habite o corpo através do coração. O ser humano/vontade (movido
pelo mwêla) é a porta de entrada. O vinho de palmeira diz-se ñsâmba

S U M Á R IO 21
que deriva de ku-sâmba: orar, consagrar, abrir caminho, etc.8 Trata-se
de conectar o Espírito de Ñzâmbi e o homem através de mbûndu (co-
ração, piedade). Assim sendo, “morrer e ressuscitar” como se fazia
no kimpasi explica libação, preces e oração. Apesar dos padres capu-
chinhos terem noção básica nessa ordem, preferiram desqualificar a
partida toda manifestação religiosa não-católica.

Existe um termo grego, téras, para dizer sinal divino, prodígio,


milagre (BENVENISTE, 1969, p. 255). Os próprios padres capuchinhos
escrevem que Ñsîmba Vita «era possuída», o que era entendido como
imundices e satanismo. Lorenzo da Lucca minimiza que a profetisa
africana tenha levitado na sua primeira aparição: «… como se andasse
na ponta dos dedos…», escreve. Como uma das evidências, os eleitos
de ñkita tinha como sinal divino de levitar, fazer milagre e prodígios. Os
padres reconhecem que ela previu o futuro. Dizem eles, algumas das
previsões do futuro falharam, como é o caso do dilúvio de Kimbângu
ou Kôngo dya Lêmba. Ou ainda a sua destruição pelo fogo oriundo do
céu. Outras profecias concretizaram-se. Vamos tentar mostrar que até
as profecias tidas como falsas aconteceram.

Na sociedade lêmba ou kimpasi, águas das chuvas simboli-


zam bênção ou maldição, consoante a fórmula enunciada: (1) chuvas/
bênção, para limpar as sujidades espirituais – masûmu, pecados; (2)
chuvas/maldição que destrói animais e o campo9. De acordo com Ber-
nardo da Gallo, Ñsîmba Vita anunciou o “dilúvio” numa data precisa.
O presságio é que caíram realmente as chuvas, embora o capuchinho
esperasse um dilúvio de Noé. Tratava-se daquelas chuvas/maldição
que aliás infertilizaram mulheres e homens. São os mesmos padres
que nos confirmam isso quando sublinham que Ñsîmba Vita curava as
infertilidades e vários tipos de enfermidades.
8 A palmeira é uma planta sagrada (BALANDIER, 1965, p. 113).
9 As primeiras chuvas do mês de setembro, por exemplo, podem criar doenças nas crianças,
morte nas galinhas ou animais domésticos ou ainda pode criar bichos que corrompam as
folhas dos produtos agrícolas. Há chuviscos que infectam certas terras, consoante o tipo
de cultivos que lá se encontram.

S U M Á R IO 22
Finalizamos este ponto com superstição e religião relacionando
com a morte e ressurreição de D. Beatriz. Como já fizemos notar, os
capuchinhos sabiam que os Kôngo não confundiam Ñzâmbi com ñka-
di’a Mpêmba10, nem religião com superstição. Ainda assim, optaram
por categorias de não-religião ao que era sagrado aos kôngo, num
discurso discriminatório. Se, por um lado, Bernardo da Gallo precisou
se vingar contra Ñsîmba Vita na base desse pretexto, os capuchinhos
em geral olhavam a religiosidade kôngo com desdém numa época em
que reinava um espírito nacionalista em vários campos, ou seja, havia
duas forças visivelmente opostas e concorrentes.

Na origem, superstitio associa divino, profeta e alguém temido na


religião; também significa culto religioso, veneração (GAFFIOT, 2001,
p. 730). O termo religio versa-se na observação escrupulosa de um
dever e carácter daquilo que é sagrado (GAFFIOT, 2001, p. 637). Ainda
no século XVII-XIX, esses dois conceitos foram sempre confundidos.
O primeiro passou a padronizar os cultos não-cristãos, ao passo que
o segundo limitou-se no Cristianismo. Essa separação arbitrária, prin-
cipalmente nos séculos XVII-XVIII, influenciou as escritas dos padres
capuchinhos. Ñsîmba Vita era divina e temida no espaço religioso, quer
dizer, supersticiosa. Logo, herege na acepção católica. Robert Slenes
(2008, p. 210) escreveu:
A acusação dos missionários capuchinhos de que Kimpa Vita
era herege era, em certo sentido, verdadeira; ela conhecia a
tradição católica tão bem que podia reinterpretá-la radicalmente
“de dentro”, mesmo lendo de uma perspectiva centro-africana.

Por fim, Bernardo da Gallo era adversário de Dona Beatriz e isso


era conhecido por todos. Várias vezes, tanto nos debates públicos,
como nos restritos, Ñsîmba Vita embaraçou-o em várias matérias,

10 O termo nkâdi’a mpêmba sofreu duas mutações semânticas: (i) falta da santidade, pureza.
Quer dizer, falta de boa intenção e de altruísmo; (ii) objetos sagrados dos padres – crucifi-
xo, por exemplo. Durante o Antonismo, nkâdi’a mpêmba designou sagrado e diabólico ao
mesmo tempo. Esse sentido foi transportado para Cuba (Palo monte), Brasil (candomblé)
e Estados Unidos de América (kariapemba).

S U M Á R IO 23
mostrando-lhe dominar a doutrina cristã. Várias razões levaram o povo
a considerar Dona Beatriz como uma Santidade. Enumeramos: (i) mi-
lagres operados, curas aos enfermos (magia não autorizada catolica-
mente); (ii) ofertas e caridades foram levadas à nova Santo António; (iii)
capela de Bernardo da Gallo deixou de receber fiéis; (iv) ela mandou
destruir os ídolos até o crucifixo; (v) ela instaurou uma nova ordem de
preces, abandonando Salve Regina; (vi) africanização da fé descons-
truiu a teologia católica da época; (vii) restauração do tabernáculo as-
sociado aos ñkita; (viii) messianismo africano; (ix) identidade religiosa
do culto que dialoga com o catolicismo e a ideia de pertença local; (x)
nova geografia religiosa, que periga a expansão do Catolicismo, etc.11

Com a popularidade que gozava, Dona Beatriz Ñsîmba Vita


tornou-se politicamente poderosa, embora a política não lhe tenha
interessado em momento algum, ou seja, sem querer ela passou a
ser uma ameaça política (por controlar) vis-à-vis de Dom Pedro IV. O
dramaturgo Mena Abrantes sublinhou esse aspeto na sua obra ao co-
locar em diálogo padre, comerciante e militar (ABRANTES, 2019) tal
como está patente no relatório dos padres capuchinhos (FILESI, 1971;
CUVELIER, 1953; JADIN, 1961, p. 411-615). Ela passa a ser uma figura
de resistência (PEMOT, 2013, p. 23; JESUS, 2019, p. 47), mesmo pela
complexidade do seu processo de condenação (MBEMBA, 2002).

A resistência situa-se inicialmente na religião cuja cobertura en-


volve os militares, os políticos e os comerciantes. Foram os sectores
que Ñsîmba Vita trabalhou de maneira significativa, ao ponto de chefiar
um kimpasi nos moldes de coligação de forças militares, políticas, reli-
giosas e agentes económicos. Sem este aspecto de kimpasi não seria
possível trazer paz no Kôngo entre 1704-1706. Ela representou uma
outra configuração de Cristo com reapropriação cultural local (LUSALA
LU NE NKUKA, 2013, p. 228-229).

11 Muitos destes aspectos foram introduzidos nas recomendações do Concílio de Vaticano II,
já em 1962.

S U M Á R IO 24
NOÇOES BÁSICAS SOBRE KIMPASI

Começamos com a pergunta: o que é kimpasi? Joseph Van


Wing (1938, p. 176) responde-nos avançando as razões que levam a
convocar um kimpasi, já no início do século XX, que passamos a citar:
No outro clã, os mais velhos ficam impressionados pelo facto do
aumento de abortos, esterilidade e mortalidade infantil. “Nossa
aldeia está a desaparecer! Quem irá salvaguardar os interesses
do clã? O ngânga consultado dará o oráculo: “É imperioso es-
tabelecer um kimpasi para a juventude… A celebração de Kim-
pasi é, portanto, uma instituição considerada um remédio para
os males que atingem a comunidade, como a baixa taxa de
natalidade ou uma mortalidade anormal. Isso explica por que,
em certas regiões ou cidades, cinco, dez ou até vinte anos se
passaram entre a convocação de dois Kimpasi.

Define-se kimpasi como festival de aflições que, em tese, é um


conjunto de atividades que procuram a solução face aos principais
problemas que afligem as pessoas. Quando se verifica, numa aldeia,
aumento da taxa de mortalidade infantil, insuficiência na produção
agrícola ou infertilidade nos homens e mulheres, as anormalidades a
nível social ou político, os “mais velhos” convocam o Conselho para
concertação social [ñkûtama]. São convidados os principais chefes de
aldeia, comunas e municípios para tomar parte nas discussões. Cin-
co religiosos são convidados, logo na primeira: (a) Ñgânga ñkîsi; (b)
ñgâng’a kitome; (c) ñgânga ñgômbo; (d) Ñtûmba Mvêmba; (e) Ñtinu
Nsaku. Em concerto, avaliam as possibilidades de realizar o kimpasi.
Com essa decisão, esse colégio religioso convoca dez ñgânga de for-
ma secreta, nomeadamente: (a) ñgânga mayînda; (b) ñgânga lêmba;
(c) ñgânga vûtuki; (d) ñgânga malûngu (será ñgânga ndûngu?); (e)
ñgânga ñkûmbi; (f) ñgânga mayâmba; (g) ñgânga ñzûmbi; (h) ñgânga

S U M Á R IO 25
malûndu; (i) mavûzi mbîla [Nsôngi mazûmbu]; (j) ñgânga mafuta. Eles
constituem o Conselho de Kimpasi12.

Esta equipe para escolha do espaço assegura-se de encontrar


os sinais de 108 animais e 48 plantas principais, citamos alguns:

1. Animais do ar13: (i) ngo zûlu/águia; (ii) ñgêmbo/morcego [Rou-


settus aegyptiacus]; (iii) ñkusu nsi/papagaio [Spermospriza
guttata]; (iv) ñkâtalakati, tipo de pássaro que passeia sempre
em conjunto na margem do rio; (v) ngûmbi/pedriz [Francolinus
squamatus]; (vi) ngûndu/rossinhol com caúda vermelha; etc.

2. Animais das águas e minerais (VAN WING, 1938, p. 188): (i) ngo
zûlu [mwênge] que é ou peixe com dentes visivelmente expres-
sivos chamado Hydrocyon vittatus ou Hydrocyon Goliath; (ii)
ngêmbi, o peixe chamado Genymyrus Donnyi; (iii) nkôdya, cara-
col do rio [Limicolaria pseudotrochus alabaster] que simboliza a
observação das leis dos biñsîmbi; (iv) nsâdi, um tipo de pedri-
nhas que servem para curar as feridas (LAMAN, 1936, p. 752);
(v) lusûnzi, pedra tocada pelo Espírito de Nzâmbi.

3. Animais da terra: (i) mbûmba mfînda: gato selvagem que repre-


senta as características do Espírito da Natureza; (ii) ngôndo:
macaco vermelho e cinzento com longa cauda [Cercopithecus
escanias] que simboliza nascimento (vermelho), morte (cinzen-
to) e ressurreição (vermelho/cinzento); (iii) ngênde, um tipo de
rato que quando morre o coração ainda bate [também chamado
mbênde]; (iv) mbwa nzazi, cão-trovoada que se joga no fogo
das queimadas para depois queimar as casas da aldeia. Os

12 O local onde se realiza o kimpasi deve obedecer a dois pressupostos. O primeiro é identi-
ficação dos integrantes da comissão que irá escolher o espaço para efeito. O segundo é
as exigências que conduzem a essa escolha que deve merecer uma aprovação unânime.
Aconselha-se os volumes de K. Laman sobre The Kongo que contêm muitas informações
complementares.
13 Agradecemos a compreensão do leitor em não esperar de nós a lista completa. Os inicia-
dos não aceitam citar na íntegra.

S U M Á R IO 26
excrementos, pele e ossos dele permitem controlar as trovoadas
e evitar desgraças na aldeia.

4. Plantas: (i) yuki ou ma-yûki, pequena planta cujas folhas servem


para curar as doenças de ouvidos. É chamada “Árvore da Vida”
[Briophyllum Calcycinum] (LAMAN, 1936, p. 1144); (ii) ngûmbi,
planta cujas folhas ajudam a fezer lukobi lwa bakûlu e que são
tidas como purificadoras; (iii) mbese planta cujas frutas são jo-
gadas como dados para decifrar as mensagens dos espíritos
da terra; (iv) ngêmba árvore Verononia conferta que, acredita-se,
apazigua os espíritos da natureza e facilita a comunicação co-
ração/Espírito; (v) ñkasa, uma árvore-veneno; (vi) as folhas de
lêmb’a-lêmba; (vii) etc.

O primeiro trabalho que essa pequena força tarefa faz, tem a


ver com a organização do local onde vai se passar o kimpasi. Eles dão
maior importância aos ñkita. O padre Joseph Van Wing (1938, p. 292)
estudou kimpasi e segundo percebeu, os ñkita são as forças espirituais
que Nzâmbi criou primeiro. Existem três tipos de ñkita: (a) seres do co-
meço do mundo; (b) ancestrais criadores da sociedade; (c) heróis civi-
lizadores ou aqueles que morreram de forma violenta (BASTIN, 1978).

A seguir, na hierarquia, vêm os bakûlu que são os espíritos dos


ancestrais subdivididos em três categorias: (a) aqueles que dirigiram
os homens consoante a missão do Espírito de Ñzâmbi e cumpriram
rigorosamente as suas funções de modo a não ter queixas contra
eles; (b) aqueles que desempenharam funções públicas com brio e
sem maldade; (c) aqueles que na sua vida terreste não cometeram
crueldades nem infringiram as leis ou normas estabelecidas pelas
quais foram condenados.

Os domínios dos ñkita são repartidos consoante os espaços de


Deus14: (a) águas: nascentes, lagoas, mar, rios; (b) céu: chuvas com
14 Águas/hidrografia, Ar, Fogo primitivo (sol)/astrografia e Terra/geografia.

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trovoadas, lua, arco-íris, lua, sol (PIGAFETTA; LOPES, 1989, p. 65); (c)
vento, sopro, brisas, etc.

Os domínios dos bakûlu são: elementos da terra, a saber: mi-


nerais, pedras especiais, plantas, árvores (floresta). O kimpasi dá re-
levância aos ñkita, pois logo na primeira entrada, os antigos iniciados
apavoram os recém-chegados sobre eles:
Ao crepúsculo, escondem-se, os habitantes da aldeia nas suas
própias casas; os estrangeiros vão as casas dos amigos ou dos
antigos iniciados. Lá, como é evidente, as recomendações são
feitas: ‘o ñkita vai te matar, mas não tenha medo, ressuscitará
para uma vida melhor. Você só tem uma coisa a fazer quando
estiver morto: calar a boca; deixar-se levar, e se acontecer que
ao jogar-vos à beira da estrada ficares machucado, mantenha-
-te silêncio e não se mexa. Caso contrário, poderás ser morto
para sempre.

A hierarquia hagionímica serve de orientação da equipe que irá


construir doze mwêlo, casa onde reside o Espírito. O mwêlo tem a se-
guinte característica: (a) tem três portas: uma porta normal, seguindo
o princípio de nsûndi tumfila ñtu15; (b) mwêla’a nima: porta traseira; (c)
mwêla ñteto, porta ao lado (LAMAN, 1936). Essas casas são construí-
das com materiais provenientes do reino vegetal específico, nomea-
damente mbese, ngêmba, etc. Eram nessas casas que as pessoas
chamadas ñtemoni morriam e ressuscitavam. Joseph Van Wing (1938,
p. 209-210) chama-nos a atenção nesses termos:
Sem dúvida, eles sabem que não se morre no Kimpasi de uma
morte comum. Mas também estão profundamente convencidos
de que se morre e ressuscita-se numa outra esfera, neste mun-
do mágico de Espíritos que lhes é familiar, mas que nós (oci-
dentais), com a nossa mentalidade, não podemos nos imaginar.

15 Ao Nsûndi que significa “cume” colocamos a cabeça; ao Mbâmba que é o vale, colocamos
os pés, isto é, as nascentes (pés) representam o início. E onde desagua o rio é o “cume”.
Foi na base deste princípio que os Kôngo delimitavam as suas regiões.

S U M Á R IO 28
Depois de identificar os índices dos animais sagrados e cons-
truídas as doze primeiras casas mwêlo, em forma circular, os primei-
ros rituais são fixados e convidam-se os doze representantes dos
especialistas acima mencionados, para celebrar a paz com os ñkita.
No fim desses rituais, cabe ao ngânga Kavêla kya ñkîsi acender o
fogo que será apagado apenas no último dia do kimpasi16. A duração
mínima do kimpasi é de um ano e meio17. Depois, serão abertas as
inscrições de novos sacerdotes. Mas antes, constrói-se uma grande
“casa” que chamam de mbôngi’a kimpasi situdada num dos mazûm-
bu (cemitérios) desde que seja localizado numa zona superior no
conjunto do espaço de kimpasi18. À volta deles constroem-se “casas
de visitantes” que têm a forma retangular. De realçar, também, o nzo’a
lufûmba que é um hangar dividido em quatro compartimentos (VAN
WING, 1938, p. 178). Deve existir doze ruas que conduzem todas elas
até a casa/cemitério chamada de mbôngi’a kimpasi. Na parte traseira
dessa casa-cemitério, está o campo de iniciação, embora estejamos
tratando apenas de feitiços.

Kimpasi tinha, também, um acampamento militar. Joseph Van


Wing descreve como era constituído:
Em ambos os lados da porta da frente, estão colocados de ñkîsi
de altura de um homem, feitiços imponentes montando guarda
em frente ao Kimpasi. Eles são chamados de mpânzu: nkanya,
que significa aqueles que têm poder e força para acorrentar.
Armados com rifles, arcos e flechas, lanças e cutelos, essas
sentinelas inspiram terror tanto nos adeptos dos Kimpasi quanto
nos espíritos malignos e feiticeiros que eles são responsáveis​​
por amarrar e tornar inofensivos.

À volta de cada escultura – que o padre belga considera feitiço


– havia homens armados. O local onde se instala o kimpasi é chamado

16 Kavela (Ver LAMAN, 1936: 1059). Vêla kya ñkîsi é o local sagrado no campo de kimpasi.
17 Joseph Van Wing (1938, p. 177) fala-nos que a duração é entre um a quatro anos.
18 John Janzen (1986, p. 132) apresenta um modelo de Lêmba, que não difere muito.

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de Vwêla ou “vata dia kimpasi”.19 É uma ideia generalizada que toda
kimpasi é dirigida por uma mulher com nome de Ndûndu (VAN WING,
1938, p. 180), e deve ser gêmeos ou ter nascido de forma especial. Po-
rém, a morte e ressurreição têm lugar no mbôngi – também chamado de
voka – onde há cemitério dos ancestrais, com paisagem de palmeiras
e preparado para efeito. O diretor do kimpasi Mfwa wansi’a Ñzâmbi20 –
uma pessoa já de idade21 – coordena todas as atividades, consoante as
orientações de Ndûndu (Ñsîmba) e o Conselho de Kimpasi.
Para marcar o início dos ritos de Kimpasi, o chefe máximo envia
os seus homens a todas direções (seguindo as outras ruas),
logo que se faz tiro. A esse sinal, os profanos correm procu-
rar um refúgio na mata e os espíritos hostis fogem apavorados
(VAN WING, 1938, p. 194).

A duração da morte não estava fixada. Joseph Van Wing reco-


lheu informações diferentes. Há quem diga que levava mais tempo:
A duração deste período (morte/ressurreição) não é estritamente
fixa. Poderia prolongar-se até dois meses inteiros de acordo com
o meu informante de maior confiança Mumbata, apenas um mês
depois do outro, porque ‘eles morrem na lua negra (isto é, no
último quarto) e ressuscitam em a segunda após a lua cheia’.
Uma fonte de Kisantu acreditava que a morte durava apenas al-
guns dias. O chefe Mbemba disse-me que esta “vida na mor-
te” pode durar até três meses. Esse período foi mais ou menos
longo, ao que parece, de acordo com as circunstâncias; foi am-
pliado, por exemplo, quando um grande número de candidatos
aderiu após o dia oficial de inscrição (VAN WING, 1938, p. 200).

Ñsîmba Vita faleceu na sexta-feira, durante a lua cheia. No do-


mingo era quarto minguante, que simboliza a ressurreição, quer no
kimpasi, quer na crença social dos kôngo em geral. Já nos debruça-
mos sobre a questão que justificou que todos os kôngo – até os aliados

19 Vata dya kimpasi significa aldeia de kimpasi.


20 “Morte de lepra”. Trata-se de uma doença que somente a intervenção de Ñzâmbi traz cura.
21 Designa alguém vivo cujo espírito de Deus habita nele. Voltaremos no último capítulo, quan-
do tratarmos de Simão Gonçalves Toco.

S U M Á R IO 30
dos padres – proclamassem que a Santo António Dona Beatriz tinha
ressuscitado dos mortos.

Interessa-nos aqui explicar a significação de morrer e ressuscitar.

Começamos por morrer. Kimpasi ensina a recolher-se no seu


íntimo/espírito como forma de dialogar com os ñkita. Esses últimos são
atraídos pelo nsâdi, pó avermelhado, que significa salvo dos mortos.
Pintar-se de ñsâdi significa tornar o seu corpo acessível aos espíritos
mortos (Espírito dos ancestrais) e, por conseguinte, o banho faz-se
nas fontes habitadas pelos ñkita. Expor-se ao sol e coberto de folha
de bananeira simboliza a morte do corpo e os raios do sol propagam
energia (mwîni) e Ndûndu usa o takula para esfregar o corpo dos inicia-
dos para que o ñkita habite nas pessoas. Estendidos imóveis, os can-
didatos pintados de ñsadi, esfregados de takula e cobertos de folha de
bananeira recebem dos raios do sol a possessão do Espírito primitivo.
Os auxiliares da Madame Ndûndu e seu diretor do kimpasi (Nsûmbu)
ajudam a organizar os candidatos. Havia vários auxiliares, nomeada-
mente: Mavûzi’a mbîla, que recolhe todas provisões, Manzânza que
prepara a comida sagrada, etc. Os candidatos fazem uma refeição
única. Essa refeição é tida como almoço com Espírito dos ñkita. Por
isso, Ñsîmba Vita afirma almoçar com Deus, tal como nos informam os
padres que a entrevistaram antes de a queimar viva. É permitido duran-
te a refeição conversar com a voz baixa, tal como convêm aos mortos.
Logo que terminam, os candidatos voltam a dormir debaixo do sol até
cinco ou seis horas, no momento em que o «sol bebe o sangue». Vão
então tomar banho completo e retiram o nsadi e revestem o pano. Ao
regressar aos seus lares, começa a dança dos mortos.

Passamos agora à ressurreição. Há dois ou três indicadores


que anunciam a ressurreição: (1) flor da lemba-lemba, (2) árvores re-
nascendo em poucos dias22; (3) captura excessiva de alguns animais

22 Havia preparação permanente do campo e as árvores podadas regularmente.

S U M Á R IO 31
do rio (ngo zûlu ou ngêmbi). A Tradição considera mwâna ñkênto de
kivumbuya kya Vululu. Em tese, vumbuya é o clima entre julho e agosto
(LAMAN, 1936, p. 1080). Faz sentido que ela tenha sido queimada viva
em Julho e, segundo Lorenzo da Luca, os antonianos multiplicaram-
-se. Contudo, a Tradição considera ki-vumbuya por associar a morte-
-ressurreição. O termo ki-vumbuya é a flor-violeta de lemba-lemba que
brota entre julho-setembro, sinônimo de mvuma (LAMAN, 1936, p. 638,
1080). Isto é, do verbo vûma (ou vûmba): florescer, prosperar depois de
honrar os pais/avôs (os ancestrais), etc.

Em relação à ressurreição, o padre Joseph Van Wing realça que


no dia fixado para essa, os auxiliares – homens e mulheres – e todos
os antigos iniciados que vivem na zona reúnem-se na hora indicada..
Por norma, realiza-se no crepúsculo, na época da nova lua. Depois do
banho habitual, diz o padre, os mortos pintavam-se completamente de
mpêmba, argila branca. Apenas uma parte da cabeça não é pintada,
mas fica manchada com as cinzas das folhas/flores de lusângu-ñsân-
gu. O Mfwa wansi tira o amuleto kimpasi para renovar a sua força. Ele
extrai parte dos ingredientes, terra vermelha e branca, folhas de lusân-
gu-ñsângu, um pedaço de pedra-ñkita, escamas de ovo, pedaços de
madeira específicas… adiciona o pó de ñkula. Ele mistura e, primeiro,
tritura tudo cuidadosamente em uma pedra e depois num pilão:
Os mortos são carregados pelos anciãos no local da execução e
jogados ao longo de diferentes caminhos que levam até lá. Eles
devem permanecer lá, deitados de costas. Depois de cobrir o
rosto com um pano de rafia, as vezes uma folha de bananeira,
os carregadores fugiam, e abandonam os seus mortos. Logo,
aparece o mestre do Kimpasi e a sua comitiva. Ele ajoelha-se
próximo de cada cadáver e descobre a cabeça, pega o tufo
de folhas de lusângu-ñsângu23 em chamas apresentado por um
dos seus auxiliares e esfrega todo o corpo do cadáver. Depois
do joelho esquerdo até a cabeça, e com cuidado ele sopra a
fumaça nos olhos. Ele então pega a mistura mágica que pre-

23 Geralmente, retira-se a flor (ñsângwa). Laman menciona o termo nsangwa com sentido de flor.

S U M Á R IO 32
parou e passa nos olhos do cadáver. Este último, excitado com
essa mistura…, logo esquece seu papel e é desembaraçado…
Os mais velhos o levantam e o morto terá que correr com toda
velocidade de suas pernas em direção ao recinto (VAN WING,
1938, p. 206-207).

Depois, o mestre do kimpasi aparece e, com o chifre de antí-


lope, chama a atenção de todos para escutar o cântico que sustenta
a promessa:
Tat’âmu, Tata Mfwa wasi

Ngûdi’amu, ngwa Ñdûndu,

Fwa mbila, Lwângu ndila nie

Kilûmbu ibaka Toko24

Toko di ngwa Ñdûndu (VAN WING, 1938, p. 208).

Vamos utilizar a tradução que os iniciados (os ñlêmba, tam-


bém) utilizam25:
O meu pai é Papa Mfwa wansi26

Minha mãe é Dama Ñdûndu

que morreu invocando27 e Lwângu lamentou28

no dia que ressuscitou

Toko, filho da Dama Ñdûndu.

24 Joseph Van Wing traduz: «no dia que irei celebrar o matrimónio». Esse sentido está correto,
pois a ressurreição é sinal de um matrimônio com um ñkita, de forma geral.
25 Referimos aqui a Fukyawu kya Bunsenki e Raphaël Batsîkama. Ambos eram lêmba.
26 Essa personagem simboliza o Espírito de Ñzâmbi enquanto médico que cura a lepra.
27 A expressão fwa mbîla significa «morreu numa convocação invocando». Mbila, aliás, signi-
fica convocação, tribunal. Laman registou o primeiro significado (LAMAN, 1936, p. 530).
28 Lwângu: do prefixo lu, acção; e do verbo de vânga, fazer, fabricar, instituir. O termo significa
instituições, leis e, de forma geral, o Conselho Judiciário que tem a missão de observar
(fiscalizar) a execução das leis.

S U M Á R IO 33
A ressurreição termina com uma boa refeição extravagante,
comparativamente às refeições anteriores. Joseph Van Wing faz ob-
servar que as cerimônias de Kimpasi têm um significado real entre os
Kôngo e que o candidato morre e, realmente, volta a vida, isto é, os
próprios kôngo acreditam nessa morte e ressurreição, pelo menos até
a época que ele recolheu essas informações.

Ocorre que, ao reconstruirmos a história da pedra de Lusûnzi e


da Dama bonita, o cântico da promessa faz sentido, principalmente,
no que diz respeito à Dona Beatriz Ñsîmba Vita. Tudo indica, basean-
do-se nas informações de Bernardo da Gallo e Lorenzo di Luca, que
Ñsîmba Vita tenha desempenhado as funções de Ñdûndu. Este cânti-
co-promessa, pressupõe que existirá – sempre – um messias quer seja
secular ou religioso.

Contudo, realçamos dois aspectos: (1) mesma trama semântica


entre ressurreição simbólica do kimpasi e morte real de Ñsîmba Vita;
(2) linguagens do Kimpasi e discursos dos padres.

1. A ressurreição simbólica no Kimpasi tem lugar, diz Joseph Van


Wing, «no período da tarde, no crepúsculo, na época da nova
lua». Dona Beatriz foi queimada viva no fim do dia, crepúsculo, e
no terceiro dia havia lua (em quarta minguante). Também, Ñsîm-
ba Vita foi queimada viva, até virar a cinza. Ora, diz-se, J. Van
Wing, Ñdûndu (chefe de Kimpasi) besuntava os candidatos com
cinza de lusângu-ñsangu29.

2. Uma nova teologia – assente na escatologia kôngo – introduziu


o sagrado local na nomenclatura católica, tendo por isso sido
recusado pela ortodoxia que os capuchinhos adotam. Esse con-
flito de ordem técnica não envolveu os crentes que, curiosamen-
te, orgulham-se de um catolicismo local. No setor político, os
benefícios foram consideráveis pela retomada da normalidade.
29 Curiosamente, trata-se aqui das folhas e flores de algodão.

S U M Á R IO 34
Em setembro de 1994, em Mbata Kuluzu, recolhemos um hino
(que, na verdade, era uma invocação) cantado pelos iniciados cujo
teor é o seguinte:
Ku Mfu’a Kalûnga ngyêle Vou-me introduzir no mistério de
Deus
Nkutama ngwa Mayînda Vou ser elucidado pela Mãe
Mayînda
Ngemba, Mbênza gwizanene Paz e Justiça juntar-se-ão a mim
Nkita, Mfu ndômba bamangana Espíritos da terra juntar-se-ão a
mim
Ngwa Mayînda sema matoko 
Mãe Mayînda abençoa os res-
suscitados
Nsemi mwêla, Mfu Nsemi Sou (agora) o Espírito de Nsemi

Pensamos tratar-se de reminiscências da doutrina de Dona Bea-


triz Ñsîmba Vita. No Cahier n.º 225, Lutete apresenta o cântico que
recolheu (em 1910) a propósito do iniciador do Mbênza, que Wyatt
MacGaffey (2000, p. 160-162) apresenta a presente tradução:
Ngiele ku Mfwandubula I went eagerly searching
Tumonene mama, We saw each other, mama
Nganga Mbênza tumonan’e We saw nganga Mbênza
E e, o o makidi mole Oh! There were two together
Yalumoni kamoni May the Simbi see the
Nsemi mama, nganga, Nsemi, mama, the nganga
Makidi mole, o o o There were two of them, oh!30

Com isso, percebe a influência da doutrina de Dona Bea-


triz no campo político e judiciário. Essa oração (inclusive aquela
que recolhemos em 1994) refere-se a iniciação de uma autoridade
executiva-judiciária. Ora, era no passado duas funções dos Ñzînga
(executivo) e Nsaku (tribunais). A doutrina antoniana misturou-as,
ao ponto de termos aqui esse cântico-código que espelha a cons-
ciência histórica da profetisa.
30 Tradução: “Fui procurar ansiosamente | Nós nos vimos, mamãe | Vimos o ngânga Mbênza |
oh! Havia dois tudo juntos | Que Nsîmbi veja o | Nsemi, mãe, o ngânga |Havia dois deles, oh!”.

S U M Á R IO 35
SALVE ANTONIANA

John Thornton (1998, p. 215-216), no seu valioso livro sobre The


Kongolese Saint Anthony, fornece-nos a versão de Salve Regina como
o falsificou na reprodução do padre Bernardo da Gallo, que passamos
a citar (versão italiana):
Salve voi dite, e non sapete il perche. Salve recitate, e non sapete
il perche. Salve bastonate, e non sapete il perche. Iddio vuole
l’intenzione, l’intenzione Iddio piglia. Nulla serve il casamento,
l’intenzione Iddio piglia. Nulla serve il battesmo, l’intenzione Id-
dio piglia. Nulla serve la confessione, l’intenzione Dio piglia. Nul-
la serve l’orazione, l’intenzione Dio vuole. Nulla servono l’opera
buone, l’intenzione Iddio vuole. La Madre et il figlio nella ponta
di ginocchio. Se non era S. Antonio, come havevano da fare? S.
Antonio è il pietoso, S. Antonio è il remedio nostro, S. Antonio è
il restauradore del regno di Congo, S. Antonio è il consolatore
del regno del cielo. S. Antonio è lui la porta del cielo. S. Antonio
tiene le chiavi del cielo. S. Antonio è sopra gl’Angioli, e la vergine
Maria. S. Antonio è lui il secondo Dio.

A versão de Salve Regina em português, tal como se fazia em


1624, é:
Saudações Rainha, Mãe da misericórdia, doçura da vida, nos-
sa esperança, Deus te salve! Clamamos a vós, filhos exilados
da Eva; ansiamos por vós; gemendo e chorando neste vale de
lágrimas; então, nosso advogado, lança seus olhos misericor-
diosos sobre nós e, após esse exílio, mostre-nos Jesus, o fruto
abençoado do vosso ventre; vós que tens piedade! A piedosa, a
doce! Virgem Maria perpétua. Orai por nós, Santa Mãe de Deus,
para que sejamos dignos de receber as promessas de Cristo.
Amém. Jesus.

Essa oração – Salve Regina – aliena os espaços sagrados re-


servados a Ñzâmbi Lêmba, ñkîsi nsi e o simbolismo religioso da figura
da mãe, ngûdi. Na sociedade secreta de Lêmba, muitas frases «Salve
Antoniano» que pensamos ser da época de Dona Beatriz levam-nos a

S U M Á R IO 36
perceber a revisão desta oração. Podemos citar aqui três expressões
correntes das fórmulas mágicas do Lêmba que pensamos ter a ver
com Salve Regina corrigido: (i) Ngêmba, Ngûti Mfumu31; (ii) Luvûvamu,
ngwa Ndûndu32; (iii) Yênge, Ñkênge ñkîsi nsi33. Essas expressões tra-
duzem melhor a frase Salve Regina. O termo ngêmba significa: paz,
diálogo e graça, ao passo que luvûvamu significa: esperança que
nasce do choque das diferenças. Yênge é uma fórmula de harmonia
social. As expressões ngûti mfûmu, ngwa ndûndu e ñkênge traduzem
perfeitamente a ideia local de regina. Estas fórmulas são pronunciadas
pelo sacerdote para invocar a tranquilidade quando joga o vinho de
paleira no chão a favor de ñkîsi nsi, ou ainda quando pede a graça do
Ñzâmbi Lêmba para fertilidade e outras bênçãos.

As orações34 que terão substituído Salve Regina segundo Ñsîm-


ba Vita são:
Ngêmba, ñguti Mfumu
Mfu Lêmba iñkîsi wangyadila bumpati35
Ñzâmbi Lêmba wasîdi ñsiku ye fu kimuntu
Mbwetete’a ñkânu, mpâmbu’a nzîla yi Mpûngu Tulêndo36.

Tradução:

Salve, Mãe dos Reis


Espírito de Lêmba, o sagrado da boa Política
Ñzâmbi Lêmba, fonte da Lei, harmonia entre as pessoas
Estrela da justiça, cruza-caminho de Deus Poderoso.

31 Ngûti é outra forma de ngûdi, mãe. Mfûmu é Chefe, Rainha (MAKISOSELA, 2018, p. 31).
32 Luvûvamu significa Paz. Ngwa Ndûndu personifica Deus-mãe durante o kimpasi.
33 Yênge pressupõe uma saudação ligada com a felicidade e a graça. O termo Ñkênge é ha-
giônimo, sinônimo de Ñzâmbi Lêmba que se atribuiu a iniciadora mais idosa da sociedade
Lêmba. Na linguagem política, Ñkênge é a linhagem que providencia reis e autoridades
executivas.
34 Nos cadernos, escrevemos “fórmulas mágicas”. Na verdade, em cada frase, quem pronun-
cia as palavras mastiga uma fruta ou raiz, ou bebe ñsâmba (vinho de palmeira), ou ainda
se pinta de cinzas, etc.
35 Léo Bittrémieux traduz “zinga ki buphati” de “vida profana” (BITTREMIEUX, 1936, p. 39).
36 Recolhido nos dias 13-22 de setembro de 1994 em Mbanza Ngûngu.

S U M Á R IO 37
Yênge, Ñkênge ñkîsi nsi
Mbûmba Kalûnga kânga malûndu ñtebo, kânga ñleke
Sadi, Sadi kânga nkadi’a mpêmba
Bakulu ku mpêmba, zita dya lufwa; ñkisi ñsi, lukôngolo lwa moyo37

Tradução:

Salve, Mãe-Santidade
Deus captura os brancos demónios e liberta o oprimido
Salvador, salva-nos do diabo Satanás
Santíssimos ancestrais, nó da morte; ñkîsi ñsi, nó da vida.

Luvûvamu, ngwa Ñdûndu [Ñsîmba], ngwa dya Toko


Ta Mfu Luvêmba fuku lembeka; Ta Mavînda moyo
Mbûngu’a lukôngolo, ñkûmba ya Nsânda
Tusîdi mbêle’a lulêndo38, nkobe malawu39; Tuvâmbana40.

Tradução:

Paz, Dama bonita (Ñsîmba), Mãe dos ressuscitados


Espírito Luvêmba que apazigua; Deus Mavînda que dá vida
O jarro sagrado da morte/ressurreição41, nó do Nsânda
Salvamos a justiça, a bênção; matemos a convenção.

Há duas constatações que importa aqui realçar:

1. Várias frases são repetidas nas várias orações que Joseph


Van Wing (1938, p. 197-198, 208-209, 247-249) apresenta. Inú-
meras ideias contidas nas frases são repetidas com kikôngo

37 Recolhido nos dias 23-27 de Maio de1994 em Mbanza Manteke. Raphaël Batsîkama acha
que deveria ser segundo trecho. Para ele, trata-se de um dos hinos emprestado no Kim-
pasi. Ernest Wâmba dya Wâmba associa isso aos fragmentos do kimpasi que J. Van Wing
apresenta no seu Études Bakongo.
38 Mbêle’a tulêndo significa Justiça.
39 Lukobi lwa bakulu. Por norma, tratava-se de uma caixa dos ancestrais que traz bênção na
sociedade. Mas foi-nos apresentada uma pequena estatueta com morfologia de mwêne
Kôngo em pedra.
40 Essa oração aparenta ser do kimpasi, tal como indicam algumas frases. Foi recolhido nos
dias 19-23 de Agosto de 1994 em Kinsantu.
41 Mbûngu’a lukôngolo era um jarro sagrado que simbolizava a morte e a ressurreição. Em
1994, era chamado de “nkîsi ñsi’a nkulu”: algo sagrado e muito antigo. Esse fogo fica
apagado, depois de encerrar as atividades.

S U M Á R IO 38
variante de outras regiões onde Léo Bittrémieux fez as suas
pesquisas (BITTRÉMIEUX, 1936, p. 39, 56, 59-61, 137, 140-
143, 149). Há curtas frases que foram reproduzidas em linha-
gens (mvîla) na obra publicada por Jean-François Cuvelier
(1934, p. 45, 68, 75, 82, 84). Interessa aqui acrescentar as re-
colhas de John Janzen que, embora sejam nas outras regiões,
coincidem com muitas informações;

2. Várias informações nas três orações estão ligadas a kimpasi,


mas também a Ñsîmba Vita, nomeadamente: (i) Kimpasi: mb-
wetete’a ñkanu, kânga malûndu ñtebo, mbûngu’a lukôngolo; (ii)
Ñsîmba Vita: Sadi kânga nkadi’a mpêmba, ñkûmba dya nsânda,
nkobe malawu, Ta Mavînda, etc.

Por essa razão, pensamos que as três orações – que inicial-


mente consideramos fórmulas mágicas, em 1994 – são possuidoras
de informações diretamente ligadas quer a kimpasi quer com Ñsîmba
Vita. Pela fórmula inicial, – ngêmba, yênge e luvûvamu – pensamos ser
fragmentos reinventados de “Salve Antoniano”.

Ñzâmbi Lêmba, divindade de fertilidade, simboliza Deus-mãe


das origens da espécie humana com cinco aspectos (MAHANIAH,
1982, p. 35; BUAKASA, 1973, p. 118): (i) prolífica; (ii) piedosa; (iii) mise-
ricordiosa; (iv) dialogadora ou intercessora; (v) curadora. Por isso, faz
sentido que a Virgem Maria tenha nascido em Mbânz’a Kôngo. Talvez
o termo Ñkûmb’a Wungûdi42 soe melhor. Esse último termo traduz-se,
na linguagem religiosa, por Deus-Mãe. O termo lêmba significa: formo-
sa, doce, misericordiosa, piedosa, mas, também, é uma divindade da
produção: Mãe do Mundo. Por isso, nas aflições, a sociedade secreta
Lêmba é apropriada para atenuar as dificuldades sociais (JANZEN,
1982). Por outro lado, a Constituição kôngo diz de forma clara: “…
kimfûmu kya Lêmba Kôngo…” (BATSÎKAMA, 2018, p. 64; FUKYAWU,
42 Ñkûmba é cordão umbilical, ao passo que wungûdi é a maternidade. Mbânz’a Kôngo foi assim
proclamado por ter reunido as 12 linhagens que simbolizavam 144 tribos fundadoras do reino
do Kôngo. Nas invocações Ñkûmba Wungûdi é antropomorfizado como Ñzâmbi Lêmba.

S U M Á R IO 39
1969, p. 127; MAHANIAH, 1982, p. 52; NGOMA, 1963, p. 39). O Poder é
do Povo (de Deus), referindo-se aos nove valores que todo ser humano
herdou de Ñzâmbi Lêmba43. Sobre Ñzâmbi Lêmba existe um ritual que
todo pai faz a seu filho quando este estiver pronto para sair de casa e
ir constituir a sua família. O progenitor começa por cuspir nas mãos do
filho e pronuncia as seguintes palavras: “yala bwa yala nsanda! Sama,
sama!”44. Depois destas palavras o abençoador cuspe no chão três
vezes [na última vez ele mastiga a noz de cola, com vinho de palmeira]
e volta a cuspir nas suas próprias mãos e esfrega a cabeça do filho,
finalizando com esses termos: “Nzambi Lemba sama mwana. Samba
nzila yandi ye vene ngolo ye malawu”45.

Como se vê, Ñzâmbi Lemba é o abençoador.

Quer Santa Mãe de Deus, quer Rainha, belisca sobremaneira


o lugar de Ñzâmbi Lêmba. Não seria loucura, na concepção kôngo,
considerar Santo António como Ñzâmbi Lêmba. Quer dizer, a segunda
pessoa na hierarquia espiritual. Santa Mãe de Deus enquanto Ñzâmbi
Lêmba tem mwêne Kôngo como seu representante político. Por essa
razão, e outras, aproximaram-se as tramas semânticas de mwêne
Kôngo com Ñtoni Malawu, quer dizer Santo António. O próprio termo
malawu associa-se à Ñzâmbi Lêmba: cheia de graça. A escultura de
Santo António de Pádua, crucifixo de Jesus Cristo e mwêne Kôngo
representam a versão que Dona Beatriz traz com “Salve antoniano”.

Outro aspecto é o ñkîsi nsi. Aqui, faz sentido associar Santo


António aos ñkîsi nsi, pois Ñzâmbi Lêmba é invocado para restaurar a
saúde e restabelecer a produção. Na filosofia Bantu, em geral, o ser
é “alma vivente” (KAGAME, 1956, p. 32), tanto quanto a sua origem
directa é ñkîsi nsi entre os Kôngo (BUAKASA, 1973, p. 53-55; NGOMA,
43 Destes valores, três moldam o “muntu”, pessoa humana: bondade, produção e dialogador.
Esses são valores da Lêmba.
44 Tradução: “cresça e seja vigoroso como a árvore figueira. Diga sempre a verdade na sua
boca, nunca amaldiçoar alguém”.
45 “Deus bondoso ilumina a criança [dê inteligência a criança]. Seja você, Deus, abrir-lhe o
caminho, dê-lhe força e que ele seja coberto da sua graça”.

S U M Á R IO 40
1963, p. 18), isto é, o muntu é emintemente espiritual. O ñkîsi nsi é o
que há de mais sagrado e suporta a terra. Habita nas águas, plantas,
no espaço, no fogo, etc. Ora, a terra é um simbolo feminino na cosmo-
gonia kôngo (FUKYAWU, 1969, p. 33).

Mbûmba Kalûnga – Deus criador e mistério da morte (BIMWENYI,


1968, p. 141 e 149) – e Ñzâmbi Lêmba versam atributos de Ñzâmbi e
ñkîsi nsi à ngûdi. Por isso, a sociedade secreta Lêmba traduziria Salve
Regina por “Ngêmba kwa Ngûti Mfumu”, ou “Yênge, Ñkênge ñkîsi nsi”
ou ainda “Luvûvamu, ngwa Ndûndu”. Parece-nos ser a forma simples
de recuperar o sentido local do sagrado associado a mãe, ngûdi (MA-
KISOSELA, 2018, p. 153). Karl Laman define ngûdi como: (i) mãe, mu-
lher de idade; (ii) parte inferior, o meio, coração, núcleo/caroço; (iii) um
rio grande que enche graças aos outros (LAMAN, 1936, p. 644).

Os ñkîsi nsi têm a função de salvar e constituem a origem do


Espírito de Ñzâmbi na pessoa humana. Esse sentido está presente ao
dizer ser humano (MUJYNYA, 1975, p. 149), muntu. Ñtu é possuidor do
espírito da Existência (Ñzâmbi como existência). Zamenga Batukezan-
ga associa a terra (argila) a essa existência [Mbûmba Kalûnga] que
considera de força vital primitiva (MUJYNYA, 1975, p. 150; MALULA,
1965, p. 261) cuja mãe permanece a herdeira ontológica do Espírito
de Ñzâmbi. Aliás, Deus-Pai como traz a teologia católica é uma dis-
cussão de conceitos e conceitual nas culturas Bantu (MALENGU, 1967,
p. 519). Matsumakia Mutombo descreve a polimorfia de Deus pelas
maneiras como os Bantu o concebem (MUTOMBO, 1996, p. 43-53). A
tradição Bantu é muito rica nesse aspecto – tal como o mostra Vicent
Mulago – e consideravelmente profícua em conceitos (MULAGO, 1967,
p. 281-282). O termo ngûdi deriva de vûlula: (i) libertar, salvar vida; (ii)
cavar a terra, retirar algo do seio da terra; (iii) brotar, rebentar (LAMAN,
1936, p. 1079-1080). Como se pode notar na base da tese sobre a
força vital/união entre os mortos/vivos (BOCKIE, 1993, p. 42-45; MU-
LAGO, 1956, p. 133-134; MUJYNYA, 1969, p. 201-202), a mãe é a an-
tropomorfização de Ñzâmbi Lêmba. Pelas mesmas razões, ela (mãe)

S U M Á R IO 41
é a viva corporização dos ñkîsi nsi. Ngûdi, também, deriva de bula: (i)
ter as suas primeiras menstruações, ter os primeiros frutos; (ii) abrir [as
pernas] para deixar escorregar águas (líquido amniótico) para salvar
vida; (iii) tornar-se adulta/mãe (LAMAN, 1936, p. 67).

O conceito da mãe/ngûdi associa as atribuições de garantir a


continuidade da espécie humana, tal como diz Ñzâmbi Lêmba. A vida
do feto no útero – uma metáfora de um tubérculo debaixo da terra – é
salva pela mãe com as mesmas razões que os ñkîsi nsi enquanto seres
invisíveis salvam a existência humana (MUJYNYA, 1975, p. 148, 152;
ZAMENGA, 1996, p. 21, 33-35). Logo, ngûdi é salvadora (MAKISOSILA,
2018, p 44). Ela é rainha. Atribuem-lhe as qualidades de Deus criador.

Por essa razão, Dona Beatriz redefine o Santo António endóge-


no. A própria população da época associava-lhe as figuras de mwêne
Kôngo (Nguti Mfumu). Não só Santo António foi feminizado, mas ocor-
reu também com o crucifixo. Junto dos humanos, Ñzâmbi Lêmba sim-
boliza melhor o intercessor. Por isso, Ñsîmba Vita coloca-o acima dos
anjos. Endogeneizado, Santo António que já se confunde com mwêne
Kôngo personifica Ñzâmbi Lêmba, a Deus-mãe (MULAGO, 1968, p. 50-
51). Com isso, faz sentido que esse santo o tenha visitado antes de lhe
confiar a missão. Não se trata de uma missão humana, mas oriundo do
céu. Desta feita, Ñsîmba Vita traz uma nova Teologia. Pareceu-nos ser
na mesma perspectiva que Dona Beatriz interpreta o Catolicismo que, tal
como Vumbi-Yoka Mudimbe (1979, p. 148-149) o sugeriu, os bispos Jo-
seph Malula e Pasinya Monsegwo sublinham, cada um a sua maneira, a
importância da cultura africana – depois do Concílio Vaticano II – na com-
preensão social sobre a mensagem cristã (MALULA, 1965, p 259-269).

Com esta mensagem cristã social, Dona Beatriz é aplaudida


pelos Kôngo que a compreendem sem rodeios. A profetisa evita
ser anticolonial como forma de preservar o espaço dialógico entre
o Cristianismo e a religião local através da redefinição dos símbo-
los (MULAGO, 1972, p. 473 e 492). Curiosamente, o Concílio Vat. II

S U M Á R IO 42
repensou este mesmo aspecto que, dois séculos antes, Dona Bea-
triz Ñsîmba Vita já tinha estruturado.

O próprio cristianismo é um sincretismo. A figura de Jesus Cristo


seria como apropriação da civilização egípcia em Saqqara, por sinal
africana, na figura do último rei da 5ª Dinastia do Antigo Egito: Nefer-
-sout Ounas46. No quarto funerário dele, existem várias orações e a
concepção da vida depois da morte47. Santo António enquanto Ñzâm-
bi Lêmba é um simbolismo devocional convergente. Nesse sentido, a
proposta de Dona Beatriz passa a ser uma tentativa da descolonização
religiosa das entranhas culturais portuguesas, como forma de dar voz
às culturas endógenas. Ela não nega “Salve Regina”, mas endogeneí-
za em «Ngêmba, Nguti Mfumu», ou seja «Haja Paz, Ô Rainha-mãe».
Ou ainda, em «Luvûvamu, ngwa Ndûndu». Ou, ainda, «Yênge, Ñkênge
ñkîsi nsi»: «Haja Paz, Ô Espíritos da Terra».

Kimpasi é “viver a sua morte”, com realce a ngwa Ndundu que


organiza, ao passo que Lêmba é retirar das aflições recorrendo a Ñkên-
ge. Quer a primeira, quer a segunda ambas são figuras da mãe que
simbolizam Ñzâmbi Lêmba. Foi essa dinvidade que se manifestou jun-
to da Dona Beatriz, como Santo António (ABRANTES, 2019, p. 45-49).
Os cinco conceitos que vimos anteriormente associa a religião a força
simbólica que emana do alicerce da «coisa pública»: povo e suas per-
tenças ao clã territorial48. Por essa razão, “Salve Antoniana” traz uma
teologia baseada nos códigos endógenos. As versões que recolhemos
corroboram com a existência percebida pelos Kôngo. O ser existente é
composto por: (i) nitu, corpo; (ii) menga, sangue; (iii) mwêla, alma; (iv)
mfûmu ñkutu, dupla alma; (v) ñkûmbu, nome.
46 Significa: “Os lugares de Ounas são perfeitos”.
47 Cerca de 283 orações (que egiptólogos chamam de fórmulas mágicas). Uma dessas ora-
ções assemelha-se a “Pai Nosso que estás nos céus” cristão, pois Ounas tinha instituído
o “Rá Deus celeste”. O texto apresenta a vida depois da morte: “Ele está vivo, ele está
vivo, ele está vivo entre os mortos”, lê-se nos textos. Nos versículos 341-344 Ounas faz a
eucaristia, onde com o ritual do pão e vinho passa a ser associado à vida eterna.
48 Aquelas que Pierre Bourdieu chama de forces vives de la nation (BOURDIEU, 2000, p. 31)
que não podem ser subestimadas por nenhum sector ou gestão estatal.

S U M Á R IO 43
Figura 1 - Modelo do campo de kimpasi

Fonte: imagem do autor, 2021.

S U M Á R IO 44
Importa salientar aqui mwêla e mfumu ñkutu. O termo mwêla
significa alma, mas especificamente visto separadamente do corpo.
Quando alguém morre sem, portanto, passar pelo processo de se-
cagem, o «corpo com alma» é chamado de lûnza. Quando alguém
morre, mas a sua alma permanece vivente é chamado de muhêbula
(mwêbula). Isto é, a sua alma respira ainda (bula ou fula). Mas, quando
o cadáver é enterrado e que a alma encontra residência nas águas.

Mfumu ñkutu é, por princípio, a alma-espírito que se dissocia


do corpo – sobretudo quando a pessoa dorme – e deambula em ou-
tros espaços feéricos e físicos. Ele localiza-se na orelha-olho (cabeça).
Para os não-iniciados, o mfumu ñkutu é responsável de sonhos e re-
construção das imagens no sonho ou de alucinações.

CONCLUSÃO

Urge estudar a dinâmica que o catolicismo tomou no reino do


Kôngo no século XVIII, já que grande parte dos escravizados kôngo
que foram deportados para Brasil levaram fragmentos de kimpasi, que
podem ser vistos em candomblés, umbandas e, também, no próprio
catolicismo brasileiro por meio dos santos africanos.

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S U M Á R IO 47
2 Daniel Precioso

Ndûmbe:
a iniciação
de uma sacerdotisa
angolana (Ambaca, c.1740)

DOI: 10.31560/pimentacultural/2022.94852.2
Ndûmbe, sub. Mulher em noviciado | Noviça || adj. Que se prepa-
ra para professar em xinguilamentos | Novata (sub. pl. Jindumbe).

- ASSIS JÚNIOR, A. de. Dicionário Kimbundu - Português, p. 33 e 72.

INTRODUÇÃO:
A DOENÇA-CHAMAMENTO

É comum ouvir dizer que pessoas se unem a terreiros afro-bra-


sileiros para (ou após) se curarem de uma doença. Em dezembro de
2017, Mãe Verônica – mãe-de-santo de uma casa de Umbanda (tam-
bém iniciada no Candomblé) de São Simão/GO entrevistada por mim
e meus alunos de História e Cultura Afro-Brasileira – afirmou que a
cura de doenças, ao lado da herança familiar, era o principal motivo
das entradas no seu terreiro: “Às vezes acontece da pessoa ter um
problema de saúde e ter que entrar. A pessoa vai a um ilê, a um terreiro,
a um barracão e se cura. Então, por gratidão, pela graça que recebeu,
a pessoa entra também” (VERÔNICA, 2017).

O chamamento religioso em forma de doença é um traço recor-


rente na história das religiões centro-africanas trazidas para o Brasil
com a diáspora africana da época moderna, ainda que o seu signifi-
cado tenha se alterado ao longo tempo. “Zumbis”, “saquelamentos”
e “quilundos” centro-africanos eram cerimônias que visavam desfazer
feitiços ou aplacar a ira de ancestrais negligenciados por seus paren-
tes vivos. Dentro do complexo bantu da ventura-desventura, a doença
ou malefício causado por feiticeiros e antepassados se encontrava na
origem daqueles rituais de cura. A agência de um médium de espíritos
(xinguila) ou de um sacerdote de entidades (nganga-nkisi) garantia o
restabelecimento do equilíbrio rompido pela doença.

S U M Á R IO 49
Por se manifestarem em forma de doenças e outras desventu-
ras, os rituais feitos para aplacar estes malefícios espirituais – verdadei-
ros chamamentos se provocados por antepassados mortos negligen-
ciados – ficaram conhecidos na teoria histórico-antropológica como
“cultos de aflição” (JANZEN, 1992). Ao restabelecer o equilíbrio social
(pois, segundo a cosmologia bantu, os mortos também integravam a
sociedade), estes cultos permitiam a retomada da fruição dos seus
promotores (VAN DIJKF; REIS; SPIERENBURG, 2000). Por isso, Ro-
bert Slenes (2021, p. 13-14) recentemente chamou-os de “cultos de
aflição-fruição”: “cultos almejando a cura de males sofridos por um
indivíduo ou uma coletividade, presumivelmente pela ação de espíritos
zangados ou por pessoas malignas que mobilizavam espíritos para
suas próprias finalidades,” mas que, “se nasciam da ‘aflição’, tinham
como objetivo recuperar a ‘fruição’ em vida.”

Este capítulo tem por objetivo analisar a iniciação de uma sa-


cerdotisa angolana, chamada Catarina Juliana,49 em um terreiro nas
imediações do Presídio de Ambaca durante a década de 1740, ocor-
rida após ela ser acometida por uma doença-chamamento. Seguindo
o caminho aberto por Alexandre Marcussi (2018, p. 25), procuraremos
demonstrar que a doença adquirida por nossa protagonista não foi um
castigo, mas um instrumento usado por seres do mundo invisível para
forçá-la a cumprir seus deveres espirituais. Assim, a doença se afigu-
rava na Angola de meados do século XVIII – e, de certo modo, ainda
hoje nas religiões tradicionais africanas e afro-brasileiras – como um
expediente para unir religiosamente vivos e mortos/divindades.

49 Para uma análise completa dos rituais praticados por Catarina Juliana e sua sociedade
religiosa no interior de Angola durante a década de 1740, Cf. PRECIOSO, 2021.

S U M Á R IO 50
A PERSONAGEM

Catarina Juliana nasceu escrava na paróquia da Sé da Cidade


de São Paulo de Luanda, Reino de Angola, na década de 1710. Seus
pais também eram escravos, naturais e moradores em Luanda. Apesar
de ser natural da África, Catarina Juliana era uma escrava crioula, pois
nasceu na casa do seu senhor e foi batizada católica em tenra idade.
Em 1750, quando foi presa pela Inquisição portuguesa, sua aparência
física era a de uma “preta clara, que na terra se chama fulada, de esta-
tura média e cheia de corpo,” “já com alguns cabelos brancos” por ser
de “meia idade.” “Nas fontes e na testa”, Catarina Juliana tinha “umas
sarjas,” isto é, pequenos cortes superficiais na pele que produziam
cicatrizes mais ou menos pronunciadas e que serviam como marca
étnica ou emblema de identidade de seu grupo.50 Estas escarificações
revelam que Catarina Juliana e seus pais, embora se declarassem ca-
tólicos e batizados, mantiveram as suas tradições culturais, trazendo
na face marcas rituais ambundas.

No estado de solteira, Catarina Juliana teve uma filha natural


do capitão-mor do Presídio de Ambaca, o português João Pereira da
Cunha, a qual faleceu com apenas oito meses de vida. Catarina Juliana
já andava amancebada com ele em Luanda quando ainda pertencia
ao seu primeiro senhor, o sargento-mor Cipriano da Silva.51 O futuro
capitão-mor de Ambaca a comprou por ser amante dela52 e, assim que
a adquiriu, lhe passou a carta de alforria. Na escravidão africana, era
costume incorporar mulheres cativas às parentelas dos senhores como
esposas: “as mulheres escravas tornavam-se dependentes livres,
principalmente depois de terem filhos de um homem livre” (LOVEJOY,

50 “Correspondência de Catarina Juliana”. ANTT, Tribunal do Santo Ofício da Inquisição de Lis-


boa, Documentos Avulsos, Cx. 1580, Cód. 13839, fls. 5 v, 96 v, 101, 107, 108, 109 e 118 v.
51 “Correspondência de Catarina Juliana”. ANTT, Tribunal do Santo Ofício da Inquisição de
Lisboa, Documentos Avulsos, Cx. 1580, Cód. 13839, fls. 60.
52 Ibidem, fls. 4 v.

S U M Á R IO 51
2002, p. 46). Uma vez liberta, atuando como xinguila – sacerdotisa que
incorporava espíritos para realizar curas e adivinhações –, Catarina
Juliana pôde acumular bens devido à celebridade alcançada pelas
práticas de cura e adivinhação.53 Para tanto, possuía licença do
capitão-mor, seu amásio, para “possuir e usar o que lucrava [...] em
seus próprios contratos.”54

Catarina Juliana não sabia ler nem escrever, mas detinha um


prestigiado savoir faire religioso, oriundo da tradição oral angolana, que
adquiriu durante as práticas iniciáticas (ndûmbe, em quimbundu) as
quais foi submetida. Quando começou o seu suplício inquisitorial, no
dia 14 de novembro de 1750, ao chegar de Angola presa com o capi-
tão-mor55 em Lisboa, Catarina Juliana possuía três escravas e muitas
joias de ouro, bens que juntou pela sua atuação como xinguila. Os ob-
jetos de ouro, muitos deles permeados de simbolismo religioso, eram
compostos por cordões, verônicas, pares de brincos, fivelas e uma
pombinha. Possuía ainda cordões de prata, “três colares de coral ver-
melho, que lhe serviam no braço,” além de muitas moedas de ouro. A
soma dos seus bens totalizava a relevante quantia de pouco mais de
meio conto de réis.56

53 “Correspondência de Catarina Juliana”. ANTT, Tribunal do Santo Ofício da Inquisição de


Lisboa, Documentos Avulsos, Cx. 1580, Cód. 13839, fls. 101.
54 Ibidem, fls. 2. O próprio capitão-mor é apontado como mágico “público e notório” duran-
te o processo de Catarina Juliana, mas não sabemos se ele era sacerdote (nganga) ou
médium (xinguila).
55 De acordo com a testemunha João Soares Pereira, soldado do Presídio de Ambaca, com
eles foram presos outros quatro “pretos livres”, um deles chamado João Pedro e os outros
apelidados de Mucuri, Quipaquina e Dalla Tango. “Correspondência de Catarina Juliana”.
ANTT, Tribunal do Santo Ofício da Inquisição de Lisboa, Documentos Avulsos, Cx. 1580,
Cód. 13839, fls. 66v.
56 “Correspondência de Catarina Juliana”. ANTT, Tribunal do Santo Ofício da Inquisição de
Lisboa, Documentos Avulsos, Cx. 1580, Cód. 13839, fls. 1v-2v. Sua condição econômica,
porém, não a tornava dona ou mwadi, já que ela não controlava um grande número de de-
pendentes, plantações e redes comerciais, nem pertencia ao núcleo de patronos ricos do
presídio, encontrando-se, antes, na condição de dependente do capitão-mor (CANDIDO,
2013, p. 318-319; VANSINA, 2005, p. 11).

S U M Á R IO 52
Por ter nascido escrava na Cidade de São Paulo de Luanda,
sede política do Reino de Angola (colônia portuguesa), Catarina Julia-
na foi introduzida no catolicismo desde o seu nascimento, mas herdou
também as práticas religiosas tradicionais ambundas. Ela teria levado
uma vida dupla em termos religiosos: se não se relacionava com a re-
ligião local desde tenra idade, ao menos depois de ser acometida por
uma enfermidade, foi iniciada como xinguila e nganga-nkisi. Catarina
Juliana foi batizada na Igreja da Conceição da Sé de Angola. Perante
os inquisidores, ao informar a sua genealogia, se declarou “verdadeira
católica” – pois ouvia missa e pregação, confessava, comungava e
fazia as demais obras – e, para provar o que disse, pôs-se de joelhos,
persignou-se e benzeu-se, recitando o Padre Nosso, a Ave Maria, o
Credo e os Mandamentos da Lei de Deus, comprovando, assim, o
conhecimento dos preceitos fundamentais da fé dos colonizadores.

Catarina Juliana jamais saiu dos domínios de Portugal, mas,


além de ter residido em Angola (na Cidade de São Paulo de Luanda e
no Presídio de Ambaca), passou pela Cidade da Bahia57 e por Lisboa.
Era, portanto, uma personagem atlântica, pois circulou pelas diferentes
margens do Atlântico Sul português. Embora tenha justificado suas via-
gens em razão de transações comerciais e políticas de seu ex-senhor e
amásio, o capitão-mor do Presídio de Ambaca, ao circular pelo espaço
atlântico português, Catarina Juliana também propagou as suas prá-
ticas religiosas, sendo mais uma das sacerdotisas africanas a disse-
minar os seus conhecimentos pelas regiões que percorreu, ajudando,
assim, a moldar os calundus coloniais que se difundiram por toda a
América portuguesa e, mesmo, no Reino de Portugal.58

57 Catarina Juliana acompanhou o capitão-mor João Pereira da Cunha em “viagem de negó-


cio” à Bahia. Nesta ocasião, ambos venderam alguns de seus escravos: Catarina Juliana
vendeu “uma moleca chamada Antônia” e o capitão-mor dois escravos de sua casa, cha-
mados Mateus e João. “Correspondência de Catarina Juliana”. ANTT, Tribunal do Santo
Ofício da Inquisição de Lisboa, Documentos Avulsos, Cx. 1580, Cód. 13839, fls. 44.
58 Sobre as práticas religiosas africanas no Reino de Portugal, ver: CALAINHO, 2008.

S U M Á R IO 53
Catarina Juliana era ré primária no Santo Ofício quando caiu em
1750 nas malhas da inquisição portuguesa, juntamente com o seu ex-
-senhor e amante, ambos acusados de “idolatrias” e “adorações de-
moníacas”. Durante os treze anos em que esteve presa nas sombrias
dependências da casa dos Estaus, onde ficavam os cárceres secretos
da Inquisição de Lisboa, Catarina Juliana mudou a sua estratégia de
defesa. Durante os primeiros interrogatórios de que temos conheci-
mento, realizados em 1756, rechaçou veementemente todas as acusa-
ções contra si, mas após quase oito anos de cárcere, confessou que
procurou uma sacerdotisa no interior de Angola para se curar de uma
enfermidade. Sua confissão manteve um grau de passividade na con-
dução das práticas religiosas em que se encontrava enredada que não
condiz com a realidade. Os inquisidores não se deram por satisfeitos e,
no decorrer do processo, fizeram ouvir novamente as testemunhas em
Angola, incluindo ainda outros depoimentos no processo.

Durante todo este lento processo de coleta de provas, Catarina


Juliana amargou as péssimas condições dos cárceres inquisitoriais.
Contando mais de 45 anos de idade, sucumbiu encarcerada na noite
do dia oito de outubro de 1763. Apesar do auto de falecimento do-
cumentar a sua morte como “natural”, causada por uma “espécie de
estupor” ou “apoplexia” que a deixou “entrevada na cama por mais
de três meses,” o longo período de reclusão, a alimentação ruim e a
insalubridade do local é que ceifaram a sua vida – apesar de, após se
confessar em 1758, sua situação pareça ter melhorado, já que ela foi
deslocada para a cozinha inquisitorial para trabalhar.59

Catarina Juliana faleceu em 1763 encarcerada em companhia


das suas parceiras de cela, a madre Mariana Inácia de São José, Iná-
cia Maria, Gracia Maria e a preta Rosa Maria. A perda de consciência
e mobilidade (estupor) foi causada por um acidente vascular, isto é,

59 “Correspondência de Catarina Juliana”. ANTT, Tribunal do Santo Ofício da Inquisição de


Lisboa, Documentos Avulsos, Cx. 1580, Cód. 13839, fls. 170 v.

S U M Á R IO 54
pelo derramamento de sangue no interior de um órgão (apoplexia).
No longo tempo em que ficou “entrevada” na cama, e a título de “pie-
dade” dos seus algozes, Catarina Juliana foi medicada sem êxito. An-
tes de falecer, recebeu diversas vezes os sacramentos da Comunhão
(sagrado viático) e o da Extrema Unção, sendo antes confessada por
um padre capelão.60

SUA INICIAÇÃO

Por diversas vezes, frente a frente com os inquisidores, Catarina


Juliana refutou as acusações de idolatria e gentilismo, afirmando-se
verdadeiramente católica.61 Manteve esta estratégia de defesa por oito
anos, mas no interrogatório de 24 de julho de 1758, provavelmente,
em razão da pressão psicológica e das péssimas condições de seu
já prolongado encarceramento, confessou que recorreu a um “mágico
(sacerdote) do sertão62” para se curar de uma moléstia.

Segundo a ré, treze ou quatorze anos antes, no presídio de Am-


baca, achando-se doente, com o corpo todo inchado, procurou um
preto forro chamado Mateus Capichi, “gentio, mas já batizado e mo-
rador junto ao dito presídio.”63 Foi este preto forro que lhe indicou uma
curandeira. Catarina Juliana disse aos inquisidores que, como não pre-
tendia que o seu ex-senhor e amásio soubesse que procurava a cura
por meios “gentílicos” – o que era mentira, pois ele próprio também o

60 Para justificar a sua “bondade”, os inquisidores disseram que, durante os períodos de


maior agonia, Catarina Juliana recebeu “os sacramentos da Eucaristia e Unção.” “Corres-
pondência de Catarina Juliana”. ANTT, Tribunal do Santo Ofício da Inquisição de Lisboa,
Documentos Avulsos, Cx. 1580, Cód. 13839, fls. 167.
61 Ibidem, fls. 11, passim.
62 “Sertão”, para os portugueses da época, consistia no território das colônias em que a
autoridade do rei não chegava.
63 “Correspondência de Catarina Juliana”. ANTT, Tribunal do Santo Ofício da Inquisição de
Lisboa, Documentos Avulsos, Cx. 1580, Cód. 13839, fls. 43 v.

S U M Á R IO 55
fez64 –, saiu às escondidas, em uma noite, para a casa de uma preta
livre chamada Esperança Cazolla, “gentia não batizada, solteira [...]
e natural do sertão, moradora no sítio de Anatunga, a légua e meia
distante do dito presídio [de Ambaca].”65 Acompanhou-a até a casa
da curandeira sua escrava Antônia. Catarina Juliana confessou que foi
[...] levada em uma rede por dois escravos da casa, chama-
dos Mateus e João, os quais vendeu o mesmo capitão[-mor
João Pereira da Cunha] na Cidade da Bahia, e chegando à
dita casa, ainda de noite se recolheu em particular com a dita
Esperança e, comunicando-lhe as suas queixas, lhe disse a
mesma que ela confitente tinha no corpo Quibuco e Mottâ [na
verdade, Gangazumba66], que são os nomes de dois ídolos
da gentilidade, segurando-lhe que havia de curar e, para isso,
entrou a tocar atabales e a bailar com outros pretos e pretas,
que logo se ajuntaram, batendo todos as palmas das mãos,
como também ela confitente, que estava sentada no chão,
chamando todos pelos sobreditos ídolos67 e fazendo a dança
chamada de calundus, na qual gastaram perto de uma hora
e, depois de acabada, matou a dita Esperança um galo, que
na dita dança tinha trazido na mão e, tomando-lhe o sangue
em uma tigela, o misturou com uns pós de ervas, cujos nomes
ignora, e com ele untou o corpo dela confitente, que logo se
recolheu para casa sem experimentar melhoras.68

64 Agindo assim, Catarina Juliana pretendia proteger o seu ex-senhor e amásio, já então fa-
lecido nos cárceres inquisitoriais. Concordamos, neste ponto, com Kale Kananoja (2010,
p. 464), primeiro historiador a analisar o processo de Catarina Juliana, que afirmou: “Pro-
vavelmente havia alguma verdade nas acusações, e creio que Catarina Juliana não agiu
em segredo de João Pereira da Cunha. Catarina confessou ter procurado a ajuda de
curandeiros africanos para sua doença, mas é altamente provável que curandeiros tam-
bém estivessem administrando remédios a Cunha. Isso não é surpreendente.”
65 “Correspondência de Catarina Juliana”. ANTT, Tribunal do Santo Ofício da Inquisição de
Lisboa, Documentos Avulsos, Cx. 1580, Cód. 13839, fls. 43 v.
66 A maioria das testemunhas ouvidas no processo apontaram Gangazumba como entidade
possuída por Catarina Juliana. Pode ser, então, que, na sua confissão, a ré citou dois dife-
rentes minkisi para despistar os inquisidores.
67 Na definição etnocêntrica dos portugueses, “ídolo” era uma estátua de alguma falsa deida-
de, utilizada para fazer “feitiços diabólicos.” Os “ídolos” referidos no processo de Catarina
Juliana eram, na realidade, o que os bacongo e povos vizinhos chamavam de minkisi (no
singular, nkisi), isto é, objetos rituais fabricados e que, quando invocados, produziam os
efeitos desejados.
68 “Correspondência de Catarina Juliana”. ANTT, Tribunal do Santo Ofício da Inquisição de
Lisboa, Documentos Avulsos, Cx. 1580, Cód. 13839, fls. 44.

S U M Á R IO 56
Catarina Juliana e Esperança Cazolla ajustaram que a cura de-
veria ser acabada na casa do capitão-mor João Pereira da Cunha.
A curandeira recebeu de pagamento “seis varas de pano de linho.”69
Esperança Cazolla visitou Catarina Juliana por quatro vezes,
[...] aonde lhe trazia os pós das ditas ervas, que misturava com
azeite de carrapato, e com ele lhe repetia as ditas venturas com
as quais foi melhorando pouco a pouco; depois do que, en-
contrando-se ela confitente com a dita Esperança por algumas
vezes, a mesma lhe pedia que lhe mandasse alguma coisa para
os seus ídolos, o que, com efeito, fez, mandando-lhe em diver-
sas ocasiões frascos de água ardente e pedaços de carne de
porco, sabendo ela confitente que tudo era para oferecer no
modo gentílico aos ditos ídolos, aos quais é certo que ajudou
a idolatrar, batendo as palmas como acima tem declarado e
se adoravam na cabeça da dita Esperança, aonde os gentios
creem que eles entram.70

Para justificar o que acabara de confessar e se eximir da cul-


pa, Catarina Juliana afirmou – faltando com a verdade – que nunca
acreditou naqueles “ídolos” e que “só lhes deu a dita exterior adora-
ção, que os mais pretos e pretas lhe davam na dita dança, para o fim
de conseguir a saúde que desejava.”71 Mesmo mentindo não crer nos
“ídolos”, ela acabou confessando que acreditava na eficácia dos rituais
ambundus para a cura de doenças. Finalmente, disse – mais uma vez,
faltando com a verdade – que não voltou a se encontrar com Esperan-
ça Cazolla e com os demais pretos e pretas do ritual que participou.72
Embora Catarina Juliana tenha tentado, em sua confissão, retratar a
cerimônia descrita acima como uma mera consulta a uma curandeira,
na realidade, a cerimônia não foi realizada apenas para a sua cura,
mas também para a sua iniciação na sociedade religiosa de Esperança
Cazolla, que se tornara a sua mentora religiosa.

69 Ibidem.
70 Ibidem.
71 Ibidem, fls. 44 v.
72 Ibidem.

S U M Á R IO 57
INTERPRETANDO SUA INICIAÇÃO

A doença que acometeu Catarina Juliana era, na verdade, um


chamamento dos deuses. Seu corpo havia sido apoderado por uma
entidade ambunda: Gangazumba. Esperança Cazolla não pretendeu
exorcizar esta entidade, mas acomodá-la ao corpo da sua “paciente”.
Como explicou Ioan Lewis (1977, p. 31), este tratamento geralmente
resulta de uma indução das pessoas afetadas pela doença a um
grupo de culto que “promove experiências de possessão regulares
entre seus membros. Dentro de um grupo de culto recluso, a posses-
são perde assim sua significação maligna.” A entidade ambunda que
invadiu o corpo de Catarina Juliana e se manifestou por meio de uma
enfermidade foi, portanto, domada e domesticada – e não expulsa.
O galo sacrificado consistiu em uma oferenda (dádiva ou “taxa” paga)
à entidade que possuiu o seu corpo. A aliança de Catarina Juliana
com a entidade que requereu a sua iniciação se deu a partir do san-
gue do galo sacrificado. A unção do corpo de Catarina Juliana com
o sangue aspergido do galo sacrificado serviu de preparação para
a sua reconciliação com a divindade que se apossou do seu corpo,
a partir da sua iniciação como sacerdotisa desta mesma entidade.
Desde então, Catarina Juliana incorporou os atributos da divindade,
cujos poderes ela passou a mediar.73

O sacrifício realizado por Esperança Cazolla para a iniciação de


Catarina Juliana na sua sociedade religiosa foi, ao mesmo tempo, de
expiação e comunhão, incluindo-se nos tipos de sacrifícios denomina-
dos curativos ou expiatórios. Catarina Juliana, enquanto sacrificante,
foi ungida pela sacerdotisa oficiante com o sangue do galo sacrificado,
ficando, assim, consagrada para a entrada no ritual de iniciação-comu-
nhão com a entidade que havia possuído o seu corpo e se manifestado

73 Sobre o significado do sangue do sacrifício e os atributos dos iniciados durante rituais de


cura (ou cultos de aflição) bantu, Cf. MACGAFFEY, 1977, p. 176-177.

S U M Á R IO 58
por meio de uma moléstia. Esperança Cazolla, sacerdotisa que reali-
zou o sacrifício, encontrava-se então no limiar do mundo visível e do
mundo invisível, representando-os simultaneamente e os unindo. Sob
o seu conjuro, a divindade não foi apenas “convidada a participar do
sacrifício, mas a descer sobre a oferenda” (MAUSS; HUBERT, 2017, p.
37-38). O animal sacrificado foi o intermediário pelo qual a corrente se
estabeleceu. Graças a ele, todos os seres que participaram do sacri-
fício se uniram e todas as forças que nele intervieram se confundiram.

Mas qual a razão do chamamento de Catarina Juliana? Prova-


velmente, a invasão do seu corpo foi uma represália de um antepas-
sado ou de uma entidade da sua terra natal por ela “esquecida”.74 No
primeiro caso, Catarina Juliana pode ter sido negligente nas preces,
oferendas e oblações devidas aos seus parentes mortos; no segundo
caso, a sua mudança de Luanda para Ambaca pode ter gerado a ira
de entidades africanas assentadas geograficamente em sua cidade
natal, as quais eram seus ancestrais (antepassados mais distantes
que fundaram a sua linhagem ou comunidade).75 Pode ser, ainda, que,
tendo em vista o caráter oficial e dominante do catolicismo no Reino
de Angola, as entidades ambundas tenham se zangado com africanos
que atuavam a favor dos portugueses, como era o caso de Catarina
Juliana, amante do capitão-mor do Presídio de Ambaca. Como o culto

74 Como salientou Wyatt MacGaffey (1977, p. 179), “os objetos rituais centrais dos cultos dos
ancestrais, dos espíritos locais e dos encantos (charms) não diferem nitidamente em forma,
conteúdo ou função.” A única diferença entre a cura por nkisi e a cura por apaziguamento
do antepassado, como observa o autor, é sociológica: a pessoa chamada a se iniciar no
culto pela doença provocada pelo antepassado é um parente do espírito que se manifes-
ta, enquanto aquela que não adoece por ação de um antepassado não tem relação com
o nkisi “até que um ato divino decida que o encanto (charm) pode lidar com sua aflição.
Muito frequentemente o encanto é representado como o iniciador da relação, como tendo
imposto a aflição como um sinal que a pessoa em questão deve ser iniciada no culto deste
encanto.” Neste caso, “o iniciado incorpora os atributos do espírito cujos poderes ele me-
dia” (MACGAFFEY, 1979, p. 177).
75 Como observou Wyatt MacGaffey (1977, p. 180), os espíritos de ancestrais eram transfor-
mados, depois de muito tempo, em espíritos locais (bisimbi, basimbi, singular simbi). Os
ancestrais habitavam o kakulu, palavra quimbunda que designa o “mundo primordial, dos
começos, mundo do criador de tudo quanto possuímos hoje ou de que herdamos e que é
necessário reverenciar sempre que possível (e necessário)” (COELHO, 2010, p. 149).

S U M Á R IO 59
público a estas entidades ficou proibido dentro dos domínios portu-
gueses de Angola, elas se manifestaram em africanos que habitavam
estes mesmos domínios a fim de que eles mantivessem os seus cultos
– ainda que de maneira periférica ou marginal.76

Embora a entidade ambunda tenha possuído o corpo de Cata-


rina Juliana, a princípio ela não se manifestou pelo transe,77 mas por
uma doença. Em um primeiro momento, houve uma possessão des-
controlada, encarada como doença, e, em um segundo momento, um
transe controlado, necessário para o exercício da sua mediunidade ou
dom para intermediar as relações entre vivos e espíritos/entidades. O
transe foi, assim, o recurso utilizado por Esperança Cazolla para do-
mesticar o espírito invasor no corpo da sua “paciente”. Após revelar a
sua vocação mediúnica, Catarina Juliana foi integrada como iniciada
de um círculo de pessoas periodicamente possuídas, celebrando dan-
ças regulares e graduando-se ela própria à posição de sacerdotisa.
Em sua progressão na comunidade de culto de Esperança Cazolla,
Catarina Juliana foi promovida de curandeira de infortúnios causados
por espíritos (xinguila) – como é declaradamente classificada pelas
testemunhas de seu processo – para sacerdotisa adoradora de enti-
dades ambundas (nganga-nkisi) – o que não é textualmente apontado
em seu processo, mas que podemos depreender. Pela liminaridade
do ritual promovido por Esperança Cazolla, Catarina Juliana mudou
de status, passando à condição de médium de espíritos (xinguila) e

76 Embora reconheçamos a operacionalidade da distinção entre “cultos periféricos” e “cultos


centrais”, sinalizada por Ioan Lewis (1977), não acreditamos que os rituais promovidos por
Catarina Juliana sejam de “revolta” ou que ela tenha se iniciado por ser mulher ou social-
mente oprimida. Apesar de alforriada (ou seja, ex-escrava), Catarina Juliana era amante
da principal autoridade militar do Presídio de Ambaca. Seja como for, a sua mediunidade/
condição de sacerdotisa, além de permitir a acumulação de bens, lhe possibilitava angariar
maior poder de barganha junto ao seu amásio e à sociedade local – já que ela poderia
demandar coisas em nome da entidade que incorporava.
77 Entendemos por “transe” um “estado de dissociação, caracterizado pela falta de movi-
mento voluntário e, frequentemente, por automatismo de ato e pensamento, representados
pelos estados hipnótico e mediúnico” (LEWIS, 1977, p. 41). Esta dissociação mental pode
ser completa ou parcial e, muitas vezes, é acompanhada de “visões excitantes e alucina-
ções”, cujo conteúdo nem sempre é lembrado.

S U M Á R IO 60
sacerdotisa de nkisi (nganga-nkisi). Sua antiga personalidade morreu
para uma nova nascer. Catarina Juliana também passou a integrar uma
sociedade de culto circunscrita em meio à sociedade de Ambaca, in-
corporando-se pela experiência da communitas78 a outras pessoas,
suas sócias. Não atuava, portanto, sozinha, mas em sociedade.

CURA-INICIAÇÃO:
UM MODELO CENTRO-AFRICANO

A sociedade religiosa que nossa protagonista integrava realiza-


va “festejos” com o objetivo de consultar entidades-estatuetas (nkisi,
no plural, minkisi) também assentadas nas cabeças dos seus médiuns,
obtendo resposta sobre o que pretendia saber e alcançar, tanto “a
respeito dos futuros contingentes” quanto para obter “por este meio a
saúde nas enfermidades e fortuna avantajada nos negócios.”79

Estas reuniões eram presididas, como informam os inquisidores


no processo, por “certos mágicos” – na verdade, sacerdotes ambundus
(banganga em quimbundu; no singular, nganga)80 – que a sociedade
78 Victor Turner (1974) elaborou o conceito de communitas a partir da ideia de liminaridade. Assim
como o límen caracteriza a suspensão temporária do status da pessoa durante o processo
ritual, toda a comunidade envolvida (communitas) também tem a sua hierarquia dissolvida
momentaneamente. Por esse motivo, tanto a experiência da liminaridade como a communitas
estão associadas à coletivização e à revelação de fenômenos suprimidos ou residuais.
79 “Correspondência de Catarina Juliana”. ANTT, Tribunal do Santo Ofício da Inquisição de
Lisboa, Documentos Avulsos, Cx. 1580, Cód. 13839, fls. 22-22v.
80 O que os inquisidores chamavam de “mágicos” eram, na verdade, sacerdotes experimen-
tados nas religiões bantu, responsáveis pelo treinamento de pessoas que queriam – ou
receberam chamados de deuses e espíritos para – se tornar especialistas em rituais (ban-
ganga). Como observou Wyatt MacGaffey (1986), para que uma pessoa se tornasse um
nganga, deveria receber a orientação de um perito (mestre em “magia”) com “talentos
extraordinários”, imprescindíveis para desenvolver no aprendiz as habilidades ou poderes
sobrenaturais (kindoki) para interagir com o mundo espiritual e para preparar medicamen-
tos especiais (bilongo) a fim de atrair um determinado nkisi para um objeto encantado. Es-
tes “mágicos”, portanto, não devem ser confundidos com os “feiticeiros” ou “bruxos” que
agiam sozinhos (ou a mando de pessoas movidas por desafetos), atuando socialmente
de forma disruptiva. Diferentes destes, os banganga (chamados de “mágicos” pelos inqui-
sidores no processo de Catarina Juliana) atuavam coletivamente e de molde a restaurar
o equilíbrio social por meio de seus rituais religiosos, presidindo, assim, a communitas
durante os ritos liminares (LEITE, 1991/1992, p. 69-80).

S U M Á R IO 61
religiosa de Catarina Juliana buscava fora do presídio de Ambaca. De
acordo com as testemunhas ouvidas no processo, o núcleo central da
sociedade religiosa era formado pelo dono da casa onde o grupo se
reunia, o capitão-mor do presídio de Ambaca João Pereira da Cunha,
por sua concubina Catarina Juliana, pelos seus escravos Teodósio
“molecão”81 e Josefa parda82 e por uma negra chamada Luzia.
Juntavam-se a eles o ajudante Felipe Dias Chaves e seu ex-escravo,
o preto forro Antônio Cambundo, que foi apontado como o nganga
mais poderoso da sociedade. O vigário de Ambaca, João Velho de
Barros, afirmou que foi este preto forro que levou o capitão-mor João
Pereira da Cunha em uma serpentina para fora do presídio, em “um
sítio ou lugar chamado Canasangi,”83 para invocar as entidades e tocar
atabaques a fim de curá-lo de uma grave enfermidade.

Uma testemunha ouvida no processo, além de nomear os


outros banganga que integravam a sociedade religiosa de Catarina
Juliana, assinalou quais eram as suas procedências: Antônio Cam-
bundo residia em Lucamba, pertencente à jurisdição de Ambaca; Ca-
tumba Ca Quitacu, Esperança Cazolla (que iniciou Catarina Juliana),
o soba Mumsa Luamba e Dom Salvador Mucuri84 moravam no Bem-
begi, localidade também pertencente à jurisdição de Ambaca, nas

81 Teodósio poderia ser tanto um menino escravo de alta estatura quanto um escravo adulto com
idade inferior a trinta anos. Como observou Mary Karasch (2000, p. 37), estes eram pejorati-
vamente chamados pelos portugueses de “molecões” ou “molecotes”, em contraposição à
forma diminutiva, “molequinho”, que designava “um menino negro muito jovem ou pequeno.”
82 Josefa parda também é apontada como concubina do capitão-mor, o que é compreensível
dentro da tradição poligâmica centro-africana.
83 “Correspondência de Catarina Juliana”. ANTT, Tribunal do Santo Ofício da Inquisição de
Lisboa, Documentos Avulsos, Cx. 1580, Cód. 13839, fls. 96 e 97.
84 Kalle Kananoja (2010, p. 446) transcreveu como “Domingos Mucori”, o que – conjeturamos
– pode ser uma grafia apresentada no processo de João Pereira da Cunha, ao qual não
tivemos acesso. Mantivemos a grafia do códice “Correspondência de Catarina Juliana”,
no qual, à folha 98, o escrivão anotou “Dom Salvador Mucuri”. Cf. “Correspondência de
Catarina Juliana”. ANTT, Tribunal do Santo Ofício da Inquisição de Lisboa, Documentos
Avulsos, Cx. 1580, Cód. 13839, fls. 98. Dom Salvador Mucuri pode ter sido um soba. Como
observou Crislayne Alfagali (2021, p. 378), a partir do século XVIII, alguns sobas avassala-
dos traziam – além dos títulos ancestrais dos sobados que chefiavam – nomes católicos,
às vezes, precedidos pelo tratamento honorífico português de “Dom”.

S U M Á R IO 62
proximidades do mesmo presídio.85 A esta lista de sacerdotes, outra
testemunha acrescentou um preto chamado Dalla a’ Quipaquina, mo-
rador “fora do dito presídio.”86

Estes peritos em rituais ambundus eram trazidos dos sertões


angolanos e forneciam os saberes e os objetos necessários para a
criação da sociedade religiosa doméstica integrada por Catarina Ju-
liana. O caráter doméstico da sociedade religiosa aqui estudada se
deve tanto ao fato dela estar sediada na casa do capitão-mor João
Pereira da Cunha quanto ao caráter privado dos rituais nela praticados.
As cerimônias contavam com danças de roda, cantos de solo e res-
posta coral, acompanhadas pelo som das batidas das palmas das
mãos e dos tambores (ngoma). Apesar dos seus integrantes terem
sido iniciados durante estas cerimônias, a casa do capitão-mor não
assumiu um modelo organizacional de tipo conventual, como Luís
Nicolau Parés (2018, p. 380) verificou entre os africanos ocidentais.
A partir dos indícios coletados, parece mais factível que as iniciações
se davam em relações pontuais com vistas às curas.

Alexandre Marcussi (2018, p. 19-40) observou que calundus de


matriz bantu, como o de Luzia Pinta, se caracterizavam pela inicia-
ção dos consulentes, desdobrando-se, inclusive, em instituições que
reconstituíam ritualmente os laços de parentescos rompidos pela es-
cravidão dentro do que o autor chamou – baseado em Claude Lévi-S-
trauss – de “inversão estrutural.”87 Este parece ser o caso da sociedade
religiosa doméstica de Catarina Juliana: a iniciação não obedecia a
um modelo conventual, com período mais alargado de transmissão

85 “Correspondência de Catarina Juliana”. ANTT, Tribunal do Santo Ofício da Inquisição de


Lisboa, Documentos Avulsos, Cx. 1580, Cód. 13839, fls. 98. Este testemunho foi dado pelo
capitão João Amado da Silva.
86 Esta testemunha era o preto João Teixeira, oficial de alfaiate, natural do presídio de Ambaca
e morador no sítio de Calumba. Ibidem, fls. 103.
87 Marcussi (2018, p. 19-40) notou que, em determinados calundus realizados por escravi-
zados centro-africanos no Brasil colonial, os antepassados mortos eram chamados de
“filhos”, o que permitia a reconstituição de laços de parentesco por uma inversão estrutural.

S U M Á R IO 63
de conhecimentos nos moldes de um seminário, possuindo, ao invés
disso, um caráter mais imediato. As iniciações ocorriam durante cerimô-
nias de cura, de acordo com um modelo que podemos chamar, a partir
dos apontamentos de Alexandre Marcussi, de modelo da cura-iniciação.

Apesar da ausência de uma estrutura de tipo conventual, a so-


ciedade doméstica de culto integrada por Catarina Juliana revela a
existência, na Angola setecentista, de associações de pessoas para
cultuar minkisi e, por essa via, se distancia das definições dos calun-
dus coloniais como cerimônias de cura-adivinhação realizadas por
indivíduos isolados. Este é um elemento a mais para refutar a tese
– defendida por pioneiros dos estudos dos negros no Brasil, como
Édison Carneiro (1981, p. 30; 2002, p. 97) e Roger Bastide88 – de que
os angolas copiavam a estrutura organizacional dos terreiros nagôs.
Parece correto afirmar, todavia, que tanto entre os africanos ociden-
tais quanto entre os bantu “a unidade doméstica estava na base do
terreiro” (PARÉS, 2018, p. 380) e o apoio e a participação de pessoas
influentes e de libertos mais prósperos – como era o caso de Catarina
Juliana – eram fundamentais para a organização destas comunidades
e para arcar com os gastos das cerimônias.

Como a iniciação de Catarina Juliana e, provavelmente, também


a dos seus “sócios”, ocorreu a partir de uma “aflição” – ou seja, de
uma doença ocasionada por um espírito que possuiu o seu corpo –, a
sua sociedade religiosa nasceu para aplacar crises coletivas. As cau-
sas destas crises (doenças) podem envolver tanto feitiçarias feitas por
desafetos locais do capitão-mor, amante de Catarina Juliana, quanto
a ira de entidades territoriais e espíritos de antepassados negligencia-
dos. É possível, ainda, que Catarina Juliana e seus “sócios” tenham
desenvolvido rituais secretos parecidos com os kimpasi – cultos de
aflição – para remediar tais crises coletivas ocasionadas por doenças
que os acometeram.
88 O sociólogo francês Roger Bastide, influenciado pelas considerações de Carneiro, também
afirmou que as nações Congo e Angola copiaram as Nagô e Jeje, apenas trocando os
nomes das divindades (SILVEIRA, 2006, p. 211).

S U M Á R IO 64
Como definiu Robert Slenes (2006, p. 288-289), os kimpasi eram
movimentos secretos comunitários com o objetivo de apaziguar os es-
píritos e solucionar crises coletivas. Estes rituais secretos envolviam a
devoção de objetos sagrados, além do desenvolvimento de “língua
secreta, reuniões nas clareiras das matas, iniciação através da morte
ritual e do renascimento, o transe espiritual, isto é, a incorporação do
espírito-guia, cujo nome e identidade carregava o [praticante] durante
o resto da vida.” Rituais feitos por Catarina Juliana e seus sócios no
campo entre baobás sagrados e entidades bantu (minkisi) não conhe-
cidas pelos inquisidores/habitantes locais (e mencionadas no proces-
so) parecem corroborar a hipótese de que a sociedade religiosa aqui
analisada desenvolveu ritos secretos.

A organização de sociedades religiosas como a de Catarina Ju-


liana não era homogênea na África Central. Como elucidou John Thor-
nton (2019, p. 84), o sacerdócio na área bantu se dava por meio de um
processo de “revelação contínua” e a teologia dos povos da região era
formada por uma “corrente constante de revelações não submetidas
ao controle de um sacerdócio que impusesse uma ortodoxia. Em vez
disso, era interpretada dentro de uma comunidade de fé.” Cada socie-
dade religiosa possuía, assim, uma forma específica de organização,
baseada nas contínuas revelações obtidas pelos seus sacerdotes su-
premos, os quais eram responsáveis pelas iniciações. Segundo Thor-
nton (1998, p. 84; 1998, p. 235-247), “os sacerdotes eram aqueles que
demonstravam eficácia em contatar o outro mundo, uma habilidade
que não era transferida por uma hierarquia ou seminário.” Logo, cada
casa de culto tinha a sua organização e transmitia os saberes através
de iniciações que se davam dentro de uma estrutura pontual de tipo
cura-iniciação, como a descrita por Marcussi (2018, p. 19-40), sendo
os noviços iniciados de acordo com os saberes dos sacerdotes mais
experientes, chamados no processo de “mágicos do sertão”.

S U M Á R IO 65
CONCLUSÃO

A ndûmbe (iniciação) de Catarina Juliana estendeu-se da sua


doença-chamamento à sua cura-iniciação. Este modelo iniciático não
foi singular à nossa personagem, mas antes um padrão entre os povos
bantu – se fazendo presente ainda hoje, mesmo que de forma ressigni-
ficada, nas entradas das umbandas e nas iniciações dos candomblés
angolas afro-brasileiros.

Apesar de crioula e, portanto, batizada no catolicismo, Catarina


Juliana iniciou-se nos ritos ambundos após receber um chamamento
divino em forma de doença e procurar uma nganga do sertão angola-
no, chamada Esperança Cazolla, para curá-la. Uma vez iniciada como
xinguila e nganga-nkisi, Catarina Juliana passou a integrar a sua pró-
pria sociedade religiosa, realizando rituais na casa de seu ex-senhor
e amante, o capitão-mor João Pereira da Cunha, como também em
campo aberto, em meio à baobás sagrados. Catarina Juliana atendia
os seus consulentes como xinguila, ou seja, médium que recebe espí-
ritos de antepassados, e como nganga-nkisi cultuava entidades para
aumentar a força vital de sua comunidade religiosa, sendo Gangazum-
ba o nkisi que vinha à sua cabeça.

Constatamos que alguns dos minkisi cultuados pela sociedade


religiosa de Catarina Juliana na Angola de meados do século XVIII
(Gangazumba, Mutacalombo e Quibuco) estão presentes nos atuais
candomblés angolas brasileiros, sem que, com isso, decorra uma
continuidade a-histórica destes rituais. Não pretendemos traçar uma
linha direta entre os rituais descritos neste capítulo e os candomblés
angolas contemporâneos, mas tão-somente apontar a continuidade
do culto a determinadas entidades (ainda que a morfologia ritual tenha
se transformado ao longo do tempo), o que nos permite revisar visões
equivocadas de alguns dos fundadores dos estudos das religiões afro-

S U M Á R IO 66
brasileiras e defensores de purismos, que afirmaram que os nomes
das entidades dos candomblés bantu foram inventados e as suas
formas rituais copiadas dos candomblés jeje-nagôs.

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VERÔNICA, Mãe. Depoimento [dez.2017]. Entrevistador: Daniel Precioso.
São Simão-GO, 2017. 1 vídeo. Entrevista concedida no âmbito da disciplina
História e Cultura Afro-Brasileira da UEG-Quirinópolis.

S U M Á R IO 69
3
Leonara Lacerda Delfino
Maria Cristina de Azevedo
Claudia de Jesus Maia

Uma história
pública de Nhá Chica:
a santa mestiça e as
africanidades subterrâneas
nas representações
do catolicismo afro-atlântico
no Sul de Minas Oitocentista
DOI: 10.31560/pimentacultural/2022.94852.3
Vai Francisca guerreira
Iluminada pela luz do criador
Na África
Ressoa o tambor
A nobreza de uma raça
“Minha Sinhá”

- Samba enredo “Nhá Chica: a beata negra e guerreira do


Brasil!”, 2015.

INTRODUÇÃO: ENTRE MITOS


E MEMÓRIA, UMA SANTA
MESTIÇA EMBRANQUECIDA

Nhá Chica, a santa parda/mestiça89, rezadeira e benzedeira,


que viveu na Vila de Santa Maria Baependi do Sul de Minas escra-
vista, foi homenageada por uma escola de samba do Rio de Janeiro
em uma narrativa a contrapelo da história canônica da Igreja Católi-
ca, que insiste em embranquecê-la e pensá-la como franciscana nos
moldes aristocráticos. Pelo enredo encenado na Avenida Marquês de
Sapucaí em 2015, a escola Tradição narrou a trajetória de Francisca
de Paula de Jesus, uma filha de escrava, nascida em cativeiro, que
se consagrou em vida como santa milagreira e “Sinhá” local, pela

89 Sobre o termo “pardo”, o Vocabulário português e latino de Raphael Bluteau (1728) traz a
seguinte definição: “Pardo. Cor entre branco e preto, própria do pardal, donde parece lhe
veio o nome. Homem pardo. Vid. Mulato”1. Por sua vez, a definição do termo mulato faz
referência a mestiço, que é aquele nascido de diferentes espécies. Essas classificações
estão presentes na documentação consultada, entre o final do século XVIII e ao longo
do século XIX. No entanto, devemos sublinhar que estamos tratando de uma sociedade
altamente hierarquizada, atravessada pelas relações escravistas e por divisões de cor,
raça e gênero. Deste modo, a referência documental dessas classificações reporta-se à
ideia de pureza e impureza de sangue, apesar da revogação pela Constituição de 1824 do
dispositivo colonial de mancha de sangue, já efetivada por Pombal. Segundo Hebe Mattos
(1998, p, 34), o termo “pardo” também “se referia a filhos de forros e, portanto, a primeira
geração de descendentes de escravos nascida livre”. Neste sentido, a expressão remete
ao afastamento do cativeiro e aproximação do mundo da liberdade.

S U M Á R IO 71
força dos tambores e poder da caridade, como “mãe dos pobres”.90
Entre os mitos e os estudos históricos (AZEVEDO, 2012; ARANTES,
2021), as memórias de Nhá Chica permanecem muito vivas nos tem-
pos de hoje e são ressignificadas permanentemente numa intensa
luta de representações (CHARTIER, 2002) entre o discurso canônico
e as leituras populares subterrâneas à retórica oficial, fazendo deste
movimento plural de reivindicação pela hegemonia no debate público
acerca da memória da beata uma experiência significativa de his-
tória pública, em que há saberes circulantes em disputa e passa-
dos-vivos são ressignificados à luz das intencionalidades políticas do
tempo presente. Neste capítulo, vamos trabalhar a história pública91
da religiosidade afro-atlântica personificada nos saberes e fazeres
sagrados da beata, bem como o processo de embranquecimento
presente nas práticas discursivas hagiográficas, considerando a in-
surgência de narrativas insubmissas imersas em vivências marginais
da religiosidade dos terreiros e do catolicismo não ortodoxo, manti-
das vivas pelas rezadeiras, benzedeiras e dançadores do Congo que
buscam na devoção à santa afro-brasileira o enlace para reafirmação
de suas africanidades atlânticas recriadas no universo da experiên-
cia do mundo pós-abolição. Em um exercício de diacronia histórica,
procuramos tratar das heranças subterrâneas de uma religiosidade
afro-atlântica e das disputas de memórias e representações presen-
tes no debate público acerca da monumentalização da imagem de
Nhá Chica – figura religiosa remanescente do período escravista que

90 PIRES, Wanessa. História de Nhá Chica vira samba-enredo de escola de samba do Rio.
Disponível em: https://g1.globo.com/mg/zona-da-mata/noticia/2014/11/historia-de-nha-
-chica-vira-samba-enredo-de-escola-de-samba-do-rio.html. Acesso em 23 mai. 2022.
91 Entendemos por história pública a reflexão dos usos do passado e sua inserção no debate
público. Do mesmo modo, trabalhamos com a possibilidade da escrita colaborativa (FRIS-
CH, 2016) e plural em diálogo com a multiplicidade de saberes que ultrapassa as fronteiras
acadêmicas, sem escamotear o papel da mediação analítica do(a) historiador(a), muito
menos o comprometimento ético deste(a) profissional na publicização sem simplificação.
Neste sentido, a história pública visa debater os usos da memória, a percepção pública
da história, a divulgação científica em diferentes veículos, as apropriações midiáticas, lite-
rárias e artísticas da história e outras narrativas de diferentes linguagens sobre o passado
(MAUAD; ALMEIDA; SANTHIAGO, 2016; ROVAI, 2018).

S U M Á R IO 72
se tornou referência crucial na demarcação do discurso de memória e
de patrimônio imaterial da religiosidade católica sul-mineira contem-
porânea, mas que apresenta ambivalências e leituras a contrapelo
nas práticas populares.

Por seu turno, a construção imagética da santa – embranque-


cida e representada pelo imaginário social como mendicante, casta e
caridosa – encontrou seu principal terreno de produção nas narrativas
hagiográficas desenvolvidas por memorialistas locais (PENA, 1951,
LEFORT, 1992; CARDONI, PINHO, NICOLIELLO, 2004; PASSARELLI,
2013; SEDA, 2013). Com efeito, tais narrativas seguem uma linguagem
mítica, em que o sagrado e a providência divina constituem orientado-
res das ações descritas pelos enunciadores do discurso hagiográfico.
Deste modo, compartilhamos com Hobsbawm & Ranger (1984), o pos-
tulado da “invenção das tradições” para entendermos a processuali-
dade inerente à dinâmica interna do constructo da memória em torno
da imagem da Nhá Chica e suas seletividades intencionais, repletas de
omissões e evocações, enquanto elementos próprios da dinâmica de
lembrar e esquecer, caros à produção de memória. Concordamos tam-
bém com Pierre Bourdieu (1996, p. 81) quanto à incoerência e a falta de
linearidade das experiências históricas e a ilusão presente na narrativa
dos hagiógrafos. A coesão dos fatos e a atribuição dos sentidos são,
sobretudo, fenômenos posteriores à vivência histórica, construídas
por biógrafos que procuraram elaborar uma trajetória do biografado a
partir de uma explicação coerente, linear e teleológica. Sendo assim,
entendemos o sujeito como parte da experiência histórica fracionada e
múltipla, não havendo continuidade, previsibilidade e coerência unitá-
ria em suas ações sociais.

Em outras palavras, na construção do texto hagiográfico, a


vida do santo ganha sentido se for entendida como ação ou ins-
trumentalização divina, e sua trajetória é marcada pela narrativa da
predestinação, do dom, do mistério numinoso (ELIADE, 1992, p, 84)

S U M Á R IO 73
e pela ação post-mortem composta pela efetivação dos milagres,
ou seja, suas ações continuam repercutindo na vida dos seus devo-
tos, mesmo depois da sua morte, por meio das graças alcançadas.
A ruptura com o mundo terreno não é percebida ou lida como um
fenômeno natural, mas, como um feito extraordinário, atravessado
por indícios de santidade e do efeito miraculoso, como o perfume
de rosas exalado do túmulo, narrado pelos hagiógrafos durante o
trabalho de exumação do corpo. Nessa perspectiva, as reconstitui-
ções hagiográficas obedecem a uma concepção finalista e única do
indivíduo milagreiro, isto é, pensa-se em um ser desvinculado das
contingências e imprevisibilidades históricas, fazendo deste um ente
destinado a uma missão terrena de causas sobrenaturais, conforme
pontua a narrativa hagiográfica.

Deste modo, constitui nosso interesse investigar as omissões


e silenciamentos neste discurso de produção da memória santa, no
que se refere às suas origens do cativeiro e às práticas híbridas, re-
lacionadas à adivinhação, aos elementos mágicos, como: rezas de
benzeção, falas místicas diretas com a entidade do sagrado, o transe
espiritual e as habilidades de cura, entre outros elementos hetero-
doxos vinculados à leitura do imaginário social recriado e ressignifi-
cado constantemente em torno dessas figuras. Por outro lado, não
podemos desconsiderar as disputas de memórias92 e a busca pela
hegemonia na construção da representação patrimonial engendra-
das pelo discurso oficial da Igreja. Isso acontece tanto em função
da enunciação do discurso ortodoxo em poder definir quais os ele-
mentos necessários para a canonização de uma figura santa, bem
como sua plasticidade em descartar outros considerados dispensá-
veis por seu não enquadramento às expectativas da normatização
moral presente na ortodoxia catequética. Ademais, deve-se levar em

92 Entendemos memória no plural, como um campo de tensões permeado por intencionalidades


dos sujeitos que evocam e constroem suas representações sobre o passado de acordo com
suas subjetividades, interesses e visões de mundo do presente. (POLLAK, 1989, p. 3-15).

S U M Á R IO 74
conta os arranjos entre os poderes locais, em adequação ao modelo
hagiográfico esperado, para incentivar políticas públicas de incentivo
ao turismo e divulgação das santidades locais, de acordo com os
parâmetros morais e normativos propostos pela catequese oficial.

Dito isso, afirmamos que não constitui nosso propósito desenvol-


ver uma biografia da santa, mas compreender a partir dos fragmentos
deixados por seus hagiógrafos e outros vestígios diretos e indiretos, o
campo de intencionalidades para demarcar a trajetória da filha da liberta
como beata, caridosa, santificada e “mãe dos pobres”. Nessa perspec-
tiva, devemos estar atentos à produção social dos corpos femininos não
brancos numa sociedade escravista do século XIX. Historicamente de-
sumanizadas e hiperssexualizadas, não haveria coerência racional, se-
gundos os valores androcêntricos cristãos, para que uma mulher negra
se santificasse, ainda mais, se suas práticas se aproximassem de uma
afro-religiosidade atlântica pouco aceitável aos olhos da ortodoxia cristã.
Por este motivo, ciente das limitações racializantes e patriarcais de sua
época, Francisca de Paula incorporou os valores ascéticos destinados
às mulheres de recolhimento, sem deixar de lado seus saberes e fazeres
ensinados por sua mãe e sua avó, e a beata negra faz questão de deixar
essa ascendência matrilinear em seu testamento.

Entendemos, assim, o processo de embranquecimento para


além das representações fenotípicas construídas na posteridade, atra-
vés das hagiografias, mas, pensamos, sobretudo, na produção so-
cial do corpo santificado, alinhado à ascese das mulheres brancas
religiosas, disciplinadas na prática do recolhimento, na não exposição
pública dos corpos adornados (renúncia da vaidade feminina), e, prin-
cipalmente, na abstinência sexual (castidade) e recato moral, calcado
na subserviência ao mundo androcêntrico e patriarcal, mundo este
atravessado por divisões de raça, cor, gênero e condição social. A
apropriação desses valores de ascese feminina católica e sua ressigni-
ficação por meio do seu protagonismo de liderança religiosa na cidade

S U M Á R IO 75
de Baependi, por meio das adivinhações, milagres de cura e transes
espirituais, conversações com o mundo dos mortos e relação mística
direta com Nossa Senhora da Conceição, nos leva a perceber um li-
miar muito tênue entre a expectativa normatizante da doutrina católica
e o universo vasto e complexo das práticas híbridas afro-atlânticas.

Outrossim, a religiosidade popular sempre foi insubmissa aos


parâmetros normativos colocados pelo discurso oficial. Ao visitar a
igreja de Nossa Senhora da Conceição é comum verificar a presença
de ex-votos e materiais representativos da crença de cura e milagres,
muito próximos das práticas mágicas heterodoxas, vinculadas à rela-
ção de proximidade e de intimismo com o santo, baseado na relação
de troca, ou seja, o toma-lá-da-cá criado no universo da colônia, algo
que o processo de romanização do Ultramontanismo93 não conseguiu
extirpar entre o seu núcleo heterogêneo de fiéis.

Por esse motivo, torna-se fundamental discutirmos os signifi-


cados da religiosidade afro-atlântica presentes nas práticas de rezas,
adivinhações, benzeções e outros saberes populares presentes nos
fazeres sagrados da beata. Ela se tornou uma liderança espiritual e
política na cidade de Baependi, no Sul de Minas Oitocentista. Pessoas
vindas de longe a consultavam para receber conselhos de ordem práti-
ca e previsões do futuro. Eram vários os motivos para se procurar seus
aconselhamentos e orações: desde a busca por animais perdidos,
crianças desaparecidas, até a cura das pessoas enfermas, ou tomada
de decisões políticas por parte dos mandatários locais. O imaginário
daquela época era regido pela ordem mística do sagrado. Não havia
separação muito clara entre a experiência de desencantamento/racio-
nalizada e a explicação mística das coisas do mundo.

93 O processo de Romanização ou Ultramontanismo foi um movimento eclesiástico, iniciado


no Brasil da década de 1840, com o objetivo de extirpar as práticas de cunho popular – até
então toleradas pela ortodoxia como veículo de conversão – em prol de um catolicismo
mais ilustrado e racional, no esforço de “fazer valer na Igreja do Brasil os princípios do
Concílio do Trento.” (FRAGOSO, 1992, p. 184).

S U M Á R IO 76
A religiosidade de âmbito privado, profundamente híbrida, era
predominante, ainda que houvesse a presença da Igreja e da cateque-
se tridentina pela ação dos padres e edificação das irmandades leigas,
desde o período colonial. Além da religiosidade leiga, atravessada pela
atuação ativa de devotos e devotas de irmandades e ordens terceiras
– associações que ditavam rumos das práticas e crenças da espiritua-
lidade barroca das Minas – não podemos nos esquecer da força dos
calundus, dos batuques negros, dos reinados e reisados cuja presença
subversiva transformou definitivamente a espiritualidade afro-atlântica,
enegrecendo o catolicismo no Ultramar. A devoção aos santos pretos,
estudada por Anderson Oliveira (2008), nos apresenta indícios significa-
tivos para compreender o processo de hibridização94, trocas culturais e
lutas de representação no processo de catequização no outro lado da
Kalunga (Atlântico). Estudar o fenômeno das beatas negras e mestiças,
como a Nhá Chica, consiste em dar um passo além na compreensão
das apropriações e ressignificações dos símbolos católicos e releituras
africanizadas protagonizadas por mulheres não brancas remanescentes
do cativeiro ou portadoras do estigma da escravidão. Por outro lado, o
desafio de se fazer uma análise interseccional se coloca como exigência
para os futuros estudos engajados em compreender os processos da
escravidão à luz dos demarcadores de gênero e raça, enquanto elemen-
tos estruturais da sociedade escravista, juntamente com as segmen-
tações de cor, condição social e outras hierarquizações geradas pelo
domínio senhorial (REIS & FARIA, 2021, p. 28).

O que significava para aquela sociedade escravista, uma mu-


lher não branca se apropriar dos significados de honra, beatitude e
distinção das senhoras brancas para se tornar uma liderança espiri-
tual em uma cidade com forte presença escravista e inserida numa
região que protagonizou uma das maiores revoltas de escravizados do
94 Segundo Canclini (1998, p. 18), hibridização são “processos socioculturais nos quais estru-
turas ou práticas discretas, que existam de forma separada, se combinam para gerar novas
estruturas, objetos e práticas.” Cabe esclarecer que as estruturas chamadas discretas foram
resultado das hibridizações, razão pela qual não podem ser consideradas fontes puras.

S U M Á R IO 77
Império brasileiro?95 Nossa hipótese é que Francisca de Paula de Je-
sus, conhecida e referenciada em documentos como “Dona”, Senho-
ra, e popularmente Nhá, corruptela de Sinhá, utilizou-se da estratégia
de embranquecimento em vida, ao tecer alianças com mandatários
locais, sem perder de vista, seus saberes e fazeres matrilineares com
marcas afro-atlânticas e suas redes sociais/políticas traçadas ao lon-
go de sua vida com seus iguais ou aqueles mantidos em cativeiro.
Nhá Chica soube transitar muito bem entre o mundo dos brancos e o
mundo dos escravizados e dos libertos. O fato é que o processo de
embranquecimento estendeu-se, com outras intenções e finalidades
políticas, para o período posterior à sua morte e se tornou marca hege-
mônica nas construções iconográficas e hagiográficas da santa beata.
E hoje podemos entender que as representações embranquecidas de
Nhá Chica se inserem num processo histórico mais amplo relacionado
à herança deixada pelas teorias raciais (SCHWARCZ, 2013) do final do
século XIX, conjugada ao ultramontanismo e campanha higienista,96
três pilares do movimento de segregação racial daquela sociedade,

95 Referimo-nos à Revolta de Carrancas, estudada por Marcos Ferreira de Andrade (2017).


Segundo o autor, a rebelião de escravizados eclodiu em 13 de maio de 1833, entre os
limites da freguesia de Carrancas e do termo de Baependi, nas propriedades da família
Junqueira, ao sul da província de Minas Gerais. A revolta, liderada por Ventura Mina eclodiu
em razão dos excessos de castigos praticados nas fazendas e porque os envolvidos viram,
na fragilidade do segmento político liberal do período regencial, o momento oportuno para
tecer alianças políticas com o segmento conservador. A rebelião iniciou pela fazenda de
Campo Alegre, propriedade de Gabriel Junqueira, deputado liberal, e seguiu para a Fazen-
da Bela Cruz, onde o grupo insurgente assassinou a família de José Francisco Junqueira,
irmão de Gabriel. De lá o grupo rebelado partiu para a Fazenda Bom Jardim, propriedade
de João Cândido Junqueira, que já avisado do ocorrido nas fazendas de Campo Alegre
e Bela Cruz, organizou um movimento de reação com tropas armadas. O conflito levou a
pena de morte de Ventura Mina e outros envolvidos, bem como acelerou a assinatura da
Lei Nefanda (10/06/1835), que previa a pena de morte para escravos revoltosos.
96 A campanha sanitarista surgiu quando a Sociedade de Medicina (século XIX) criou a Co-
missão de Salubridade Geral, visando interferir diretamente nas medidas de saúde por
meio de reformulações das posturas municipais do Rio de Janeiro, com intuito de combater
as epidemias urbanas. As autoridades médicas e estatais passaram a redefinir o espaço
urbano a partir de um discurso médico higienista, utilizando-se de uma política ostensiva de
perseguição às práticas de curandeirismo e outros ritos mágicos tidos como supersticio-
sos, além de fiscalizar espaços urbanos, como matadouros, curtumes, prisões, hospitais,
moradias coletivas (cortiços), desenvolvendo uma política repressiva aos segmentos que
não se enquadravam as medidas “civilizatórias” (CHALHOUB, 1996).

S U M Á R IO 78
quando já se discutia o fim da escravidão e criavam-se novas formas
de marginalização de segmentos escravizados e livres de cor.

Quem hoje visita Baependi e o santuário de Nossa Senhora da


Conceição pode acompanhar a presença intensa de um turismo reli-
gioso capaz de atrair caravanas de fiéis vindas do Brasil inteiro. No en-
tanto, no primeiro momento, o olhar distraído do visitante jamais sabe-
rá das raízes afro-atlânticas e diaspóricas da beata de origens negras.
Amplamente divulgada em documentários97 da Canção Nova, e pelo
movimento neopentecostal da Igreja Católica, principalmente após a
beatificação de 2013, o culto à Nhá Chica vem crescendo vertiginosa-
mente e adquirindo contornos iconográficos e moralizantes muito vol-
tados para os interesses das representações de beatitude franciscana,
espelhando os anseios da Congregação das Irmãs Franciscanas do
Senhor, instalada na cidade desde a década de 1950 para tomar conta
da Capela de Nossa Senhora da Conceição e bens deixados pela bea-
ta. Deste modo, a composição da memória oficial acerca da trajetória
da santa negra, submetida a uma avaliação rigorosa da Santa Sé, se
distancia cada vez mais de uma representação apegada às práticas
populares das adivinhações, curandeirismos e ritos mágicos.

O processo de beatificação de Nhá Chica teve início em 1993


e encerrou-se com o Decreto do Papa Bento XVI em maio de 2013.
Em 1991, a “santa de Baependi” recebeu o título de “Serva de Deus”
pela Congregação das Causas dos Santos do Vaticano. Em 2011, o
papa mencionado reconheceu “suas virtudes heroicas” e a agraciou
com o título de “Venerável”. Atualmente, o processo de canonização
ainda não foi concluído. No item a seguir, procuramos problematizar
o silenciamento da negritude e das origens do cativeiro na construção
imagética e hagiográfica da personagem santificada pelo imaginário

97 Há uma série de documentários disponíveis pelo canal do YouTube, cf.: Nhá Chica, a Santa
de Baependi, produzido pela emissora católica Canção Nova (2018); Nhá Chica, um docu-
mentário (2011), produção e direção de Thomaz Gregori; Nhá Chica, uma flor de Baependi,
produzido pela Congregação das Irmãs Franciscanas do Senhor (2004).

S U M Á R IO 79
popular. Para tanto, serão utilizados os livros de memória como discur-
so hagiográfico, os registros paroquiais de São João del-Rei, além de
dispormos do método indiciário98 como recurso de investigação para
alcançarmos os indícios e sinais necessários para recompormos os
vestígios silenciados pelo discurso oficial de reconstrução da memória
da personagem beatificada pelas autoridades romanas.

“QUANDO FALECEU, OS DEVOTOS


CORTAVAM AS FIMBRIAS DE SUAS
VESTES COMO RELÍQUIA”99

Segundo os periódicos locais, como o Jornal O Patriota (1917),


a morte da beata Nhá Chica causou grande comoção coletiva na re-
gião do sul de Minas em fins do século XIX. O seu sepultamento teria
sido adiado devido ao “grande número de pessoas que vinham de
toda parte para visitar o corpo daquela que, em vida, distribuía graças
e benefícios” (SERVA, 1956, Apud, CARDONI, PINHO, NICOLIELLO,
2004, p. 80). O jornal Gazeta de Varginha (1895) noticiou a morte da
“virtuosa velhinha”, tendo o seu enterro “numeroso acompanhamento”
após o seu corpo “em perfeito estado de conservação” ter sido velado
por “quatro dias a pedido do povo”.100 Seus hagiógrafos (PASSARELLI,
2013; CARDONI, PINHO, NICOLIELLO, 2004) assinalam que o perfume
de rosas exalado durante a inumação na igreja e o semblante intacto

98 Para C. Ginzburg (1989, p. 145), o conhecimento histórico é “indireto, indiciador e conjectu-


ral”. O método indiciário consiste na apreensão dos “gestos inconscientes” tidos como mar-
ginais pelos indivíduos que os produziram. O autor propõe, assim, um método “interpretativo
centrado sobre os resíduos, sobre os dados marginais considerados reveladores.”
99 Trecho extraído do jornal O Tempo (1917) (Apud. CARDONI, PINHO, NICOLIELLO, 2004, p. 80).
100 Os Jornais que noticiaram a morte de Nhá Chica, como O Patriota (1917), Correio de Caxambu
(1895) e Gazeta de Varginha (1895), estão alocados no Instituto Nhá Chica (INC) na cidade de
Baependi (MG), coordenado pela Congregação das Irmãs Franciscanas do Senhor.

S U M Á R IO 80
do rosto da beata após a exposição do corpo velado por longo tempo
são indícios de sua santidade.

Francisca de Paula de Jesus já era reconhecida como santa


milagreira em vida e, ao longo de sua trajetória, tornou-se “dona”101,
“senhora”, “sinhá”, ou simplesmente, “Nhá Chica”. Quando faleceu,
às cinco horas da tarde, em 14 de junho de 1895, por “anemia geral e
afecções gástricas”, os periódicos locais falavam do “falecimento da
popularíssima e querida senhora”, designada como “santa mulher”,
cujo corpo esteve exposto à veneração dos fiéis por três ou quatro
dias (CARDONI, PINHO, NICOLIELLO, 2004, p. 80). Foi encomendada
e sepultada com toda pompa e circunstância na nave de sua igreja de-
dicada à Nossa Senhora da Conceição, templo que mandou construir
em seu próprio terreno a partir das doações e esmolas em retribuição
às graças alcançadas pelos seus seguidores e consulentes. Em uma
época em que os mortos eram sepultados em túmulos fechados em
cemitérios públicos, segundo as normas higienistas já vigentes no Im-
pério, a santa beata teve as suas últimas vontades cumpridas, sendo
enterrada dentro da Igreja de Nossa Senhora da Conceição, “templo
de sua santa Sinhá”, como a chamava.

Durante o cortejo de sepultamento, todas as irmandades acom-


panharam, solenemente, o seu corpo. Desde a Irmandade do Santís-
simo Sacramento, passando pela associação dos devotos pardos da
Boa Morte e crioulos das Mercês até a confraria dos pretos do Rosário.
Certamente, foi um acontecimento que estremeceu a ordem cotidiana
da pequena cidade sul-mineira. Ainda sobre as suas últimas vontades,
a santa negra pediu para que fossem ditas vinte três missas, “uma de
corpo presente, outra de sétimo dia e outra no trigésimo”. Deixou mais
vinte missas à sua mãe Isabel e outras trinta ao seu irmão, Teotônio.

101 De acordo com CARDONI, PINHO, NICOLIELLO (2004, p, 41), os documentos assinados
pelo vigário Monsenhor Marcos Nogueira, sempre referenciaram Francisca de Paula de
Jesus como “dona” e “senhora”, títulos de tratamento dirigidos às mulheres brancas de
mando naquela sociedade escravista.

S U M Á R IO 81
Ao escravo Félix, deixou um terreno alocado “abaixo do portão” que
entrava para a capela, além de louças e trastes da casa, exceto as
cadeiras e tachos de cobre que seriam distribuídos como esmolas aos
pobres. À Nossa Senhora da Conceição, para o seu patrimônio, legou
“casas, terrenos, água” e todo remanescente dos seus bens. Pediu
para que um vestido de nobreza fosse entregue a uma órfã virgem.
Do remanescente dos seus bens, que seria entregue ao patrimônio
de sua Sinhá Conceição, estavam: um rosário de contas de ouro, um
cordão de ouro, quinhentos gramas de prata, além de caixas, bacias,
panelas de pedra, pratos de louça, facas e garfos, tamboretes, ban-
cos, catres, cadeiras, mesa de piano, foice e tachos de cobre. Como
signo da distinção social alcançada, seu inventário deixou registrada
a composição de sua mortalha, produzida por tecidos nobres, como
“grinalda francesa, rendas de prata, fitas largas lavradas, cetim Macau,
luvas brancas e galão branco.”102

Não obstante viver sob o voto de pobreza, Nhá Chica anga-


riou recursos materiais e propriedade escrava (ainda que apenas um
escravo – Félix – tenha sido mencionado em seu testamento), o que
significa que a beata atingiu um processo tácito de mobilidade e distin-
ção em uma sociedade remanescente do antigo regime nos trópicos,
mas caracterizada pelo esfacelamento dos atributos de limpeza de
sangue herdados da colônia. Escolher viver uma “pobreza voluntária”
é bem diferente do que inserir-se, de fato, na condição material e sim-
bólica de subalternidade em uma sociedade altamente estratificada,
como aquela do século XIX. Francisca de Paula foi nomeada como
“Dona” quando pediu licença à Câmara de vereadores para construir
sua capela como extensão da sua casa.103 Naquele momento, já era
procurada pelas comunidades pobres do Cavaco, “pequena África de

102 Arquivo do Judiciário da Comarca de Baependi. Inventário Post-mortem de Francisca de


Paula de Jesus (22/11/1895).
103 De acordo com Seda (2013, p. 128), em 1865 “Francisca de Paula de Jesus pagou a li-
cença de 2$000 à Câmara de Baependy, em função de construir uma capela em devoção
à Nossa Senhora Imaculada Conceição”.

S U M Á R IO 82
Baependi”, onde morava, para distribuir pães, alimentos, roupas, re-
médios caseiros e outros donativos necessários à sobrevivência da
população negra e mestiça. Também era visitada por setores da elite,
como o conselheiro do imperador, João Pedreira do Couto Ferraz e
Jerônimo José Teixeira Júnior, Visconde do Cruzeiro, a quem sempre
lembrava, em agradecimento, pela doação de recursos para a orna-
mentação do templo com “imagens, vasos, alfaias, órgão, lâmpadas”,
tudo como gesto de agradecimento pelas dádivas alcançadas (MO-
NAT, 1894, p. 93). Prova cabal que Francisca de Paula soube tecer
alianças com a elite local é a escolha de seus testamenteiros, sendo o
primeiro nomeado, o próprio Vigário Geral, Marcos Pereira Gomes No-
gueira, e o segundo, o capitão Francisco Antônio Pereira, e em terceiro,
o advogado Antônio Dias dos Santos.104

Nossa hipótese é a de que este processo de mobilidade social


não pode ser entendido como ato isolado de Francisca, mas como
um movimento de arranjos familiares, principalmente pelo destaque
alcançado por seu irmão, Teotônio, enquanto comerciante, juiz de vin-
tena, vereador e tenente da Guarda Nacional. De acordo com os estu-
dos de Sirleia Arantes (2021) e Maria Cristina Azevedo (2012), Teotônio
Pereira do Amaral tornou-se um comerciante poderoso na localidade
e, ao falecer, deixou uma herança de 23:753$000. Como herdeira uni-
versal desta fortuna, a beata foi nomeada pelo seu irmão, o que nos
chama atenção pela secundarização da própria esposa no processo,
Heliodora Maria de Jesus, qualificada como herdeira de menor impor-
tância, mesmo tendo ela cuidado de suas enfermidades no momento
final de sua vida. À Heliodora, deixou uma casa de morada na Rua
do Comércio e toda mobília, em razão dos bons serviços e caridade
prestados.105 Teotônio pardo, também embranquecido pelo processo

104 Arquivo do Judiciário da Comarca de Baependi. Testamento de Francisca de Paula de Jesus


(18/07/1888), anexo ao Inventário Post-mortem (22/11/1895). Hoje sob a custódia do INC.
105 Arquivo Judiciário da Comarca de Baependi (MG), Testamento de Teotônio Pereira do
Amaral. Data: 11/05/1861. (PASSARELLI, 2013. p. 81-82).

S U M Á R IO 83
de mobilidade social alcançada com sua projeção de comerciante,
filiou-se à irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte, onde se tornou
mesário atuante, e nos instantes finais de sua vida, invocou a presença
das irmandades de São Miguel e Almas, das Mercês, da Boa Morte e
do Rosário para acompanhá-lo no sepultamento, tendo o seu corpo
enterrado no Cemitério Geral da cidade de Baependi. O pecúlio dei-
xado pelo irmão à Francisca de Paula de Jesus pode ser interpretado
como ponto de inflexão para a movimentação político-religiosa de Nhá
Chica, ao dourar o altar da Matriz de Nossa Senhora de Monserrat e
iniciar sua empreitada divina de construir uma capela no quintal de sua
casa a pedido de sua “santa Sinhá”, Nossa Senhora da Conceição, a
quem tinha profunda e íntima devoção.106 Conta o imaginário popular
que a beata tinha visões místicas, conversava pessoalmente com a
Virgem e tinha o dom de ter sonhos premonitórios. Em uma dessas
conversações foi incumbida da missão de construir um templo para
atender à vontade de Nossa Senhora da Conceição.

FRANCISCA DE PAULA DE JESUS,


FILHA NATURAL DE ISABEL MARIA
EGIPCÍACA: “DESVENDAVA O FUTURO
E SARAVA MORIBUNDO107

Em nome de Deus, Amém. Eu, Francisca de Paula de Jesus,


natural da cidade de São João del-Rei, filha natural da finada Isabel
Maria Esicíaca, ou Egipcíaca, em casa de minha residência, na rua das

106 Ao consultar os livros de tombo da Matriz de Nossa Senhora de Monserrat em Baependi,
José Alberto Pelúcio (1942, p. 13) menciona que: “Só em 1862, sendo vigário o cônego
Joaquim Gomes Carmo, foi dourado o altar-mor, com apreciável dádiva de Francisca de
Paula de Jesus, conhecida como Nhá Chica.” No Instituto Nhá Chica (INC), sob custódia
das irmãs franciscanas, encontra-se alocado o Livro de Tombo, nº1 (fl. 16v), onde se
registra a passagem pelo Monsenhor Marcos Pereira Gomes Nogueira.
107 Expressão extraída de PENA, 1951, p. 14.

S U M Á R IO 84
Cavalhadas, nesta cidade, enferma e de cama, mas em meu perfeito
juízo, no estado de solteira, não tendo filho algum nem herdeiros for-
çados, faço este meu testamento para ser cumprido depois de minha
morte (...). Baependi, 18 de julho de 1888.108
Filha da liberta Isabel Maria e neta de Rosa Benguela109 ou de
Maria Joaquina Felizarda,110 a beata invocou, em seu testamen-
to, o pertencimento à linhagem materna vinculada à Egipcíaca,
ao nomear sua mãe, como Isabel Maria Egipcíaca. Seria a in-
tenção da santa – já “uma celebridade em todo sul de Minas”,
como bem mencionou o médico hidrologista Henrique Monat
(1894), o primeiro a entrevistá-la – enquadrar-se à linhagem mí-
tica da santa africana, Rosa Egipcíaca, pega pelas malhas da
Inquisição no período colonial?

É sabido pelos estudos de Luís Mott (1993) que Rosa Courana,


conhecida posteriormente como Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz,
viveu um bom tempo em São João Del-Rei, vila em que Francisca de

108 Arquivo do Judiciário da Comarca de Baependi. Testamento de Francisca de Paula de


Jesus (18/07/1888), anexo ao Inventário Post-mortem (22/11/1895). Hoje o documento se
encontra sob custódia do INC. Monsenhor José Lefort (1992, p. 60) menciona o nome
da mãe “Izabel Maria Izicíaca ou Ezicíaca, em seguida acrescenta uma observação “tudo
nos leva a crer que seriam corruptelas do nome Egipcíaca”. Para o autor seria uma refe-
rência à Santa Maria Egipíaca, uma “santa penitente do século V da era cristã”. No livro
Nhá Chica, a Pérola de Baependi há uma omissão referente ao nome completo da mãe
apresentado pelo registro (NICOLIELLO, et al, 2004, p.75)
109 A narrativa hagiográfica hegemônica afirma que Rosa Benguela teria sido avó materna de
Francisca de Paula de Jesus. Segundo o assento de batismo citado de forma recorrente pe-
los memorialistas (NICOLIELLO, Et. all, 2004, p. 28; SEDA, 2013, p. 40; PASSARELLI, 2013,
p. 45), Rosa Benguela, solteira, escrava de Custódio Ferreira Braga, deu à luz a Isabel Maria,
batizada no Cajuru, capela filial da Matriz do Pilar de São João del-Rei em 13 de outubro
de 1782. Foram padrinhos: Vitorino e Faustina, pardos, escravos de Dona Quitéria Correa
de Almeida. Assinou o assento, o padre Joaquim Pinto da Silveira. Cf. Arquivo da Matriz de
Nossa Senhora do Pilar de São João Del-Rei, AMNSP-SJDR, Livro 17, Fl. 190.
110 A partir do testamento da mãe de Nhá Chica (04/11/1843), transcrito por Maria Cristina
Azevedo, constata-se que a avó de Francisca de Paula era Maria Joaquina Felizarda e
não Rosa de Benguela, como afirmou Gaio Sobrinho (2004) e outros memorialistas e
hagiógrafos. Esta afirmação choca-se com as narrativas de beatificação por contrapor-se
ao local de nascimento, tradicionalmente apresentado como o Distrito de Santo Antônio
do Rio das Mortes Pequeno, e não São João Del-Rei. O documento apresenta também
a existência de mais uma filha, “Maria, casada com Joaquim Garcia”, narrada como irmã
por parte do pai, mas que era filha de Isabel Maria, como consta em seu testamento. Cf.
Matriz Senhora de Monserrat de Baependi, (hoje sob a custódia do INC), Livro de Óbitos,
1841, Out-1869, Maio, Testamento de Isabel Maria da Silva (04/11/1843).

S U M Á R IO 85
Paula nasceu. Egipcíaca foi a primeira escravizada africana a deixar
um manuscrito111 de próprio punho no Brasil. A courana fundou o Re-
colhimento de Nossa Senhora do Parto, recinto religioso que abriga-
va negras e pardas donzelas no Largo da Carioca do Rio de Janeiro.
Quando criança sofreu abuso sexual do seu primeiro senhor, José de
Souza Azevedo, e durante a juventude foi transferida para a Fregue-
sia do Inficcionado (próximo à Mariana), na propriedade de Dona Ana
Garcês de Morais, onde viveu da prostituição durante quinze anos até
ser atacada por uma estranha enfermidade. Esta doença, de cunho
espiritual, provocava na escrava, desmaios, fortes inchaços no ros-
to e intensas dores no estômago. A mesma enfermidade, vista como
provação enviada por Deus, lhe serviu de argumento para o início de
uma vida de penitência e dedicação à espiritualidade. A partir deste
momento, Rosa deixou o meretrício e passou a viver como beata, se-
guindo os ofícios divinos e liturgias católicas. Em São João Del-Rei, na
igreja de Nossa Senhora do Pilar, chegou a interromper a pregação de
um capuchinho, “gritando que ele era o próprio satanás ali presente”
(MOTT, 1993, p. 8). Após o episódio de afronta às autoridades religio-
sas do local, Rosa foi encaminhada à sede do bispado de Mariana e
castigada em praça pública sob a acusação de feitiçaria. Escapando
com vida dos rigorosos suplícios – que deixaram o lado direito do seu
corpo semiparalisado – a religiosa seguiu para o Rio de Janeiro, com
seu novo proprietário, o Padre “Xota-Diabos”. Naquela cidade teceu
alianças com setores importantes do meio eclesiástico, adquiriu apoio
dos frades franciscanos e o beneplácito do próprio bispo para fundar
o seu Recolhimento de religiosas leigas sem votos perpétuos. Este se
instituiu como o ponto alto da trajetória de Rosa Courana, por se tornar
a africana afamada na cidade por suas visões santas, aconselhamen-
tos espirituais e pela vida mendicante, regrada por exercícios espiri-
tuais rigorosos como autoflagelação, jejuns prolongados, meditações,
silício e comunhão frequente.
111 O manuscrito de 250 folhas intitula-se “Sagrada Teologia do Amor de Deus Luz Brilhante
das Almas Peregrinas” (MOTT, 1993, p. 10).

S U M Á R IO 86
Em seu recolhimento pregava ideias heterodoxas e dizia ter vi-
sões e conversas com Deus. Em um desses êxtases espirituais, re-
velou que o “Menino Jesus vinha todo dia mamar em seu peito” e
que “Nosso Senhor trocara o seu coração com o dela”. Dizia também
ser “esposa da Santíssima Trindade e a nova redentora do mundo”,
enquanto Maria cumpriria o papel de “Mãe da Misericórdia”. Para a
africana, venerada como santa, sua missão consistia em decidir sobre
o destino de todas as almas do Purgatório, “se iam para o céu ou
para o inferno” (MOTT, 1993, p. 10). Em seus êxtases espirituais, Rosa
Egipcíaca conciliou práticas católicas de ascese espiritual com o uso
de danças em frente ao altar,112 além de trazer um histórico de rituais
de possessão, interpretadas como exorcismo pelo padre português
Francisco Gonçalves Lopes. Ao longo de sua liderança espiritual, Egip-
cíaca receitou aconselhamentos de cura, sofreu visões intermitentes
e permitiu que suas auxiliares pitassem cachimbo, numa clara alusão
aos costumes de origem africana. Ao ser sentenciada como herege e
feiticeira, disse ter acreditado “em tudo que viu e ouviu”, pois entendia
que todas as suas ações foram feitas em nome de Deus porque se
via escolhida pela misericórdia divina a fim de “revelar ao mundo seus
fantásticos desígnios” (MOTT, 1993, p. 17).

O que há em comum, na religiosidade afro-atlântica, entre uma


santa negra condenada pela Inquisição e uma santa negra113 beatifica-
da (a posteriori) e reverenciada em vida naquela sociedade escravista?
Ambas eram devotas de Nossa Senhora da Conceição, porém, Nhá

112 Segundo Mott (1993, p. 11), a descrição de uma cerimônia conduzida por Rosa Egipcíaca
lembra as seções de gira nos terreiros de umbanda e de candomblé. Consoante o processo
consultado pelo autor: “Na capela do Parto, Rosa tirava às vezes algumas imagens do altar,
dizendo que [ela] era Deus, e metia as imagens na mão de algumas irmãs e ia dançando
até ao pé delas, e lá as deixava e ia buscar outra, e entrava a apertar a dança, arrondean-
do-as, e caía no colo de alguma irmã e ficava como [estivesse] fora de si, e depois de muito
tempo, se tornava a si e começava a perguntar aquilo o que era, quem a tinha trazido por ali,
e isto era quase sempre, e se não críamos, levantando-se da sua passividade, roncando,
se agarrava pela goela e entrava a bater pelo chão, dando murros (...).”
113 Nomeamos como santa negra, a partir da tipologia “negro/a de pele clara” trabalhada por
Sueli Carneiro (2016).

S U M Á R IO 87
Chica não se indispôs diretamente com as autoridades eclesiásticas,
como Rosa Egipcíaca. Os primeiros hagiógrafos, como o Monsenhor
José do Patrocínio Lefort (1992, p. 66), associam a nomenclatura “Egip-
cíaca” indicada em testamento à asceta que viveu no Egito no século
V. A santa, também de origens africanas, é representada com a icono-
grafia de uma mulher anciã com a pele enegrecida. Reverenciada pela
igreja copta no norte da África, a santa africana ficou conhecida por
expurgar-se da vida pecaminosa da prostituição, conforme sua hagio-
grafia clássica, para ascender-se como beata ao se dedicar à direção
de um recolhimento de mulheres devotas. No entanto, Sirleia Arantes
(2021) chama a atenção para o fato de a Rosa Courana Egipcíaca ter
estado mais próxima ao universo de crenças e experiências de vida da
Nhá Chica e sua mãe, Isabel. Teria sua mãe liberta afinidades devocio-
nais com a santa preta courana tão reverenciada em São João Del-Rei
naquele período? Para esta pergunta não temos indícios diretos que a
respondam, no entanto, conseguimos vislumbrar, pelo método indiciá-
rio, aproximações por sistemas de crenças e práticas religiosas híbri-
das que trouxeram marcas enegrecidas da religiosidade católica afro
diaspórica que se desenvolveu em sociedades interétnicas atlânticas.

O primeiro indício para trabalharmos as africanidades subterrâ-


neas foi subtraído do médico hidrologista Henrique Monat (1894, p. 134).
Sua narrativa é permeada pelo discurso médico do final do século XIX,
e pelo olhar masculino higienista daquela época, que busca legitimar a
notoriedade da santa mestiça ao afastá-la de representações tidas pelo
discurso hegemônico como resquícios da degeneração, do atraso cultu-
ral, personificado nas superstições e curandeirismo em que a Sociedade
de Medicina buscava postular. Consoante, o médico hidrologista:
Nha Chica ou Tia Chica é uma celebridade em todo o sul de
Minas. Não é a feiticeira, que magnetisa os passarinhos e
cura bicheiras; também não é a curandeira, que faz milagres
no tratamento das doenças das ourinas, a minha rival, que

S U M Á R IO 88
não consegui ver. Nha Chica é uma santa, dizem uns; uma mo-
desta buenadicha asseveram outros; ella não conhece nem de
nome Papus, Allan Kardec, nem Mesmer; não cultiva a magia, a
feitiçaria, a chiromancia, o esoterismo, as sciencias occultas, o
magnetismo, nem o hypnotismo. (...) Não corre, pois, riscos de
ser queimada viva, nem de ter de explicar á polícia como se
lê no pó de café a ingenuidade humana (Grifos nossos).

Nota-se pelo excerto acima as intenções do médico em apre-


sentá-la como uma figura religiosa enquadrável aos pressupostos cate-
quéticos da Igreja. O médico refere-se a ela como “não feiticeira”, “não
curandeira”, não praticante da magia, adivinhações ou “ciências ocul-
tas”. Nos textos hagiográficos consultados, nota-se grande preocupa-
ção em não associar os seus feitos miraculosos à sua pessoa, mas à
Nossa Senhora da Conceição. “É Nossa Senhora é quem sabe!” (PENA,
1951). “Eu rezo à Nossa Senhora, que me ouve e me responde” (CA-
DORIM, PINHO e NICOLIELLO,2004, p. 65). A construção da memória
calcada na subserviência e adequação aos parâmetros doutrinários não
poderia atribuir o protagonismo miraculoso a uma mulher negra reveren-
ciada como santa em vida. Para ser reconhecida como santa pela Igre-
ja, segundo os parâmetros eurocentrados/brancos, uma das condições
primordiais consistia em desvinculá-la de outras imagens heterodoxas
estabelecidas pelo imaginário social quanto ao culto de figuras místicas,
errantes destoantes da prática convencional. Mais à frente, identificamos
ambiguidades nas práticas discursivas de Monat (1984, p. 95) ao apre-
sentar elementos vivos de uma religiosidade pouco ortodoxa quando
reproduziu/criou um diálogo com a santa mestiça:
Nha Chica descobre animaes fugidos, prognostica em caso de
molestia, prevê o resultado de demandas. (...) Contou ella ainda
outros milagres. (...)

“Vancê viu no domingo passado como o sol estava amarello?”

“Foi um eclipse, disse eu [Monat].

S U M Á R IO 89
-“Qual! eu tambem vi na bacia; foi uma nuvensinha preta, ruim,
que seprégou no sol; quem foi lá tiral-a? Só Deos, porque elle
não quer o sol encoberto, nem parado.” [Grifos Nossos].

Em uma passagem sutil, mas muito significativa, o médico relata


uma das práticas de adivinhação da religiosa: o uso da bacia d’água
para prever o futuro, ou seja, o eclipse entendido pela beata a partir de
uma narrativa mítica, isto é, a “nuvenzinha preta, ruim, que se pregou
no sol”. Vale ressaltar que a simbologia profética do uso da água não
está só vinculada às práticas mágicas de raízes pagãs europeias, mas
também à ancestralidade africana e códigos bantos da pré-travessia
atlântica. James Sweet (2007, p. 150), ao tratar dos jaji, rituais de adi-
vinhação centro-africanos, pondera a partir da leitura do missionário
Antonio Cavazzi (1687), o instrumento da água para prever e controlar
situações do mundo, através da comunicação entre o mundo dos vivos
e o mundo dos mortos. Nesta mesma confluência, Robert Slenes (1999,
p. 246) acentua a sacralidade da simbologia da água para os povos
bantos, a significação cosmológica da kalunga – representada pelo
espelho d’água – e sua capacidade de desvendar segredo do mun-
do dos mortos. Em trabalho recente demonstramos como o elemento
da água se estabeleceu como instrumento sagrado no imaginário dos
benguelas e seus descentes no interior da Irmandade do Rosário de
São João Del-Rei. Segundo a assistência religiosa dos confrades per-
tencentes ao segmento étnico da Nobre Nação de Benguela e outros
grupos bantos (DELFINO, 2017), a sagração dos irmãos defuntos se
desenvolvia, não por acaso, em frente ao Córrego do Lenheiro, no vul-
go, Prainha, onde os vassalos da Nobre Nação – com seus cânticos e
tambores – invocavam a proteção dos seus parentes mortos, nas pro-
ximidades do “Oratório das Almas.” As águas também se reportavam à
narrativa mítica acerca do resgate da imagem da Virgem do Rosário e
à cosmologia bakongo, em que as crenças nas “superfícies reflexivas”
indicavam, de modo geral, as fronteiras entre “o mundo dos vivos do
mundo dos mortos” (SLENES, 2008, p. 193).

S U M Á R IO 90
No entanto, a água poderia ser um elemento sagrado, um ins-
trumento mágico para a prática dos ritos de profecias e adivinhações
da beata. Em outras narrativas, há indicação de muitos milagres que
remetem à religiosidade afro atlântica, como a indicação de remédios
caseiros (SEDA 2013, p. 87), através da manipulação de ervas que culti-
vava em seu quintal, o transe espiritual, a conversação com os mortos, a
levitação e o poder sobrenatural de encontrar objetos perdidos, crianças
e animais desaparecidos, além das previsões de cura e de morte, e das
visões de Nossa Senhora da Conceição. Sua vida espiritual, cercada de
mistério, reporta-se a uma prática de ascese, mas, nunca de isolamen-
to, pois a beata teve uma vida social intensa na localidade de Baepen-
di, em razão das redes políticas que traçou e da liderança comunitária
exercida no alto do Cavaco, reduto de negros e pobres mestiços de
Baependi. Nos subúrbios daquela localidade, a santa mestiça promovia
a assistência caritativa corporal e espiritual, mantendo uma relação de
troca baseada na economia do dom e contra-dom (MAUSS, 2003), uma
vez que os beneficiados pelos milagres sempre retornavam para agra-
decer a dádiva alcançada. Em quase todas as narrativas hagiográficas
(PALAZZOLO, 1958, p. 50; PENA, 1951, p. 23; LEFORT, 1992, p. 34) e
memórias consultadas, desde Pelúcio (1942, p. 146), foi mencionada a
prática do recolhimento às sextas feiras, às 15 horas da agonia, quando
Nhá Chica trancava-se em sua casa, tida como recinto sagrado, e ves-
tia-se de estopa branca para suas orações e ritos secretos. São muitos
os relatos de intercessão e milagres, mas, dentre os mais destacados
pela retórica hagiográfica, podemos citar o episódio de aconselhamento
buscado por um cirurgião do sul de Minas, cujo médico mandava os
seus netos para a casa de Nhá Chica a fim de terem respostas sobre as
visões sagradas da beata:
Nhá Chica, que rezava ajoelhada ante a Imagem da Virgem Imacu-
lada Conceição, então dizia à criança: - Quando a chama da vela
balançar três vezes é o sinal de que tudo caminhará bem. En-
quanto ela rezava, a criança ficava na janela, à espera de que Nhá
Chica acenasse (CARDONI, PINHO, NICOLIELLO, 2004, p.74).

S U M Á R IO 91
A comunicação com o mundo invisível, através dos sinais mági-
cos do fogo aceso, é um indício preciosíssimo. Por seu turno, o caráter
sacralizado do fogo, como elemento de comunicação com o mundo
espiritual, não se restringe às heranças coloniais ibéricas. De acor-
do com Cavazzi (1687), missionário capuchinho que visitou os reinos
do Congo, Matamba e Angola no século XVII, o fogo era um veículo
de comunicação com os mortos. O espaço domiciliar centro-africa-
no constituía moradia também para a ancestralidade espiritual. Nesse
sentido, o fogo das choupanas deveria ficar permanentemente aceso
para não romper o elo de ligação com a kalunga ou o reino dos mortos,
tido como dimensão estrutural da vivência terrena e da organização
do complexo ventura-desventura, conforme postulava o regime ético
da cosmologia banto. No interior da região de Benguela, segundo o
antropólogo Luiz Figueira (1938, p. 135), o hábito milenar em cultivar
o fogo sagrado estava diretamente associado à preservação da boa
ventura e, dependendo da intensidade de sua labareda, o elemento
ígneo poderia indicar a proximidade dos espíritos ancestrais no interior
do lar. Nesta perspectiva, o espaço de moradia para os grupos proce-
dentes das nações bantu significava também morada para a ancestra-
lidade ou edificação do templo doméstico, enquanto instrumento de
consagração do mundo e divisão de fronteiras entre o espaço externo
(profano) e o espaço doméstico (sagrado).

Em São João Del-Rei, os confrades da Nobre Nação de Ben-


guela criaram um recinto sagrado próprio, o qual denominaram por
Palácio, já os praticantes de quimbete e caxambu do Distrito de Ta-
manduá, também localizada na Vila de São João, fundaram a Casa
do Rosário, onde praticavam as danças em movimentos circulares
em volta de uma fogueira no centro. As casas, nesta perspectiva, se
transformavam também em espaços rituais (DELFINO, 2017, p. 43).
Nestes recintos variados, havia as casas de calundu, as casas dos
quimbetes e caxambus, as casas de candombe, as casas de viden-
tes, as casas das beatas e benzedeiras, como a moradia do alto da
colina da beata curandeira mestiça.

S U M Á R IO 92
Deste modo, o fenômeno da beatitude de Francisca de Paula
de Jesus deve ser associado ao culto de âmbito domiciliar presente
no universo das práticas mágicas da religiosidade colonial e escravista
(AZEVEDO, 2012; MOTT, 1997). Por seu turno, a beata milagreira prati-
cava seus ritos e consultas dentro de sua própria casa, onde cultivava
os instrumentos sacros, como a bacia d’água, com finalidade de rea-
lizar previsões, e o oratório de Nossa Senhora Imaculada Conceição,
além do terço que sempre trazia em mãos para a feitura dos benzi-
mentos e orações. Tais habilidades taumatúrgicas atribuídas à figura
da esmoleira – como a capacidade de prever o futuro, multiplicar pães,
operar práticas de cura e conversar diretamente com sua devoção – re-
portam-se ao reconhecimento coletivo da eficácia em torno dos ritos e
serviços prestados daqueles que possuíam como ofício de vida a arte
de trabalhar com a cura e benzimentos.

PRÁTICAS DISCURSIVAS
DO EMBRANQUECIMENTO
E PREDESTINAÇÃO

A imagem oficial de Nhá Chica (2013), encomendada por dom


Diamantino (bispo de Campanha/MG) é uma escultura de cedro, de
um metro de altura, produzida em São João Del-Rei por Osni Paiva
e policromia de Carlos Magno de Araújo. A imagem representa uma
santa de tez morena clara, com vestes franciscanas, diferindo radical-
mente da figura tradicional, indicada por Monat (1894) – uma anciã,
sentada, com um guarda-chuva nas mãos e traços físicos afrodescen-
dentes mais acentuados. Agora, ela está de pé, de braços abertos,
segurando um terço e túnica cor-de-rosa, com uma auréola dourada
na cabeça, visivelmente embranquecida.

S U M Á R IO 93
Figura 1 - Imagem Figura 2 - Imagem de Figura 3 - Nhá Chica,
Oficial de Nhá Chica Nhá Chica, segundo segundo João Bernardo
(2013), alocada no Montat (1891) da Costa (1958)
Santuário de N. Sra.
Da Conceição

Fonte: Monat, Fonte: PALAZZOLO, Fonte: ZIM, 2013.


1894, p. 133. 1958, p. 87. Estado de Minas
Gerais. Disponível
em: https://www.
em.com.br/app/noticia/
gerais/ 2013/05/03/
interna_gerais. Acesso
30 mai. 2022.

Luciana Brasil (2011), em sua dissertação de mestrado sobre


o documentário Nhá Chica, uma flor de Baependi (2004), produzi-
da pela Congregação das Irmãs Franciscanas do Senhor, observou
como a identidade de Francisca de Paula foi construída em conso-
nância com a hagiografia de vida de São Francisco de Assis. Segun-
do Brasil (2011, p, 99):
Percebemos, pela construção do documentário, nas relações
de sentidos entre Nhá Chica e os devotos, uma menção à vida
de São Francisco que significa em Nhá Chica – A Pérola de Bae-
pendi. Pois em Nhá Chica há gestos relatados pelos depoentes
que a aproximam deste santo até mesmo em sua indumentária,

S U M Á R IO 94
o gesto de votos de pobreza posto ao corpo e na vida sob a
forma de simplicidade. Existe em Nhá Chica uma identificação
com São Francisco.

Deste modo, pela análise discursiva da linguagem fílmica, a au-


tora conclui que “há a projeção ideológica da Congregação das Irmãs
Franciscanas” (BRASIL, 2011, p. 100), portanto, do embranquecimento
das práticas ritualísticas e dos modos de vida da beata. Retomando a
leitura dos textos hagiográficos, Monsenhor José do Patrocínio Lefort
(1992, p. 9), ao descrever os aspectos físicos de Nhá Chica, menciona
ter sido esta “moreninha clara, olhos verdes gaios”, algo reproduzido
também pela descrição de Rita Elisa Seda (2013, p. 57), ainda que
Henrique Monat (1894), o tenha descrito como “morena”, numa fase
da vida já enrugada e anciã. José Alberto Pelúcio (1942, p. 144) a des-
creve como “morena, de estatura mediana, vivaz, analfabeta, coisa co-
mum naqueles tempos, possuidora de uma crença religiosa profunda”.
Segundo o memorialista, baseado em Monat (1894):
Nhá Chica ficara órfão, aos dez anos; sua mãe, ao morrer, “lhe
recomendara a vida solitária, para melhor praticar a caridade e
conservar a fé cristã. Seguindo esse conselho, ela não deixou a
casa onde vivia, recusando o convite do irmão que a chamava
para a sua companhia” (PELÚCIO, 1942, p. 144).

O episódio da orfandade constitui um elemento fundamental


para construir a narrativa de predestinação de Nhá Chica, dedicada à
vida monástica, à castidade, às ações pias e à devoção a Nossa Se-
nhora da Conceição, regalo de sua mãe, que transportou a imagem de
São João Del-Rei para a Vila de Baependi com os dois filhos, Teotônio
e Francisca. Palazzolo (1958, p. 19) reafirma a orfandade de criança
apresentada por Monat (1894) e a família de Nhá Chica formada ape-
nas pela companhia do seu irmão, Teotônio:
Francisca de Paula de Jesus, mais tarde, já com avançada ida-
de, declarou ao Dr. H. Monat, que veio pequena para Baependi,
onde se viu órfão na idade de dez anos. Informou também que

S U M Á R IO 95
um irmão constituía sua única família, e que sua mãe, ao morrer,
lhe recomendara a vida solitária para que melhor se dedicasse
à prática de caridade e preservação da fé cristã. Seguindo o
conselho materno, recusou o convite do irmão que a chamara
para a sua companhia (PALAZZOLO, 1958, p. 19).

A versão é repetida em vários textos hagiográficos (PENA, 1951,


p. 13; LEFORT, 1991, p. 19; CARDONI, PINHO, NICOLIELLO, 2004,
p. 44; PASSARELLI, 2013, p. 48; SEDA, 2013, p. 3). No entanto, Arantes
(2021, p. 139), ao desvendar que a mãe de Nhá Chica falecera quando
esta já tinha mais de trinta anos,114 rompe com o mito da orfandade
presente nas narrativas hagiográficas por trazer indícios históricos de
uma mulher livre de cor que amealhou recursos, junto com sua família
consanguínea e rede de afetos em suas alianças confraternais, para
demarcar espaços de poder sociorreligioso. Ao consultar o testamento
de Isabel Maria (1843), foi possível conjecturar que a mãe liberta mi-
grou com os três filhos naturais, Teotônio, Maria e Francisca, de São
João Del-Rei para a vila de Baependi no Sul de Minas, possivelmente,
depois do óbito da avó de Nhá Chica, que foi enterrada na Igreja das
Mercês dos Crioulos de São João Del-Rei no ano de 1808 (ARAN-
TES, 2021, p. 139). Ao chegar em Santa Maria de Baependi, vila de
economia ascendente pela produção de fumo, gêneros alimentícios
e criação de porcos, a matriarca Isabel, “ por sua agência e indústria”
amealhou bens suficientes para adquirir “uma casa e uma engenhoca
de moer cana” (ARANTES, 2021, p. 139). No seu testamento, Isabel
deixou “uma caixa grande” que existia em sua casa, pertence à sua
“filha Francisca, por ter sido por ela comprada com dinheiro do seu
trabalho”, porém, não menciona o seu ofício. À sua filha, Francisca,
Isabel Maria agradece pelos “bons serviços prestados, e companhia
fiel” que compartilhou durante toda vida.

114 Cf.: Matriz Senhora de Monserrat de Baependi, (hoje sob custódia do INC), Livro de Óbi-
tos, 1841, Out-1869, Maio, Testamento de Isabel Maria da Silva (04/11/1843).

S U M Á R IO 96
A narrativa mítica se rompe quando situamos Nhá Chica dentro
do seu contexto histórico, refinando a nossa análise por atentarmos
para as barreiras enfrentadas, modos de exclusão e estratégias lança-
das para uma mulher de origens negras se fazer uma beata reconheci-
da e respeitada em uma sociedade escravista. Rondinelli Abreu (2018,
p. 21), ao estudar as representações dos periódicos Informativo Nhá
Chica e Jornal da Associação Beneficente (2012-2013), pondera que
os jornais “não trazem a possibilidade de Nhá Chica ter sido analfabeta
por causa das condições impostas pela sociedade de seu tempo, nem
trazem relatos do sofrimento em que as populações negras sofreram
nos longos anos de escravidão.”

Nesse sentido, nota-se uma preocupação nestes discursos de


canonização em construir a personagem para uma trajetória mítica de
embranquecimento, onde cada acontecimento remete a um sentido
de providência sagrada, em direção aos parâmetros normativos da
ortodoxia católica. Ao longo da apresentação dos milagres e dos feitos
místicos, a narrativa hagiográfica, presente em vários memorialistas,
retrata a inserção da experiência da beata em um tempo transcenden-
te, em que as ações se dirigiam por uma finalidade sagrada e o tem-
po futuro se configurava como espaço de cumprimento das profecias
construídas pela santa em sua experiência mística. Sendo assim, os
acontecimentos se desenrolavam como elementos de comprovação
dos milagres e de sua capacidade de predizer o futuro, mas tudo sob a
intercessão de Nossa Senhora da Conceição. Nhá Chica, nesta prática
discursiva, foi santa por ter sido uma mulher de fé, não porque teria o
poder de operar milagres. Este ó o sentido da exemplaridade edificado
pela memória hegemônica. Conforme a intencionalidade mencionada,
a tradição sobre a beata construiu a narrativa de uma menina órfã, de
origens do cativeiro, que ao viver sob a disciplina monástica, conduziu
sua vida a partir conselhos de sua mãe para se dedicar às obras de
caridade e ensinamentos cristãos. Viveu os seus dias como se fosse
um livro já escrito, dedicou-se à castidade aos exercícios de ascese

S U M Á R IO 97
espiritual, às visões místicas e as obras em companhia do seu escravo
“Félix, tocador de fole do órgão da Igreja de Nossa Senhora da Con-
ceição” (PENA, 1951, p. 6). Não obstante, a presença do personagem
Félix é naturalizada, como se as relações escravistas fossem harmo-
niosas, sem envolvimento de exploração do escravizado e busca de
mobilidade social da proprietária. Ora ele é apresentado como “amigo
preto”, ora como “liberto que viveu em sua companhia”.

Atualmente, as representações da beata de origens afro diaspó-


ricas são amplamente divulgadas por filmes-documentários, canções,
programas católicos neopentecostais, caravanas religiosas, panfletos
semanais, festividades sacras e outros veículos institucionais de ca-
tequização. No entanto, tais representações quando evocam as ori-
gens diaspóricas do culto à santa mestiça, o faz de maneira palatável,
obscurecendo os conflitos e os elementos de violência e exploração
de uma sociedade escravista, em favor de um discurso catequizante
alinhado ao mito da democracia racial115 e à mestiçagem como ins-
trumento de embranquecimento, principalmente quando as práticas
híbridas afro-atlânticas são suprimidas pela memória oficial.

PASSADOS-PRESENTES:
“OLHA LÁ A NHÁ CHICA, MINHA
AMIGA, MINHA CONTERRÂNEA,
EU CONHEÇO O PESSOAL DELA TUDO”

Quando pensamos no movimento entre passados-presentes,


nos inquieta bastante o modo como a santa negra é invocada no
Campo das Vertentes, cidades sul-mineiras e alhures, nas memórias

115 O mito da democracia racial nega a violência dos conflitos raciais e percebe nos proces-
sos de miscigenação a possibilidade para o embranquecimento da sociedade brasileira
(Cf. GOMES, 2005; MUNANGA, 2010).

S U M Á R IO 98
vivas116, nos atos de benzeções e saberes populares de cura e apa-
ziguamento espiritual, através dos ritos de livramento de quebranto,
cobreiro, aguamento, engasgo de animal, adivinhações e outros fins
sagrados. Dona Laura, benzedeira e rezadeira de São João Del-Rei, 87
anos, praticante do ofício das benzeções desde quando tinha mais ou
menos treze anos de idade, ao se dirigir ao seu altar doméstico, men-
cionou em entrevista, realizada em junho de 2016: “Olha lá a Nhá Chi-
ca, minha amiga, minha conterrânea, Nhá Chica é minha conterrânea,
ela foi nascida quase no meu terreno, Nhá Chica, eu conheço o pes-
soal dela tudo”117. Tereza Maria do Nascimento, mulher preta, 73 anos,
nascida no distrito de Cangalho de Ritópolis/MG, tocadora do Congo
de São Benedito e São Sebastião de Matosinhos (São João Del-Rei),
irmã do Santíssimo e de São Miguel e Almas, inspirada pela avó pater-
na, mantém em seu altar, a devoção aos santos pretos, em especial,
à Nhá Chica, de tez enegrecida, a quem dedicou grande parte de sua
vida, viagens de romaria em direção ao Santuário de Nossa Senhora
da Conceição em Baependi para rezar ao pé do túmulo de sua santa
milagreira.118 Já Maria das Dores Paulino de Assis, 67 anos, moradora
de Cambuquira/MG, nos relata, em suas memórias de família, que a
santa mestiça curou as doze crianças de sua mãe, as livrando da co-
queluche, após uma promessa de sua mãe à beata negra. Assim como
Dona Laura, ser devoto(a) de Nhá Chica para congadeiros, rezadeiras
e benzedeiras significam reafirmar a ancestralidade, o parentesco ri-
tual, a força vital, um elo que ainda permanece em muitas memórias

116 Para este capítulo não desenvolvemos uma pesquisa de história oral efetiva, mas re-
colhemos alguns relatos de memória e utilizamos de entrevistas orais de outras pes-
quisadoras, como Simone Assis (2021) e Tayane Oliveira (2022) para falarmos das tra-
dições-vivas e memórias subterrâneas da devoção à beata. No entanto, partimos do
pressuposto de que a memória oral é uma fonte viva e seus sujeitos produtores são
coautores do processo de elaboração da das narrativas produzidas e das memórias
analisadas neste ensaio (ROVAI, BONI, 2010).
117 Entrevista de Dona Laura Moreira Ávila, feita por Tayane Oliveira, em São João Del-Rei,
04/06/2016.
118 Entrevista de Teresa Maria do Nascimento, feita por Simone de Assis, em Matosinhos, São
João del-Rei/MG, 14/06/2019.

S U M Á R IO 99
ressignificadas e subterrâneas, embranquecidas pelo discurso ortodo-
xo oficial da Igreja. Destas representações insurgentes surgem outras
possibilidades de se pensar a história pública da santa por meio das
narrativas orais, dos cânticos de congada e dos pontos de terreiro.

Em outras partes do Brasil, como Vitória da Conquista/BA, Ana


Maria Fernandes Santana, 66 anos, mãe de santo, nascida em Itagi-
mirim, fundou um terreiro de Umbanda em 2014, que se intitula Casa
de Caridade Nhá Chica, cuja entidade mentora da casa é nomeada
como “Vovó Chica”, “Sinhá Chica” ou “Nhá Chica”. Ao conversar com
a dirigente da casa, Mãe Ana, filha de Iemanjá, falou sobre o sincretis-
mo119 entre Nossa Senhora da Conceição e Iemanjá e como a beata
negra, entendida como entidade pertencente à linha dos pretos velhos
se manifestou em sua vida:
Eu conheci Nhá Chica, quando ela se apresentou pra mim, eu
tinha entre oito e dez anos mais ou menos. Eu ainda não tinha
assim, a certeza de quem se tratava né? Eu estava de férias,
sempre eu gostei muito de ficar na fazenda de minha Avó ma-
terna e eu sofri um pequeno acidente. Eu não sei se vocês co-
nhecem? Tem aquela coisa que coloca assim parece um, um,
uma pontezinha entre as cercas das fazendas que chama mata-
-burro. E eu escorreguei e enganchei a perna, a parte assim do
joelho ficou presa e tive umas lesões, aquelas escoriações na
perna e ficou muito inflamado e a noite eu tive muita febre, minha
avó cuidando de mim e teve um momento que me apareceu um
espírito. Quer dizer: eu não sabia o que era né? Alguém me apa-
recia, me consolava, me colocava no colo, me afagava, coçava
minha cabeça e tal e dizia que eu ia ficar bem, que era passa-
geiro e que eu precisava ficar bem. E teve um momento em que
eu balbuciei, assim, mais ou menos, acho que ela entendeu que
eu falava: Vovó Chica. Então, quando Nhá Chica me apareceu
pelas primeiras vezes, era como vovó Chica, ou sinhá Chica.120

119 Termo utilizado pela colaboradora.


120 Relato oral de Dona Ana Maria Fernandes, coletado por Leonara Lacerda Delfino. Vitória
da Conquista, 28/05/2022.

S U M Á R IO 100
A Umbanda é uma religião afro-brasileira, com diferentes frentes
(umbanda das almas e Angola, umbanda popular, umbanda Omolokô),
cuja ritualística e fundamentos agregam elementos de diferentes matri-
zes religiosas (kardecismo, catolicismo, candomblé, xamanismo indí-
gena)121. A palavra, de origem bantu, significa “arte de curar”. Para os/
as umbandistas, o terreiro é um espaço sagrado e de partilha de sabe-
res ancestralizados. Os orixás são forças naturais que estão presentes
em todos os lugares; no entanto, cada orixá vibra, sincronicamente,
com um santo católico correspondente. A releitura da representação
de santa Nhá Chica como Vovó Chica, alinhada aos pretos velhos nos
traz indícios interessantes para trabalharmos a re-africanização da san-
ta recriada fora do culto católico. Ao perguntarmos sobre como Mãe
Ana de Iemanjá enxerga Nhá Chica, ela responde: “Vejo ela negra,
porque os pretos velhos normalmente são escravos, né? Os pretos e
as pretas velhas foram escravos, né? Ela é uma negra de pele mais
clara, mas a vejo dessa forma, com aquele... tipo um mantinho, um
veuzinho na cabeça”122 .

A africanização das representações de Nhá Chica e de outros


símbolos e ritos católicos nos abrem janelas de entendimento para
uma história pública construída a contrapelo, em que as africanidades
subterrâneas movimentam possibilidades de recriação de memórias e
outras formas de narrar a santa milagreira que transitou nas fronteiras
entre o mundo dos brancos e o mundo dos escravizados e libertos.

121 Para uma parcela do movimento umbandista, a fundação da umbanda estaria relaciona-
da diretamente com a manifestação do Caboclo das Sete Encruzilhadas por intermédio
de Zélio de Moraes, em 1908, na cidade de Niterói, e com a posterior fundação da Tenda
Espírita Nossa Senhora da Piedade, no mesmo ano, por sugestão do Caboclo das Sete
Encruzilhadas, em São Gonçalo. No entanto, muitos estudiosos, dentre eles podemos
destacar Giumbelli (2002) e Rohde (2009), apresentam o marco “Zélio de Moraes” como
um mito de fundação.
122 Relato oral de Dona Ana Maria Fernandes, coletado por Leonara Lacerda Delfino. Vitória
da Conquista, 28/05/2022.

S U M Á R IO 101
Figura 4 - Nhá Chica na Umbanda Figura 5 - Gongá do Terreiro
de Caridade de Nhá Chica

Fonte: FERNANDES, Ana Maria. Imagens alocadas no Gongá Sagrado do


Terreiro Casa de Caridade de Nhá Chica. Vitória da Conquista (BA), 2022.

CONCLUSÃO

A história pública pode ser escrita por várias mãos. Neste sen-
tido, analisar as múltiplas possibilidades de narrativa da trajetória da
santa negra nos oportuniza caminhos profícuos para pensarmos a his-
tórias de silenciamento, embranquecimento, e também as memórias
insubmissas, ressignificadas e afro centradas. O culto doméstico do
catolicismo afro-atlântico, junto às práticas de adivinhos, calunduzei-
ros, curandeiros, videntes, esmoleiros, beatos de toda sorte e outras
figuras místicas, praticantes da religiosidade híbrida da herança colo-
nial, se tornou marca expressiva da religiosidade popular do sul de Mi-
nas em uma compreensão de temporalidade na longa duração. Sendo

S U M Á R IO 102
assim, podemos compreender como Nhá Chica fez de sua própria
casa, um recinto sagrado.

A santa popular adquiriu reconhecimento da comunidade co-


letiva de Baependi, como também soube construir um carisma grupal
capaz de exercer certa liderança religiosa e respeitabilidade das autori-
dades eclesiásticas locais. Suas estratégias de alianças com altos dig-
nitários da localidade serviram como ponte necessária para o aval de
suas práticas religiosas, sem a intervenção ostensiva da Igreja durante
aquele contexto em que o catolicismo oficial buscava higienizar sua
doutrina das expressões populares, remanescentes da religiosidade
híbrida do período colonial. Ademais, sua inserção com o poder ecle-
siástico local abriu margens para a projeção simbólica de sua imagem,
enquanto liderança religiosa no povoado e aglutinadora de códigos
comportamentais e símbolos capazes de despertar a devoção de um
grupo bastante heterogêneo de seguidores.

Esta pluralidade de códigos simbólicos, reunidos em sua repre-


sentatividade religiosa, reporta-se ao diálogo mantido com as africani-
dades subterrâneas, bem como com os valores de ascese monástica
apropriada da tradição ibérica e colonial. Neste sentido, a santa negra
também se apropriou de práticas de ascese caras ao ideal de recolhi-
mento dos conventos, tais como: o voto de pobreza, o jejum, a mortifi-
cação, a castidade, a disciplina penitencial e as meditações espirituais,
através da recitação do rosário. Segundo o imaginário social ainda
vigente entre os fiéis, a beata conversava por horas prolongadas com
Virgem Maria. Tal experiência mística de Nhá Chica poderia enquadrá-
-la em um fenômeno aproximado ao das santas beatas ibéricas, como
Tereza d’Ávila, por viver em quase reclusão e atingir o transe religioso
por intermédio da relação mística com o ser numinoso; como também
poderia encerrá-la nos cárceres das autoridades eclesiásticas, como
aconteceu com Rosa Egipcíaca.

S U M Á R IO 103
Por seu turno, a santa negra representa elementos remanes-
centes da religiosidade colonial que seus memorialistas procuravam
silenciar, ao terem preocupação constante de dissociá-la das práticas
de curandeirismo, premonição, benzeções ou ritos mágicos pelos
quais destoavam da imagem com que a ortodoxia, interessada em sua
beatificação, procurou construir para posteridade. Sendo assim, suas
origens afro-atlânticas e suas práticas religiosas populares foram pau-
latinamente omitidas em razão do processo de reconhecimento e de
beatificação desenvolvido pela Igreja católica, pari passu a monumen-
talização da imagem embranquecida da santa mendicante, cada vez
mais distante das africanidades subterrâneas, ancoradas nas vivências
atlânticas, personificadas nos aprendizados transmitidos por sua avó e
sua mãe. Vista por esse prisma, a linguagem ritualística desenvolvida
pela beata negra pouco se enquadrava na retidão imaginada pela orto-
doxia, uma vez que a religiosa mendicante realizava profecias, curava
doentes, encontrava animais perdidos e possuía visões místicas por
intermédio de um rito de prever o futuro com o uso de bacias d’água.

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DOI: 10.31560/pimentacultural/2022.94852.4
INTRODUÇÃO

A cultura africana e afro-brasileira, da qual nossa sociedade


é tributária, é em grande medida reduzida à dimensão recreativa e
aludida em datas específicas, como 13 de maio, dia da abolição da
escravidão, e o 20 de novembro, dia da Consciência Negra. Nesse
sentido, alguns aspectos são valorizados, sobretudo de forma des-
contextualizada, sendo eles a música, comidas e danças. As con-
tribuições para o desenvolvimento técnico, social e econômico na
sociedade brasileira são obscurecidas, e ainda mais veladas são as
religiões afrodescendentes e suas práticas rituais. Nessa perspecti-
va, o presente capítulo traz a discussão do abate ritual nas religiões
afrodescendentes, no que se refere à legislação e a práticas em ter-
reiros na cidade de Boa Vista/RR e Pelotas/RS.

O recorte temporal estabelecido para a nossa pesquisa são os


anos de 2017 a 2020. A baliza inicial refere-se à data em que o Supre-
mo Tribunal Federal (STF) julgou constitucional o abate religioso. O
marco final da pesquisa foi estendido até 2020 para analisar como a
prática vem se desenvolvendo após o julgamento. Justificamos esta
pesquisa pela atualidade da sua temática e por ela buscar elucidar,
aprofundar e complexificar os debates acerca da intolerância religiosa
e do racismo, haja vista que ainda existe muito prejulgamento no que
se refere às religiões afro-brasileiras.

Nossos objetivos são analisar a função e construção da ritua-


lística do abate de animais nas religiões de matriz africana e afro-
-brasileira na cidade de Boa Vista/RR e Pelotas/RS; compreender a
importância do abate religioso para a religião; por fim, observar em
que medida a prática do abate religioso é garantido pelo poder públi-
co. Para tanto, realizamos um breve debate sobre a legislação relativa
à temática, e nos valemos de entrevistas cedidas por sacerdote e
sacerdotisas de candomblé.

S U M Á R IO 110
O ABATE RITUAL

A cultura e a religiosidade africana fazem parte de algo milenar,


de forma que seus ritos e práticas são repassados de geração em
geração. No que concerne ao Brasil, para Tereza Rodrigues Vieira e
Camilo Henrique Silva (2016), as religiões mais populares de matriz
africana são o Candomblé e a Umbanda, com seus ritos e cultos aos
orixás, bem como as oferendas as divindades que utilizam ervas, fo-
lhas, alimentos, velas e o abate ritual de animais (VIEIRA; SILVA, 2016).

Nossa pesquisa dedica-se ao abate ritual praticado no âmbito


do Candomblé, onde os animais abatidos são considerados oferen-
das; a Umbanda, por sua vez, não realiza o abate. Cabe aqui escla-
recer que o termo adotado por nós ao longo deste trabalho é abate.
Todavia, o termo está em consonância com a ideia de sacrifício, como
são comumente conhecidas tais práticas. Simone Azevedo Rocha
(2012) esclarece que o termo sacrifício, em algumas línguas europeias,
deriva do latim sacrificium, que originalmente faz alusão à atividade
de “tornar sacro”, demonstrando precisamente a transição do objeto
imolado a um espaço distinto.

Além disso, Rocha (2012) versa que os componentes que atual-


mente se atribuem ao sacrifício baseiam-se no oferecimento de um
bem ou de um donativo em prol de um espaço díspar, compreendido
como sobre-humano, e a consumação do sacrifício em beneficiamento
de um âmbito superior. A autora explica também que para se entender
a questão do sacrifício, principalmente sua relevância nas religiões,
convém salientar o estudo de Ângelo Brelich, que põe no cerne da sua
pesquisa a historicidade da definição de sacrifício e os princípios va-
riantes da comuta entre seres humanos e divindades (ROCHA, 2012).
Dentro do espaço semântico do termo sacrifício, nosso objeto de pes-
quisa alinha-se ao sacrifício-doação elaborado por Brelich. De acordo
com Rocha (2012, p. 9):

S U M Á R IO 111
O sacrifício-doação consagra aquilo que os humanos oferecem
aos seres não humanos. Na maior parte dos sacrifícios-doação,
a vítima é consumida em parte ou totalmente pelos sacrifican-
tes, que sustentam ter feito a doação daquela a espíritos ou
deuses, afirmando que estes lhe saboreiam o odor ou lhes le-
vam a vida ou a alma.

Dessa forma, o sacrifício não é apenas um ritual que possui


imolação e oferenda, mas também uma das formas de alimentação
humana, já que ele não envolve só a abdicação e morte, mas abran-
ge também a utilização instantânea de um bem. Tal troca sacrificial
é dissemelhante do pensamento utilitário do mercantilismo, visto que
compreende e pratica princípios éticos.

A natureza da troca entre humanos e sobre-humanos não se


julga de acordo com a dimensão econômica da doação oferecida,
mas se observa a relação entre a oferenda e estado do sacrificante,
a viabilidade do ofertante e o espírito que o motiva. Para os deuses e
entidades, mais que contingente de ofertas, o que importa mesmo é a
genuinidade do âmago do ofertante (ROCHA, 2012).

Nessa perspectiva, Janecléia Pereira Rogério (2008) acrescen-


ta que o sacrifício não determina a morte como um assassinato, ou
somente a simples morte de um sacrificado para o oferecimento de
seus fragmentos, ou totalidade ao mundo imaterial, e sim a conversão
do sacrificado em oferta de bençãos, subsistência e princípios. Desse
modo, como afirma a autora, “o sangue e as vísceras são destina-
dos às oferendas para as entidades, enquanto a carne é comida pelos
fiéis” (ROGÉRIO, 2008, p. 52).

Para uma melhor compreensão da prática, Vilson Caetano de Sou-


sa Junior (2011) aponta que há diferença entre o sacrifício e a oferta, ainda
que o primeiro faça parte da segunda em algumas situações. De acordo
com o pesquisador, a oferenda é um donativo que funciona como meio
de troca. Oferece-se algo na expectativa do atendimento a um pedido.

S U M Á R IO 112
O sacrifício nas religiões de matriz afro-brasileira desempenha
diversas funções, para além daquelas que envolvem a imolação e ofe-
renda, é também uma maneira de demonstrar gratidão, ultrapassan-
do a função da troca. Sousa Jr. (2011) aponta mais duas finalidades
para a realização do sacrifício, quando do desejo de restabelecimento
de uma pessoa enferma e quando o indivíduo identifica que o seu
o relacionamento com a ancestralidade se encontra estremecido.
O sacrifício tem, portanto, a intenção de santificar algo e ofertar a seres
sobre-humanos em troca de alguma coisa.

Cabe aqui reforçar que o sacrifício não é um simples derrama-


mento de sangue, como muitas vezes visões preconceituosas tentam
imputar à religião. Trata-se de uma prática que possui significados e
funções dentro da religiosidade afro-brasileira.

A prática do abate religioso nas religiões afro-brasileiras muitas


vezes foi tema de debates por alguns grupos da sociedade. Tais gru-
pos questionam e tratam o abate religioso como algo primitivo. Con-
forme tal perspectiva, a prática consiste em uma ação que violenta
os animais. Contudo, não observamos a mesma energia para o de-
bate com relação ao fato do Brasil ser o maior exportador de carnes
do mundo, segundo um estudo realizado em 2021 pela Secretaria de
Inteligência e Relações Estratégicas (SIRE) da Empresa Brasileira de
Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA, 2021).

De acordo com esse estudo, que analisou a exportação de car-


ne das duas últimas décadas, o Brasil possui o maior rebanho bovino
do mundo, sendo 14,3%, com 217 milhões de cabeças de gado; já
na produção de aves e suínos o Brasil ocupa a terceira posição no
mercado internacional com 29 milhões de toneladas. No ano de 2020,
o Brasil foi o maior exportador de carnes bovinas com 2,2 milhões de
toneladas (EMBRAPA, 2021).

S U M Á R IO 113
Desse modo, se a preocupação produzida por esses grupos
fosse de fato com a integridade dos animais, por qual razão não ques-
tionam o consumo e exportação exacerbada praticada pelo país? Do
contrário, toda a problemática desenvolvida por parte desses grupos
quanto à prática do abate nas religiões de matriz africana e afro-bra-
sileiras apenas manifesta o racismo religioso enraizado na sociedade
brasileira, tema que será debatido no tópico a seguir.

RACISMO RELIGIOSO

Neste tópico apresentaremos uma discussão acerca do que com-


preende o racismo religioso, partindo inicialmente do termo mais comu-
mente utilizado que é o da intolerância religiosa. Destarte, pretendemos
proporcionar uma maior compreensão em torno dessas duas definições.

Segundo Márcio de Jagun (2016), a fé consiste em um direito de


escolha, da mesma forma o não crer, que expressa também a liberda-
de do sujeito de não professar nenhuma crença. De igual modo, a in-
tolerância religiosa é um jeito de acreditar. Agir de forma intolerante no
que diz respeito à religião, é achar que a sua religiosidade é superior ou
a mais correta do que as outras. A intolerância pode se manifestar de
variadas maneiras: por meio de agressões verbais ou físicas, podendo,
até mesmo, levar ao assassinato de praticantes da religião perseguida.

Jagun (2016) ressalta que a intolerância religiosa é algo crescente


no Brasil e ainda que seja uma prática bastante antiga, e existam leis
para coibi-la, ela encontra outros jeitos para se manifestar. Outrossim,
há no Brasil a narrativa da boa harmonia religiosa. Contudo, quando
observamos nossa história retrospectivamente, verificamos que desde
a chegada dos portugueses sempre ocorreu uma tentativa de imposição
de seus credos e hábitos, desconsiderando as culturas e costumes dos
povos indígenas e, posteriormente, dos africanos aqui escravizados.

S U M Á R IO 114
Ao longo da história do país é possível observar que muitos fo-
ram os ataques realizados contra as religiões de matriz africana. Para
Carlos Alberto Ivanir dos Santos e Mariana Gino (2016), é notório o
alinhamento e cooperação formais entre a Igreja Católica Apostólica
Romana e o Estado português no período o colonial, por meio do regi-
me do Padroado, e durante o império, quando o catolicismo era con-
siderado religião oficial; sendo assim, o Estado controlava todas as
outras manifestações religiosas.

Portanto, as religiões minoritárias, como o caso das afro-brasi-


leiras, foram e são alvos de ataques e de intolerância, mas mais do que
isso, de racismo religioso, pois penetra na questão racial dos sujeitos
que fazem parte dessas religiões. Isso figura algo muito maior: é uma
intolerância étnico-racial, que está vinculada diretamente às distinções
identitárias singulares ou comuns, sejam elas relacionadas à “raça”,
“cor”, aparência, entre outras (SANTOS; GINO, 2016).

Como um comportamento arbitrário associado ao preconceito


étnico-racial, a intolerância impede que pessoas ou grupos, em es-
pecial grupos que são encarados como culturalmente irrelevantes,
manifestem as suas práticas culturais. Desse modo, a intolerância é
apresentada por meio do racismo, da xenofobia e da perseguição re-
ligiosa. Posto isto, o racismo fundamentado na cor da pele do sujeito,
influenciou e ainda influencia em todas as mazelas cometidas contra
os povos negros na nossa sociedade, bem como na propagação do
racismo religioso (SANTOS; GINO, 2016).

Assim, o racismo religioso se configura, uma vez que as religiões


afro-brasileiras são constituídas em sua origem por pessoas negras e
isso influi na forma com que elas são observadas e consideradas pe-
las outras religiosidades, sendo vistas por elas enquanto uma prática
inferior, demoníaca ou “ruim”. Toda essa concepção conforma as repre-
sentações sociais daqueles que se opõem à prática do abate religioso
no Candomblé. Grosso modo, o abate seria um “sacrifício ao demônio”.

S U M Á R IO 115
Segundo Emília Guimarães Mota (2018), as diversas agressões
e crueldades sofridas pelos povos de terreiro têm sido denominadas
de intolerância religiosa. Pesquisadores, legisladores, entre outros,
mas sobretudo os próprios adeptos, contribuem para que esse termo
seja designado como forma de categorizar tais agressões.

Ademais, Mota (2018) considera a temática da intolerância reli-


giosa e da discriminação contra as religiões de matriz africana como
racismo religioso. Ainda que tenha sido bastante recorrente em muitas
situações da história brasileira, no presente tem adquirido amplitude
e discussões em razão de uma sucessão de ataques empreendidos
contra esses grupos, manifestando diferentes aspectos e modelos de
conexão dos variados tipos de repressões e relações de poder.

Um exemplo de racismo religioso no contexto de Boa Vista/RR


é exposto no artigo de Monalisa Pavonne Oliveira, intitulado “Religiões
de matriz africana e afro-brasileira no tempo presente: possibilidades e
perspectivas de estudo para o campo da história” (2021). A autora indica
algumas situações de intolerância vividas por crianças adeptas do can-
domblé no ambiente escolar, de modo que fica evidente que situações
como essas poderiam ser evitadas se houvesse um maior conhecimen-
to e instrução, nomeadamente por parte dos gestores e professores que
por essa falta de preparo acabam contribuindo para que episódios des-
sa natureza se repitam. De acordo com Oliveira, “foram relatados casos
de crianças que não puderam entrar na escola porque estavam com a
roupa usada no período de iniciação, e não o uniforme escolar. Há casos
também de bullying entre os colegas, quando a criança da religião vai à
escola com a cabeça raspada” (OLIVEIRA, 2021, p. 47).

Não obstante a grande marca identitária do Brasil seja a miscige-


nação, a mistura entre o europeu, o negro e o índio, há uma hierarqui-
zação nas contribuições dos integrantes deste tripé formador do povo
brasileiro. Ao negro, quanto ao que deve ser exaltado, cabe o trabalho
braçal e, como mencionamos anteriormente, aspectos relacionados à

S U M Á R IO 116
dimensão considerada recreativa da nossa cultura, como o carnaval, a
feijoada e a capoeira. Em contraposição a determinados aspectos acei-
tos, desde que em datas e formatos específicos, temos a rejeição à reli-
gião afro-brasileira, tida como eivada de superstições e frequentemente
associada, sem grande rigor, ao culto ao diabo cristão. Consequente-
mente, o que vem da cultura negra é considerado menor ou ruim/mau.

Para Barba (2020), as práticas do racismo religioso conseguem


ser entendidas por esse prisma da hierarquização das contribuições
do tripé formador e enquanto um movimento, intenso e expressivo que
busca reiterar as relações de poder e hegemonia oriundas do período
colonial. Tais relações refletem-se numericamente entre os praticantes
das diversas denominações religiosas no país, estando os adeptos
das religiões afro-brasileiras entre os que reúnem os menores contin-
gentes populacionais de acordo com a pesquisa. Barba (2020) mostra
que segundo uma pesquisa do Datafolha, o instituto de pesquisas do
Grupo Folha, que o catolicismo e o pentecostalismo são as duas cren-
ças com maior número de seguidores: católicos 50,1%, pentecostais
21,6%, espíritas com 2,2%, afro-brasileiros com 1,6%, outras religiões
com 1,99%, sem religião 14%, ateus 1,3%.

As denominações com maior número de adeptos, o catolicis-


mo e os evangélicos — este grupo vem crescendo expressivamente
no país nas últimas décadas —, participam politicamente dos rumos
da nação em diferentes instâncias de poder, impondo seus preceitos
nos mais diferentes âmbitos, desde a educação até a economia. Tais
preceitos, que se apresentam de modo totalizante, têm também como
objetivo combater e encobrir os que divergem de suas práticas cultu-
rais e crenças religiosas. Entre os principais alvos, sobretudo dos evan-
gélicos, estão os templos e os adeptos das religiões afro-brasileiras.

Observamos, dessa maneira, que os limites entre a laicidade e


a religião são frequentemente desrespeitados no Brasil. Um exemplo
claro disso ocorreu durante os anos de 2003 e 2005 no Rio Grande do

S U M Á R IO 117
Sul, quando o deputado e pastor da Igreja do Evangelho Quadrangular
Manoel Maria dos Santos (Partido Trabalhista Brasileiro - PTB) apre-
sentou sem sucesso o projeto de lei de criação do Código Estadual de
Proteção dos Animais, o qual impedia o sacrifício de animais em rituais
religiosos, proposta que interferia diretamente nas práticas rituais das
religiões afro-brasileiras.

Doze anos depois essa questão voltou a ser debatida pela de-
putada estadual Regina Becker Fortunati (Partido Democrático Traba-
lhista - PDT), também evangélica (da Igreja Batista Filadélfia), restabe-
lecendo o esforço de proibir que tal prática fosse realizada, todavia o
seu projeto de lei não foi aprovado. Esses movimentos de tentativa de
impedir a realização dos abates religiosos pelas religiões afro-brasilei-
ras não significam somente um preconceito quanto aos seus cultos,
mas, mais do que isso, à origem dessas religiões, isto é, à proveniência
africana dos seus ritos.

O racismo religioso se manifesta de diferentes formas em diver-


sos lugares pelos mais variados segmentos da sociedade. No entanto,
percebemos uma investida contra a liberdade de culto mais consis-
tente advindas de determinados grupos, especialmente, aqueles de
denominações evangélicas. No nosso caso, as tentativas de coibir o
abate ritual utilizando-se do Estado através da promulgação de leis,
assunto do próximo tópico.

LEGISLAÇÃO

Neste tópico, a ideia é apresentar uma breve discussão a res-


peito de algumas leis que abrangem as religiões de matriz africana e
afro-brasileiras, principalmente as que se referem à prática do abate
religioso, cronologicamente.

S U M Á R IO 118
A Constituição de 1891 marcou o fim do regime do Padroado123,
estabelecendo a separação entre Igreja e Estado. Entretanto, a religião
católica permaneceu hegemônica frente às outras denominações re-
ligiosas, que se mantiveram a margem, refletindo o futuro que se pro-
jetava para a jovem nação, então republicana. Embora a Constituição
determinasse a cisão entre Estado e Igreja, a Igreja católica manteve
algumas prerrogativas das quais gozava desde o período colonial,
além de ser a instituição responsável por definir a base moral e as nor-
mas sociais pelas quais os cidadãos deveriam reger-se (MOTA, 2018).

Apesar da Igreja católica continuar a ser o sustentáculo no que


se refere aos preceitos morais e sociais da sociedade que se tornava
republicana, a Constituição de 1891 instaurou a liberdade de culto
em seu artigo 72: “§ 3º - Todos os indivíduos e confissões religiosas
podem exercer pública e livremente o seu culto, associando-se para
esse fim e adquirindo bens, observadas as disposições do direito
comum”. Nosso país contou com uma série de Constituições entre
as promulgadas (1891, 1934, 1946 e atual de 1988) e as outorgadas
(1824, 1937 e 1969). Para os limites deste capítulo mencionamos a de
1891 por demarcar a divisão entre Igreja e Estado, mas deter-nos-e-
mos à legislação mais atualizada, a começar pela atual Constituição
Federal da República Federativa do Brasil de 1988, também conheci-
da como Constituição Cidadã. Tal documento reitera a liberdade de
crença no seu Artigo 5º:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros resi-
dentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à
igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[...]

123 O regime do padroado consistia em um acordo firmado entre o papa e os Reinos de


Portugal e Espanha. O Reino de Portugal sempre se preocupou a respeito da união entre
a cruz e a coroa, pois acreditava que uma não poderia atuar sem a outra. Dentro desse
regime havia direitos e deveres definidos previamente, e a Igreja incumbia aos monarcas
dos reinos ibéricos o controle e ordenamento da Igreja Católica em seus domínios.

S U M Á R IO 119
VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo
assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida,
na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;
(BRASIL, 1988).

Muito embora a liberdade de crença seja uma das garantias


constitucionais, os adeptos das religiões de matrizes africanas en-
frentam diversos impasses no que concerne ao livre exercício da sua
religiosidade. Percebamos que mesmo com a existência de leis que
garantem o exercício de qualquer manifestação religiosa, o racismo
religioso encontra outras formas de ocorrer, inclusive através do pró-
prio Estado, com o objetivo de inviabilizar práticas religiosas próprias
dos terreiros de Candomblé – como citamos anteriormente, no caso
de parlamentares no Rio Grande do sul que buscavam criar entraves
para o abate de animais.

Em 2003, o deputado Manoel Maria dos Santos (PTB), pastor da


Igreja do Evangelho Quadrangular e deputado por quatro mandatos,
propôs o projeto de lei de criação do Código Estadual de Proteção aos
Animais para o Estado do Rio Grande do Sul (ORO; CARVALHO; SCU-
RO, 2017, p. 232). A princípio, o projeto delineava o impedimento da
utilização de animais em celebrações religiosas. O Artigo 2 do Projeto
de Lei determinava que:
É vedado: realizar espetáculos, esporte, tiro ao alvo, cerimô-
nia religiosa, feitiço, rinhadeiros, ato público ou privado, que
envolvam maus tratos ou a morte de animais, bem como lutas
entre animais da mesma espécie, raça, de sua origem exótica
ou nativa, silvestre ou doméstica ou de sua quantidade. (PRO-
JETO DE LEI Nº 447/1991, apud ORO; CARVALHO; SCURO,
2017, p. 232, grifo nosso)

Ao expressar os termos “cerimônia religiosa” e “feitiço” fica-


va claro qual era o principal alvo deste projeto: as religiões de matriz
africana, as quais eram entendidas como empreendedoras de “maus
tratos” aos animais imolados. As discussões públicas e movimentos

S U M Á R IO 120
gerados com este artigo 2º nas esferas afro religiosas e afro políticas
fizeram com que o deputado elaborasse uma outra versão do artigo,
aceito da seguinte forma:
Artigo 2º: É vedado: I - ofender ou agredir fisicamente os ani-
mais, sujeitando-os a qualquer tipo de experiência capaz de
causar sofrimento ou dano, bem como as que criem condições
inaceitáveis de existência;

II - Manter animais em local completamente desprovido de as-


seio ou que lhes impeçam a movimentação, o descanso ou os
privem de ar e luminosidade;

III - Obrigar animais a trabalhos exorbitantes ou que ultrapassem


sua força;

IV - Não dar morte rápida e indolor a todo animal cujo exter-


mínio seja necessário para consumo;

V - Exercer a venda ambulante de animais para menores desa-


companhados por responsável legal;

VI - Enclausurar animais com outros que os molestem ou


aterrorizem;

VII - Sacrificar animais com venenos ou outros métodos não


preconizados pela Organização Mundial da Saúde - OMS -, nos
programas de profilaxia da raiva (PROJETO DE LEI Nº 447/1991,
apud ORO; CARVALHO; SCURO, 2017, p. 232, grifo nosso).

Anterior a esta proposta, no estado de São Paulo no ano de


2001, um projeto de lei semelhante foi apresentado. O Projeto de Lei n.
992/2011 cuja autoria é do deputado Estadual Feliciano Nahimy Filho
(Partido Verde - PV), que proibia o sacrifício de animais em ritos reli-
giosos no estado de São Paulo. Mais adiante, no ano de 2015, no Rio
Grande do Sul novamente, foi aventado pela Deputada Estadual Regi-
na Becker (PDT), que se declara como evangélica da Igreja Batista Fi-
ladélfia, a revogação do parágrafo único do artigo 2º da lei de número
11.915, de 21 de maio de 2003, que tornava legal a realização do abate
de animais em rituais de matrizes africana no Código de Proteção aos

S U M Á R IO 121
Animais. “Agora, segundo o projeto da deputada, ficaria restabelecida
a redação original de 2003 do Código Estadual de Proteção aos Ani-
mais” (ORO; CARVALHO; SCURO, 2017, p. 235)

Além disso, no ano de 2016, em Cotia município do estado de


São Paulo o vereador Sérgio Henrique Clementino Folha (Partido da
República - PR) apresentou a Lei n. 1960 de 21 de setembro de 2016
que contava com o impedimento do uso, corte ou sacrifício de ani-
mais em situações de estudo e rituais. No ano de 2016, o julgamento
do abate ritual de animais foi levado para o Supremo Tribunal Federal
(STF) por meio do recurso extraordinário 494601 do Ministério Público
do Rio Grande do Sul, em oposição à decisão do Tribunal de Justiça do
Rio Grande do Sul, que autorizava a realização do abate por religiões
de matrizes africanas (MOTA, 2018).

O Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul recorreu


até o STF em desacordo da decisão tomada pelo judiciário gaúcho
que determinava como constitucional a lei estadual n. 12.131, de 22
de julho de 2004, a qual teve a sua primeira versão rejeitada. Essa lei
apresenta um parágrafo único que expressa que a vedação do sacrifí-
cio de animais não abrange a prática nos cultos e liturgias das religiões
de matriz africana.

Segundo o Ministério Público do Rio Grande do Sul, essa deci-


são disponibilizava um privilégio a essas religiões e, assim, adentrava
um lugar que é de responsabilidade da União. Em 2018, teve início o
julgamento no STF, que se encerrou em 28 de março de 2019. Foi de-
cidido por unanimidade que o abate religioso é constitucional. Sendo
assim, a decisão tomada deve ser praticada e respeitada por todo o
sistema judiciário brasileiro.

É importante destacar que durante o período de julgamento mui-


tos foram os movimentos empreendidos entre os afro-religiosos para
que os seus direitos de ritos e crença fossem respeitados, conforme é

S U M Á R IO 122
garantido na Constituição. Além disso, é relevante ressaltar o notável
trabalho executado pelo advogado Hédio Silva Junior, que é doutor em
direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e atua preci-
puamente nas temáticas relacionadas a liberdade de crença, ações afir-
mativas, racismo, entre outras (SILVA JUNIOR, 2018), o qual realizou um
importante trabalho como advogado das religiões afro-brasileiras nesse
julgamento em defesa dos direitos dos povos de terreiro (BARBA, 2020).

Andréa Letícia Carvalho Guimarães (2019) ressaltou a necessida-


de de se realizar uma análise acerca do julgamento do abate religioso
desenvolvido pelas religiões afro-brasileiras no STF, pois segundo ela:
Primeiramente, questionam-se as razões pelas quais apenas
o abate religioso, prática alimentar ancestral das tradições
afro-brasileiras (animais são abatidos para consumo da car-
ne), estar sendo avaliado, sendo que inúmeras outras religiões
também praticam o sacrifício de animais em suas ritualísticas.
Não seria o próprio julgamento a representação de como as
religiões afro-brasileiras têm sido perseguidas, discriminadas
e violentadas? Segundo, a existência de um julgamento sobre
essas práticas denuncia a continuidade da repressão histórica
vivenciada pelos cultos afro-brasileiros, alimentando a ideia de
que tudo aquilo que representa essas religiões precisa ser ex-
tinto/proibido, pois, consideram, discriminatoriamente, tratar-se
de práticas “bárbaras”, alheias à modernidade, representando
o atraso civilizatório e estando contra o progresso da nação.
Terceiro, o julgamento confirma o grande engano de que as prá-
ticas tradicionais afro-brasileiras para serem legítimas precisam
de “autorização” para serem vivenciadas. Estão novamente sob
o julgo das “autoridades” (brancas, cristãs, masculinas), como
ocorria na década de 1940, em que precisavam de registro nas
Delegacias de Bons Costumes para que pudessem ser pratica-
das (GUIMARÃES, 2019, p. 96).

A audiência acerca da prática do abate religioso expôs toda


essa conjuntura, e por mais contraditório que pareça um tribunal ter
que decidir se uma atividade religiosa é ou não legal, essa sentença é
um símbolo por mostrar o modo como o preconceito contra as práticas

S U M Á R IO 123
religiosas afro-brasileiras persistem e a necessidade da luta diária para
fazer valer os direitos estabelecidos por lei.

Posto isto, se analisamos as leis apresentadas que tinham como


objetivo o impedimento da prática do abate religioso veremos o racismo
na sua forma institucionalizada que é quando o racismo já faz parte do fun-
cionamento das instituições, e vai agir de maneira que promova, mesmo
que indiretamente, desigualdades e vantagens fundamentado na raça.

Para Silvio Almeida (2019), o racismo é sempre estrutural, pois


se trata de um componente que atinge o sistema econômico e político
da sociedade. Nesse sentido, o racismo é uma manifestação normal
do corpo social, e não um comportamento anormal. O racismo é um
elemento que viabiliza a lógica, o propósito e a técnica para a reprodu-
ção dos moldes de desigualdade social e crueldades que desenham
a vida social contemporânea (ALMEIDA, 2019).

Além disso, segundo Almeida (2019), as instituições são os mo-


delos de instrução, costumes e ordenação de conduta que tanto dire-
cionam a ação social, como a fazem possível. Portanto, é no bojo das
normas institucionais que as pessoas passam a ser sujeitos, uma vez
que as suas atitudes e práticas são colocadas em um agrupamento de
conceitos previamente determinados pelo arranjo social. Desse modo,
as instituições talham a conduta do ser humano, seja a partir das suas
decisões, da sua racionalidade, bem como acerca dos seus sentimen-
tos e interesses (ALMEIDA, 2019).

Destarte, se tudo isso faz parte das instituições, os conflitos ra-


ciais também estão presentes, sobretudo, porque as instituições são do-
minadas por certos grupos raciais que usam dispositivos institucionais
para sobrepor as suas preferências culturais, políticas e econômicas. E
quando se trata do racismo institucional com as religiões afro-brasileiras,
o controle por parte desses grupos estabelece critérios discriminatórios
embasados na raça, que auxiliam na conservação da supremacia do
grupo racial que ocupa esse espaço de poder (ALMEIDA, 2019).

S U M Á R IO 124
Então, ao examinarmos os projetos de leis mencionados nesta
pesquisa que foram apresentados, principalmente, por pessoas bran-
cas, heterossexuais e nomeadamente cristãos, estamos nos deparan-
do com o racismo institucional, pois esses sujeitos almejavam impor
os seus interesses acima dos outros sujeitos que compõem a socie-
dade, essencialmente porque consideram apenas a sua crença como
padrão. Dessa maneira, o propósito deste tópico é o de gerar uma
reflexão acerca das maneiras com as quais o racismo se transmuta na
nossa sociedade, que não deixa de possuir a sua principal essência
que é a de estigmatizar a população negra, seus hábitos e costumes.

O ABATE RELIGIOSO
NAS CASAS DE CANDOMBLÉ:
BOA VISTA/RR E PELOTAS/RS

Neste tópico, apresentaremos o trabalho de campo empreendi-


do durante o contexto pandêmico de COVID-19 no ano de 2021. Reali-
zamos três entrevistas com sacerdotes candomblecistas, dois em Boa
Vista/RS e uma em Pelotas/RS. Devido aos protocolos de seguran-
ça, as entrevistas ocorreram via plataforma Google Meet e WhatsApp,
não sendo possível a visita aos terreiros. Por outro lado, tal contexto
nos possibilitou o contato com a Mãe Michele em Pelotas, e trazer o
olhar de uma pessoa que viu de perto toda a movimentação da região
quando levantada a pauta da legalidade da prática do abate religioso.
Temos ciência de que essas entrevistas não refletem a totalidade das
religiões onde os terreiros se localizam, contudo elas fornecem ele-
mentos para compreender a religião e como ela se desenvolve em dois
contextos distintos, Boa Vista/RR e Pelotas/RS.

Foram entrevistados um Pai e uma Mãe de Santo da cidade de


Boa Vista/RR sendo eles: Carlos Alberto de Souza Fournier, conhecido

S U M Á R IO 125
Pai Bokulê, cuja Nação da sua casa é Angola e chama-se Ábassá D’An-
gola Táta Bokulê; Vera Aparecida, conhecida como Mãe Vera Ifaseyí, sua
casa possui o nome de Ilê Ase D’Osossi. A Mãe de Santo de Pelotas/RS
chama-se Jaqueline Michele Larré Guterres, cujo nome religioso é Mãe
Michele de Oxum, e sua casa se chama Nossa Senhora da Conceição
e Divino Espirito Santo.

Ademais, destacamos a receptividade e interesse demonstra-


do por todos os entrevistados em contribuir para a construção da
pesquisa. Isso ocorreu, sobretudo, em razão deles serem bastante
ativos nos debates que envolvem a religião de matriz africana e afro-
-brasileira, bem como na sua ocupação, participação e expansão nos
espaços de saberes nas universidades. Desse modo, não enfrenta-
mos dificuldades e nem entraves ao contatá-los. Muito pelo contrário,
fomos muito bem acolhidas.

Salientamos essa abertura da parte deles, posto que a temá-


tica não é muito abordada, pois a prática do abate religioso ainda é
vista, via de regra, como um tabu pela sociedade e, apesar disso, os
entrevistados – como líderes religiosos – se puseram a contribuir e a
compartilhar os seus saberes. Outrossim, enfatizamos que as entre-
vistas foram realizadas de modo online. Conforme mencionamos ante-
riormente não participamos de celebrações ordinárias e extraordinárias
nos terreiros em razão da pandemia.

Nessa perspectiva, perguntamos sobre a importância do aba-


te religioso para a religião. Os três sacerdotes consideram o abate
religioso como uma prática essencial para o exercício da religião e
principalmente harmonização da casa com o seu lado espiritual, e
que por se tratar de uma prática de sacralização do animal não são
praticados nenhum tipo de maus tratos ou violência que provoque
sofrimento. O abate possui a finalidade de agradecer e ofertar aos
Orixás, de modo que renove a conexão entre eles e o terreiro. Além
disso, o abate religioso constitui uma forma de alimentação dentro

S U M Á R IO 126
desses espaços, uma vez que é algo que vai ser compartilhado em
formato de refeição por todos que fazem parte do terreiro. Nas pala-
vras dos sacerdotes entrevistas:
Pai Bokulê:

Na verdade, é o que nós chamamos de imolação, ao invés de


abate nós consideramos como imolação, imolar, consagrar. Nós
entendemos que o sangue... ele é a renovação da força, a vida,
então quando nós imolamos os animais no nosso culto é para
que a gente possa ter a força e fazer novamente aquela co-
munhão de fé com o sagrado. Lembrando que esses animais
não são jogados fora, eles ficam dentro da comunidade de ma-
triz africana para servir de alimento para toda a comunidade. É
como se fosse antigamente, onde se faziam as caçadas, ma-
tavam-se os animais e traziam esses animais para dentro da
aldeia para servir de alimento, então nós aproveitamos já que
será realizado o abate para as festas, para alimentar a aldeia,
por que não fazer um ritual? Imolando aquele animal, mas com
toda a religiosidade que ele merece, com todo o respeito, com
todo o ritual sacerdócio que a gente faz essa imolação. Então,
aquele animal, ele é consagrado, ele é respeitado, tanto que
ele morre rapidamente para não sofrer, não sentir nenhuma dor.
Nós fazemos um ritual dedicado aquele Inquice, aquele Orixá,
aquele Vodun do qual nós estamos fazendo a festa, e aquele
animal é um animal sagrado. Então é nisso que consiste, é a
força a troca de energia que nós vamos ter com o sangue do
animal, dedicado a aquele nosso Orixá, nosso Inquice e aque-
le sangue retornando em energia positiva para nós e a carne
daquele animal alimentando toda a nossa comunidade, toda a
nossa aldeia (Entrevista Pai Bokulê concedida em 22/07/2021).

Mãe Vera:

Na religião de Matriz Africana, a prática de sacrifícios de animais


é comum... alimentamos nossos ancestrais em agradecimento
por alguma graça concedida ou por ser o que o nosso sagrado
pede para que possam nos fortalecer em nossos caminhos. Es-
sas práticas vieram nas bagagens dos africanos, como prática
religiosa (Entrevista Mãe Vera concedida em 03/08/2021).

S U M Á R IO 127
Mãe Michele:

Nós não consideramos um abate, nós consideramos uma ofe-


renda ao Orixá, porque o Orixá se alimenta do sangue que nós
chamamos de axorô124, ele se alimenta da energia vital do animal.
É... depois é usado a cabeça, as patas que vai para dentro do
quarto de santo, a genitália do animal também se for o macho é
os testículos, se for a fêmea são os peitos, as tetas da fêmea. A
parte de dentro do animal são separadas, o coração, o fígado e
os rins que é feito o pirão, uma comida que se oferenda ao Orixá
e o filho também come essa comida, e a carne consumimos e
o couro ele também é usado para fazer o tambor, é o couro do
tambor, então na verdade tudo é usado para essa oferenda, tudo
é dentro da religião no caso. As únicas coisas que são despa-
chadas são as vísceras, as tripas que não se usa, então assim,
é uma oferenda. O abate frigorífico, não sei se tu já viste ou
sabes como é que funciona, que a vaca mesmo eles matam
com um choque elétrico, geralmente quando as vacas entram
dentro do abatedouro elas choram, é todo um sofrimento. E
nós tem todo um ritual de preparo até levar o animal na porta
do quarto de santo e ele não fica se debatendo nem nada, o
Orixá consegue acalmar o animal e ali se faz o corte e é onde
banha a pessoa com o axorô, então para nós é uma oferen-
da que é consumida tanto por nós enquanto filhos da casa,
quanto para o Orixá, é assim que nós vimos (Entrevista Mãe
Michele concedida em 03/08/2021, grifo nosso).

Podemos perceber que os três entrevistados possuem em co-


mum a questão do tratamento dado ao animal, evidenciando a maneira
com que é entendida a prática do abate – inclusive, nem é entendido
como abate, mas sim como uma oferenda aos Orixás. Desse modo,
todos os procedimentos são feitos partindo de fundamentos religiosos,
que valorizam o bem-estar do animal e que prezam para que tudo
ocorra de forma respeitosa. Além do mais, um outro aspecto em co-
mum é a questão de que o animal abatido converte-se em alimento
para todos que frequentam a casa. Dessa maneira, nenhuma das suas
partes é desperdiçada.
124 Axorô é uma palavra de origem Iorubá utilizada no Candomblé que se refere ao sangue
retirado dos animais imolados.

S U M Á R IO 128
A realização do abate é algo que varia entre os terreiros. Cada
um possui autonomia para decidir a maneira com que deseja operar,
mas em sua maioria o abate é feito pelos Ogãs, acompanhados do Pai
ou Mãe de Santo. Também existem aqueles que são praticados apenas
pelo Pai ou Mãe de Santo. Em se tratando da figura do Ogã, segundo
Alexandre Pereira dos Santos (2018), ele não está apenas encarregado
dos toques dos atabaques, podendo desempenhar outras funções,
sendo uma delas os abates religiosos. Nos relatos de Pai Bokulê, no
que concerne às pessoas responsáveis pela efetuação do abate:
Pai Bokulê:

Nós temos pessoas que são preparadas dentro do terreiro para


fazer essa imolação, ou seja, os Ogãs, os Tatás, os Ogãs de
corte que são preparados justamente para fazer esse abate.
Reza-se primeiro, ele conhece todas as rezas necessárias para
acalmar o animal, para ajeitar para que essa morte não seja um
sacrifício como se diz não, essa morte é uma troca de energia,
tanto que o animal não sente nada, é uma morte rápida, é um
movimento rápido para que essa energia seja trocada que a
gente não pode perder energia. Então nessa troca de energia
esses Ogãs, esses Tatás são preparados para que eles sejam
os Ogãs do corte, da imolação para que aquela carne seja con-
sagrada para a aldeia toda, para que ela sirva de prosperidade,
de fartura para toda a comunidade (Entrevista Pai Bokulê con-
cedida em 22/07/2021).

Yannick Yves Andrade Robert (2008) destaca que esta prática


possui princípios seculares, e que o sacrifício é um elemento
essencial para essas religiões, pois representa a sua base. Além
disso, de acordo com o mesmo autor, atualmente são utilizados
animais domesticados ou que foram criados para este fim, e
enquanto o animal estiver vivo no terreiro ele não pode sofrer
nenhum tipo de violência. Ele é tido como sagrado, uma vez
que será oferendado ao Orixá. Nos relatos dos entrevistados,
os animais empregados nessa ritualística são:

Pai Bokulê:

Normalmente... é porque nós estamos fora da África, né? Se


estivesse em África seria uns outros tipos de animais, empala,

S U M Á R IO 129
outros animais selvagens que a gente poderia usar, até búfalos.
Como nós aqui no Brasil não temos tanta diversidade, comu-
mente nós usamos cabritos, a cabra, os carneiros, as galinhas,
os galos, pato, a galinha da Angola que é a picote. Então, são
esses bichos e animais que são consagrados, e parece brinca-
deira que são comumente a alimentação da população brasilei-
ra (Entrevista Pai Bokulê concedida em 22/07/2021).

Mãe Vera:

Os bodes, galinhas, coelhos, pombos... O que o Òrìsà pedir,


não temos dificuldades nenhuma em achá-los, porque existem
mercados específicos com permissão de vendê-los para este
fim. Seja em Manaus, Rio de Janeiro, São Paulo... entre vários
outros estados, de modo que não é um comércio clandestino
(Entrevista Mãe Vera concedida em 03/08/2021).

Mãe Michele:

Utilizamos cabrito macho, cabrita fêmea, ovelha, carneiro, leitão


macho e a leitoa... Galinha, galo e pombo também, é que eu
estava dentro da questão de quatro pé, a questão do Orixá é
assim, e na questão do Exu na minha casa também se mata
galo, galinha para Exu e se mata boi para Exu. O que distingue
a minha Quimbanda125, o que eu cultuo e que distingue da parte
do Orixá é que o Exu não come pombo e ele não come nem
cabrito, nem cabrita, nem ovelha, nem porco, aí ele come boi,
e come galo e galinha... Assim, tem várias Quimbandas que
matam cabrito e cabrita, não é errado, eu tô falando do meu
fundamento que é o que eu faço dentro da minha casa. E o
boi é a mesma coisa, é usado tudo, tudo, igual ao do santo, e
a carne como é muita carne nós usamos uma parte da carne
para a festa que é aí nós fazemos um churrasco para o povo
e para os filhos da casa e depois o que sobra do boi é divido
para os filhos porque é muita carne, não se consome no dia.
Então é feito tipo “ah tem trinta filhos, vamos fazer trinta sacolas
com carne para as pessoas levarem para casa” e podem comer
como alimento para suas famílias (Entrevista Mãe Michele con-
cedida em 03/08/2021).

125 É um segmento religioso de origem afro-brasileira que difere da Umbanda e do Candom-


blé, pois trabalha mais com Exus e Pomba Giras.

S U M Á R IO 130
Como demonstram os depoimentos, os animais que fazem par-
te dessa ritualística, em sua maioria estão presentes na alimentação
de muitos brasileiros: o bode, a galinha, o caneiro etc. Além disso, a
comercialização desses animais é legalizada, uma vez que eles serão
abatidos e consumidos, o que é comum inclusive para pessoas que
não são adeptas do Candomblé.

Posto isto, a sacralização desses animais é algo fundamental


para a relação de troca entre os homens e as divindades. Cada Orixá
dispõe de particularidades próprias. Segundo Janaina Couvo Teixeira
Maia de Aguiar (2012), no Candomblé os deuses se alimentam, e cada
um possui a sua comida, algum prato de sua preferência. Além disso,
os seus rituais apresentam uma ligação com o alimento. Tudo que en-
volve o Candomblé é baseado em comidas. Dessa forma, de acordo
com os entrevistados, o abate ritual representa:
Pai Bokulê:

É o respeito que você tem pela vida, quando você usa o sangue
do animal para os nossos sacrifícios, né? Você está fazendo a
renovação da vida, é uma representatividade da vida, o Orixá
é vida, a natureza é vida. Então ao invés de você estar fazen-
do uma maldade com o animal, uma perversidade, não, você
está dedicando aquela imolação para o Orixá transformando
em energia, volto a dizer, em energia positiva e trazendo ele em
forma de alimento sacro porque ele foi dedicado ao Orixá, ele
foi benzido, ele foi agradecido. E aí esse retorno para a gente é
a fartura da comunidade, essa é a grande importância, a grande
importância é a vida, a troca da energia da natureza com a pró-
pria natureza (Entrevista Pai Bokulê concedida em 22/07/2021).

Mãe Vera:

Para qualquer Comunidade Candomblecista representa asè


que é igual saúde, caminhos abertos para muita gente, como
também emprego, êxito em estudos, concursos como já foi dito.
Também representa comida na mesa de muita gente que vive
entorno de um terreiro. “Na minha terra é assim “, pois quando
se tem muita dessas carnes, temos a obrigação ou o hábito de

S U M Á R IO 131
distribui-las na vizinhança e entre os filhos da casa (Entrevista
Mãe Vera concedida em 03/08/2021).

Mãe Michele:

Ela significa alimentar o Orixá para que possamos nos manter


bem espiritualmente como eu te disse, o equilíbrio material, toda
vez que é realizada essa prática a gente está oferendando ao
Orixá para alguma coisa, por uma troca de saúde ou para agra-
decer, para manter a estabilidade, para se fortalecer porque a
gente precisa se fortalecer. Quando a gente faz uma obrigação,
a gente está se fortalecendo espiritualmente e o prazo máximo
para se fazer essa obrigação dos quatro pés, que vai o quatro
pé, vai as aves, vai o pombo, são um intervalo de quatro anos,
mas geralmente o pessoal faz assim em três anos, três anos e
meio e já faz para não ter a função de passar dos quatro anos
que é o prazo máximo. Eu como sou a dona da casa, eu traba-
lho muito pela religião porque vivo pela religião, eu não trabalho
fora em outro lugar, eu faço uma vez por ano porque eu tenho
que estar fortalecida para poder dar os resultados dos traba-
lhos, para os Orixás sempre me manterem estabilizada para
que eu possa trabalhar para as outras pessoas (Entrevista Mãe
Michele concedida em 03/08/2021).

Notamos que o simbolismo que envolve o ato de oferendar está


associado a todo um encadeamento elaborado e fundamentado em
uma incumbência centralizada em três pontos: o ofertar, o receber e o
recompensar. Para Aguiar (2012), é por meio dessa ritualística de ofe-
rendas aos Orixás é que é constituído o contato entre os religiosos e
as divindades, o corpo social religioso e seus deuses protetores. Além
disso, esses rituais também se transformam em eventos de sociali-
zação por meio da comida. Então, a ação de compartilhar a comida,
dividir, também é uma prática de sociabilização.

Diante do exposto, é extremamente importante ressaltar que o


principal fator que dificulta a liberdade religiosa em sua integridade para
as religiões de matriz africana e afro-brasileiras, nomeadamente o abate
religioso, é a discriminação e o preconceito, ou seja, o racismo religioso.

S U M Á R IO 132
Este acontece, basicamente, em razão da falta de conhecimento acerca
da história da cultura afro-brasileira e africana, o que acaba corroboran-
do para que os conceitos criados no senso comum sejam difundidos
como se fossem verdadeiros, gerando assim entendimentos falsos a
respeito dessa cultura, e especialmente sobre as suas práticas.

CONCLUSÃO

A liberdade religiosa garante que todos pratiquem e exerçam os


seus ritos e crenças, de forma que não haja regras e limitações desde
que estejam dentro desse conceito de liberdade. Portanto, é impres-
cindível que as pessoas e comunidades de terreiro tenham consciên-
cia disso para que não se vejam obrigadas a praticar os seus ritos
como se estivessem fazendo algo errado, algo que precise ser feito às
escondidas. As demais religiões não funcionam assim. Constantemen-
te temos pessoas batendo a nossa porta para distribuir panfletos de
diversas igrejas. Somos abordados nas ruas por pessoas que querem
pregar a palavra de Deus. Inúmeras são as situações. Temos, inclusive,
uma marcha para Jesus em um país laico e isso é entendido como na-
tural e financiado, pelo menos em parte, com dinheiro público. Então,
por que as religiões de matriz africana e afro-brasileiras também não
podem realizar as suas convenções?

A liberdade religiosa possibilita o exercício da crença, a sua ma-


nifestação através de cultos e liturgias e a estruturação de acordo com
os seus princípios religiosos. Segundo a Constituição Federal, em con-
formidade com seu art. 5º, inciso VI, é atestado que todos os brasileiros
professem a sua religião conforme desejarem, sem que haja quaisquer
atos discriminatórios ou constrangimentos. Entretanto, a liberdade reli-
giosa das religiões de matriz africana e afro-brasileiras foi questionada,
sendo então levada para ser discutida pela maior instituição do poder

S U M Á R IO 133
judiciário brasileiro o STF, o que movimentou bastante os povos de
terreiro e por fim resultou em uma decisão positiva: o reconhecimento
legal e judicial do direito ao abate religioso para as religiões de matriz
africana e afro-brasileiras.

Não obstante o estabelecimento da Lei n. 12.131, de 2004


(Código Estadual de Proteção aos Animais do Rio Grande do Sul),
posteriormente julgada constitucional pelo STF em 2019, não há um
sentimento de garantia e estabilidade para o exercício das ritualísticas
dos povos de terreiros. Persiste a sensação de insegurança. Ademais,
é importante questionar como tais leis são formuladas seguindo o im-
perativo de não constranger as religiões hegemônicas no nosso país,
exigindo que as outras se moldem ao que elas consideram adequado.
É de extrema relevância discutir as circunstâncias do surgimento de
leis que busquem impossibilitar a prática de um segmento religioso
que historicamente sofreu diversas criminalizações e perseguições.

Qualquer forma de constrangimento cometido contra as reli-


giões de matriz africana e afro brasileiras é e deve ser entendido como
racismo religioso. Como ressaltaram Nathália Vince Esgalha Fernan-
des e Clara Jane Costa Adad (2017), as religiões de matriz africana e
afro-brasileiras são alvos de violências e negligências em virtude das
suas origens negras. Sendo assim, esses atos praticados, bem como
os projetos de lei citados contra esse segmento religioso, estão funda-
mentados em ideais e condutas racistas.

Finalmente, esse capítulo buscou lançar luz sobre uma temáti-


ca pouco tratada em trabalhos acadêmicos, o abate ritual nas casas
de Candomblé, apesar das religiões afro-brasileiras serem recorrente-
mente objeto de pesquisa das mais diversas áreas. Nosso intuito foi
mostrar como os ataques às religiões afro-brasileiras, em especial o
abate, são essencialmente movidos mais pela questão racial, o racis-
mo e o racismo religioso, do que uma verdadeira preocupação com

S U M Á R IO 134
os animais imolados. Nessa perspectiva, esperamos que a pesquisa
levante questões e debates para investigações em curso e futuras.

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S U M Á R IO 137
Laureados,
5
Clarissa Adjuto Ulhoa

contemplados,
notificados
ou intimados?
Poderes públicos
e centros de umbanda a partir
do diário oficial do município
de Goiânia, Goiás (1960-1990)
DOI: 10.31560/pimentacultural/2022.94852.5
INTRODUÇÃO

Durante a pesquisa que desenvolvi do mestrado encontrei no


arquivo da Polícia Civil do Estado de Goiás um documento de registro
em nome do Centro Espírita Rei Ganga, datado do ano de 1983. Na-
quele pequeno papel retangular constavam dados tais como o nome
de quem provavelmente respondia pelo centro, o endereço em que o
mesmo se situava, bem como uma série de datas que se estendem de
janeiro a dezembro daquele ano. Em um primeiro momento, sugeri que
estava diante de uma espécie de controle mantido pela polícia, parte
integrante dos mecanismos de controle que se estabeleciam sobre
comunidades religiosas afro-brasileiras da capital. Naquele momento
não mergulhei realmente nas possibilidades que o documento apon-
tava, mas entendia que poderia depois retornar ao assunto com mais
calma e com outros olhos. Recentemente, em conversa com um ami-
go me lembrei do documento e, ao contar um pouco a respeito das
hipóteses que aventei na época, recebi o seguinte conselho: procure
pelo centro no site do Diário Oficial do Município de Goiânia (DOM)126.

Foi exatamente dessa maneira que acabei me deparando com


uma quantidade relevante de referências aos mais distintos centros de
umbanda goianienses, os quais aparecem contemplados no DOM de
pelo menos três formas: a) centros que receberam a declaração de
entidade de utilidade pública; b) centros que receberam subvenções
ou isenção de imposto; e c) centros que receberam notificações ou
intimações. Depois que terminei a leitura das publicações, uma sé-
rie de perguntas se suscitaram, mas especialmente uma prosseguiu
como a principal orientadora da análise: o que os dados presentes no
DOM podem apontar sobre as estratégias dos poderes públicos mu-
nicipais ao lidarem com as comunidades religiosas afro-brasileiras em

126 O Diário Oficial do Município de Goiânia começou a ser publicado no ano de 1960.

S U M Á R IO 139
Goiânia? Buscando respostas possíveis, construo um percurso inves-
tigativo inicial, ao longo do qual conto um pouco a respeito do que sei
e um tanto sobre o que não sei ainda.

No primeiro tópico, proponho que os centros de umbanda, ao


receberem o reconhecimento como entidade de utilidade pública, não
necessariamente seriam também contemplados com formas de incen-
tivos como os fiscais, o que sugere uma estratégia em que se laureia
como forma de ganhar simpatia, mas sem realmente se comprometer
com a comunidade. Já no segundo tópico, construo hipóteses quanto
aos motivos que contribuíram para que centros de umbanda apareces-
sem no DOM intimados a pagarem multas aos cofres públicos, assim
como aponto a possível conexão com documentos de registro tais como
o encontrado no arquivo da polícia. No terceiro e último tópico, aponto
os aspectos suscitados pela leitura das fontes que abrem possibilidades
para se investigar como os centros de umbanda da capital se percebe-
ram inseridos no contexto mais amplo da ditadura civil-militar brasileira.

Baseada em entrevistas com o primeiro presidente da Federa-


ção de Umbanda do Estado de Goiás (FUEGO), observo que um dos
motivos que impulsionou a abertura da entidade no ano de 1969 teria
sido exatamente a necessidade de os centros se resguardarem perante
a polícia no período ditatorial (NOGUEIRA, 2009; ULHOA, 2011). Nesse
sentido, se empenharam para que todos os centros de umbanda fede-
rados possuíssem um documento de registro emitido pela FUEGO, por
exemplo, o que podia atenuar possíveis problemas se acabassem in-
quiridos pela polícia. Mas, ao mesmo tempo, o segundo presidente da
entidade procurou alianças com políticos, um deles representante dos
quadros da ditadura (ARAUJO, 2020). Portanto, se em outras partes
do país se estabelecia uma proximidade entre representantes dos po-
deres municipais e determinados centros de umbanda durante a dita-
dura (NEGRÃO, 1996), em Goiânia um cenário semelhante se delineia.
Entendo, portanto, que os dados encontrados no DOM possuem o
potencial de justamente apontar algumas das particularidades locais.

S U M Á R IO 140
CENTROS DE UMBANDA COMO
ENTIDADES DE UTILIDADE PÚBLICA:
INTERESSANTE POR QUÊ E PARA QUEM?

Em pesquisa no arquivo on-line do Diário Oficial do Município de


Goiânia (DOM) foi possível perceber que entre os anos de 1960 e 1990
um total de dezesseis centros e associações de umbanda receberam
a declaração de utilidade pública (quadro 1). Para a busca, usei os
termos: a) espírita; b) umbanda; c) candomblé; d) omolocô; e) jurema;
f) terreiro; g) ilê axé. Dentre tais termos, apenas os dois primeiros in-
dicaram resultados nas páginas do DOM, o que aponta que a quase
totalidade das entidades encontradas nos documentos consistem em
centros ou associações de umbanda, dado que também se respal-
da em pesquisas acadêmicas sobre as religiões afro-brasileiras em
Goiânia. Dentre as entidades elencadas, só o Centro de Umbanda Pae
Tomaz e a Academia Federal Superior de Umbanda Esotérica Espiri-
tualista não são mencionados em pelo menos uma dessas pesquisas
(NOGUEIRA, 2009; ARAUJO, 2020).

S U M Á R IO 141
Quadro 1 – Nome e endereço dos centros de umbanda
declarados como entidades de utilidade pública em goiânia

Nome do centro Endereço


1 Centro de Umbanda Pae Tomaz Não consta
2 Tenda de Umbanda Santo Antônio Não consta
3 Tenda Espírita Pai José R. 217, N. 31, Vila Nova
4 Centro Espírita Mãe Iemanjá Não consta
5 Centro Espírita Pai Joaquim Não consta
6 Centro Espírita de Umbanda São Pedro Xangô Não consta
7 Centro Espírita Cabana de Ogum de Nagô R. 205, N. 521
8 Federação Umbandista do Estado de Goiás Não consta
9 Tenda de Umbanda Pai Sete Serras (I) Não consta
10 Tujupar de Xangô Xapanã R. 40, N. 291, Fama
11 Academia Federal Superior de Não consta
Umbanda Esotérica Espiritualista
12 Centro Espírita Caboclo Beira Mar Não consta
13 Centro Espírita Anjo Ismael Não consta
14 Tenda de Umbanda Pai Sete Serras (II) Não consta
15 Tenda Espírita São Sebastião Não consta
16 Centro Espírita Ogum Beira Mar no Amor e Caminho da Luz Não consta
17 Centro Espírita Ogum Yara Não consta
Fonte: Diário Oficial do Município de Goiânia (1960-1990).

Eriberto Francisco Marin (1995), fundamentado nos pressupostos


do direito constitucional, escreve que a ideia de utilidade pública consis-
te em uma influência do direito francês, tendo sido primeiramente regula-
mentada pela Lei nº 91, de 18 de agosto de 1935, e depois acrescida do
Decreto nº 50517, de 02 de maio de 1961. Em linhas gerais, a entidade
que recebe o estatuto de utilidade pública é aquela que tem reconhe-
cido seu papel de auxílio à sociedade, o que pode se dar no intuito de
cumprir finalidades das mais diversas: ensino, cultura, saúde, etc. Entre
os anos 1935 e 1961, a entidade que quisesse ser reconhecida como

S U M Á R IO 142
de utilidade pública precisava ter personalidade jurídica e estar em pleno
funcionamento, além de servir à coletividade de forma desinteressada.
Depois de 1961 outros requisitos foram acrescidos à lista:
a) que se constitui no país; b) que tem personalidade jurídica; c)
que esteve em efetivo e contínuo funcionamento, nos três anos
imediatamente anteriores, com a exata observância dos estatu-
tos; d) que não são remunerados, por qualquer forma, os cargos
de diretoria e que não distribui lucros, bonificações ou vantagens
a dirigentes, mantenedores ou associados, sob nenhuma forma
ou pretextos; e) que, comprovadamente, mediante a apresenta-
ção de relatórios circunstanciados dos três anos de exercícios an-
teriores à formulação do pedido, promove a educação ou exerce
atividades de pesquisas científicas, de cultura, inclusive artísticas,
ou filantrópicas, estas de caráter geral ou indiscriminado, predo-
minantemente; f) que seus diretores possuem folha corrida e mo-
ralidade comprovada; g) que se obriga a publicar, anualmente, a
demonstração da receita e despesa realizadas no período ante-
rior, desde que contemplada com subvenção por parte da União,
neste mesmo período (BRASIL, 1961, s/p).

De acordo com o citado decreto, para que a entidade mantenha


o estatuto de utilidade pública será necessário que dê conta de algu-
mas obrigatoriedades, como, por exemplo, a de apresentar relatórios
anuais das atividades desenvolvidas. No entanto, conforme estabelece
a também mencionada lei, mais precisamente em seu artigo terceiro,
o fato de uma entidade ser reconhecida como de interesse público
não implica no recebimento de benefícios do Estado. Na prática, en-
tretanto, uma série de benefícios passaram a ser concedidos, posto o
interesse estatal na continuidade das atividades desempenhadas pe-
las entidades de interesse público, as quais acabam frequentemente
atuando em demandas que na realidade seriam de responsabilidade
do Estado. Dentre as contrapartidas passíveis de serem executadas
pelos diferentes entes federativos, a imunidade tributária e a isenção
fiscal são as mais conhecidas.

S U M Á R IO 143
São exemplos de favores: imunidade tributária das instituições
de educação ou de assistência social; isenções fiscais; isenção
da taxa de contribuição da cota patronal à previdência social;
dedutibilidade do imposto de renda das contribuições de pes-
soas físicas e jurídicas às entidades de utilidade pública; con-
cessão de subvenções; permissão para realização de sorteios;
possibilidades de receber doações da União e de suas autar-
quias; recebimentos de receitas provenientes da arrecadação
das loterias federais, etc. (MARIN, 1995, p. 45).

Passados mais de cinquenta anos desde que instituída aquela


primeira lei, seria publicada a Portaria nº 11, de 13 de junho de 1991, res-
ponsável por estabelecer oficialmente que o estatuto de utilidade pública
não mais seria encarado como mera honraria concedida a uma dada
entidade. Ficou compreendido, assim, que a cada ente federativo ca-
beria a responsabilidade de propor os termos e os critérios segundo os
quais as entidades receberiam a contrapartida estatal, iniciativa que já
tinha sido colocada em curso em diferentes municípios do país. No que
tange particularmente à Prefeitura de Goiânia, há quase duas décadas
foi instituída a lei nº 8123, de 11 de setembro de 2002, que, muito embo-
ra alterada por dispositivos posteriores, ainda dispõe das normas para
a declaração de utilidade pública das entidades civis da capital. Essa lei
reúne um total de quatro artigos, que apresentam o seguinte texto:
Art. 1º As sociedades civis, as associações e as fundações
constituídas no Município de Goiânia, com o fim exclusivo de
servir desinteressadamente à coletividade, podem ser decla-
radas de utilidade pública se provarem: a) que possuem per-
sonalidade jurídica; b) que estão em efetivo funcionamento e
servem desinteressadamente à coletividade, mediante atestado
expedido pelo órgão municipal de assistência social; ou pela
Secretaria Municipal de Trabalho, no caso de Associações e
Cooperativas Populares constituídas por pessoas em estado de
vulnerabilidade e hipossuficiência econômica, social e técnica;
ou pelo Conselho Municipal de Cultura de Goiânia, no caso de
entidades culturais, sem fins lucrativos, sediadas no Município
de Goiânia, com mais de 02 (dois) anos de comprovação de
atividade cultural e artística e que atendam pelo menos um dos

S U M Á R IO 144
itens do art. 3º da lei 7.957/2000; ou pelo Conselho Municipal
de Esporte e Lazer de Goiânia, no caso de entidades espor-
tivas, sem fins lucrativos, sediadas no Município de Goiânia,
com mais de 02 (dois) anos de comprovação de atividades de
incentivo ao esporte e lazer, e que atendam a pelo menos um
dos itens do art. 43 da Lei Complementar 203/2010. (Redação
conferida pelo art. 1º da Lei nº 10.034, de 19 de maio de 2017.)
c) que os cargos de sua diretoria não são remunerados, exceto
no caso de associações assistenciais ou fundações, sem fins
lucrativos, cujos dirigentes poderão ser remunerados, desde
que atuem efetivamente na gestão executiva, respeitados como
limites máximos os valores praticados pelo mercado na região
correspondente à sua área de atuação, os quais deverão ser
fixados pelo órgão de deliberação superior da entidade, regis-
trados em ata, com comunicação ao Ministério Público, no caso
das fundações. (Redação dada pela Lei nº 10.617, de 2021.)
Art. 2º A declaração de utilidade pública será feita por Lei ema-
nada do Poder Legislativo Municipal, ao qual compete a verifi-
cação do cumprimento dos requisitos estabelecidos no artigo
anterior. Art. 3º Será cassada a declaração de utilidade pública
da sociedade, associação ou fundação quando esta deixar de
cumprir os requisitos estabelecidos no art. 1º desta Lei, ou se
envolver em movimentos ou atividades contrários à ordem, ao
regime e às leis vigentes no País. Art. 4º Esta Lei entrará em
vigor na data de sua publicação, revogando as disposições em
contrário (GOIÂNIA, 2002, s/p).

É importante dar destaque ao fato de que a supracitada lei de-


termina que a partir de 2002 passaria a ser do poder legislativo munici-
pal a responsabilidade de não apenas publicar o dispositivo legal que
regulamenta a concessão da declaração de utilidade pública, como
também observar se estão sendo cumpridos os requisitos necessários
à sua manutenção. Mas, como era antes daquele ano? Em minhas
buscas não consegui encontrar leis ou decretos municipais que tratas-
sem da declaração de utilidade pública em períodos anteriores a 2002.
No entanto, creio que os mecanismos eram semelhantes aos que mais
tarde seriam estabelecidos, posto a necessidade de estarem em con-
sonância com a mencionada lei de 1935, que só será revogada em

S U M Á R IO 145
2015, bem como com o citado decreto de 1961. Há quem questione se
o fato de se legar a declaração de utilidade pública ao legislativo daria
abertura para projetos eleitoreiros, dada a possibilidade de a entidade
ter alguma contrapartida:
Questiona-se, pois, a concessão de título declaratório quando
decorrente de proposição do legislativo – geralmente, sem a ava-
liação rigorosa dos requisitos e utilizado para fins de agraciar plei-
tos políticos, isto é, a concessão para simpatizantes políticos. Por
essas razões, não há como negar que o executivo tem mais ins-
trumentos, principalmente quando organizado como um órgão
competente incumbido de tal função para melhor avaliar (pesar e
medir) o mérito do desinteresse e demais requisitos que devem
ser aferidos na apreciação da natureza do ato declaratório, bem
como no seu cumprimento regular (MARIN, 1995, p. 43).

E existem duas formas por meio das quais o processo de reco-


nhecimento de uma entidade como utilidade pública pode ser inicia-
do: “medida particular (através de um pedido da entidade) ou pública
(a declaração de ofício)” (MARIN, 1995, 44). Em todos os casos será
necessário, tal como indicado nos textos legais, que se comprove o
alcance social das atividades colocadas em prática pela entidade. Em
se tratando particularmente dos centros de umbanda, a prática da ca-
ridade tem papel central, em grande medida devido à influência kar-
decista. Inclusive, no âmbito de sua doutrina a caridade consiste em
aspecto determinante para que o indivíduo evolua. E, como a própria
ideia de caridade imediatamente nos denota, parece predominar o en-
tendimento de que não se pode solicitar nenhum pagamento àqueles
que buscam a umbanda, o que torna os seus centros entidades sem
fins lucrativos em potencial.

Leo Carrer Nogueira (2009), ao discutir o processo por meio


do qual a Federação Umbandista do Estado de Goiás (FUEGO) se
constitui no final dos anos 1960, mostra, entretanto, que a premissa
da gratuidade não era exatamente consensual entre os centros em
funcionamento no âmbito do estado. É possível notar nos registros

S U M Á R IO 146
em ata da entidade que os participantes se preocupavam com o fato
de que determinados umbandistas estariam cobrando pagamento em
troca dos atendimentos espirituais, realidade que na leitura de alguns
demandaria providências por parte da FUEGO. Desse modo, à enti-
dade aos poucos se atribui a incumbência de acompanhamento dos
centros, atitude que também acabaria por se estender a aspectos de
ordem ritual, tendo como consequência natural o surgimento de desa-
cordos entre os umbandistas. Inclusive, tais antagonismos em contex-
to local nada têm de originais ou exclusivos:
Tais preocupações condiziam com uma tendência do movimen-
to federativo em todo o país. Por ser uma religião que não apre-
senta um código doutrinário e ritualístico rígido e fixo, os presi-
dentes de centros e chefes de terreiros acabam tendo bastante
liberdade para ‘criar’ seu ritual da maneira que achar melhor.
Claro que na maioria das vezes os rituais são realizados tendo
como modelo outros rituais já existentes. Mas não é raro, por
exemplo, vermos a incorporação de outros elementos a este
ritual, como é o caso das religiões da Nova Era (...). E é exata-
mente com um sentimento de unificação desta religião, entre
outras coisas, que surgem as federações em todo o país (...).
Tais tentativas de padronização da ritualística umbandista, no
entanto, nunca vingaram dentro dos terreiros, que continuavam
realizando seus rituais dentro do que os líderes de terreiros e
pais de santo consideravam como sendo o correto. Por vezes
estas tentativas de padronização atendiam a necessidade de
moralizar os rituais umbandistas realizados, nos quais eram co-
muns, por exemplo, a cobrança dos serviços espiritais presta-
dos (...) (NOGUEIRA, 2009, p. 81-83).

Mesmo assim, os dados apontam que a FUEGO reuniu um nú-


mero relevante de centros filiados na capital em seu primeiro perío-
do de exercício, conforme atestam as fichas de registro da entidade.
Para serem assim considerados, os centros deveriam contribuir com
uma taxa mensal (NOGUEIRA, 2009), bem como participar dos en-
contros regulares do grupo. Feito isso, os novos membros recebiam,
pelo menos a partir de meados dos anos 1970, uma carteirinha de
filiados (ARAUJO, 2020). Daqueles quinze centros que receberam a

S U M Á R IO 147
declaração de utilidade pública entre os anos de 1960 e 1990, sete
constam na lista de filiados na década de 1970, enquanto outros dois
aparecem na lista de filiados na década de 1990 (quadro 2), sendo
importante ressaltar que não pude ter acesso aos registros dos anos
1980. Restam, assim, cinco centros que ou nunca se filiaram à entida-
de ou não constam nos registros que consegui consultar.

Quadro 2 – Centros de umbanda registrados na federação


umbandista de goiás nas décadas de 1970 e 1990

Período Nome do centro


1 Dec. 1970 Tenda de Umbanda Santo Antônio
2 Dec. 1990 Centro Espírita Pai Joaquim
3 Dec. 1970 Centro Espírita de Umbanda São Pedro Xangô
4 Dec. 1970 Centro Espírita Cabana de Ogum de Nagô
5 Dec. 1970 Tenda de Umbanda Pai Sete Serras
6 Dec. 1970 Tujupar de Xangô Xapanã
7 Dec. 1970 Centro Espírita Anjo Ismael
8 Dec. 1970 Centro Espírita Ogum Beira Mar no Amor e Caminho da Luz
9 Dec. 1990 Centro Espírita Ogum Yara

Fonte: ARAUJO, 2020, p. 428-458.

Portanto, entendendo que a maioria dos centros de umbanda


da cidade que adquiriram a declaração de utilidade pública se filiaram
em algum momento à FUEGO, existe a possibilidade da existência de
alguma relação entre tais processos. A partir daí, alguns questiona-
mentos surgem: seria parte das orientações da entidade a busca pelo
reconhecimento dos centros como de utilidade pública, ou ainda, te-
ria a FUEGO contatos políticos que pudessem de alguma maneira fo-
mentar a conquista desse estatuto? Nesse mesmo sentido, me parece
plausível supor que a insistência da FUEGO em garantir a gratuidade
dos trabalhos nos centros de umbanda não se explicasse apenas pelo
preciosismo doutrinário, mas também pela potencialidade que ativida-
des sem fins lucrativos representam na busca por maior inserção social

S U M Á R IO 148
e política. Sendo assim, considero relevante que a maior parte dos cen-
tros tenham se tornado de utilidade pública nos anos 1970 (quadro 3).

Quadro 3 – Data de publicação das leis que tornaram os centros de


umbanda entidades de utilidade pública e prefeitos signatários

Data de Nome do centro Lei Prefeito


publicação
1 01/07/1960 Centro de Umbanda Pae Tomaz 1677/60 Jaime Câmara
2 21/09/1961 Tenda de Umbanda Santo Antônio 1871/61 Hélio Seixo de Britto
3 14/01/1968 Centro Espírita Pai Joaquim 4089/68 Iris Rezende Machado
4 21/09/1970 Tenda Espírita Pai José 4369/70 Manoel dos Reis e Silva
5 20/07/1971 Centro Espírita Mãe Iemanjá 4462/71 Manoel dos Reis e Silva
6 12/10/1972 Centro Espírita de Umbanda 4621/72 Manoel dos Reis e Silva
São Pedro Xangô
7 22/11/1973 Centro Espírita Cabana 4798/73 Manoel dos Reis e Silva
de Ogum de Nagô
8 28/02/1974 Federação Umbandista 4838/74 Manoel dos Reis e Silva
do Estado de Goiás
9 04/04/1974 Tenda de Umbanda Pai 4843/74 Manoel dos Reis e Silva
Sete Serras (I)
10 04/11/1974 Tujupar de Xangô Xapanã 4934/74 Rubens Vieira Guerra
11 09/10/1978 Academia Federal Superior de 5407/78 Hélio Mauro
Umbanda Esotérica Espiritualista Umbelino Lobo
12 23/05/1978 Centro Espírita Caboclo Beira Mar 8484/78 Hélio Mauro
Umbelino Lobo
13 20/06/1978 Centro Espírita Anjo Ismael 5382/78 Hélio Mauro
Umbelino Lobo
14 18/03/1981 Tenda de Umbanda Pai 5751/81 Bráulio Afonso Morais
Sete Serras (II)
15 19/12/1984 Tenda Espírita São Sebastião 6230/84 Nion Albernaz
16 30/10/1989 Centro Espírita Ogum Beira Mar 6799/89 Nion Albernaz
no Amor e Caminho da Luz
17 29/08/1990 Centro Espírita Ogum Yara 6893/90 Nion Albernaz

Fonte: Diário Oficial do Município de Goiânia (1960-1990).

S U M Á R IO 149
Claudete Ribeiro de Araújo (2020), ao construir um panorama
das principais características da gestão dos primeiros presidentes da
FUEGO, explica que um dos ocupantes do cargo tomou como priori-
dade justamente a ampliação da inserção social e política dos centros
de Goiânia. Inclusive, procurava apresentar a umbanda para um públi-
co mais amplo sempre que possível, recorrendo sobretudo a eventos
de grande monta e evidência, por meio dos quais pretendia ganhar a
simpatia da classe política goianiense, sobretudo. Para tanto, instituiu
três departamentos distintos no âmbito da FUEGO, sendo um deles
inteiramente dedicado à parte social da entidade. Seu nome era Edson
Rodrigues Nunes e, de acordo com a autora, permaneceu no posto
entre os anos de 1972 e 1976. Embora reconhecido por alguns, nem
todos os membros da FUEGO coadunariam com suas táticas, o que
resultou em dissidências:
A diretoria de Edson Nunes também foi marcada por conflitos
internos. Ele sonhava e lutava por uma Umbanda no espaço pú-
blico, recebendo divisas governamentais e verbas para grandes
realizações públicas. Para isso, ele postulava a imagem de uma
Umbanda que tinha que ter presença no cenário político. Por
isso, fazer grandes eventos e conseguir novos membros para a
Umbanda que fossem das ‘altas classes e grandes autoridades’
era para ele prioridade (...). Tudo isso fez com que o presidente
anterior, Luís Salles, entregasse sua carta de exoneração para a
diretoria. Não queria mais continuar na Federação e alegou ‘mo-
tivos espirituais’. Sua perspectiva de finalidade da Federação
e sua orientação entre política e religião eram bem diferentes
(ARAÚJO, 2020, p. 107-108).

Para além das atividades da FUEGO, o presidente exerceu


mandato na Câmara Municipal de Goiânia entre 1973 e 1977, o que
naturalmente permitiu que contasse com um trânsito privilegiado na
capital, muito embora tenha dado mostras anteriores de seu relacio-
namento com políticos da cidade. No início de 1972 contou com a
participação do então prefeito de Goiânia, Manoel dos Reis e Silva, no
evento que inaugurou a nova sede da entidade, dando ao político a

S U M Á R IO 150
oportunidade de discursar e enaltecer a umbanda goianiense (ARAÚ-
JO, 2020). Diante disso, considero relevante salientar que dentre os
quinze centros de umbanda que se tornaram de utilidade pública entre
os anos de 1960 e 1990, seis no total seriam contemplados justa-
mente no período em que o citado prefeito se encontrava no poder.
É também o caso da própria FUEGO, que recebeu a declaração de
utilidade pública em fevereiro de 1974.

Portanto, posso concluir que a FUEGO desempenhou naquele


momento um papel ativo em prol do reconhecimento que o estatuto
de utilidade pública aparentemente representava. Entretanto, é im-
portante ressaltar que isso não apaga o fato de que muitos daqueles
centros realmente desempenhavam atividades gratuitas de atendi-
mento à comunidade. Entre os anos 1970 e 1990, os bairros em que
os centros de umbanda considerados de utilidade pública atuavam
eram habitados predominantemente por uma parcela da população
negligenciada pelo Estado (quadro 4), o que torna a continuidade
das mesmas algo conveniente para o poder público. No entanto, te-
nho dúvidas quanto ao retorno que os centros de umbanda recebiam
efetivamente ao serem reconhecidos como de utilidade pública, para
além, claro, da mera honraria protocolar, a qual parecia bastar para
parte da FUEGO dos anos 1970.

S U M Á R IO 151
Quadro 4 – Bairros onde se situam parte dos centros de umbanda
considerados de utilidade pública entre os anos de 1960 e 1990

Nome do centro Bairro


1 Tenda de Umbanda Santo Antônio Universitário
2 Tenda Espírita Pai José Vila Nova
3 Centro Espírita Pai Joaquim Jardim Novo Mundo
4 Centro Espírita de Umbanda São Pedro Xangô Sudoeste
5 Centro Espírita Cabana de Ogum de Nagô Vila Nova
6 Tenda de Umbanda Pai Sete Serras Vila João Vaz
7 Tujupar de Xangô Xapanã Fama
8 Centro Espírita Anjo Ismael Ferroviário
9 Centro Espírita Ogum Beira Mar no Amor e Caminho da Luz Sudoeste
10 Centro Espírita Ogum Yara Vila Rosa

Fonte: Diário Oficial do Município de Goiânia


(1960-1990) e ARAUJO, 2020, p. 428-458.

Em buscas nas páginas do DOM, mais precisamente aquelas


publicadas entre os anos de 1960 e 1990, pude notar que apenas
duas formas de incentivo foram oficialmente destinadas a centros de
umbanda em Goiânia: a isenção de imposto e a subvenção em di-
nheiro. Os dados sugerem que o reconhecimento da entidade como
de utilidade pública não era necessariamente um requisito para que o
recebimento de um determinado incentivo ocorresse, pois no caso de
mais de um dentre os centros de umbanda identificados o reconhe-
cimento como entidade pública só se daria anos depois da data em
que o recurso foi prometido ou concedido. Os dados também mos-
tram que tais formas de incentivo foram raramente dirigidas a centros
de umbanda da cidade, estando os casos circunscritos às décadas
de 1960 e 1970. Isto é, não encontrei nenhum registro nesse sentido
datado entre os anos de 1980 e 1990.

S U M Á R IO 152
Em se tratando da possibilidade de se tornar isento de impostos
municipais, apenas um único centro de umbanda aparece contem-
plado: o Centro Espírita Tenda Santo Antônio. Por meio da lei nº 1783,
de 04 de janeiro de 1961, o proprietário do terreno de funcionamento
daquele centro, Severiano Pereira Alves, adquire o direito de não mais
pagar os impostos do imóvel sito no bairro Vila Nova. Diante do nome
da entidade, me pergunto se o Centro Espírita Tenda Santo Antônio,
tornado isento em fevereiro de 1961, e a Tenda de Umbanda Santo
Antônio, considerada de utilidade pública em setembro de 1961, são
na realidade coincidentes, embora os bairros informados não o sejam.
Caso consista no mesmo centro, parece curioso que o estatuto de
utilidade pública não tenha sido concedido antes da dispensa fiscal.
E, caso não se trate do mesmo, parece revelador o fato de que não
há registros de centros declarados de utilidade pública que tenham
também conseguido a dispensa fiscal.

Em se tratando da possibilidade de receber recursos doados


em espécie, se observadas as leis orçamentárias anuais publicadas
no DOM daquele período, fica evidenciado que mais de um centro de
umbanda da cidade esteve presente na listagem de agraciados em
potencial (quadro 5). Na primeira metade dos anos 1960, a Tenda Espí-
rita São Sebastião, aquela mesma que se tornou entidade de utilidade
pública somente em dezembro de 1984, aparece com chance de rece-
ber Cr$ 4.000,00 (quatro mil cruzeiros) no ano de 1960, ao lado de um
centro citado como Tenda de Umbanda Pae Changê, ao qual destinam
um pouco mais: Cr$ 5.000,00. Em seguida tem a Tenda de Umbanda
Santo Antônio, aquela mesma declarada de utilidade pública em feve-
reiro de 1961, prevista para se agraciada com o total de Cr$ 5.000,00
também naquele ano, ao passo que cinco anos depois a entidade sob
o nome de Centro Espírita Santo Antônio estaria entre aquelas previs-
tas para receber um montante mais substancial: Cr$ 30.000,00.

S U M Á R IO 153
Já na segunda metade da década de 1960 e na primeira parte
dos anos 1970, os registros passam a apresentar não apenas o nome
dos centros de umbanda de Goiânia a serem contemplados com os
auxílios, como também o nome dos políticos que se propuseram a dis-
por de uma dada quantia. Naquele momento prevalecem duas entida-
des: Tenda Espírita São Sebastião e Centro Espírita Ismael. No caso da
primeira, além do supracitado montante de 1960, foram prometidas as
somas de Cr$ 130.00,00 para 1967, de NCr$ 245,00 (duzentos e qua-
renta e cinco cruzeiros novos) para 1968 e de Cr$ 50,00 para 1971. No
caso do segundo, que especulamos ser o mesmo centro que se tornou
de utilidade pública em 1978127, foram destinadas as quantias de NCr$
50,00 para 1968 e Cr$ 1050,00 para 1971. Dentre os políticos listados,
quatro deles destinaram auxílio para centros de umbanda em pelo me-
nos dois anos consecutivos, a saber: Pedro Xavier Teixeira, Altamiro An-
tão do Nascimento, Evaristo Martins Ferreira e Moisés Gonçalves Lima.

127 Estou supondo que o Centro Espírita Ismael e o Grupo Espírita Ismael correspondam ao
centro de umbanda de nome Centro Espírita Anjo Ismael, mas não pude me certificar
disso.

S U M Á R IO 154
Quadro 5 – Doações previstas em leis orçamentárias e destinadas a
centros de umbanda de goiânia entre os anos de 1960 e 1990

Data do Data da Lei Valor do


Nome do centro
DOM publicação orçamentária auxílio
Tenda Espírita
1 02/06/1960 25/11/1959 1582/59 Cr$ 4.000,00
São Sebastião
Tenda de Umban-
2 02/06/1960 25/11/1959 1582/59 Cr$ 5.000,00
da Pae Changê
Tenda de Umbanda
3 31/12/1960 01/12/1960 1756/60 Santo Antônio Cr$ 5.000,00
de Vila Nova
Centro Espírita
4 31/12/1966 31/12/1966 3550/66 Cr$ 30.000,00
Santo Antônio
Tenda Espírita São
5 31/12/1966 31/12/1966 3550/66 Cr$ 80.000,00
Sebastião (I)
Tenda Espírita São
6 31/12/1966 31/12/1966 3550/66 Cr$ 50.000,00
Sebastião (II)
7 30/12/1967 30/12/1967 3789/67 Grupo Espírita Ismael NCr$ 50,00
Tenda Espírita
8 30/12/1967 30/12/1967 3789/67 NCr$ 30,00
São Sebastião
Tenda Espírita
9 30/12/1967 30/12/1967 3789/67 NCr$ 45,00
São Sebastião
Tenda Espírita
10 30/12/1967 30/12/1967 3789/67 NCr$ 50,00
São Sebastião
Tenda Espírita
11 30/12/1967 30/12/1967 3789/67 NCr$ 50,00
São Sebastião
Tenda Espírita
12 30/12/1967 30/12/1967 3789/67 NCr$ 20,00
São Sebastião
Tenda Espírita
13 30/12/1967 30/12/1967 3789/67 NCr$ 50,00
São Sebastião
Centro Espírita
14 17/12/1970 26/11/1970 4365/70 Cr$ 200,00
Ismael de Goiânia
15 17/12/1970 26/11/1970 4365/70 Centro Espírita “Ismael” Cr$ 100,00
Centro Espírita
16 17/12/1970 26/11/1970 4365/70 Cr$ 100,00
Ismael de Goiânia
Tenda Espírita
17 17/12/1970 26/11/1970 4365/70 Cr$ 50,00
São Sebastião
18 17/12/1970 26/11/1970 4365/70 Centra Espírita Ismael Cr$ 200,00
19 17/12/1970 26/11/1970 4365/70 Centro Espirita Ismael Cr$ 50,00
20 17/12/1970 26/11/1970 4365/70 Centro Espirita Ismael Cr$ 200,00

Fonte: Diário Oficial do Município de Goiânia (1960-1990).


S U M Á R IO 155
Portanto, o panorama delineado até aqui anuncia que apenas
um único centro de umbanda da cidade contou com a oportunidade de
ser contemplado com pelo menos duas formas distintas de incentivo:
o Centro Espírita Santo Antônio. Esse mesmo panorama mostra que
apenas um único centro de umbanda da capital esteve abarcado na
quase totalidade de orçamentos que estimam os gastos municipais: a
Tenda Espírita São Sebastião. Dessa maneira, embora existisse uma
série de outros centros de umbanda no município naquela época, os
dados sugerem a tendência de os poderes públicos restringirem sua
atenção a alguns poucos, ao menos até 1970, último ano em que al-
guma entidade umbandista aparece como favorecida no DOM. E, me-
diante a constatada ausência de registros posteriores, duas hipóteses
me parecem plausíveis: ou nenhum novo centro de umbanda recebeu
incentivos públicos até 1990, ou o DOM mudou sua maneira de publi-
car informes dessa natureza a partir de 1970128.

Claudete Ribeiro de Araújo (2020), em pesquisa hercúlea a


respeito do percurso histórico da umbanda goianiense, demonstra
também as iniciativas dedicadas à comunidade que têm sido desen-
volvidas pelos centros da cidade ao longo do tempo. Podem ser as-
sim compreendidos tanto os atendimentos promovidos regularmente
pelos centros, nas quais as entidades espirituais auxiliam o público
consulente em suas demandas, quanto os trabalhos desenvolvidos
no âmbito das instituições de assistência social administradas pelos
centros, nas quais ocorre o acolhimento de um público que lida com a
miséria e com o abandono. É essencial que se considere, ainda, o im-
portante papel desempenhado pelas festas próprias da umbanda, as
quais auxiliam no fortalecimento do senso de comunidade, bem como
iniciativas mais ou menos pontuais como aquelas em que os centros
arrecadam e distribuem alimentos:

128 É o caso da doação de terreno feita por Iris Rezende Machado, destinada ao Centro Es-
pírita Pai Joaquim de Angola, liderado por Leda Xavier Sacramento, a qual aparece nos
relatos orais (ARAUJO, 2020), mas não consta no DOM.

S U M Á R IO 156
Todo centro de umbanda era uma espécie de posto de assistên-
cia social numa determinada rua ou bairro. Para lá se dirigiam
todos que quisessem e necessitassem de orientações, informa-
ções, trabalho, comida, roupa, hospedagem. Para isso, essas
casas eram organizadas com dois trabalhos distintos e comple-
mentares: o trabalho litúrgico religioso e o trabalho social. Na
prática litúrgica religiosa os Centros ofereciam as sessões de gi-
ras com incorporações das entidades espirituais, o trabalho de
transporte, práticas sacramentais e atendimentos individuais.
Além disso, os centros observavam os seus tempos litúrgicos
que se compunha de festas religiosas ao longo do ano. Na prá-
tica sócio caritativa, tinha-se os atendimentos fora do horário
litúrgico, compondo-se de atendimento individual, muitas vezes
com auxílio de cartas de baralho, benzimentos, encomenda de
remédios caseiros, orientações, encaminhamentos, e em casos
graves a busca de um ritual religioso na mata ou na cachoei-
ra que fosse capaz de dar conta da necessidade do cliente.
Também podia haver hospedagens e distribuição de alimentos,
roupas e brinquedos (ARAÚJO, 2020, p. 361).

Baseada no panorama construído pela autora, penso que o


caso dos Centro Espiritualista Pai Joaquim de Angola e o caso do
Templo Oração de Maria podem ser considerados exemplares da ma-
neira como os centros de umbanda têm se proposto a contribuir com a
sociedade nos últimos anos, tanto na capital quanto no entorno. O pri-
meiro centro, inaugurado na década de 1960, abriu o Lar das Crianças
Pai Joaquim em 1978, entidade dedicada ao acolhimento de crianças
que não tinham ou que não podiam estar com seus pais. Funcionou
nesse formato durante anos, mesmo sem o apoio do poder público, e
atualmente oferece atividades no contraturno das escolas. Já o segun-
do centro, que consolidou seus trabalhos na década de 1990, ofere-
ceu às crianças da comunidade a oportunidade de aprenderem a ler e
escrever ao abrirem a Escola Cosme e Damião, além de iniciarem um
time de futebol feminino.

Mesmo assim, com base nos documentos acessados e nos


dados reunidos até o momento, me parece estar demonstrado que

S U M Á R IO 157
os poderes públicos, muito embora tenham concedido o estatuto de
utilidade pública a determinados centros, somente a um pequeno nú-
mero também programou alguma contrapartida, pelo menos dentro
dos termos da formalidade e da transparência que tornam necessária
a existência do DOM. Para além disso, me ocorre que não posso deixar
de considerar a possibilidade de aqueles subsídios financeiros publi-
cados nos orçamentos anuais cumprirem um papel de autopromoção,
posto que os nomes dos políticos doadores aparecem nas páginas
do DOM de 1967 e 1970, assim como seria incorreto desconsiderar a
chance de aqueles recursos prometidos para o próximo ano nunca te-
rem realmente chegado ao seu destino. Inclusive, o caso ocorrido nos
anos 1970 com a liderança do citado Centro Espiritualista Pai Joaquim
de Angola demonstra a postura das autoridades:
Tia Leda, como as demais mulheres lideranças na religião um-
bandista, batalhou muito para concretizar sua missão de realizar
seu sonho de uma casa religiosa na capital de Goiás (...). Assim
começou sua obra como um Centro de Umbanda doméstico,
nas casas de amigas interessadas em vivenciar a religião. Após
esse período obteve permissão do marido para fazer um culto
religioso num cômodo situado ao fundo de sua casa. Deu certo
por um tempo, mas depois mudou para um cômodo na rua 91,
e depois alugou uma sala no Setor Campinas. Depois de um
tempo, alugou outra sala no bairro Popular, próximo da estação
ferroviária. Com tantas voltas e idas, tomou coragem e foi até
o gabinete do prefeito falar com Íris Rezende, que por sinal era
afilhado do marido de uma grande amiga da família. Conse-
guiu sensibilizar e persuadir o executivo e ganhou um terreno
de 17.000m² no Setor Urias Magalhães. Na época, o Setor era
um grande matagal. Um ano depois, tia Leda e seus médiuns
se viram num grande conflito com o prefeito Manoel dos Reis e
Silva, pois agora a prefeitura reivindicava o lote doado. Ela e seu
grupo foram defender o terreno confiscado pela prefeitura (...) e
perdeu uma boa parte do terreno que ganhou da gestão anterior
(ARAÚJO, 2020, p. 389-390).

Mediante o exemplo, parece natural que determinados centros


de umbanda, na contramão daquilo que aparentemente sugeria a

S U M Á R IO 158
presidência da FUEGO entre os anos de 1972 e 1976, tenham optado
por se manterem às margens do relacionamento com representantes
do poder público municipal. É o caso de uma das lideranças do Tem-
plo de Oração de Maria, que em entrevista recente disse nunca ter
gostado de “rabo preso” com políticos, assim como é o caso de uma
das lideranças do Centro Espírita São Sebastião, que explica seu re-
ceio diante da lógica das trocas de favores que predominam nesses
tipos de acordo (ARAUJO, 2020, p. 396-397). Portanto, relatos assim
me permitem supor que existia no mínimo um clima de suspeita e
desânimo por parte de alguns umbandistas, realidade que pode ter
servido para desestimular determinados centros, tanto no sentido de
requererem a declaração de utilidade pública quanto no sentido de
buscarem contrapartidas como a isenção de impostos.

“SOB PENA DE MAIS SANÇÕES LEGAIS”:


CENTROS DE UMBANDA NOTIFICADOS,
INTIMADOS E FICHADOS

No processo de pesquisa no arquivo on-line do Diário Oficial


do Município de Goiânia (DOM) também foi possível perceber que
entre os anos de 1960 e 1990 um centro de umbanda da cidade
foi notificado pela chamada Coordenadoria de Tributos Imobiliários,
mais precisamente em outubro de 1984. Estou me referindo ao Cen-
tro Espírita Caboclo Beira Mar, que, de acordo com o texto da noti-
ficação, naquele ano se situava no bairro Jardim Europa e era dono
de uma dívida de Cr$ 23.902,06 em tributos, decorrente da ausência
de pagamento do Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial
Urbana (IPTU). Foram dados aos contribuintes trinta dias para que
quitassem a dívida ou para que impugnassem o edital de notificação.
Durante minha busca foi possível perceber, ainda, que quinze centros
de umbanda da capital foram intimados pelo denominado Núcleo de
Controle de Processos Fiscais (quadro 6).

S U M Á R IO 159
Quadro 6 – Centros de Umbanda intimados pela assessoria do contencioso
fiscal do Núcleo de Controle de Processos Fiscais entre 1960 e 1990

Data do DOM Data do processo Nome do centro Quantia a ser paga


1 01/08/1985 31/07/1985 Tenda Espírita Canduru (I) Cr$ 2.154.500
2 27/11/1985 04/11/1985 Centro Espírita Caboclo Tupinambá (I) Cr$ 2.654.540
3 27/11/1985 04/11/1985 Sociedade Evangélica de Umbanda (I) Cr$ 2.141.180
4 27/11/1985 04/11/1985 Tenda Espírita Canduru (II) Cr$ 2.154.500
5 27/11/1985 04/11/1985 Tenda Espírita Caboclo Flecheiro (I) Cr$ 2.177.170
6 26/09/1986 17/09/1986 Centro Espírita Caboclo Tupinambá (II) Cz$ 2.654,54
7 26/09/1986 17/09/1986 Centro Espírita Caboclo Otacílio Cz$ 2.654,54
8 26/09/1986 17/09/1986 Sociedade Evangélica de Umbanda (II) Cz$ 2.141,18
9 26/09/1986 17/09/1986 Tenda Espírita Caboclo Flecheiro (II) Cz$ 2.177,18
10 08/12/1986 18/11/1986 Centro Espírita Pai João (I) Cz$ 7.982,40
11 08/12/1986 18/11/1986 Centro Espírita São Jorge (I) Cz$ 3.392,18
12 08/12/1986 18/11/1986 Tenda Espírita Cosme e Damião (I) Cz$ 2.887,95
13 14/05/1987 04/05/1987 Tenda Espirita Cabocla Jandira (I) Cz$ 10.117,60
14 14/05/1987 04/05/1987 Tenda Espírita Cosme e Damiao (II) Cz$ 2.887,95
15 14/05/1987 04/05/1987 Centro Espírita São Jorge (II) Cz$ 3.392,18
16 14/05/1987 04/05/1987 Centro Espírita Xangô da Colina Cz$ 3.197,55
17 14/05/1987 04/05/1987 Centro Espírita Pai João (II) Cz$ 7.982,44
18 14/05/1987 04/05/1987 Centro Espírita Pai Joaquim de Angola (I) Cz$ 2.654,94
19 06/08/1987 28/07/1987 Centro Espírita Pai Joaquim da Angola (II) Cz$ 2.654,54
20 06/08/1987 28/07/1987 Centro Espírita Rei Ganga Cz$ 21.848,51
21 06/08/1987 28/07/1987 Centro Espírita Xangô da Colina Cz$ 3.197,55
22 06/08/1987 28/07/1987 Tenda Espirita Cabocla Jandira (II) Cz$ 10.117,60
23 06/08/1987 28/07/1987 Tenda Espírita Inhansã do Bó Cz$ 16.662,97
24 06/08/1987 28/07/1987 Tenda Espírita o Carussu Cz$ 16.662,97
25 02/10/1987 01/10/1987 Tenda Espirita Canduru (III) Cz$ 24.476,61
26 02/10/1987 01/10/1987 Tenda Espirita Caboclo Jaú (I) Cz$ 29.511,37
27 21/01/1988 12/01/1988 Tenda Espirita Caboclo Jaú (II) Cz$ 29.911,37
28 09/05/1988 26/04/1988 Sociedade Evangélica de Umbanda (III) Cz$ 37.422,13
29 09/05/1988 26/04/1988 Terreiro de Umbanda Tupã (I) Cz$ 37.422,13
30 23/06/1988 26/04/1988 Sociedade Evangélica de Umbanda (IV) Cz$ 37.422,13
31 23/06/1988 26/04/1988 Terreiro de Umbanda Tupã (II) Cz$ 37.422,13

Fonte: Diário Oficial do Município de Goiânia (1960-1990).


S U M Á R IO 160
Em se tratando do ocorrido com o Centro Espírita Caboclo Beira
Mar considero essencial que se aponte, antes de mais nada, a maior
obviedade do caso: se à entidade tivesse sido concedida a isenção
de IPTU como contrapartida, posto que a mesma recebeu em maio de
1978 a declaração de utilidade pública, o centro não estaria sendo ex-
posto como inadimplente nas páginas do DOM. Não contou, portanto,
com a mesma oportunidade que o supracitado Centro Espírita Santo
Antônio, o único agraciado entre os anos 1960 e 1990. É também im-
portante notar que o texto que acompanha a publicação do DOM nos
informa que o centro, assim como outras entidades, só se encontra
ali citado porque, devido a motivos que desconheço, não pôde ser
notificado pessoalmente. Diante disso, me sinto instigada a perguntar:
quantos outros teriam recebido in loco suas notificações e só por isso
não aparecem nas páginas do DOM?

No que concerne aos centros de umbanda reunidos no DOM


como intimados, os textos que acompanham as publicações não per-
mitem que se saiba ao certo os motivos pelos quais estão sendo con-
vocados a pagarem as quantias listadas. Uma pista se encontra na
referência aos chamados autos de infração, o que aparece no texto
de mais de uma das publicações identificadas, seguido do lembrete
de que o descumprimento do que solicitam pode incorrer em mais
sanções legais. Portanto, tudo indica que as quantias consistem em
multas aplicadas aos centros de umbanda porque teriam supostamen-
te desobedecido alguma norma municipal. Estou ainda em busca dos
processos de cada centro, pois apenas assim terei como realmente
conhecer o conteúdo dos autos. Por ora, só pude consultar pelo nome
do Centro Espírita Rei Ganga, mas, tristemente, o processo foi descar-
tado em 2016 (figura 1).

S U M Á R IO 161
Figura 1 – Extrato do processo do Centro Espírita Rei Ganga

Fonte: Diário Oficial do Município de Goiânia (1960-1990).

Não à toa principiei a busca pelo supracitado centro de umban-


da. Durante minha pesquisa de mestrado, realizada entre os anos de
2009 e 2010, encontrei no arquivo da Polícia Civil do Estado de Goiás
uma espécie de ficha de controle que acompanhava justamente as
atividades desenvolvidas no Centro Espírita Rei Ganga, documento de
1983 (ULHOA, 2011, p. 109)129. Naquele momento, entretanto, a au-
sência de maiores subsídios me impediu de construir um debate mais
detido em torno da fonte, motivo pelo qual senti que estava finalmente
prestes a compreender melhor o caso quando me deparei com a in-
timação dirigida ao Centro Espírita Rei Ganga, publicada no DOM de
agosto de 1987. Portanto, pouco mais de quatro anos depois que ad-
quiriu um registro que demonstra o controle da polícia sobre suas ati-
vidades, aquele mesmo centro aparece convocado a pagar uma multa
de Cz$ 21.848,51 (vinte e um mil, oitocentos e quarenta e oito cruzados
e cinquenta e um centavos) aos cofres públicos. Por enquanto, tudo
que posso é sugerir que um acontecido esteve conectado ao outro.
129 Em seu trabalho, Leo Carrer Nogueira (2009) aponta que identificou outros dezenove
registros de centros de umbanda da capital, os quais parecem semelhantes ao do Centro
Espírita Rei Ganga (p. 98).

S U M Á R IO 162
Contudo, mesmo que a descoberta não tenha permitido res-
ponder às minhas expectativas iniciais, a soma dos dois indícios pos-
sibilita um caminho interpretativo no que concerne aos motivos que
levaram os centros de umbanda a serem intimados. Na mencionada
ficha, o Centro Espírita Rei Ganga aparece classificado como casa de
carteado, o que soa como uma perspectiva distorcida quanto a como
costuma funcionar um centro de umbanda. Logo abaixo existem doze
campos, um para cada mês do ano, todos preenchidos com o que
provavelmente corresponde às datas em que os fiscais estiveram no
local. No mestrado, apontei que documentos como aquele consistiam
em parte dos mecanismos de controle exercidos pela chamada De-
legacia Estadual de Crimes Contra os Costumes, Jogos e Diversões
Públicas (ULHOA, 2011, p. 108), instituída pelo decreto nº 266, de 11
de novembro de 1970, sendo suas atribuições:
Conhecer no território do Estado, sem prejuízo das atribuições
cometidas às Delegacias de Polícia do Interior, dos crimes con-
tra os costumes, previstos no Título VI da Parte Especial do
Código Penal, bem como das contravenções relativas à Polícia
de Costumes, de que trata o capítulo VII da Parte Especial do
Decreto-Lei nº 3.688, de 03.10.41, instaurando os respectivos
procedimentos; proceder ao licenciamento, cadastramento,
fiscalização e expedição de alvarás e outros documentos às
empresas, organizações, estabelecimentos, ou firmas sujeitas
ao licenciamento por parte da Secretaria de Segurança Pública;
efetuar diligência no sentido de prevenir e reprimir infrações cuja
apuração seja de sua competência; manter cadastros atualiza-
dos das empresas e firmas que explorem quaisquer serviços
sujeitos à fiscalização da Delegacia; expedir e fornecer após
autenticados pelo Cartório, os atestados de sua competência;
e apresentar mensal, trimestral e anualmente relatório de suas
atividades (GOIÁS, 1970, s/p).

Incidindo sobre aquele primeiro existe outro dispositivo, o de-


creto nº 3688, de 03 de outubro de 1941, que dedica um de seus
capítulos às contravenções relativas à polícia de costumes. Em seu
artigo 50, consta que existe uma pena e uma multa que podem ser

S U M Á R IO 163
aplicadas a estabelecimentos ou a indivíduos que promovam jogos de
azar em locais de acesso público, mediante ou não pagamento de en-
trada. Nesse mesmo artigo, mais precisamente no parágrafo terceiro,
está demonstrado que a normativa classifica como jogos de azar todos
aqueles nos quais, de uma maneira ou de outra, se dependa da sorte
para ser considerado ganhador ou perdedor. Já no parágrafo quarto
consta que são considerados espaços para essa finalidade casas par-
ticulares muito frequentadas por pessoas que não moram ali. Portanto,
sabendo que em alguns tipos de umbanda existe o trabalho de leitura
das cartas, me parece que está colocado o caminho para distorcerem,
manobrarem e enquadrarem os centros na lei.

Claudete Ribeiro de Araújo (2020), tomando como base as inú-


meras entrevistas que realizou com membros de centros goianienses
donos de características das mais diversas, mostra o papel que a lei-
tura das cartas desempenhou e ainda desempenha em determinadas
umbandas da capital. Em seu trabalho, a autora aponta que pelo me-
nos no Centro Espírita Pai André de Guiné, no Centro Espírita Mãe
Dulce e no Centro Espírita São Miguel Arcanjo as fundadoras em algum
momento ofereceram o trabalho de leitura das cartas, o qual, interes-
santemente, consistia no único tipo de atendimento que em todos os
três centros supracitados se solicita pagamento em dinheiro. Dessa
maneira, as lideranças investem as quantias arrecadadas na própria
manutenção de seus centros, assim como financiam atividades que
atenderiam a demandas de suas comunidades. Entretanto, penso que
também por causa disso acabavam expostas a manobras interpretati-
vas sustentadas pelos citados decretos.

Leo Carrer Nogueira (2009), ao debater os motivos pelos quais


determinados centros de umbanda aparecem em documentos que
consultou no arquivo da Polícia Civil do Estado de Goiás, não conside-
ra a possibilidade de que a prática da leitura das cartas contribuiu para
que os mesmos acabem enquadrados. Para ele, outras duas hipóte-
ses parecem plausíveis: por um lado, considera que teriam existido

S U M Á R IO 164
na cidade estabelecimentos inteiramente dedicados ao que chama de
jogos ilícitos, mas que, desinteressados da prática religiosa, se intitu-
lavam como centros de umbanda para se esconderem das autorida-
des; por outro lado, considera que teriam existido na capital casas que
aliavam o universo religioso ao mundo da jogatina. Mas, mesmo que
não se possa atestar nenhuma das hipóteses, termina com o que me
parece o essencial: centros de umbanda e casas de carteado tinham
que se registrar na polícia e acredito que a ausência desse mesmo
registro também podia culminar em multas.

Para além disso, no intuito de pensar mais motivos que pode-


riam contribuir para que centros de umbanda apareçam como intima-
dos nas páginas do DOM, não posso esquecer dos chamados Códi-
gos de Postura dos Municípios. Na atualidade, prevalece na capital
a lei nº 014, de 29 de dezembro de 1992, que instituiu o Código de
Posturas do Município de Goiânia. Mas, também com base em minhas
consultas ao DOM, pude perceber que muito antes disso foram pu-
blicadas outras leis municipais com essa finalidade, a exemplo da lei
nº 1635/1959 e da lei nº 4527/1971. Contudo, infelizmente ainda não
consegui acesso ao texto integral desses dispositivos, o que me im-
pede de conhecer as normas colocadas a cabo de 1960 a 1990. Mas,
conquanto não se trate da mesma coisa, pude, por outro lado, acessar
o conteúdo do Regimento Interno da Secretaria de Serviços Públicos
de Goiânia, publicado no DOM de março de 1970, no qual consta que
compete aos fiscais de postura, dentre outros aspectos:
(...) promover a fiscalização no sentido de assegurar a moralida-
de pública, o respeito aos locais de cultos, o sossego público,
a ordem nos divertimentos e festejos públicos, a exploração ou
utilização dos meios de publicidade ou propaganda nos logra-
douros públicos ou em qualquer lugar de acesso ao público e a
apresentação da estética dos edifícios, além de outros campos
que o interesse social exija; conceder licença para a realização
de divertimentos e festejos públicos; conceder licença, em ca-
sos especiais, para publicidade através de aparelhos sonoros
ou outros que, pela intensidade de volume, possam constituir

S U M Á R IO 165
perturbação ao sossego público; conceder licença para a uti-
lização de áreas livres nos logradouros públicos, exceto feiras
livres (...); do horário de abertura e fechamento dos estabeleci-
mentos comerciais, industriais e similares (...); fiscalizar o fun-
cionamento de casas e locais de diversões públicas; aplicar
penalidades aos infratores das posturas municipais sob sua
fiscalização; fazer lavrar os autos de infração e de apreensão
(...) (GOIÂNIA, 1970, p. 06 ).

Diante desses pontos, especialmente aqueles concernentes ao


resguardo da moralidade e do sossego público, penso que existem
grandes chances de os centros de umbanda terem sido intimados a
pagarem multas simplesmente porque escapam dos modelos religio-
sos tradicionalmente cristãos, o que também pode contribuir para que
sequer tenham assegurado o estatuto de local de culto. Portanto, se
a ideia de moralidade deslegitima práticas perpassadas, por exemplo,
pela incorporação de espíritos de indígenas, de malandros ou de pros-
titutas, como é o caso dos caboclos, dos exus e das pombagiras, me
parece possível que centros de umbanda acabem expostos a repreen-
das. Nesse mesmo sentido, se o som dos atabaques, das palmas e
dos cantos forem considerados perturbadores, ao contrário dos hinos
católicos ou dos cultos evangélicos, me parece provável que centros
de umbanda fiquem na mira.

É também interessante notar que a maioria dos centros de um-


banda aparecem intimados em mais de uma data no DOM, exceto o
Centro Espírita Caboclo Otacílio, o Centro Espírita Rei Ganga, a Tenda
Espírita Iansã do Bó e a Tenda Espírita Carussu. Já o centro de umban-
da que mais intimações publicadas teve em seu nome foi a chamada
Sociedade Evangélica de Umbanda, que aparece citada nos anos de
1985, 1986 e 1988. É possível que aqueles primeiros centros tenham
quitado suas multas de imediato ou tenham sido desobrigados do
pagamento após recurso, assim como é possível que a Sociedade
Evangélica de Umbanda tenha recorrido sem o mesmo sucesso ou
tenha tão somente ignorado as intimações com a passagem do tempo.

S U M Á R IO 166
Não sei ao certo como cada centro acabou resolvendo seu caso, mas
sei que nenhuma outra intimação igual ou parecida com aquelas foi
publicada nos dois anos seguintes.

Diante disso, me parece importante perguntar se aqueles cen-


tros de umbanda intimados nas páginas do DOM estavam integrados
à FUEGO no momento. Primeiro, porque entidades dessa natureza
geralmente atuam como apoio aos seus membros em acontecidos
como o descrito. E, segundo, porque se constatou que os registros
dos centros presentes no âmbito do arquivo da polícia se encontram
acompanhados de documentos que comprovam seu estado de fede-
rados (NOGUEIRA, 2009). Depois de consultadas as listas de filiados
da FUEGO nas décadas de 1970 e 1990, lembrando que não pude
acessar a lista dos anos 1980, constatei apenas uma correspondência:
o Centro Espírita São Jorge, que se integrou à FUEGO na década de
1990. Portanto, de acordo com as fontes disponíveis, é possível pensar
que os demais centros intimados não tiveram a chance de recorrer ao
apoio ou à chancela da FUEGO, assim como é possível supor que
exatamente por isso estivessem mais expostos à tutela policial.

Finalmente, os dados demonstram que as intimações dos cen-


tros de umbanda que aparecem no DOM se encontram concentradas
nos anos 1980, sendo a maioria delas publicadas em 1987. Interes-
santemente, existem indícios de que também na década de 1980 teria
ocorrido uma queda considerável no número de novos membros da
FUEGO (NOGUEIRA, 2009). Entretanto, creio que um dos aspectos
que realmente contribuiu para esse quadro foi a publicação da lei nº
5886, de 03 de maio de 1982, assinada pelo então prefeito Índio do
Brasil Artiaga Lima e que altera a já citada lei nº 4527/1971. Em seu
texto, a lei estabelece mais claramente as quantias a serem pagas em
caso de descumprimento de normas concernentes à higiene, ao bem-
-estar e ao funcionamento do comércio. Para além disso, datam do
período de 1980 a 1989 um número relevante de registros de centros
de umbanda de todo o estado na polícia:

S U M Á R IO 167
Entre 1980 e 1989 foi encontrada neste arquivo da Polícia Civil
relativo à atuação da Delegacia de Costumes de Goiás, um total
de 19 terreiros registrados em Goiânia e 17 terreiros em todo
o Estado de Goiás, perfazendo um total de 36 terreiros regis-
trados, todos na mesma situação de exercerem atividades de
‘jogos ilícitos de carteado’ (NOGUEIRA, 2009, p. 98).

Portanto, o que me parece é que os dados presentes nos docu-


mentos policiais e os dados colhidos nas páginas do DOM têm mais
a demonstrar se contemplados em paralelo. Inclusive, dentre aqueles
centros de umbanda intimados a pagarem multas, não só o discutido
Centro Espírita Rei Ganga, como também o Terreiro de Umbanda Tupã
possuía registro policial como casa de carteado (NOGUEIRA, 2009).
Sendo assim, me pergunto se também sob o nome dos demais terrei-
ros intimados existem registros no arquivo da Polícia Civil do Estado
de Goiás, o que ainda preciso investigar melhor. Mas, independente
do que ainda se está por encontrar, considero pertinente destacar o
acirrado controle que se impunha aos centros de umbanda da capital,
fato que não se repete em se tratando de outros territórios ou templos
religiosos. O que posso garantir é que em nenhuma das listas de in-
timados que consultei no DOM entre os anos de 1960 e 1990 existia
entre os multados igrejas católicas ou igrejas evangélicas.

CONCLUSÃO

Em outra oportunidade escrevi que a liderança de um dos pri-


meiros terreiros de candomblé que se instalou na capital narra uma das
ocasiões em que a polícia bateu em sua porta, lá pelos idos dos anos
1970. De acordo com o que conta, naquele momento foi colocado em
um “camburão cheio de polícia” e obrigado a se dirigir para a delega-
cia, onde precisou explicar do que se tratavam aqueles “tambores”
(ULHOA, 2011, p. 104). Em entrevista com uma liderança da umbanda

S U M Á R IO 168
da capital, soube que um dos delegados da época se pôs a estabe-
lecer o que podia e o que não podia acontecer no âmbito dos centros
de umbanda (ULHOA, 2011, p. 107). Não só eu, como também outros
pesquisadores têm apontado aspectos nesse sentido (NOGUEIRA,
2009; ARAUJO, 2020), mas ainda carecemos de estudos que realmen-
te mergulhem nessa relação entre as religiões afro-brasileiras da capi-
tal, os poderes públicos locais e a polícia do estado.

Principalmente, considero urgente entendermos essa relação


em paralelo com um contexto mais amplo, o da ditadura civil-militar
brasileira, que, iniciada em 1964, apresenta características próprias
no estado de Goiás. Parece interessante ressaltar que enquanto os
candomblés baianos passam a ser desobrigados de responderem à
Delegacia de Jogos e Costumes nos anos 1970, em consequência do
novo papel que assumem na política nacional e internacional (SAN-
TOS, 2005), naquela mesma década a polícia obriga uma liderança
do candomblé a se explicar em uma delegacia de Goiânia. Mas, por
outro lado, no que concerne à umbanda, se nos centros situados em
cidades do sudeste brasileiro se percebia um movimento de relativa
aproximação dos políticos, levados pela busca de apoio para as con-
troladas eleições que foram mantidas em nível municipal (NEGRÃO,
1996), algo parecido se desenhava em Goiânia:
Apesar de instituir um regime ditatorial e implicar um rompimen-
to com o populismo do período anterior, o golpe de 1964 não
reeditou a prática repressiva contra os cultos afro-brasileiros do
Estado Novo (...). Com a manutenção de eleições, mesmo que
controladas e viciadas, para os postos executivos municipais
e cargos legislativos, havia a necessidade de alguma manipu-
lação de massas populares; não havendo como encontrá-las
junto aos sindicatos e partidos por ele reprimidos, o regime
aproxima-se das religiões populares. Data de 64 a inclusão da
umbanda no Anuário Estatístico do IBGE, o que indica clara-
mente o seu reconhecimento oficial (NEGRÃO, 1996, p. 96).

S U M Á R IO 169
Por ora, estou entendendo que é mais ou menos nesse sentido
que apontam os dados retirados das páginas do DOM, especialmente
daquelas publicadas em datas correspondentes ao período ditatorial,
o qual se estendeu até 1986. Demonstrei que ao todo dezessete cen-
tros de umbanda da capital foram reconhecidos como entidades de
utilidade pública de 1960 a 1990, dos quais um total de treze teve suas
declarações publicadas entre 1964 e 1986. Entretanto, mesmo que
o estatuto de utilidade pública se constitua como um primeiro passo
importante para se adquirir incentivos tais como as isenções fiscais,
apenas um centro de umbanda esteve contemplado, só que antes de
iniciada a ditadura civil-militar, mais precisamente em 1961. Diante dis-
so, me parece que o estatuto de utilidade pública era concedido muito
mais como mera honraria do que como forma de apoiar os centros,
quem sabe um recurso por meio do qual se queria ganhar a simpatia
da comunidade sem se comprometer realmente, ou mesmo uma for-
ma de mapeamento dos centros de umbanda para fins de controle.

Por outro lado, alguns poucos centros de umbanda receberam


subvenções em forma de doações de quantias em dinheiro, as quais
aparecem previstas em leis orçamentárias municipais dos anos de
1960, 1966, 1967 e 1970, sendo que o maior montante de doações se
dá em 1966. O mais interessante é que as mesmas aparecem infor-
madas juntamente com o nome do político que dispôs da quantia, o
que parece demonstrar certo ímpeto eleitoreiro. Dentre os ocupantes
de cargos do legislativo municipal que constam na listagem, existem
alguns que na época exerciam seus mandatos pelo Aliança Renova-
dora Nacional (ARENA), o partido sustentáculo por excelência da di-
tadura. Mesmo assim, as quantias não são tão significativas quanto
aquelas destinadas a outras entidades e, na realidade, não sei se tais
subvenções realmente chegaram ao destino e quais eram os critérios
de escolha dos beneficiados.

S U M Á R IO 170
Em paralelo, destaco o modo como o ex-prefeito Manoel dos
Reis e Silva, que exerceu o cargo de 1970 a 1974 pelo partido ARENA,
aparece no DOM e nas narrativas de umbandistas de Goiânia. Foi o
prefeito que mais assinou declarações de utilidade pública para cen-
tros de umbanda no período que se estende de 1960 a 1990, assim
como foi o prefeito que discursou no evento que inaugurou a sede da
FUEGO em 1972. Mas, ao mesmo tempo, foi esse mesmo prefeito o
responsável por tomar parte de um terreno outrora doado para o Cen-
tro Espiritualista Pai Joaquim de Angola, o que naturalmente causou
uma série de empecilhos para a continuidade dos trabalhos desen-
volvidos naquele centro de umbanda. O que me parece é que durante
a ditadura se estabelecia na capital, assim como em outras partes do
país, uma dinâmica entre poderes públicos e centros de umbanda que
se baseava no “dá com uma mão e tira com a outra” ou mesmo no
“morde e assopra”, como exprime bem o saber popular.

E, associado a todos esses fatores, se encontra a prática siste-


mática de acompanhamento policial junto aos centros de umbanda,
dinâmica que precisamos entender com mais profundidade. Especial-
mente em se tratando do corpo policial que atua no âmbito da De-
legacia Estadual de Crimes Contra os Costumes, Jogos e Diversões
Públicas, iniciada em 1970. Não me sinto convencida, pelo menos até
o momento, de que os centros de umbanda citados em registros poli-
ciais como sendo casas de carteado realmente promovessem apostas
ou qualquer coisa parecida. Estou inclinada a compreender como mais
uma estratégia no sentido de assegurarem a chance de proximidade
entre os poderes municipais e a comunidade umbandista local, o que
se tornaria impossível mediante ataques contundentes, mas sem com
isso perderem o controle sobre os centros. Penso que a pecha de casa
de carteado atue como um contorcionismo semântico que atenderia
àquele programa de poder.

S U M Á R IO 171
No entanto, também não descarto a possibilidade de somente
alguns centros de umbanda da cidade terem sido escolhidos como
merecedores de um tratamento mais brando e cordial, ao contrário de
outros que conheceriam uma abordagem mais rígida e cabal. Nesse
sentido, me parece no mínimo curioso que o DOM demonstre que só
um dentre os quinze centros de umbanda intimados a pagarem multas
durante a década de 1980 também possua o estatuto de entidade de
utilidade pública: o Centro Espírita Pai Joaquim. Do mesmo modo que
considero revelador que apenas alguns poucos centros de umbanda
tenham sido apontados como possíveis destinos de doações previstas
nas citadas leis orçamentárias. Diante disso, me pergunto se não seria
justamente o grupo de centros intimados a pagarem multas nos anos
1980 um dos que pouco interessava aos representantes do poder pú-
blico municipal. Resta investigar quais eram os critérios que precediam
a escolha desse ou daquele centro, bem como o papel desempenha-
do pela agência dos próprios umbandistas da cidade.

Finalmente, reitero que os pontos que procurei apresentar até


aqui consistem em sondagens iniciais, construídas a partir de um pri-
meiro contato com os dados encontrados no DOM, motivo pelo qual
deixo tantas perguntas em aberto, assim como deixo confessadas as
lacunas e os limites do percurso que construí. Encerro me sentindo
instigada a continuar na busca por entender as estratégias consti-
tuídas pelos agentes dos poderes públicos municipais no trato com
comunidades religiosas afro-brasileiras situadas na capital, atenta às
particularidades do contexto local e às influências do regime militar.
Para tanto, creio que será importante um mergulho no citado arqui-
vo da Polícia Civil do Estado de Goiás, assim como será essencial
retornar às comunidades para dialogar sobre aspectos que toquem
diretamente na temática.

S U M Á R IO 172
REFERÊNCIAS
ARAÚJO, C. R. “Sou fundadeira dessa cidade”: identidade, resistências
e empoderamento feminino na umbanda goianiense. 2020. 464 p. Tese
(Doutorado em Ciências da Religião) – Programa de Pós-Graduação em
Ciências da Religião, Pontifícia Universidade Católica de Goiás, Goiânia,
2020.
BRASIL. Decreto n° 50517, de 02 de maio de 1961. Regulamenta a Lei n°
91, de 28 de agosto de 1935, que dispõe sobre a declaração de utilidade
pública. Dário Oficial da União, Brasília, DF, 02 maio 1961.
GOIÂNIA. Diário Oficial do Município de Goiânia. Goiânia. Gerência de
Imprensa Oficial – Prefeitura de Goiânia. Disponível em: https://www.goiania.
go.gov.br/casa-civil/diario-oficial/ Acesso em: 01 maio 2022.
GOIÂNIA. Regimento Interno da Secretaria de Serviços Públicos de
Goiânia. Diário Oficial do Município de Goiânia, Goiânia, GO, 03 mar. 1970.
GOIÁS. Decreto n° 266, de 11 de novembro de 1970. Regulamenta a Lei nº
84, de 28 de novembro de 1969, que reestrutura a Secretaria de Segurança
Pública. Diário Oficial do Estado de Goiás, Goiânia, GO, 01 de dezembro de
1970.
MARIN, E. F. Entidade de utilidade pública: efeitos jurídicos de sua declaração.
Revista da Faculdade de Direito da UFG, v. 19/20, n. 1, p. 39-46, jan./dez., 1995.
NEGRÃO, L. N. Entre a cruz e a encruzilhada: formação do campo
umbandista em São Paulo. São Paulo: EDUSP, 1996.
NOGUEIRA, L. C. Umbanda em Goiânia: das origens ao movimento federativo
(1948-2003). 2009. 132 p. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de
Pós-Graduação em História, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2006.
ULHOA, C. A. “Essa terra aqui é de Oxum, Xangô e Oxóssi”: um estudo
sobre o candomblé na cidade de Goiânia. 2011. 206 p. Dissertação
(Mestrado em História) - Programa de Pós-Graduação em História,
Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2011.

S U M Á R IO 173
6
Fernanda Gabriela Gonçalves da Silva
Léo Carrer Nogueira

Relações de gênero
nas religiões
brasileiras:
estudo comparativo
dos campos afro-brasileiro
e pentecostal

DOI: 10.31560/pimentacultural/2022.94852.6
INTRODUÇÃO

Neste trabalho buscamos compreender e debater questões de


gênero e seus desdobramentos na sociedade contemporânea dentro
de núcleos religiosos distintos, especificamente no campo religioso
afro-brasileiro e no cristianismo pentecostal. Pretendemos, assim, tra-
çar um paralelo para percebermos as nuances que permeiam e per-
passam o masculino e feminino por meio de uma análise histórica.
Temos por intuito ponderar a respeito de pontos como a construção da
masculinidade e como essa se formou em uma posição que permite
determinar certos fatores da identidade feminina.

Posto que nosso objetivo é lançar uma luz quanto a história do


gênero e como ele constitui questões como as relações entre homens
e mulheres, é primeiro indispensável traçar uma noção do que seria gê-
nero. Seu conceito se fundamenta, de início, em uma necessidade de
determinismo biológico ao ser preciso haver uma relação entre os se-
xos biológicos. Em um segundo momento, o gênero passa a ser uma
construção social, histórica e cultural. Isso por sua vez significa que
as concepções em torno daquilo que notamos e consideramos como
gênero feminino e gênero masculino são concebidas e “alimentadas”
por toda uma formação que as engloba dos primórdios aos dias atuais.

Em um segundo momento, nosso olhar se volta para algumas


religiosidades brasileiras e como elas estão permeadas por relações
de gênero. Tanto as religiões cristãs que se estabeleceram até as reli-
giões afro-brasileiras que aqui se formaram tiveram que lidar com os
diferentes papeis de gênero assumidos e reforçados em seu meio. Pre-
tendemos problematizar as relações de gênero no seio de cada uma
destas matrizes religiosas, afim de compreendermos melhor como elas
podem servir tanto para reforçar quanto para combater determinados
papeis de gênero já estabelecidos na sociedade.

S U M Á R IO 175
Para efeito de análise, constituímos duas grandes matrizes re-
ligiosas, no seio da qual se inserem diversas práticas religiosas com
características específicas, mas que mantem entre si determinadas
relações de continuidade e semelhança. A primeira delas é a matriz
pentecostal, conjunto de Igrejas que surgem a partir de um movimento
de reavivamento ocorrido em finais do século XIX e trazem novas ca-
racterísticas ao movimento protestante. Como afirma Ricardo Mariano
(2008, p. 69-70):
Há centenas de diferentes denominações pentecostais no
país. Dada a diversidade institucional e a pluralidade interna
desse movimento religioso, não é despropositado falar em
pentecostalismos, no plural. Pois, além da presença de ele-
vado número de igrejas existentes e concorrentes, há grande
variação doutrinária, ritual, litúrgica, organizacional (governo
eclesiástico), comportamental e estética nesse meio religioso.
Variam igualmente suas estratégias proselitistas, seus públi-
cos-alvo, sua relação com os poderes públicos, com a po-
lítica partidária e com os meios de comunicação de massa.
Em suma, trata-se de um fenômeno religioso dinâmico e inter-
namente muito diversificado.

No entanto, mesmo com tamanhas diferenças, podemos verifi-


car entre elas alguns elementos que nos permitem trata-las como um
grupo relativamente coeso, como por exemplo
a dimensão organizacional (concentração do poder eclesiástico
e das finanças, gestão empresarial), a formação rápida e acelera-
da de novos pastores, arrecadação agressiva de recursos e seu
crescente investimento no evangelismo eletrônico e na abertura
de novas congregações e campos missionários, a continuidade
cultural com a religiosidade popular, a oferta sistemática de cultos
e serviços mágico-religiosos (MARIANO, 2008, p. 69).

Todos estes fatores podem ser percebidos especialmente nas


maiores congregações pentecostais do país. Nos últimos anos tive-
mos um acentuado crescimento deste segmento no Brasil, saltan-
do de 6,6% da população brasileira em 1980 para a marca de 22%

S U M Á R IO 176
da população brasileira no censo de 2010 (NOGUEIRA, 2018). Os res-
ponsáveis por este crescimento são cinco das maiores igrejas pente-
costais brasileiras, que tiveram um crescimento exponencial nos últimos
anos: “Assembleia de Deus (8.418.154 adeptos), Congregação Cristã
no Brasil (2.489.079), Igreja Universal do Reino de Deus (2.101.884),
Igreja do Evangelho Quadrangular (1.318.812) e Igreja Pentecostal Deus
é Amor (774.827)” (MARIANO, 2008, p. 70). Assim, nos concentraremos
nestas cinco principais igrejas e suas características, especialmente no
que toca às relações de gênero ali estabelecidas.

Em contraposição, daremos ênfase às religiões afro-brasileiras,


especialmente ao Candomblé e à Umbanda, como maiores e mais
consolidadas práticas religiosas de matriz africanas existentes hoje no
Brasil. A história destas religiões, assim como o movimento pentecos-
tal, é marcada pela diversidade e descontinuidades. Apesar disso, elas
conseguiram se manter estáveis em torno de eixos estruturantes, que
nos permitem facilmente identifica-las em contraposição às outras re-
ligiões existentes.

Entre estes elementos podemos citar a relação com o sobrena-


tural por meio do contato com o mundo dos espíritos ou divindades;
o fenômeno do transe mediúnico ou incorporação; a possibilidade de
comunicação e intervenção direta dos espíritos e divindades neste
mundo; e a organização ritualística e cerimonial com elementos afri-
canos (NOGUEIRA, 2017). Tudo isso nos permite falar em um campo
religioso afro-brasileiro distinguível e identificável.

Antes de analisar, portanto, as relações de gênero presente


nestes campos religiosos, precisamos discutir e delimitar o que en-
tendemos por gênero. O conceito tem assumido diversas formas de
abordagem no interior da academia, e tem permitido a análise de no-
vos objetos históricos e sociais a partir de um novo olhar, baseado nas
relações entre homens e mulheres, assim como nos papeis sociais
assumidos por cada um dos sexos na sociedade.

S U M Á R IO 177
DEFINIÇÃO DO CONCEITO DE GÊNERO

As relações de gênero são algo que vem sendo cada vez abor-
dadas nos estudos históricos. Discutir gênero, hoje, significa dar ên-
fase às relações desiguais e naturalizadas que se fizeram estabelecer,
ao longo da história, e em diferentes contextos e realidades, a respeito
das diferenças entre homens e mulheres e nas formas como eles eram
tratados. Assim, podemos afirmar que
a construção dos gêneros e das sexualidades dá-se através de
inúmeras aprendizagens e práticas, insinua-se nas mais distin-
tas situações, é empreendida de modo explícito ou dissimulado
por um conjunto inesgotável de instâncias sociais e culturais.
É um processo minucioso, sutil, sempre inacabado. Família,
escola, igreja, instituições legais e médicas mantêm-se, por
certo, como instâncias importantes nesse processo constitutivo
(LOURO, 2008, p. 18).

Além disso, “gênero assinalava o interesse da historiografia em


uma história que incluía os discursos dos ‘oprimidos’, numa análise do
sentido e da natureza desta opressão” (TORRÃO FILHO, 2005, p. 130).
Por meio desse entendimento também se concebe o emergir da histó-
ria das mulheres como um campo de estudo que se move atrelado à
evolução do feminismo.

Todavia, ainda que reconhecida como um estudo dentro da aca-


demia e do meio científico, por vezes a história das mulheres passa a
ser vislumbrada e compreendida de maneira simplista, que a catego-
riza como um “assunto de mulheres”. Assim, reduz-se os estudos a
algo que diz respeito ao interesse único e exclusivo do feminismo e/
ou das mulheres. Nesta abordagem, o estudo se volta para aspectos
especificamente canonizados como pertencente “às mulheres”, como,
por exemplo, a família, a reprodução e o sexo. Exclui-se a possibilida-
de de se lançar um olhar para a história da mulher como forma de se
entender temáticas como guerra, economia, política, etc.

S U M Á R IO 178
A partir deste ponto, somos levados a indagações que se voltam
para como são historicamente estruturadas as relações de poderes
entre gêneros. Por meio de percepções individuais, como também do
próximo, nós, enquanto sujeitos, construímos as ideias que demarcam
uma divisão social que se baliza através de diferenças e semelhanças
padronizadas entre os sujeitos. Estas certamente influenciam, propa-
gam e moldam as perspectivas que permeiam a sociedade.

“As divisões sociais envolvem uma rede de atividades de grupo,


complexa e largamente invisível, dada como certa, que produz, distri-
bui e regula a produção de bens e serviços” (SANTOS, [s.d.], p. 02),
logo, fazem parte de um princípio responsável pela organização social.
Essa é estabelecida e perpetuada por crenças culturais dominantes,
afinal, é socialmente construída, e isso por sua vez significa que não
há nada de “natural” em sua constituição e existência.

Logo, ao pensar em desigualdade social entre gêneros, pode-


mos caracteriza-la como um efeito do acesso desproporcional entre
homens e mulheres aos recursos materiais ou simbólicos. Isso ocorre
em razão das divisões sociais que fragmentam a sociedade em partes.
Há, então, dois mecanismos que operam junto ao cerne das desigual-
dades sociais, que são as capacidades e funcionamentos.
Compreendemos que capacidades são possibilidades de es-
colha, isto é, poderes para fazer ou deixar de fazer algo. Está
relacionado com acessibilidade aos recursos, porém para a uti-
lização destes recursos e, fundamentalmente, para a conversão
desses recursos em bem estar, as habilidades e talentos indivi-
duais são muito importantes. Já os funcionamentos estão rela-
cionados com os estados e ações que uma pessoa consegue
realizar vivendo de algum modo (SANTOS, [s.d.], p. 03).

Desse modo, pode-se entender como temos historicamente


construído em nossa sociedade a noção de que a “natureza” feminina
relaciona-se crucial e indispensavelmente com a fragilidade e amabilida-
de, dentre outras ações discursivas que reproduzem a ideia de o gênero

S U M Á R IO 179
feminino associar-se com a casa, a família, ao marido, e moldada como
uma figura passiva e submissa, ao passo que cabe ao homem assumir
um posto reverso ao se mostrar vigoroso e forte. Encontramos assim
uma legitimação das desigualdades sociais baseadas no gênero.

É preciso lembrar e pontuar que, como construções históricas,


devemos entender que o gênero enquanto produção pode ser modifi-
cado, pois não se trata de algo imutável ou mesmo inerente à natureza
para determinar-se como pronto e acabado, como uma invenção so-
cial que se propaga historicamente. Gênero nada mais é do que um
mecanismo cultural elaborado e inacabado. Além disso “os sujeitos se
identificam, social e historicamente, como masculinos ou femininos e
assim constroem suas identidades de gênero” (LOURO, 1997, p. 26).

Podemos compreender e confirmar que não há absolutamente


nada de puramente “natural” no gênero, ao se contemplar e entender
como “ser homem” ou “ser mulher”, nos vemos dentro de processos que
se constituem e acontecem dentro do meio cultural e que se baliza his-
toricamente para a sua formação e concepção diante de nossos olhos.

Logo, nenhuma identidade de gênero deve ser tida como nativa


dos seres humanos, elas são e sempre serão construídas. Como tam-
bém sempre estarão em um processo constante de formação, afinal,
são inacabadas, e por isso instáveis, em um movimento constante de
constituição. Em conclusão, gênero, os papéis socialmente inscritos
aos sujeitos que a eles “pertencem”, como também as desigualdades
sociais aos quais são frutos, são passíveis de transformações e de
se verem, futuramente, em um padrão de regras arbitrárias diferentes
caso a sociedade estabeleça ao longo da história, novos padrões e
comportamentos cabíveis para os seus membros.

S U M Á R IO 180
RELAÇÕES DE GÊNERO NAS
RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS

Nas práticas religiosas podemos perceber como este conceito


de gênero está presente e é responsável por estruturar vários elemen-
tos no interior delas. De um certo modo, ao analisarmos os discursos
presentes tanto nas religiões afro-brasileiras quando nas pentecos-
tais, podemos identificar alguns padrões em relação à forma como
mulheres e homens são vistos dentro destas religiões. Podemos to-
mar como exemplo, no interior das religiões afro-brasileiras, a Um-
banda e o Candomblé.

Se em uma maior gama de religiões tem-se o homem como de-


tentor do poder religioso e responsável pelo papel de mediação entre
os humanos e os deuses, em que, apenas alguns homens dentro da
sociedade veem-se em posição de conversar e/ou ouvir vozes divi-
nas, as religiões afro-brasileiras rompem com essa noção. No meio
das expressões culturais e tradições afro-religiosas, rompe-se o papel
de submissão em que a mulher é colocada em relação ao homem.
O poder feminino dentro das religiões afro-brasileiras está, por sua vez,
intimamente relacionado à condição da mulher em gerar filhos.
A mulher congrega o duplo papel de dar à luz a filhos biológicos
e também o de abrir caminhos para que, por meios dos homens
(os filhos-de-santo), os deuses venham ao mundo. A mulher é
considerada a dona do axé nas religiões de origem nagô porque
o seu papel é o de criar, de fecundar, de dar vida, o que lhes
confere dignidade e respeitabilidade (BRASIL, 2012, pg. 11).

Toda a discursividade destas religiões, que se atrelam à igualdade


e democracia, não se isenta ao refletir, também, nas questões de gênero,
em que temos mulheres em posição de liderança e grande importância.
Tal fato representa uma ruptura com os padrões cristãos e eurocentra-
dos, em que cabe ao homem o papel principal de poder e influência.

S U M Á R IO 181
Para a Umbanda, por exemplo, as práticas e tradições não gi-
ram em volta de um pensamento patriarcal, misógino e principalmente,
excludente. A mulher não é desautorizada frente ao intento de realizar
um papel de liderança. O papel da mulher vai além da submissão,
afinal, historicamente talhadas por lutas em busca de garantir seus
direitos dentro de uma sociedade machista e patriarcal.

As mulheres que passam a, efetivamente, ocupar mais lugares


e posições importantes no meio social, político e cultural, também de-
vem tomar a frente no cenário religioso. As mulheres da Umbanda, por
sua vez, não só possuem uma história de luta por seus direitos, como
também uma história de resistência frente a sociedade colonial e racis-
ta, como demonstra um estudo feito por Lísias Negrão sobre o campo
afro-brasileiro na cidade de São Paulo:
No que se refere à condição social dos “chefes de terreiro”, é o
predomínio feminino. Nada menos do que 67 deles, ou 79,7%
dos 84 amostrados, são mulheres. Oscilando entre os trinta e os
77 anos de idade, são predominantemente casadas: 41 delas,
ou 61,2% do respectivo total (NEGRÃO, 1996, pg. 175).

Assim, é possível dizer que a Umbanda age de forma a romper


com a lógica patriarcal cuja sociedade está historicamente impregna-
da. Sua constituição e organização transgredem com esses valores e
trazem um renovar das composições de valores e sentidos dentro do
espaço religioso.
Por ser a umbanda uma religião basicamente livre de dogmas,
e bastante receptiva, veio a se constituir como uma alternativa
sacral importante para diferentes segmentos sociais que vivem
numa sociedade como a nossa. De todo modo, o desprendi-
mento de suas amarras étnicas originais a transformou numa
religião para todos (BRASIL, 2012, pg. 15).

Ao se negar uma estruturação dominante da sociedade brasi-


leira dentro da religião, a Umbanda não só rompe com os dogmas em
que apenas homens se veem em papéis de liderança. Aqui, também

S U M Á R IO 182
há a abertura para que homens possam receber entidades femininas,
assim como mulheres receberem entidades masculinas. “A oposição
homem – mulher não se dá como na vida social mais ampla: ela passa
a ser diluída e a possessão salienta o caráter andrógino dos possuí-
dos” (BRASIL, 2012, pg. 12). Essa inversão de status da então “orga-
nização hierárquica” da sociedade brasileira está, então, intrínseca à
todas as partes da Umbanda, assim como do campo afro-brasileiro
como um todo.

Logo percebe-se que na Umbanda a mulher encontra-se em um


espaço em que ela pode se ver em uma função equiparada ao homem,
seja nos rituais ou cerimônias, os papéis femininos e masculinos são
nivelados. Assim, de acordo com a concepção umbandista, a mulher
é igual ao homem, logo, não há segregação de gênero.
A presidenta ou mãe de Santo dirige os trabalhos desde a aber-
tura até o final. Filhas de santo ou médiuns colaboram com a
mãe na incorporação, na higiene da casa, nos cantos ou curim-
bas. Podem bater atabaques, tudo que concerne no bom an-
damento da religião, responsabilidades também dos homens
(SILVA, 1998, pg. 28).

Assim, uma pessoa, independentemente de seu gênero poderá


ser considerada Pai ou Mãe de Santo desde que as entidades queiram
a(o) ter no comando de uma casa. A posição da liderança assegurada
às mulheres no interior das religiões afro-brasileiras é algo histórico. Na
formação do Candomblé baiano, a partir do século XX, por exemplo,
tivemos a estruturação de um verdadeiro matriarcado, notado inclusive
por muitos dos intelectuais que se dedicaram a analisar a formação
desta religião, como Ruth Landes (2002, p. 321):
Esses sacerdócios nagôs na Bahia são quase exclusivamente
femininos. A tradição afirma que somente as mulheres estão
aptas, pelo seu sexo, a tratar as divindades e que o serviço dos
homens é blasfemo e desvirilizante. Embora alguns homens se
tornem sacerdotes, a razão, ainda assim, é de um sacerdote

S U M Á R IO 183
para 50 sacerdotisas. Muita gente acha que os homens não
devem tornar-se sacerdotes e, em consequência, um homem
alcança esta posição apenas sob circunstâncias excepcionais.
De qualquer modo, jamais pode funcionar tão completamente
como uma mulher.

O registro da presença feminina na fundação destes terreiros é


bastante sintomático da importância que as religiões de matriz africanas
dão às mulheres em seus cultos. O protagonismo feminino pode ser in-
terpretado como uma forma de valorização da mulher na busca e manu-
tenção do axé, poder vital que daria vida a todas as coisas, segundo os
Iorubas. Alguns anos depois podemos notar, ao nos debruçarmos sobre
os rituais de candomblé praticados na Bahia, que a presença feminina
na liderança dos cultos se tornou uma importante tradição. Ruth Landes,
por exemplo, ao analisar estes cultos, encontrou uma massiva presença
feminina na liderança dos terreiros de candomblé.

A dominância feminina era tão grande, que muitas mães de san-


to se recusavam a iniciar “filhos” do sexo masculino. Estes acabavam
assumindo outros cargos no terreiro, como de Ogã e Alabê (que não
entram em transe). Em vários terreiros a iniciação de homens como
Iaôs (que entram em transe) era tida como tabu, e muitas mães se
recusavam a fazê-lo. Ainda hoje é comum encontrar este tipo de inter-
dição nos terreiros mais antigos e tradicionais, nos quais ainda há uma
certa resistência à iniciação de homens como Iaôs. É o caso da Casa
Branca, tido como o terreiro mais antigo do país, na qual ainda hoje
encontramos uma estrutura rigidamente feminina:
Em alguns terreiros, nos mais conservadores, a supervaloriza-
ção das mulheres como dirigentes de terreiro ainda é predomi-
nante. Neles, há restrições para homens. A sacerdotisa entrevis-
tada revela que na Casa Branca, uma das mais tradicionais de
Salvador, não há iniciação de homens prováveis pais de santo,
há somente iniciação de ogãs. Elas não iniciam homens, por-
que a casa é totalmente feminina, como na casa da minha mãe
de santo no Afonjá. A minha mãe de santo inicia homens, mas

S U M Á R IO 184
jamais quando ela fechar os olhos, homem nenhum senta na-
quela cadeira, senta-se mulher (...) a casa da minha mãe com-
pleta 100 anos em 2010, ela é a 5ª mulher que está no poder
(Entrevista realizada dia 04/04/2008) (BASTOS, 2009, p. 160).

Entre as possíveis explicações para esta predominância feminina


nos cultos de origem africanos, está a própria natureza do transe. Este
é explicado, na maior parte destes terreiros, como uma possessão, em
que o ser sobrenatural “penetra” no corpo do iniciado. Segundo Matory
(1988), tal relação vem da própria cultura ioruba, na qual a relação entre
o sacerdote e o orixá é baseada na possessão do primeiro pelo segun-
do, quando este penetra no corpo do segundo. Isso estabelece a divin-
dade no polo masculino (o que penetra), e o sacerdote no polo femini-
no (o que é penetrado). Tal relação pode ser notada inclusive na forma
com que tais relações são denominadas pelo termo ioruba gun, que é o
mesmo termo utilizado tanto para “a entrada da divindade na cabeça do
iniciado”, quanto para “uma pessoa que monta um cavalo e [também]
um homem que monta o(a) parceiro(a)” (MATORY, 1988, p. 222).

Neste caso, portanto, a masculinidade não seria apropriada


para o trabalho com os orixás. Isso explica, em parte, a resistência de
certas mães de santo em iniciar filhos de santo como iaôs, e também a
predominância de personagens femininas, sejam mulheres ou homos-
sexuais, no trabalho com os orixás. No caso dos homossexuais, estes
são vistos como elementos femininos, homens que são “montados”
por seus parceiros, e, portanto, aptos também a serem “montados”
pelos orixás. Esta é a tese central do artigo de Matory, que pretende
explicar a grande quantidade de homossexuais masculinos como pais
de santo nos terreiros baianos. “Na articulação entre concepções po-
pulares brasileiras de gênero e o abrangente simbolismo ioruba de
relações cósmicas, as bichas e as mulheres são depositárias normais
de poder divino. No papel de sacerdote mediúnico, o ‘homem’ seria o
desviante” (MATORY, 1988, p. 230-231, grifos do autor).

S U M Á R IO 185
É por isso que, segundo Landes, mesmo quando algum homem
caía no transe durante o ritual, ou seja, era possuído pelo orixá, a des-
confiança se estabelecia, e eles tinham que ser submetidos a provas
para demonstrar que estavam mesmo em transe. O transe era visto
como mais natural quando ligado ao sexo feminino:
Os meninos “filhos” podem ser chamados iniciados passivos,
ou inadvertidos, em contraste com os homens que persistente-
mente solicitam iniciação. Certa mãe nagô hesita antes de “fa-
zer” homens, mesmo após terem caído no transe ritual durante
o qual dançam possuídos por um deus que neles penetrou e
transmitem, na sua voz, a mensagem divina. Ela os submete às
provas tradicionais do fogo e do óleo fervente, como o faz com
as mulheres sob suspeita de fingimento. Vi, certa vez, uma mãe
expulsar um jovem que habitualmente caía em transe e man-
dar pregar este aviso no poste central da sala de cerimônias:
“Pede-se aos cavalheiros o favor de não perturbar os ritos nem
dançar no espaço reservado às mulheres”. E “mulheres” eram
as sacerdotisas (LANDES, 2002, p. 323).

Em alguns terreiros de umbanda que visitamos, pudemos notar


que é bastante comum a chamada incorporação de médiuns femini-
nos por entidades masculinas (caboclos, pretos-velhos e até Exus).
No entanto, o inverso é menos encontrado. Em muitos terreiros ainda
há a interdição de que médiuns masculinos sejam incorporados por
entidades femininas, especialmente pombagiras. Na visão dos líderes
destes templos, tal incorporação seria “inapropriada” por estar asso-
ciada à homossexualidade. Os preconceitos terrenos acabam, assim,
influenciando na própria prática do ritual. Na maioria dos terreiros onde
este tipo de incorporação é aceito e praticado, ele é feito por médiuns
homossexuais. Assim podemos perceber que a presença feminina em
papéis de destaque nos candomblés baianos teria como explicação a
possibilidade de ser “montada” pelos orixás.

Ainda hoje o exercício do poder feminino é bastante comum nos


cultos afros, tanto nos terreiros de candomblé quanto de umbanda.

S U M Á R IO 186
Encontramos em nossas visitas de campo uma quantidade conside-
rável de mães de santo e presidentes de centros (dependendo da de-
nominação do centro/terreiro/roça). Embora haja uma mesma quanti-
dade de líderes do sexo masculino, demonstrando que as interdições
que existiam inicialmente à possessão masculina foram superadas ao
longo dos últimos anos, só a possibilidade da existência do sacerdócio
feminino nestas religiões já é o suficiente para diferenciá-las da maior
parte das outras religiões presentes no território brasileiro, especial-
mente as cristãs, que ainda em sua maioria colocam a mulher apenas
em cargos subalternos dentro dos templos.

O PATRIARCALISMO NAS
IGREJAS PENTECOSTAIS

Ao fazermos a comparação com as práticas cristãs, mais es-


pecificamente do campo pentecostal, podemos perceber a maneira
como se dão os atravessamentos destas igrejas em relação as práti-
cas religiosas das mulheres e o contraste existente com a posição as-
sumida pela mulher dentro das religiões afro-brasileiras. A assimilação
de como novos discursos são criados e outros são (re)moldados para
serem reposicionados nas práticas religiosas das mulheres. Logo, lan-
çamos um olhar para o feminismo e a teologia para assim termos a
assimilação do que seria a “Teologia Feminista”, cujo intento enlaça-se
ao promover a noção de igualdade entre homens e mulheres, não so-
mente no espaço social, como também dentro da igreja.

O campo cristão é, por sua vez, uma área patriarcal e, dessa for-
ma, inegavelmente machista. O atrelar do Cristianismo à dominância
dos homens garante-nos a sustentação dos mesmos em uma posição
de privilégios, seja no espaço religioso ou fora dele, onde as práticas

S U M Á R IO 187
de fé e dogmas são igualmente empregados e percorrem a constitui-
ção dos sujeitos.
Na crítica feminista laica e religiosa havia, então, embate explíci-
to contra a hierarquia católica masculina, que ditava regras para
a vida das mulheres, perpetuando a desigualdade de gênero.
Na crítica feminista católica se contestava os lugares que as mu-
lheres ocupavam na Igreja – tal qual a impossibilidade da orde-
nação feminina – que apontavam para as questões de poder e
de gênero em luta no campo religioso (SCAVONE, 2008, pg. 02)

No entanto, o espaço da igreja é majoritariamente frequentado


por mulheres, ainda que seus cargos e ocupações prestigiadas sejam
incumbidas e resguardadas aos seres humanos do sexo masculino.
Os efeitos de uma sociedade globalizada em que informações são
trocadas com extrema facilidade, possibilitou que a ideologia de uma
teologia feminista se expandisse e atingisse novos horizontes. Isso, é
claro, não garantiu a modificação dos espaços religiosos de terem ho-
mens como o seu centro de poder. Todavia, oportunizou a chance de
maior mobilização por parte de mulheres cristãs que se veem em uma
luta por espaço e direitos dentro da religiosidade ditada por homens.

Haver transformações nos papéis e relações de gênero de-


sempenhadas pelos sujeitos que compõem um grupo religioso não
significa que essas alterações sejam abrangentes com um todo, há
persistência. Há, no caso, uma persistência social da dominação mas-
culina (BOURDIEU, 1998, apud SCAVONE, 2008, pg. 03). Essa perma-
nência, é, por sua vez, agravada por uma construção social em que
mulheres se veem em posições desfavoráveis a sua própria existên-
cia, subjugadas de modo que as questões de gênero que atravessam
sua formação enquanto sujeito, colocam-nas em uma condição em
que buscar conforto na fé e religião, se trata de uma necessidade,
“seja pela manifestação das inquietudes da alma e do espírito, ou pela
necessidade do exercício da crença e/ou da busca pela salvação”
(SCAVONE, 2008, pg. 04).

S U M Á R IO 188
Assim, cria-se um vínculo entre a igreja e a mulher, e dentro
deste vínculo a mulher se vê, conscientemente ou não, em uma hie-
rarquia em que é forçada às vontades e normas produzidas, organi-
zadas e posicionadas pelos homens e sua ordem estrutural, os quais
aproveitam-se da carência feminina diante de temas como desaven-
ças familiares e/ou necessidades materiais e espirituais do universo
doméstico. A procura pela religiosidade não se dá pelas mesmas
razões ao olhar-se as motivações de homens e mulheres:
[A]s qualidades alocadas ao gênero masculino no sistema he-
gemônico de representações parecem distanciar os homens
das prescrições religiosas de uma forma geral e, em especial,
do ethos pentecostal, enquanto os atributos femininos favore-
cem as experiências das mulheres com o sagrado e os vínculos
com as comunidades religiosas (MACHADO, 2005, pg. 389).

Por outro lado, apesar de haver a persistência da ordem mascu-


lina, há também no espaço religioso um discurso que busca conduzir
os homens, enquanto fiéis, em direção a uma ressignificação de seus
papéis dentro do núcleo familiar, pois se intenta os guiar em direção
a um comportamento que se assimila e dialoga com a subjetividade
feminina. Este é marcado pela amabilidade, calma, confiança, tole-
rância e carinhos, um comportamento cuidadoso e docilizado que se
cria uma possibilidade de haver uma reconfiguração da constituição
familiar em que o desempenho da mulher e do homem se coloquem
em posições mais igualitárias.

Em uma perspectiva das igrejas pentecostais é possível notar


também o rearranjar da subjetividade feminina e quais deveres e fun-
ções são cabíveis e concebidos às mulheres, processo que fortalece a
autonomia feminina perante sua vida familiar, como também em outros
âmbitos como o profissional e a própria igreja, demonstra-se como um
dos posicionamentos de enfretamento das mulheres diante da persis-
tência dos homens em se manterem dominantes. Assim, conquistam
o direito de desenvolverem atividades além do cenário doméstico, mui-
tas vezes atuando em prol da igreja.

S U M Á R IO 189
Sinteticamente, o engajamento nesses grupos possibilita às
mulheres também uma maior participação na esfera pública,
com algumas pentecostais evangelizando em praças públicas,
realizando trabalhos voluntários em presídios, hospitais e enti-
dades filantrópicas, participando de programas religiosos tele-
visivos e radiofônicos (MACHADO, 2005, pg. 389).

O tomar – ou a tentativa de o fazer – do controle pastoral das


igrejas, dentro das práticas pentecostais nos permite observar como
a participação das mulheres no sacerdócio se molda como uma nova
tradição evangélica em que o pentecostalismo se coloca em enfoque
diante das reinvindicações femininas. Dado que “as trajetórias de al-
gumas das mais expressivas lideranças pentecostais revelam a im-
portância dos vínculos domésticos e o papel decisivo dos homens
no processo de ascensão das mulheres nas hierarquias religiosas”
(MACHADO, 2005, pg. 391).

Isso, é claro, não deixa de desenhar o papel masculino como


indispensável ou até mesmo principal mesmo dentro da jornada fe-
minina. Isso se dá por uma construção social que coloca o homem
como uma peça fundamental para a jornada feminina, e em que sua
ausência acarretará em fracasso, seja ele em nível de se concluir o
objetivo cujo qual se intenta alcançar, ou mesmo a ideia de que de-
sacompanhada da figura do homem e daquilo que ele deve prover a
ela – a constituição de uma família; a vida dessa mulher em questão
estará incompleta.
Entre as proposições trabalhadas por esse discurso pode-se
apontar as críticas manifestadas aos conteúdos tradicionais da
fé: o monoteísmo, a imagem masculina da divindade, a figura
submissa e virginal de Maria; as interpretações sexistas dos tex-
tos sagrados (ROSADO, 2001, pg. 84)

Todas essas práticas discursivas se desdobram de modo que


operem em razão de se colocar a mulher abaixo da persistência mas-
culina e sua força hierárquica que opera em razão dos homens e

S U M Á R IO 190
demérito da mulher. A percepção deste paradigma em que se tem
a acentuação da presença da mulher dentro da igreja acaba por ser
demandado frente a ótica masculina, encontrar meios de manter essa
desenvoltura e atuação feminina sob controle. Assim se enlaça o pa-
pel da mulher à figura submissa em que cabe caminhar junto ao seu
parceiro, nunca adiante, nunca desacompanhada. A assistência mas-
culina deve participar de sua realidade, percurso familiar, profissional e
principalmente: espiritual.

As consagrações, conquistas e feitos das mulheres dentro do


cenário religioso do cristianismo são fortemente atrelados aos seus
cônjuges, dessa forma não é possível fugir do preservar da depen-
dência feminina em relação aos homens que ocupam uma posição de
tutor. Cabe aos maridos a tutela de suas esposas ainda que elas este-
jam exercendo sua posição dentro do ministério pastoral. Concebe-se
a noção de liberdade e autonomia às mulheres, no entanto, a liderança
masculina permanece, a resistência à independência feminina conti-
nua a se manifestar e a dificultar a execução de uma realidade de fato
equitativa entre gêneros.
A restrição da mulher nas relações de poder entre os gêneros é
visível. Isso fica claro na ordenação conjunta, em que sua ima-
gem é associada à figura masculina, a fim de que sua nova
função seja legitimada nas lideranças eclesiásticas (ARAGÃO
FILHO, 2011, pg. 64).

Atinge-se, então, o entendimento de que a valorização da mu-


lher ocorre por meio e graças a sua união com um homem. O casa-
mento opera como uma ferramenta apta a propiciar a falsa noção de
emancipação feminina no espaço religioso cristão, sua soberania para
com sua própria constituição enquanto sujeito só lhe cabe enquanto
se posiciona como esposa. Seus trabalhos e feitos são valorizados não
pelo reconhecimento que isso proporciona a si, mas sim pela concep-
ção de sua imagem costurada a de um marido.

S U M Á R IO 191
O que se observou no espaço da Igreja Sara Nossa Terra (ISNT)
foi que os cargos são passados ao casal tomando-se como
referência o homem para a escolha. Elas participam do cargo
por serem esposas “do” homem que foi eleito pela instituição.
Na prática, as mulheres que assumem algum tipo de cargo não
são escolhidas, por sua reflexão e contribuição, mas por serem
casadas. Isso significa que para que elas possam ter maior vi-
sibilidade no espaço religioso se faz necessário dar um novo
conteúdo aos cargos que elas ocupam em virtude de serem
esposas de homens escolhidos (ARAGÃO FILHO, 2011, pg. 65).

O conhecimento de todos esses fatores se choca ao se ter o


refutar dessa compreensão e realidade, feministas e teólogas cristãs
partem da idealização de se romper com essa concepção tradicional
e conservadora que se canonizou socialmente a respeito da mulher
e do que se entende por “natureza feminina”, com o propósito de se
romper com as noções que fortalecem, religiosa e socialmente, o
vislumbre da mulher enquanto “a parte fraca” da comunidade. Assim,
visa-se a reorganização das instituições de maneira que não seja
obrigado que a afirmação e atividade feminina ocorra em união ao
homem. “Leva-as ainda à reivindicação do reconhecimento de sua
condição de agentes morais, capazes de escolhas éticas em todos
os campos da vida” (ROSADO, 2001, pg. 85).

A luta por essas reivindicações e aplicações dessas ideologias


deve ser constante, afinal, não há nenhuma novidade ou surpresa em
se afirmar, ou mesmo relembrar, o fato de o cristianismo se balizar em
uma construção patriarcal em que o foco se encontra em manter os
direitos que garantem as liberdades que salvaguardam o monopólio
masculino dentro das relações de poderes de gêneros. Por essa ra-
zão, o rejeitar da independência feminina não só se emparelha a uma
necessidade de se perpetuar o cânone teológico em que o papel da
mulher diante do seu cônjuge mantém as raízes no ideal cristão de um
papel submisso e passivo.

S U M Á R IO 192
Ao observar e analisar o pentecostalismo e sua ligação com as re-
lações de poderes produzidos pelos gêneros também se faz necessário
impulsionar as análises em com olhar direcionado às questões de classe.
Esse carecer ocorre em virtude da forte presença das igrejas pentecos-
tais nas comunidades periféricas, a índole religiosa do pentecostalismo
se associa ao oferecer de soluções rápidas e imediatas aos fiéis que
buscam pela resolução de seus problemas materiais. (MARIANO, 2008).
Essa ética, por sua vez, ao oferecer a troca do dízimo, tais práticas reli-
giosas, que em teoria buscam sanar suas urgências sociais, alimentam
também a prosperidade do capital e da sociedade capitalista.
A pertença a uma igreja que reforça a autoestima, enfatiza o
presente e estimula a busca da prosperidade certamente aju-
da na superação dos constrangimentos da cultura tradicional,
favorecendo a participação da mulher na esfera econômica
(MACHADO, 2001, pg. 390).

Além de ser indispensável se pensar nos desdobramentos do


pentecostalismo diante das questões de classe, também se é inevitá-
vel a percepção de sua construção enquanto mercado. A adoção por
parte dos pentecostalismos das práticas de mercado pode ser obser-
vada ao se notar como valores, princípios e mesmo práticas desse
sistema são encontradas em sua formação. Como por exemplo, temos
a propaganda, utilizada para introduzir na mentalidade dos fiéis a idea-
lização de produtos a serem vendidos, produtos que necessitam de
compradores, e esse cargo deve ser ocupado pelos fiéis que devem
ser convencidos da obrigatoriedade de se ter acesso aos produtos.
Estudos bíblicos são vendidos, produtos religiosos ofertados em sites
e revistas de modo que ocorra a naturalização deste mercado.
Ser cristão tornou-se o meio primordial para permanecer li-
berto do Diabo e obter prosperidade financeira, saúde e triun-
fo nos empreendimentos terrenos. Manter relação com Deus
passou a significar se dar bem na vida. Nessa dinamicidade
de mercado, a ‘novidade’ é a alma dos negócios (ARAGÃO
FILHO, 2011, pg. 71).

S U M Á R IO 193
Se por um lado o aparecimento da igreja pentecostal nas peri-
ferias se aproveita das carências de mulheres em situação de vulnera-
bilidade e marginalização social, que procuram conforto e refúgio na
religiosidade como meio de encontrar melhorias para sua vida material
através da fé e ações divinas; do outro encontramos mulheres que
desempenham o papel de propagar esse imaginário como também de
vender construções sociais simbólicas da religiosidade e pentecosta-
lismo. Cabe a essas mulheres produzirem um discurso que dê lugar a
uma espera de valores mercantis.

Também conectado as questões de classe, está a forma como


a igreja pentecostal atua dentro da política de modo que consegue
costurar interesses religiosos. Uma vez que o pentecostalismo opera
em uma base social cuja ocupação na hierarquia social não só os pro-
porciona poucos recursos como também nega acesso a direitos bási-
cos – como lazer, educação, saúde e etc.; de modo que encontrem na
religiosidade um amparo e estejam suscetíveis à influência dos líderes
religiosos para além das noções de mercado.
Assim, se o político consegue a anuência dos dirigentes da de-
nominação para participar de cultos, distribuir material da cam-
panha e falar com os fiéis, ele não só tem a oportunidade de
ter acesso a um grande público, como pode ser reconhecido
como um representante dos cristãos. Deve-se lembrar também
que tais grupos são constituídos majoritariamente por mulheres
e a representação desse segmento no eleitorado brasileiro vem
crescendo nas últimas décadas, fator que só aumenta a atração
das agremiações partidárias pelas comunidades pentecostais
(MACHADO, 2001, pg. 393).

A percepção da mulher enquanto um sujeito hábil de cativar ou-


tra mulher, trouxe o aumento e valorização da presença feminina na
política, aumentando o número de candidaturas femininas evangélicas
nos processos eleitorais. É claro, perceber e analisar o aumento e o
processo de aceitação da mulher na política religiosa traz a assimila-
ção de uma estratégia das lideranças para se ampliar as vitórias em

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uma eleição, logo a candidatura de mulheres permeia e atravessa uma
lógica em que sua atuação é apta para engajar votos.

Toda a construção da mulher dentro do cristianismo, e princi-


palmente da igreja pentecostal, é formada com a intenção de se ter
uma identidade de gênero balizada junto àquilo que se é considerado
como qualidades da subjetividade feminina — amabilidade, cuidados,
proteção, dentre outros. Essa subjetividade pode até mesmo sofrer
com tentativas de serem replicadas em homens, com a intenção de
os fazerem mais aplicados a sua família – e por aplicação entenda-se
a necessidade hierárquica dentro da igreja de se ter o homem sempre
junto a mulher como um tutor, a resguardando e comandando –, assim,
preserva-se a dominação masculina.

A mulher enquanto integrante da igreja e atuante no cristianismo


é certamente uma figura de importância, ainda que sua valorização
não seja contemplada como um todo ou mesmo valorizada tal qual
deveria. Há uma mudança de contexto sócio-histórico que concebeu
alguns direitos e avanços sociais para elas enquanto sujeitos atuantes
de uma sociedade religiosa. Essas transformações que ocorrem frente
ao papel da mulher, sem dúvidas ocasiona em movimentações para o
desempenho masculino dentro dessa ordem, em que apesar de a hie-
rarquia o colocar em um arranjo dominante, a mulher passa a conquis-
tar, ainda que a curtos passos, um lugar mais próximo da equidade.

Por exemplo, a ocupação da mulher em cargos de liderança


dentro da igreja ou mesmo em cargos políticos, demonstra a sua ca-
pacidade de avançar aos poucos em direção ao desprendimento da
dominação masculina que impera em sua realidade no momento pre-
sente ao colocá-las em circunstâncias em que são vistas e tidas como
válidas ao serem acompanhadas pela imagem de um casamento, de
um marido, da necessidade de se constituir uma família cristã e assim
agir por e para ela, ainda que se tenha liberdade de se inserir em outros
espaços, como o profissional.

S U M Á R IO 195
Compreende-se e afirma-se que por meio desses debates é
possível perceber que a tomada da mulher pelo seu direito de ocupar
um espaço seja ele religioso, profissional ou mesmo no núcleo familiar,
trata-se de uma conquista resultante de uma luta contínua e distante de
um fim, bem como em determinados pontos sua adesão como líderes
religiosas ou mesmo políticas, mostra-se um meio de se trabalhar não
só a fé de suas fiéis, é também um exercício para se traçar o trajeto de
autonomia e libertação dessas outras mulheres.

CONCLUSÃO

Ao pensarmos toda a questão de gênero que circula a constru-


ção da mulher e os papéis aos quais se vê envolta dentro do campo
religioso afro-brasileiro e das Igrejas pentecostais, passamos também
por uma análise a respeito de como essas são construções discursivas
histórias cerceadas pelo espaço histórico, social e cultural que edifi-
cam essas performances bem como dizem quais são elas e porque
delas serem possíveis.

A dissemelhança entre a formação de gênero dentro das práticas


e tradições dessas religiões são percebidas por meio de um olhar que
observa toda a engrenagem social que resulta nos seus frutos. A Um-
banda e o Candomblé, enquanto religiões afro-brasileiras, nos traz uma
formação que desde suas raízes estão presentes em foco as pessoas
marginalizadas. Essas pessoas formam religiões que se contrapõem ao
cristianismo, em particular as igrejas pentecostais aqui analisadas.

Tanto a Umbanda quanto o Candomblé, enquanto religiões in-


discutivelmente imbricadas na luta e na resistência contra as opressões
que seus adeptos sofrem, trazem a mulher em um papel de destaque.
Relacionado ao âmago que herda das religiões africanas em que se tem

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a mulher em posição de liderança, as religiões afro-brasileiras rompem
com o caráter misógino e machista de uma sociedade patriarcal em que
cabe ao homem a posição de poder e controle dentro da religião. A mu-
lher como uma figura pertencente a um grupo de minoria na sociedade
brasileira encontra-se em um novo cenário dentro destas religiões.

Por outro lado, ao pensarmos a mulher dentro das igrejas pen-


tecostais, encontramos então um ambiente em que a afirmação da
mulher deve ser mais incisiva. Isso deve-se à construção extremamen-
te patriarcal do cristianismo como também das próprias igrejas pen-
tecostais, cujos valores conservadores são demasiadamente sólidos.
Ainda que a mulher esteja em alguns casos em uma posição de valori-
zação, há o constante exercício do poder em que o gênero masculino
se força diante das mesmas. Isso deve-se, até então, à inabilidade
dentro das igrejas pentecostais em dissociar-se a mulher da figura ma-
terna, de amabilidade, proteção e submissão, em que mesmo em uma
função de certo prestígio, haverá um homem a sua frente. Isto, por sua
vez, requer um caminho de luta por parte das mulheres para romper
com essa realidade, dado que como uma religião patriarcal, tem-se o
homem como líder e também como detentor da “verdade”.
Muito contribui para o comportamento autoritário a concepção
de mundo tida como portadora da verdade imutável. A trans-
missão de verdades absolutizadas leva a tornar inquestionável
a autoridade de quem as transmite e irrestrita a submissão
dos que acatam sem discussão o caráter intocável daqueles
conhecimentos. Na relação com o líder, os fiéis, além da obe-
diência e submissão absolutas, entregam-se de corpo e alma
(ORO, 1996, pg. 123).

Ainda partindo do ponto em que líderes religiosos usam da sub-


missão de seus fiéis para os controlar, vale lembrar que no cenário de
perseguição ao qual as religiões afro-brasileiras se veem, infelizmen-
te, submetidas desde sua criação, entre os intolerantes se encontram
algumas igrejas pentecostais. A igreja pentecostal como praticante de

S U M Á R IO 197
uma religião que se afirma a única verdadeira e hábil a “salvar” a alma
dos humanos, age como opressora.
Diante desse quadro geral, que envolve evangélicos [...], os
afro-brasileiros parecem ocupar um lugar marginal, em dois
sentidos alternativos: primeiro, porque parece que dele não
participam, por conta de sua condição francamente minoritária
nas estatísticas de adesão religiosa e pela pouca expressão nos
espaços privilegiados pela atuação de evangélicos e católicos;
segundo, porque se participam, é como vítimas, ou seja, como
alvo dos ataques evangélicos e de sua “intolerância religiosa”
(GIUMBELLI, 2007, pg. 151).

Ademais, também há a associação das religiões afro-brasileiras


como uma ação do demônio para se desvirtuar os homens. Os fiéis
das igrejas pentecostais, enquanto evangélicos que se apossam da
bíblia como única verdade e dona de uma palavra irrefutável, agem
dentro de uma óptica em que o mundo é dividido na dicotomia de
“bem e mal” e assim traçam os valores daquilo que é certo ou errado,
normal ou anormal.

As religiões afro-brasileiras, por sua vez, são categorizadas


como parte de uma prática antinatural e que deve ser combatida para
que não haja o triunfar das “forças das trevas”. Por serem associadas
a uma ação do demônio, cabe aos pentecostais combater as expres-
sões e práticas religiosas dos adeptos, causando assim a demoniza-
ção de suas tradições e rituais (ORO, 1996).

“Os preconceitos a que estiveram associadas estas religiões ao


longo de sua história são reforçados e ampliados por programas de TV
e discursos de pastores com o objetivo de desqualificar os símbolos
do panteão afro” (NOGUEIRA, 2018, p. 123). E nestas construções dis-
cursivas e ideológicas que balizam esse preconceito, estão as respon-
sáveis pelo imaginário negativo que se constrói em volta da Umbanda
e do Candomblé.

S U M Á R IO 198
Frente a liderança dos homens dentro da igreja pentecostal, há
também o constante reforçar e manutenção de uma religião feita para
homens brancos da elite brasileira. Ainda que haja, recentemente, uma
abertura para a mulher em papéis que não se encontram em comple-
ta submissão, esses ainda são colocados diante de uma avaliação e
constante tutela de líderes masculinos aos quais fazem valer a ideia de
serem detentores da uma verdade irrefutável.

A independência, como um conceito quase contrário às tradi-


ções do pentecostalismo, não cabe às mulheres, e a sua luta por uma
emancipação ainda é longa. Apesar dos avanços, o tradicionalismo
machista e misógino permanece como uma engrenagem, ainda per-
petuando-se como algo, infelizmente, irrefutável ao qual as mulheres
são submetidas e que mantém homens e mulheres em postos e lados
bastante distintos dentro das igrejas pentecostais.

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da mulher na igreja neopentecostal. Dissertação (mestrado) – Pontifícia
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S U M Á R IO 200
7
Mediunidade e magia
André Luiz Caes

na Umbanda:
a perspectiva
de autores
umbandistas

DOI: 10.31560/pimentacultural/2022.94852.7
INTRODUÇÃO

A Umbanda, assim como as demais religiões mediúnicas e afro-


-brasileiras, nas quais acontece o ritual de possessão, é marcada pelo
mistério que se oculta no fenômeno da incorporação dos espíritos e divin-
dades, e da ação destes por meio do corpo e das faculdades do médium.

Apesar de, pelo menos desde o século XIX, termos acesso ao


conteúdo de pesquisas e investigações, em diversas áreas da ciência,
conduzidas por estudiosos das religiões sobre esse fenômeno, a pos-
sessão ou incorporação, ou mesmo a simples presença de espíritos
em rituais religiosos, ainda é motivo de debates, dúvidas, preconceitos
e, também, medo.

Outro tema complexo que afeta a Umbanda, e que também é


objeto de preconceito em relação às religiões afro-brasileiras, é a ex-
periência da magia como parte central das crenças e rituais dessas
tradições religiosas.

Segundo os estudiosos que realizaram alguns dos primeiros es-


tudos sistemáticos das religiões130, a magia é um componente fundante
130 Autores como: Max Weber (1864 – 1920), jurista e economista alemão, considerado um
dos pais da Sociologia. Seus escritos sobre as religiões foram fundamentais para o desen-
volvimento dos estudos nessa área durante o século XX e até os dias atuais. Utilizamos
em nossas reflexões o capítulo V, que trata da Sociologia da Religião: tipos de relações
comunitárias religiosas, da obra: WEBER, Max. Economia e Sociedade: fundamentos da
sociologia compreensiva. 3ª Ed., Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2000; Émile
Durkheim (1858 – 1917), pensador francês reconhecido nas áreas da Sociologia (conside-
rado um dos fundadores dessa ciência), Antropologia, Psicologia Social, Ciência Social e
Filosofia. Suas reflexões sobre a religião também se constituíram como base para o desen-
volvimento dos estudos das religiões durante o século XX. Nesta pesquisa consultamos a
obra: DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa: o sistema totêmico
na Austrália. São Paulo: Martins Fontes, 1996; Marcel Mauss (1872 – 1950), sociólogo e
antropólogo francês que se tornou fundamental para a consolidação dessas ciências na
França; James George Frazer (1854 – 1941), antropólogo escocês cujas pesquisas na área
de mitologia e religiões comparadas foram significativas para o desenvolvimento dessas
áreas de estudo. Sua reflexão sobre a distinção entre magia e religião ainda constitui uma
perspectiva aceita pelos pesquisadores como fundamento para as pesquisas sobre esses
temas; e Edward Burnett Tylor (1832 – 1917), antropólogo inglês cuja principal obra, “Pri-
mitive Culture” (1871), acabou por inaugurar os estudos de Antropologia Cultural e propor
uma primeira perspectiva para o moderno conceito de cultura.

S U M Á R IO 202
da experiência religiosa da humanidade, tendo surgido já nos primórdios
das sociedades humanas como forma de buscar soluções práticas –
dentro do grau de conhecimento de cada cultura e em cada período
histórico – para os problemas cotidianos que afligiam e ameaçavam a
sobrevivência ou a segurança dos indivíduos, grupos ou povos.

Mesmo com a reconhecida antiguidade das práticas mágicas,


é interessante notar que, ainda nos tempos atuais, há uma grande di-
ficuldade em estabelecer os limites precisos entre religião e magia,
mesmo dentro de sistemas religiosos abertamente contrários à utili-
zação de práticas mágicas. Um grande número de pessoas recrimina
essas práticas, mas fazem isso sem compreender o que realmente
caracteriza a magia e, muitas vezes, sem saber que recorrem à magia
para resolver seus problemas cotidianos.

Com a perspectiva de refletir um pouco sobre esses temas


polêmicos, trazemos neste texto partes dos escritos dos principais
autores umbandistas que procuraram estabelecer uma base de en-
sinamentos para a religião, com o intuito de explicar todos os ele-
mentos que caracterizam a Umbanda, em especial os fenômenos da
mediunidade e da magia.

A MEDIUNIDADE PARA ALGUNS DOS


PRINCIPAIS AUTORES UMBANDISTAS

W.W. da Matta e Silva (1968)131, tratando sobre “A mediunidade


na Lei de Umbanda” (p. 125), propõe inicialmente que: “A mediunidade
é uma faculdade que, dizem, é comum a todos em maior ou menor

131 Woodrow Wilson da Matta e Silva (1916-1988) foi um dos escritores umbandistas que
procurou sistematizar uma doutrina para a Umbanda. Denominou sua perspectiva como
“Umbanda Esotérica” e publicou diversas obras com o intuito de explicar e fundamentar
as diversas características das manifestações da Umbanda.

S U M Á R IO 203
intensidade, ou melhor, em estado passivo, ela está em todos nós e em
estado ativo em número muito reduzido de pessoas”.

Desta proposição o autor partiu, no período em que escreveu


(entre as décadas de 1950 e 1970) para uma crítica bastante dura con-
tra a exploração da mediunidade como meio de liberação do compor-
tamento e manifestação de aspectos psíquicos negativos dos médiuns
ou, como o autor diz: “porem em evidência uma série de complexos e
limitações” (MATTA E SILVA, 1968, p. 126). Essa crítica contundente do
autor aparece na frase seguinte de seu texto, lançando um alerta sobre
a utilização dessa faculdade.
Mediunidade, onde estás? Lançaram-te no mercado da vida,
como lenitivo ou solução para todos os males, e hoje em dia, os
famintos de bálsamos miraculosos, buscam em ti a droga salva-
dora que pensam adquirir graciosamente... e assim, os espertos
aproveitando-se desta situação, transformaram-te na ‘coisinha’
mais corriqueira nos balcões dos interesses, da ignorância e
mais, muito mais, nos da ingenuidade. Tuas escolas de propa-
ganda foram além do que esperavas, mas somente não especi-
ficaram em letras garrafais que, em ESTADO ATIVO, ATUANTE,
ESTÁS EM BEM POUCOS DE NÓS... (MATTA E SILVA, 1968, p.
126, destaques do autor)

Na perspectiva desse autor, a mediunidade não poderia ser bana-


lizada como – na sua opinião – vinha acontecendo nos muitos centros de
Umbanda nas décadas de 1950 e 1960 (quando ele escreveu esse livro).
Essa faculdade precisava ser explicada a todos com ênfase na Lei do
Karma e na perspectiva da evolução espiritual, sendo seu intuito nesses
escritos, mostrar que a mediunidade era vivenciada pelos médiuns em
“três planos de vibrações mentais” (MATTA E SILVA, 1968, p. 128).

A divisão feita por Matta e Silva implica em diferentes níveis entre


os espíritos receptores (os médiuns) e os espíritos que são incorpora-
dos (as entidades), baseando-se na ideia – também presente no Espi-
ritismo – de que “semelhantes atuam com seus semelhantes” (MATTA
E SILVA, 1968, p. 127). Ou seja, que espíritos de menor evolução, e,

S U M Á R IO 204
portanto, de menor poder de ação, são atraídos para trabalhar com
seres humanos com menor equilíbrio mental e emocional. Essa divisão
em planos de vibração é assim explicada pelo autor:
No Primeiro Plano, faz-se sentir sobre um mental elevado, de
ótima inteligência, intelecto desenvolvido por mente espiritual já
influenciada por sólidas concepções. Estes, são aparelhos de
um Karma Missionário, escolhidos pelos Orixás (espíritos que
têm função de chefia nas Legiões, Falanges e Subfalanges da
Umbanda, altamente evoluídos e que praticamente dirigem os
demais expoentes da Lei), para externarem os reais fundamen-
tos que somente eles estão capacitados a tal. [...] esses apare-
lhos estão, no momento, em proporção de 5%.

No Segundo Plano, estão os de um Karma Evolutivo, cujo “dom”


está em atividade num bom mental, boa inteligência, relativos
conhecimentos, com capacidade para conceber certos princí-
pios, por um intelecto já bastante desenvolvido: eles se tornam
veículos dos Guias (Espíritos que têm Chefia de Grupamentos,
também de grande saber, intermediários entre as “ordens de
cima e as execuções de baixo”). Estes, na atualidade, se con-
tam em proporção de 15%.

No Terceiro Plano, estão todos cuja mediunidade é pura ou


simplesmente de efeitos karmânicos, isto é, Probatória, por
consequências diretas. [...] A maioria não leva em conta essa
faculdade; seus próprios intelectos se negam a raciocínios e
conhecimentos sérios – são apenas “máquinas transmissoras”
dessa infinidade de Protetores integrantes de Grupamentos que
os escolhem por afinidades e obedientes à Lei coordenadora.
No momento, estes aparelhos encontram-se na proporção de
80%. (MATTA E SILVA, 1968, p. 128-129)

Essa classificação é adotada pelo autor na intenção de se con-


trapor à costumeira afirmação, que já era feita naquele momento e
continua nos dias atuais, de que “todo mundo é médium, é só de-
senvolver” (MATTA E SILVA, 1969, p. 142)132. Na visão de Matta e Sil-

132 Aqui utilizamos outra obra de W.W. da Matta e Silva – que ele considera complementar e
conclusiva – para mostrar como o mesmo constrói sua visão sobre a mediunidade. Ver:

S U M Á R IO 205
va, o médium precisa ter um grau ótimo ou bom de moralidade no
comportamento, ética nos posicionamentos pessoais e capacidade de
conhecimento intelectual para poder receber em seu aparelho físico ou
seu corpo, as manifestações dos espíritos superiores.

Esse posicionamento do autor, que pode ser percebido em seus


livros, está relacionado com o contexto histórico e cultural do período
em que escreve, levando-o a questionar a grande expansão do número
de terreiros e a possibilidade de que qualquer médium pudesse se co-
locar na posição de liderança da Umbanda, transmitindo ensinamen-
tos que – segundo Matta e Silva – não estavam em consonância com
o verdadeiro sentido da religião. Essa percepção do autor aparece na
seguinte afirmação:
Devemos chamar a atenção dos leigos e dos aspirantes em
desenvolvimento mediúnico, para não se deixarem confundir e
olharem com muita reserva certas “manifestações” excitadas da
mente instintiva, pelos tambores atordoantes e pelo bater de
palmas incessante, aliados à desregrada cantoria, que alvoro-
çam, com eficiência, sensações adormecidas e inatas ao “eu”
inferior... e tampouco se deixem embaraçar pelas orientações
de “chefes de terreiros” diplomados apenas nas “milongas” que
não sabem explicar. (MATTA E SILVA, 1968, p. 135)

Sua perspectiva é contrária às tendências africanas dentro da


Umbanda e favorável a uma moralização nos moldes da tendência
majoritária da sociedade brasileira da época, fundada em preceitos e
valores cristãos. Essa postura aparece de forma mais contundente no
livro “Umbanda do Brasil” (1969), que também citamos, no qual há uma
condenação mais explícita à liderança de mulheres (Mães de Santo) em
terreiros e às tendências à homossexualidade entre os Pais de Santo.

Para encerrar nossas considerações sobre a visão de mediuni-


dade de Matta e Silva, é interessante citar também sua argumentação

SILVA, W.W. da Matta e. Umbanda do Brasil. Enciclopédia de Ciências Ocultas, Volume


7. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos S. A., 1969.

S U M Á R IO 206
sobre como acontece a interação entre os espíritos e os médiuns du-
rante o transe mediúnico, mostrando como se daria a incorporação:
Vejamos então, para melhor compreender nossa dissertação,
por onde atua um Orixá, Guia ou Protetor, num aparelho de
incorporação:

1º) Na Parte Psíquica, quando transforma os caracteres mentais


próprios do médium, pela conversação, inteligência, conceitos
e pelo alcance incomum de casos e coisas.

2º) Na Parte Sensorial, quando, por intermédio do corpo astral,


atua diretamente no cérebro para coordenar o psiquismo.

3º) Na Parte Motora, quando domina o corpo físico pelos bra-


ços, pernas e demais movimentos de quaisquer órgãos dos
quais quer servir-se. (MATTA E SILVA, 1968, p. 134-135)

Dessa forma, nos rituais de Umbanda, os Orixás, Guias e Prote-


tores (segundo Matta e Silva) podem assumir o controle do corpo físico
e psíquico dos médiuns e podem trazer as orientações e ensinamentos
que provém da sabedoria do mundo espiritual, mas sempre dentro do
grau de evolução espiritual do médium, conforme o autor especificou
na citação anterior.

Outro autor que se preocupou em falar mais profundamente so-


bre a mediunidade, foi Francisco Rivas Neto133, discípulo de W.W. da
Matta e Silva e fundador da chamada Umbanda Iniciática. No seu tra-
balho mais ambicioso quanto à formulação do conhecimento sobre a
Umbanda – Umbanda - A Proto-Síntese Cósmica, 1989134 – este autor
procura mostrar a mediunidade como um componente fundamental

133 Francisco Rivas Neto (1950-2018), médium e escritor umbandista, fundou na década de
1970 a Ordem Iniciática do Cruzeiro Divino, da qual foi dirigente até falecer. Escreveu mui-
tos livros procurando tratar dos principais temas referentes à espiritualidade da Umbanda
e procurou estimular o conhecimento por meio da Faculdade de Teologia de Umbanda,
que funcionou diversos anos e foi reconhecida pelo MEC.
134 Nestas nossas reflexões, utilizamos a “Edição Revista e Atualizada” publicada em 2002.
Ver: RIVAS NETO, Francisco. Umbanda: a proto-síntese cósmica. São Paulo: Editora Pen-
samento, 2002.

S U M Á R IO 207
da evolução espiritual da humanidade e da aquisição do verdadeiro
conhecimento sobre vida humana e sobre a Criação Divina.

Ao tratar do tema no capítulo IX (2002, p. 117-139) Rivas Neto


se propõe a explicar a mediunidade como o caminho para que a atual
raça humana – da estirpe Ariana – retorne ao estágio superior que
foi alcançado pelas raças anteriores, a Lemuriana e a Atlante. Nessa
sua perspectiva, o autor traz – sem citar a fonte – como base para a
compreensão da Umbanda, as doutrinas elaboradas desde o século
XIX pela Teosofia135, corrente de pensamento filosófica e espiritual que
procura estabelecer uma ideia de trajetória evolutiva do planeta Terra a
partir de antigas raças que antecederam a atual humanidade.

Assim, partindo da – por ele denominada – “Pura Raça Vermelha”,


da qual se originou o “Tronco Tupy”, que habita o Brasil desde tempos
imemoriais, passando pela Atlântida, civilização na qual o verdadeiro
conhecimento começou a ser corrompido, e chegando ao Egito, Meso-
potâmia, China e Índia, civilizações nas quais esse conhecimento ficou
restrito às escolas iniciáticas, exclusivas aos grandes mestres espirituais
de cada civilização e aos discípulos escolhidos por eles, o autor propõe
que a Umbanda se caracteriza pelo retorno desse verdadeiro conheci-
mento por meio das atividades mediúnicas. (RIVAS NETO, 2002)

Para Rivas Neto, as primeiras grandes raças humanas tinham


uma abertura natural para o mundo espiritual, pois estavam em harmo-
nia com as leis divinas da evolução. Nas suas palavras:
Na pura Raça Vermelha, possuíam os Seres encarnados 7 sen-
tidos naturais, intrínsecos aos seus corpos físicos. Em outras
palavras, os sentidos de ordem astral eram inerentes ao psicos-

135 A Teosofia tornou-se uma corrente de pensamento filosófico, místico e ocultista bastante
conhecida a partir da Fundação da Sociedade Teosófica, em 1875. Os conceitos relacio-
nados às antigas raças que viveram na Terra estão citados na chamada “Doutrina Secre-
ta”, mais especificamente nos textos que tratam da “Antropogênese” (o surgimento das
Raças-Raiz que existiram no planeta). Esta obra foi escrita por Helena Petrovna Blavatsky,
uma das fundadoras da Sociedade Teosófica.

S U M Á R IO 208
soma dos Seres Espirituais daquela época. Expliquemos mais
minuciosamente: entre o corpo físico e o corpo astral não havia
nenhum delimitador vibratório ou dimensional, ou seja, os meios
de comunicação com o plano astral eram naturais. [...] No caso
desses Seres Espirituais terem “maior poder de penetração”
isso se explica por serem os mesmos Condutores Morais da
pura Raça Vermelha, tendo pois um contato mais direto com
seus comandos ancestrais. Naqueles áureos tempos, tinha-se
plena convicção dos porquês da reencarnação e do desencar-
ne. Tinha-se enfim uma Grande Família Cósmica, composta de
Seres Espirituais encarnados e desencarnados, em outras di-
mensões da matéria. (RIVAS NETO, 2002, p. 124)

Nessas proposições o autor quer dizer que a mediunidade não


era necessária, ou já era parte inerente de todos os seres humanos, à
medida que havia a consciência plena sobre as razões da encarnação e
do desencarne, assim como a consciência sobre as vidas de seus ances-
trais (os “comandos ancestrais”), o que permitia ao espírito encarnado
saber sobre o seu destino e sua herança marcada pela ancestralidade.

Na continuidade do seu texto, Rivas Neto propõe que durante a


existência da raça Atlante, essas características foram gradativamente
perdidas – podendo-se dizer que esse fato seria análogo ao signifi-
cado da “queda” da humanidade ou “expulsão do paraíso” conforme
retratam as tradições monoteístas. Com a perda desse contato com as
reencarnações e com os ancestrais, aconteceu a vinculação cada vez
maior com o mundo da matéria, que é a característica fundamental da
raça Ariana atual.

Os dons mediúnicos ou de abertura espiritual permaneceram,


como foi dito anteriormente, nos mestres das escolas iniciáticas e seus
discípulos, mantendo-se vivos em todas as grandes tradições espiri-
tuais, mesmo que incompletos ou deturpados, segundo o autor.

Com essa perspectiva, Rivas Neto chega ao atual tempo his-


tórico, no qual o mundo espiritual, a partir da “Confraria dos Espíritos

S U M Á R IO 209
Ancestrais, supervisionados diretamente pelo Cristo Planetário” (2002,
p. 128), decidiram retomar a evolução da humanidade pela implanta-
ção do que ele chama “mediunismo”. Vejamos como o autor estabele-
ce esse acontecimento:
Mas o que seria a mediunidade, o mediunismo? Como surgiria?
Quais suas finalidades e propósitos?

Não esqueçamos que tudo isso acontecia no final ou no peri-


geu da 4ª Raça Raiz, a Raça Atlante. [...] Assim é que, mesmo
entre eles, os atlantes mantinham contato ou comunicação, por
meio dos 7 sentidos aguçadíssimos, com os Seres Espirituais
da dimensão astral. A comunicação ou o intercâmbio era natu-
ralíssimo, não mediúnico, ou seja, não havia intermediários para
essas comunicações. [...]

Em plena catástrofe atlante, que vitimou e dizimou milhares de


pessoas, deveria surgir o mediunismo, como ponto de apoio e
rumos seguros para uma humanidade completamente vencida
e sem rumo. [...]

Os médiuns, como primeiros veículos dos Seres Espirituais do


plano astral, iniciaram de forma oportuna o intercâmbio das Ver-
dades Universais esquecidas pela grande massa humana. A prio-
ri, esse intercâmbio fez-se na forma de profecias, previsões, vati-
cínios, que de alguma maneira atraíram a atenção de muitos. [...]

Durante muito tempo, os médiuns precisaram também ser os


instrutores da massa humana sem rumo, que aos poucos, gra-
ças ao mediunismo de uns e de outros, foi encontrando forças
para caminhar em direção a novos rumos. [...] (RIVAS NETO,
2002, p. 128-129 – destaques do autor)

Fizemos uma breve seleção de passagens do texto de Rivas


Neto – o que não interfere ou modifica o conteúdo de suas proposi-
ções – para simplificar a citação e para mostrar que o autor vê toda a
inspiração espiritual dos muitos mestres espirituais das diversas reli-
giões surgidas na história humana (Judaísmo, Cristianismo, Islamismo,
Hinduísmo, Budismo, etc.), como manifestações do mediunismo ou

S U M Á R IO 210
capacidade de estar em contato com os “Seres Espirituais” que trans-
mitem à humanidade as “Verdades Universais”.

É importante ressaltar, para esclarecer essa doutrina que pare-


ce fantasiosa, que os escritos de Rivas Neto também correspondem
ao contexto histórico no qual foram elaborados, sendo esse período
da década de 1980 até o ano 2000, momento de maior divulgação
dos ensinamentos do movimento conhecido como “Nova Era” ou
“New Age”, que teve seu surgimento no final da década de 1960 e se
expandiu na década de 1970.

Esse movimento questionou as tradições religiosas ocidentais


e propôs uma valorização das antigas tradições de conhecimento
esotérico e ocultista, especialmente as do mundo oriental. Dentro do
movimento Nova Era as teses da Teosofia foram aceitas como verda-
des, a meditação, os chakras, a acupuntura, as técnicas e substâncias
usadas para alcançar “estados alterados de consciência”, ou seja,
uma percepção mais profunda da existência, tudo foi valorizado com o
intuito de elevar espiritualmente a humanidade. Também a concepção
de um “Cristo Planetário”, um líder espiritual que está acima de todas
as religiões particulares, foi bastante difundido nesse período.

Então podemos dizer que Rivas Neto, assim como Matta e Sil-
va, estão sintonizados com a cultura de seu tempo, e propõem inter-
pretações sobre a mediunidade e sobre o papel desta na espiritua-
lidade, relacionando-a aos conhecimentos que estão em destaque
nos períodos históricos em que escrevem. Para completarmos nossa
abordagem sobre o pensamento de Rivas Neto sobre a mediunidade
na Umbanda, citamos então a conclusão de seus argumentos sobre
o papel atual dessa religião:
Assim, os GRANDES MISSIONÁRIOS, através de suas mediu-
nidades, trouxeram a todos mensagens de novos rumos, que
se bem entendidas nos farão retornar à Proto-Sintese Cósmica,
continuando nossa evolução.

S U M Á R IO 211
Assim, mediunismo, mediunidade, não é privilégio de qualquer
sistema filorreligioso, é benção a toda a humanidade. Todas as
filosofias religiosas que pregam o mediunismo estão pregando
a VIDA IMORTAL, e revelando que cada um é o que quer ser,
que cada um tem o que construir. Assim, o AUMBANDAN, hoje
representado pelo Movimento Umbandista, vem reafirmar que
a morte não existe, e que não existe o privilégio, pois no astral
caminham em evolução paralela, ou melhor, UNA, todas as Ra-
ças, pois todas são da mesma essência, isto é, todos são Se-
res Espirituais. Entendamos que Vermelhos, Negros, Amarelos
e Brancos, como 4 rios volumosos, antes de chegarem ao MAR
DA ETERNIDADE, se misturam num grande rio. Esse é o rio do
Ser Espiritual imortal, herdeiro da Coroa Divina. (RIVAS NETO,
2002, p. 139 – destaques do autor)

Então, na perspectiva desse autor, cujo livro é bastante interes-


sante para quem deseja conhecer os mistérios da Umbanda numa
perspectiva esotérica, o surgimento e crescimento da Umbanda no
Brasil marca uma nova fase do mediunismo, no qual os seres espiri-
tuais podem se manifestar no plano terreno por meio dos médiuns de
incorporação e trazer novamente os ensinamentos que são essenciais
para a evolução humana na Terra.

O terceiro líder umbandista a desenvolver uma bela obra desti-


nada a esclarecer os mistérios da Umbanda e fundamentar todas as
práticas e rituais da religião foi Rubens Saraceni136. No caso deste au-
tor, a perspectiva é de ensinar não apenas as características da me-
diunidade, mas também indicar os desafios e caminhos que o médium
deve enfrentar para que essa faculdade seja usada plenamente e seus
efeitos sejam totalmente positivos tanto na vida do próprio médium
como nas atividades dentro do templo ou terreiro.

136 Rubens Saraceni (1951-2015) foi outro médium e escritor umbandista que realizou um
esforço para construir um conhecimento doutrinal sistemático para explicar todas as ca-
racterísticas da Umbanda. Sua perspectiva foi desenvolvida especialmente por meio do
Colégio de Umbanda Sagrada Pai Benedito de Aruanda, no qual foram iniciados na dou-
trina milhares de médiuns. Produziu algumas dezenas de livros sobre os mais variados
temas da Umbanda, constituindo o corpo de conhecimentos mais elaborado entre os
autores umbandistas.

S U M Á R IO 212
Vamos utilizar as reflexões de Saraceni no livro Doutrina e Teolo-
gia de Umbanda Sagrada: a religião dos mistérios, um hino de amor à
vida, publicado em 2003137, focando o capítulo 4, que trata especifica-
mente da mediunidade. Para esse autor, a atividade do médium “é o
ponto chave do Ritual de Umbanda no plano material” (p. 31).

Essa condição do médium como centro de toda a religiosidade


e espiritualidade umbandista se relaciona, segundo Saraceni (2003),
com a própria origem da religião e também com o seu nome. Para o
autor, o nome Umbanda tem origem na palavra “m’banda”, que signifi-
ca sacerdote ou curador na língua banto (uma das etnias de africanos
escravizados que vieram para o Brasil). Sua definição do sacerdócio
umbandista, não apenas dos líderes de terreiros, mas também dos
médiuns que trabalham é bastante marcante:
Umbanda significa: o sacerdócio em si mesmo no médium que
sabe lidar tanto com os espíritos quanto com a natureza huma-
na. Umbanda é o portador das qualidades, atributos e atribui-
ções que são conferidos pelos senhores da natureza: os orixás!
Umbanda é o veículo de comunicação entre os espíritos e os
encarnados, e só um Umbanda está apto a incorporar tanto os
do Alto quanto os do Embaixo, assim como os do Meio, pois ele
é, em si mesmo, um templo.

Umbanda é sinônimo de poder ativo, de curador, de conselhei-


ro, de intermediador, de filho-de-fé, de sacerdote. Umbanda é
a religiosidade do religioso; é o sacerdote atuante, que traz em
si todos os recursos dos templos de tijolos, pedras ou concreto
armado; Umbanda é o mais belo dos templos, onde Deus mais
aprecia estar: no íntimo do ser humano. (SARACENI, 2003, p. 32)

Como vemos nessa citação, Saraceni define a mediunidade ou


o sacerdócio mediúnico, ou seja, a atitude de ceder o próprio corpo/
templo para as atividades das divindades (Orixás) e das entidades dos
diversos níveis do plano astral (os do Alto, do Meio e do Embaixo),

137 SARACENI, Rubens. Doutrina e Teologia de Umbanda Sagrada: a religião dos misté-
rios, um hino de amor à vida. São Paulo: Madras, 2003.

S U M Á R IO 213
como a essência da religiosidade e da espiritualidade umbandista,
sendo que o próprio nome da religião é o exercício desse sacerdócio.

Entretanto, em seus escritos, esse autor afirma que o médium


também é o “elo mais frágil de uma corrente espiritual” (SARACENI,
2003, p. 35), à medida que ele é afetado pelas muitas dificuldades exis-
tentes no plano material e pelos desequilíbrios que afetam seu emo-
cional e seu mental e que podem comprometer seu desenvolvimento
mediúnico e suas atividades como médium.

Nessa perspectiva, Saraceni aponta para o aspecto essencial


da religião umbandista, segundo sua visão: a busca pelo autoconheci-
mento e pela evolução humana e espiritual, para poder cumprir com a
maior dignidade e eficácia o seu sacerdócio mediúnico. Todos os mé-
diuns, sejam eles sacerdotes, filhos-de-fé que atendem nos terreiros e
mesmo os consulentes que procuram o auxílio e o conselho das enti-
dades, devem procurar desenvolver uma mente forte, que escolhe os
bons pensamentos e afasta os maus, um emocional forte que escolhe
e acolhe boas energias e uma atitude de vida que seja positiva, mesmo
diante de desafios que podem lhe trazer frustrações e desconforto.

Assim, para estar em sintonia profunda com o mundo espiritual


e realizar seu sacerdócio com a qualidade que seria desejável, o mé-
dium precisa assumir uma postura bastante cuidadosa com todos os
aspectos da vida material e espiritual, procurando fugir, especialmente,
dos mitos e preconceitos que costumam ser associados à atividade
mediúnica. Em relação ao mito, segundo ele, de que a mediunidade
torna a pessoa mais capaz do que as que não desenvolveram essa
faculdade, Saraceni aponta a vaidade dos médiuns como seu maior
desafio. Sobre esse aspecto, ele afirma:
Isso é uma verdade se quem a desenvolveu também compreen-
deu os compromissos que assumiu. Mas é pura fantasia se ele
nada entendeu e logo começou a enfiar os pés pelas mãos,
uma vez que ele adquiriu um poder relativo: no entanto começa

S U M Á R IO 214
a se chocar com um poder absoluto, que é a Lei de Ação e
Reação. Assim, sua suposta superioridade logo o lança em um
sensível abismo consciencial. (SARACENI, 2003, p. 39)

Nessa proposição, Saraceni chama a atenção para uma das


situações mais conflituosas que marcam a Umbanda: a ideia de que
um sacerdote umbandista pode utilizar a magia para manipular situa-
ções que envolvem trabalho, dinheiro e relacionamentos afetivos. Essa
é uma discussão que marca não apenas a moralidade da Umbanda
– que é diferentemente percebida de acordo com o sacerdote e com
a corrente de Umbanda que é praticada – mas também o imaginário
social que envolve a religião, chamando a atenção de muitos consu-
lentes para o aspecto do uso da magia na Umbanda e não para sua
proposta propriamente de evolução espiritual.

Quanto aos preconceitos, Saraceni chama a atenção para algu-


mas afirmações que são muito populares quando se fala em desenvol-
ver a mediunidade e trabalhar num templo de Umbanda. No texto de
Saraceni esses preconceitos são assim definidos:
Vamos a algumas colocações frequentes que circulam no meio
religioso:

A mediunidade é uma provação.

A mediunidade não é uma provação, mas somente a exterioriza-


ção de um dom que aflorou no ser e que, se bem desenvolvida,
irá acelerar sua evolução espiritual.

A mediunidade é uma punição kármica.

Não é uma punição kármica, mas sim um ótimo recurso que a


Lei nos facilitou para nos harmonizarmos com nossas ligações
ancestrais.

A mediunidade escraviza os médiuns.

Não escraviza o médium, apenas exige dele uma conduta de


acordo com o que esperam os espíritos que por meio dele

S U M Á R IO 215
atuam no plano material, pois de nada adianta alguém ser mé-
dium e não assumir conscientemente sua mediunidade e suas
responsabilidades. (SARACENI, 2003, p. 39)

Com esses alertas, o autor procura responder a algumas das


dúvidas e afirmações mais frequentes no meio umbandista sobre o
que significa realmente o desenvolvimento mediúnico e quais as reais
responsabilidades que o médium deve assumir.

Percebemos que Saraceni, em relação aos outros dois autores


citados, apresenta uma postura mais racional, mais comedida em rela-
ção aos conhecimentos ocultos que são caracteristicamente relaciona-
dos à Umbanda. Sua doutrina sobre a mediunidade também pode ser
situada no contexto histórico em que foi construída, a primeira década
do século XXI, a qual foi impactada pela percepção de que nenhuma
transformação espiritual sobrenatural iria acontecer (o mundo não iria
acabar ou sofrer uma grande transformação como diziam os diversos
milenarismos) e que era necessária uma perspectiva mais pragmática
e menos fantasiosa da Umbanda.

Saraceni, nesse sentido, procura fazer de sua Teologia da Um-


banda e seus outros escritos, um conjunto de conhecimentos que or-
ganizam todas as dimensões da religião, desde os Orixás e suas fun-
ções, até as hierarquias de entidades espirituais que trabalham, assim
como propõe um entendimento das características das atividades dos
médiuns e entidades nos Templos e fora deles.

Como podemos perceber nas proposições dos autores umban-


distas, a mediunidade é o principal elemento espiritual que marca a
Umbanda, sendo a fonte da força e da dinâmica dessa religião, cons-
tituindo o elo principal entre o plano espiritual, habitado pelos Orixás e
Entidades que se manifestam nos Templos para fortalecer e orientar a
vida dos médiuns e dos adeptos da religião.

S U M Á R IO 216
A MAGIA NA UMBANDA COMO
MEIO DE CONEXÃO COM O PLANO
ESPIRITUAL E MEIO DE RESOLUÇÃO
DOS PROBLEMAS COTIDIANOS

Voltamos nesta segunda parte do texto, que trata especifica-


mente da magia, aos mesmos autores que utilizamos na primeira parte.

Começamos novamente com W.W. da Matta e Silva, que vai ar-


gumentar inicialmente sobre a importância da magia prática em rela-
ção à magia teórica para a formação dos médiuns magistas.
Diz Papus, em seu “Tratado Elementar de Magia Prática” que:
“para ser mágico não é bastante saber teoricamente, não é su-
ficiente ter manuseado este ou aquele tratado; é mister desen-
volver um esforço próprio, pois que é dirigindo frequentemente
cavalos cada vez mais fogosos que um cocheiro pode tornar-se
perito no ofício”. (MATTA E SIVA, 1969, p. 212)

Sendo assim, todo mago precisa da teoria, que pode ser encon-
trada nos tratados sobre a magia, mas precisa principalmente de um
aprendizado prático, geralmente transmitido por um mago experiente,
que já realiza seus rituais e conhece as fórmulas e seus efeitos. A par-
tir desse aprendizado prático que a teoria se torna passível de com-
preensão e possibilita a utilização correta das forças mágicas. Ainda
utilizando o pensamento de Papus, Matta e Silva afirma que o primeiro
e fundamental fator para a aplicação da magia é a vontade:
E logo {Papus} interroga: “Mas em que vai ser aplicada essa
vontade? Sobre a matéria, nunca”. E deixa bem claro que essa
vontade deve ser dirigida sobre o plano astral através de um
intermediário... “o qual por sua vez vai reagir sobre a matéria”.
E continua adiantando mais o seguinte: “antigamente podia-se
definir a Magia como a aplicação da vontade às forças da na-
tureza”... Hoje, porém, essa definição é muito vaga e não cor-
responde à ideia que um ocultista deve fazer da Magia Prática.

S U M Á R IO 217
[...] E para não nos estendermos mais com o pensamento de
Papus, citemos como final a sua definição de magia: “A Magia é
a aplicação da vontade humana, dinamizada, à evolução rápida
das forças vivas da Natureza”. (MATTA E SILVA, 1969, p. 213)

A vontade do mago, segundo Matta e Silva, vai atuar no pla-


no astral pela manipulação do “fluido-matriz magnético” (p. 213), que
é basicamente a mesma força universal que fundamenta a teoria de
Mesmer (o magnetismo). Esse fluído magnético universal, que está
presente em toda matéria e além dela, pode ser mobilizado por um
ritual que seja realizado dentro das condições necessárias. Diz Matta
e Silva: “Então fixemos a nossa regra: para toda operação mágica, é
necessário que haja ritual, é necessário que haja elementos materiais
de ligação, de fixação e projeção... em coordenação com vontade,
pensamento e fluído mágico”. (1969, p. 215, grifo do autor)

Para Matta e Silva, assim como para os pesquisadores da magia


que citamos no início do texto, na nota de rodapé, “a Magia foi e é a
Ciência mãe... Dela extraíram todas as ciências subsequentes, ou me-
lhor, ela foi a base, o ponto de partida” (1969, p. 216). Por entender que
o fluído magnético universal está em tudo que existe – é “a alma viva
das coisas” (p. 217) –, o autor pode concluir que “a Magia é uma só
realidade que está por dentro de tudo e assim sendo é, essencialmen-
te, a força-matriz que anima de moto próprio a natureza íntima de todos
os elementos em ação ou vibração” (MATTA E SIVA, 1969, p. 216-217).

Nesse sentido, o autor propõe:


Na Magia foram buscar os mantras, as orações cabalísticas de
defesa e mesmo de ataque aos maus gênios, aos espíritos sa-
tânicos, também as fórmulas de prece, etc., para doutrinar os
espíritos dos mortos perturbados e perturbadores; e ainda as
rezas misteriosas que ainda hoje em dia existem e são empre-
gadas pelos curandeiros, rezadores, benzedeiras, etc., aliadas
à terapêutica ou ao uso das ervas [...] na cura de mordidas de
cobra, bicheiras, enfim, a uma série de males do corpo humano
(como o chamado ‘ventre-virado ou emborcado’ que a medicina

S U M Á R IO 218
denomina gastrinterite (sic) aguda e geralmente não cura, pois
esses males tem um prazo de 9 dias de ataque agudo, findos os
quais é fatal, se não rezar), assim como as doenças chamadas
de ‘sete-couros, fogo-selvagem, etc.’, bem como as que partem
do corpo astral: quebranto, mau-olhado, encosto, etc.. Enfim:
tudo veio da Magia e é magia. (MATTA E SILVA, 1969, p. 216)

Portanto, para Matta e Silva, a magia é uma condição da vida


humana e da natureza que foi e é utilizada das mais diversas formas,
por pessoas capazes de entender seus princípios e de mobilizar os
meios necessários para que ela aconteça. Isso acontece desde a for-
ma mais simples de magia que é praticada pela prece ou pelo pensa-
mento positivo (que também incluem um ritual básico de concentração
da vontade) até a forma avançada conduzida pelo mago. Assim, o
autor diz que: “Então fica patente que a ação da Magia se processa
naturalmente, conforme está acima dito, e extraordinariamente quando
usada, atraída ou imantada pela inteligência operante, isto é, a von-
tade, pensamentos, desejos, através de certos elementos ou coisas”
(MATTA E SILVA, 1969, p. 217).

Nesse ponto de suas reflexões, o autor também afirma a se-


paração da magia a partir das questões morais e éticas, propondo
que existe a magia negra, praticada visando interesses nem sempre
benéficos e usando a força dos espíritos inferiores, e também a ma-
gia branca, que deve ser a praticada pelos umbandistas. Essa é uma
opção possível para o mago, mas tem suas consequências negativas
para o mesmo quando se liga à magia negra.
Portanto, temos no mais simples dos conceitos: se um operador
ligar a força de sua vontade, de seus pensamentos, de seus
desejos a certos elementos materiais inferiores (carnes, sangue,
bebidas alcoólicas fortes, bruxas de pano, farofas em temperos
excitantes, alfinetes, barro, panos de cor preta e outras coisas
mais) e movimentar tudo isso dentro de rituais e invocações
afins, acontecerá uma ação mágica de ordem grosseira que, de
qualquer forma, surtirá efeitos, tudo de conformidade com os
conhecimentos do operador e o meio onde essa operação for

S U M Á R IO 219
processada, que, ou será difusa, confusa, desordenada e assim
sendo retornará ao seu ponto de partida e recairá no dito ope-
rador, ou terá uma ação direta, mesmo nesse plano e as forças
coordenadas seguirão ou se projetarão para o objetivo visado.
Isso assim, conforme está dito, chama-se magia negra. (MATTA
E SILVA, 1969, p. 217)

Os adeptos desses rituais, segundo o autor, são os “infelizes


quimbandeiros” e os praticantes de “ebós” ou “despachos”, e também
os que realizam as “tais camarinhas com matança de animais”, e estão
presos à influência de seres das “trevas”, pois suas ações são voltadas
para objetivos que não são bons.

Aqui, fica clara não só a divisão da Umbanda entre magia bran-


ca e magia negra, mas também o ataque aos Candomblés, nos quais
acontecia o ritual da camarinha e que permanecia ligado às tradições
africanas, que deviam ser rejeitadas – segundo o autor – pelos um-
bandistas. Nesse aspecto, Matta e Silva se posiciona claramente pelo
afastamento das raízes negras da Umbanda e a adoção de uma pos-
tura mais próxima aos valores da cultura branca e cristã.

Antes de concluir as considerações sobre os ensinamentos da


magia encontrados neste livro de Matta e Silva, é interessante voltar ao
pensamento de James Frazer, que citamos anteriormente, cujas pes-
quisas sobre a magia nas culturas mais arcaicas mostram um funda-
mento tão importante como o que ocorre na Umbanda. Frazer (1982)
propõe que a magia acontece em duas condições essenciais:
Se analisarmos os princípios lógicos nos quais se baseia a
magia, provavelmente concluiremos que eles se resumem em
dois: primeiro, que o semelhante produz o semelhante, ou que
um efeito se assemelha à sua causa; e, segundo, que as coi-
sas que estiveram em contato continuam a agir umas sobre as
outras, mesmo à distância, depois de cortado o contato físico.
Ao primeiro princípio podemos chamar lei da similaridade, ao
segundo, lei do contato ou contágio. Do primeiro desses prin-
cípios, a lei da similaridade, o mago deduz a possibilidade de

S U M Á R IO 220
produzir qualquer efeito desejado simplesmente imitando-o; do
segundo, que todos os atos praticados sobre um objeto mate-
rial afetarão igualmente a pessoa com a qual o objeto estava em
contato, quer ele constitua parte de seu corpo ou não. Os sor-
tilégios baseados na lei da similaridade podem ser chamados
de magia homeopática ou imitativa; os que têm fundamento na
lei do contato ou contágio podem ser chamados de magia por
contágio. (FRAZER, 1982, p. 83)

Frazer nos mostra, com sua análise teórica sobre a magia pri-
mitiva, que permanece na Umbanda a utilização dos objetos e demais
itens citados por Matta e Silva como meios para realizar a magia por
similaridade e por contágio, que também podem ser incluídos dentro
do conceito do magnetismo ou fluído magnético que é manipulável pe-
los magos. Todos os rituais de magia na Umbanda acabam por incluir
essas formas de, podemos dizer, mecanismo mágico.

Abro aqui uma exceção no texto para exemplificar essas técnicas


de magia com duas experiências presenciadas nos terreiros de Um-
banda estudados. A primeira, quando uma consulente, pedindo para
a entidade incorporada no médium uma benção para uma pessoa da
família, entrega-lhe uma peça de roupa da referida pessoa, na qual a
entidade pode colocar sua energia e, por meio do fluído impregnado
na roupa, promover o bem pretendido pela consulente. Nesse caso
podemos identificar a magia por contágio estabelecida por Frazer.

A segunda, já numa Gira de Exus e Pombas Giras, o consulen-


te, precisando apressar a assinatura de um documento legal que lhe
beneficiaria a carreira profissional, recorre à entidade para que esta
interfira na vontade da pessoa que devia assinar o documento. A re-
comendação da entidade foi para que o consulente comprasse um
pequeno punhal e fincasse esse punhal na terra sobre um papel com
o nome da referida pessoa da qual precisava a assinatura, sendo que
ao lado acenderia uma vela preta. Segundo a entidade, o punhal iria
incomodar a pessoa (espetar) até que ela assinasse o documento,

S U M Á R IO 221
fato que faria apressar o processo. Nesse caso, temos a magia por
similaridade, na qual o objeto utilizado produz um efeito similar ao real
e auxilia na realização do objetivo.

Matta e Silva não apresenta argumentos como os elaborados


por Frazer em relação à forma de atuação da magia, mas deixa claro
que a “Corrente Astral de Umbanda” (como ele define a religião) “tanto
manipula a direita como a esquerda, isto é, tem como parte integrante
de seu movimento ou de sua razão de ser o uso das forças mágicas ou
de magia” (MATTA E SILVA, 1969, p. 219). Na perspectiva do autor, os
médiuns devem ser responsáveis pela prática da verdadeira Umban-
da, procurando não cair na armadilha de acreditar que apenas por ser
médium já possui a autorização – “outorga” como ele diz – para utilizar
os rituais mágicos de forma independente e, muitas vezes, interesseira.
Nessa direção, realiza uma severa advertência:
Mas o que tem acontecido a muitos? Começam abusando da
lei de salva, começam a cobrar em demasia, já sem levar na
devida conta quem tem mais ou quem tem menos, sem destinar
coisa alguma a obras de caridade, deixando-se dominar pela
ganância. [...] Nessa altura – é lógico – já escorregaram para
a exploração e já devem estar conscientes de que a qualquer
instante podem entrar na “força da pemba”, porque erraram,
continuam errando, infringindo as regras da magia, da qual tam-
bém (dentro de seu grau) é um guardião... É triste vermos como
a queda desses verdadeiros médiuns magistas é vergonhosa,
desastrosa até... (MATTA E SILVA, 1969, p. 223)

Dessa forma, no nosso entendimento, a partir de uma perspec-


tiva branca, baseada em preceitos éticos e morais que se afastam das
tradições africanas e se aproximam principalmente do kardecismo, mas
que também estão presentes no cristianismo, Matta e Silva fundamenta
a utilização da magia na Umbanda invocando como fonte de sua racio-
nalidade as ciências ocultas, conforme foram apresentadas no passado
por alguns de seus grandes nomes. O foco da magia deve ser o bem,
apesar de que o mago também pode conhecer a manipulação das más

S U M Á R IO 222
energias, e o esforço do mago umbandista deve ser para se afastar dos
rituais que se aproximam das tradições africanas e se fixar numa condu-
ta religiosa socialmente aceita e benéfica para a sociedade.

No capítulo XV do seu livro “Umbanda a proto-síntese cósmica”


(2002), F. Rivas Neto procura elaborar suas reflexões com base nas tra-
dições do esoterismo e ocultismo, propondo algumas interpretações
interessantes sobre a magia. Iniciado e formado na Umbanda por Mat-
ta e Silva, o trabalho de Rivas Neto constitui um segundo momento
da construção de uma doutrina e de um conhecimento racionalizado
sobre a Umbanda.

Depois de iniciar o capítulo argumentando sobre uma teoria dos


estados físicos e estados etéricos da matéria, isto é, sobre os estados
em que a matéria se manifesta na vida terrena (sólido, liquido e gaso-
so) e também sobre os estados em que a mesma se manifesta no nível
do éter138 (éter químico, éter refletor e éter luminoso), que podemos
aproximadamente formular como “não-físico” ou astral139, como é pro-
posto no esoterismo, Rivas Neto procura estabelecer que a magia atua
com base na capacidade do mago de dinamizar os estados astrais
com o intuito de influir nos estados físicos. Nesse sentido, propõe a
seguinte definição sobre o uso da magia:
A) toda magia tem de iniciar-se pelo campo mental. Há de ha-
ver a ideação, concretizando-a em forma de pensamentos, os
quais imantarão e atrairão certas classes de entidades que vi-
bram afins com a corrente de pensamentos. B) Após essa pri-
meira fase, entrará muito particularmente e de forma decisiva
no sucesso da execução e resultados provenientes da magia a
vontade do mago ou magista. É cada vez mais que, dominan-

138 Hipotético fluído imaterial que permeia todo o universo e é necessário à propagação das
ondas eletromagnéticas.
139 É o plano da existência espiritual, ou seja, uma dimensão do espaço-tempo que é paralela
ao plano físico, dimensão em que a consciência e a força do pensamento é fundamental
para o movimento e para a ação. Segundo o esoterismo o mundo espiritual é dividido
ainda em sete subplanos, entre os quais estão o plano astral e o plano físico, que estão
inter-relacionados.

S U M Á R IO 223
do-se, o mago ou magista poderá dominar os elementos vibra-
tórios ou mesmo atuar através da vontade em várias Entidades
astralizadas ou mesmo sobre certas forças sutis da Natureza. C)
Material – nenhum ritual mágico alcançará seus objetivos se não
for projetado sobre determinados elementos físicos densos e
etéricos, os quais servirão de canais da magia ou de elementos
espelhos, os quais projetarão o ato petitório segundo a corrente
de pensamentos e desejos, que alcançará ou não, segundo a
destreza do mago ou magista, o objetivo visado. Essa parte fí-
sica seria a ação ou execução propriamente dita. Os elementos
ou materiais servirão como elementos radicais, os quais serão
movimentados do físico ao etérico e desse ao astral. Assim, há
uma forte reação do astral, dependendo de certos elementos
colocados no ato mágico ou oferenda ritualística, a qual visa
projetar ou ativar certas energias de ordem etéreo-física ou
mesmo astroetérica para depois desencadearem a atuação na
matéria (RIVAS NETO, 2002, p. 293-294).

Neste esquema básico da ação da magia, podemos dizer que


o autor também volta à questão do magnetismo ou fluído universal
(imantação) que citamos anteriormente, para apresentar sob a forma
do conhecimento e linguagem do esoterismo como a ação mágica
acontece a partir da mente do mago, que ao conectar-se tanto com
o nível da matéria (objetos e instrumentos) como com o nível etérico
(a energia que fundamenta e articula todos os estados da vida física
e astral), pode realizar alterações no curso dos acontecimentos ou na
natureza dos fenômenos materiais ou físicos, contanto que utilize essa
sequência de ações mágicas.

Nas explicações de Rivas Neto a magia depende da força com


que o mago invoca140 ou evoca141 a ação das entidades espirituais que
atuam no astral a partir dos rituais com os “elementos materiais espe-
cíficos e especiais” (p. 294), que podem efetivamente atrair e desenca-
dear a ação astral no plano físico.

140 Segundo o autor: invocar = implorar, pedir, rogar, pedir proteção.


141 Segundo o autor: evocar = chamar de algum lugar, ordenar.

S U M Á R IO 224
Para exemplificar, voltando ao ato mágico – que citamos em pá-
gina anterior – do uso de um pequeno punhal no ritual para alcançar
uma assinatura em um documento, podemos pensar que o ato mágico
iniciado com a vontade do consulente (que nesse caso vai realizar a
magia sob a orientação e força de uma entidade) de receber um be-
nefício, será alcançado pela concentração deste no desejo de que o
punhal (objeto) incomode a pessoa que precisa assinar o documento
(espetar o punhal na terra sobre o papel com o nome dessa pessoa),
a tal ponto que esta será impelida a realizar a assinatura e encaminhar
o documento para o requerente, que assim alcança o seu objetivo.

Com esses procedimentos, o mago ou pessoa orientada pelo


mago, coloca em movimento essa relação entre a matéria (punhal,
nome no papel, terra), o plano etérico (energia) e o plano astral (enti-
dades), que pode realizar modificações no rumo dos acontecimentos
ou transformações em situações específicas da realidade material. Po-
demos dizer que isso ocorre também com as doenças por exemplo,
ocasionando aquilo que as religiões chamam graça ou milagre.

Rivas Neto também destaca a possibilidade de que a força da


vontade e do pensamento pode ser utilizada de acordo com a índole e
o padrão ético/moral do médium magista, ocasionando a divisão entre
a magia branca e a magia negra. Nas suas palavras:
Neste momento, gostaríamos de lembrar que os desejos tam-
bém emitem certas frequências, sendo o desejo, de forma bem
simples, força geradora de poder e vontade, podendo gerar luz
ou treva, dependendo é claro do mago, se branco ou negro,
tudo de acordo com pensamentos, vontade, elementos, etc. Ao
falarmos sobre os fenômenos que ocorrem na petição de ordem
mágica, não poderemos nos esquecer de fenômenos importan-
tíssimos, tais como: reflexão, refração, ressonância, dissonância
e reverberação. Do ponto de vista técnico, a evocatória mágica
forma ondas eletromagnéticas que poderão ser dinamizadas ou
dissipadas através do desejo, que poderá tornar-se condutor ou
resistor. A evocatória é dirigida através da vontade, do desejo,

S U M Á R IO 225
que sem dúvida é manancial de poder, que na dependência da
petição poderá ou não alcançar os objetivos ou as Entidades
evocadas. Assim, toda evocatória é uma ação que provocará
uma reação, na dependência da natureza do pedido e da força
mentoastral que foi emitida (RIVAS NETO, 2002, p. 295).

Assim, na perspectiva da Umbanda iniciática de Rivas Neto, mas


que também é a de outras concepções da Umbanda, a força da magia
está na força mental do sacerdote ou médium, que é capaz de dirigir
sua vontade, por meio de um ritual, até o astral e as entidades que lá
atuam, e alcançar e ativar a força dessas entidades para intervir no plano
físico dos acontecimentos. Daí porque a ética e a moral dos magos são
fundamentais para o trabalho espiritual, condicionando a existência da
magia branca (para o bem) e da magia negra (para o mal).

Nas páginas seguintes do seu capítulo sobre magia, F. Rivas


Neto discorre sobre os rituais da Umbanda e como os mesmos estão
impregnados da magia, seja nas encruzilhadas, nos cemitérios, nas
matas, etc., os elementos materiais utilizados são sempre meios para
dinamizar as energias astrais e mobiliza-las para determinado objeti-
vo. O autor também fala sobre os pontos riscados, talismãs, sobre os
banhos de limpeza, oferendas de alimentos, sempre com o intuito de
demonstrar a movimentação de energia que está associada à magia.
Como exemplo, podemos tomar algumas de suas considerações so-
bre as oferendas ritualísticas:
É fundamental que se entenda que, na oferenda, joga-se muito
com a energia ou matéria radiante e suas diversas transforma-
ções. A oferenda é fonte energética concreta para os diversos
rituais mágicos. Esse é o axioma das oferendas ritualísticas. Ve-
jamos o esquema que tentará demonstrar o que explicamos.
O mental do operador busca os elementos de ordem astral, os
quais são por equivalência ajustados aos elementos materiais
que ao refletirem as forças mágicas, fazem-no com liberação
de energias. Eram energias armazenadas que são detonadas
através das oferendas físicas para que com isso seja alcançado
o objetivo visado. (RIVAS NETO, 2002, p. 309)

S U M Á R IO 226
Todo o mistério da magia, portanto, está manipulação da ener-
gia universal existente nos diversos planos da vida (físico, etérico, as-
tral, etc.) por meio da capacidade mental e da força da vontade do
médium ou mago, além do conhecimento da ritualística necessária.

Observamos, então, numa rápida comparação entre os textos de


Matta e Silva e Rivas Neto, que há uma continuidade entre seus escritos
em relação à finalidade e à forma como a magia é praticada e deve ser
utilizada. Há uma diferença na linguagem, à medida que Rivas Neto pro-
cura no esoterismo do seu momento histórico, cujos desenvolvimentos
teóricos tem maior alcance em termos de racionalização, uma funda-
mentação mais abrangente para a utilização da magia na Umbanda,
abarcando, inclusive os elementos usados em rituais que haviam sido
condenados anteriormente por Matta e Silva. O foco negativo destes dei-
xa de ser a proximidade com os rituais africanos, mas permanece ligado
à postura ética com a qual esses elementos são utilizados.

Seguindo o mesmo caminho que percorremos na primeira parte


do texto, vamos abordar os escritos de Rubens Saraceni, que conside-
ramos o último dos três grandes teóricos que construíram um conheci-
mento e uma doutrina, até mesmo uma Teologia, sobre a Umbanda e
seus fundamentos religiosos.

Relembrando algumas considerações que fizemos na primeira


parte do texto, os três grandes codificadores da Umbanda, assim
como seus escritos, estão condicionados pelos momentos históricos
em que viveram e escreveram. Se Matta e Silva esteve envolvido com
a consolidação de uma perspectiva branca e cristã da Umbanda,
negando ao máximo suas características africanas, foi porque esse
debate era fundamental no momento em que escreveu e publicou
seus livros. Já Rivas Neto, escrevendo principalmente no contexto
de expansão da Umbanda após a década de 1970, período também
com forte presença dos elementos do movimento da Contracultura,
em especial as correntes espiritualistas e esotéricas do ocidente e do

S U M Á R IO 227
oriente, procurou adequar seus escritos a esses debates espirituais,
inserindo a Umbanda numa tradição multimilenar de conhecimentos
ocultos e ajustando sua forma de atuação a essa perspectiva mais
ampla do que o simples debate sobre as influências africanas, indí-
genas e europeias dos seus rituais e práticas.

Saraceni, por seu lado, escreve nas últimas três décadas, inclu-
sive já durante o século XXI, num contexto de pluralismo religioso exa-
cerbado pela intensa disputa de mercado entre as diversas correntes de
pensamento religioso. Seu objetivo é mais prático: formar os médiuns
num conhecimento e numa prática que integram as diversas origens da
Umbanda, focando nos Orixás, nas entidades espirituais, na magia, na
Lei Maior (Lei do Karma) e nas forças divinas da Criação. Sua perspec-
tiva é mais universalista, mas também é direcionada a fortalecer a iden-
tidade da Umbanda, constituindo um conjunto de explicações coerente
com toda a tradição umbandista deste o seu princípio no Brasil.

Sua teologia – sintetizada neste livro que consultamos – percorre


temas amplos como a Criação divina (cosmogonia) e o significado dos
Orixás (energias da natureza) no surgimento e no desenvolvimento do
planeta e de todas as formas de vida que o povoaram, aborda temas
relativos a outras tradições de pensamento como os chacras e a evolu-
ção física e espiritual da humanidade, e também enfoca os temas mais
específicos da Umbanda, como as 7 linhas e os rituais. Entre esses
diversos eixos de reflexão, Saraceni também faz suas considerações
sobre o significado e o papel da magia.

Inicialmente, Saraceni propõe que a magia é uma condição pe-


culiar dos iniciados no conhecimento da mesma “porque as divinda-
des só reconhecem como aptos para esse mistério quem cumpriu as
etapas iniciáticas estabelecidas pelo seu iniciador” (SARACENI, 2003,
p. 226). Essa capacidade de realizar com eficácia os rituais de ma-
gia, no caso dos magos que demonstram uma força acima da média,
para o autor já é uma condição do seu nascimento, ou seja, é um

S U M Á R IO 228
conhecimento já adquirido em outras encarnações: “todo grande ini-
ciado já encarna preparado, em espírito, e tudo para ele é tão natural
que, dispensando os procedimentos religiosos, magísticos, ocultistas
ou iniciáticos existentes, dá início aos seus próprios procedimentos
[...]” (SARACENI, 2003, p. 226).

Em todas as épocas, esses grandes iniciados, que estão pre-


sentes em todas as tradições religiosas, cada um dentro do seu con-
junto de crenças e ensinamentos, transmitem essa capacidade para
os iniciantes, segundo o autor porque: “traz em si uma outorga Divina
e é ‘iniciador’ natural das pessoas que se afinam com ele e o adotam
como tal” (SARACENI, 2003, p. 226).

Após essas considerações, Saraceni propõe sua definição de


magia em quatro pontos:
- Magia é o ato de ativar ou desativar os mistérios de Deus;

- Magia é a ‘manipulação’ mental, energética, elemental e natu-


ral de mistérios e poderes divinos;

- Magia é o ato de, a partir de um ritual evocatório específico, ati-


var energias e mistérios que, só assim, são colocados em ação;

- Magia é um procedimento paralelo aos religiosos ou, mesmo,


parte deles. (SARACENI, 2003, p. 226-227)

Para a realização da magia é uma condição essencial desen-


volver a mediunidade, à medida que esse desenvolvimento permite
um contato maior e mais profundo com todos os planos do universo,
desde o material até o mais sutil. Com essa qualidade mediúnica, o
mago pode se conectar com a energia dos elementos materiais que
são oferecidos às entidades que atuam nos planos espirituais, e estas
utilizam essas energias das formas necessárias dentro das caracterís-
ticas de cada ritual de magia. Saraceni procura explicar esse processo
de forma que o entendimento, no seu entender, seja facilitado:

S U M Á R IO 229
Normalmente, uma oferenda contém vários elementos mate-
riais que à primeira vista, parecem não ter fundamento. Mas, na
verdade, todos têm e são facilmente explicáveis. Frutas, velas,
bebidas, flores, perfumes, fitas, comidas, etc., tudo obedece
a uma ordem de procedimentos, todos afins com o objetivo a
que se destinam. Os frutos são fonte de energias que têm vá-
rias aplicações no campo etérico. Cada fruta é uma condensa-
ção de energias que forma um composto energético sintético,
o qual, se corretamente manipulado pelos espíritos, torna-se
plasmas astrais usados por eles até como reservas energéticas
durante suas missões socorristas. [...] Para efeito de compara-
ção, podemos recorrer aos trabalhadores que manipulam cer-
tos produtos químicos e precisam ingerir grandes quantidades
de leite para desintoxica-los ou aos que trabalham em fornalhas
e precisam ingerir grandes quantidades de líquidos para se rei-
dratarem. [...] E esse mesmo desgaste sofrem os espíritos que
atuam como curadores, quando doam suas próprias energias
aos enfermos, tanto os desencarnados quanto os encarnados.
(SARACENI, 2003, p. 227)

Assim, todos os elementos materiais utilizados nas magias têm


sua significação energética e simbólica para o ritual. As forças dessas
oferendas são utilizadas pelas entidades, de acordo com cada obje-
tivo e cada necessidade. No caso da Umbanda, Saraceni afirma que
“uma oferenda é um ato religioso realizado no ponto de forças de um
Orixá, que irá fornecer ao espírito que trabalha com o médium um de
seus axés, utilizado de imediato, ou posteriormente, nos mais diversos
trabalhos” (2003, p. 228).

Sendo o axé a força e a energia do Orixá, as magias devem ser


realizadas em correlação com os locais ou elementos em que cada
Orixá concentra seus axés: o mar, no caso de Iemanjá (longe do mar
pode-se utilizar a água do mar e a areia ou conchas), as matas no
caso de Oxóssi, as cachoeiras para Oxum, as encruzilhadas para Exu,
e assim por diante.

S U M Á R IO 230
Esses conhecimentos são essenciais para que os iniciados do-
minem os rituais de magia e para que possam transmitir aos iniciantes
que estão em busca desse aprendizado. Entretanto, para que o mago
alcance esse grau de força mental para a realização completa da ma-
gia, há desafios e há a necessidade de consciência de que o poder por
trás de toda magia é divinamente permitido.

Por esse motivo, Saraceni faz a seguinte observação quando


fala sobre a divina “transmissão total de poderes mágicos” (p. 233):
Acontece quando alguém adquire um grau consciencial de tal
nível que está pronto para, finalmente, despertar em si poderes
análogos aos existentes na natureza e velados pelos seus guar-
diões naturais: os ‘orixás’. A transmissão só ocorre depois de
um ‘ato de fé’, em que o magista se consagra ao Orixá e está
consciente de que o mau uso que der aos poderes que serão
despertados em si o conduzirão ao encontro do seu negativo,
sendo punido com severidade. (SARACENI, 2003, p. 233)

No caso dos médiuns que não atingiram esse estágio de cons-


ciência, há a ação da magia, mas condicionada às circunstâncias e
necessidades de cada ato mágico. Então esses rituais têm – pode-se
dizer – um alcance limitado e efetivo para os casos específicos a que
são destinados. Nessa perspectiva, Saraceni aponta que o Orixá é o
“doador do poder”, e faz isso porque o guia espiritual do médium tam-
bém é responsável pelo direcionamento dessa energia e será “o ma-
nipulador dessas energias potencializadas”, e o médium é o ativador
desse processo, pois abre a comunicação energética a partir do ritual
realizado. (SARACENI, 2003, p. 233)

Assim, de acordo com o médium e sua capacidade, acontece


a integração entre o mundo material, as forças astrais das entidades
e as forças divinas dos Orixás, que atuando em conjunto, dentro das
Leis espirituais, podem promover um ato mágico com efeitos positivos
ou negativos na vida material ou física dos indivíduos.

S U M Á R IO 231
Portanto, sem fazer referência às origens étnicas ou culturais da
Umbanda, Rubens Saraceni procura explicar a integração de todos
esses elementos religiosos na sua doutrina. A lei do Karma, os Orixás,
os espíritos, as oferendas, a força da natureza, a evolução espiritual, o
comportamento ético e moral, a capacidade mental e de conhecimen-
to, ou seja, os mais variados elementos das culturas formadoras do
Brasil estão presentes e integrados na Umbanda, reunidos nos conhe-
cimentos ocultos que os rituais e a magia na Umbanda guardam para
os que querem conhece-los.

Nessa perspectiva, não se pode simplesmente negar a magia


taxando-a como invenção, superstição ou ilusão, sem incorrer num
equívoco na proposta da reflexão científica, que é buscar a compreen-
são dos fenômenos em seu significado e validade, mesmo que não
dentro dos padrões do empiricismo que marca muitas das correntes
de pensamento. Assim, a magia não pode ser apenas limitada a uma
noção de crença, mas analisada na amplitude dos movimentos histó-
ricos que a reconhecem e validam.

CONCLUSÃO

Mediunidade e magia constituem dois dos elementos centrais


da religião Umbanda. Esses elementos são, em geral, vistos de forma
polêmica e contraditória, à medida que tanto a mediunidade como a
magia não podem ser provadas empiricamente, mas apenas explica-
das a partir das formulações dos próprios praticantes dessa religião ou
de outras religiões que também contam com esses elementos.

Neste texto, procuramos mostrar como foram elaborados os


ensinamentos sobre a mediunidade e a magia na Umbanda, a partir
do pensamento de três dos principais autores umbandistas. Situamos

S U M Á R IO 232
esses pensamentos no contexto histórico de sua produção e valori-
zamos a perspectiva desses autores nos aspectos específicos que
poderiam mostrar a mediunidade e a magia como fenômenos com-
preensíveis para os leitores comuns e não familiarizados com as for-
mas tradicionais de manifestação religiosa da Umbanda.

Nosso entendimento é que o esforço dos autores umbandis-


tas para criar um conjunto de ensinamentos e, mesmo, uma Teologia
da Umbanda, foi fundamental para que houvesse um eixo comum no
interior das muitas Umbandas praticadas no Brasil. Mesmo que uma
grande diversidade de formas e rituais existam, mediunidade e magia
estão presentes em todos os Templos e Terreiros de Umbanda, o que
justifica nossa tentativa de trazer essas explicações sobre a mediuni-
dade e a magia de forma sintetizada.

REFERÊNCIAS

DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa: o sistema


totêmico na Austrália. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
FRAZER, James G. O Ramo de Ouro. Versão Ilustrada. Prefácio de
Darcy Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1982. Disponível em: http://www.
auroradourada.com/gallery/o-ramo-de-ouro-sir-james-george-frazer-ilustrado.
pdf
MATTA E SILVA, W.W. da. Umbanda de todos nós. 3ª Ed. Enciclopédia de
Ciências Ocultas, Volume 6. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos S. A., 1968.
MATTA E SILVA, W.W. da. Umbanda do Brasil. Enciclopédia de Ciências
Ocultas, Volume 7. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos S. A., 1969.
RIVAS NETO, Francisco. Umbanda: a proto-síntese cósmica. São Paulo:
Editora Pensamento, 2002.
SARACENI, Rubens. Doutrina e Teologia de Umbanda Sagrada: a religião
dos mistérios, um hino de amor à vida. São Paulo: Madras, 2003.
WEBER, Max. Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia
compreensiva. 3ª Ed., Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2000.

S U M Á R IO 233
SOBRE OS ORGANIZADORES
André Luiz Caes
Doutor em História pela Universidade de Campinas (UNICAMP). Pós-doutor
em Religiões Visões de Mundo pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de
Mesquita Filho” (UNESP). Professor dos Programas de Pós-Graduação em
História (PPGHIS) e Ambiente e Sociedade (PPGAS) da Universidade Estadual
de Goiás (UEG).

Daniel Precioso
Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Professor do
Curso de História (campus sudoeste, sede Quirinópolis) e do Programa de
Pós-Graduação em História (campus sul, sede Morrinhos) da Universidade
Estadual de Goiás (UEG).

Léo Carrer Nogueira


Doutor em História pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Professor do
Programa de Pós-Graduação em História (PPGHIS) da Universidade Estadual
de Goiás (UEG), campus Sul, sede Morrinhos.

S U M Á R IO 234
SOBRE OS AUTORES
E AS AUTORAS
Clarissa Adjuto Ulhôa
Doutora em História pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Professora
Adjunto A da Universidade Federal de Jataí (UFJ).

Claudia de Jesus Maia


Doutora em História pela Universidade de Brasília (UnB) e pós-doutora em
História pela Universidade Nova de Lisboa (UNL). Professora do Departamento
de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade
Estadual de Montes Claros (UNIMONTES). Pesquisadora do CNPq.

Fernanda Gabriela Gonçalves da Silva


Graduada em História pela Universidade Estadual de Goiás (UEG), campus
Sul, sede Morrinhos. Foi bolsista de Iniciação Científica (PIBIC).

Leonara Lacerda Delfino


Doutora em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e
pós-doutora em História pela Universidade Estadual de Montes Claros
(UNIMONTES). Professora colaboradora do Programa de Pós Graduação em
História da Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES).

Maria Cristina de Azevedo


Doutora em História pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) e inte-
grante do Núcleo de Pesquisa Impérios e Lugares do Brasil-CNPq.

Monalisa Pavonne Oliveira


Doutora em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Profes-
sora do Curso de História, do Mestrado Profissional em História e do Mestrado
em Educação da Universidade Federal de Roraima (UFRR).

S U M Á R IO 235
Patrício Batsîkama
Doutor em Antropologia pela Universidade Fernando Pessoa (UFP) e pós-
doutor em História e Ciências Políticas. Professor de Sociologia das Religiões
no Instituto Superior Politécnico Tocoísta de Luanda (ISPT).

Raíssa Nathana Freitas Batista


Mestranda em Antropologia pelo Departamento de Antropologia Social
da Universidade Federal de Roraima (UFRR) e licenciada em História pela
mesma universidade.

S U M Á R IO 236
ÍNDICE REMISSIVO

A cultos 18, 19, 23, 50, 58, 59, 60, 64, 68,
África 9, 10, 11, 15, 51, 65, 67, 68, 71, 82, 111, 118, 120, 122, 123, 133, 165, 166,
88, 105, 108, 129, 200 169, 176, 184, 185, 186, 194, 200
africana 12, 22, 23, 42, 43, 49, 51, 62, 68, cultura 19, 20, 42, 104, 110, 111, 117, 133,
85, 86, 87, 88, 90, 110, 111, 114, 115, 116, 142, 143, 185, 193, 202, 203, 211, 220
118, 120, 121, 122, 126, 127, 132, 133, D
134, 135, 136
Diário Oficial do Município de Goiânia 139,
afro-brasileira 10, 72, 101, 106, 110, 113,
141, 142, 149, 152, 155, 159, 160, 162,
116, 117, 126, 130, 133, 136
173
afro-brasileiras 9, 10, 11, 12, 13, 14, 50,
Dibûndu 17, 19
66, 110, 113, 114, 115, 117, 118, 123, 124,
DOM 139, 140, 141, 152, 153, 155, 156,
132, 133, 134, 135, 136, 139, 141, 169,
158, 159, 160, 161, 162, 165, 166, 167,
172, 175, 177, 181, 183, 187, 196, 197,
168, 170, 171, 172
198, 199, 200, 202
afro-brasileiros 49, 66, 117, 123, 169, 198, F
200 feminina 75, 175, 179, 184, 185, 186, 188,
afrodescendentes 93, 110 189, 190, 191, 192, 194, 195
B feminismo 13, 178, 187, 200
Brasil 9, 11, 13, 14, 15, 23, 45, 49, 63, 64, G
68, 69, 71, 76, 79, 86, 94, 100, 104, 106, gênero 13, 14, 71, 75, 77, 174, 175, 177,
107, 111, 113, 114, 116, 117, 119, 130, 178, 179, 180, 181, 183, 185, 188, 189,
135, 136, 137, 167, 176, 177, 200, 206, 195, 196, 197, 199, 200
208, 212, 213, 228, 232, 233, 235
Buñkîsi 17, 19 H
história 10, 12, 13, 14, 15, 34, 49, 67, 68,
C
70, 71, 72, 99, 100, 101, 102, 104, 106,
Catarina Juliana 11, 50, 51, 52, 53, 54, 55, 114, 115, 116, 133, 136, 175, 177, 178,
56, 57, 58, 59, 60, 61, 62, 63, 64, 65, 66, 180, 182, 198, 200, 210
68 homens 19, 22, 25, 27, 29, 30, 32, 46, 131,
centro-africanas 49, 68, 107 175, 177, 178, 179, 181, 182, 183, 184,
Centros 148, 157, 160 185, 186, 187, 188, 189, 190, 191, 192,
cerimônias 34, 49, 63, 64, 183, 186 195, 198, 199
cristianismo 43, 175, 191, 192, 195, 196,
197, 222 I
igrejas 133, 168, 176, 177, 187, 189, 190,
193, 196, 197, 198, 199

S U M Á R IO 237
K 175, 177, 181, 183, 184, 187, 196, 197,
Kiñtûmba 17 198, 199, 200, 202, 210, 211, 225, 232
Kitômi 17 religiosa 10, 15, 17, 21, 22, 24, 39, 43, 50,
57, 58, 61, 62, 63, 64, 65, 66, 67, 72, 75,
L 84, 86, 89, 90, 95, 103, 104, 106, 110, 114,
Lômbo lwa sîmbi 17 115, 116, 120, 123, 127, 132, 133, 135,
136, 137, 157, 158, 165, 188, 192, 193,
M
194, 195, 198, 200, 202, 203, 223, 233
magia 14, 17, 24, 61, 89, 201, 202, 203, ritos 30, 61, 65, 66, 78, 79, 91, 93, 99,
215, 217, 218, 219, 220, 221, 222, 223, 101, 104, 111, 118, 121, 122, 133, 186
224, 225, 226, 227, 228, 229, 231, 232, rituais 11, 14, 19, 29, 49, 50, 51, 56, 57,
233 58, 59, 60, 61, 63, 64, 65, 66, 67, 68, 87,
mitos 72, 214 90, 92, 110, 118, 121, 122, 131, 132, 136,
N 137, 147, 183, 184, 198, 202, 207, 212,
217, 219, 220, 221, 222, 223, 224, 226,
negros 64, 77, 91, 105, 115
227, 228, 231, 232, 233
ñgânga 17, 18, 25, 26
Nhá Chica 12, 70, 71, 72, 73, 77, 78, 79, S
80, 81, 82, 84, 85, 88, 91, 93, 94, 95, 96, saberes 63, 65, 72, 75, 76, 78, 99, 101,
97, 99, 100, 101, 102, 103, 104, 105, 106, 126
107 sobre-humanos 112, 113
R sociedade 14, 21, 22, 27, 36, 37, 38, 39,
41, 50, 57, 58, 60, 61, 62, 63, 64, 65, 66,
racismo 12, 13, 106, 109, 110, 114, 115,
68, 71, 75, 77, 78, 81, 82, 87, 97, 98, 110,
116, 117, 118, 120, 123, 124, 125, 132,
113, 114, 115, 118, 119, 124, 125, 126,
134, 135, 136
142, 145, 157, 175, 177, 179, 180, 181,
racismo religioso 12, 13, 109, 114, 115,
182, 183, 188, 193, 195, 197, 206, 223
116, 117, 118, 120, 132, 134, 135, 136
reflexões 14, 135, 200, 202, 207, 213, 219, T
223 termo 18, 22, 23, 32, 33, 37, 39, 40, 41,
religião 9, 10, 11, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 45, 71, 78, 111, 114, 116, 185
19, 20, 21, 23, 24, 42, 43, 53, 101, 108,
110, 113, 114, 115, 116, 117, 119, 125, U
126, 127, 128, 132, 133, 147, 150, 158, Umbanda 13, 14, 49, 100, 101, 102, 107,
182, 183, 188, 197, 198, 199, 202, 203, 111, 130, 140, 141, 142, 148, 149, 150,
206, 211, 212, 213, 214, 215, 216, 222, 152, 153, 155, 158, 160, 166, 168, 173,
232, 233 177, 181, 182, 183, 196, 199, 200, 201,
religiões 9, 10, 11, 12, 13, 14, 49, 50, 61, 202, 203, 204, 205, 206, 207, 208, 211,
66, 105, 110, 111, 113, 114, 115, 116, 117, 212, 213, 215, 216, 220, 221, 222, 223,
118, 120, 122, 123, 124, 125, 129, 132, 226, 227, 228, 230, 232, 233
133, 134, 135, 136, 141, 147, 169, 174,

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